ESCOLA DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM TEOLOGIA
MESTRADO EM TEOLOGIA
DIEGO DOS SANTOS WINGERT
CONFORMIDADE ENTRE IDEIA E OBJETO REFLEXAtildeO SOBRE A VERDADE NA I
APOLOGIA DE JUSTINO MAacuteRTIR
Porto Alegre
2019
DIEGO DOS SANTOS WINGERT
CONFORMIDADE ENTRE IDEIA E OBJETO REFLEXAtildeO
SOBRE A VERDADE NA I APOLOGIA DE JUSTINO MAacuteRTIR
Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Faculdade de
Teologia da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica
do Rio Grande do Sul como requisito parcial
para obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Teologia
Aacuterea de Concentraccedilatildeo em Teologia
Sistemaacutetica
Orientador Prof Dr Caacutessio Murilo Dias da
Silva
Porto Alegre
2019
DIEGO DOS SANTOS WINGERT
CONFORMIDADE ENTRE IDEIA E OBJETO REFLEXAtildeO
SOBRE A VERDADE NA I APOLOGIA DE JUSTINO MAacuteRTIR
Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Faculdade de
Teologia da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica
do Rio Grande do Sul como requisito parcial
para obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Teologia
Aacuterea de Concentraccedilatildeo em Teologia
Sistemaacutetica
Orientador Prof Dr Caacutessio Murilo Dias da
Silva
Aprovada em _____ de _____ de _______ pela Comissatildeo Examinadora
COMISSAtildeO EXAMINADORA
______________________________________
Prof Dr Caacutessio Murilo Dias da Silva ndash PUCRS
______________________________________
Prof Dr Nythamar Hilario Fernandes de Oliveira Junior ndash PUCRS
______________________________________
Prof Dr Andreacute Luiz Rodrigues da Silva ndash PUC-Rio
A memoacuteria de meus familiares
Isidor Nairto Wingert meu querido pai por sua
histoacuteria como docente mas principalmente
pelas doces e constantes lembranccedilas de seu
carinho
Anisio e Maria Andradina dos Santos meus
saudosos avoacutes por seu amor sem medida por
sua entrega total a minha vida
Sempre os amarei
AGRADECIMENTOS
A minha amada Esposa uma luz constante em
minha vida Nela tudo sempre se renova sem
ela pouco restaria
Aos meus queridos filhos Pedro e Maria os
maiores presentes que Deus me deu Cristo
formado em voacutes eacute a maior heranccedila que pretendo
deixar
A minha amada Matildee que foi fundamental para
a realizaccedilatildeo desse sonho Seu amor foi constate
em todo tempo sua coragem sempre me
inspirou e seu legado me enche de orgulho
A meu Tio Ademir que eacute um exemplo vivo do
caraacuteter de Cristo sendo presente nessa
caminhada como um pai que acompanha seu
filho Essa conquista tambeacutem pertence a vocecirc
Ao Prof Caacutessio mestre por vocaccedilatildeo modelo de
excelecircncia para a docecircncia Sua orientaccedilatildeo foi
excepcional sua honestidade intelectual eacute
admiraacutevel Sua postura se tornou um exemplo a
ser seguido por esse teoacutelogo
Aos meus colegas Alexandre Dorcelina
Fernando Filipe Rodrigo e Samuel por tudo o
que compartilhamos e vivemos nesse tempo
jamais os esquecerei
Ao Pai ao Filho ao Espiacuterito Santo de quem eacute
o reino o poder e a gloacuteria de geraccedilatildeo em
geraccedilatildeo pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutem
ldquoEu lhes tenho dado a tua palavra e o mundo
os odiou porque eles natildeo satildeo do mundo como
tambeacutem eu natildeo sou Natildeo peccedilo que os tires do
mundo e sim que os guardes do mal Eles natildeo
satildeo do mundo como tambeacutem eu natildeo sou
Santifica-os na verdade a tua palavra eacute a
verdaderdquo
Joatildeo 1714-17
RESUMO
Esta dissertaccedilatildeo apresenta uma pesquisa bibliograacutefica direcionada a estabelecer a
identificaccedilatildeo moral e dogmaacutetica do termo Verdade exposto de forma predicativa na obra
intitulada I Apologia de Justino Maacutertir Acredita-se que na formaccedilatildeo e constituiccedilatildeo histoacuterica
do cristianismo alguns autores como Justino de Roma ajudaram a criar e fomentar os
paracircmetros necessaacuterios para se estabelecer uma ldquoidentidade cristatilderdquo durante os dois primeiros
seacuteculos da era atual A partir de novos valores e preceitos ordenou-se de maneira pragmaacutetica
uma tentativa de reconhecer e distinguir o fato de ser cristatildeo em meio ao contexto
sociorreligioso do mundo greco-romano De maneira expliacutecita e impliacutecita ndash e agraves vezes de forma
paradoxal ndash Justino categoricamente identifica o que era ser um seguidor de Cristo em sua I
Apologia aleacutem de apresentar o que poderia ser considerado como a Verdade de forma
categoacuterica e ateacute mesmo tangiacutevel nesse processo A partir desse ideaacuterio de feacute a dissertaccedilatildeo
discute questotildees pertinentes sobre o autor a obra base e outras caracteriacutesticas de seu contexto
histoacuterico Foram investigadas as relaccedilotildees entre a cultura helecircnica e o novo modus vivendi
naquele ambiente e nele a identidade filosoacutefica de Justino Por fim apresentou-se um quadro
clarificador sobre os elementos que satildeo considerados evidecircncias inquestionaacuteveis para Justino
do que eacute a Verdade revelada em meio aos homens Desenvolveu-se deste modo uma provaacutevel
definiccedilatildeo da Verdade segundo a concepccedilatildeo de Justino Maacutertir a partir de sua I Apologia
Palavras-chave Justino Maacutertir I Apologia Verdade
ABSTRACT
This dissertation presents a bibliographical research directed to establish the moral and
dogmatic identification of the term Truth exposed in a predicative way in the work entitled I
Apology of Justin Martyr It is believed that in the formation and historical constitution of
Christianity some authors like Justin of Rome helped to create and foster the parameters
necessary to establish a Christian identity during the first two centuries of the present era
From new values and precepts an attempt to recognize and distinguish the fact of being
Christian amidst the socioreligious context of the Greco-Roman world was pragmatically
ordered Explicitly and implicitly - and sometimes in a paradoxical way - Justin categorically
identifies what it was like to be a follower of Christ in his Apology in addition to presenting
what could be categorically and even tangibly Truth in that process From this idea of faith the
dissertation discusses pertinent questions about the author the base work and other
characteristics of its historical context The relations between the Hellenic culture and the new
modus vivendi in that environment were investigated and in it the philosophical identity of
Justin Finally a clarifying picture was presented on the elements that are considered
unquestionable evidences for Justino of what is the Truth revealed among men In this way a
probable definition of the Truth according to the conception of Justin Martyr from his I
Apologia was developed
Keywords Justin Martyr I Apologia Truth
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
1 Pe ndash Primeira Epiacutestola de Pedro
1 Pet ndash The First Epistle of Peter
aC ndash Antes de Cristo
Adv Haer ndash Adversus Haereses
Adv Marcionem ndash Adversus Marcionem
Cap ndash Capiacutetulo
Caps ndash Capiacutetulos
dC ndash Depois de Cristo
Dial ndash Diaacutelogo com Trifatildeo
Gn ndash Livro de Gecircnesis
ICAR ndash Igreja Catoacutelica Apostoacutelica Romana
Jo ndash Evangelho de Joatildeo
Js ndash Livro de Josueacute
Sl ndash Livro dos Salmos
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 11
1 JUSTINO MAacuteRTIR VIDA E OBRA NO CONTEXTO HISTOacuteRICO DO SEacuteCULO II
17
11 JUSTINO DE ROMA 17
12 PAIS DA IGREJA 23
121 Pais Apologistas 26
122 O Apologista Justino 29
13 ANAacuteLISE LITERAacuteRIA DA I APOLOGIA DE JUSTINO 32
131 Dataccedilatildeo 32
132 Divisatildeo Textual 34
133 Gecircnero Literaacuterio 35
134 Manuscritos 38
14 A PERSEGUICcedilAtildeO AOS CRISTAtildeOS 39
141 O Impeacuterio Romano e a Perseguiccedilatildeo ao Cristianismo 40
142 A Perseguiccedilatildeo no Periacuteodo da I Apologia 43
2 O NOVO MODUS VIVENDI 50
21 CRISTIANISMO A NOVA IDENTIDADE 51
22 O MUNDO NAtildeO-CRISTAtildeO 56
221 Os Judeus 58
222 Os Gentios 61
23 PRAXIS FIDEI ADVERSUS INIQUITATEM 65
231 Um Princiacutepio Teologal 68
2311 Praacutetica da Feacute Contra o Politeiacutesmo Relativista 69
2312 Praacutetica da Feacute Contra a Idolatria 70
2313 Praacutetica da Feacute Contra o Ateiacutesmo 71
232 Um Princiacutepio Determinista 75
233 Um Princiacutepio de Pureza 78
3 A VERDADE REVELADA Agrave RAZAtildeO A FILOSOFIA E SEU CONTEXTO NA
PERSPECTIVA DE JUSTINO MAacuteRTIR 84
31 INTRODUCcedilAtildeO AO CAPIacuteTULO XXVIII 85
32 O FILOacuteSOFO JUSTINO 90
321 Estoicismo e Platonismo em Justino 95
322 O Logos em Justino 104
33 RAZAtildeO DEUS SE PREOCUPA COM ESSAS COISAS 110
4 A VERDADE REVELADA POR FATOS PROFEacuteTICOS SEGUNDO JUSTINO 117
41 O MESSIANISMO ATEacute OS DIAS DE JUSTINO 118
42 AS PROFECIAS MESSIAcircNICAS NA VISAtildeO DE JUSTINO 122
43 A ENCARNACcedilAtildeO DO LOGOS APOGEU DA REVELACcedilAtildeO 128
CONCLUSAtildeO 139
REFEREcircNCIAS 144
OBRAS CONSULTADAS 151
11
INTRODUCcedilAtildeO
O assunto desta pesquisa dissertativa vem a ser um exame sobre uma proposta
desenvolvida a partir da obra intitulada I Apologia de Justino Maacutertir tambeacutem conhecido junto
ao meio eclesiaacutestico e acadecircmico como Justino de Roma Reconhecido de forma unacircnime como
um dos ldquomais ceacutelebres apologistas do seacuteculo IIrdquo1 Justino pertence agrave segunda era Patriacutestica
conhecida tradicionalmente pela definiccedilatildeo Pais Apologistas Nessa abordagem visamos
caracterizar a ideia de Justino a partir de sua definiccedilatildeo da palavra Verdade apresentada de
forma axiomaacutetica por diversas vezes em seu primeiro tratado apologeacutetico
Acredita-se que no processo de formaccedilatildeo desenvolvimento e consolidaccedilatildeo do
cristianismo como religiatildeo alguns valores de sentido absoluto (poderiacuteamos dizer dogmaacuteticos)
foram provedores e promovedores de um esquema de reconhecimento2 por meio de fortes
ascendentes (voltados para sua origem) de caracterizaccedilatildeo Esses valores amparados por sinais
e siacutembolos ndash alguns que receberam literal evidecircncia informativa ndash projetaram uma eficiente
identificaccedilatildeo cristatilde conseguindo externar a partir de preceitos e praacuteticas ordenadas um real
estado de enobrecimento3 e assim distinguiram o ser cristatildeo dos demais4
Aleacutem disso em toda a histoacuteria conhecida o homem sempre buscou descobrir quais
eram os reais elementos que promovem e garantem a certeza do bem (conquista felicidade
realizaccedilatildeo etc)5 e da verdade junto aos seres e as coisas com quem convive e se relaciona6
Nesse processo de desenvolvimento passando por todo percurso da histoacuteria humana nos
deparamos com as sequelas de um estado de consciecircncia que estaacute eacutetica eou moralmente
corrompido enfatizado em nosso em caso em especiacutefico pelo incocircmodo que o ser humano
passa quando exposto as consequecircncias e dilemas apresentados pelas ldquofacesrdquo da Verdade
Nesta mesma perspectiva reconhecemos que as ldquotestemunhas da verdade sempre
irritaram os ceacuteticos e os espertosrdquo7 Nessa missatildeo de testificar a Verdade os Apologistas
cristatildeos do Seacuteculo II acabaram por se distinguir mediante contribuiccedilotildees pertinentes para esse
1 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 51
2 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
3 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
4 SCOTT As Catacumbas de Roma 1996
5 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia Dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994
6 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
7 DANIEacuteLOU O Escacircndalo da Verdade1963 p 11
12
processo construtivo tornando-se diferenciais em seu tempo e espaccedilo de atuaccedilatildeo8 Justino
nesse mesmo seguimento acaba ganhando destaque atraveacutes de seus tratados que descrevem a
vida cotidiana dos cristatildeos do periacuteodo sendo-nos possiacutevel afirmar que no que se refere ao
conceito de Verdade (como predicativo) Justino parece estar ldquomais proacuteximo de noacutes do que
muitos pensadores modernosrdquo9
Uma especificidade que devemos apontar como elemento introdutoacuterio neste processo
refere-se ao entendimento de Justino para com o vocaacutebulo Verdade Neste quesito um
imperativo surge pois de forma inquestionaacutevel mediante o registro do Apologista conseguimos
considerar o que ele compreendia sobre o termo verdade em sua dimensatildeo epistemoloacutegica O
vocaacutebulo grego αλήθεια10 que comumente se traduz por verdade em portuguecircs eacute amplamente
utilizado por Justino em sua I Apologia sempre visando dar sentido e precisatildeo (absoluta) para
aquilo que o Apologista procurava identificar como algo literalmente manifesto mas que
dependia de ser apontado como agrave realidade presente e necessaacuteria para os Homens
Este conceito gramatical que Justino carrega sobre o termo Verdade jaacute estaacute presente
nos filoacutesofos11 e seu significado incorpora algo que define bem sua temaacutetica apologeacutetica
Justino compreendia que a realidade necessitava ser deslumbrada pois a verdade estaacute
subentendida a um ldquoestado preacutevio que viemos a descobrir a colocar de manifesto
estabelecendo o que a coisa eacuterdquo12 Deste modo Justino mediante sua metodologia dialeacutetica e
empiacuterica procurava salientar sua posse da Verdade por meio de um ldquosentido de certezardquo que
envolvia e incorporava a comprovaccedilatildeo de seus resultados Estes efeitos eram obtidos no
afastamento de dados distorcidos e encobertos sobre a realidade isso porque uma vez aplicado
tal desvelamento percebia-se como as coisas eram13 fazendo com que a Verdade fosse
colocada diante de seus expectadores
8 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
9 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 152
10 Rusconi ao apresentar este vocaacutebulo aborda inicialmente sobre sua composiccedilatildeo composta onde salienta que a
existecircncia da letra ldquoαrdquo no iniacutecio da palavra eacute uma partiacutecula negativa que estaacute somada ao termo ldquoλαθλήθrdquo que
significa ldquoestar escondidordquo Assim no caso em especiacutefico quase sempre a composiccedilatildeo visa expressar uma
realidade que estaacute ldquoescondida obscura eou esquecidardquo Deste modo a construccedilatildeo gramatical do termo propotildee
que a consequecircncia da autenticidade (verdade) dos fatos eacute o efeito causado pelo desvelamento destes casos Sendo
assim passa-se a conhecer a verdade a partir do momento que se remove as coisas que a ocultam Rusconi ainda
indica que o termo procurava apresentar a realidade como sendo a condiccedilatildeo objetiva das coisas visiacuteveis e
recordaacuteveis ao Homem o que atestava esse desvelamento do que estava oculto Ver RUSCONI Dicionaacuterio do
Grego do Novo Testamento 2003 p 32
11 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
12 HEGENBERG Significado e Conhecimento 1975 p 12
13 HEGENBERG Significado e Conhecimento 1975 p 15
13
A base dessa compreensatildeo sobre o vocaacutebulo verdade eacute utilizada amplamente por
Justino em sua I Apologia sempre visando dar sentido e precisatildeo absoluta para aquilo que o
Apologista procurava identificar como algo literalmente manifesto mas que dependia de ser
apontado como a realidade presente e necessaacuteria para os homens
Neste compasso eacute que esta dissertaccedilatildeo procura examinar como Justino interpretava
um de seus mais usados e emblemaacuteticos termos Este exerciacutecio nos conduz agrave questatildeo principal
que visamos responder nesta pesquisa sendo possiacutevel deste modo argumentarmos sobre este
ponto fundamental atraveacutes da seguinte interrogaccedilatildeo qual o sentido do vocaacutebulo ldquoVerdaderdquo
empreendido de forma maximal por Justino na sua primeira obra apologeacutetica
Sendo assim a realizaccedilatildeo desta pesquisa se deu atraveacutes de um exame bibliograacutefico
com literatura do tipo teoloacutegica filosoacutefica histoacuterica entre outras aacutereas relacionadas ao seu tema
base Cabe-nos salientar que esta dissertaccedilatildeo procura se apresentar como um agregado
intelectual em liacutengua portuguesa14 para sua aacuterea teoloacutegica especiacutefica
(PatriacutesticaPatrologiaHistoacuteria do Dogma) como tambeacutem para as demais aacutereas Humanas que
da mesma forma possam colher frutos num acircmbito interdisciplinar O estudo aqui proposto
baseia-se nos capiacutetulos XXIII-XXX da I Apologia de Justino Maacutertir tornando-se este nosso
principal ponto de delimitaccedilatildeo textual na busca de se compreender o conceito de Verdade para
Justino
Tratando-se dos termos Pai(s) ou Padre(s) ndash convencionalmente utilizados de forma
padratildeo e geneacuterica na titulaccedilatildeo das figuras de destaque na aacuterea Patriacutestica ndash optamos pelo
vocaacutebulo Pai como elemento descritivo a ser utilizado nesta pesquisa Isso devido a duas
questotildees orientativas A primeira busca priorizar a originalidade da liacutengua vernacular desta
dissertaccedilatildeo (portuguecircs) Jaacute a segunda procura seguir uma postura de acircmbito ecumecircnico visto
que o termo Pai se adapta melhor agrave compreensatildeo confessional cristatilde fora da realidade teoloacutegica
da Igreja Catoacutelica Apostoacutelica Romana natildeo trazendo nenhum prejuiacutezo cognitivo aos leitores
desta uacuteltima Instituiccedilatildeo
As citaccedilotildees da I Apologia de Justino foram extraiacutedas de versotildees em liacutengua portuguesa
e grega Em portuguecircs a I Apologia eacute traduzida e editada por Ivo Storniolo e Euclides M
Balancin e comentada por Roque Frangiotti para a coleccedilatildeo Patriacutestica da editora Paulus Jaacute o
texto em seu idioma original estaacute presente em duas publicaccedilotildees a primeira estaacute na coletacircnea
Patrologiae Cursus Completus Series Graeca Volume 6 editado por Jacques Paul Migne e a
14 A falta de trabalhos sobre o pensamento de Justino Maacutertir em liacutengua portuguesa no cenaacuterio nacional (Brasil) eacute
uma evidente deficiecircncia acadecircmica ateacute o momento Ver SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma
Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 12
14
segunda estaacute na coletacircnea Apologies (contendo a I e a II Apologias) traduzida e comentada por
Louis Pautigny A traduccedilatildeo e transliteraccedilatildeo do original grego quando se fez necessaacuterio satildeo de
nossa autoria15
Duas satildeo as traduccedilotildees da Biacuteblia Sagrada em liacutengua portuguesa utilizadas nesta
dissertaccedilatildeo A primeira que eacute aplicada de forma padratildeo em todo corpo textual desta pesquisa
eacute a traduzida em portuguecircs por Joatildeo Ferreira de Almeida 2ordf ediccedilatildeo Revista e Atualizada no
Brasil da Sociedade Biacuteblica do Brasil de 1993 A segunda traduccedilatildeo que eacute utilizada
exclusivamente no quadro comparativo entre os textos da I Apologia de Justino e os textos
escrituriacutesticos do Antigo Testamento localizado no IV capiacutetulo eacute de nossa inteira autoria16
Quanto ao texto grego utiliza-se o Novo Testamento Grego tradicionalmente conhecido por
Textus Receptus 15501894 (que significa texto recebido) de domiacutenio puacuteblico poreacutem editado
e produzido eletronicamente pela Sociedade Biacuteblica do Brasil em 2007 Quanto ao Antigo
Testamento emprega-se a versatildeo grega conhecida como Septuaginta de 190317 de domiacutenio
puacuteblico editada e produzida eletronicamente pela Sociedade Biacuteblica do Brasil em 2007
Esta pesquisa se desenvolve textualmente em quatro capiacutetulos O primeiro capiacutetulo
discute quatro pontos principais O primeiro eacute uma sucinta abordagem biograacutefica da figura
humana de Justino diante dos fatos existentes em seu contexto O segundo apresenta o perfil
histoacuterico e intelectual especialmente na classe Patriacutestica em que estaacute inserido O terceiro ponto
faz uma anaacutelise literaacuteria da I Apologia sua dataccedilatildeo sua divisatildeo textual seu gecircnero literaacuterio e
os manuscritos que se dispotildeem da obra Por uacuteltimo se aborda por meio de uma breve exposiccedilatildeo
histoacuterica o ponto-chave que em meados do Seacuteculo II motivou Justino a redigir esta obra o
fenocircmeno do martiacuterio cristatildeo eacute analisado como sendo a forccedila motriz que conduziu a pena de
Justino neste tratado
O segundo capiacutetulo estaacute dividido em trecircs pontos O primeiro descreve quem eram os
cristatildeos como grupo apresentando algumas de suas particularidades mas visa especialmente
construir algo que se pode explicar como uma definiccedilatildeo ldquoidentitaacuteriardquo destes homens e mulheres
que se haviam tornado mais um segmento do contexto sociorreligioso do Seacuteculo II O segundo
15 As obras de referecircncia utilizadas para tal exerciacutecio de traduccedilatildeo foram Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-
Grego de Isidoro Pereira Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento de Carlo Rusconi Dicionaacuterio Biacuteblico Strong
de James Strong e A Greek-English lexicon of the New Testament being Grimms Wilkes clavis novi testamenti
de Joseph Thayer
16 Esta opccedilatildeo se daacute devido ao fato de natildeo existir em liacutengua portuguesa uma traduccedilatildeo que represente ou se
assemelhe de maneira teacutecnica ao original grego da Septuaginta
17 Os editores empregam correlatamente o termo ldquosem acentuaccedilatildeordquo junto a titulaccedilatildeo desta versatildeo O emprego
ocorre devido ao texto grego natildeo apresentar acentos
15
que daacute seguimento ao ponto anterior visa apresentar um melhor desenvolvimento dos objetivos
deste trabalho deste modo eacute imprescindiacutevel se apresenta um esboccedilo do que para Justino se
caracteriza como os setores da sociedade opostos ao cristianismo nesta relaccedilatildeo duas ldquoclassesrdquo
surgem judeus e gentios Por fim o terceiro ponto aborda o exame principal desta etapa Aqui
se descreve uma potencial relaccedilatildeo entre fatores que por regra se diferenciam essencialmente
sendo esta diferenciaccedilatildeo estabelecida necessariamente por uma nova postura espiritual eou
religiosa Novas variantes surgem de forma definitiva no cenaacuterio sociorreligioso da eacutepoca
confrontando seu status quo o que leva Justino a reagir criando automaticamente uma accedilatildeo
dialeacutetica que envolve conceitos teologais providenciais eacuteticos e morais aleacutem de gerar outras
variaccedilotildees que estabelecem o passo futuro a ser dado por Justino visando um desdobramento
que estabeleccedila sua confissatildeo de feacute Neste cenaacuterio eacute possiacutevel propor uma definiccedilatildeo do que seja
a Verdade para Justino
Tambeacutem o terceiro capiacutetulo tem sua estrutura dividida em trecircs pontos bases O
primeiro aborda o capiacutetulo XXVIII da I Apologia o qual seraacute analisado de forma introdutoacuteria
levando desta maneira ao desenvolvimento do restante da proposta aleacutem de dar fundamento agrave
construccedilatildeo do argumento central que estaacute ancorado no pensamento do Apologista O segundo
ponto do capiacutetulo concentra-se na descriccedilatildeo da filosofia como a principal ldquociecircnciardquo e a base
intelectual na formaccedilatildeo de Justino Neste espaccedilo se vecirc de forma sumarizada o filoacutesofo Justino
aqui tambeacutem se mencionam as principais influecircncias filosoacuteficas na formaccedilatildeo deste Pai da Igreja
onde o estoicismo e o platonismo satildeo salientados Aleacutem disso eacute discutida tambeacutem o conceito
de Logos questatildeo filosoacutefica-teoloacutegica que acabou por se tornar em uma de suas principais
contribuiccedilotildees para a histoacuteria do dogma cristatildeo18 Finalmente o terceiro ponto concentra
esforccedilos no desenvolvimento de uma peculiar abordagem de Justino quanto ao uso e o fim que
a racionalidade humana exerce no seu conjunto de relaccedilotildees Este ambiente formado de coisas
temporais e atemporais caracteriza de maneira clara e oacutebvia para Justino uma postura sistecircmica
como modelo para as atitudes humanas que concentram em si a resposta que define a Verdade
para este Apologista
O quarto e derradeiro capiacutetulo se compotildeem de trecircs pontos elementares Inicia-se por
uma abordagem que procura desenvolver uma raacutepida relaccedilatildeo histoacuterica do conceito messiacircnico
em algumas culturas direcionando seu foco final para a eacutepoca de Justino O segundo item
descreve com certo grau de peculiaridade a definiccedilatildeo do que eram e consequentemente o que
representavam as profecias messiacircnicas do Antigo Testamento para Justino aleacutem de visar
18 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
16
comunicaacute-las de maneira correta acima de tudo a quem ele as apresentou como tipo alvo e
revelaccedilatildeo maacutexima19 Por fim o terceiro ponto expotildee por meio do auxiacutelio de fontes que para
Justino havia um evidente qualificador em sua definiccedilatildeo do cumprimento profeacutetico da Antiga
Alianccedila Este fator se concentra em um axioma que se tornou visiacutevel sendo bem definido pelo
autor do Quarto Evangelho ldquoo Verbo se fez carne e habitou entre noacutes cheio de graccedila e de
verdade e vimos a sua gloacuteria gloacuteria como do unigecircnito do Pairdquo (Joatildeo 114)
Em resumo o primeiro capiacutetulo estaacute centrado no contexto da figura histoacuterica de
Justino O segundo em aspectos significativos sobre a contraposiccedilatildeo de ideias e haacutebitos O
terceiro na obtenccedilatildeo da inteligibilidade do Apologista em resistecircncia a uma previsatildeo
meramente sensiacutevel do agregado vivencial ou funcional de sua realidade O quarto na
afirmaccedilatildeo de um apogeu que sustentado em evidecircncias irrefutaacuteveis para Justino se estabelece
como uma sentenccedila irrevogaacutevel
Este apanhado nos convida a uma reflexatildeo para conhecer e a uma busca para
comprovar o que seria a Verdade na visatildeo de Justino de Roma Daniel-Rops foi mais um dos
tantos que foram conquistados pelas nuances do legado apologeacutetico de Justino e como
consequecircncia deste encontro encoraja seus leitores a aceitarem este desafio
Como os seus problemas satildeo semelhantes aos nossos Como bate seu coraccedilatildeo num
ritmo que conhecemos tatildeo bem Neste filoacutesofo de dezoito seacuteculos ressoa aos nossos
ouvidos uma espeacutecie de Pascal neste dialeacutetico emeacuterito encontra-se uma vontade de
acolhimento e uma abertura de alma que os cristatildeos de hoje podem tomar por
modelo20
19 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991
20 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 277
17
1 JUSTINO MAacuteRTIR VIDA E OBRA NO CONTEXTO HISTOacuteRICO DO SEacuteCULO II
Ao imperador Tito Eacutelio Adriano Antonino Pio Ceacutesar Augusto ao seu filho Veriacutessimo
filoacutesofo e a Luacutecio filho natural do Ceacutesar filoacutesofo e filho adotivo de Pio amante do
saber ao sacro Senado e a todo o povo romano Em prol dos homens de qualquer raccedila
que satildeo injustamente odiados e caluniados eu Justino um deles filho de Prisco que
o foi de Baacutequio natural de Flaacutevia Neaacutepolis na Siacuteria Palestina compus este discurso e
esta suacuteplica21
Para conhecermos melhor a Justino o cognominado Maacutertir da ainda jovem Igreja de
Cristo ndash como tambeacutem ilustre residente da comunidade romana do Seacuteculo II ndash devemos nos
aproximar de suas obras Especialmente nas conhecidas I Apologia e Diaacutelogo com Trifatildeo nos
deparamos com um pequeno poreacutem significativo acesso a informaccedilotildees que fundamenta um
consideraacutevel entendimento histoacuterico desta figura tatildeo destacada daquele periacuteodo22
A partir desta anaacutelise histoacuterica buscaremos desenvolver uma construccedilatildeo por meio de
fatores que entendemos serem essenciais para o progresso do restante desta pesquisa no qual
assuntos de teor elementar procuraratildeo ser respondidos Entre estes podemos identificar alguns
como Quem foi esse homem chamado Justino o qual o testemunho cristatildeo antigo afirma ter
sido morador da cidade de Roma e martirizado por sua feacute A qual classe da sociedade romana
de sua eacutepoca ele pertenceu A qual grupo da ldquointelectualidaderdquo cristatilde ele somou Como e
quando escreveu suas obras em especial a I Apologia Como este escrito encomiaacutestico de
defesa nasce Quem eou o quecirc (fatores diversosplurais) o incentivaram a escrevecirc-la de forma
proposital
11 JUSTINO DE ROMA
Torna-se necessaacuterio desde o iniacutecio salientar que se possui atualmente informaccedilotildees bem
detalhadas de quem teria sido Justino ndash o qual foi cunhado por Tertuliano como ldquofiloacutesofo e
maacutertirrdquo23 ndash morador da capital do Impeacuterio Romano isso tudo devido especialmente agraves claras
ldquoreferecircncias autobiograacuteficas de suas proacuteprias obras a um relato sobre seu martiacuterio e a notiacutecias
encontradas na Histoacuteria eclesiaacutestica de Euseacutebio e em Epifacircniordquo24 Uma gama consideraacutevel de
21 JUSTINO I Apologia I 1
22 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011
23 TERTULIANO Contra os Valentinianos V 1
24 DROHNER Manual de Patrologia 2008 p 82-83
18
estudiosos concorda que Justino tenha nascido por volta do ano 100 da era cristatilde25 isso devido
agrave referecircncia textual apresentada pelo proacuteprio Apologista ldquoeu Justino um deles filho de Prisco
que o foi de Baacutequio natural de Flaacutevia Neaacutepolis na Siacuteria Palestinardquo26 Neste contexto contribui
o trabalho de Xavier que afirma acreditar ldquoque ele (Justino) nasceu depois do ano 100 dC em
Flavia Neaacutepolis (atual Naplusa) na Siacuteria-Palestina ou Samaria a Siqueacutem dos tempos biacuteblicos
(Palestina)rdquo27 Nota-se atraveacutes do auto relato de Justino que este nasceu em pleno ldquocoraccedilatildeo da
Galileiardquo28 em uma cidade remodelada (modernizada) para sua eacutepoca agrave cultura romana ou seja
pagatilde Logo sua famiacutelia provavelmente tambeacutem era pagatilde possivelmente seus pais ldquoeram
colonos abastadosrdquo29 e de origem latina ou grega sendo a primeira opccedilatildeo de preferecircncia por
Hamman que afirma serem de caracteriacutestica latina a qualidade de caraacuteter o gosto por dados
histoacutericos e a natildeo apreciaccedilatildeo de argumentaccedilotildees pomposas e prolixas encontradas em Justino30
Vale tambeacutem citar que a etimologia dos nomes do seu pai (Prisco) e do seu avocirc (Baacutequio)
colabora para uma origem natildeo judaicaisraelita mesmo tendo nascido na regiatildeo da Samaria
local no qual possivelmente tenha crescido e sido educado31
Os proacuteximos relatos biograacuteficos apresentados por nosso autor jaacute se estabeleceram no
decorrer de sua jornada em direccedilatildeo ao alvo que buscava atingir eacute quando em seu escrito
intitulado de Diaacutelogo com Trifatildeo Justino se apresentaraacute como um apaixonado apreciador da
filosofia e do absoluto que a razatildeo deveria perscrutar Em um escrito estiliacutestico e repleto de
artifiacutecios literaacuterios Justino cita seu passado em meio aos estoicos peripateacuteticos pitagoacutericos e
platocircnicos32 observando desde cedo que o objetivo de seu caminho nestes grupos que
ldquocultuavamrdquo o bem-estar do viver humano era o de descobrir a verdade como um estado livre
de contingecircncias Hamman endossa esse processo de peregrinaccedilatildeo filosoacutefica na vida do autor
25 FRANGIOTTI In Introduccedilatildeo I Apologia 1995 p 5 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da
tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 81
26 JUSTINO I Apologia I 1
27 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 14 grifo nosso
28 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
29 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
30 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
31 Flaacutevia Neaacutepolis foi fundada em 72 de nossa era por Vespasiano sobre a antiga Siqueacutem A cidade existe hoje
sob o nome de Naplusa Natildeo se deve esquecer a importacircncia deste siacutetio geograacutefico para a histoacuteria religiosa de
judeus e cristatildeos Foi em Siqueacutem que Deus apareceu a Abraatildeo e este lhe dedicou um altar (cf Gn 126-7) Ali se
conservava a memoacuteria de um ldquopoccedilo de Jacoacuterdquo junto ao qual Jesus dialogou com a samaritana (cf Jo 45-6) Foi em
Siqueacutem que Josueacute reuniu a grande assembleia das tribos para ratificar a alianccedila entre Deus e seu povo (cf Js 24)
Ver FRANGIOTTI In Introduccedilatildeo I Apologia 1995 p 5
32 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 3-6
19
O proacuteprio Justino conta-nos no Diaacutelogo com Trifatildeo o longo itineraacuterio de sua busca
[] Sucessivamente em Naplusa frequentou as aulas de um estoico depois de um
disciacutepulo de Aristoacuteteles que logo abandonou trocando-o por um platocircnico Com
candura esperava que a filosofia de Platatildeo lhe permitisse ldquover imediatamente a
Deusrdquo33
Entretanto Justino diante de diversas circunstacircncias e ainda acometido de inuacutemeras
inquietaccedilotildees decorridas das mesmas perguntas que o afligiam em sua busca pela verdade passa
a relatar seu impressionante encontro com o Evangelho de Cristo em seu Diaacutelogo com um judeu
chamado Trifatildeo34 Justino que aparentemente parece ter sido encorajado apoacutes ser ensinado por
um mestre da escola platocircnica passa a viver por meio de haacutebitos mais austeros e se retira a um
lugar isolado onde segundo ele mesmo procuraria encontrar ldquoo proacuteprio Deusrdquo35 Poreacutem em
meio a esta experiecircncia de isolamento ndash possivelmente ocorrida na regiatildeo da Aacutesia Menor36 ndash
Justino se depara com um anciatildeo que seraacute o arauto da mais significativa filosofia que conheceu
Hamman daacute ecircnfase a esse evento ldquoRetirando-se agrave solidatildeo Justino passeava pela areia a beira-
mar para meditar sobre a visatildeo de Deus sem conseguir apaziguar sua inquietaccedilatildeo quando
encontrou um anciatildeo misterioso que dissipou suas ilusotildeesrdquo37
Nesse Diaacutelogo nos deparamos com uma seacuterie de interrogaccedilotildees vindas da parte do
Anciatildeo judeu dirigidas a pessoa de Justino assuntos sobre Deus (divindade) sobre o saber
humano (filosofia) sobre a felicidade e a disposiccedilatildeo da alma (psique) satildeo algumas das questotildees
apresentadas ao ldquointelectordquo do filoacutesofo Justino No que tudo indica parecer um processo
baseado na maiecircutica socraacutetica o Anciatildeo leva nosso autor a inuacutemeras duacutevidas e consegue
estabelecer contradiccedilotildees naquela que parecia ser a melhor via (meacutedio platonismo) para o
entendimento da verdade conhecida por Justino ateacute entatildeo38 Diante das argumentaccedilotildees
apresentadas pelo Anciatildeo e sentindo-se vencido por elas Justino reconhece a sua limitaccedilatildeo e
pergunta ldquoEntatildeo a quem vamos tomar como mestre ou de quem poderemos tirar algum
proveito se nem mesmo nestes (filoacutesofos) se encontra a verdaderdquo39
33 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
34 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo III 1-VIII 2
35 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6-III 1
36 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010
37 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
38 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II
dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
39 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo VII 1 grifo nosso
20
O decorrer do caso nos eacute apresentado com entusiasmo pelo autor o Anciatildeo eacute retratado
como algueacutem que natildeo hesita em afirmar ao sedento Justino que os profetas da antiga alianccedila
foram aqueles que manifestaramproclamaram a Verdade antes de todos os outros homens40
pois a resposta ao apelo do espiacuterito de Justino jaacute encontrava razatildeo e sentido na revelaccedilatildeo
anteriormente profetizada (Antigo Testamento) Estes fatos (profecias) tinham total relevacircncia
pois eram ldquomais antigos do que todos estes considerados filoacutesofos homens bem-aventurados
justos e amigos de Deusrdquo41 Neste ponto soma-se de forma significativa a descriccedilatildeo de Walde
desenvolvida junto ao texto de Justino sobre a sua conversatildeo
Justino foi introduzido na feacute diretamente por um velho homem que o envolveu numa
discussatildeo sobre problemas filosoacuteficos e entatildeo lhe falou sobre Jesus Ele falou a Justino
sobre os profetas que vieram antes dos filoacutesofos ele disse e que falou ldquocomo
confiaacutevel testemunha da verdaderdquo Eles profetizaram a vinda de Cristo e suas
profecias se cumpriram em Jesus Justino disse depois que ldquomeu espiacuterito foi
imediatamente posto no fogo e uma afeiccedilatildeo pelos profetas e para aqueles que satildeo
amigos de Cristo tomaram conta de mim enquanto ponderava nestas palavras
descobri que a sua era a uacutenica filosofia segura e uacutetil [] eacute meu desejo que todos
tivessem os mesmos sentimentos que eu e nunca desprezassem as palavras do
Salvadorrdquo42
Apoacutes este evento notabilizador na histoacuteria de Justino um evento que atesta a
conversaccedilatildeo do filoacutesofo a nova religiatildeo que se apresentava a cada dia com maior forccedila em meio
ao mundo heleniacutestico nasce um ministeacuterio que iraacute se caracterizar por uma profunda e inegaacutevel
entrega a causa que o conquistou Chegando agrave cidade de Eacutefeso Justino se deparou com irmatildeos
que se diziam disciacutepulos do apoacutestolo Joatildeo os quais por meio de uma intensa relaccedilatildeo lhe
mostraram o novo e relevante aspecto da nova filosofia que agora havia decidido seguir
passando a entender que o cristianismo deve ser ldquoum cristianismo de atos e natildeo soacute de
palavrasrdquo43
Poreacutem o maior entendimento que o Apologista obteve foi o de encontrar a Verdade a
qual buscava incessantemente unindo este axioma (Verdade) com o Logos revelado pelas
Escrituras contexto que definiu como a uacutenica ldquofilosofia segura e proveitosardquo44 para a vida a
40 DROHNER Manual de Patrologia 2008
41 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo VII 1
42 WALDE Defensor da Igreja 2000 p 1
43 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 32 apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da
Feacute Cristatilde 2014 p 15
44 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo VIII 1
21
qual eacute a fonte do saber primordial que manteve-se inalterada poreacutem tendo assumido ldquonovas
formas e expressotildees diferentesrdquo atraveacutes dos seacuteculos45 Este esteio da intelectualidade de Justino
foi tatildeo decisivo para a histoacuteria do cristianismo que segundo Hamman passou a apresentar
(temporariamente) uma satisfatoacuteria ldquoconclusatildeo para todas as verdades parciais [] Instante
inesqueciacutevel que assinala uma data na histoacuteria cristatilde em que se encontram a alma platocircnica e
a alma cristatilde A Igreja acolhia Justino e Platatildeordquo46
Aleacutem disto Justino guardou caracteriacutesticas daquilo que reconhecia ser saudaacutevel de seu
passado como amigo da sabedoria vestindo-se com ldquomanto de filoacutesofo como sinal do pregador
cristatildeo itineranterdquo47 Desta forma Justino procurou caracterizar-se entre os seus
contemporacircneos como algueacutem que representava a Verdade que havia encontrado Ateacute onde se
tem notiacutecias jamais foi ordenado assim como a maioria dos Pais de sua classe Patriacutestica
(Apologistas)48 No entanto ele iniciou em Roma possivelmente a pedido do Bispo Higino49
ldquoagrave maneira das escolas de filosofia uma escola de iniciaccedilatildeo agrave religiatildeo cristatilderdquo50 na qual formou
disciacutepulos recebendo tambeacutem por esta iniciativa a possiacutevel desaprovaccedilatildeo da ldquoclasserdquo
intelectual de sua eacutepoca pois tudo indica que natildeo cobrava nenhuma compensaccedilatildeo ndash entenda-se
salaacuteriopagamento ndash de seus alunos51 Este periacuteodo ministerial de Justino na ldquocapital do mundordquo
teve tamanha repercussatildeo na histoacuteria da Igreja a ponto de Euseacutebio fazer questatildeo de reproduzir
algumas particularidades desse filoacutesofo cristatildeo deixando-nos assim uma robusta base
historiograacutefica de Justino o primeiro historiador da Igreja afirma que ldquofloresceu Justino Com
estofo de filoacutesofo era embaixador da palavra de Deus e lutava pela feacute com seus escritosrdquo52
Decorrido um periacuteodo de confrontaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas ndash especialmente no
acircmbito da eacuteticamoral ndash e de crescentes atritos com as esferas aristocraacuteticas da sociedade
romana Justino foi acusado de ser cristatildeo53 Tudo indica que a denuacutencia partiu de um filoacutesofo
45 FIGUEIREDO Curso de Teologia Patriacutestica I 1983 p 115
46 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
47 DROHNER Manual de Patrologia 2008 p 83
48 RIVAS San Justino en el proceso de separaciacuteon entre Judaiacutesmo y Cristianismo 2018
49 Acredita-se que devido ao crescimento de alguns movimentos gnoacutesticos (Marcionismo Valentianismo etc)
junto a capital do Impeacuterio o Bispo Higino (Nono Papa) solicitou a presenccedila de Justino na tentativa de se introduzir
uma formaccedilatildeo filosoacutefico-cultural cristatilde em Roma no empenho de se responder adequadamente mediante a
verdadeira doutrina de Cristo a estes representantes heterodoxos Ver FEacuteLIX Las filosofiacuteas en la teologiacutea de
Justino Maacutertir 2014 p 438
50 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1145
51 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010
52 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 10 8
53 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014
22
ciacutenico54 de caraacuteter duvidoso chamado Crescente O proacuteprio Justino registra em sua segunda
Apologia o pressentimento de que entregaria sua vida em prol da causa do Evangelho que o
libertou da ignoracircncia e o salvou da morte eterna Ele escreve ldquoEu mesmo espero ser viacutetima
das ciladas de algum desses democircnios aludidos e ser cravado no cepo ou pelo menos das ciladas
de Crescente esse amigo da desordem e da ostentaccedilatildeordquo55 Deste modo Justino e provavelmente
seis de seus disciacutepulos foram conduzidos diante do Prefeito de Roma chamado Juacutenio Ruacutestico56
Apoacutes ser julgado e condenado agrave morte ldquoSua sentenccedila foi a decapitaccedilatildeo que ocorreu por volta
do ano 165 dCrdquo57 Hamman ainda enobrece a posiccedilatildeo de Justino salientando que o Apologista
tinha a compreensatildeo de que diante de seus algozes natildeo se tratava ldquomais de convencer senatildeo de
confessarrdquo58 Assim mesmo nesse cenaacuterio de violecircncia a identidade e histoacuteria do filoacutesofo que
quando jovem peregrinava atraacutes das respostas do absoluto acaba por transformar-se por meio
de um ato de feacute o entatildeo filoacutesofo cristatildeo chamado Justino e morador da cidade de Roma passa
agora a ser tambeacutem o Maacutertir da Igreja de Cristo
Finalizamos este item com a descriccedilatildeo de Euseacutebio que com realce e temor retrata os
fatos finais da histoacuteria da vida de Justino
Por este mesmo tempo Justino mencionado haacute pouco depois de dedicar aos
supracitados imperadores seu segundo livro em defesa de nossas doutrinas foi
adornado com o sagrado martiacuterio O responsaacutevel pela conspiraccedilatildeo foi o filoacutesofo
Crescente - homem que se esforccedilava em levar uma vida e uma conduta bem adequadas
ao cognome de ciacutenico - pois Justino o havia repreendido muitas vezes em presenccedila
de seus ouvintes Justino com seu martiacuterio acabou cingindo o precircmio da vitoacuteria da
verdade da qual era embaixador59
54 O cinismo origina-se nas escolas filosoacuteficas da Greacutecia antiga que reivindicam uma linhagem socraacutetica Chamar
os ciacutenicos de ldquoescolardquo no entanto imediatamente levanta uma dificuldade para um grupo natildeo convencional e anti-
teoacuterico Seus principais interesses satildeo eacuteticos mas eles concebem a eacutetica mais como um modo de viver do que
como uma doutrina que precisa de explicaccedilatildeo Como tal askēsis ndash uma palavra grega que significa um tipo de
treinamento do eu ou da praacutetica ndash eacute fundamental Os ciacutenicos assim como os estoacuteicos que os seguiram caracterizam
o modo de vida ciacutenico como um ldquoatalho para a virtuderdquo (ver Dioacutegenes Laeacutercio Vidas de Filoacutesofos Eminentes)
Livro 6 Capiacutetulo 104 e Livro 7 Capiacutetulo 122) Embora muitas vezes sugiram que descobriram o caminho mais
raacutepido e talvez o mais certo para a vida virtuosa eles reconhecem a dificuldade desse caminho Ver PIERING
Julie In Cynics Internet Encyclopedia of Philosophy Texto completo em
lthttpswwwieputmeducynicsSSH3aigt
55 JUSTINO II Apologia VIII 9 1
56 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010
57 CAMPENHAUSEN Os Pais da Igreja A Vida e a Doutrina dos Primeiros Teoacutelogos Cristatildeos 2005 p 22 apud
SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 67
58 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 32
59 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 16 1
23
Apoacutes este introdutoacuterio exame biograacutefico comeccedilaremos a apresentar o cristatildeo e filoacutesofo
Justino em seu grupo de definiccedilatildeo Patriacutestica ou poderiacuteamos dizer no condicionamento
ministerial de seu exerciacutecio da manutenccedilatildeo e defesa da feacute cristatilde
12 PAIS DA IGREJA
Justino eacute um personagem histoacuterico do cristianismo mundial e possui seu assento no
espaccedilo definido pela teologia Patriacutestica como um PaiPadre da Igreja60 Em sua pesquisa de
ordenamento histoacuterico Santos salienta que ldquoele se insere num momento e num ciacuterculo muito
importante da histoacuteria do cristianismo primitivo naquilo que se convencionou chamar de
Padres da Igrejardquo61 Neste espaccedilo analiacutetico em que surgem terminologias de caraacuteter mais
temaacutetico desenvolvem-se alguns viacutenculos que visam obter uma melhor orientaccedilatildeo teoloacutegica
As ciecircncias intituladas Patriacutestica e Patrologia (denominaccedilatildeo predominante no acircmbito teoloacutegico
Catoacutelico Romano) detecircm as estruturas funcionalidades e linguagens que buscam o
aperfeiccediloamento deste ramo de pesquisa histoacuterica em meio a teologia Nesse espaccedilo torna-se
importante apresentar a sinteacutetica definiccedilatildeo oriunda da Congregaccedilatildeo para a Educaccedilatildeo Catoacutelica
em sua Instruccedilatildeo sobre o Estudo dos Padres da Igreja na Formaccedilatildeo Sacerdotal esta diz ldquoa
Patriacutestica ocupa-se do pensamento teoloacutegico dos Padres [] a Patrologia tem por objeto a vida
e os escritos dos mesmosrdquo62 Notamos que nesse ambiente se caracteriza uma espeacutecie de
sinoniacutemia entre os termos sendo isso o resultado de diversas siacutenteses oriundas do confronto de
algumas posiccedilotildees divergentes ao longo da histoacuteria da elaboraccedilatildeo teoloacutegica ocidental63 poreacutem
a definiccedilatildeo terminoloacutegica conhecida por Histoacuteria da Literatura Cristatilde Antiga utilizada por
Lazzati e Simonetti ndash mesmo que extensa e ainda pouco usada ndash devido a sua qualificaccedilatildeo
linguiacutestica acabou por se estabelecer Padovese resume bem essa proposta de ldquosimbioserdquo ao
60 Em vaacuterias liacutenguas eacute a mesma palavra para o significado de Padre e Pai pater em latim padre em italiano e em
espanhol pegravere em francecircs father em inglecircs Em portuguecircs haacute hoje distinccedilatildeo niacutetida entre Padre e Pai mas o sentido
original da palavra eacute o de Pai (ateacute natildeo muitos anos atraacutes diziacuteamos [na liturgia da ICAR] ldquoPadre nosso que estais
no ceacuteurdquo) Ver PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 17 grifo nosso
61 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 68
62 CONGREGACcedilAtildeO PARA A EDUCACcedilAtildeO CATOacuteLICA Instruccedilatildeo sobre o estudo dos Padres da Igreja na
Formaccedilatildeo Sacerdotal 1989 art 49
63 A Patriacutestica no mundo protestante tornou-se ldquoHistoacuteria dos Dogmasrdquo e tanto no acircmbito catoacutelico como
protestante alguns identificaram a Patrologia com a histoacuteria da literatura cristatilde (Harnack) ou com a ldquohistoacuteria da
literatura eclesiaacutesticardquo (Bardenhewer) ou ainda com a ldquohistoacuteria da literatura cristatilde antigardquo (Lazzati Simonetti)
Ver PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 22
24
sugerir que ldquoambas (Patriacutestica e Patrologia) juntamente com a histoacuteria da literatura cristatilde
antiga trabalham com as mesmas obrasrdquo64
Desta maneira a aacuterea de estudo dos Pais da Igreja tem sido objeto e alvo de diversas
pesquisas na atualidade aleacutem de ter sido um feacutertil campo para inuacutemeras e variadas abordagens
no decorrer dos seacuteculos havendo significativos trabalhos jaacute no Seacuteculo XVII65 Mais
recentemente (Seacuteculo XX)66 houve um reconhecimento do grande valor estrutural desse
segmento para o meio teoloacutegico de forma transconfessional onde acabou por acarretar
expressiva contribuiccedilatildeo em questotildees especialmente dogmaacuteticas Hall baseando-se no
pensamento de Casey desenvolve sua ideia atraveacutes de afirmaccedilotildees relevantes sob a importacircncia
do estudo da PatriacutesticaPatrologia para o ensino ordinaacuterio da teologia (academia) e da Igreja
(catequese)
Primeiro os pais satildeo os ldquomais proacuteximos beneficiaacuterios da tradiccedilatildeo apostoacutelicardquo Em
minhas proacuteprias palavras eles viveram e trabalharam em aproximaccedilatildeo hermenecircutica
com os escritores biacuteblicos especialmente os do novo testamento Segundo os pais
ldquoajudam-nos a entender nossas proacuteprias raiacutezesrdquo na feacute Terceiro muitos pais
escreveram e viveram como pastores Eles escreveram para ajudar as pessoas a
agarrar-se ao ensino de Cristo67
De maneira ampla podemos dizer que haacute algumas variaccedilotildees no meacutetodo e no estilo de
estudar o cenaacuterio patriacutestico em sua estrutura conjuntural Devemos iniciar salientando que o
periacuteodo patriacutestico simplesmente ldquonatildeo eacute definido como um marco cronoloacutegico mas como um
periacuteodo de passagemrdquo68 Deste modo uma delimitaccedilatildeo se constroacutei atraveacutes de uma conclusatildeo de
periacuteodos (estrutura temporal) ndash onde atributos culturais e eclesiaacutesticos se mesclam para gerar
uma definiccedilatildeo conceitual Nessa espeacutecie de ldquorestriccedilatildeo conceitualrdquo tambeacutem se encaixa o
conjunto de criteacuterios adotados no processo de seleccedilatildeo daqueles que podem receber tal tiacutetulo
honoriacutefico de Pai da Igreja mesmo que estes elementos de classificaccedilatildeo (ortodoxia
64 PADOVESE Leacutexicon ndash Dicionaacuterio Teoloacutegico Enciclopeacutedico 2003 p 576 apud SANTOS Identidade Cristatilde
no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 68 grifo nosso
65 DAILLEacute Traicte de lemploy des Saincts Peres pour le iugement des differends qui sont auiourdhui en la
religion 1632
66 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
67 CASEY Sacred Reading The Ancient Art of Lectio Divina 1995 p 105 apud HALL Lendo as Escrituras
com os Pais da Igreja 2003 p 56
68 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 25
25
santificaccedilatildeo reconhecimento eclesiaacutestico antiguidade)69 tenham possuiacutedo variaacuteveis (de meacuterito
e de forma)70 em sua aplicaccedilatildeo durante toda a histoacuteria Ainda nesse processo de formaccedilatildeo
tambeacutem cabe registrar a profunda influecircncia de indicaccedilatildeo geograacutefica ocorrida em todo esse
desenvolvimento onde uma linha divisoacuteria de significativa relevacircncia se apresenta quando faz
a separaccedilatildeo do ldquotemperamento teoloacutegico entre o Oriente e Ocidenterdquo71
Contudo cabe-nos assumir uma forma de classificaccedilatildeo e organizaccedilatildeo na elaboraccedilatildeo
desta pesquisa desta forma por utilizar-se de uma linguagem acessiacutevel e por apresentar maior
incidecircncia literaacuteria em meios natildeo teoloacutegicos utilizaremos das seguintes divisotildees baseadas no
trabalho de Hall descritas como
I Pais Apostoacutelicos (final do Seacuteculo I ateacute meados do II)
II Pais Apologistas ou Ante-Nicenos (Seacuteculo II)
III Pais Polemistas ou Nicenos (final do Seacuteculo II e Seacuteculo III)
IV Pais Cientiacuteficos ou Poacutes-Nicenos (Seacuteculo III ao V)72
O primeiro modo de classificaccedilatildeo iraacute se designar por uma abordagem de caraacuteter mais
funcional no que diz respeito a seus integrantes todos estatildeo relacionados ao periacuteodo
denominado de cristianismo antigoprimitivo recebendo assim o nome de Pais Apostoacutelicos
Foram os herdeiros diretos do chamado ldquodepoacutesito da Feacuterdquo o qual foi estabelecido atraveacutes da
missatildeo dos apoacutestolos de Cristo que detinham a autoridade e a grande responsabilidade de
perpetuar a doutrina apostoacutelica (entenda-se afirmar a continuidade da mensagem una santa e
catoacutelica do cristianismo por meio da manutenccedilatildeo daacute mensagem original) Jaacute os denominados
Pais Apologistas (grupo agrave qual Justino pertence) notabilizaram-se ndash principalmente devido agrave
notaacutevel qualidade de seus escritos ndash por defender a Feacute cristatilde de inuacutemeras accedilotildees repressivas agrave
doutrina e agraves comunidades fenocircmeno que se caracterizou especialmente no decurso do Seacuteculo
II Os Pais Polemistas salientam-se por sua ampla argumentaccedilatildeo no que confere a asseveraccedilatildeo
dos principais ensinos (doutrinasdogmas) do cristianismo protegendo-os das mais variadas
heresias tambeacutem afirmando suas peculiaridades mas acima de tudo pontuando estas instruccedilotildees
como questotildees indispensaacuteveis para a existecircncia da verdadeira Feacute em Cristo Por uacuteltimo os Pais
chamados ldquocientiacuteficosrdquo distinguiram-se por sua ecircnfase na densa aplicaccedilatildeo da Teologia em aacutereas
69 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 11
70 Bogaz Couto e Hansen indicam ainda um quinto criteacuterio na classificaccedilatildeo dos elementos para se ser credenciado
como um integrante do mundo patriacutestico eles o chamam de COLEGIALIDADE E DIAacuteLOGO Este visa analisar
a abrangecircncia do patrimocircnio teoloacutegico deixado pelo autor Ver BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica
caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 28 grifo do autor
71 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
72 HALL Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja 2003 Ver capiacutetulos III-V
26
filosoacuteficas e do conhecimento ldquonaturalrdquo (antropologia sociologia psicologia etc) de seu
tempo Cabe-nos ainda frisar por uma questatildeo teacutecnica que o periacuteodo Patriacutestico normalmente eacute
descrito ateacute figuras do Seacuteculo VIII73 poreacutem nossa abordagem natildeo esmiuccedilara tal fato pelo
mesmo exceder o tema proposto nesta pesquisa
Para terminar nossa lacocircnia abordagem de uma aacuterea tatildeo ampla e rica de conteuacutedo
devemos sustentar a premissa de que uma consistente estrutura para anaacutelise Patriacutestica se daacute
atraveacutes da apropriaccedilatildeo de seu legado intelectual e isso se constroacutei atraveacutes de um genuiacuteno exame
de suas obras Aqui se apresenta a Patrologia como a ciecircncia a ser seguida e exercitada em
sentido literal isso devido a essa ser a organizadora deste sistema Santos em sua pesquisa
contribui neste enfoque
Haacute ainda outra forma muito comum de se estudar os padres da Igreja que eacute a partir de
suas obras e ainda o estudo deles todos sem qualquer divisatildeo atendo-se agraves vezes agrave
cronologia tanto de suas obras quanto de sua existecircncia na linha do tempo agraves vezes
de forma alfabeacutetica Em ambos os casos satildeo estruturados de forma enciclopeacutedica ou
dispostos como um dicionaacuterio de pensadores cristatildeos Assim os padres da Igreja
fazem parte de um campo de estudo maior inserido no que pode ser chamado de
Histoacuteria das ideias ou do pensamento cristatildeo74
Seguindo em uma ordem organograacutefica examinaremos a partir de agora o grupo
Patriacutestico no qual Justino se enquadrou em seu exerciacutecio ministerial devido a suas
caracteriacutesticas filosoacuteficas e teoloacutegicas
121 Pais Apologistas
Verificamos que no decorrer do Seacuteculo II surgiu nas comunidades cristatildes uma iminente
necessidade de combater determinadas acusaccedilotildees aleacutem de procurar dissuadir visotildees distorcidas
sobre o cristianismo75 especialmente as relacionadas a questotildees que adotavam posturas parciais
que simplesmente acusavam a religiatildeo cristatilde de ser um legado para pessoas ldquoignorantes e
fanaacuteticasrdquo76 Tal incitaccedilatildeo jaacute estava ativa em grande parte do Impeacuterio Romano Desta forma a
73 Os estudiosos patriacutesticos definem o fechamento deste periacuteodo no ocidente com Gregoacuterio Magno (ou Isidoro de
Sevilha) no Seacuteculo VII e no Oriente com Joatildeo Damasceno no Seacuteculo VIII Ver BOGAZ COUTO HANSEN
Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 25
74 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 69
75 Ver FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 29-31
76 SIMONETTI In Apologeacutetica Literatura Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 181
27
Igreja ancorada em um ldquonuacutemero notaacutevel de gentios dotados de soacutelida formaccedilatildeo intelectualrdquo77
sendo sua maioria formada por ldquofiloacutesofosrdquo que haviam se convertido ao cristianismo acabaram
postando-se como baluartes desta nova religiatildeo tendo seus escritos (chamados de ldquotradiccedilatildeo
apologeacutetica cristatilderdquo78) como sua principal ldquoarmardquo de defesa estes (escritores e suas obras)
visavam ldquorefutar as calunias e [] expor o absurdo e a incoerecircncia dos ritos e dos mitos
pagatildeosrdquo79 aleacutem de apresentarem suas vidas como testemunhos da transformaccedilatildeo almejada por
esta feacute que defendiam Diante dos recursos aos quais protegiam e frente a busca de
ldquolegitimaccedilatildeordquo do cristianismo como religiatildeo no Impeacuterio estes cristatildeos questionavam de
maneira enfaacutetica as infundadas agressotildees propostas por aqueles que decidiam ldquofechar os seus
olhosrdquo as virtuosas obras geradas pelos seguidores desta Boa Nova Fluck contribui com ecircnfase
na tentativa de legitimaccedilatildeo que estes escritores apologistas procuraram dar a sua pregaccedilatildeo na
busca de toleracircncia para sua mensagem
Os apologistas queriam manifestar diante da opiniatildeo puacuteblica a verdadeira natureza do
Cristianismo Eles tinham a preocupaccedilatildeo de demonstrar a conformidade do
Cristianismo com o ideal helecircnico Proclamavam ndash na maioria dos casos ndash a alianccedila
do Cristianismo e da Filosofia Queriam mais do que somente toleracircncia Mostravam
que os cristatildeos eram os melhores cidadatildeos do Impeacuterio e que o Cristianismo favorecia
a grandeza do Impeacuterio80
Esta postura adotada por homens de elevada cultura acabou por robustecer e superar
uma necessidade existencial que havia surgido na relaccedilatildeo do cristianismo para com mundo
greco-romano isso devido agrave expansatildeo e estabilizaccedilatildeo em sociedades predominantemente
heleniacutesticas Os Pais Apologistas (em sua ampla maioria) inauguraram o que podemos chamar
de informaccedilatildeo ldquoad extrardquo81 ou seja estabelecer uma relaccedilatildeo de comunicaccedilatildeo para fora dos
ldquomurosrdquo da Igreja O que antes era conhecida como a dimensatildeo (alcance e destino para
mensagem) literaacuteria ndash definida como ldquoad intrardquo82 ndash no periacuteodo dos Pais Apostoacutelico agora era
acompanhada de um novo estilo linguiacutestico que abria espaccedilo e trazia em sua armaccedilatildeo tambeacutem
77 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988 p 69
78 ARZANI VENTURINI A Origem da Tradiccedilatildeo Apologeacutetica Cristatilde e Justino Maacutertir 2010 p 2
79 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 73
80 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 31
81 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011
82 FIGUEIREDO Curso de Teologia Patriacutestica I 1983 p 97
28
o ldquoconhecimento das ciecircncias das letras e da filosofiardquo83 Torna-se valiosa nessa abordagem as
consideraccedilotildees gerais de Haumlgglund sobre a importacircncia da accedilatildeo literaacuteria dos Apologistas
Os apologistas ocupam lugar de destaque na histoacuteria do dogma natildeo soacute devido a sua
descriccedilatildeo do cristianismo como a verdadeira filosofia como tambeacutem por sua tentativa
de elucidar ensinamentos teoloacutegicos com o auxiacutelio de terminologia filosoacutefica
contemporacircnea (por exemplo na assim chamada laquocristologia do Logosraquo) O que neles
encontramos por conseguinte eacute a primeira tentativa de definir de maneira loacutegica o
conteuacutedo da feacute cristatilde bem como a primeira conexatildeo entre teologia e ciecircncia entre
cristianismo e filosofia grega84
Acredita-se que o periacuteodo apologeacutetico teve seu iniacutecio no seio da Igreja com a literatura
de um disciacutepulo chamado Quadrato que possivelmente em 124125 dC apresentou ldquodianterdquo
do Imperador Adriano na cidade de Atenas (Greacutecia) uma espeacutecie de tratado que visava enfatizar
que Cristo em seu ministeacuterio terreno havia realizado diversas curas e milagres afirmando que
a ressurreiccedilatildeo de mortos foi algo emblemaacutetico entre esses feitos prodigiosos85 Aristides eacute outro
personagem que merece destaque como precursor desta classe Patriacutestica Euseacutebio se refere a
ele deste modo ldquoMas tambeacutem Aristides homem de feacute entregue a nossa religiatildeo deixou assim
como Codratos uma Apologia em favor da feacute que havia dirigido a Adriano Tambeacutem a obra
deste escritor se conservou ateacute nossos dias em muitos lugaresrdquo86 Nesse escrito o historiador da
Igreja iraacute apresentar uma das proposiccedilotildees recorrentes entre os escritos apologeacuteticos do periacuteodo
o de que somente os cristatildeos satildeo verdadeiramente eacuteticos isso devido principalmente aos seus
haacutebitos de elevada postura moral87 o que buscava demonstrar que eram os uacutenicos que
verdadeiramente conheciam a DeusDivindade88 e deste modo acabavam por serem os
ldquomelhores cidadatildeos do Impeacuteriordquo89 Desta forma seguindo quase que um modelo padratildeo de
abordagem esses Apologistas apelaram aacute razoabilidade dos governantes romanos de sua eacutepoca
exigindo destes natildeo apenas toleracircncia mas acima de tudo justiccedila
83 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 73
84 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 21
85 MORESCHINI NORELLI Manual de Literatura Cristatilde Antiga Grega e Latina 2005
86 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 3 3
87 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
88 MORESCHINI NORELLI Manual de Literatura Cristatilde Antiga Grega e Latina 2005
89 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 28
29
Ainda citamos o trabalho de Xavier que aborda de forma sinteacutetica outras figuras desse
periacuteodo apologeacutetico destacando sua alta produccedilatildeo textual que acabou por ter significativa
relevacircncia na estruturaccedilatildeo e funcionalidade de diversos segmentos do processo de formaccedilatildeo
dogmaacutetico na Igreja O relato agrega teor agrave nossa construccedilatildeo
Taciano disciacutepulo de Justino que compocircs ldquoDiscurso aos gregosrdquo Atenaacutegoras que
escreveu ldquoDefesa dos cristatildeosrdquo e um tratado ldquoSobre a ressurreiccedilatildeo dos mortosrdquo Por
volta do ano 180 o bispo de Antioquia Teoacutefilo escreveu ldquoTrecircs livros a Autoacutelicordquo
tratando da doutrina cristatilde de Deus a interpretaccedilatildeo das Escrituras e a vida cristatilde
refutando as objeccedilotildees dos pagatildeos sobre essas questotildees No seacuteculo terceiro Oriacutegenes
de Alexandria escreveu uma refutaccedilatildeo ldquoContra Celsordquo Todas essas obras foram
escritas em grego sendo que na liacutengua latina destacam-se dois escritos apologeacuteticos
a ldquoApologiardquo de Tertuliano e o ldquoOtaacuteviordquo de Minuacutecio Feacutelix90
Portanto fica registrado na histoacuteria da identidade cristatilde mais que um gecircnero literaacuterio
antes uma postura corajosa de homens de estimado caraacuteter que ldquotocados pelo testemunho dos
cristatildeos e pelo querigma apostoacutelicordquo91 comunicaram uma genuiacutena e autecircntica mensagem de
vida e esperanccedila Tambeacutem devemos afirmar que a ldquotarefa de defender a feacute diante desta classe
de ataques produziu algumas das mais notaacuteveis obras teoloacutegicas do seacuteculo segundordquo92
Provavelmente muitos poderosos abastados intelectuais e outros detentores das benesses que
compunham a aristocracia romana do periacuteodo foram confrontados e alcanccedilados pelo
testemunho destes disciacutepulos que enfatizaram o apelo agrave razatildeo na tentativa de evitar a loucura
humana Nesse ponto Xavier consegue expressar com clareza a provaacutevel motivaccedilatildeo destes
homens ldquoSuas principais intenccedilotildees eram fazer com que o cristianismo fosse visto como um
ideal de vida que podia ser aceito e vivido em conformidade com a cultura greco-romana sem
necessidade de serem os cristatildeos perseguidos mortos ou marginalizadosrdquo93
122 O Apologista Justino
Eacute importantiacutessimo iniciarmos este item com as palavras de Dreher Frangiotti
Haumlgglund e Hamman O primeiro diz ldquoEntre os apologetas cristatildeos que procuraram estabelecer
90 XAXIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 14 grifo do autor
91 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 73
92 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 86
93 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 14
30
um diaacutelogo com os filoacutesofos Justino (110-165) foi o mais importanterdquo94 O segundo
similarmente afirma ldquoJustino eacute certamente o melhor apologista do seacuteculo IIrdquo95 O terceiro daacute
mesma forma garante no uso de um superlativo a importacircncia do Apologista ldquoO mais notaacutevel
dos apologistas foi Justino cognominado laquoo maacutertirraquo cujas duas laquoapologiasraquo datam de meados
do segundo seacuteculordquo96 O quarto usando de adjetivaccedilatildeo similar agrave do anterior enobrece com
insigne descriccedilatildeo a figura do Apologista ldquoDe todos os filoacutesofos cristatildeos do seacuteculo II Justino eacute
o mais ceacutelebre e o maiorrdquo97
Neste espaccedilo faremos uma descriccedilatildeo sinteacutetica apresentando a figura de Justino dentro
de sua classe Patriacutestica tendo como centro de nossa atenccedilatildeo sua produccedilatildeo textual
especialmente de suas duas apologias que satildeo as nossas principais ferramentas de ponderaccedilatildeo
sobre sua atuaccedilatildeo ministerial Nessa composiccedilatildeo podemos dizer que entre os ldquoApologistas
Maioresrdquo98 nenhum ldquoestava mais bem preparado para esse confronto do que Justinordquo99 isso
devido a sua variada formaccedilatildeo filosoacutefica Aproximadamente entre os ldquoanos de 150 e 165
dCrdquo100 Justino se apresentou no cenaacuterio apologeacutetico cristatildeo de forma avultosa mesmo natildeo
sendo um literato de destaque ganhou espaccedilo seja por seu caraacuteter iacutentegro como tambeacutem por
sua postura de retidatildeo haacute doutrina a ponto de seus escritos mostrarem ldquoo calor nunca
desmentido das suas convicccedilotildeesrdquo101 Hamman define bem essa peculiaridade na literatura de
Justino ao dizer que a ldquooriginalidade de Justino natildeo estaacute na sua qualidade literaacuteria mas na
novidade de seu esforccedilo teoloacutegicordquo102
Deste modo Justino conseguiu expressar muito bem aquilo que se tornaria o estandarte
apologeacutetico deste periacuteodo afirmando que o cristianismo ldquoeacute a filosofia segura e proveitosardquo103
levando-nos a conclusatildeo de que em ldquoCristo deu-se portanto a restauraccedilatildeo da filosofiardquo104
Nota-se que Justino estava absolutamente convencido de que havia encontrado o verdadeiro
94 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47 grifo nosso
95 FRANGIOTTI Introduccedilatildeo In I Apologia 1995 p 6 grifo nosso
96 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 21 grifo nosso
97 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 27 grifo nosso
98 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 80
99 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 28
100 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1145
101 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 56
102 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 31
103 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo VIII 1
104 BARRERA A Biacuteblia Judaica e a Biacuteblia Cristatilde introduccedilatildeo a histoacuteria da Biacuteblia 1995 p 663 apud FLUCK
Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 32
31
caminho ldquoe passou a defendecirc-lo de diversas maneiras por meio de seus ensinos em seus
escritos e em sua vida e morte como maacutertirrdquo105 Assim como resultado de sua produccedilatildeo
literaacuteria Justino acabou destacando-se a ponto de se tornar ldquoo principal dos apologistas gregos
do seacuteculo IIrdquo106 como jaacute referido acima vale ainda mencionar o seleto testemunho de Euseacutebio
nessa constituiccedilatildeo este nos sugere que o legado apologeacutetico de Justino eacute consequecircncia de um
elaborado processo do conhecimento ao qual este passou a possuir ele escreve ldquoTambeacutem por
este tempo Justino sincero amante da verdadeira filosofia continuava ainda ocupado em
exercitar-se nas doutrinas dos gregos [] Na mesma obra demonstra que sua conversatildeo da
filosofia grega agrave religiatildeo natildeo se fez sem razatildeo mas com juiacutezordquo107
Contudo ainda nos cabe um raacutepido registro histoacuterico relativo agrave produccedilatildeo literaacuteria de
Justino referente a questatildeo de se apontar qual seria sua habilitaccedilatildeo como um autecircntico
Apologista do Seacuteculo II Obviamente esta capacidade teacutecnica proveacutem daquilo que eacute a parte
material de sua arte no caso de Justino suas obras108 A pesquisa historiograacutefica apresenta ldquo8
obrasrdquo109 creditadas a Justino por Euseacutebio110 fazendo com que nosso autor seja reconhecido
como um escritor de ldquofecundardquo111 atividade literaacuteria no passado entretanto como autecircnticas
chegaram ateacute noacutes apenas trecircs destas diversas obras satildeo elas a I e II Apologia e um relato
argumentativo com um provaacutevel rabino judeu intitulado de Diaacutelogo com Trifatildeo112 Entre as
Apologias a primeira eacute direcionada agrave classe imperial Romana (Antonino Pio e seus filhos
Marco Aureacutelio e Luacutecio Vero) como tambeacutem ao senado Jaacute a segunda eacute motivo de um amplo
debate na esfera da criacutetica textual por natildeo apresentar um relato introdutoacuterio nem um
destinataacuterio de forma objetiva Muitos acreditam ser esta obra um apecircndice da I Apologia Nesta
cena eacute relevante a pesquisa de Santos que cita as bases de Euseacutebio aleacutem de outros trecircs autores
que nos auxiliam de forma eficaz na elucidaccedilatildeo desta questatildeo mesmo que natildeo possam pocircr um
fim a discussatildeo ele diz
105 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 13 grifo nosso
106 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 13
107 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 3 5
108 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
109 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988 p 76
110 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 18 1-6
111 FIGUEIREDO Curso de Teologia Patriacutestica I 1983 p 115
112 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 83 SIMONETTI In Justino
Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1145
32
Destas obras cabem-nos as seguintes consideraccedilotildees quanto agraves duas primeiras a
primeira apologia citada em Euseacutebio corresponde a I Apologia que chegou ateacute noacutes A
segunda apologia natildeo corresponde a II Apologia que temos Primeiro porque natildeo
possui uma introduccedilatildeo e nem um destinataacuterio enquanto que a citada por Euseacutebio
possui um destinataacuterio O segundo ponto que corrobora este ponto de vista eacute a citaccedilatildeo
que Euseacutebio faz da primeira apologia Diz ele ldquoo mesmo autor (Justino) em sua
primeira Apologiardquo e conta uma histoacuteria que consta em nossa II Apologia II 1-20
(EUSEacuteBIO DE CESAREacuteIA Histoacuteria Eclesiaacutestica IV 17) Eacute mais provaacutevel que a dita
II Apologia que chegou ateacute noacutes seja um apecircndice da I Apologia (FRANGIOTTI 1995
MORESCHINI amp NORELLI 2005 p 110)113
Diante de tatildeo curioso e desafiante cenaacuterio eacute valioso buscar compreender o propoacutesito
dos tratados de Justino pois por ldquotraacutes deste esforccedilo descobrimos o testemunho de um homem
de uma conversatildeo de uma opccedilatildeo definitivardquo114 opccedilatildeo que nos oferece a possibilidade de
conhecer o verdadeiro e uacutenico Deus e se necessaacuterio for viver e morrer na defesa deste
Evangelho que nos leva ao verdadeiro conhecimento115
Apoacutes abordar a figura de Justino em sua classe Patriacutestica e salientar resumidamente
seu instrutivo serviccedilo para com o cristianismo seraacute analisada de maneira diminuta mas com
dedicado alinho a dataccedilatildeo e a estrutura literaacuteria da primeira obra apologeacutetica que serve de esteio
para esta pesquisa
13 ANAacuteLISE LITERAacuteRIA DA I APOLOGIA DE JUSTINO
A constituiccedilatildeo textual da primeira obra de Justino apresenta caracteriacutesticas histoacuterico-
literaacuterias muito interessantes como tambeacutem evidecircncia aspectos relevantes na assimilaccedilatildeo do
desenvolvimento do cristianismo dos dois primeiros seacuteculos Desta forma reconhecemos a
necessidade de uma abordagem cientiacutefica ndash mesmo que aqui apresentada de maneira lacocircnica
ndash de algumas aacutereas da anaacutelise criacutetica textual para uma melhor assimilaccedilatildeo de nosso escrito
alicerccedilante Assim um enfoque calculado na dataccedilatildeo na divisatildeo no gecircnero literaacuterio e nas
principais peccedilas quirograacuteficas da I Apologia de Justino nos possibilitaratildeo uma melhor
compreensatildeo dos conteuacutedos e elementos que a mesma visa comunicar A partir de agora nosso
objetivo seraacute examinar estas quatro aacutereas
131 Dataccedilatildeo
113 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 70
114 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 31
115 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
33
Apresenta-se praticamente como ponto paciacutefico na pesquisa histoacuterica-teoloacutegica que a
obra tenha sido escrita em meados do Seacuteculo II de nossa Era sendo reconhecida como a data
mais aceita para esta afirmaccedilatildeo o periacuteodo entre os anos de 150 e 160 dC116 Essa tese encontra
forccedila significativa atraveacutes de quatro argumentos todos de cunho e alccedilada existencial
comunicados na proacutepria obra Inicialmente os destinataacuterios para quem esse escrito apologeacutetico
de Justino se dirigiu garantem um aporte histoacuterico consideraacutevel neste exame o mesmo escreve
ldquoAo imperador Tito Eacutelio Adriano Antonino Pio Ceacutesar Augusto ao seu filho Veriacutessimo filoacutesofo
e a Luacutecio filho natural do Ceacutesar filoacutesofo e filho adotivo de Pio amante do saber ao sacro
Senado e a todo o povo romanordquo117 Por meio desse dado Frangiotti eacute categoacuterico ao afirmar que
eacute ldquofato que estes imperadores reinaram do ano 147 ao ano 161 A Apologia deve ter sido escrita
ao longo destes 15 anosrdquo118
Em segundo outro fator se apresenta determinante na tentativa de se apontar
satisfatoriamente a data desse escrito o ponto em questatildeo se apresenta no capiacutetulo XLVI da
obra novamente o comentaacuterio de Frangiotti eacute valioso por apresentar evidecircncias importantes
Justino menciona que uma das objeccedilotildees contra a doutrina cristatilde era a de ldquodizermos
que Cristo nasceu somente haacute cento e cinquenta anos sob Quirino e ensinou sua
doutrina mais tarde no tempo de Pocircncio Pilatosrdquo Embora se deva tomar o ano cento
e cinquenta como um arredondamento pode-se pensar que a redaccedilatildeo da I Apologia
natildeo se deu antes desta data119
O terceiro elemento a se tornar pontual no texto de Justino eacute sua menccedilatildeo a respeito da
terceira revolta judaica liderada por Simatildeo Bar Koacutekeba em meados do Seacuteculo II A respeito
disto Justino relata com ecircnfase apologeacutetica que ldquoCom efeito na guerra dos judeus agora
terminada Bar Koacutekeba o cabeccedila da rebeliatildeordquo120 estaria aplicando meacutetodos de tortura nos
cristatildeos ao seu redor Santos mostra em sua pesquisa que esta exposiccedilatildeo de Justino pode ser
considerada como um ponto norteador para uma medida qualificada de dataccedilatildeo de sua obra o
116 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988 DROHNER Manual
de Patrologia 2008
117 JUSTINO I Apologia I 1
118 FRANGIOTTI Introduccedilatildeo In I Apologia 1995 p 7
119 FRANGIOTTI Introduccedilatildeo In I Apologia 1995 p 7
120 JUSTINO I Apologia XXXI 6
34
historiador diz ldquoEssa rebeliatildeo ocorreu entre os anos de 132 e 135 dC A expressatildeo lsquoagora
terminadarsquo nos remete a uma data posterior ao final da revoltardquo121
O quarto e uacuteltimo argumento baseia-se no relato de Justino encontrado no capiacutetulo
XXIX nos versos 2 e 3 da I Apologia Neste espaccedilo o Apologista retrata um caso juriacutedico
envolvendo o prefeito de Alexandria denominado Feacutelix que havia indeferido um pedido
exoacutetico proposto por um jovem cristatildeo que desejava castrar-se por motivos asceacuteticos Bases
histoacutericas confiaacuteveis ldquoidentificam o prefeito Feacutelix como Minuacutecio Feacutelix o qual reinou em
Alexandria do ano 148 a 154rdquo122 podendo-se deste modo catalogar outro importante elemento
que corrobora para a dataccedilatildeo da I Apologia
Por fim mesmo que natildeo sejamos especialistas na anaacutelise historiograacutefica nem mesmo
nos seja possiacutevel definir uma data precisa para o escrito examinado ainda assim em vista dos
termos aqui apresentados reconhecemos com a ampla maioria de pesquisadores da aacuterea que
os elementos apresentados trazem recursos suficientes para que atestemos que a I Apologia de
Justino tenha realmente sido escrita por volta da deacutecada de 50 do Seacuteculo II da era cristatilde
132 Divisatildeo Textual
O escrito natildeo segue um padratildeo riacutegido de construccedilatildeo textual pelo contraacuterio digressotildees
satildeo comuns em todas as obras de Justino mesmo que suas apologias sofram menos com
divagaccedilotildees abruptas ou mudanccedilas draacutesticas de rumo nas intenccedilotildees e consideraccedilotildees centrais que
o autor propotildee em suas conjunccedilotildees temaacuteticas Essas variaccedilotildees possivelmente ocorrem devido a
Justino preferir seguir uma proposta de caraacuteter mais catequeacutetico em vez de sua proacutepria
elaboraccedilatildeo conceitual123
Baliza-se de maneira majoritaacuteria na anaacutelise criacutetica a concordacircncia de que a obra se
divide em duas partes principais124 Contudo apresentam-se variaccedilotildees nessa forma de
separaccedilatildeo Nossa opccedilatildeo seraacute por apresentar a estrutura oferecia por Drohner por ser a mais
utilizada por outros autores aleacutem de parecer a que melhor reporta o teor do pensamento
proposto por Justino em sua construccedilatildeo apologeacutetica-doutrinal
121 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 72
122 FRANGIOTTI Introduccedilatildeo In I Apologia 1995 p 7
123 DROHNER Manual de Patrologia 2008
124 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988 DROHNER Manual
de Patrologia 2008
35
Na primeira parte os capiacutetulos I ao XXIX estabelecem uma forte e riacutegida postura de
defesa contra algumas acusaccedilotildees lanccediladas sobre os cristatildeos como a praacutetica do ateiacutesmo por
exemplo Salienta-se neste espaccedilo sua afirmaccedilatildeo de que Jesus Cristo eacute ldquoo Logos e Filho de
Deusrdquo125 que revelou os planos demoniacuteacos que aprisionam a humanidade atraveacutes de praacuteticas
pecaminosas afastando-os do plano de salvaccedilatildeo No entanto boas novas se anunciam a partir
de agora pela revelaccedilatildeo do Logos por meio dos cristatildeos pelo qual todos (homens) poderatildeo
tornar-se tementes a Deus A segunda parte se desenvolve entre os capiacutetulos XXX ao LXVIII
nesta seccedilatildeo questotildees dogmaacuteticas (Encarnaccedilatildeo Divindade Profecias etc) questotildees filosoacuteficas
(revelaccedilatildeo do Logos faacutebulas humanas Platonismo etc) e questotildees sacramentaiseclesiaacutesticas
(Batismo Santa Ceia Liturgia) se aglutinam na formataccedilatildeo de uma ideia para defesa da
identidade e do bem-estar de um ldquopovordquo (conceito que abordaremos mais detalhadamente no II
capiacutetulo deste trabalho)
A partir desse item trataremos do gecircnero literaacuterio da obra algo muito importante na
elaboraccedilatildeo desta pesquisa
133 Gecircnero Literaacuterio
O estilo natildeo eacute novo nem recente e foi muito utilizado na antiguidade126 Podemos
afirmar com seguranccedila que as primeiras referecircncias a esse tipo de literatura de que dispomos
datam do periacuteodo da Filosofia Claacutessica e podem ser encontradas a partir do Seacuteculo IV aC
Provavelmente uma das obras mais conhecidas e renomadas deste tipo eacute a Apologia de Soacutecrates
escrita por seu aluno Platatildeo Nela aquele que possivelmente foi o mais dedicado dentre seus
disciacutepulos procura defender o legado e a imagem de seu mestre por meio da preservaccedilatildeo do seu
pensamento Eacute importante frisar neste contexto a abordagem de forma direta e completa (em
um estilo dialogal-filosoacutefico) do processo (meacutetodo) de julgamento de Soacutecrates oferecida por
Platatildeo a tocircnica do relato parece ganhar a direccedilatildeo de querer conscientizar seus ouvintes da
necessidade de se fazer justiccedila independentemente do caso e das circunstacircncias que estatildeo em
debate Esse estilo acaba por influenciar sua eacutepoca e torna-se o modelo apologeacutetico a ser
seguido nos seacuteculos seguintes127
Contribui ainda para uma melhor assimilaccedilatildeo das intenccedilotildees subjacentes a esse estilo
de linguagem e escrita o pensamento de Malta que ao comentar os diaacutelogos que tratam do
125 DROHNER Manual de Patrologia 2008 p 84
126 MALTA Introduccedilatildeo In Apologia de Soacutecrates 2008
127 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
36
processo contra Soacutecrates (os quais satildeo quatro Ecircutifon Apologia de Soacutecrates Criacuteton e Feacutedon)
acaba por colaborar de maneira expressiva na elaboraccedilatildeo do caraacuteter que estas obras (apologias)
procuravam transmitir aos seus receptores ldquoEntre eles haacute uma clara sequencia dramaacutetica desde
a discussatildeo sobre o ponto central da acusaccedilatildeo (o que eacute piedade) passando pela defesa no
tribunal e a estada na prisatildeo ateacute o momento em que a pena de morte eacute cumpridardquo128
A palavra apologia (grego απολογια) que no portuguecircs eacute definido como um
substantivo feminino129 eacute formada por dois vocaacutebulos gregos O primeiro eacute απο uma partiacutecula
primaacuteria uma preposiccedilatildeo cujo significado baacutesico eacute a ideia ldquode separaccedilatildeo eou de origem do
lugar de onde algo estaacute vem acontece eacute tomadordquo130 O segundo eacute o vocaacutebulo λογος de
significado vasto ndash desenvolvendo inclusive uma estrutura particular junto ao cristianismo131
ndash mas colocado em paralelo com o nosso exame pode ser definido como ldquopalavra proferida
a viva voz que expressa uma concepccedilatildeo ou ideia o que eacute declarado pensamento declaraccedilatildeo
aforismo dito significativo sentenccedila maacuteximardquo132 ldquoproclamaccedilatildeo ensinamento [] doutrina
parte de uma doutrinardquo133 Entretanto deve-se sempre se levar em conta que junto ao ambiente
filosoacutefico-teoloacutegico de Justino ldquoum duplo uso do termo deve ser distinguido um que diz
respeito ao falar e outro que se relaciona com o pensamentordquo134 Neste cenaacuterio ainda se
robustece a ideia de que o termo composto (απολογια) era condutor de um conceito de
soberania instaurado pela ldquosabedoria pessoal e poder em uniatildeo com Deusrdquo135 Ainda focando
128 MALTA Introduccedilatildeo In Apologia de Soacutecrates 2008 p 11
129 Apologia (amiddotpomiddotlomiddotgimiddota) Substantivo feminino Significa 1 Discurso encomiaacutestico 2 [Figurado] Elogio 3
Defesa laudatoacuteria Ver Dicionaacuterio Priberam da Liacutengua Portuguesa Disponiacutevel em
lthttpsdicionariopriberamorgapologiagt Acesso em 28 de set 2018
130 STRONG Dicionaacuterio Biacuteblico Strong 2002 p 1317
131 Ritt sugere-nos que a partir dos registros neotestamentaacuterios houve uma guinada na concepccedilatildeo do Logos como
elemento estrutural e funcional para a realidade histoacuterica do termo junto as culturas e os ambientes intelectuais
que o utilizavam Utilizando-se de um sistema de progressatildeo biacuteblica Ritt chega ao proacutelogo do Evangelho de Joatildeo
onde salienta que ldquoEstas declaraccedilotildees que estatildeo concentradas na encarnaccedilatildeo permitem reconhecer uma origem
cristatilde do hino (proacutelogo do Evangelho de Joatildeo)rdquo onde a autenticidade do sujeito (Logos) como um recurso estaacutevel
e completo para a humanidade se daacute a conhecer nesse evento apoteoacutetico (encarnaccedilatildeo de Cristo) Ver RITT In
λόγος ου ό Diccionario Exegetico del Nuevo Testamento Volumen II 1998 p 78 grifo nosso No original Estos
enunciados que se concentran en la encarnacioacuten permiten reconocer un origen cristiano del himno
132 STRONG Dicionaacuterio Biacuteblico Strong 2002 p 1622
133 RUSCONI Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento 2003 p 288 grifo nosso
134 THAYER A Greek-English lexicon of the New Testament being Grimms Wilkes clavis novi testamenti 1889
p 880 No original a twofold use of the term is to be distinguished one which relates to speaking and one which
relates to thinking
135 THAYER A Greek-English lexicon of the New Testament being Grimms Wilkes clavis novi testamenti 1889
p 882 No original personal wisdom and power in union with god
37
este segundo vocaacutebulo para uma maior amplitude do assunto sobre este termo grego tatildeo
ilustrativo vale-nos citar a definiccedilatildeo de Pereira
Palavra dito revelaccedilatildeo divina resposta dum oraacuteculo maacutexima sentenccedila exemplo
decisatildeo resoluccedilatildeo condiccedilatildeo promessas pretexto argumento ordem menccedilatildeo
notiacutecia que corre conversaccedilatildeo relato mateacuteria de estudo ou de conversaccedilatildeo razatildeo
inteligecircncia senso comum a razatildeo de uma coisa motivo juiacutezo opiniatildeo estima valor
que se daacute a uma coisa justificaccedilatildeo explicaccedilatildeo a razatildeo divina136
Rapidamente atentando aos escritos apologeacuteticos cristatildeos do Seacuteculo II notamos um
ldquoesforccedilo de aproximaccedilatildeordquo137 dos Pais Apologistas (em sua ampla maioria) para a utilizaccedilatildeo da
consagrada forma do diaacutelogo-filosoacutefico (como citado acima) isso devido especialmente ao fato
de essas obras serem direcionadas agrave aristocracia poliacuteticaintelectual de sua eacutepoca incluindo
nesse cenaacuterio opulente os proacuteprios Imperadores de Roma138 Uma importante referecircncia a ser
associada a este contexto estaacute relacionada agrave utilizaccedilatildeo e significado da palavra ldquoapologiardquo
utilizada por Euseacutebio na identificaccedilatildeo da obra de Justino Euseacutebio ndash possivelmente o primeiro
a empregar o termo (apologia) para definir um conjunto de escritos do meio cristatildeo139 ndash utiliza
das seguintes descriccedilotildees para se referir ao nosso autor ldquoEm sua primeira Apologiardquo140 ou ldquoao
escrever sua Apologia dirigida a Antoninordquo141 e ainda ldquoem sua Apologiardquo142 Eacute importante
frisar que Justino em nenhum momento se utiliza do termo ldquoapologiardquo em sua obra143 mas a
define como ldquodiscurso e suacuteplicardquo144 todavia para Euseacutebio (e para a Sagrada Tradiccedilatildeo na qual
este se amparava) Justino indiscutivelmente havia sido um fiel defensor da verdade revelada
de Deus Aleacutem disso neste quadro cabe-nos ainda ressaltar o comentaacuterio de Arzani e Venturini
ao trabalho de Euseacutebio pois ambos buscam definir uma ideia qualitativa e funcional na
utilizaccedilatildeo do termo pelo historiador
136 PEREIRA Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 1998 p 350
137 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 188
138 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988
139 ARZANI VENTURINI A Origem da Tradiccedilatildeo Apologeacutetica Cristatilde e Justino Maacutertir 2010 Para um maior
aprofundamento do tema ver 2 Euseacutebio de Cesareia as apologias e os apologistas p 2-7
140 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica II 13 2 VI 17 1
141 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 3
142 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 11 11
143 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
144 JUSTINO I Apologia I 1
38
Uma anaacutelise mais ampla sobre a constituiccedilatildeo (ou natildeo) dos gecircneros apologeacuteticos
cristatildeos deve ficar para uma outra oportunidade entretanto considerando que eacute
Euseacutebio quem primeiro apresenta uma ideia mesmo que hipoteacutetica do
reconhecimento das formas dos textos de defesa dos cristatildeos ou de suas crenccedilas eacute
preciso considerar como ele emprega o termo apologia Aleacutem de empregar o termo
apologia para se referir aos sete textos anteriormente citados ele tambeacutem o usa no seu
sentido claacutessico como simples ldquodiscurso de defesardquo145
Desta forma podemos concluir que os escritos apologeacuteticos buscavam efeitos
similares tanto no cenaacuterio cristatildeo quanto no pagatildeo Poreacutem no que cabe agrave Igreja vale ressaltar
que o estilo apologeacutetico procurou desconstruir equiacutevocos salientar o cristianismo como religiatildeo
ordeira e beneacutefica ndash entenda-se (baseado em alguns relatos Patriacutesticos) como superior agraves
demais crenccedilas ndash mas acima de tudo sanar as injusticcedilas cometidas contra os cristatildeos Nesse
uacuteltimo ponto a penna dos Apologistas procurava pesar contra a consciecircncia dos governantes
de seu tempo a reflexatildeo de Richard Norris considera bem essa questatildeo ldquoo objetivo de tais
escritos eram em geral persuadir as autoridades de que as frequentes perseguiccedilotildees locais eram
injustas desnecessaacuterias e indignas de governantes esclarecidosrdquo146
A partir deste item visando a qualificaccedilatildeo deste trabalho damos segmento a nosso
exame estrutural agregando a seu corpo um destacado incremento teacutecnico falemos agora dos
manuscritos da I Apologia
134 Manuscritos
A criacutetica textual somada a inuacutemeras e significativas descobertas arqueoloacutegicas tecircm
possibilitado haacute teologia avanccedilos consideraacuteveis em suas pesquisas acerca dos documentos
antigos do cristianismo No que se refere as obras de Justino isso natildeo eacute diferente pois desde o
Seacuteculo XIX a criacutetica textual jaacute possibilitava exames bem estruturados ao meio acadecircmico
Exemplo disto eacute Johann Otto que ao analisar o Codex Claromontanus LXXXII ratificou que
este de maneira inicial ldquonos fornece alguns dos escritos de Justinordquo147 Nesta questatildeo cabe
ressaltar que das obras preservadas de Justino possuiacutemos apenas trecircs manuscritos mesmo que
apenas um seja considerado absolutamente confiaacutevel pela criacutetica suscitando desta forma certa
controveacutersia entre os analistas Quanto a esta pendecircncia citamos parte consideraacutevel da pesquisa
145 ARZANI VENTURINI A Origem da Tradiccedilatildeo Apologeacutetica Cristatilde e Justino Maacutertir 2010 p 3-4
146 NORRIS The Apologists 2004 p 36 apud SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I
Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 74
147 OTTO Prolegocircmenos XXI In S Iustini philosophi et martyris opera quae feruntur omnia Volume 1 Part 1
1847
39
de Santos que baseada em autores renomados da aacuterea daacute o destaque necessaacuterio a essa anaacutelise
quirograacutefica O autor nos agrega relevante contribuiccedilatildeo neste item teacutecnico
Haacute trecircs manuscritos para as obras de Justino o Codex Parisinus Graecus 45055 o
Codex Claromontanus LXXXII e o Codex Ottobonianus Graecus 274 (MINNS amp
PARVIS 2009 p 3) Alguns comentadores preferem atribuir um manuscrito (AUNE
2003 p 257 ALLERT 2002 p 32 POPE 2001 p 7) ou dois manuscritos
(DONALDSON 1866 p 144) Os que defendem a existecircncia de somente um
manuscrito levam em conta que o Codex Parisinus Graecus 450 eacute o uacutenico vaacutelido uma
vez que o Codex Claromontanus LXXXII eacute apenas uma coacutepia deste e o Codex
Ottobonianus Graecus 274 possui apenas trecircs capiacutetulos da I Apologia Aqueles que
consideram como dois manuscritos referem-se aos dois primeiros Por questatildeo de
coerecircncia (pois apesar do Claromontaus ser coacutepia natildeo deixa de ser um manuscrito e
o Ottobonianus mesmo tendo apenas trecircs capiacutetulos tambeacutem natildeo) concordamos com
a afirmaccedilatildeo de Minns e Parvis de que existem trecircs manuscritos148
No entanto eacute fato que o Codex Parisinus Graecus 450 se condiciona como o ldquomelhorrdquo
destes manuscritos existentes Este manuscrito data de 11 de setembro de 1363-1364 possui
467 paacuteginas duplas (ou foacutelios que medem 285 x 215 cm) e atualmente permanece arquivado
na Bibliothegraveque Nationale em Paris149 Infelizmente natildeo haacute informaccedilotildees sobre quem teria sido
o copista apenas sabe-se graccedilas a um registro oficial que ele pertenceu a Guillaume Pellicier
um notaacutevel Bispo Catoacutelico Romano do Seacuteculo XVI que provavelmente o adquiriu em uma de
suas atividades diplomaacuteticas possivelmente entre os anos de 1539 a 1542150
Enfim apoacutes explorarmos ndash mesmo que de maneira sucinta ndash a estrutura textual da obra
central desta dissertaccedilatildeo podemos afirmar que estes documentos histoacutericos nos ldquocomunicamrdquo
e ldquotraduzemrdquo um melhor conhecimento do passado edificando a Igreja e tambeacutem certificando
o meio acadecircmico de forma eficaz (cientificamente) de que homens como Justino lutaram
corajosamente para defender a feacute de seus irmatildeos especialmente das perseguiccedilotildees oficiais
assunto que trataremos a seguir
14 A PERSEGUICcedilAtildeO AOS CRISTAtildeOS
Compreendemos ser ainda importante na construccedilatildeo desta pesquisa enfocarmos
mesmo que de maneira sucinta e setorizada um dos fatores que constituiu uma das
caracteriacutesticas mais vibrantes e significativas da histoacuteria do cristianismo em sua gecircnese como
148 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 74
149 PAUTIGNY In Introduction Justin Apologies 1904 p 10
150 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
40
movimento humano-religioso fato que mobilizou o cenaacuterio social da eacutepoca comprovando a
ldquoexistecircncia de um esquemardquo151 de perseguiccedilatildeo e cerceamento da liberdade de crenccedila e culto dos
cristatildeos isso tanto atraveacutes do agir do poder estatal quanto de setores organizados (especialmente
do meio religioso) da sociedade de entatildeo em sua formaccedilatildeo soacutecia-politica-religiosa de caraacuteter
cultural greco-romana Esta caracteriacutestica coativa acabou por se comprovar tambeacutem atraveacutes do
desenvolvimento de material textual como o que norteia nosso trabalho (I Apologia) acento
que sancionou uma regra funcional dos dias de nosso autor a de acionar a razatildeo humana para
tentar evitar uma insensata postura detrativa entre os homens autodeclarados de civilizados
Desta forma como parte derradeira deste capiacutetulo introdutoacuterio apresentamos duas
divisotildees uma temaacutetica e outra analiacutetica trazendo ambas carateriacutesticas funcionais especiacuteficas
desse sistema de repressatildeo A primeira retrata uma siacutentese deste processo na organizaccedilatildeo
estrutural do Impeacuterio Romano A segunda se orienta por um periacuteodo cronoloacutegico que se
desenvolveu durante o Seacuteculo II especialmente concentrando-se no dececircnio em que se acredita
que Justino tenha escrito sua primeira obra apologeacutetica
141 O Impeacuterio Romano e a Perseguiccedilatildeo ao Cristianismo
Desde o Seacuteculo I a ldquopesquisa histoacutericardquo152 jaacute nos retrata com eficiecircncia fatos que
tiveram influecircncia decisiva do poder humano controlador do mundo de entatildeo (Impeacuterio Romano)
para com a Igreja de Cristo sobre a terra Dessa grande estrutura poliacutetica da antiguidade emergiu
tanto a perseguiccedilatildeo quanto o resultado mais elementar e simboacutelico deste processo que tinha o
cristianismo como alvo o martiacuterio de seus seguidores Poderiacuteamos chamaacute-lo sem o apelo a
nenhum eufemismo de ldquoassassinatordquo de centenas de pessoas
Contudo nesta seacuterie de sucessivos acontecimentos anormais vem a nascer a mais
significativa contribuiccedilatildeo deste intolerante processo governamental a saber a expansatildeo do
cristianismo Hatzenberger desenvolve uma soacutelida ideia a esse respeito quando conjectura sobre
o caraacuteter poliacutetico vigente junto ao Impeacuterio Tendo analisado seus preconceitos limitaccedilotildees e
maliacutecias Hatzenberger tenta explicar a capacidade desse sistema atraveacutes de sua multiplicidade
de gecircnios dando a entender que nesta ampla diversidade o cristianismo encontrou sua
possibilidade de crescer Hatzenberger afirma que podemos ldquodizer que o Impeacuterio Romano era
um tambor de gasolina agrave espera da faiacutesca da feacute cristatilderdquo153
151 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004 p 356
152 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004 p 356
153 HATZENBERGER Histoacuteria da Igreja 2012 p 1
41
Entretanto as perseguiccedilotildees estatais ao cristianismo satildeo um caso histoacuterico delicado e
nada romacircntico pois tornou-se uma dura realidade para muitas comunidades cristatildes na
antiguidade isso devido ao grande desenvolvimento do cristianismo que no decorrer dos seus
primeiros 100 anos suscitou uma consideraacutevel preocupaccedilatildeo ao Impeacuterio Catalogada desde cedo
como uma religiatildeo antagonista e excludente154 pela sua recusa em seguir praacuteticas comuns do
meio social vigente das grandes cidades onde jaacute se encontrava consolidada ndash devido
especialmente as suas posiccedilotildees quanto as questotildees de ordem cuacuteltica (ldquofestas oficiaisrdquo155) como
a adoraccedilatildeo aos ldquodeuses pagatildeos em particular o Imperador a quem negavam o caraacuteter divinordquo156
ndash fazia com que os seguidores desse movimento que inicialmente foi interpretado como uma
seita judaica157 fossem em muitos casos expressivamente acusados de colocarem em risco a
ldquopax deorumrdquo158 devido ao entendimento comum e geral de que o Imperador era o supremo
mantenedor desse estado de satisfaccedilatildeo e gloacuteria conquistados por Roma Outras questotildees
depreciativas eram atribuiacutedas aos cristatildeos antissociabilidade ateiacutesmo canibalismo fanatismo
orgias sexuais entre outras desvirtudes que eram amplamente apresentadas como acusaccedilotildees de
ordem formal e agraves vezes informal (atraveacutes de buchichos fofocas e relatos puacuteblicos natildeo oficiais)
as quais despertavam ldquoreaccedilotildees populares descontroladas de medo de intoleracircncia e de
violecircnciardquo159 contra estes que se colocavam como disciacutepulos de Cristo
Desta forma entre falsas ideias e verdadeiras demandas ndash a recusa ao ldquojuramento e os
ritos implicados no serviccedilo militarrdquo160 eacute outro exemplo da suposta ldquorebeliatildeordquo cristatilde ao Impeacuterio
ndash criou-se um ldquoestadordquo de perigo que mediante uma forte campanha de difamaccedilatildeo passou a
ser considerado como uma ameaccedila a cultura e a forma do governo Romano Certamente
servindo de combustiacutevel para as perseguiccedilotildees pontuais eou sistematizadas161 especialmente
nos Seacuteculos I e II Aleacutem disto junto com a expansatildeo da nova doutrina e feacute cristatildes um novo
entendimento comeccedilou a se estabelecer que o cristianismo se diferenciava do judaiacutesmo162
154 TAacuteCITO Anais XV 44
155 FROumlHLICH Curso Baacutesico de Histoacuteria da Igreja 1987 p 23
156 LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975 p 15
157 LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975
STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004
158 TESTA In Igreja e Impeacuterio Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 969
159 TESTA In Igreja e Impeacuterio Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 976
160 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 84
161 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
162 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
42
Com o fim do ldquoequiacutevoco judaicordquo163 houve a reelaboraccedilatildeo de um esquema que gerou um
reposicionamento de Roma para essa nova perspectiva Aqui a siacutentese de Xavier retrata bem o
que desejamos comunicar sobre esse reposicionamento
O Impeacuterio Romano percebeu que a nova religiatildeo possuiacutea diferenccedilas acentuadas em
relaccedilatildeo ao judaiacutesmo Embora os judeus resistissem agrave cultura e religiatildeo greco-romana
o cristianismo passou a se organizar como religiatildeo crescendo em nuacutemero e em
organizaccedilatildeo sendo formadas igrejas em vaacuterios lugares O evangelho chegou aos
grandes centros da eacutepoca e ateacute os confins da terra devido a pregaccedilatildeo de cristatildeos que
viajavam a negoacutecios missatildeo ou levados pela perseguiccedilatildeo que dispersava os cristatildeos
fazendo com que a feacute se expandisse164
Quanto a questotildees que envolvem esse amplo periacuteodo conflituoso ainda eacute necessaacuterio
apresentarmos dois raacutepidos e sucintos registros O primeiro envolve um conjunto de fatos
constituiacutedos em mais de 250 anos onde podemos registrar periacuteodos que devem ser classificados
como ldquoperseguiccedilatildeo perseguiccedilatildeo geral perseguiccedilatildeo maior e toleracircnciardquo165 para com os cristatildeos
Satildeo muitas e variadas as circunstacircncias e as caracteriacutesticas que formam cada uma destas fases
e fazem com que elementos singulares a cada uma delas (como periacuteodo e regionalidade)
tornem-se fatores decisivos nesta diferenciaccedilatildeo Entretanto natildeo as abordaremos
especificamente por entendermos que o assunto foge de nosso exame central Segundo
compreendemos ser imprescindiacutevel junto a esta abordagem citar a tese amplamente sustentada
pelo meio histoacuterico-teoloacutegico da ldquoexistecircncia de um esquema de dez grandes perseguiccedilotildeesrdquo166
tendo seu primeiro caso ocorrido entre 64-68 dC sob o Imperador Nero desde seu uacuteltimo ato
no periacuteodo dos governos de Diocleciano e Maximiano entre 285-305 dC167 Tertuliano168 e
Euseacutebio fornecem-nos consideraacutevel conteuacutedo sobre aquela que possivelmente tenha sido a
primeira grande onda de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos promovida pelo Impeacuterio Citamos Euseacutebio
163 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 82
164 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 10
165 A ordem dos fatores apresentados natildeo eacute cronoloacutegica e sim alfabeacutetica Ver LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila
da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975 p 11-12
166 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004 p 356
167 As intituladas ldquoDez Perseguiccedilotildeesrdquo ao cristianismo por parte do Impeacuterio Romano satildeo protagonizadas por Nero
(54-68 dC) Domiciano (95-96 dC) Trajano (108 dC) Marco Aureacutelio (162 dC) Cocircmodo (192 dC)
Maximino (235 dC) Deacutecio (250-251 dC) Valeriano (257-260 dC) Aureliano (274 dC) Diocleciano (303-
313 dC) Ver FOXE O Livro dos Maacutertires 2003 p 16-32
168 TERTULIANO Apologia V
43
que ao falar sobre o reinado de Nero (54-68 dC) fomenta uma simbiose de dados histoacutericos
mencionando o proacuteprio Tertuliano
Firmado Nero no poder deu-se a praacuteticas iacutempias e tomou as armas contra a proacutepria
religiatildeo do Deus do universo [] Mas deve-se saber que a tudo o que foi dito sobre
ele faltava acrescentar que foi o primeiro imperador que se mostrou inimigo da
piedade para com Deus Disto faz menccedilatildeo tambeacutem o latino Tertuliano quando diz
ldquoLeiam vossas memoacuterias Nelas encontrareis que Nero foi o primeiro a perseguir esta
doutrina principalmente quando depois de submeter todo o Oriente em Roma era
cruel para com todosrdquo169
Portanto buscando apresentar uma ideia conclusiva a nossa concisa elaboraccedilatildeo sobre
esse tema tatildeo vasto da histoacuteria da Igreja podemos dizer que natildeo restam duacutevidas mediante
inuacutemeros argumentos histoacutericos apresentados por diversas e variadas fontes ser plausiacutevel e ateacute
mesmo luacutecido afirmar que o Impeacuterio Romano foi em diversos momentos um literal
perseguidor acusador juiz e algoz do cristianismo durante um periacuteodo de praticamente dois
seacuteculos e meio Scott por meio de bases historiograacuteficas retrata bem esse processo ajudando-o
a sancionaacute-lo
Repetidas vezes foram publicados editos para exterminar da terra os cristatildeos
Levantaram ateacute monumentos para celebrar e perpetuar os supostos ecircxitos das
perseguiccedilotildees Aqui estatildeo duas preservadas inscriccedilotildees desses monumentos em escritos
da eacutepoca DIOCLECIANO CEacuteSAR AUGUSTO TENDO ADOTADO GALEacuteRIO
NO ORIENTE A SUPERSTICcedilAtildeO DOS CRISTAtildeOS FOI DESTRUIacuteDA EM TODA
A PARTE E PROPAGADA A ADORACcedilAtildeO DOS DEUSES170
A partir de agora examinaremos um conjunto mais restrito desse longo periacuteodo
imperial (54-313 dC)171 de tensotildees entre a Igreja e seus perseguidores pagatildeos especificamente
abordaremos o periacuteodo endossado pelos registros de Justino atraveacutes de seu ministeacuterio
testemunho e vivecircncia na feacute cristatilde
142 A Perseguiccedilatildeo no Periacuteodo da I Apologia
169 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica II 25 1 3 4
170 SCOTT As Catacumbas de Roma 1996 p 84 grifo do autor
171 LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975
44
Durante o Seacuteculo II podemos dizer que um periacuteodo determinado pela irregularidade
ou seja pela ausecircncia de um padratildeo caracterizou o ambiente social da eacutepoca atraveacutes de uma
ldquoperseguiccedilatildeo difusa ora aqui ora ali hoje perseguiccedilatildeo amanhatilde toleracircnciardquo172 Este momento
tambeacutem pode ser realccedilado por outras questotildees pontuais mas sua principal distinccedilatildeo realmente
se define pela esporadicidade dos periacuteodos de repressatildeo estatal o que ocasionou momentos de
consideraacutevel toleracircncia ao cristianismo balizados e sustentados ldquojuridicamenterdquo pela resposta
do Imperador Trajano agrave consulta de Pliacutenio173 (Cocircnsul da Bitiacutenia) por volta do ano 111 dC
Santos sintetiza bem esses dececircnios da relaccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja ldquoA poliacutetica romana agrave
eacutepoca era de tanto quanto possiacutevel natildeo condenar os cristatildeos agrave morte De modo geral desde o
final do Seacuteculo I ateacute o final do II da era cristatilde houve vaacuterios Imperadores com poliacuteticas mais
paciacuteficas em relaccedilatildeo aos cristatildeosrdquo174 Vale tambeacutem ressaltarmos como um elemento
consideraacutevel a tese proposta que no momento ao qual Justino escreveu sua I Apologia Roma
era governada pela dinastia denominada de Nerva-Antonina a qual foi conhecida pela alcunha
dos ldquocinco bons imperadoresrdquo175 definiccedilatildeo que foi proposta por Maquiavel em uma anaacutelise
poliacutetica do ano de 1503 Maquiavel escreveu
Do estudo desta histoacuteria podemos tambeacutem aprender como um bom governo deve ser
fundado pois enquanto todos os imperadores que acederam ao trono por nascimento
exceto Tito foram ruins todos foram bons que acederam por adoccedilatildeo como foi o caso
dos cinco de Nerva ateacute Marco Mas tatildeo logo o impeacuterio caiu novamente nas matildeos dos
herdeiros por nascimento sua ruiacutena recomeccedilou176
Entretanto falaremos especificamente apenas de duas figuras deste periacuteodo chamado
de dinastia Nerva-Antonina (96 a 180 dC) mais precisamente de seus dois uacuteltimos
172 LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975 p 20
173 ROSSI BINATO As Cartas de Pliacutenio o Jovem traduccedilatildeo parcial do Livro X correspondecircncia administrativa
com o Imperador Trajano 2017
174 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 90
175 Relaccedilatildeo dos Imperadores da dinastia Nerva-antonina Nerva (96-98 dC) Trajano (98-117 dC) Adriano (117-
138 dC) Antonino Pio (138-161 dC) Marco Aureacutelio (161-180 dC) Ver SANTOS Identidade Cristatilde no
Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 90
176 MAQUIAVEL Discurso sobre a Primeira Deacutecada de Tito Liacutevio I 10
45
representantes a saber Antonino Pio177 (que sucedeu a Adriano) e seu filho adotivo Marco
Aureacutelio178 que o sucedeu
O Imperador Antonino Pio governou Roma por mais de vinte anos (138 a 161) Ele eacute
o destinataacuterio formal eou principal da I Apologia de Justino Neste aspecto vale muito para
esta pesquisa a anaacutelise referencial deixada por Foxe ldquoAdriano ao morrer no ano 138 dC foi
sucedido por Antonino Pio um dos mais gentis monarcas que jamais reinou e que deteve as
perseguiccedilotildees contra os cristatildeosrdquo179 Santos tambeacutem nos auxilia quando expotildeem o pensamento
de Bunson sobre a administraccedilatildeo de Antonino Pio ldquoQuanto agraves questotildees de poliacutetica externa
procurava sempre resolvecirc-las primeiramente de forma paciacutefica depois administrativamente e
por uacuteltimo com taacuteticas militaresrdquo180 Eacute fato praticamente livre de contestaccedilotildees que em seu
governo natildeo houve perseguiccedilotildees de maior envergadura sendo que as que ocorreram foram
pontuais e sem maiores impactos referendando deste modo a imagem do Imperador como a de
um monarca paciacutefico (para a eacutepoca) pois ateacute mesmo em seu periacuteodo como divus romanus foi
cognominado pelo povo de ldquoPIEDOSO pelo amor que dedicava aos pobresrdquo181
Quanto a Marco Aureacutelio seu sucessor os relatos sobre a sua postura para com o
cristianismo devem no miacutenimo ser apresentados com o adjetivo de obscurus Foxe retrata bem
esta dificuldade ldquoMarco Aureacutelio sucedeu no trono no ano 161 de nosso Senhor era um homem
de natureza mais riacutegida e severa e embora elogiaacutevel no estudo da filosofia e em sua atividade
de governo foi duro e feroz contra os cristatildeos e desencadeou a quarta (grande) perseguiccedilatildeordquo182
Extremamente vaacutelido eacute analisarmos os registros do proacuteprio Imperador os quais nos
demonstram de forma muita clara a incompatibilidade de sua filosofia com a doutrina de Cristo
como se vecirc em uma de suas citaccedilotildees
177 Titus Aurelius Fulvus Boionius Antoninus nasceu em 86 dC em Nimes na Gaacutelia Narbonense no sul da atual
Franccedila Devido agrave sua fidelidade Adriano o adotou em fevereiro de 138 dC para ser o seu sucessor no Impeacuterio o
que ocorreu logo depois no mecircs de julho com a morte de Adriano Ver BUNSON Encyclopedia of the Roman
Empire 2002 p 23-24 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino
Maacutertir 2012 p 95
178 Marcus Aurelius Antoninus nasceu em 121 dC na cidade de Roma Filho de Annius Verus e Domitia Lucilla
Tornou-se Imperador em 161 dC e a seu pedido Lucio Vero (Lucius Aerelius Verus) governou Roma juntamente
com ele Ver BIRLEY Marcus Aurelius A Biography 2001 p 116 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica IV 14
10
179 FOXE O Livro dos Maacutertires 2003 p 18
180 BUNSON Encyclopedia of the Roman Empire 2002 p 24 apud SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II
dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 96
181 MONTEIRO A Feacute e os Maacutertires breves apontamentos sobre as perseguiccedilotildees da Igreja 1940 p 81 grifo do
autor
182 FOXE O Livro dos Maacutertires 2003 p 18 grifo nosso
46
[] alma preparada para uma imediata separaccedilatildeo do corpo seja para extinguir seja
para se dispersar ou sobreviver [] Que essa preparaccedilatildeo poreacutem provenha de um juiacutezo
proacuteprio e natildeo dum simples sectarismo como o dos cristatildeos [] uma preparaccedilatildeo
raciocinada grave e para ser convincente nada teatral183
Alguns detalhes nos chamam muito a atenccedilatildeo no periacuteodo em que Marco Aureacutelio
governou especialmente se nosso estudo partir do ponto de vista de alguns historiadores que
fazem questatildeo de ratificar que esse periacuteodo foi como ldquoum lsquomarcorsquo negro fincado na histoacuteria
eclesiaacutestica assinalando com as sombras de sua tirania a eacutepoca triste de seu governo
nefastordquo184 Euseacutebio nos auxilia nesta anaacutelise de maneira importante pois segue a mesma
concepccedilatildeo de que os atos de Marco Aureacutelio foram excessivamente malignos para com o
cristianismo Buscando ser amplo e detalhista Euseacutebio promove sentimentos profundos em seu
relato quando nos retrata o martiacuterio de Policarpo Bispo de Esmirna ocorrido no reinado de
Marco Aureacutelio
E o prococircnsul disse ldquoTenho feras A elas te lanccedilarei se natildeo mudas tua posiccedilatildeordquo Mas
ele respondeu ldquoChama-as porque para noacutes natildeo eacute possiacutevel mudar de posiccedilatildeo se eacute do
melhor para o pior O bom eacute mudar do mau para o justordquo Insistiu o prococircnsul ldquoComo
natildeo te arrependes farei com que o fogo te dome se desprezas as ferasrdquo Policarpo
disse ldquoAmeaccedilas com um fogo que arde algum tempo mas depois de um pouco se
apaga E ignoras o fogo do juiacutezo futuro e do castigo eterno reservado aos iacutempios
Mas por que tardas Traga o que quiseresrdquo Enquanto dizia isto e muitas outras coisas
mais enchia-se de valor e de alegria e seu rosto transbordava de graccedila ao ponto de
que natildeo somente natildeo caiu em confusatildeo pelas coisas que lhe diziam mas pelo
contraacuterio foi o prococircnsul que ficou fora de si e chamou o arauto para que no meio do
estaacutedio apregoasse trecircs vezes Policarpo confessou que eacute cristatildeo185
Nesse cenaacuterio imperial ainda nos conveacutem apresentar a proacutepria experiecircncia de Justino
como um cristatildeo perseguido No ano de 165 dC o filoacutesofo Justino possivelmente
acompanhado de seis de seus disciacutepulos (todos cristatildeos como ele) eacute apresentado com estes a
um tribunal civil Romano sob a acusaccedilatildeo de serem cristatildeos Este relato estaacute amplamente
amparado por uma fonte secular pagatilde186 que goza de altiacutessima credibilidade Apoacutes ser
183 MARCO AUREacuteLIO Meditaccedilotildees XI 3 grifo nosso
184 MONTEIRO A Feacute e os Maacutertires breves apontamentos sobre as perseguiccedilotildees da Igreja 1940 p 90
185 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 15 23-25
186 As Atas dos Maacutertires eacute a transcriccedilatildeo dos processos verbais escritos pelas autoridades romanas e mantidos nos
arquivos oficiais do Impeacuterio Estes registros coletaram estenograficamente muitos dos atos relacionados aos
processos forenses aos quais os cristatildeos foram submetidos pelos magistrados principalmente nos interrogatoacuterios
puacuteblicos Posteriormente estes registros foram traduzidos para a escrita vulgar e assim as peccedilas foram passadas
para os arquivos judiciais Muitos dos atos foram destruiacutedos (queimados em praccedila puacuteblica) pelo Imperador
47
denunciado pelo ciacutenico Crescente Justino se apresenta diante de Ruacutestico (Prefeito de Roma)
onde o relato do processo forense se estabelece e desenrola
Venha ao tribunal o prefeito Ruacutestico disse a Justino ndash Primeiro acredite nos deuses
e obedeccedila aos imperadores Justino respondeu ndash O irrepreensiacutevel e que natildeo admite
condenaccedilatildeo eacute obedecer aos mandamentos de nosso Salvador Jesus Cristo O prefeito
Ruacutestico disse ndash Que doutrina vocecirc professa Justino respondeu ndash Tentei ouvir sobre
qualquer linhagem de doutrinas mas apenas aderi agraves doutrinas dos cristatildeos que satildeo
as verdadeiras mesmo que natildeo sejam agradaacuteveis para quem segue opiniotildees falsas187
Nessa projeccedilatildeo vemos que o Apologista apresenta natildeo somente sua feacute mas tambeacutem
sua consciecircncia de que os preceitos recebidos por ele mediante o cristianismo solidificavam
sua posiccedilatildeo Mesmo diante de um sistema que os poderia prejudicar e sendo incentivados a
recuar de suas convicccedilotildees por meio de uma aguccedilada ameaccedila de que poderiam ser
ldquoimpiedosamente punidosrdquo188 Justino e seus disciacutepulos passam a concentrar seus esforccedilos
naquilo que esta pesquisa define como um importante argumento para a Verdade que Justino
sustentava Aqui o fenocircmeno do martiacuterio cristatildeo conduzido e explorado pelo Impeacuterio Romano
ganha uma inopinada abrangecircncia pois o supliacutecio desses homens e mulheres registrados como
peccedilas do protocolo governamental acabariam por se tornar nos fatos que solidificaram e
encorajaram a militacircncia desses obreiros da feacute cristatilde Sem duacutevida Justino e seus disciacutepulos
parecem ter caminhado de forma soacutebria para ldquoonde foram decapitados e consumaram o martiacuterio
proclamando a feacute no Salvadorrdquo189 Deste modo diante de apresentaccedilotildees que se alternam entre
descriccedilotildees de caraacuteter romacircntico e fatalista vemos que os Imperadores e seus sistemas de
controle marcaram a histoacuteria natildeo apenas com sangue mas tambeacutem com o relato fidedigno da
convicccedilatildeo que suas viacutetimas sustentavam
Diocleciano (284-305 dC) pois havia notado que esses contos heroicos inflamavam a alma dos cristatildeos dando
testemunho favoraacutevel para que outros tambeacutem viessem a sofrer a pena capital sem constrangimento para com as
suas vidas Ver PRIMEROS CRISTIANOS 2016 Disponiacutevel em
lthttpswwwprimeroscristianoscomarticulosactas-de-los-martiresgt Acesso em 16 de set 2019
187 ACTAS DE LOS MAacuteRTIRES I p 311 grifo nosso No original Venidos ante el tribunal el prefecto Ruacutestico
dijo a Justino mdash En primer lugar cree en los dioses y obedece a los emperadores Justino respondioacute mdash Lo
irreprochable y que no admite condenacioacuten es obedecer a los mandatos de nuestro Salvador Jesucristo El prefecto
Ruacutestico dijo mdash iquestQueacute doctrina profesas Justino respondioacute mdash He procurado tener noticia de todo linaje de
doctrinas pero soacutelo me he adherido a las doctrinas de los cristianos que son las verdaderas por maacutes que no sean
gratas a quienes siguen falsas opiniones
188 ACTAS DE LOS MAacuteRTIRES I p 316 No original sereacuteis inexorablemente castigados
189 ACTAS DE LOS MAacuteRTIRES I p 316 No original salieron al lugar acostumbrado y cortaacutendoles alliacute las
cabezas consumaron su martirio en la confesioacuten de nuestro Salvador
48
Marco Aureacutelio tinha aproximadamente 34 anos quando Justino escreveu sua I
Apologia e cerca de 44 quando Justino sofreu o martiacuterio Mesmo diante de relatos assombrosos
de seu periacuteodo como governante ldquoe apesar de sua visatildeo negativa em relaccedilatildeo aos cristatildeos e dos
cristatildeos para com ele novamente natildeo haacute evidecircncias de qualquer (novo) decreto de perseguiccedilatildeo
aos cristatildeos por parte do Imperadorrdquo190 mesmo que se garanta uma expressiva deflagraccedilatildeo deste
expediente sombrio em seu reinado191 Devemos ainda colocar que um atento pesquisador
necessariamente se impressionaraacute com a latente crueza e dureza deste periacuteodo que esteve sob
o comando dos chamados Imperadores ldquofiloacutesofosrdquo Danieacutelou e Marrou chegam a ser aacutesperos
em sua abordagem entretanto nos parece absolutamente plausiacutevel sua definiccedilatildeo desse periacuteodo
ldquoEacute que a civilizaccedilatildeo greco-romana como tal muito embora sob um verniz humanista guardava
um fundo de crueldade Desconhecem-nos os historiadores racionalistas que pretendem reduzir
as perseguiccedilotildees a problemas socioloacutegicosrdquo192
Contudo as perseguiccedilotildees que marcaram o cristianismo e por consequecircncia geraram o
principal fruto (os martiacuterios) deste violento periacuteodo indiscutivelmente ainda satildeo sementes que
testificam e geram vida em meio a Igreja A realidade da cristandade dos primeiros seacuteculos foi
difiacutecil e desafiadora para sua feacute mas sua Esperanccedila e Amor em Jesus Cristo fez os cristatildeos
superarem ateacute a mais dolorosa realidade fosse no calor de uma fogueira nos dentes de uma
fera ou no supliacutecio de uma cruz Xavier em nosso ponto de vista consegue caracterizar bem o
fervor e feacute destes vencedores ldquoA doenccedila dificuldades e martiacuterio fizeram parte da vida dos
cristatildeos nos primeiros seacuteculos e ao longo da histoacuteria poreacutem a virtude do Evangelho natildeo deixou
de ser pregada de uma forma ou de outra pelo exemplo pela palavra falada ou escritardquo193
Apoacutes esta exposiccedilatildeo nos eacute possiacutevel reconhecer indicadores confiaacuteveis de quem foi
este filoacutesofo cristatildeo do Seacuteculo II chamado Justino de como a histoacuteria eclesiaacutestica o reconhece
e de como a histoacuteria teoloacutegica o depreende Mais ainda eacute possiacutevel compreender por meio de
dados teacutecnicos um de seus escritos mais importantes (I Apologia) Estas paacuteginas lanccedilaram luz
de maneira praacutetica (visando quando onde e por quecirc) sobre o cenaacuterio histoacuterico que envolveu
as perseguiccedilotildees e os martiacuterios dos cristatildeos especialmente no periacuteodo da atuaccedilatildeo apologeacutetica de
190 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 97 grifo
nosso
191 Para uma melhor compreensatildeo deste cenaacuterio hostil no reinado de Marco Aureacutelio ver MONTEIRO A Feacute e os
Maacutertires breves apontamentos sobre as perseguiccedilotildees da Igreja 1940 p 89-108
192 DANIEacuteLOU MARROU Nova histoacuteria da Igreja V I Dos Primoacuterdios a Santo Gregoacuterio Magno 1966 p
109
193 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 11-12
49
Justino Para efeito de conclusatildeo desta seccedilatildeo conveacutem transcrever o registro de Hamman em
formato de siacutentese que fomenta virtuosamente a descriccedilatildeo capitular desenvolvida
Neste homem que viveu haacute dezoito seacuteculos percebemos o eco de nossos anseios de
nossas objeccedilotildees de nossas certezas Descobrimos nele uma abertura de alma uma
possibilidade de acolhimento uma vontade de diaacutelogo que desarmam e seduzem Se
muitas de suas obras estatildeo hoje perdidas as que nos restam fornecem-nos o diaacuterio
iacutentimo desse cristatildeo e satildeo suficientes para nos revelar sua vida desde o seu
nascimento e a sua formaccedilatildeo ateacute o seu martiacuterio194
O proacuteximo capiacutetulo faz uma anaacutelise na qual procuramos mostrar elementos factiacuteveis
de uma nova praacutetica social vigente ndash descrita por Justino ndash em meio ao status quo da sociedade
romana de entatildeo Desta maneira tambeacutem nos cabe frisar que a partir deste ponto se salientaraacute
o iniacutecio da descriccedilatildeo daquilo que para nosso autor era uma das provas estaacuteveis do novo modus
vivendi no qual a Verdade se manifestava de forma irrefutaacutevel
194 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 27
50
2 O NOVO MODUS VIVENDI
Este capiacutetulo faraacute uma anaacutelise realiacutestica a partir da observaccedilatildeo de praacuteticas do contexto
social de Justino maacutertir Com ele iniciamos a perspectiva central proposta para esta pesquisa
aleacutem de apresentarmos de forma introdutoacuteria seu ponto nuclear Algumas marcas de cunho
histoacuterico nos permitem medir aquilo que aproximava ou afastava uma pessoa que confessava
a feacute cristatilde de seu meio sociocultural de suas atividades ordinaacuterias de seus afazeres do dia-a-
dia195 Assim neste espaccedilo apresentamos um teoacuterico conjunto de expressotildees que apontam os
conceitos que afloram do pensamento de Justino quanto agrave ldquomorfogeniardquo de sua feacute e porque natildeo
se dizer de seu grupo o qual eacute definido pelo autor como aqueles ldquoque se chamam irmatildeosrdquo196
A contemporaneidade retrata uma condiccedilatildeo ambiacutegua em comparaccedilatildeo com o Seacuteculo II
naquilo que se trata da transmissatildeo da religiosidade cristatilde ndash especialmente no que se reporta as
estruturas confessionais histoacutericas nos paiacuteses europeus e latino-americanos ndash tendo o processo
atual significativa ambivalecircncia com o padratildeo antigo o qual ainda natildeo havendo passado pelo
processo de enculturaccedilatildeo definia-se fortemente pela conversatildeo de pessoas adultas dado
amparado de forma eficiente por Tertuliano em sua Apologia ldquoos homens se tornam natildeo
nascem cristatildeosrdquo197
Deste modo notamos que a leitura histoacuterica praticamente natildeo abre concessotildees agrave
conversatildeo ao cristianismo na eacutepoca de Justino constituiacutea uma verdadeira transformaccedilatildeo na vida
do convertido implicando em uma real mudanccedila de vida ou seja de haacutebitos que
necessariamente provocava uma ldquoruptura com a cidade e isolava o cristatildeo de seu meio e de sua
famiacutelia se ela permanecesse pagatilderdquo198 Baseados em afirmaccedilotildees como esta eacute que delinearemos
um horizonte que possa definir de forma consideraacutevel a realidade do que seria estar vivendo a
Verdade para Justino mediante uma contraposiccedilatildeo de haacutebitos detectada por meio dessa
transformaccedilatildeo
Diante de tal teor surgem interrogaccedilotildees que nos trazem demandas pontuais
principalmente de caraacuteter especulativo orientadas a responder questotildees que despertam o
imaginaacuterio de nosso contexto atual Por estarem devidamente inseridas no cenaacuterio histoacuterico da
I Apologia estes assuntos caracterizam-se por suas pendecircncias mesmo que uma determinaccedilatildeo
em comum saliente todos os espaccedilos em branco tendo esta demarcaccedilatildeo em si um caraacuteter de
195 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997
196 JUSTINO I Apologia LXV 1
197 TERTULIANO Apologia XVIII 4
198 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 187
51
diferenciaccedilatildeo que evoca uma clara distinccedilatildeo de estados Desta forma seguem alguns modelos
nos quais visamos indagar esta distinccedilatildeo que detectamos em Justino como definia-se um cristatildeo
em meados do Seacuteculo II Quais pessoas natildeo pertenciam a este grupo religioso e quais eram as
limitaccedilotildees que as impediam de tal prerrogativa Que nova praacutetica de feacute eacute esta que descarta as
antigas tradiccedilotildees religiosas De qual maneira isso se tornou um criteacuterio a ponto de estabelecer
diferenciaccedilotildees a niacutevel existencial
21 CRISTIANISMO A NOVA IDENTIDADE
Este espaccedilo tende a abertura de um caminho ao qual entendemos ser fundamental para
o desenvolvimento desta pesquisa isso devido agrave necessidade de apontarmos bases soacutelidas na
construccedilatildeo de nosso conceito mater Desta maneira iniciamos este capiacutetulo essencial em nossa
estruturaccedilatildeo utilizando-nos de uma afirmaccedilatildeo desenvolvida junto agrave pesquisa de Santos e
Gonccedilalves a qual soma valiosamente a nossa tese por contemplar a seguinte definiccedilatildeo ldquoAo
analisarmos a I Apologia podemos verificar que ele pretende revelar quem satildeo os cristatildeos Isto
parece fazer bastante sentido Ao buscar defender o cristianismo parece natural desenvolver um
texto que visa mostrar a identidade do grupordquo199
O cristianismo como religiatildeo vem a se desenvolver (universalmente) a partir de uma
comunidade autoacutectone de seu ldquofundadorrdquo emergindo atraveacutes de um pequeno grupo de
seguidores (Atos dos Apoacutestolos capiacutetulo 2) altamente condicionados agrave sua cultura e tradiccedilatildeo
religiosa200 poreacutem passados aproximadamente 110 anos o movimento cristatildeo chega ateacute os
dias de Justino com uma proporccedilatildeo numeacuterica muito significativa para um periacuteodo de tempo natildeo
tatildeo extenso201 Nesse processo estruturante tambeacutem de modo irrefragaacutevel202 houve um
desenvolvimento de um novo processo conceitual de um novo status de conhecimento ndash ou se
poderia chamar de um autoconhecimento ndash da proacutepria identidade (natildeo eacutetnica) cristatilde Processo
ao qual os chamados seguidores de Cristo apresentavam preceitos de paridade em uma espeacutecie
de similaridade existencial fato que leva o historiador Santos ao afirmar que ldquoa concepccedilatildeo de
meros disciacutepulos passou posteriormente a adquirir a ideia de povordquo203 Santos na verdade
199 SANTOS GONCcedilALVES A Aplicaccedilatildeo do ldquoContextualismo Linguiacutesticordquo e a busca da compreensatildeo da I
Apologia de Justino Maacutertir 2011 p 3
200 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004
201 SCOTT As Catacumbas de Roma 1996
202 KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983
203 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 135
52
reproduz simplesmente um pensamento jaacute consolidado no meio teoloacutegico Harnack no capiacutetulo
sete de sua obra A Missatildeo e Expansatildeo do Cristianismo nos Primeiros Trecircs Seacuteculos204 jaacute
solidifica tal ideia O teoacutelogo alematildeo caracteriza seu pensamento socioteoloacutegico da seguinte
forma
Convencido de que Jesus o mestre e o profeta era tambeacutem o Messias que voltaria em
breve para terminar o seu trabalho as pessoas passaram da consciecircncia de serem seus
disciacutepulos para o seu povo o povo de Deus ὑμεῖς γένος ἐκλεκτόν βασίλειον
ἱεράτευμα ἔθνος ἅγιον λαὸς εἰς περιποίησιν (1 Pe II 9 ldquoVoacutes sois uma raccedila escolhida
um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo para possessatildeordquo) e na medida em
que se sentiam um povo os cristatildeos sabiam que eles eram o verdadeiro Israel pessoas
que ao mesmo tempo representavam o novo e o velho205
Cabe-nos tambeacutem frisar neste aspecto levantado por Harnack que na questatildeo referente
agrave formaccedilatildeo de uma nova identidade social de caraacuteter religiosa este foi um fenocircmeno tanto
perceptiacutevel para eacutepoca de Justino como tambeacutem o ainda eacute em alguns segmentos humanos na
contemporaneidade Esta accedilatildeo associativa organizou-se (e ainda se organiza) de forma
majoritariamente comunitaacuteria a partir de experiecircncias pessoais de seus participantes sendo isto
ocasionado quase que na totalidade dos casos por meio do fenocircmeno conversiacutevel ocorrido no
acircmbito individual Este processo normalmente excludente e sectaacuterio de um determinado extrato
social ndash absolutamente imperativo no periacuteodo histoacuterico analisado poreacutem na atualidade natildeo
mais apresentando necessariamente uma ambiguidade ao estado de crenccedila anterior do
confessando (agente humano) ndash acaba por ser adesivo a outro o que ocasionava o
comprometimento com uma nova forma de comunhatildeo a qual amparada em novas certezas
rechaccedilava com ousadia as referecircncias da antiga crenccedila Em relaccedilatildeo ao cristianismo esse
fenocircmeno foi mais saliente entre as comunidades gentiacutelicas que abandonaram o paganismo206
Mencionamos ainda a definiccedilatildeo de Mol utilizada por Kee por entendermos que ele consegue
esclarecer de maneira objetiva aquilo que nos interessa expressar neste item sendo uma
consequecircncia natural do processo de conversatildeo ao cristianismo em meados de Seacuteculo II Mol
204 No original The Mission and Expansion of Christianity in the First Three Centuries
205 HARNACK The Mission and Expansion of Christianity in the First Three Centuries 2005 p 152 No original
Convinced that Jesus the teacher and the prophet was also the Messiah who was to return ere long to finish off
his work people passed from the consciousness of being his disciples into that of being his people the people of
God ὑμεῖς γένος ἐκλεκτόν βασίλειον ἱεράτευμα ἔθνος ἅγιον λαὸς εἰς περιποίησιν (1 Pet ii 9 ldquoYe are a chosen
race a royal priesthood a holy nation a people for possessionrdquo) and in so far as they felt themselves to be a
people Christians knew they were the true Israel at once the new people and the old
206 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004
53
escreve que o primeiro estaacutegio de um novo convertido neste periacuteodo se caracterizava por aquilo
que ele define como um ldquodistanciamento de anteriores padrotildees de identidaderdquo207
Deste modo seguindo a proposta acima encontramos algumas afirmaccedilotildees que nos
parecem descrever com exatidatildeo a tese (por hipoacutetese cristatilde) que definia a sociedade de entatildeo
como que constituiacuteda por um suposto terceiro grupo de pessoas (holisticamente falando) Aleacutem
dos denominados gentios e judeus (no relato biacuteblico) haveria tambeacutem os cristatildeos Cabe-nos
ressaltar que esse indicador quantitativo variou dentro da construccedilatildeo desta proposiccedilatildeo
indicativa das supostas variaccedilotildees de ldquoraccedilasrdquo pois jaacute nos escritos dos Pais Apologistas esse
nuacutemero chegou a ser descrito em mais de trecircs segmentos (caldeus egiacutepcios gregos judeus e
cristatildeos)208 Assunto que voltaremos a tratar com mais exatidatildeo a seguir Vale-nos tambeacutem citar
que o conceito de estraneidade abordado especialmente em anaacutelises eclesioloacutegicas e
missioloacutegicas do meio Patriacutestico209 diferencia-se em alguns aspectos de nosso assunto
diferenciaccedilatildeo que natildeo seraacute abordada por entendermos que foge de nossa temaacutetica atual
Iniciamos nossa argumentaccedilatildeo apontando que este conceito identitaacuterio de caraacuteter
etnograacutefico jaacute se apresenta com clareza no relato da Escritura Sagrada Vemos o apoacutestolo Paulo
fazendo distinccedilatildeo similar quando opta por desenvolver uma anaacutelise contrastante do cenaacuterio
humano (eacutetnico religioso etc) de seu tempo apresentando-nos uma leitura com trecircs diferentes
grupos humanos ldquoNatildeo vos torneis causa de tropeccedilo nem para judeus nem para gentios nem
tampouco para a igreja de Deusrdquo (1 Coriacutentios 1032) Neste ponto posiccedilotildees exegeacuteticas variadas
podem corroborar para a compreensatildeo e tambeacutem assimilaccedilatildeo da passagem citada referente ao
suposto conceito de iacutendole eacutetnica apontado210 mas o proacuteprio cenaacuterio nos aponta determinados
viacutenculos que nos conduzem a ideia de que ser cristatildeo no suposto periacuteodo oferecia aos fieacuteis a
opiniatildeo de pertencer a um povo diferente211
Neste conjunto eacute necessaacuterio citar o Apologista Aristides que de maneira
inquestionaacutevel se apresenta no cenaacuterio cristatildeo como aquele que daraacute um salto intelectual na
direccedilatildeo do desenvolvimento daquilo que poderiacuteamos definir como a primeira concepccedilatildeo de um
ethnos propriamente cristatildeo212 Aristides ldquofiloacutesofo de Atenas e um dos primeiros defensores do
207 MOL Identity and the Sacred 1977 p 52-53 apud KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica
1983 p 65-66 grifo nosso
208 Ver ARISTIDES Apologia II XIV e XV
209 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
210 METZ In A Primeira Epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006
211 GONZAacuteLEZ 1995
212 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997
54
cristianismordquo213 permitiraacute a transmissatildeo conceitual deste tema apontado nos escritos paulinos
aproximadamente oitenta anos depois de Paulo escrever aos cristatildeos de Corinto Em sua obra
Apologia Aristides concentra esforccedilos em uma elaboraccedilatildeo pragmaacutetica que visa uma
apresentaccedilatildeo de diferentes aspectos teoloacutegicos e morais todos provenientes de haacutebitos e
costumes de outros padrotildees religiosos de entre as etniaspovosnaccedilotildees de sua eacutepoca
Neste exerciacutecio Aristides ldquodescreve os cristatildeos como um povo ou naccedilatildeordquo214 que iraacute
progressivamente e cada vez mais contrastar seus conhecimentos e seu comportamento com os
outros povos com que convivia a saber os babilocircnios os gregos os egiacutepcios e os judeus
Possivelmente Aristides desejava ldquoexprimir a autocompreensatildeo cristatilderdquo215 de seus dias no
entanto provavelmente tambeacutem expressava um conceito jaacute bem estruturado em seu meio
religioso utilizando-se de um escrito apologeacutetico muito diretivo desenvolvido em ldquoforma de
uma etnografia comparativardquo216 Importante eacute o fato de que um entendimento novo de forma
absolutamente objetiva retratava a nova maneira de viver e esta maneira era aplicada
adjetivamente como cristatilde
Este fenocircmeno ocorria devido a este novo conceito ter se estruturado sobre ldquouma
organizaccedilatildeo humana cada vez mais precisa e soacutelida uma sociedade cujos alicerces satildeo
inteiramente novos e um tipo de homem diferente de todos aqueles que o mundo conhecerardquo217
Desta forma acabou por se gerar um entendimento novo sobre uma nova realidade histoacuterica
diferente de todas as demais jaacute existentes algo que na compreensatildeo de seus participantes soacute
poderia ser condicionado por um novo organismo ou seja uma nova ldquoraccedilardquopovonaccedilatildeo
Contudo este fato pode ser tambeacutem comprovado atraveacutes de outros seguimentos uma vez que
os proacuteprios natildeo-cristatildeos parecem fomentar esta ideia de separaccedilatildeo eacutetnica Isso pode ser visto
com realce atraveacutes do relato de outra figura Patriacutestica de destaque o qual torna-se o personagem
central de nosso exame a partir deste ponto
A partir do Seacuteculo II haveraacute inuacutemeras contribuiccedilotildees para a histoacuteria da teologia Em
primeiro lugar na figura de Tertuliano por ser considerado o ldquofundador da tradiccedilatildeo teoloacutegica
ocidentalrdquo218 Entretanto referente ao tema em destaque Tertuliano em sua obra Agraves Naccedilotildees (Ad
nationes) ndash tambeacutem traduzida por Aos Pagatildeos ndash apresenta no capiacutetulo VIII do I livro uma
213 PIERINI A Idade Antiga Curso de histoacuteria da igreja ndash I 1998 p 73
214 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997 p 16
215 PIERINI A Idade Antiga Curso de histoacuteria da igreja ndash I 1998 p 73
216 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997 p 17
217 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 240
218 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 42
55
relevante informaccedilatildeo a respeito de nosso assunto pois atraveacutes de uma genuiacutena accedilatildeo apologeacutetica
passa a informar algo que estava sendo apregoado sobre os cristatildeos Ele menciona que alguns
ldquoCertamente dizem que somos a terceira raccedila dos homensrdquo219 Jaacute de iniacutecio torna-se simples
devido ao desenvolvimento do texto conceituar a definiccedilatildeo (ldquoterceira raccedilardquo) citada por
Tertuliano pois de maneira peculiar sua ironia consegue descrever com exatidatildeo sua intenccedilatildeo
e o que ele escreve a seguir acaba por orientar seu entendimento e interesse argumentativo Ele
diz ldquoDe que maneira Uma raccedila com cara de cachorro Ou uma que possui apenas um enorme
peacute Ou algum Antiacutepoda subterracircneordquo220
Obviamente Tertuliano natildeo tinha em mente elaborar uma refutaccedilatildeo que viesse a
discutir questotildees bioloacutegicas ou antropoloacutegicas referentes agraves pessoas que estavam sendo
atingidas por essa pecha de ordem etnorracial Seu estilo quase sarcaacutestico demonstra que na
verdade sua indignaccedilatildeo frente agraves agressotildees lanccediladas aos irmatildeos da feacute que eram protagonizadas
pelas perseguiccedilotildees oferecidas pelos descrentes e das quais ele era uma literal testemunha o
compeliam a reagir em sua defesa ldquoTenham cautela no entanto pois aqueles a quem vocecircs
chamam de terceira raccedila devem obter o primeiro lugar uma vez que natildeo haacute certamente naccedilatildeo
que natildeo seja cristatilderdquo221
Tertuliano ainda em sua fase Apologista222 procura nos apresentar uma descriccedilatildeo
pejorativa (ldquoterceira raccedilardquo) dos pagatildeos como absolutamente preconceituosa e totalmente
intolerante pois esta visa tatildeo somente implementar ldquoacusaccedilotildees contra os cristatildeosrdquo223 buscando
unicamente denigrir sua religiatildeo natildeo possuindo nenhuma ligaccedilatildeo especiacutefica com as relaccedilotildees
eacutetnicas eou nacionais destas pessoas Sobre este prisma o proacuteprio Tertuliano afirma ldquoMas eacute
no sentido de religiatildeo e natildeo de naccedilatildeo que somos tidos como a terceira raccedila Pela ordem os
romanos os judeus e por uacuteltimo os cristatildeosrdquo224 No decorrer do texto225 fica-nos ainda mais
evidente que esta tentativa de uma diferenciaccedilatildeo humana natildeo corresponde a dados bioloacutegicos e
antropoloacutegicos pois visa promover unicamente uma desqualificaccedilatildeo da crenccedila do grupo ao qual
ataca (cristatildeos) independentemente de suas origens eacutetnicas
219 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 1 grifo nosso
220 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 1
221 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 9
222 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
223 LEAL In Tertuliano Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1577
224 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 1 grifo nosso
225 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 9-11
56
Deste modo assimilando os variados dados relacionados nesta construccedilatildeo
fenomenoloacutegica vemos que independentemente do meio (eclesiaacutestico ou secular) e da
temporalidade (periacuteodo biacuteblico ou patriacutestico) o sentido uniforme do conceito de ser cristatildeo
estava incondicionalmente ldquovinculado a um grupo com relaccedilotildees sociais distintas dos
demaisrdquo226 Aqui a reflexatildeo de Santos nos auxilia de forma significativa especialmente visando
o desenvolvimento restante deste capiacutetulo
Relaccedilotildees sociais estas que privilegiam os aspectos espirituais e morais Neste sentido
os cristatildeos podem ser entendidos como um povo particular com uma promessa
profeacutetica especificamente direcionada a eles Povo este que como vimos
anteriormente possui seu conjunto de crenccedilas um estilo de vida proacuteprio seus
siacutembolos sua interpretaccedilatildeo de mundo Tudo isto se traduz pela expressatildeo ldquonova vida
e os nossos ensinamentosrdquo utilizada por Justino (JUSTINO I Apologia III 3)227
Ao finalizarmos este item salientamos nossa intenccedilatildeo na proposta de agregar a esta
pesquisa a ideia de que para o cristianismo inicial como tambeacutem para seu meio social ndash onde
Justino necessariamente se enquadra ndash havia um conceito de identidade definido do que era ser
cristatildeo Cabe-nos agora complementaacute-lo Para isto propomos uma descriccedilatildeo de seu perfil
oposto ateacute mesmo antagocircnico para o periacuteodo ou seja descrevendo aquilo (ou aqueles) que na
visatildeo dos cristatildeos natildeo eram cristatildeos
22 O MUNDO NAtildeO-CRISTAtildeO
Em nossa proposta de pesquisa se faz indispensaacutevel conhecermos a visatildeo do meio
cristatildeo (eclesioloacutegica) a respeito daqueles que eram ao seu entendimento ndash pelo menos de
maneira preliminar ndash antagocircnicos agrave sua realidade existencial Obviamente este trabalho busca
ancorar-se ao pensamento de seu autor central Assim sendo Justino passa a nos ceder as bases
desse processo de incompatibilidade de grupos228 onde podemos sem exageros a partir de
Justino arquitetar um cenaacuterio que nos mostra eficientemente que este conceito evidenciado no
Apologista eacute oriundo da mensagem Apostoacutelica (Paulo) e Patriacutestica (Aristides) anteriores a ele
as quais parecem terem sido bem recebidas e definidas quanto a essa importante questatildeo
226 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 143
227 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 144
grifo nosso
228 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997
57
etnograacutefica Percebemos isso com certa clareza quando ele diz que ldquoDeve-se saber que o
restante de todas as raccedilas humanas satildeo chamadas de naccedilotildees pelo Espiacuterito profeacutetico a casta dos
judeus e samaritanos poreacutem chama-se Israel e Casa de Jacoacuterdquo229
Nesta introduccedilatildeo ainda nos eacute possiacutevel descrever um conceito metafiacutesico a partir do
entendimento de Justino que era um filoacutesofo Utilizando-nos da objetivaccedilatildeo da identidade
(ethnos) cristatilde um modelo passa a se estabelecer nesta descriccedilatildeo e este modelo eacute que ldquotorna
uma entidade reconheciacutevelrdquo230 Assim este estado que passa a ser evidentemente concreto e
que estaacute constituiacutedo em uma forma de identificaccedilatildeo passa tambeacutem a possuir o seu oposto
definindo-se por meio de diversos exames tendo a partir disso haacute possibilidade de ser aceito
ou rejeitado por aquilo que lhe eacute diferente
Prosseguindo no desenvolvimento de nosso raciociacutenio comeccedilaremos a descrever
sinteticamente o ponto central a ser analisado nesta pesquisa Entendemos que a reflexatildeo que
recebemos a partir da oacutetica de Justino poder ser definida por meio de sua compreensatildeo do que
eacute a Verdade revelada para a humanidade Deste modo inicialmente nos cabe salientar que o
periacuteodo de tempo logo apoacutes o advento do cristianismo e sua consolidaccedilatildeo (informal para a
eacutepoca) como uma religiatildeo estabelecida em meio ao Impeacuterio Romano trouxe algumas
evidecircncias que caracterizavam e apontavam para a identificaccedilatildeo daqueles que eram seguidores
deste credo e ipso facto passava a distingui-los quase que de forma automaacutetica dos demais
seguidores de outras praacuteticas religiosas tais como o judaiacutesmo e os cultos politeiacutestas os quais
tambeacutem podem ser definidos no cenaacuterio imperial como ldquocultos estataisrdquo231 eou religiatildeo dos
povos gentios
Ainda neste espaccedilo nos eacute necessaacuterio salientar que a atribuiccedilatildeo religiosa como ponto
primaz na questatildeo orientativa dos que natildeo confessavam a feacute cristatilde eacute importante ou ateacute mesmo
necessaacuteria porque no referido periacuteodo natildeo se concebia a ideia de que as massas humanas ndash em
qualquer lugar independentemente de sua etnia ou nacionalidade ndash natildeo aderissem a uma forma
de crenccedila232 O pensamento de Santos qualifica esta ideia de contraste entre crenccedilas
Os cristatildeos precisavam ser diferentes dos judeus e dos demais povos para construiacuterem
uma identidade proacutepria ainda que algo dos dois fizesse parte de sua identidade E
mesmo esse algo teria uma leitura particular dentro do cristianismo Os siacutembolos
229 JUSTINO I Apologia LIII 4
230 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014 p 110
231 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 51
232 KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983
58
ainda que preservados natildeo teriam exatamente os mesmos significados Justino por
vezes ao apontar aquilo que os cristatildeos eram utiliza a comparaccedilatildeo Tal comparaccedilatildeo eacute
feita com base natildeo soacute naquilo que eacute semelhante nos grupos que ele considera natildeo-
cristatildeos mas principalmente nas suas diferenccedilas o que nos revela que no outro haacute
tanto pontos congruentes quanto incongruentes233
Desta forma a partir deste ponto falaremos a respeito dos dois respectivos grupos
humanos (em sentido eacutetnico e nacional) nos quais se estabeleciam a distinccedilatildeo e a divisatildeo
proposta por Justino em sua construccedilatildeo teoloacutegica
221 Os Judeus
Passando objetivamente a leitura da obra de Justino (I Apologia) constatamos com
razoaacutevel clareza a importacircncia dada pelo autor aquilo que corresponde diretamente ao povo
judeu este aspecto acaba por se tornar importantiacutessimo na elaboraccedilatildeo de nosso conceito pois
traz equiliacutebrio agrave orientaccedilatildeo que Justino propotildeem desenvolver como contrastante ao seu estado
de feacute e crenccedila Para Justino o povo eleito por Deus para receber as promessas diretrizes e
preceitos da Primeira Alianccedila acabou por se tornar uma espeacutecie de agente condutor e ateacute
mesmo catalisador de uma forma funcional do cumprimento das profecias descritas como
messiacircnicas234 Justino ao mencionar o Profeta Isaiacuteas e o Livro dos Salmos235 apresenta-nos esta
indicaccedilatildeo dizendo
Quando o Espiacuterito profeacutetico fala na pessoa de Cristo ele se expressa assim ldquoEu
estendi as minhas matildeos a um povo que natildeo crecirc e contradiz aos que andam por um
caminho que natildeo eacute bomrdquo E novamente ldquoEntreguei minhas costas aos accediloites e
minhas faces agraves bofetadas e natildeo afastei o meu rosto da vergonha das cuspidas E o
Senhor se tornou o meu auxiacutelio por isso eu natildeo fui confundido mas transformei o
meu rosto em rocha dura e soube que natildeo seria confundido pois estaacute perto aquele
que me justificardquo E o mesmo quando diz ldquoEles lanccedilaram sorte sobre as minhas
roupas e transpassaram as minhas matildeos e os meus peacutes mas eu adormeci e me
entreguei ao sono e ressuscitei porque o Senhor me protegeurdquo E outra vez quando
diz ldquoCochichavam com os seus laacutebios e balanccedilaram a cabeccedila dizendo Salve-se a si
mesmo Podeis comprovar que tudo isso cumpriu-se atraveacutes dos judeus em Cristordquo236
233 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 144
234 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
235 Acredita-se que os textos biacuteblicos usados por Justino segundo a versatildeo da Biacuteblia Grega (Septuaginta) satildeo Is
652 Is 506-8 Sl 2119 Sl 36 Sl 218-9 Ver FRANGIOTTI In Introduccedilatildeo I Apologia 1995 p 27
236 JUSTINO I Apologia XXXVIII 1-7
59
Nesta passagem da I Apologia onde jaacute nos deparamos com o exegeta Justino237 fica-
nos claro que na opiniatildeo deste os reconhecidos como natildeo-cristatildeos ndash particularmente tratando-
se do povo judeu e de sua religiatildeo ndash natildeo compreenderam o tempo de sua visitaccedilatildeo menos ainda
foram capazes de interpretar com eficiecircncia tudo aquilo que as profecias anunciavam a respeito
de seu Messias Esse processo ganha ainda mais ecircnfase quando o teor aplicado por Justino passa
a ser mediado atraveacutes do contexto entre os capiacutetulos XXXVI a XXXVIII onde o relato parece
sugerir um compecircndio baacutesico com ldquoregras de interpretaccedilatildeordquo238 do Apologista sobre as profecias
messiacircnicas Neste cenaacuterio eacute possiacutevel penetrar mais profundamente na realidade sugerida por
Justino os judeus natildeo obstante sua falta de discernimento tornaram-se por seu endurecimento
os proacuteprios algozes Daquele que veio libertaacute-los
Torna-se necessaacuterio dizer que a exegese aplicada por Justino natildeo se faz sem equiacutevocos
Alguns erros satildeo ateacute mesmo inocentes quando analisados agrave luz de elementos da ciecircncia biacuteblica
atual239 como por exemplo quando cita o texto do Salmo 2119 (segundo a Septuaginta) o
qual eacute amplamente interpretado pelos Evangelhos240 como uma accedilatildeo dos soldados romanos
junto ao relato da crucifixatildeo de Cristo e natildeo como um ato diretamente empregado pelo povo
judeu Entretanto Justino entende que os judeus natildeo apenas assumiram agrave culpa desse ato por
meio de seu embrutecimento mas principalmente por seu endurecimento o qual foi causado
originalmente por sua incredulidade (natildeo-assimilaccedilatildeo) para com a pessoa de Jesus Cristo na
opiniatildeo de Justino241 Deste modo parece natildeo permanecer nenhum constrangimento por parte
do Apologista em apontar aos judeus natildeo como meros colaboradores mas sim como os
grandes culpados pela morte de Cristo
Na verdade Davi rei e profeta que disse isso natildeo sofreu nada disso mas Jesus Cristo
estendeu as suas matildeos quando foi crucificado pelos judeus que o contradiziam e
falavam que ele natildeo era o Messias Com efeito como disse o profeta levaram-no
arrastando e fazendo-o sentar-se numa cadeira de juiz disseram-lhe ldquojulga-nosrdquo242
237 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948
238 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 26
239 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
240 Ver Mateus 2633-38 Marcos 1522-24 Lucas 2333-34 Joatildeo 1923-24
241 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
242 JUSTINO I Apologia XXXV 6
60
Mesmo jaacute tendo sido identificado por noacutes de forma preacutevia cabe-nos ainda citar de
maneira mais precisa as pertinentes consideraccedilotildees que Justino faz referente ao natildeo
reconhecimento da pessoa de Jesus Cristo como o Messias prometido ao povonaccedilatildeo de Israel
por parte dos judeus O Apologista escreve ldquoNatildeo entendendo isso os judeus que satildeo aqueles
que possuem os Livros dos profetas natildeo soacute natildeo reconheceram a Cristo jaacute vindo mas tambeacutem
odeiam a noacutes que dizemos que ele de fato veio e mostramos que como fora profetizado foi
por eles crucificadordquo243
Aleacutem dessa notificaccedilatildeo exortativa referente aquilo que poderiacuteamos definir como uma
leitura do cenaacuterio sociorreligioso judaico (que no presente momento e tambeacutem anteriormente a
ele interagiu conflituosamente com os cristatildeos) devemos tambeacutem reconhecer outro aspecto que
este ambiente social nos aponta por meio da ldquoobservaccedilatildeo de Justino segundo a qual Bar
Kochba244 ameaccedilou judeus messiacircnicos com pesados castigos caso natildeo negassem que Jesus eacute
o Cristordquo245 estabelecendo deste modo haacute opiniatildeo de que os cristatildeos realmente eram um povo
que sofria historicamente ldquohostilidade dos judeusrdquo246 principalmente porque os cristatildeos deram
o devido valor agrave revelaccedilatildeo de Deus247
Por uacuteltimo neste cenaacuterio de nossa anaacutelise concentrada na opiniatildeo de Justino frente ao
status sociorreligioso judaico devemos ainda olhar com bastante atenccedilatildeo para uma passagem
da Escritura Sagrada relacionada a Primeira Alianccedila que nos eacute apresentada enfaticamente por
Justino em sua obra apologeacutetica O texto do capiacutetulo 65 verso 2 do Livro do profeta Isaiacuteas eacute
citado por trecircs vezes na I Apologia248 caracterizando mediante este fato repetitivo uma
significativa elucubraccedilatildeo por parte de Justino a esta porccedilatildeo da Escritura Nosso autor se
distingui ao comentar o Texto Sagrado dizendo ldquoQuando o Espiacuterito profeacutetico fala na pessoa de
Cristo ele se expressa assim lsquoEu estendi as minhas matildeos a um povo que natildeo crecirc e contradiz
aos que andam por um caminho que natildeo eacute bomrsquordquo249
Partamos de um ponto conceitual Na esfera racional de Justino o caso das ldquomatildeos
estarem estendidas a um povo increacutedulo e contestadorrdquo era um fato indubitaacutevel apresentado
atraveacutes de um ar enfaacutetico que apontava agrave suposta culpa que os judeus teriam na rejeiccedilatildeo do
243 JUSTINO I Apologia XXXVI 3
244 JUSTINO I Apologia XXXI 6
245 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004 p 266
246 MONDONI Histoacuteria da Igreja na Antiguidade 2001 p 32
247 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
248 JUSTINO I Apologia XXXV 3 XXXVIII 1 XVIX 3
249 JUSTINO I Apologia XXXVIII 1
61
verdadeiro Ungido de Deus solidificando deste modo de maneira inevitaacutevel sua compreensatildeo
de que os judeus ao natildeo reconhecerem o Messias ldquoperderam o direito hereditaacuterio a promessa
que passou para os cristatildeosrdquo250 Este conceito251 acaba por ficar ainda mais saliente em sua
obra Diaacutelogo com Trifatildeo252 detalhe que natildeo apontaremos aqui devido a nossa opccedilatildeo de
delimitaccedilatildeo textual
Por fim necessitamos condicionar nossa pesquisa a um resultado Entatildeo ratificamos
que em nosso entendimento fica claro que na transmissatildeo da ideia de Justino os judeus foram
rejeitados como naccedilatildeopovoldquoraccedilardquo por sua incredulidade mesmo que estes tenham sido
anteriormente escolhidos como os herdeiros das promessas de Deus De fato Justino afirma
ldquoEntatildeo eles se arrependeratildeo quando de nada mais lhes valeraacuterdquo253 Logo para Justino os judeus
natildeo eram mais a ldquoraccedilardquo eleita porque natildeo eram cristatildeos
Passamos agora ao outro grupo compreendido como natildeo-cristatildeo pelo conceito
etnograacutefico dos seguidores do cristianismo na eacutepoca de Justino os Gentios
222 Os Gentios
De imediato devemos propor um referencial orientativo visando essa construccedilatildeo e
uma afirmaccedilatildeo parece definir de maneira satisfatoacuteria esta questatildeo Igualmente agrave anaacutelise anterior
(para com os judeus) partimos de referenciais de caraacuteter sociorreligioso baseados em nosso
autor central poreacutem com a diferenciaccedilatildeo de que agora falamos de um campo muito mais
abrangente a ser examinado pois os ldquogentiosrdquo254 (segundo o Apoacutestolo Paulo) ldquoos caldeus os
gregos e os egiacutepciosrdquo255 (segundo Aristides) e ldquoos romanosrdquo256 (segundo Tertuliano) formam
esse novo e amplo grupo que tambeacutem se caracteriza religiosamente em contraste tanto com
cristatildeos quanto com os judeus que haviam rejeitado o seu Messias
Todo esse enorme contingente religioso se distinguia por sua diversidade Nesta
multiplicidade surgia uma variedade imensa de divindades uma para cada gosto eou prazer
250 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 76
251 Segundo Insuelas as duas primeiras Apologias satildeo escritas ldquocontrardquo os pagatildeos jaacute o Diaacutelogo com Trifatildeo eacute
escrito ldquocontrardquo os judeus Neles Justino pretende provar que Jesus Cristo eacute o Messias e que a sua religiatildeo eacute a
verdadeira Ver INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 54
252 Ver JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo CVIII 1-3
253 JUSTINO I Apologia LII 9
254 Ver 1 Coriacutentios 1032
255 ARISTIDES Apologia II XIV e XV
256 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 1
62
com as quais estes devotos procuravam cobrir suas necessidades e as exigecircncias de culto em
seus dias257 Esta praacutetica reconhecida como politeiacutesmo envolve a coletividade humana desde
seus primoacuterdios258 No entanto para Justino quem seriam as pessoas que adoravam essa
imensidatildeo de outros deuses
Inicialmente afirmamos que os participantesocupantes desse distinto grupo
indiscutivelmente se diferenciavam dos judeus natildeo apenas por sua religiatildeo mas tambeacutem por
questotildees que podem (e devem) ser descritas como eacutetnicas No caso anterior o judaiacutesmo (ou
podemos chamar de religiatildeo judaica) natildeo se desvinculava (nem atualmente se desvincula) da
etnia de origem semita (judeus) que ocupava massivamente a regiatildeo do moderno estado de
Israel Ateacute os dias de hoje os judeus ndash tambeacutem chamados de ldquoisraelitasrdquo (genericamente) ndash satildeo
definidos regularmente como ldquofieacuteisrdquo da religiatildeo judaica259 Em nosso caso de destaque os
agentes religiosos que formavam as fileiras das religiotildees politeiacutestas eram seres humanos
oriundos das mais variadas sociedades da eacutepoca de diversas culturas mas que assumiam o
chamado culto de origem mitoloacutegica difundido amplamente na cultura de origem greco-
romana260 na qual Justino tambeacutem havia vivido e sido criado261 e que havia se tornado em um
elemento poliacutetico que ldquoos romanos chamavam de pax deorumrdquo262
Estes adoradores de outros e variados deuses usualmente possuem outra designaccedilatildeo
tanto para Justino quanto no relato biacuteblico satildeo os gentios ndash termo geneacuterico que adotaremos a
partir de agora neste item para a identificaccedilatildeo desse grupo devido a sua abrangecircncia e
complexidade A pesquisa de Santos nos auxilia consideravelmente nesta definiccedilatildeo
O termo utilizado na Biacuteblia hebraica para gentio eacute gocircy (גוי) e tanto no texto grego do
Antigo Testamento (Septuaginta) quanto no Novo Testamento temos os termos
ethnos (εθνος) ou hellen (ελλην) Satildeo geralmente traduzidos como naccedilatildeo raccedila
gentes gentios Se estiver no singular podem se referir aos judeus (HARRIS 1998 p
251-252 DOUGLAS 1995 p 662 VINE 2002 p 673) De forma geral quando no
plural eles se referem aos outros povos que natildeo os judeus e no caso mais
especificamente cristatildeo denotam natildeo soacute os natildeo-judeus mas podem se referir agravequeles
gentios que se converteram ao cristianismo ldquoOs quais pela minha vida expuseram as
257 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010
258 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
259 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014
260 SCOTT As Catacumbas de Roma 1996
261 PIERINI A Idade Antiga Curso de histoacuteria da igreja ndash I 1998
262 CORNELL MATTHEWS A Civilizaccedilatildeo Romana 2008 p 94
63
suas cabeccedilas o que natildeo soacute eu lhes agradeccedilo mas tambeacutem todas as igrejas dos gentiosrdquo
(Romanos 164)263
Justino natildeo apenas se utiliza dessa terminologia com desenvoltura mas tambeacutem se
serve de outros termos que designam este grupo de existecircncia gentiacutelica Encontramos citaccedilotildees
como ldquogente de todas as naccedilotildeesrdquo264 ldquogente de todas as raccedilasrdquo265 ldquohomens das naccedilotildeesrdquo266 ou
ldquoos povos das naccedilotildeesrdquo267 Ao analisarmos o contexto textual destas citaccedilotildees de Justino fica
evidente que o Apologista ao descrever estes trechos estaacute incondicionalmente se referindo ao
cumprimento das promessas messiacircnicas aos gentios Desta forma acaba por caracterizar (os
gentios) como os natildeo-judeus que estavam sem Cristo mas que iriam recebecirc-lo pela
proclamaccedilatildeo da mensagem evangeacutelica Drobner sugere que possivelmente Justino acreditava
que uma vez que os democircnios foram silenciados pela proclamaccedilatildeo da Verdade por meio da
mensagem da cruz ldquoos homens agora em todo o mundo se tornariam tementes a Deusrdquo268
Encontramos na I Apologia uma tendecircncia ndash pelo menos de maneira impliacutecita ndash de
apontar em menor nuacutemero elementos negativos eou pejorativos dos gentios e de suas praacuteticas
religiosas politeiacutestas Isso obviamente se comparados com agravequeles apresentados
volumosamente como prejuiacutezos trazidos eou deixados pelos judeus naquilo que se tratava da
revelaccedilatildeo de Deus em Jesus Cristo Tratando-se especificamente dessa questatildeo sociorreligiosa
que envolvia a religiatildeo judaica cabe-nos ressaltar com veemecircncia que em nossas afirmaccedilotildees
natildeo se estaacute buscando implicar de nenhuma maneira ou forma a Justino uma postura
antissemita269 pois sua polecircmica com os judeus ldquonada tem a ver com antissemitismo porque
natildeo se trata da raccedila mas da feacuterdquo270 Deste modo orientando-nos atraveacutes de dados da anaacutelise
historiograacutefica acreditamos que este fenocircmeno se baseou na tentativa de indicar com clareza
atribuiccedilotildees da histoacuteria da revelaccedilatildeo no fato de se contextualizar o relato salviacutefico de Deus para
263 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 147
264 JUSTINO I Apologia XXXII 3
265 JUSTINO I Apologia XXXII 4
266 JUSTINO I Apologia XXXI 7
267 JUSTINO I Apologia XLIX 1
268 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 84
269 Antissemita (anmiddottismiddotsemiddotmimiddotta) anti- + semita Adjetivo de dois gecircneros e substantivo de dois gecircneros Significa
Que ou quem se opotildee aos semitas e particularmente aos judeus Ver Dicionaacuterio Priberam da Liacutengua Portuguesa
Disponiacutevel em lthttpsdicionariopriberamorgantissemitagt Acesso em 17 de jan de 2019
270 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 76
64
a humanidade pois o ldquoproacuteprio texto nos fornece um contexto Mas tambeacutem pelos enunciados
que evidenciam sua forccedila ilocucionaacuteriardquo271
Poreacutem entendemos ainda ser oportuno citar a Justino de forma direta mais uma vez
em nossa elaboraccedilatildeo sobre o conceito de definiccedilatildeo daqueles que natildeo satildeo cristatildeos para ele
Indiscutivelmente os gentios gozavam de uma pequena parcela de toleracircncia por parte de
Justino especialmente diante do testemunho das conversotildees ocorridas junto o mundo greco-
romano das quais ele mesmo era fruto Aleacutem disso em nossa construccedilatildeo conceitual outra vez
fica notoacuterio que nosso autor natildeo procura mascarar em nenhum momento sua dificuldade para
com a religiatildeo judaica272 O texto de Justino transparece isso com muita clareza
Ao contraacuterio (dos judeus) os gentios que nunca tinham ouvido falar dele ateacute que os
apoacutestolos tendo saiacutedo de Jerusaleacutem lhes contaram sua vida e lhes entregaram as
profecias cheios de alegria e de feacute renunciaram aos iacutedolos e se consagraram ao Deus
ingecircnito por meio de Cristo273
Contudo torna-se claro tambeacutem que na concepccedilatildeo de Justino o alcance dessa
conformidade do plano salviacutefico de Deus atraveacutes de Jesus Cristo para com os gentios seria
segundo o posicionamento de feacute desse grupo pois o teor e a objetividade para o
desenvolvimento da I Apologia provam o contraacuterio pois esta obra acabou sendo redigida
condicionalmente na tentativa de aplacar os acircnimos daqueles que perseguiam os cristatildeos de
forma injustificaacutevel sendo evidente no relato de ambas as Apologias de Justino que os
perseguidores eram majoritariamente formados de natildeo-cristatildeos de origem gentiacutelica Essa
evidecircncia conseguimos resgatar no proacuteprio relato do Apologista quando este comenta a
respeito da idolatria dos gentios enfatizando seu politeiacutesmo Nessa passagem sua penna eacute
categoacuterica e imperativa
E aquilo mesmo que voacutes praticais e honrais publicamente voacutes o atribuiacutes a noacutes como
se tiveacutessemos decaiacutedo e a luz divina natildeo nos assistisse Todavia como estamos livres
por natildeo praticar nada disso vossas caluacutenias natildeo nos causam nenhum dano ao
271 SANTOS amp GONCcedilALVES A Aplicaccedilatildeo do ldquoContextualismo Linguiacutesticordquo e a busca da compreensatildeo da I
Apologia de Justino Maacutertir 2011 p 3
272 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
273 JUSTINO I Apologia XLIX 5 grifo nosso
65
contraacuterio danificam aqueles que cometem essas torpezas e ainda levantam falso
testemunho contra noacutes274
Finalizamos assim este item que visou especificar aquilo que se encontra aplicado na
explanaccedilatildeo do Apologista sobre o natildeo ser um cristatildeo Buscamos nesta explanaccedilatildeo uma espeacutecie
de caraacuteter identificativo aleacutem de termos procurado sinalizar para o oposto de cada caso
examinado distinguindo deste modo os grupos religiosos analisados atraveacutes de criteacuterios que
os contrastavam entre si e para com o objeto principal (cristianismo) pois notificamos que para
Justino como tambeacutem para a Igreja em sua eacutepoca judeus e gentios natildeo eram homens de outra
espeacutecie (em sentido bioloacutegico) mas natildeo sendo cristatildeos pertenciam necessariamente a outro
mundo um mundo natildeo-cristatildeo
A seguir trataremos de assuntos mais pontuais os quais podemos denominar de
ldquofactiacuteveisrdquo segundo a leitura de Justino para com a realidade que o cercava Esse conjunto de
fatos era polemizado de maneira constante (por meio de uma tentativa aguda de se diferenciar
proposiccedilotildees) pois possuiacutea uma importacircncia fundamental na definiccedilatildeo exigida para se
estabelecer a oposiccedilatildeo dos ldquomundosrdquo que apontamos
23 PRAXIS FIDEI ADVERSUS INIQUITATEM
E para que se torne evidente para voacutes vamos apresentar-vos a prova de que aquilo
que dizemos por tecirc-lo aprendido de Cristo e dos profetas que os precederam eacute a uacutenica
verdade e a mais antiga do que todos os escritores que existiram Natildeo pedimos que se
aceite a nossa doutrina por coincidir com eles mas porque dizemos a verdade275
A partir deste item apresentamos uma anaacutelise de meios e de casos os quais
entendemos serem absolutamente necessaacuterios para uma resposta realmente qualificada visando
uma conclusatildeo satisfatoacuteria desta pesquisa Neste processo que inicialmente abarcou de maneira
histoacuterica a estruturaccedilatildeo e funcionalidade de um ambiente confessional acabou por se
caracterizar cada vez mais atraveacutes de um distinto cenaacuterio sociorreligioso em seu tempo Nessa
verificaccedilatildeo de costumes do comportamento humano na esfera religiosa percebemos com certa
facilidade o profundo impacto ndash especialmente no acircmbito da eacuteticamoral ndash que o cristianismo
proporcionou ao apresentar-se ldquocomo a revoluccedilatildeo mais radical que a humanidade jaacute tinha
274 JUSTINO I Apologia XXVII 5
275 JUSTINO I Apologia XXIII 1 grifo nosso
66
realizadordquo276 Desta forma organizamos uma detalhada abordagem dessa conjuntura de caraacuteter
social na esfera religiosa a qual vamos descrever a seguir procurando direcionar de maneira
objetiva nossos apontamentos para dentro da soluccedilatildeo de nosso problema jaacute anteriormente
especificado e deste modo comeccedilarmos a indicar uma resposta plausiacutevel para o conceito do
que seria a Verdade redigida e sustentada por Justino
Importante para nossa sequecircncia de trabalho eacute procurarmos estabilizar desde cedo a
compreensatildeo de que esta elaboraccedilatildeo de caraacuteter eacutetico-moral natildeo visa ser pormenorizada tatildeo
pouco exaustiva pois acreditamos que isto nem mesmo seria possiacutevel diante da abrangecircncia a
qual o termo Verdade poderia alcanccedilar em um exame epistemoloacutegico mais aprofundado
Particularmente tratando-se de nosso caso em especial um agravante ainda se coloca isso
devido nossa palavra-chave nem mesmo ser aplicada como um simples substantivo por parte
do autor pois recebe por parte de Justino uma abrangecircncia axiomaacutetica muito singular somente
compreendida em seu contexto mais amplo (realidade sociorreligiosa)
Entretanto partimos da necessidade de nos orientarmos por meio de definiccedilotildees
provenientes das afirmaccedilotildees do proacuteprio Justino Diante da realidade sociorreligiosa ndash tambeacutem
pode-se classificaacute-la como cultural dependendo dos criteacuterios propostos ndash que cercava e
envolvia o Apologista (no periacuteodo de redaccedilatildeo da I Apologia) estava necessariamente instituiacuteda
uma forma de cerceamento agraves suas convicccedilotildees religiosas Sem restriccedilotildees podemos nos utilizar
de uma espeacutecie de pleonasmo ao dizermos que Justino ndash ldquose justificardquo ndash constantemente por
meio de um paralelo dialeacutetico que de maneira exata acaba por condicionar-se como loacutegico
pois o Apologista busca apresentar uma ldquoperfeita lealdade dos seus processosrdquo277 racionais em
toda a sua narrativa As contribuiccedilotildees oriundas da predominante linha filosoacutefica a qual Justino
aderiu em sua jornada na busca pela Verdade manifestam-se de forma niacutetida em sua construccedilatildeo
apofacircntica Esse meacutetodo se clarifica na abordagem de Chauiacute
A dialeacutetica platocircnica eacute um procedimento intelectual e linguiacutestico que parte de alguma
coisa que deve ser separada ou dividida em dois ou duas partes contraacuterias ou opostas
de modo que se conheccedila sua contradiccedilatildeo e se possa determinar qual dos contraacuterios eacute
verdadeiro e qual eacute falso278
276 MONDONI Histoacuteria da Igreja na Antiguidade 2001 p 44
277 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 56
278 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995 p 181
67
Deste modo Justino explanou suas conclusotildees de maneira categoacuterica por meio da
aplicaccedilatildeo de um meacutetodo que visava eliminar contradiccedilotildees essenciais daquilo que estava sendo
examinado279 Aparentemente o Apologista acreditava que algo de caraacuteter indivisiacutevel no
sentido de ser inquestionaacutevel poderia ser alcanccedilado mediante suas confrontaccedilotildees mesmo que
Justino afirmasse ser imprescindiacutevel ter que haver feacute em Jesus Cristo para tais fins elemento
(feacute) que era reconhecidamente ausente em seus opositores algo que no final parece desiquilibrar
a loacutegica da teoria de Justino Neste espaccedilo ainda nos eacute necessaacuterio dizer que nosso autor se
baseava fortemente em indicaccedilotildees de cunho comparativo e histoacuterico (a niacutevel de suas convicccedilotildees
religiosas) para defender suas comparaccedilotildees280 Neste item jaacute detectamos fortemente o ser
ldquofiloacutesofordquo em Justino realidade que abordaremos mais detalhadamente no proacuteximo capiacutetulo
Essa base filosoacutefica que acabamos de citar iraacute orientar o ministeacuterio de Justino no
decorrer de sua construccedilatildeo teoloacutegica e quanto a essa filosofia devemos sem constrangimento
atrelaacute-la agravequilo que acabou por se tornar o estilo literaacuterio preponderante em seus trabalhos
Estes se caracterizaram pela presenccedila de um forte teor (dispositivo) apologeacutetico possibilitando-
nos a partir da anaacutelise historiograacutefica281 afirmar que uma vez que os filoacutesofos (do periacuteodo de
Justino) receberam a feacute em Cristo estes podem defender a Verdade pois passam a possuir a
ldquoconsciecircncia da razatildeo filosoacutefica que nela estaacute contidardquo282
Desta forma seguindo uma postura assumidamente analiacutetica Justino passa a arquitetar
seu plano argumentativo utilizando-se de uma clara confrontaccedilatildeo de fatos em vista de alcanccedilar
o resultado desejado Mesmo sem ser um empirista ndash sistema filosoacutefico totalmente distante
cronologicamente de Justino ndash eacute impossiacutevel natildeo se detectar um apego por parte do Apologista
para com um meacutetodo de exame que venha a conferir com afinco a experiecircncia do uso dos
sentidos humanos como o meio para agrave origem e geraccedilatildeo do conhecimento Com isso mais um
detalhe pertinente segundo a nossa compreensatildeo vem a surgir nesta anaacutelise pois conseguimos
detectar com certa facilidade que Justino vincula os fatos registrados de sua feacute na rotina humana
presente efetivamente em seu contexto o que vem a somar para a caracterizaccedilatildeo de uma postura
que na praacutetica eacute empirista283
279 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
280 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
281 Ver SIMONETTI In Apologeacutetica Literatura Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 185-186
282 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
283 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
68
231 Um Princiacutepio Teologal
Seguindo o que acabamos de apontar apresentaremos uma posiccedilatildeo de ordem factiacutevel
da parte de Justino passando a citar elementos que em nosso entendimento estabelecem as
provas desenvolvidas pelo Apologista em seu relato de defesa dos cristatildeos Retrataremos dois
contextos em que Justino apresenta sua iniciativa de modo contundente na busca de seus
objetivos O primeiro cenaacuterio se desenvolve apoacutes o autor terminar uma ilustre analogia entre
ldquodoutrinas estoicas e cristatildesrdquo284
A primeira prova eacute que quando dizemos tais coisas aos gregos somos os uacutenicos a
serem odiados pelo nome de Cristo e nos tiram a vida sem termos cometido crime
algum como se focircssemos pecadores E tendes alguns aqui e outros ali que cultuam
aacutervores rios ratos gatos crocodilos e uma multidatildeo de animais irracionais O
interessante eacute que nem todos cultuam os mesmos mas uns satildeo honrados num lugar
outros em outro de modo que todos satildeo iacutempios entre si por natildeo ter a mesma religiatildeo
Esta eacute a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo veneramos os mesmos deuses que
voacutes e natildeo oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo colocamos coroas nos
sepulcros nem celebramos sacrifiacutecios sobre eles No entanto sabeis perfeitamente
que os mesmos animais por alguns satildeo considerados deuses por outros feras e por
outras viacutetimas para sacrifiacutecios285
A partir desta descriccedilatildeo passamos definitivamente a exposiccedilatildeo dos fatos que satildeo
contrastantes entre a praacutetica da feacute cristatilde e a ordem dos acontecimentos estabelecida nas
ocorrecircncias do meio secular ao redor da Igreja de Cristo isto porque o centro da coletividade
cristatilde (Assembleia Santa) era o que melhor distinguia exteriormente essa separaccedilatildeo
existencial286 A ecircnfase de Justino aplicada agrave realidade sociorreligiosa de seu tempo nos impotildee
a necessidade de uma adaptaccedilatildeo por meio de um delineamento de ordem temaacutetica isso devido
agrave diversidade de assuntos aos quais poderiacuteamos enfocar nesse exame pois a ldquoformalidade da
religiatildeo (pagatilde) manifestava-se de maneira diversardquo287 nos variados ciacuterculos sociais do mundo
greco-romano
O texto de Justino que estaacute depositado em uma genuiacutena literatura de estilo apologeacutetico
acaba ateacute mesmo por ganhar ares enfaticamente polemistas mesmo que esta definiccedilatildeo literaacuteria
do meio Patriacutestico seraacute apenas regulada sobre um escritor apologista a partir da figura de
284 FRANGIOTTI In Introduccedilatildeo I Apologia 1995 p 8
285 JUSTINO I Apologia XXIV 1-3
286 KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983
287 FUNARI Roma vida puacuteblica e vida privada 1993 p 20 grifo nosso
69
Tertuliano288 Isso porque a objetividade empregada por Justino natildeo visava unicamente
solicitar toleracircncia em relaccedilatildeo agrave feacute cristatilde mas tambeacutem evidenciar de forma categoacuterica direta e
especiacutefica uma superioridade do culto cristatildeo sobre as religiotildees pagatildes289
Deste modo de forma essencial entendemos que para uma melhor compreensatildeo do
contexto sugerido se faz necessaacuterio fracionaacute-lo Poreacutem devido agraves vaacuterias possibilidades de
argumentaccedilatildeo que a porccedilatildeo apresentada nos oferece decidimos concentrar nosso exame em
trecircs toacutepicos orientativos atraveacutes dos quais acreditamos ser possiacutevel desenvolver o escopo que
desejamos estes se condicionam a falta de valores absolutos a praacutetica da idolatria (na
concepccedilatildeo cristatilde) e as variaccedilotildees dos atos cuacutelticos que envolviam tal praacutetica mesmo que ambos
os casos apontados venham a se mesclar no seguimento de nosso relato textual devido sua
estreita relaccedilatildeo ldquosimbioacuteticardquo Os trecircs pontos nos conduzem de forma natural a uma reflexatildeo
historiograacutefica em torno do periacuteodo dos Seacuteculos I e II dC visando deste modo uma maior
clarificaccedilatildeo dos fatos que procuramos distinguir
2311 Praacutetica da Feacute Contra o Politeiacutesmo Relativista
Iniciamos a nossa estruturaccedilatildeo apresentando um registro que descreve esse cenaacuterio
cuacuteltico pagatildeo o qual estaacute disponibilizado no texto da Escritura Sagrada Aproximadamente
100 anos antes290 desse registro de Justino o Apoacutestolo Paulo jaacute censurava enfaticamente a
mesma praacutetica religiosa que natildeo estranhamente estava vigorando na cultura social ateacute os dias
de Justino Quando o Apologista acusa seus oponentes de adorarem uma variedade
(pluralidade) de seres criados (ou a natureza) abre-se um paralelismo com o texto biacuteblico que
diz ldquoInculcando-se por saacutebios tornaram-se loucos e mudaram a gloacuteria do Deus incorruptiacutevel
em semelhanccedila da imagem de homem corruptiacutevel bem como de aves quadruacutepedes e repteisrdquo
(Romanos 122-23)
Justino argumenta sobre este cenaacuterio afirmando que o status de honra a estas diversas
ldquodivindadesrdquo passava por variaccedilotildees ndash ou ateacute mesmo vacilaccedilotildees ndash natildeo possuindo nenhum teor
de algo que poderiacuteamos afirmar como ldquoabsolutordquo Justino fortemente tambeacutem salienta que o
simples fator geograacutefico eacute capaz de destituir este aspecto de adoraccedilatildeo realidades
(contingenciais) que acabam por confrontar-se com o credo cristatildeo que jaacute possui seu conceito
bem estabilizado nos dias Justino Nisto nos auxilia o texto da Didaqueacute (possivelmente
288 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
289 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
290 GREATHOUSE In A Epiacutestola aos Romanos Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006
70
redigido no final do Seacuteculo I291) o qual confessa que ldquoTu Senhor Todo-poderoso criaste todas
as coisas por causa do teu Nomerdquo292 solidificando desde muito cedo o princiacutepio que mais
tarde293 seria absolutamente consolidado no Credo Apostoacutelico que iraacute reproduzir conteuacutedo
idecircntico ao afirmar ldquoCreio em Deus Pai todo-poderoso Criador do ceacuteu e da terrardquo294
Deste modo a nova feacute em curso concebia desde seus primoacuterdios um uacutenico ser todo-
poderoso que natildeo pode nem mesmo estaacute sensiacutevel a sofrer as variantes temporais descritas por
Justino Aleacutem disso o Apologista nos apresenta uma variaccedilatildeo de grau que poderiacuteamos definir
como ldquocaoacuteticardquo para uma postura humana em sua relaccedilatildeo com estes ldquoobjetosrdquo de culto pois
cita como premissa que o mesmo ldquoobjetordquo tem determinada condiccedilatildeo de qualidade superior
para alguns mas torna-se trivial e comum para outros295 algo impossiacutevel de ser adaptado ao
elemento divino do culto cristatildeo
2312 Praacutetica da Feacute Contra a Idolatria
O outro ponto que desejamos destacar se aplica sobre a afirmaccedilatildeo de Justino ao dizer
ldquoEsta eacute a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo veneramos os mesmos deuses que voacutesrdquo296
A enfaacutetica argumentaccedilatildeo de Justino salienta a natildeo participaccedilatildeo dos cristatildeos nas atividades
religiosas dos ciacuterculos sociais aos quais pertenciam Estas atividades que eram implementadas
pelo mito popular297 e pelas classes poliacuteticas controladoras298 acabavam por definir-se como
os ritos religiosos ldquooficiaisrdquo ndash aceitos permitidos e em alguns casos tolerados pelas
autoridades ndash no Impeacuterio Romano299 O culto aos diversos deuses e ao imperador romano
caracterizam bem esta diversidade mitoloacutegica300 Assim passamos para um fato literaacuterio que
em nosso entendimento fomenta bem essa ideia estruturada na realidade humana que
desejamos retratar O escrito a seguir de autoria de Pliacutenio o Velho produzido possivelmente
291 STORNIOLO BALANCIN In Introduccedilatildeo DIDAQUEacute O catecismo dos primeiros cristatildeos para as
comunidades de hoje 2010 p 3
292 DIDAQUEacute X 3
293 SCHAFF The creeds of Christendom with a history and critical notes 1966
294 CREDO APOSTOacuteLICO 1ordm artigo (da criaccedilatildeo)
295 Ver GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 89-90
296 JUSTINO I Apologia XXIV 2
297 Ver KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983 p 91-97
298 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
299 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988
300 FUNARI Roma vida puacuteblica e vida privada 1993
71
em torno do ano 77 da era cristatilde301 nos expotildee por meio de um registro de tipo naturalista a
seguinte observaccedilatildeo quanto algumas praacuteticas ritualiacutesticas comuns ao cenaacuterio sociorreligioso de
entatildeo Pliacutenio assim escreve
Sacrificar animais sem oraccedilotildees natildeo funciona aparentemente nem produz a correta
relaccedilatildeo ritual com os deuses As foacutermulas variam uma para conseguir um bom
agouro uma segunda para evitar o mau agouro e uma terceira para cultuar as
divindades [] Ao usarmos as preces costumeiras nesse ritual admitimos a eficaacutecia
dessas foacutermulas comprovadas pela experiecircncia de 830 anos302
Cabe-nos dizer que Pliacutenio estava simplesmente retratando de maneira descritiva os
processos de ordem religiosa no meio social que estava inserido poreacutem o contexto claramente
nos sugere que Pliacutenio tambeacutem buscava salientar a ldquoimportacircncia do respeito agraves formalidades na
religiatildeo do Estadordquo303 Natildeo podemos esquecer que Pliacutenio como oficial e administrador romano
esteve inserido em diversas regiotildees do Impeacuterio304 o que nos possibilita afirmar que o registro
estaacute baseado em um amplo e avultado conteuacutedo experiencial e que portanto seu relato estaacute
condicionado a ser classificado como um ldquocaso geneacutericordquo de praacuteticas cuacutelticas das regiotildees
influenciadas pela cultura greco-romana
2313 Praacutetica da Feacute Contra o Ateiacutesmo
Uma praacutetica que era corrente nos tempos de Justino e jaacute antes dele era o de definir os
cristatildeos ldquocomo culpados do crime de ateiacutesmordquo305 A natildeo-aderecircncia dos cristatildeos a essas praacuteticas
religiosas pagatildes eram vistas e entendidas por alguns (elite social)306 como atos de
irracionalidade mas principalmente eram interpretadas pelos pagatildeos (de forma geral) como
301 BEARD SPQR uma histoacuteria da Roma Antiga 2017
302 PLIacuteNIO Histoacuteria Natural XXVIII 10-12 No original Sacrificar animales sin oraciones no funciona
aparentemente ni produce la correcta relacioacuten ritual con los dioses Las foacutermulas variacutean una para conseguir un
buen aguumlero una segunda para evitar el mal aguumlero y una tercera para cultuar a las divinidades [] Al usar las
oraciones acostumbradas en ese ritual admitimos la eficacia de esas foacutermulas comprobadas por la experiencia de
830 antildeos
303 FUNARI Roma vida puacuteblica e vida privada 1993 p 17 grifo nosso
304 BEARD SPQR uma histoacuteria da Roma Antiga 2017
305 IRVIN SUNQUIST Histoacuteria do Movimento Cristatildeo Mundial Volume I Do cristianismo primitivo a 1453
2004 p 100
306 IRVIN SUNQUIST Histoacuteria do Movimento Cristatildeo Mundial Volume I Do cristianismo primitivo a 1453
2004
72
accedilotildees que manifestavam uma evidente incredulidade307 ndash ou seja uma atitude de profundo
desrespeito ndash por parte dos cristatildeos agravequilo que era considerado como divino De ordem jaacute muito
habitual eram as acusaccedilotildees deste tipo junto agrave cultura greco-romana pois jaacute na antiguidade
algumas figuras de destaque como Soacutecrates foram alvos desse tipo de defraudaccedilatildeo
considerado de ordem moral para o periacuteodo
Voltemos ao caso de Soacutecrates pois este foi julgado aproximadamente 550 anos
antes308 de Justino escrever sua I Apologia vindo a receber por parte da parte de seus algozes
acusaccedilotildees de mesma ordem as quais os cristatildeos agora similarmente sofriam tal como Soacutecrates
que ldquodescobriu o embuste dos democircnios e os convidou (demais seres humanos) a procurar o
verdadeiro Deus por isso ele teve de morrer como maacutertirrdquo309 Justino cita-nos o fato dizendo
Quando Soacutecrates com raciociacutenio verdadeiro e investigando as coisas tentou
esclarecer tudo isso e afastar os homens dos democircnios estes conseguiram por meio
de homens que se comprazem na maldade que ele tambeacutem fosse executado como
ateu e iacutempio alegando que ele estava introduzindo novos democircnios Tentam fazer o
mesmo contra noacutes310
Entendemos que ainda se faz importante somar a estrutura dessa pesquisa o relato
redigido por Platatildeo referente ao processo de defesa e julgamento de seu mestre Nesse registro
apologeacutetico encontramos o diaacutelogo entre Soacutecrates e Ecircutrifron311 que comprova o fato juriacutedico
ocorrido na Greacutecia Antiga do qual citamos atraveacutes de Justino
Ecircutrifron ndash O que eu gostaria Soacutecrates mas receio que aconteccedila o contraacuterio Pois me
parece que ele simplesmente comeccedila por prejudicar a cidade pela lareira312 ao
tencionar fazer mal a vocecirc Mas me diga ele diz que vocecirc corrompe os jovens fazendo
o quecirc
307 Ver GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 84-86
308 Ver MALTA In Introduccedilatildeo Apologia de Soacutecrates 2008 p 11
309 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 85 grifo nosso
310 JUSTINO I Apologia V 3 grifo nosso
311 Natildeo temos outras informaccedilotildees sobre Ecircutifron ndash um adivinho prognosticador conforme subtiacutetulo da obra ndash
aleacutem das que encontramos em Platatildeo Mas seu nome tinha um significado claro para os gregos ldquoo de espiacuterito
direto ou ortodoxordquo Ver MALTA In Notas Apologia de Soacutecrates 2008 p 25
312 A lareira (ou Heacutestia) representava enquanto fogo sagrado da cidade e de cada casa o princiacutepio da estabilidade
Com essa fala Ecircutifron deixa clara sua admiraccedilatildeo por Soacutecrates Ver MALTA In Notas Apologia de Soacutecrates
2008 p 27
73
Soacutecrates ndash Coisas estranhas admiraacutevel homem para se ouvir assim Pois diz que sou
fazedor de deuses e que por isso mesmo ndash por fazer novos deuses e natildeo crer nos
antigos ndash me denunciou conforme diz313
Ainda referente ao assunto ndash cristatildeos definidos como ateus e iacutempios pelos pagatildeos ndash
vale-nos destacar o ponto de vista de um historiador Santos contribui muito em nosso exame
que visa apontar fatos contrastante por meio de fenocircmenos de intoleracircncia religiosa ocorridos
no passado Santos afirma que as acusaccedilotildees de ateiacutesmo por parte dos pagatildeos tiveram uma
importante contribuiccedilatildeo junto agrave construccedilatildeo de uma ldquoidentidaderdquo cristatilde durante o periacuteodo do
Seacuteculo II314 Tratando-se pontualmente do que acabamos de mencionar Santos novamente
contribui favoravelmente a nossa construccedilatildeo quando diz
Justino continua explicando que como acusaram Soacutecrates de ateiacutesmo assim satildeo
acusados os cristatildeos por natildeo adorarem os deuses de Roma Em seguida ele apresenta
uma pequena profissatildeo de feacute com o objetivo de esclarecer que os cristatildeos natildeo satildeo
ateus pois ldquocultuamos e adoramosrdquo o Deus verdadeiriacutessimo o seu Filho os seus
exeacutercitos de anjos e o Espiacuterito profeacutetico (JUSTINO I Apologia VI 1 2) Vaacuterios
exemplos desta estrutura do desenvolvimento podem ser observados no decorrer da I
Apologia315
A variaccedilatildeo entre o caso de Soacutecrates e a realidade de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos reforccedila
as atribuiccedilotildees de Justino quanto a postura que este buscava assumir e automaticamente
diferenciar Quando aponta de maneira clara para o estabelecimento de um distanciamento
ldquosegurordquo entre as partes que na concepccedilatildeo do Apologista apresentam uma clara distinccedilatildeo de
culto No entanto Justino natildeo deixa de assumir a significativa importacircncia que as ldquoestruturasrdquo
de feacute representam como objeto para a estabilidade humana no sentido de gerar nessa
coletividade uma espeacutecie de harmonia que pode ser definida com o um termo moderno como
ldquoseguranccedila socialrdquo mas claro isso somente se faz possiacutevel devido agrave Justino assumir ser um
crente ndash afastando assim todas as acusaccedilotildees de ateiacutesmo ndash mas natildeo um idoacutelatra exercendo deste
modo (novamente por meio de sua tradicional ferramenta apologeacutetica) um consideraacutevel
apontamento para as diferenccedilas entre estes dois (ou mais) estados de crenccedila e culto Walde
313 PLATAtildeO Ecircutrifon (Sobre a piedade) 2
314 Ver SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2010 Item
12 A apropriaccedilatildeo do estilo grego nos escritos e pregaccedilotildees p 31-38
315 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2010 p 108
grifo nosso
74
salienta bem esse enfoque comparativo que acabou por constituir uma espeacutecie de meacutetodo que
foi aplicado por Justino em sua verificaccedilatildeo entre as diferenccedilas que encontrou Desta forma
Walde resume seu entendimento
Parte do problema era uma maacute interpretaccedilatildeo da crenccedila cristatilde Por natildeo renderem culto
aos deuses gregos e romanos os cristatildeos eram chamados ateus Justino perguntou
como eles podiam ser ateus jaacute que eles rendiam culto ldquoao Deus verdadeirordquo Os
cristatildeos rendem culto ao Pai Filho e Espiacuterito Santo ele disse e ldquolhes datildeo homenagens
com razatildeo e verdaderdquo Justino tambeacutem apontou a inconsistecircncia dos governantes
romanos Alguns de seus proacuteprios filoacutesofos ensinaram que natildeo havia nenhum deus
mas eles natildeo os perseguiram soacute por terem o nome de filoacutesofos316
Aleacutem desses destaques de caraacuteter mais historiograacuteficos adquirimos atraveacutes do texto
biacuteblico o relato Apostoacutelico que certamente abarca os fatores que compotildeem a posiccedilatildeo de Justino
Este testemunho Sagrado retrata com esmero o que o autor de Atos dos Apoacutestolos buscava
comunicar ao seu status quo pois o discurso de Paulo em Atenas torna-se esclarecedor para o
fim de testificar o estado e o tipo da feacute que os cristatildeos confessavam Vemos nisso proposta uma
relocaccedilatildeo do ser humano em direccedilatildeo a nova concepccedilatildeo de se ser a geraccedilatildeo de Deus ndash atraveacutes
da nova criaccedilatildeo ndash pois os procedimentos dos cultos pagatildeos contrariavam os princiacutepios
fundamentais deste Deus absoluto uacutenico e consequentemente a isso verdadeiro na visatildeo de
Justino sendo absolutamente ldquotolice pensar que a divindade ndash lsquoo divinorsquo ou lsquodivinalrsquo ndash seria
semelhante agraves imagens de ouro ou de prata feitas pelos homensrdquo317 O Texto Sagrado
indiscutivelmente apresenta o caminho e o fundamento pelo qual Justino alcanccedilou e sustentava
suas convicccedilotildees
O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe sendo ele Senhor do ceacuteu e da terra
natildeo habita em santuaacuterios feitos por matildeos humanas Nem eacute servido por matildeos humanas
como se de alguma coisa precisasse pois ele mesmo eacute quem a todos daacute vida
respiraccedilatildeo e tudo mais [] Sendo pois geraccedilatildeo de Deus natildeo devemos pensar que
a divindade eacute semelhante ao ouro agrave prata ou agrave pedra trabalhados pela arte e
imaginaccedilatildeo do homem (Atos dos Apoacutestolos 17242529)
Apoacutes discorrermos sobre o meacuterito da questatildeo dos disciacutepulos de Jesus Cristo serem ou
natildeo ateus e tambeacutem de abordarmos com uma finalidade dissertativa algumas caracteriacutesticas de
316 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 3 grifo nosso
317 EARLE In Livro dos Atos dos Apoacutestolos Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006 p 343
75
ordem cultual do meio pagatildeo seguiremos explorando algumas citaccedilotildees de Justino que se
apresentam de forma diversificada em sua tentativa de enfatizar um latente antagonismo entre
os grupos religiosos de seu tempo
232 Um Princiacutepio Determinista
Os capiacutetulos XXV e XXVI da I Apologia nos apresentam inuacutemeras variaccedilotildees desses
haacutebitos religiosos todos sentenciados por nosso autor como nefastos porque Justino sempre
buscava afirmar como ponto inicial de sua argumentaccedilatildeo a premissa de que seu grupo (cristatildeos)
se diferencia dos demais por natildeo possuir as mesmas praacuteticas Essas praacuteticas pagatildes de culto no
entendimento de Justino fossem exercidas de maneira ordinaacuteria ou extraordinaacuteria por seus
seguidores no final incontestavelmente seriam condenadas pois se manifestariam como obras
demoniacuteacas Isso ocorria porque alguns ldquodemocircnios levaram certos homensrdquo318 a praticaacute-las
para prejuiacutezo dos cristatildeos sendo estes por fim injustamente acusados de praacuteticas danosas
Euseacutebio ao comentar sobre o ministeacuterio de Justino retrataraacute este contexto de forma
simposiasta
Isto eacute demonstrado por Justino que se distinguiu em nossa doutrina natildeo muito tempo
depois dos apoacutestolos e de quem exporemos oportunamente o que seja conveniente
Em sua primeira Apologia dirigida a Antonino em favor de nossa feacute escreve como
segue ldquoE depois da ascensatildeo do Senhor ao ceacuteu os democircnios levaram alguns homens
a dizer que eram deuses e estes natildeo somente natildeo foram perseguidos por voacutes mas ateacute
foram considerados dignos de honrasrdquo319
Nos capiacutetulos XXIV-XXVI Justino nos retrata de maneira sintetizada diversas
caracteriacutesticas da religiatildeo gentiacutelica de sua eacutepoca Ateacute aqui natildeo encontramos nada de novo ou
ateacute mesmo excepcional neste tipo de relato mas o que nos chama a atenccedilatildeo neste
enquadramento analiacutetico sobre o qual estamos ponderando eacute a proporccedilatildeo temaacutetica que o
assunto ganha referente agrave sua futura fundamentaccedilatildeo literaacuteria Cabe-nos aqui atestar que Justino
se utiliza de trecircs elementos indicativos naquilo que procura apresentar como casos evidentes da
perseguiccedilatildeo social para com aqueles que se denominavam cristatildeos Justino atraveacutes de uma
espeacutecie de ldquolista numeradardquo320 notoriamente sinaliza uma sequecircncia de fases as quais
318 JUSTINO I Apologia XXVI 1
319 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica II 13 2-3
320 Justino se utiliza dos termos gregos Πρωτον (Em primeiro lugar) no cap XXIV Δεύτερον (Em segundo lugar)
no cap XXV Τρίτον (Em terceiro lugar) no cap XXVI Sendo os vocaacutebulos empregados pelo autor na segunda
76
Frangiotti chama de ldquoProvasrdquo321 utilizadas pelo Apologista sendo que estes fatos em
perspectiva geral se apresentavam de maneira tenebrosa na visatildeo de Justino pois em sua
anaacutelise sustentavam-se sobre argumentos fraacutegeis duvidosos e absolutamente injustos
principalmente pelo fato dessas acusaccedilotildees possuiacuterem um caraacuteter preconceituoso fazendo
somente dos cristatildeos por princiacutepio legal as viacutetimas dessas regras estabelecidas
Neste breve conjunto propositivo encontramos um cenaacuterio real que passa a se
caracterizar por meio de uma descriccedilatildeo de fatos pujantes que ascendem ao nosso olhar atraveacutes
de uma linguagem conceitual Justino amparado por analogias literais passa mediante sua
construccedilatildeo da defesa da moral cristatilde322 a utilizar-se de accedilotildees dialeacuteticas as quais levam as
praacuteticas dos cultos pagatildeos a serem apontadas por Justino (especialmente no capiacutetulo XXV) e
tambeacutem examinadas de uma maneira imperativa mesmo que visando uma definiccedilatildeo satisfatoacuteria
para o entendimento de seus leitores Essa praacutetica literaacuteria eacute algo normalmente detectado junto
ao trabalho de um pensador com caracteriacutesticas platocircnicas pois estes ldquodisciacutepulosrdquo de Platatildeo
atraveacutes de uma confrontaccedilatildeo de imagens contraditoacuterias visavam chegar a ideias idecircnticas e
assim uniformizar o pensamento humano323
Entretanto esta conformidade natildeo era possiacutevel na anaacutelise de Justino pois os fatos
(praacuteticas pagatildes) natildeo possuiacuteam a ldquoidentidaderdquo necessaacuteria para o Apologista muito pelo
contraacuterio eram absolutamente antagocircnicos e inquestionavelmente se definiam como espuacuterios
aos olhos dos cristatildeos quando ponderados diante da doutrina cristatilde estabelecida pela
transmissatildeo e edificaccedilatildeo Apostoacutelica Deste modo a separaccedilatildeo essencial proposta pelo
Apologista torna-se ainda mais clara se confrontada com o comentaacuterio de Euseacutebio ao capiacutetulo
XXVI da I Apologia O Historiador constroacutei uma consideraacutevel argumentaccedilatildeo sobre uma figura
humana denominado Menandro o qual sendo participante de atos miacutesticos recebeu de Euseacutebio
o cognome de ldquoMagordquo
Tambeacutem Justino ao mencionar Simatildeo pela mesma razatildeo acrescenta uma relaccedilatildeo
sobre este outro dizendo ldquoSabemos tambeacutem que um certo Menandro tambeacutem
samaritano oriundo da aldeia chamada Caparatea depois de ser disciacutepulo de Simatildeo e
estando tambeacutem possuiacutedo por democircnios apareceu em Antioquia e com sua arte
maacutegica seduziu a muitos E convenceu seus seguidores de que natildeo morreriam Hoje
declinaccedilatildeo do acusativo permitem em sua traduccedilatildeo o emprego tanto da preposiccedilatildeo ldquoemrdquo quanto do substantivo
ldquolugarrdquo condicionando desta forma uma indicaccedilatildeo de relaccedilatildeo e loacutegica em sua estrutura organizacional Ver
PAUTIGNY In Notes Apologies XXVI 1 XXV 1 XXVI 1
321 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 21
322 JUSTINO I Apologia XXV 1-3
323 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
77
restam alguns de sua seita que continuam a professaacute-lordquo Era sem duacutevida obra da
influecircncia diaboacutelica lanccedilar matildeo de tais feiticeiros revestidos do nome de cristatildeos para
esforccedilar-se em caluniar o grande misteacuterio de piedade acusando de magia e destruir
por meio deles os dogmas da Igreja sobre a imortalidade da alma e a ressurreiccedilatildeo dos
mortos Mas aqueles que os reconhecem como salvadores chegaram abaixo da
verdadeira esperanccedila324
Neste comentaacuterio histoacuterico notamos com clareza a relaccedilatildeo de contribuiccedilatildeo que
Euseacutebio visa estender ao confronto apologeacutetico pelo qual Justino havia passado Desta maneira
acaba por nos manifestar seu condicionamento a um fato que em sua concepccedilatildeo parece-nos
claramente a expressatildeo de um princiacutepio pelo qual faz emergir um compromisso ndash algo que nos
soa como uma necessidade moral ndash que possui um caraacuteter imperioso Euseacutebio nos relata sem
restriccedilotildees que as accedilotildees maleacutevolas praticadas pelo meio sociorreligioso pagatildeo do periacuteodo de
Justino tinham claramente o objetivo de ldquocaluniar o grande misteacuterio de piedade [] e destruir
por meio deles os dogmas da Igrejardquo325 constituindo deste modo a noccedilatildeo histoacuterica de que os
valores da feacute cristatilde eram a expressatildeo perfeita da Verdade tanto para Justino quanto para a Igreja
(representada historicamente no relato de Euseacutebio) Tratando-se quanto agrave Igreja nesta questatildeo
pontualmente Justino entendia que em seu curso natural a Igreja vivenciava naturalmente essa
relaccedilatildeo dialeacutetica fazendo com que as difamaccedilotildees consequentes da falsa religiatildeo manifestassem
que a Igreja era (e estava) Santa mesmo que sob o ataque e a tentativa de manipulaccedilatildeo dos
seres demoniacuteacos326
Sem entrarmos diretamente no meacuterito teoloacutegico destas afirmaccedilotildees mas buscando nos
direcionarmos para aquilo que nos cabe como exame pretendido neste trabalho ressaltamos
que o comportamento daqueles que buscavam defender a feacute cristatilde nos parece visar de forma
clara o estabelecimento de um padratildeo entre causa e efeito em suas anaacutelises O efeito do
procedimento daqueles que assumiram esta postura hereacutetica em relaccedilatildeo agrave feacute cristatilde eacute assim
definido por Euseacutebio ldquoMas aqueles que os reconhecem como salvadores chegaram abaixo da
verdadeira esperanccedilardquo327 Aqui encontramos um destaque consideraacutevel para esta pesquisa pois
podemos sustentar que Euseacutebio baseia sua argumentaccedilatildeo de maneira evidente na
intelectualidade de Justino Logo devemos novamente afirmar de maneira expressiva que tanto
para Justino quanto para Euseacutebio havia uma definiccedilatildeo consistente do que seria a Verdade como
324 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica III 26 3-4
325 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica III 26 4
326 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997
327 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica III 26 4 grifo nosso
78
tambeacutem onde ela necessariamente estava eou se encontrava Aqui tambeacutem se caracterizava
um processo de objeccedilatildeo a Verdade sendo os registros historiograacutefico um peso consideraacutevel na
comprovaccedilatildeo deste caso
233 Um Princiacutepio de Pureza
Seguindo no tratado de Justino jaacute nos dirigindo ao segundo cenaacuterio de nossa anaacutelise
para este item apresentamos mais um relato de alccedilada histoacuterica que eacute proposto por nosso autor
Como nos temas anteriores este tambeacutem envolve primordialmente questotildees de foro social
poreacutem agora apontando precisamente para outras realidades do ambiente sociorreligioso que
envolvia a realidade de Justino Sendo assim a partir deste ponto iremos considerar o capiacutetulo
XXVII da I Apologia onde encontramos uma postura determinante por parte do Apologista
quanto a questotildees de ordem para com agrave conduta sexual humana Neste caso especiacutefico podemos
ateacute mesmo falar de um padratildeo de comportamento a ser adotado em detrimento de outro328
Tambeacutem devemos afirmar sem constrangimento que para Justino fazer figurar esta
exposiccedilatildeo era algo vaacutelido e ateacute mesmo fundamental para suas intenccedilotildees apologeacuteticas pois tudo
nos indica que ele natildeo apenas queria sinalizar uma conduta mas tambeacutem solidificaacute-la por meio
de um ordenamento ldquoA pureza da vida cristatilderdquo329 Entendemos que para uma melhor
compreensatildeo dessa questatildeo em especiacutefico se faz necessaacuterio uma leitura completa do registro
apologeacutetico de Justino quanto ao assunto Deste modo segue na integra o capiacutetulo XXVII da I
Apologia
Noacutes por outro lado a fim de natildeo cometer pecado ou impiedade professamos a
doutrina de que expor os receacutem-nascidos eacute obra de perversos Primeiro porque vemos
que quase todos vatildeo acabar na dissoluccedilatildeo natildeo soacute as meninas mas tambeacutem os
meninos Do mesmo modo como se conta que os antigos mantinham rebanhos de bois
cabras ovelhas ou cavalos de pasto assim se reuacutenem agora rebanhos de crianccedilas com
a uacutenica finalidade de usar torpemente delas e toda uma multidatildeo tanto de mulheres
como de androacuteginos e pervertidos estaacute preparada em cada proviacutencia para semelhante
abominaccedilatildeo Para isso recolheis taxas contribuiccedilotildees e tributos ao passo que o vosso
dever seria o de arrancaacute-las pela raiz do vosso impeacuterio Quando se abusa de tais seres
aleacutem de tratar de uma uniatildeo proacutepria de pessoas sem Deus iacutempia e torpe natildeo faltaraacute
quem se una conforme a circunstacircncia com um filho um parente ou um irmatildeo Haacute
tambeacutem aqueles que prostituem seus proacuteprios filhos e mulheres outros mutilam-se
publicamente para a torpeza e referem esses misteacuterios agrave matildee dos deuses Finalmente
em todos aqueles que considerais como deuses a serpente se pinta como siacutembolo e
grande misteacuterio E aquilo mesmo que voacutes praticais e honrais publicamente voacutes o
atribuiacutes a noacutes como se tiveacutessemos decaiacutedo e a luz divina natildeo nos assistisse Todavia
328 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997
329 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 22
79
como estamos livres por natildeo praticar nada disso vossas caluacutenias natildeo nos causam
nenhum dano ao contraacuterio danificam aqueles que cometem essas torpezas e ainda
levantam falso testemunho contra noacutes330
O conteuacutedo exposto no capiacutetulo XXVII nos retrata uma condiccedilatildeo muito conflituosa
para os cristatildeos Graccedilas agrave sua praxis fidei eles chegaram a ser considerados ldquoinimigos do estado
e ateusrdquo331 A Igreja em sua fase primitiva teve em seu ldquoexerciacutecio de feacuterdquo a acusaccedilatildeo de se
envolver amplamente com a imoralidade de seu meio cultural332 No entanto a situaccedilatildeo que
Justino enfrentava em seus dias natildeo era mais proveniente de uma solene admoestaccedilatildeo
Apostoacutelica Pelo contraacuterio agora os cristatildeos passaram a ser vitimados por efeitos de um estado
opressor No passado estes pecados haviam afligido a Igreja de Cristo a ponto de suas praacuteticas
lituacutergicas serem ldquoconfundidasrdquo com as muitas facetas do rito religioso natildeo-cristatildeo vigente em
sua eacutepoca algo que Justino se interpocircs de forma vertiginosa Sem termos a intenccedilatildeo de produzir
necessariamente um apanhado histoacuterico-cultural (entenda-se de se comentar detalhadamente o
capiacutetulo citado) procuraremos a partir deste ponto estabelecer agrave saliecircncia que entendemos
haver entre as praacuteticas descritas no capiacutetulo XXVII pois a descriccedilatildeo elementar de Justino nos
leva a uma singular oposiccedilatildeo de valores e preceitos considerados por ele como fundamentais
A cultura greco-romana alicerccedilada e solidificada nas entranhas do Impeacuterio nos
demonstra uma coletividade de fatos os quais eram considerados inoacutespitos ao ldquoideaacuteriordquo cristatildeo
que se encontrava estruturado no rigor das comunidades do Seacuteculo II333 Obviamente alguns
desvios de conduta por parte dos fieacuteis ocorriam em meio agraves ldquoassembleiasrdquo cristatildes ateacute mesmo
com certa normalidade especialmente nos grandes centros urbanos334 Entretanto a proteccedilatildeo
da disciplina eclesiaacutestica ndash principalmente mediante a accedilatildeo Episcopal e dos rigores penitenciais
ndash conseguia estabelecer um ldquocontrolerdquo por meio da manutenccedilatildeo da autecircntica doutrina de
Cristo335
Neste cenaacuterio as diversas praacuteticas religiosas pagatildes atreladas ao sistema social de entatildeo
ndash as quais envolviam de maneira ampla e robusta a vida cotidiana dos suacuteditos de Roma em
330 JUSTINO I Apologia XXVII 1-5
331 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4
332 Ver 1 Coriacutentios 5
333 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997
334 KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983
335 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
80
suas mais variadas atuaccedilotildees familiar civil militar etc336 ndash apontavam de forma depreciativa
para o puacuteblico cristatildeo O cristianismo nesse momento cada vez mais inserido na realidade
social do Impeacuterio trazia o ldquofermento de um ideal superiorrdquo337 elaborado tanto no niacutevel
intelectual de seus praticantes quanto tambeacutem no de seus defraudadores Isso fazia com que a
feacute cristatilde acabasse por se distinguir de forma evidente dos diversos haacutebitos e costumes
considerados ordinaacuterios do sistema religioso natildeo-cristatildeo que estava sendo analisado e
apologeticamente combatido por Justino
Os cristatildeos eram acusados falsamente de cometerem torpezas sexuais em seus
encontros cultuais sendo que os cristatildeos nem de perto praticavam fornicaccedilatildeo adulteacuterio
mutilaccedilatildeo entre outros atos repugnantes338 que eram comuns na ldquoliturgiardquo cuacuteltica pagatilde Neste
cenaacuterio para Justino a pior consequecircncia ainda era a de que o Impeacuterio tolerava tais atos sem
nenhuma forma ativa de puniccedilatildeo a estes pois caso um respectivo modo de culto viesse a trazer
benefiacutecios poliacuteticos ao Impeacuterio o mesmo era tolerado sem se levar em conta sua origem ou
meacutetodos de celebraccedilatildeo por mais esdruacutexulos que fossem 339
Seguindo ainda nesta temaacutetica a I Apologia nos permite afirmar que a celeuma de
origem pagatilde que procurava acusar os cristatildeos de realizarem orgias canibalismo pedofilia e
diversos outros atos de torpeza em suas celebraccedilotildees natildeo passava de um plano difamatoacuterio que
infelizmente conseguiu se estabelecer em meio a uma realidade sociorreligiosa com
caracteriacutesticas muito preconceituosas pois mesmo sendo sincretista em sua essecircncia340 tal
sociedade natildeo soube ou natildeo quis reconhecer esse tipo de crenccedila religiosa341 Poreacutem cabe-nos
336 CARCOPINO Jeacuterocircme Roma no Apogeu do Impeacuterio Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990
337 LEBRETON Jules ZEILLER Jacques Storia della Chiesa della origini ai nostri giorni V II Dalla fine
dell II Secolo alla pace Costantiniana (313) 1972 p 619 No original fermento drsquoun ideale superiore
338 Ver DANIEacuteLOU Jean MARROU Henri Nova histoacuteria da Igreja V I Dos Primoacuterdios a Santo Gregoacuterio
Magno Petroacutepolis Vozes 1966 p 105-109
339 Algumas formas rituais de culto eram tatildeo bizarras que solapam mais do que qualquer outra coisa o estereoacutetipo
moderno dos romanos como convencionais e serenos Exemplo disso na festa da Lupercaacutelia em fevereiro homens
jovens corriam nus pela cidade accediloitando qualquer mulher que encontrassem pela frente (trata-se da mesma festa
recriada na cena de abertura da peccedila Juacutelio Ceacutesar de Shakespeare) Ver BEARD SPQR uma histoacuteria da Roma
Antiga 2017 p 104
340 AYMARD AUBOYER Roma e Seu Impeacuterio Volume V As Civilizaccedilotildees da Unidade Romana (Fim) A Aacutesia
Oriental do Iniacutecio da Era Cristatilde ao Final do Seacuteculo II 1994 p 64-65 CORNELL Tim MATTHEWS John
Frederick A Civilizaccedilatildeo Romana Barcelona Folio 2008 p 97
341 Neste aspecto em particular o meio teoloacutegico diverge de posiccedilatildeo possivelmente devido a inclinaccedilatildeo do
pesquisador em ponderar aspectos filosoacuteficos eou ideoloacutegicos tanto do passado quanto do presente para a eacutepoca
(Seacuteculo II) em anaacutelise Por exemplo Meeks entende que as caracteriacutesticas da moralidade estabelecida entre os
cristatildeos jaacute possuiacuteam forte ascendecircncia em meio a setores da sociedade Romana em contraposiccedilatildeo Daniel-Rops
atesta que a moralidade de origem cristatilde constituiacuteda atraveacutes dos Seacuteculos I ao IV natildeo encontra antecedentes agrave altura
que possam ser considerados como paralelos realmente orientativos haacute esta Ver MEEKS As Origens da
Moralidade Cristatilde 1997 p 9-24 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 240-242
81
ressaltar que Justino em seus tratados apologeacuteticos procurou incansavelmente defender seu
grupo como ldquoseres transformadosrdquo que abandonaram as praacuteticas repugnantes e agora satildeo
portadores (possuidores) de uma alta qualificaccedilatildeo moral Quanto a esse aspecto Walde afirma
Justino tambeacutem deu ecircnfase agrave casta conduta dos cristatildeos em resposta a acusaccedilotildees de
conduta imoral durante o culto Para mostrar como isso natildeo era verdade ele contou a
histoacuteria de um homem que foi perguntado por um cirurgiatildeo que o queria fazecirc-lo de
eunuco para provar que os cristatildeos natildeo praticam promiscuidade O pedido foi negado
porque o homem escolheu ficar solteiro e seguir seus companheiros cristatildeos342
Apoacutes utilizarmos desse exemplo de teor absolutamente imperativo ndash por sua estrutura
excecircntrica ateacute mesmo junto a um nicho de caraacuteter sociorreligioso considerado peculiar em
suas caracteriacutesticas Entendemos que ainda se faz necessaacuterio apresentar junto a essa discussatildeo
uma abordagem que compreenda a realidade que procuramos descrever Encontramos esse
complemento junto ao trabalho de Walde Este por meio de uma entrada que nos indica agrave leitura
de alguns fatos apresenta-nos uma das teacutecnicas utilizadas por Justino em sua construccedilatildeo
literaacuteria Walde reconhece que o Apologista ao mencionar a situaccedilatildeo religiosa de seu cotidiano
aborda de forma contundente o desgaste entre os praticantes da nova feacute (cristatildeos) e os
adoradores do ldquopanteatildeordquo (natildeo-cristatildeos) Os exemplos descritos por Walde satildeo similares aos
usados por Justino e esta similaridade nos leva novamente a concentrarmos nosso foco agrave uma
accedilatildeo comparativa de estados opostos entre si ou seja dialeacuteticos Sendo assim torna-se notoacuterio
desde o iniacutecio do trabalho de Walde a aplicaccedilatildeo de uma metodologia comparativa e a
diferenciaccedilatildeo de casos tornando-se uma espeacutecie de ldquoconclusatildeordquo definitiva para esse processo
Uma das taacuteticas apologeacuteticas de Justino era contrastar o que os cristatildeos eram
falsamente acusados e castigados com que os romanos faziam com impunidade Por
exemplo os cristatildeos eram acusados de matar crianccedilas em seus cultos e comecirc-las
depois Justino lembrava que os adoradores de Saturno se entregavam a matar e beber
sangue e outros pagatildeos que jogavam sangue de homens e animais em seus iacutedolos Os
cristatildeos eram acusados de imoralidade sexual mas eram seus criacuteticos Justino dizia
quem imitavam ldquoJuacutepiter e os outros deuses na sodomia e relaccedilotildees pecadoras com
mulheres343
342 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4
343 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4 grifo nosso
82
Ao analisarmos o texto de Walde percebemos que este utiliza-se do verbo ldquocontrastarrdquo
em sentido intransitivo para salientar com bastante preponderacircncia uma forma calculada de
oposiccedilatildeo e apresentar uma literal contrariedade de estados em essecircncia Logo conseguimos
notar a diferenccedila entre estes Eacute impressionante aos nossos olhos a relaccedilatildeo que Walde estabelece
em seu trabalho sobre o termo Verdade (mesmo que indiretamente) sendo este vocaacutebulo
utilizado como habilitador de uma caracteriacutestica de cunho existencial que passa a ser
manifestada pelos cristatildeos Novamente citamos este teoacutelogo em nossa busca de clarificar ainda
mais essa base indicativa que para noacutes eacute entendida como uma evidecircncia concreta nesta
construccedilatildeo conceitual Walde diz ldquoEm primeiro lugar disse Justino os cristatildeos demonstravam
sua honestidade por natildeo mentir quando em julgamento Por serem pessoas da verdade eles
confessariam sua feacute ateacute a morte Eles amavam a verdade mais que a vidardquo344
Portanto Walde tem razatildeo em afirmar que a atitude ldquode viver segundo a verdade era
um exemplo de mudanccedila provocado nas vidas das pessoas seguindo sua conversatildeordquo345 Desta
forma compreendemos por meio de uma avaliaccedilatildeo baseada em medidas factiacuteveis que haacute
possibilidade de se ser cristatildeo na concepccedilatildeo de Justino ndash como tambeacutem na de Tertuliano
Euseacutebio Walde e outros ndash passava por um proceder de vida que designava com eloquecircncia
atributos de diferenciaccedilatildeo no contexto social ativo da cultura a qual esta pessoa estava inserida
Esta separaccedilatildeo de maneira simples e evidente se condicionava no testemunho de vida dos fieacuteis
na esfera puacuteblica Cabe-nos ainda neste contexto colocarmos a frase de Falls citada por Walde
este diz ldquoesta mudanccedila chegou a ser conhecida como lsquoa triunfal canccedilatildeo dos apologistasrsquordquo346
Encerramos aqui nosso desenvolvimento deste ponto distintivo referente agravequilo que
poderiacuteamos denominar de ldquodialeacutetica de Justinordquo Para isso utilizamos de um texto da I
Apologia no qual Justino enfatiza esta mudanccedila essencial entre as vidas humanas que
caracterizamos como cristatildeos e natildeo-cristatildeos Em seguida classificamos agrave realidade cristatilde
como algo superior atraveacutes do meacutetodo de comparaccedilatildeo que tanto utilizamos nesta seccedilatildeo
confrontando os opostos em uma relaccedilatildeo que atesta suas diferenccedilas as quais satildeo consideradas
por Justino como irreconciliaacuteveis
Antes noacutes nos compraziacuteamos na dissoluccedilatildeo agora abraccedilamos apenas a temperanccedila
antes nos entregaacutevamos agraves artes maacutegicas agora nos consagramos ao Deus bom e
ingecircnito antes amaacutevamos acima de tudo o dinheiro e as rendas de nossos bens
344 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4 grifo nosso
345 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4 grifo nosso
346 FALLS The Fathers of the Church 1948 apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4
83
agora colocamos em comum o que possuiacutemos e disso damos uma parte para todo
aquele que estaacute necessitado antes noacutes nos odiaacutevamos e nos mataacutevamos mutuamente
e natildeo compartilhaacutevamos o lar com aqueles que natildeo pertenciam agrave nossa raccedila pela
diferenccedila de costumes agora depois da apariccedilatildeo de Cristo vivemos todos juntos
rezamos por nossos inimigos e tratamos de persuadir os que nos aborrecem
injustamente a fim de que vivendo conforme os belos conselhos de Cristo tenham
boas esperanccedilas de alcanccedilar conosco os mesmos bens que esperamos de Deus
soberano de todas as coisas347
O objetivo deste capiacutetulo foi apresentar de modo sinteacutetico o conceito acerca dos
cristatildeos no periacuteodo do Seacuteculo II dC Tambeacutem arguimos com clareza sobre a tentativa de
clarificarmos a situaccedilatildeo daqueles que natildeo eram pertencentes a este grupo os quais procuramos
mediante a aplicaccedilatildeo de uma distinccedilatildeo elementar defini-los com o termo de natildeo-cristatildeos
poreacutem acima de tudo buscamos apresentar por meio de sinais constitutivos e fatos
historiograacuteficos348 quais eram os predicativos que formulavam esta definiccedilatildeo ou melhor
dizendo quais eram os qualificadores que definiam aqueles que eram seguidores da Verdade
na concepccedilatildeo de Justino e outros349
No proacuteximo capiacutetulo buscaremos vislumbrar o filoacutesofo Justino Apresentaremos um
conciso relato de sua histoacuteria na filosofia procurando abordar de maneira satisfatoacuteria quais
foram suas principais influecircncias dentro desse segmento Trabalharemos de forma especial na
tentativa de apontar qual foi a sua definiccedilatildeo sobre o uso da razatildeo para os planos salviacuteficos de
Deus para a humanidade sendo este em nosso entendimento mais um dos fatores determinantes
para a complementaridade de nosso exame sobre a definiccedilatildeo da Verdade junto a I Apologia de
Justino o Maacutertir
347 JUSTINO I Apologia XIV 2-3
348 DANIEacuteLOU MARROU Nova histoacuteria da Igreja V I Dos Primoacuterdios a Santo Gregoacuterio Magno 1966
349 Danieacutelou e Marrou definem agrave Euseacutebio e Lactacircncio como apologistas de Constantino dando a entender que
uma poliacutetica de reeducaccedilatildeo na esfera sociorreligiosa do Impeacuterio Romano se desenvolveu mediante uma nova
abordagem dos fatos do passado no caso em especifico (I Apologia de Justino e seu cenaacuterio social) os imperadores
do passado deixaram de ser ldquoendeusadosrdquo passando a serem reconhecidos como tiranos e deacutespotas aos quais o
processo de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos tornou-se em um de seus principais atos de ignomiacutenia Ver DANIEacuteLOU
MARROU Nova histoacuteria da Igreja V I Dos Primoacuterdios a Santo Gregoacuterio Magno 1966 p 106
84
3 A VERDADE REVELADA Agrave RAZAtildeO A FILOSOFIA E SEU CONTEXTO NA
PERSPECTIVA DE JUSTINO MAacuteRTIR
No princiacutepio ele criou o gecircnero humano racional capaz de escolher a verdade e
praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus
pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade Se algueacutem natildeo
crecirc que Deus se preocupe com essas coisas ou teraacute que confessar com sofismas que
natildeo existe ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como
uma pedra350
Partindo do capiacutetulo XXVIII da obra base de Justino para este trabalho eacute que
desenvolvemos o capiacutetulo III desta pesquisa no qual apresentamos um cenaacuterio diferenciado
sobre a figura humana de nosso autor O cristatildeo Justino o qual podemos registrar de forma
variaacutevel mediante seu ldquomeacutetierrdquo amplo estaacute classificado entre os Pais Apologistas elencado
como um seleto articulador da importante cidade de Roma catalogado como um dos mais
significativos maacutertires do Seacuteculo II mas tambeacutem estaacute sem nenhuma sombra para duacutevidas
definido nos compecircndios histoacutericos como um expressivo filoacutesofo do meio cristatildeo
Este aspecto pontual referente a intelectualidade de Justino por jaacute ter sido
consideravelmente explorado natildeo eacute mais uma novidade no meio acadecircmico351 no entanto esta
questatildeo ainda pode ser desenvolvida e ateacute mesmo arquitetada para fins que visam estabelecer
pontos de conexatildeo entre temas diversos os quais incluem o tema e agrave objetividade central
propostos para esta pesquisa
Podemos constatar por meio da anaacutelise do desenvolvimento da expressatildeo intelectual
de um filoacutesofo ou de uma escolalinha filosoacutefica uma ampla polissemia locucional e ateacute mesmo
perceber casos opostos quando ocorrem no estabelecimento de algumas propriedades termos
diferentes que evoluiacuteram para uma mesma fonologia construindo desta maneira tambeacutem casos
de homoniacutemia dentro da manifestaccedilatildeo filosoacutefica352 Deste modo torna-se possiacutevel ndash e ateacute
mesmo necessaacuterio ndash direcionar o caraacuteter conceitual contido em algumas expressotildees filosoacuteficas
quando estas satildeo analisadas visando estabelecer uma direccedilatildeo que busque esclarecer
determinado contexto ou cenaacuterio Assim por este meio podemos salientar que assaz entre noacutes
350 JUSTINO I Apologia XXVIII 3-4a grifo nosso
351 Ver HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 27-32
352 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
85
fortes indiacutecios que Justino desenvolveu uma postura robustamente teoloacutegica mediante ter
formado sua tese atraveacutes da ldquodiversidade filosoacuteficardquo da qual era apreciador353
No caso de nosso trabalho em especiacutefico notamos a necessidade da integraccedilatildeo de
indicadores que nos orientem agrave amplitude da filosofia de Justino em nossa busca da definiccedilatildeo
da que era agrave Verdade para este Apologista Esta amplitude natildeo visa se desviar de modelos
tradicionais nem propriamente somar a eles mas antes disso entendemos ser necessaacuterio
rejeitar a ideia de que trabalhamos com um conceito formado precariamente sem um
fundamento soacutelido o qual poderiacuteamos considerar como um mero estereoacutetipo sem originalidade
Ao contraacuterio este modelo encontrado em Justino natildeo se baseia em preconceitos mas sim num
corpo intelectual de ldquotalento respeitaacutevel ampla leitura e memoacuteria enormerdquo354 algo que eacute notoacuterio
na literatura de Justino e exposto ateacute entatildeo com uma consideraacutevel parcela de originalidade355
Neste exposto algumas interrogaccedilotildees nos surgem especialmente quando tentamos
descrever (definir) o filoacutesofo Justino e sua contribuiccedilatildeo Aqui esboccedilamos alguns destes
questionamentos Quem era Justino o filoacutesofo Quais foram as principais influecircncias que
Justino recebeu na filosofia Qual resultado se percebe na teologia do autor devido a esta
influecircncia Por fim existe um condicionante (entenda-se uma caracteriacutestica inata) no ser
humano que explique tal interesse de Justino em expressar seu conceito
31 INTRODUCcedilAtildeO AO CAPIacuteTULO XXVIII
O capiacutetulo XXVIII da I Apologia eacute de grande importacircncia para esta pesquisa
inaugurando por assim dizer um significativo espaccedilo de reflexatildeo na busca de alcanccedilarmos o
desfecho que almejamos Num breve conjunto de argumentos os quais se concentram sobre
um rigor metodologicamente dedutivo o capiacutetulo XXVIII nos eacute apresentado pelo Apologista
de modo perspiacutecuo onde a clareza de suas proposiccedilotildees salientam seus objetivos os quais
formulam-se mediante as propriedades de caraacuteter racionalista que ele apresenta Aqui notamos
uma aguccedilada aplicaccedilatildeo por parte do autor agravequilo que podemos chamar de uma postura
construtiva para com a estrutura inteligiacutevel do ser criado agrave imagem e semelhanccedila de Deus
353 WALDE 2000
354 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 715
apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 1
355 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948
86
Seguindo a argumentaccedilatildeo de Frangiotti podemos afirmar baseados nesse espaccedilo (cap XXVIII)
que Justino entendia que ldquoO homem eacute racional e livrerdquo356
Neste capiacutetulo (XXVIII) Justino desenvolve uma condensada e pragmaacutetica
abordagem envolvendo os quatro versiacuteculos que o compotildee Diante disso em momento algum
nossa argumentaccedilatildeo visa exaurir as diversas possibilidades contextuais ndash seja num campo
hermeneuticamente literal anaacutelogo ou metafoacuterico ndash do trabalho do Apologista mas apenas
organizaacute-lo de maneira ativa por meio de sua divisatildeo (versos) a um quadrante que possibilite
o interesse deste exame o qual se constroacutei na tentativa de aproximarmos as interpretaccedilotildees da
definiccedilatildeo de Verdade que detectamos em Justino de nosso interesse teoloacutegico
Neste item em especiacutefico (31) que visa uma abordagem introdutoacuteria desenvolvemos
em especial uma aproximaccedilatildeo entre os dois primeiros versiacuteculos do capiacutetulo onde priorizamos
apresentar sua estruturaccedilatildeo visando desta forma o aperfeiccediloamento destes pontos para
estabelecermos uma sentenccedila axiomaacutetica a qual eacute esboccedilada pelo autor no terceiro versiacuteculo do
relato Quanto ao primeiro versiacuteculo
Entre noacutes o priacutencipe dos maus democircnios se chama serpente satanaacutes diabo ou
caluniador como podeis ver caso desejardes averiguar isso atraveacutes de nossas
Escrituras Ele e todo o seu exeacutercito juntamente com os homens que o seguem seraacute
enviado ao fogo para ser castigado pela eternidade sem fim coisa que foi de antematildeo
anunciada por Cristo357
A primeira impressatildeo para um leitor moderno dessa descriccedilatildeo eacute de surpresa ou ateacute
mesmo de espanto poreacutem o verso devidamente encaixado no relato que o antecede o explica
e ateacute mesmo o suaviza As palavras de Justino satildeo absolutamente biacuteblicas e estatildeo enquadradas
em um absoluto arcabouccedilo escrituriacutestico Honestamente devemos salientar que nada lhe falta
como meacutetodo para que possamos empregar o tiacutetulo de ldquoortodoxordquo em seu embasamento
teoloacutegico358 Pois seus termos empregados tais como o ldquopriacutenciperdquo359 a chamada ldquoserpenterdquo360
aleacutem das demais terminologias como ldquosatanaacutesrdquo361 ldquodiabordquo eou ldquocaluniadorrdquo362 apresentam-se
356 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 22
357 JUSTINO I Apologia XXVIII 1
358 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948
359 Ver Joatildeo 1231 1430
360 Ver Gecircnesis 31 2 Coriacutentios 113 Apocalipse 129
361 Ver Mateus 410 Atos dos Apoacutestolos 2618
362 Ver Mateus 411 Atos dos Apoacutestolos 1310
87
neste cenaacuterio apologeacutetico como evidecircncias elementares extraiacutedas da Escritura Sagrada e
aplicadas em uma construccedilatildeo dialeacutetica sendo estas ainda vinculadas por Justino como uma
sentenccedila arbitral agravequeles que estatildeo sendo expostos e julgados pelo Apologista ndash caracteriacutestica
literaacuteria que notamos ser amplamente utilizada por Justino na afirmaccedilatildeo de suas convicccedilotildees363
Aqui fomenta-se uma configuraccedilatildeo de ordem proacutepria a qual apresenta Justino como
um filoacutesofo que pode ser definido como pertencente a um grupo que adota uma postura mais
claacutessica de linha platocircnica ndash algo que seraacute mais bem desenvolvido a seguir ndash onde atributos
que caracterizem causa e efeito que partindo de um suposto ldquomundo sensiacutevelrdquo364 passam a
somar caracteriacutesticas evidentes em sua construccedilatildeo textual sendo o teacutermino do capiacutetulo XXVII
uma expliacutecita manifestaccedilatildeo de fatos que atestam essa correlaccedilatildeo tatildeo dura mas tambeacutem
necessaacuteria no processo de evidenciaccedilatildeo proposto por Justino
Mas eacute preponderante para natildeo se dizer essencial que a loacutegica do Apologista se baseia
em artifiacutecios nucleares pois quem diz ldquocaso desejardes averiguar isso atraveacutes de nossas
Escriturasrdquo365 carrega consigo uma tonalidade de patentes e natildeo de meras suposiccedilotildees porque
a Verdade como elemento distinguiacutevel e diferencial eacute criteacuterio identificaacutevel na leitura de Justino
junto agravequilo que o mesmo salienta como sua (no caso do texto ldquonossardquo) ldquoEscriturardquo366 ou seja
sua preeminecircncia espiritual o que na descriccedilatildeo do Apologista deve ser entendida como uma
real vantagem distintiva sendo uma latente superioridade existencial para os homens que a
possuem Este ponto de prevalecircncia seraacute melhor abordado no uacuteltimo capiacutetulo desta pesquisa
Uma importante observaccedilatildeo ainda nos cabe fazer na parte final do primeiro verso
Antes mesmo de ocorrer os eventos conciliares de Niceacuteia eou Constantinopla a ecumenicidade
do Credo parece jaacute se caracterizar em uma forma de universalidade e um confessar da missatildeo
apostoacutelica jaacute anteriormente registrada no compecircndio biacuteblico se faz reverberar no ideaacuterio de
Justino Iniciamos nossa leitura do testemunho Apostoacutelico junto agrave estrutura biacuteblica O apoacutestolo
Judas escreveu ldquoele tem guardado sob trevas em algemas eternas para o juiacutezo do grande Dia
[] satildeo postas para exemplo do fogo eterno sofrendo puniccedilatildeordquo (Judas 6b7b) Nesta passagem
encontramos bases que se conformam ao relato de Justino que enfatiza que o proacuteprio Cristo as
havia anunciado367 Prosseguindo vemos que o Credo redigido anos depois iraacute afirmar o mesmo
363 DROBNER Manual de Patrologia 2008
364 SEVERINO A Filosofia Antiga 1984 p 84
365 JUSTINO I Apologia XXVIII 1
366 JUSTINO I Apologia XXVIII 1
367 Ver Joatildeo 1248
88
quando diz ldquoe viraacute novamente em gloacuteria a julgar os vivos e os mortosrdquo368 Natildeo nos resta duacutevidas
que a missatildeo apostoacutelica gerou a doutrina e consolidou o Credo369 mas passagens de ordem
Patriacutestica como esta salientam que o mesmo (Credo) tambeacutem balizou sua eficiecircncia atraveacutes da
ecircnfase da atuaccedilatildeo de homens que pela feacute natildeo sucumbiram agraves dificuldades370 pelo contraacuterio
salientaram com seu testemunho que estas propriedades de ordem atemporal miacutestica e
existencial foram e ainda eram a proacutepria forma da Verdade em meio aos homens
Quanto ao segundo verso eacute necessaacuterio algumas observaccedilotildees iniciais especialmente
em relaccedilatildeo ao ldquoteorrdquo teoloacutegico que Justino desenvolve nesta pequena porccedilatildeo a qual apresenta
dificuldades interpretativas consideraacuteveis junto ao acircmbito dogmaacutetico ndash independentemente da
estrutura confessional que a examine ndash sugerindo-nos desta forma apresentarmos uma sucinta
argumentaccedilatildeo antes de abordaacute-lo Entendemos que esse procedimento se faz necessaacuterio para
que natildeo aja em nossa construccedilatildeo conceitual-programaacutetica (caps XXIII-XXX) um ponto natildeo
devidamente abordado
Variados debates podem surgir a partir da ecircnfase destacada por Justino (verso 2 do
cap XXVIII) porque afirmaccedilotildees desta espeacutecie fomentam diversos tipos de interesses de ordem
miacutestica no caso em questatildeo (texto de Justino) podem inclusive alavancar questotildees
soterioloacutegicas por exemplo Algumas anaacutelises ldquomodernasrdquo371 se esforccedilam atualmente em
descrever a figura de Justino como ocupante empregador defensor ou ateacute mesmo praticante
de uma ou outra escola teoloacutegica do cenaacuterio cristatildeo atual Entretanto optamos por natildeo abranger
este e outros contextos nesta pesquisa por entendermos que estes assuntos e temas natildeo se
envolvem diretamente com o ponto central de nosso trabalho Aleacutem de reconhecermos outra
dificuldade que nos parece ser muito significativa neste tipo de situaccedilatildeo a de se incorrer no
grave risco de se cometer um anacronismo textual histoacuterico e teoloacutegico372 e desta forma
sugerir um teoacuterico dilema teoloacutegico que para Justino e seus contemporacircneos possivelmente
natildeo era nem sequer um problema doutrinal
Passando agora efetivamente ao texto este diz ldquoNa verdade a paciecircncia que Deus
mostra em natildeo fazecirc-lo imediatamente tem como causa o seu amor pelo gecircnero humano pois
ele prevecirc que alguns se salvaratildeo pela penitecircncia entre os quais alguns que talvez ainda natildeo
368 CREDO NICENO-CONSTANTINOPOLITANO 7ordm Artigo
369 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
370 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
371 Ver SANTOS Justino o Maacutertir ndash Calvinista ou Arminiano 2014 Disponivel em
httpswwwgospelprimecombrjustino-martir-calvinista-arminiano
372 VIRKLER Hermenecircutica Avanccedilada Princiacutepios e Processos de Interpretaccedilatildeo Biacuteblica 2001
89
tenham nascidordquo373 Iniciamos esta parte de um ponto elementar da teologia de Justino374 ao
qual abordaremos mais detalhadamente a frente contudo compreendemos que sua aplicaccedilatildeo
neste item natildeo eacute apenas orientativa mas tambeacutem qualitativa para o restante da argumentaccedilatildeo
Um fato muito criativo do pensamento filosoacutefico de Justino se apresenta quando o
Apologista passa a enfatizar a existecircncia do Logos como o Cristo revelado Isto para Justino eacute
uma asserccedilatildeo de valores pontuais em uma escala ascendente que com facilidade se encontram
e se envolvem em sistemas transcendentais Wachholz elucida a abrangecircncia do termo Logos
dizendo o seguinte
O termo Logos (grego) quer dizer ldquopalavrardquo e tambeacutem ldquorazatildeordquo Segundo os gregos
nossa mente consegue compreender por que participa de alguma maneira do Logos
ou razatildeo universal Justino assume este discurso afirmando que em Jesus Cristo esse
Logos que se fez carne Jesus eacute fonte de todo o conhecimento375
Torna-se necessaacuterio entendermos a notoriedade que Justino aplica agrave onipotecircncia
onisciecircncia e preexistecircncia de Cristo em sua atuaccedilatildeo salviacutefica a partir deste ponto questotildees
(atributos divinos) as quais devemos considerar como absolutamente factiacuteveis no entendimento
do Apologista pois satildeo atributos da Escritura Sagrada ou seja satildeo consideradas evidecircncias
inquestionaacuteveis da vontade Divina (ativa e passiva) na leitura de Justino Poreacutem o ponto de
repouso deste exame se concentra na primeira parte do texto onde novamente Justino enfatiza
sua clarificaccedilatildeo de um estado de conformidade entre ideias e objetos (Verdade)
Mesmo o pensamento de Justino estando alavancado a uma espeacutecie de meacuterito para a
salvaccedilatildeo eacute evidente que sua afirmaccedilatildeo a soberania de Deus ndash a quem adjetiva como
ldquopacienciosordquo ndash caracteriza que esta benesse estaacute intimamente unida ao contexto temaacutetico que
podemos definir como amor de Deus O relato Apostoacutelico a Igreja em Corinto jaacute registrava a
seguinte afirmaccedilatildeo ldquoPorque todas as coisas existem por amor de voacutesrdquo (2 Coriacutentios 415a)
Carver diraacute sobre essa passagem que ldquoA expressatildeo tudo isso eacute por amor de voacutes explica o
acreacutescimo de convosco no versiacuteculo anterior O sofrimento de Paulo eacute um chamado ou uma
daacutediva que ele compartilha com toda a igrejardquo376 Da mesma forma notamos que Justino sofria
373 JUSTINO I Apologia XXVIII 2 grifo nosso
374 DROBNER Manual de Patrologia 2008
375 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 60
376 CARVER In A Segunda Epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006 p 427
90
por este grupo chamado a viver a Verdade o qual neste quadro eacute pintado como a resistecircncia
que manifesta esse amor imerecido e incondicional
Na descriccedilatildeo o Apologista nos parece transparecer com certa naturalidade seu intuito
em tentar provar algo como tambeacutem busca possivelmente sanar um erro (o do porquecirc este
juiacutezo de Deus ainda natildeo se manifestou) No entanto esse cenaacuterio eacute aplicado como uma forma
de ldquotranscriccedilotildeesrdquo que satildeo provenientes das afirmaccedilotildees e revelaccedilotildees inquestionaacuteveis para a
percepccedilatildeo de Justino por estarem devidamente relacionadas aos misteacuterios do Evangelho ao
qual ele servia Inclusive Justino claramente submetia sua razatildeo aos enigmas que a feacute em Cristo
natildeo lhe elucidava satisfatoriamente mas tambeacutem natildeo abalava sua convicccedilatildeo nesta feacute que ldquonatildeo
soacute eacute boa e santa em si mesma mas acima de tudo eacute a uacutenica religiatildeo verdadeirardquo377 Por fim
apontamos neste contexto (verso 2) aquilo que com clareza descreve esta certeza teoloacutegica
ancorada no Apologista que de forma contumaz declara que ldquoNa verdaderdquo378 algo se revelava
e condensava-se nos coraccedilotildees daqueles que o recebiam
Apoacutes descrevermos de maneira introdutoacuteria parte de nossa periacutecope base passamos a
uma abordagem sinteacutetica de uma faceta importantiacutessima de nosso autor para a construccedilatildeo do
restante desta pesquisa Comeccedilamos de imediato a elaborar uma descriccedilatildeo do filoacutesofo Justino
apresentando um resumo de sua jornada no mundo da ldquosabedoriardquo helecircnica descrevendo quais
foram suas principais influecircncias neste meio e quais desiacutegnios esta ascendecircncia deixou em sua
teologia
32 O FILOacuteSOFO JUSTINO
Os acontecimentos relacionados agrave vida de Justino nos direcionam ndash podemos ateacute
mesmo dizer que incontestavelmente nos norteiam ndash para um mesmo ponto de convergecircncia
independentemente da aacuterea ou fase que procuremos abordar sobre esta Desde cedo ateacute o fim
de sua jornada ministerial Justino nos apresentaraacute influecircncias significativas do meio intelectual
ao qual havia pertencido desde sua juventude e ao qual nunca abandonou pelo contraacuterio fez
deste seguimento o ponto principal de irradiaccedilatildeo de sua teologia379 tornando-o necessariamente
uma peccedila-chave para agrave compreensatildeo de suas obras
Este ponto de equiliacutebrio na vida de Justino se daacute principalmente no fato de este ser
um filoacutesofo ao qual podemos catalogar como claacutessico em sua formaccedilatildeo (de origem helecircnica)
377 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 47
378 JUSTINO I Apologia XXVIII 2 grifo nosso
379 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
91
natildeo necessariamente por enquadrar-se ldquono modo de pensar e exprimir os pensamentos que
surgiu especificamente com os gregosrdquo380 mas especialmente na virtude apresentada por sua
filosofia que desde cedo natildeo se pautou por um caraacuteter meramente especulativo sem um fim
praacutetico em si mesma mas sim notabiliza-se pela ldquobusca da sabedoria e da verdaderdquo381 como
estados beneacuteficos disponiacuteveis para serem procurados conhecidos e vivenciados por todos os
homens
O primeiro historiador da Igreja nos comprova tal fato assinalando o claacutessico teor
filosoacutefico existente no Apologista os termos de Euseacutebio muito nos dizem a respeito do
ministeacuterio de Justino
Tambeacutem por este tempo Justino sincero amante da verdadeira filosofia continuava
ainda ocupado em exercitar-se nas doutrinas dos gregos [] Mas sobretudo foi nesta
eacutepoca que floresceu Justino Com estofo de filoacutesofo era embaixador da palavra de
Deus e lutava pela feacute com seus escritos382
A doutrina cristatilde encontrada em Justino ndash sua compreensatildeo ativa sobre o que era o
cristianismo como agrave religiatildeo salviacutefica do verdadeiro e uacutenico Deus aos homens ndash foi recebida
e necessariamente desenvolvida por ele atraveacutes de um filtro ou podemos ateacute mesmo dizer por
uma forma de catalisador Este ensino constituiacutea-se de diversas mateacuterias filosoacuteficas nas quais
a diversidade conceitual e estiliacutestica das muitas escolas sapienciais da eacutepoca foram agregadas
ao experimento (de caraacuteter circunspecto) do Apologista383 Notamos deste modo em muitos
aspectos em particular que Justino foi exercitado a uma postura pragmaacutetica de seu tempo a
qual necessariamente o contingenciou a algumas demandas de sua ordem puacuteblica provenientes
de seu status sociorreligioso Neste aspecto a abordagem de Wachholz nos atualiza e ilumina
sobre este cenaacuterio ele diz
A cultura claacutessica pagatilde incluiacutea obra e pensamento de Platatildeo Aristoacuteteles e dos estoicos
que eram muito admirados Rejeitar tais pensamentos era assumir posiccedilatildeo de
ignoracircncia Para os cristatildeos por outro lado aceitar toda esta carga de cultura poderia
tambeacutem significar concessatildeo ao paganismo e comeccedilo de uma nova idolatria Diante
380 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995 p 21
381 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 278
382 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 3 11 8
383 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
92
desta alternativa somente havia dois caminhos possiacuteveis oposiccedilatildeo radical entre feacute
cristatilde e cultura pagatilde ou postura natildeo tatildeo negativa em relaccedilatildeo agrave cultura pagatilde384
A histoacuteria nos testifica que Justino de maneira evidente foi um baluarte em sua postura
de proclamador e representante da feacute cristatilde mais ainda portou-se de maneira excepcional
(como testificam seus procedimentos) no exerciacutecio de sua crenccedila fosse isso relacionado ao seu
foro iacutentimo (Igreja) ou no puacuteblico (social)
Desta forma eacute interessante e necessaacuterio reconhecer que Justino se apresentaraacute como
uma espeacutecie de precursor entre aqueles que eram oriundos da filosofia e que ldquohabitavamrdquo
especialmente em meio agrave cultura helecircnica385 contudo natildeo era o uacutenico Assim estes (filoacutesofos
convertidos ao cristianismo) passando agora a praticar os novos haacutebitos e costumes (modus
vivendi) recebidos do cristianismo natildeo abandonaram de forma absoluta suas praacuteticas cotidianas
do passado ndash ou poderiacuteamos tambeacutem chamaacute-las de ordinaacuterias ndash as quais eram vivenciadas
dentro de um sistema pedagoacutegico da filosofia por assim dizer Isso ocorreu simplesmente
porque tais accedilotildees natildeo requeriam tal censura devido a sua natildeo contrariedade com a Doctrina
Sanctorum que orientava os cristatildeos386 Obviamente tais disposiccedilotildees eram amplamente revistas
e reformuladas com um vieacutes cristatildeo embora mantendo uma estrutura didaacutetica proacutepria e ateacute
mesmo peculiar387 pois na praacutetica estes novos mestres cristatildeos agora ensinavam ldquoexatamente
como os filoacutesofos mas em conformidade com Cristordquo388
Vale-nos ressaltar ainda que essa postura de adaptaccedilatildeo dos convertidos do paganismo
para o cristianismo se desencadeou em muitos segmentos da realidade social do periacuteodo389
especialmente naqueles que se identificavam com as ciecircncias da eacutepoca Indiscutivelmente
nisto Justino se destacou pois seus ldquoconhecimentos filosoacuteficos eram muito profundosrdquo390
Neste ponto novamente recorremos a um registro de Wachholz que nos descreve com clareza
este processo de identificaccedilatildeo na figura de Justino
384 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 58
385 Alguns pesquisadores apresentam Aristides de Atenas como o primeiro filoacutesofo (Grego) propriamente
convertido ao cristianismo a escrever uma obra apologeacutetica Entretanto faltam evidecircncias mais robustas para
sustentar tal afirmaccedilatildeo Ver INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p
50-51
386 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
387 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991
388 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
389 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997
390 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47
93
Por outro lado houve tambeacutem aqueles que defenderam uma postura ldquoconciliatoacuteriardquo
entre feacute cristatilde e cultura pagatilde Justino (110-165) foi um destes representantes que natildeo
deixou de ser filoacutesofo mas passou a dedicar-se em fazer ldquofilosofia cristatilderdquo abrindo
caminho para que o cristianismo pudesse reclamar tambeacutem para si a cultura claacutessica
apesar de ser cultura pagatilde391
Sendo o registro histoacuterico uma peccedila fundamental na elaboraccedilatildeo e construccedilatildeo
conceitual desta pesquisa entendemos ser emblemaacutetico trazer-se agrave tona alguns registros de
pesquisadores que atestam entre si acometimentos similares isso se daacute quando mencionam
pontos que caracterizam a figura de Justino como um distinto representante da Filosofia
mediante sua penetraccedilatildeo investigaccedilatildeo e conclusatildeo dos fatos algo que era ndash como se viu
anteriormente ndash relevante na busca de respostas junto ao meio sociorreligioso ao qual estava
inserido
Deste modo dando seguimento ao nosso intento de esclarecer historicamente um
pouco mais a respeito deste personagem cristatildeo oriundo da filosofia grega392 eacute que registramos
o seu desenvolvimento a parti das palavras de Walde ldquoJustino continuou usando a capa que o
identificava como filoacutesofo e ensinou estudantes em Eacutefeso e depois em Romardquo393 O relato ainda
se estende sobre a pesquisa de Walde poreacutem agora registrando o pensamento de Schaff este
diz ldquoEle havia adquirido cultura claacutessica e filosoacutefica consideraacutevel antes de sua conversatildeo e
entatildeo a fez ficar subordinada a defesa da feacuterdquo394 Ainda sobre esta esteira agregamos outras duas
elaboraccedilotildees A primeira estaacute no trabalho de Xavier que se baseia no pensamento de Fluck E
somado a ela encaixamos a siacutentese de Wachholz sobre Justino Ambos convencionam ideias
similares quando retratam o Apologista e por consequecircncia acabam por se moverem
metodologicamente na mesma direccedilatildeo
Em sua caminhada cristatilde ensinou estudantes em Eacutefeso e chegou a Roma em 150 dC
onde fundou uma escola filosoacutefica debatendo com natildeo-cristatildeos tanto pagatildeos quanto
judeus ou hereges em defesa do cristianismo Para Justino o cristianismo era a
391 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 59
392 Eacute importante que se diga que a Filosofia (a qual no acircmbito do conceito moderno eacute entendida como uma ciecircncia
da aacuterea de estudos Humanos) permaneceu completamente associada a consciecircncia de Justino durante todo o
periacuteodo de sua atuaccedilatildeo teoloacutegica Partindo-se do fato de que a vida de Justino se encerrou no martiacuterio podemos
concluir que de sua conversatildeo ateacute sua morte nunca houve um ldquoJustinordquo que tambeacutem natildeo fosse um filoacutesofo Ver
HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29-30
393 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 1
394 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 715
apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 1
94
ldquoverdadeira filosofiardquo sendo que os cristatildeos eram ldquoos autecircnticos herdeiros da
civilizaccedilatildeo greco-romanardquo395
Tornou-se cristatildeo aos 25 anos de idade apoacutes ter estudado filosofia o que o levou a
fazer uma siacutentese entre teologia e filosofia afirmando que a feacute cristatilde eacute a forma plena
de toda a filosofia Em sua escola em Roma ensinava entatildeo a ldquoverdadeira filosofiardquo
Boa parte de seu labor consistia em descobrir e explicar as relaccedilotildees entre o
cristianismo e a sabedoria claacutessica396
Finalizando esta seacuterie de registros cabe-nos ainda citar algumas relevantes
argumentaccedilotildees A primeira condicionada por Gonzaacutelez nos traz uma definiccedilatildeo da histoacuteria de
Justino em questotildees junto a filosofia ele diz ldquoAo se converter ao cristianismo Justino natildeo
deixou de ser filoacutesofo mas dedicou-se a fazer filosofia cristatilde e boa parte dessa filosofia
consistia em descobrir e explicar as relaccedilotildees entre o cristianismo e a sabedoria claacutessicardquo397 A
segunda elaborada por Daniel-Rops diz ldquoFoi uma fase importante para a histoacuteria do
pensamento cristatildeo que com Justino passou a ser tomado a seacuteriordquo398 Esta ecircnfase somada ao
primeiro apontamento nos afirma uma importante contribuiccedilatildeo para o meio Patriacutestico pois
trabalha com paracircmetros qualitativos referentes agrave relevacircncia da figura de Justino como
articulador filosoacutefico e sucessivamente no meio teoloacutegico como um exegeta399 nos levando a
considerar deste modo que a formaccedilatildeo dogmaacutetica em seu sentido histoacuterico passa
necessariamente por afirmaccedilotildees como esta
Portanto eacute impossiacutevel caracterizar Justino como um pensador e teoacutelogo fora da
filosofia claacutessica pois o personagem que veio a fundar escolas filosoacuteficas cristatildes (primeiro em
Eacutefeso e depois em Roma)400 deve ser compreendido como um autecircntico ldquoamante da sabedoriardquo
Neste quesito distintivo no caso de Justino em especial um agravante modal deve aqui ser
aplicado sendo que esta caracteriacutestica de caraacuteter peculiar eacute o proacuteprio processo de conversaccedilatildeo
ao cristianismo que em seu entendimento ldquoo transformou em um verdadeiro filoacutesofordquo401 arauto
395 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2009 p 32 apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da
Feacute Cristatilde 2014 p 15 grifo nosso
396 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 59 grifo nosso
397 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 91
398 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
399 Ver HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 31-32
400 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
401 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 28
95
da verdadeira sabedoria ndash peccedila final a qual Justino possivelmente exigiria como um
complemento fundamental na elaboraccedilatildeo dessa descriccedilatildeo
Dando seguimento agrave nossa construccedilatildeo ainda nos eacute necessaacuterio examinar duas questotildees
relevantes junto a postura filosoacutefica de nosso autor A primeira estaacute relacionada aos seus
pressupostos na Filosofia como aacuterea de estudo propriamente na qual o estoicismo e o
platonismo se destacam no cenaacuterio em seguida naquilo que possivelmente se tornou a principal
elaboraccedilatildeo teoloacutegica deixada como teoria por Justino a sua concepccedilatildeo do Logos Eterno
321 Estoicismo e Platonismo em Justino
Quando pesquisamos a respeito de quais seriam as principais influecircncias da filosofia
grega que poderiacuteamos encontrar em Justino logo nos saltam aos olhos duas linhas majoritaacuterias
do pensamento histoacuterico filosoacutefico e que tiveram fundamental importacircncia na formaccedilatildeo
intelectual deste Pai da Igreja Desta forma torna-se indispensaacutevel falar do estoicismo e do
meacutedio platonismo402 como elementos filosoacuteficos na vida de Justino pois a anaacutelise dessas
escolas sapienciais junto agrave construccedilatildeo de nosso objetivo de pesquisa apresenta-se como
fundamental para a compreensatildeo do cristianismo apresentado por Justino403
Nossa intenccedilatildeo nesta construccedilatildeo natildeo eacute haacute de se estabelecer um relato minucioso sobre
os aportes princiacutepios e valores filosoacuteficos de Zenon de Ciacutecio (fundador do estoicismo) nem
mesmo dos seguidores ideoloacutegicos do legado de Platatildeo os quais sustentavam no presente
periacuteodo a fase denominada de meacutedio platonismo Pelo contraacuterio visamos apenas retratar de
maneira sinteacutetica a influecircncia dessas escolas no pensamento apologeacutetico do Seacuteculo II tendo a
pessoa de Justino como alvo central e em alguns momentos ateacute mesmo exclusivo neste exame
O advento do Seacuteculo II trouxe consigo um contato mais amplo e consequentemente
tambeacutem mais vantajoso das correntes filosoacuteficas gregas para com o ocidente de uma maneira
em geral Influenciada especialmente pela administraccedilatildeo e organizaccedilatildeo do Impeacuterio Romano agrave
discussatildeo sobre a importacircncia e a manutenccedilatildeo dessas identidades intelectuais (escolas
filosoacuteficas) tornou-se muito ativa especialmente para o meio aristocraacutetico de entatildeo404 Sendo
402 O meacutedio platonismo teve seu iniacutecio no Seacuteculo I aC com Antioco de Ascalona e vai ateacute aproximadamente o
Seacuteculo II dC Entre os seus principais representantes encontram-se os nomes de Filo de Alexandria Apuleio e do
bioacutegrafo Plutarco Este recorte temporal eacute um dos pontos que justifica a nossa opccedilatildeo pelo uso do termo meacutedio
platonismo uma vez que coincide com o periacuteodo de Justino Ver EMILSSON Neo-Platonism 1999 p 358
AUDI The Cambridge Dictionary of Philosophy 1999 p 567 apud SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II
dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 123
403 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
404 CARCOPINO Roma no Apogeu do Impeacuterio 1990
96
o cristianismo cada vez mais presente na estrutura sociorreligiosa do Impeacuterio natildeo demorou
para se considerar ldquotambeacutem os leitores natildeo-cristatildeosrdquo405 como parte do exame teoloacutegico dos
Pais No entanto os mestres e principais arautos dessas claacutessicas estruturas filosoacuteficas eram
pagatildeos em seu modo de vida espiritual o que ocasionou ndash quase automaticamente ndash uma
investidura por parte dos Pais (remodelaccedilatildeo cristatilde) das concepccedilotildees filosoacuteficas de alguns
autores claacutessicos do paganismo Como consequecircncia desse processo o periacuteodo dos Pais
Apologistas se confirma e se engrandece de maneira significativa na histoacuteria cristatilde devido ao
seu importante conteuacutedo teoloacutegico406 desenvolvido a partir dessa adaptaccedilatildeoremodelaccedilatildeo
Voltando precisamente para a pessoa de Justino vemos a partir da pesquisa de Walde
ndash o qual soma seu pensamento a Falls ndash o estabelecimento de uma expressiva comunicaccedilatildeo
entre Justino e as escolas filosoacuteficas apresentadas Walde escreve ldquoComo jovem adulto
mostrou interesse por filosofia e estudou primeiramente estoicismo e platonismo Justino
buscava a Deus que eacute a meta da filosofia de Platatildeo diziardquo407 Este retrato dos fatos nos
demonstra com clareza que o diaacutelogo do Apologista com as referidas escolas filosoacuteficas
norteou sua formaccedilatildeo intelectual de forma significativa
A primeira experiecircncia de fato com a filosofia grega e a qual podemos afirmar ter
deixado marcas consideraacuteveis na vida de Justino foi com a escola estoica Em sua busca da
autecircntica sabedoria Justino comeccedilou a frequentar as aulas de um mestre estoico408
provavelmente ainda em sua cidade natal Se tratando de sua experiecircncia com o estoicismo em
particular o Apologista nos oferece um relato autobiograacutefico no qual informa detalhes
interessantes referentes a sua jornada pela Verdade ldquoEu mesmo no iniacutecio desejando tambeacutem
reunir-me com algum deles (mestres filoacutesofos) coloquei-me nas matildeos de um estoico e passei
bastante tempo com elerdquo409
O interessante nessa narraccedilatildeo eacute que o expressivo contato de Justino com o estoicismo
natildeo surtiu nele o beneacutefico resultado que Justino parecia esperar Efetivamente Justino afirma
em seu Diaacutelogo com Trifatildeo ldquoTodavia percebi que nada me adiantava para o conhecimento de
Deus pois nem sequer ele sabia nada nem dizia que esse conhecimento era necessaacuterio Entatildeo
405 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 140
406 Ver DROBNER Manual de Patrologia 2008 p76-80
407 FALLS The Fathers of the Church 1948 p 151 apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p
1
408 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
409 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 3a grifo nosso
97
separei dele e dirigi-me a outrordquo410 Kelly inclusive salienta mediante a auto narraccedilatildeo de
Justino que parece ter havido um esforccedilo da parte deste em se apropriar ndash ou melhor se
aprofundar ndash das maacuteximas da doutrina estoica Isso devido especialmente ao seu ldquoelevado
padratildeo moral ainda que um tanto impessoalrdquo411 mas com um forte apelo agrave posturas e posiccedilotildees
que estabeleciam um padratildeo moralmente bom para seus praticantes preceitos que eram de
alguma maneira dogmatizados pela doutrina estoica na tentativa de se alcanccedilar ldquouma norma
para os humanos seguiremrdquo412 Dessa forma os praticantes de tal sistema chegavam aquilo que
poderiacuteamos (forccedilosamente) definir como o verdadeiro conhecimento do ldquoSerrdquo e da ldquoEsferardquo
divina pois a ldquovida moral eacute vista como assimilaccedilatildeo a Deus e como imitaccedilatildeo de Deusrdquo413
Contudo apoacutes um periacuteodo de deferecircncia a doutrina estoica ldquopareceu-lhe rudimentar e de uma
metafisica falazrdquo414 aleacutem do sistema natildeo conseguir ldquoesclarececirc-lo a respeito de Deusrdquo415 ou
seja o estoicismo natildeo pode oferecer as condiccedilotildees necessaacuterias para suprir os vaacutecuos e demandas
existecircncias de Justino
Entretanto o estoicismo como doutrina filosoacutefica teve uma significativa relevacircncia na
formaccedilatildeo de Justino como tambeacutem na construccedilatildeo teoloacutegica dos demais Pais Apologistas Na
anaacutelise desse cenaacuterio houve ateacute mesmo quem afirmasse que caso natildeo houvesse o encontro
entre o Poacutertico416 e a Igreja natildeo teria existido uma linguagem inteligiacutevel por parte da doutrina
cristatilde para alguns ambientes gentiacutelicos ou seja o ldquocristianismo seria incompreensiacutevelrdquo417 para
alguns segmentos que formavam o quadro sociorreligioso agrave eacutepoca Teses como essa levantam
questotildees pertinentes No caso em exame parece-nos que tal afirmaccedilatildeo havia se desenvolvido
como um marco referencial junto agrave Era Patriacutestica citada explicando tambeacutem deste modo o que
permitiu que esse conceito teoloacutegico-filosoacutefico viesse a se construir Neste processo as relaccedilotildees
de conformidade entre cristianismo e estoicismo foram absolutamente decisivas sendo o campo
410 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 3b
411 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 13
412 ALGRA In Teologia estoacuteica Os Estoacuteicos 2006 p 189
413 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 132
414 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 278
415 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 52
416 Poacutertico Ornado (ou Pintado) grego Stoagrave Poikiacutele Local na cidade de Atenas onde o filoacutesofo grego Zenon
(fundador do estoicismo) ensinava a seus disciacutepulos Ver SEDLEY In A Escola de Zenon a Aacuterio Diacutedimo Os
Estoacuteicos 2006 p 7-13
417 POHLENZ La Stoa storia di un movimento spirituale 1967 p 397 apud PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia
Patriacutestica 1999 p 131
98
moral junto agrave formaccedilatildeo dogmaacutetica cristatilde ndash poderiacuteamos ateacute mesmo chamaacute-lo de eacutetico ndash decisivo
nessa correlaccedilatildeo (modelagem) de valores
Entre os fatos desse paralelismo ideoloacutegico vemos o otimismo religioso expressado
pelo estoicismo que encontrou de forma geral na consciecircncia dos Pais (ateacute o Seacuteculo III) uma
beneacutevola e favoraacutevel proximidade com a Divindade onipotente e onipresente a qual os
Apologistas reconheciam especialmente na figura de Deus Pai e em sua traduccedilatildeo do Ser
absoluto cenaacuterio que agora expressava-se inclusive na manifestaccedilatildeo Deste (Deus) em uma
relaccedilatildeo de perfeita imanecircncia com seus eleitos Minuacutecio Feacutelix (Apologista do final do Seacuteculo
II) retrata com clareza esse conceito gerado no meio Apologista fruto da relaccedilatildeo destes com os
ditames estoicos ldquonatildeo soacute estaacute perto de noacutes como tambeacutem dentro de noacutes [] natildeo soacute vivemos
sob seu olhar como tambeacutem em seu seiordquo418
Neste contexto ainda vale-nos identificar uma caracteriacutestica peculiar da relaccedilatildeo de
Justino com o estoicismo Trata-se das interpretaccedilotildees escrituriacutesticas desenvolvidas por meio de
meacutetodos alegoacutericos Essa metodologia jaacute estava em uso no meio cristatildeo e jaacute antes era
amplamente ldquodifundida tambeacutem entre os filoacutesofos gregos sobretudo os estoicos com o objetivo
de fazer enquadrarem-se as tradicionais faacutebulas mitoloacutegicas com as suas ideiasrdquo419 Justino se
torna ldquoceacutelebrerdquo no meio Patriacutestico tambeacutem por sua exegese atestando isso quando passa a
unificar textos referentes a economia da Antiga e Nova Alianccedilas fazendo uso em muitos
momentos da teacutecnica citada
Desta forma mormente veremos na construccedilatildeo teoloacutegica de Justino que se encontram
traccedilos desse sistema da filosofia grega que se fizeram notoacuterios em seu registro apologeacutetico
Santos ao citar Staniforth retrata com precisatildeo essa inspiraccedilatildeo e sua contribuiccedilatildeo junto ao
trabalho do Apologista Aleacutem disto consegue descrever com clareza e harmonia agrave postura de
Justino referente sua interpretaccedilatildeo das bases substanciais do estoicismo Santos assim registra
essa relaccedilatildeo
Segundo Staniforth os elementos que predominavam no cristianismo antes de seu
contato com o estoicismo eram os morais e espirituais jaacute os intelectuais eram
subordinados a estes Ele acrescenta poreacutem que ldquoquando a mensagem se espalhou
para aleacutem dos confins da Palestina e as suas implicaccedilotildees foram assimiladas pelos
pensadores de outras terras fez-se sentir a necessidade de concepccedilotildees mais exatas da
verdaderdquo (STANIFORTH 2002 p 20) [] Entre outras coisas citadas por Staniforth
estatildeo ainda a noccedilatildeo de unidade divina a ideia de que os homens satildeo filhos de Deus
e participam da sua natureza e procuram fazer sempre o bem (STANIFORTH 2002
418 MINUacuteCIO FEacuteLIX Otaacutevio 32-33
419 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1146
99
p 22) Justino traz uma argumentaccedilatildeo inversa Segundo ele os imitadores satildeo os
demais povos ldquonatildeo somos noacutes que professamos opiniotildees iguais aos outros e sim
todos por imitaccedilatildeo repetem as nossas doutrinas (JUSTINO I Apologia LX 10)rdquo420
Sendo jaacute anteriormente caracterizado por meio do relato da vida de Justino a elementar
decepccedilatildeo de Justino pelo estoicismo como doutrina a ser seguida levou-o a uma nova fase na
sua busca do ldquoideal da sabedoria perfeitardquo421 Assim seu intento redirecionou-se para outras
esferas da filosofia grega passando por algumas experiecircncias variadas por meio de suas
relaccedilotildees com outras escolas sistemas e mestres Neste cenaacuterio naquilo que possuiacutemos relatos
confiaacuteveis Justino chegou a conviver com ldquoum peripateacutetico e um pitagoacutericordquo422 sempre
buscando alcanccedilar seu intento maacuteximo como amante do saber
Por fim a escola platocircnica tornou-se sua uacuteltima instacircncia de apelo nessa busca intensa
pelo saber supremo que inclusive ele imagina ter alcanccedilado ldquona filosofia (meacutedio) platocircnicardquo423
fazendo desse caso em especiacutefico (platonismo) o encontro ldquomais positivordquo424 Neste ponto
compreendemos que o desenvolvimento do pensamento teoloacutegico que encontramos
futuramente estabelecido em Justino eacute o que o constituiu categoricamente como um filoacutesofo
cristatildeo e foi principalmente detalhado pela influecircncia desta corrente filosoacutefica (platonismo)
mais do que por sua experiecircncia com os demais sistemas O ponto de vista de Xavier colabora
com nossa anaacutelise transmitindo a mesma ideia
A procura incansaacutevel pela verdade levou Justino a se tornar um distinto filoacutesofo do
pensamento grego adotando principalmente a filosofia de Platatildeo que para ele tinha
muita semelhanccedila com os ensinamentos judaicos no que diz respeito agrave Palavra de
Deus (Logos Verbo)425
Eacute portanto necessaacuterio fazer ainda que rapidamente algumas consideraccedilotildees geneacutericas
referentes agrave influecircncia desse importante sistema filosoacutefico (platonismo) no contexto
sociorreligioso ao qual Justino estava inserido O chamado meacutedio platonismo teve singular
420 STANIFORTH In Introduccedilatildeo Meditaccedilotildees 2002 apud SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma
Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 119 122
421 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 25
422 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 27
423 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 83
424 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 119
425 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 15
100
influecircncia junto ao meio teoloacutegico cristatildeo em meados do Seacuteculo II Sua importacircncia em
questotildees como a metafiacutesica por exemplo ldquodeterminou profundamente a compreensatildeo
teoloacutegicardquo426 dos Pais Apologistas Ainda neste cenaacuterio eacute necessaacuterio afirmar que na eacutepoca o
pensamento de Platatildeo estruturado pela manutenccedilatildeo de seus seguidores (meacutedio platonismo)
plasmou-se quase que na totalidade dos seguimentos ditos intelectuais do periacuteodo ocasionando
um expliacutecito e permanente ldquodesenvolvimento do saber filosoacutefico e portanto da cultura
ocidentalrdquo427 a qual teve sua formaccedilatildeo por meio da mecanicidade da Filosofia propriamente
reconhecida como cristatilde em sua formaccedilatildeo
Voltando especificamente para nosso autor retratamos com certa facilidade ndash por se
considerar a questatildeo como um ponto paciacutefico referente agrave figura de Justino ndash sua ampla e notoacuteria
relaccedilatildeo com os ensinamentos baseados na doutrina de Platatildeo Insuelas nos diz que Justino
possivelmente procurou o sistema platocircnico porque este ldquogozava naquele tempo de grande
reputaccedilatildeo e era seguido por homem de valorrdquo428 Fato eacute que Justino progrediu de maneira
consideravelmente raacutepida na doutrina pois ldquoesperava que na filosofia de Platatildeordquo429 veria
imediatamente a Deus questatildeo (enxergar agrave Divindade) que nos indica uma praacutetica
contemplativa que provavelmente levou o jovem filoacutesofo a peregrinar isoladamente ateacute a praia
onde em algum momento ocorreu sua conversatildeo ao cristianismo Utilizamos ainda a ecircnfase
dada por Daniel-Rops a este caso o qual salienta que nesse acesso para a doutrina platocircnica
Justino deu o ldquopasso decisivo levando-o a ver que o uacutenico fim verdadeiro da filosofia era o
conhecimento de Deusrdquo430
Outra descriccedilatildeo que se soma a esta tese nasce das palavras do proacuteprio Justino na sua
I Apologia Estas construccedilotildees do Apologista ganham eficaacutecia e nitidez quando retratadas por
Euseacutebio em seu relato histoacuterico Elas apresentam um Justino intreacutepido e resoluto movendo-se
na eficaacutecia daquilo que encontrou em sua jornada tornando-se desta maneira em um ldquosincero
amante da verdadeira filosofiardquo431 Quanto ao platonismo descrito pelo autor em sua
experiecircncia Euseacutebio escreve
426 SANTOS Platonismo e cristianismo Irreconciabilidade Radical ou Elementos Comuns 2003 p 335
427 SEVERINO A Filosofia Antiga 1984 p 81
428 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 52
429 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
430 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 278
431 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 3 grifo nosso
101
Na mesma obra demonstra que sua conversatildeo da filosofia grega agrave religiatildeo natildeo se fez
sem razatildeo mas com juiacutezo escreve o seguinte ldquoporque tambeacutem eu mesmo que me
comprazia nos ensinamentos de Platatildeo ao ouvir as caluacutenias contra os cristatildeos e vecirc-
los irem intreacutepidos para a morte e para tudo que eacute terriacutevel comecei a pensar que natildeo
era possiacutevel que aqueles homens vivessem na maldade e no amor aos prazeresrdquo432
Seguindo no mesmo contexto vemos que Justino no capiacutetulo II de seu Diaacutelogo com
Trifatildeo agrega agrave sua biografia um relato exponencial no qual nos descreve um encontro com um
filoacutesofo platocircnico na cidade de Flaacutevia Neaacutepolis Justino como vimos acima foi procurar este
mestre a fim de conferenciarem sobre temas de relevacircncia para o Apologista Assim havendo
ldquoaprendido bastante do platonismordquo433 Justino envolto de uma acentuada euforia ateacute mesmo
presumiu (erroneamente) haver obtido um distinto conhecimento de superior e incomparaacutevel
qualidade todavia por fim salientou uma conclusatildeo ambiacutegua e de aspecto desfalecente sobre
esta experiecircncia quando se referiu as coisas que em determinado momento lhe pareciam
absolutamente certas e vivazes Ele nos afirma foi ldquotornado saacutebio num aacutetimo e minha estupidez
fazia-me esperar que de um momento para outro contemplaria o proacuteprio Deusrdquo434
No entanto cabe-nos apontar que mesmo diante desta pessimista afirmaccedilatildeo por parte
de Justino o platonismo de sua eacutepoca ldquotinha grande forccedila teiacutestardquo435 aleacutem de apresentar um
ldquoalto tocircnus moralrdquo436 expressatildeo que posteriormente em seu desenvolvimento teoloacutegico passou
a comprovar o cristianismo como o conjunto doutrinal por excelecircncia Sendo essa conclusatildeo
obtida na consequecircncia do emprego de sua metodologia dialeacutetica como teoria do conhecimento
ndash fato (dialeacutetica platocircnica) que jaacute abordamos anteriormente
No que se refere ao raciociacutenio de Justino que encontramos especificamente baseado
no ideaacuterio platocircnico notamos com certa facilidade que este conjunto de ideias o levou a
desenvolver em seus tratados (I e II Apologias e Diaacutelogo com Trifatildeo) algumas referecircncias que
se atestam como elementos de comparaccedilatildeo entre a filosofia grega e a feacute cristatilde Neste periacuteodo
(Seacuteculo II) o meio filosoacutefico grego jaacute registrava haacute algum tempo a noccedilatildeo de um Ser ou Estado
supremo437 ldquoque estaacute acima de todos os seres e do qual todos derivam sua existecircnciardquo438
432 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 5
433 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 119
434 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6
435 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
436 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
437 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994
438 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 16
102
Sabemos baseados em amplas evidecircncias textuais que a vida aleacutem da morte fiacutesica jaacute era
ensinada ou ateacute mesmo garantida por Soacutecrates439 No pensamento de Platatildeo esta teoria eacute
estruturada filosoficamente como uma realidade diferente mas igualmente atemporal a qual
existe aleacutem eou fora deste mundo440
Em Platatildeo detectamos um referencial que nos salienta sobre a expressividade agrave sua
ldquoexposiccedilatildeo da separaccedilatildeo e diferenccedila entre o mundo sensiacutevel (sentidos) e o mundo inteligiacutevel
(intelecto)rdquo441 fazendo com que a percepccedilatildeo humana seja uma espeacutecie de imagem da
realidade442 mas natildeo necessariamente a realidade em si Deste modo Platatildeo automaticamente
condicionava seus leitoresouvintes a compreender que aquilo que estava oculto (natildeo visiacutevel)
deveria pelo encontro com a pura razatildeo voltar ao seu estado inicial ou seja o Uno mesmo
que Platatildeo natildeo considerasse a ldquoForma do Bem ou o Um como Deus no sentido comum da
palavrardquo443 A tese do retorno ao Uno eacute uma performance originalmente desenvolvida na fase
denominada de meacutedio platonismo444
Justino nos demonstra com clareza sua relativa conformidade com essa ideia que de
uma maneira orientativa procurava dar coesatildeo e expressividade agrave realidade perceptiacutevel do
homem em encontrar o que era verdadeiro definido como o ldquonatildeo-escondidordquo445 para o espiacuterito
humano Poreacutem tambeacutem nos apresenta de forma incondicional uma clara distinccedilatildeo substancial
a este conceito segundo o qual ldquoo centro da esperanccedila cristatilde natildeo eacute a imortalidade da alma mas
a ressurreiccedilatildeo do corpordquo446 Corroborando a esta proposiccedilatildeo encontramos a posiccedilatildeo de
Wachholz que organiza o referido cenaacuterio em uma descriccedilatildeo cronoloacutegica embasada no
desenvolvimento do pensamento (dogma) cristatildeo do periacuteodo
Assim por exemplo percebia que tambeacutem Soacutecrates e Platatildeo afirmavam que existia
vida aleacutem da morte fiacutesica Platatildeo afirmava que este mundo natildeo esgota toda a realidade
mas que existe outro mundo de realidades eternas Neste sentido Justino concorda
439 A discussatildeo sobre a imortalidade da alma ndash a uacuteltima de que Soacutecrates participa no dia de sua morte ndash eacute narrada
na obra intitulada Feacutedon de Platatildeo Ver MALTA In Nota 103 Apologia de Soacutecrates 2008 p 97
440 SEVERINO A Filosofia Antiga 1984
441 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994 p 189 grifo nosso
442 Um exemplo claacutessico dessa ideia se encontra no Livro VII de sua obra intitulada A Repuacuteblica em uma alegoria
conhecida como o Mito da Caverna Ver PLATAtildeO A Repuacuteblica VII 514a-541b
443 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 12
444 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
445 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994 p 197
446 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 16
103
pois afirma que o centro da esperanccedila cristatilde natildeo estaacute na imortalidade da alma mas na
ressurreiccedilatildeo do corpo447
Amparado nesse conceito filosoacutefico Justino passa a desdobrar sua concepccedilatildeo sobre a
ideia do estado de um ldquomundo inteligiacutevelrdquo que passa a ser compreendido como a uacutenica
condiccedilatildeo pela qual as coisas satildeo eternas imutaacuteveis e incorruptiacuteveis constituindo deste modo
sua posiccedilatildeo sobre o que seria o proacuteprio ldquomundo de Deusrdquo possiacutevel de ser alcanccedilado Na visatildeo
platocircnica este mundo ideal soacute pode ser alcanccedilado pelo intelecto humano quando este eacute elevado
a seu patamar maacuteximo sendo isso possiacutevel somente por meio do auxiacutelio da filosofia Para
Justino essa filosofia soacute pode ser o cristianismo pois este foi revelado como a uacutenica Verdade
oferecida aos homens
Desta forma para Justino soacute mediante o cristianismo a concepccedilatildeo platocircnica de
alcanccedilar o mundo real torna-se possiacutevel No final da apresentaccedilatildeo de sua jornada entre as
escolas filosoacuteficas Justino nos relata que aquilo que fez com que ele se decidisse pela escola
platocircnica ndash entendendo que esta seria a melhor alternativa para desenvolver sua mente (razatildeo)
na tentativa de receber a verdadeira sapiecircncia ndash fosse agrave profunda admiraccedilatildeo inicial que ele
encontrou em alguns pontos que distinguiam a doutrina das demais ldquoprincipalmente com a
consideraccedilatildeo do incorpoacutereordquo448 mas tambeacutem pela referente ldquocontemplaccedilatildeo das ideiasrdquo449 as
quais ele afirma ldquodava asas agrave minha inteligecircnciardquo450
Nesta jornada de conhecimento Justino salienta que compreendia e admirava o
objetivo desse ensino que se demonstrava estaacutevel e possuiacutea intenccedilotildees muito nobres para agrave
natureza humana a ponto de afirmar que ldquoCom efeito esta eacute a meta da filosofia de Platatildeordquo451
Jaacute como cristatildeo Justino esclarece para o judeu Trifatildeo que ldquoVemos e estamos convencidos de
que por meio do nome de Jesus Cristo crucificado as pessoas se afastam da idolatria e de toda
iniquidade para aproximar-se de Deusrdquo452 ou seja somente um caminho leva definitivamente
a verdadeira filosofia e este caminho natildeo eacute a filosofia de Platatildeo
Apoacutes este raacutepido mas importante embasamento sobre a formaccedilatildeo filosoacutefica de nosso
autor ainda eacute necessaacuteria uma descriccedilatildeo final sobre os elementos filosoacuteficos estruturantes
447 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 59-60
448 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6a
449 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6a
450 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6a
451 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6b
452 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo XI 4
104
encontrados em Justino Entre estes insumos um se destaca consideravelmente como fruto da
ampla influecircncia deixada pelo predomiacutenio de suas bases filosoacuteficas (estoicismo e platonismo)
Desta forma o Logos em Justino seraacute o ponto central de anaacutelise a seguir
322 O Logos em Justino
Este ponto eacute fundamental para nossa descriccedilatildeo do pensamento de Justino como um Pai
Apologista Mesmo que nos falte uma sistematizaccedilatildeo sobre o tema Logos tanto em Justino
como tambeacutem nos demais representantes de sua Era Patriacutestica453 o Logos eacute um conteuacutedo
teoloacutegico fundamental para a histoacuteria do cristianismo e natildeo aparece com suficiente clareza em
nenhum outro escritor cristatildeo anterior a Justino que acaba por se evidenciar neste assunto de
forma muito significativa
Jaacute no Seacuteculo I a doutrina referente agrave PalavraVerbo divino era conhecida pelo
judaiacutesmo em sua forma posterior devido agrave grande influecircncia do filoacutesofo judeu Filo de
Alexandria O estoicismo como doutrina filosoacutefica tambeacutem foi muito atuante na elaboraccedilatildeo
do termo Logos como um conceito paralelo entre uma plena imanecircncia e uma total expressatildeo
do que eacute superior eou eterno454 O Evangelho de Joatildeo em seu proacutelogo (Joatildeo 11-5) nos oferece
o termo de forma sublime mesmo que o Logos em Joatildeo pareccedila ter sido influenciado por
Heraacuteclito455 Quanto agrave Patriacutestica em sua fase inicial (Pais Apostoacutelicos) Inaacutecio Bispo de
Antioquia parece ser a melhor opccedilatildeo de uma leitura consistente sobre a ideia de a Palavra
Divina preexistente ter sido anunciada antecipadamente aos homens das geraccedilotildees passadas
ldquoInspiraram-se (os profetas) em Sua graccedila a fim de que os increacutedulos se convencessem
plenamente que haacute um soacute Deus a manifestar-se por Jesus Cristo Seu Filho Sua palavra saiacuteda
do silecircncio que em tudo agradou Aquele que O enviourdquo456
Poreacutem vale-nos novamente frisar que aqui como em outras partes desta pesquisa natildeo
procuraremos ser exaustivos muito menos conclusivos especialmente tratando-se de uma
anaacutelise que possui uma conjuntura tatildeo extensa mas de maneira sucinta desenvolveremos uma
siacutentese que visa ser orientativa nesta definiccedilatildeo sobre o legado teoloacutegico do Apologista Justino
A relaccedilatildeo de Justino com esta temaacutetica filosoacutefica (Logos) foi ampla e profunda Eacute
possiacutevel condicionarmos jaacute a partir de Justino uma realidade conclusiva para o tema naquilo
453 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
454 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
455 TORRES A retoacuterica joanina do Logos 2016
456 INAacuteCIO Epiacutestola aos Magneacutesios VIII 2 grifo nosso
105
que ele se refere a revelaccedilatildeo cristatilde esta conclusatildeo estaacute na ldquoconcepccedilatildeo justiacutenica do Logos como
entidade divina intermediaacuteria entre Deus e o mundordquo457 Isso gerou uma nova perspectiva a
qual Justino com certa originalidade conceitual passa a definir o Logos como um agente que
jaacute orientava a humanidade antes mesmo de Sua encarnaccedilatildeo desejando por meio da ldquoIgreja com
a sua accedilatildeo missionaacuteriardquo458 tornar participantes todos os homens que por meio da feacute em Cristo
poderatildeo gozar da esperanccedila do cumprimento profeacutetico do segundo advento do Salvador
Em seu trabalho apologeacutetico Justino estabeleceu uma conjunccedilatildeo entre proposiccedilotildees
separadas mas que se demonstraram de uma mesma espeacutecie Esse ato invariaacutevel conectou de
maneira significativa o Logos459 da filosofia grega ndash aqui expresso em uma de suas definiccedilotildees
temporais do meio filosoacutefico sendo apresentado como o ldquoPrinciacutepio platocircnico mediador entre o
mundo sensiacutevel e o inteligiacutevelrdquo460 ndash com o Logos do Evangelho de Joatildeo ou poderiacuteamos dizer
da interpretaccedilatildeo feita pelo meio apologeacutetico cristatildeo do Seacuteculo II Tratando ainda um pouco mais
sobre o cenaacuterio histoacuterico envolvendo a realidade conceitual sobre o Logos Walde nos indica
este princiacutepio conectivo quando cita Schaff em um exame sobre esta teoria Vemos em sua
descriccedilatildeo que o historiador
Philip Schaff descreve o pensamento desta maneira O Logos eacute a razatildeo preacute-existente
absoluta pessoal e Cristo eacute a encarnaccedilatildeo dele o Logos encarnado Qualquer coisa
racional eacute cristatilde e qualquer coisa cristatilde eacute racional Os Logos dotaram a todos os
homens da razatildeo e liberdade que natildeo estavam perdidos desde a queda Ele espalhou
sementes da verdade antes de sua encarnaccedilatildeo natildeo soacute entre os judeus mas tambeacutem
entre os gregos e baacuterbaros sobretudo entre os filoacutesofos e poetas que satildeo os profetas
pagatildeos Os que viveram razoavelmente e virtuosamente em obediecircncia a esta luz
preparatoacuteria foram de fato cristatildeos ainda que natildeo no nome ao contraacuterio os que
viveram irracionalmente eram inimigos de Cristo Soacutecrates foi um cristatildeo assim como
Abraatildeo ainda que ele natildeo o conheceu461
457 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1147
458 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1148
459 O conceito de Logos derivado da filosofia contemporacircnea especialmente do estoicismo com sua doutrina da
razatildeo universal foi usado pelos Apologistas para explicar como Cristo se relacionava com Deus Pai Algo do
Logos diziam encontra-se em todos os homens Ver HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 23
460 Logos (grego loacutegograves) Substantivo masculino de dois nuacutemeros Significa 1 Palavra 2 Discurso 3 Linguagem
4 Estudo 5 Teoria Significado em aacutereas proacuteprias 1 Filosofia Razatildeo ou princiacutepio da inteligibilidade 2
Filosofia Princiacutepio platocircnico mediador entre o mundo sensiacutevel e o inteligiacutevel 3 Filosofia Forccedila divina ou
criadora que eacute organizadora do mundo 1 Teologia Cristo ou o Verbo de Deus segunda pessoa da Trindade Ver
Dicionaacuterio Priberam da Liacutengua Portuguesa ltDisponiacutevel em httpsdicionariopriberamorglogosgt Acesso em
27 de fev 2019
461 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 723
apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
106
Esta ideia por assim dizer protagonizou aquilo que possivelmente foi o primeiro
encontro consistente entre filosofia e teologia na Era atual (dC) O conjunto deste exerciacutecio
que vemos pouco tempo depois jaacute constituiacutedo na escola de Alexandria (aproximadamente 50
anos) sob a preeminecircncia de Clemente (Bispo de Alexandria)462 continuou a evoluir no
decorrer dos seacuteculos e encontrou seu aacutepice no movimento Escolaacutestico da Idade Meacutedia463
Contudo parece-nos que a funccedilatildeo do Logos propriamente empregado dentro da realidade
teoloacutegica cristatilde originalmente foi de alguma maneira semeada por Justino
Ainda sobre esta praacutetica hermenecircutica de se assemelhar a teorema dos filoacutesofos gregos
com a revelaccedilatildeo biacuteblica (ou Patriacutestica) notamos com facilidade a apresentaccedilatildeo de certas
evidecircncias que nos levam ao ldquoberccedilordquo da obra do Apologista Definitivamente Justino parece
agregar conceitos em seu relato que claramente evidenciam isto pois ldquoa principal contribuiccedilatildeo
dos apologistas (sendo Justino expoente no contexto) foi sua tentativa de correlacionar o
cristianismo com a erudiccedilatildeo grega tentativa que encontrou sua expressatildeo mais marcante na
teoria do Logos e sua aplicaccedilatildeo agrave cristologia (mateacuteria determinante em Justino)rdquo464
A teoria cristatilde sobre o Logos tem caraacuteter preceituador e exerceu impacto relevante na
histoacuteria dogmaacutetica cristatilde pois de maneira imperiosa tornou acessiacutevel a sua realidade intelectual
tanto intra quanto extra muros transmitindo a ideia de que ldquoeste Verbo este Logos que assim
iluminou progressivamente a mente humana eacute o proacuteprio Cristo tal como se revelou em Jesus
por meio do qual o pensamento e a vida encontraram o seu significadordquo465 Nesta mesma linha
Wachholz apresenta um paralelo forte desta soma de posiccedilotildees
Justino assume este discurso afirmando que em Jesus Cristo esse Logos que se fez
carne Jesus eacute fonte de todo o conhecimento Por outro lado Justino tambeacutem pode
afirmar que os pagatildeos tambeacutem puderam conhecer o Logos embora parcialmente
(inclusive Soacutecrates e Platatildeo) Os cristatildeos por sua vez conhecem o Logos tal qual ele
eacute por causa da encarnaccedilatildeo do mesmo em Cristo466
Devemos ainda agregar a influecircncia estoica ndash a qual neste ponto de forma mais direta
inspirou intelectualmente a Justino ndash agrave preponderacircncia junto a apresentaccedilatildeo do Logos como o
462 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
463 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
464 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 24 grifo nosso
465 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
466 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 59
107
princiacutepio elementar (material e imaterial) de todas as coisas existentes nos escritos de Justino
O estoicismo mais que o platonismo conseguia de modo mais teacutecnico467 e com maior rigor no
periacuteodo definir tanto a convicccedilatildeo teoloacutegica de Justino468 como de todo o segmento Apologista
cristatildeo Dreher consegue frisar tal relaccedilatildeo e consequecircncia desta realidade ldquoLogos eacute para os
estoicos a Razatildeo Universal que tudo penetra e tudo comanda que tudo ordena Tambeacutem Justino
viu no Logos a Razatildeo Universal mas que se teria revelado no cristianismo de maneira mais
perfeitardquo469
Outro importante apontamento que merece destaque estaacute na ideia de criaccedilatildeo e
manutenccedilatildeo operado pelos Logos Aqui enfatiza-se que tudo estava ordenado pela Palavra que
era e foi criadora sustentadora e orientativa mais ainda tudo provinha desta mesma Palavra
que possuiacutea e estava (mantinha-se) em uma realidade imanente e preexistente a tudo Simonetti
afirma que ldquofunda-se sobre a conspecccedilatildeo de Cristo como Logos divino e nessa condiccedilatildeo
princiacutepio de racionalidade universal cujas sementes (spermata) entram em toda a criaccedilatildeo e
habilitam o homem a conhecer Deus como criador organizador e regente do mundordquo470 Disso
tudo podemos afirmar que Justino e seus contemporacircneos de fides et toga entendiam que ldquotoda
a verdade estaacute no Logos [] Logo toda a verdade deve ser relacionada ao Logosrdquo471
Cabe-nos nesse conjunto apontar que na exposiccedilatildeo intelectual de Justino referente ao
Logos este natildeo desenvolve com clareza aquilo que seria a presenccedila da Palavra nos outros
homens Em seus registros vemos em alguns momentos que essa relaccedilatildeo de habitaccedilatildeo do Logos
(entendido como incipiente) no ser humano eacute descrita como um processo de semeadura (o
Logos sendo semeado)472 jaacute em outras passagens a analogia se constroacutei atraveacutes de uma imagem
467 Os Apologista do Seacuteculo II empregavam textos do Antigo Testamento como o Salmo 336 (ldquoOs ceus por sua
palavra [isto eacute pela Palavra do Senhor] se fizeramrdquo) onde natildeo hesitavam em misturaacute-los com a distinccedilatildeo teacutecnica
que os estoacuteicos faziam entre ldquopalavra imanenterdquo (grego logos endiathetos) e a ldquopalavra pronunciada ou expressardquo
(grego logos prophorikos) Esta distinccedilatildeo empregada pelos Apologistas visava diferenciar o duplo fato da
unicidade preacute-temporal de Cristo Seu estado preexistente com o Pai Sua manifestaccedilatildeo no tempo e no espaccedilo
Ver KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 71
468 Nessa construccedilatildeo teoacuterica que em determinados momentos parece procurar indiacutecios sustentaacuteveis sobre qual
seria o sistema filosoacutefico de maior influecircncia na formaccedilatildeo do conceito de Logos em Justino ganha destaque o
apontamento de Simone o qual utilizando-se de um caraacuteter sucinto e soacutebrio parece definir com normatividade
esta relaccedilatildeo e seu desenvolvimento ldquoseu conceito estaacute mais proacuteximo do meacutedio platonismo do que do estoicismo
isto eacute a terminologia eacute estoica mas o pensamento subjacente eacute platocircnicordquo Ver SIMONE In JUSTINO filoacutesofo
e maacutertir Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 798
469 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47
470 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1148
471 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 27 grifo nosso
472 Ver JUSTINO I Apologia XXXII 8 JUSTINO II Apologia VIII 1
108
de ldquoocupaccedilatildeordquo (posse) tanto plena473 quanto parcial474 em sua abrangecircncia475 O proacuteprio Justino
em sua II Apologia nos conduz a uma afirmaccedilatildeo de caraacuteter muito pertinente na tentativa de
explicar o porquecirc da accedilatildeo e necessidade da Palavra se manifestar aos homens Nessa afirmaccedilatildeo
ele regula o cristianismo como algo superior aos demais ensinos que procuravam ensinar sobre
a realidade do Logos como sendo um elemento orientativo Justino escreve sobre isso e afirma
que ldquoPortanto a nossa religiatildeo mostra-se mais sublime do que todo o ensinamento humano
pela simples razatildeo de que possuiacutemos o Verbo inteiro que eacute Cristo manifestado por noacutes
tornando-se corpo razatildeo e almardquo476
Justino nessa abordagem acaba por gerar em seu contexto uma evidenciaccedilatildeo
cristoloacutegica de importacircncia iacutempar pois salienta que a ldquodiferenccedila entre Cristo e os Homens
comuns encontra-se natildeo em alguma disparidade essencial de constituiccedilatildeo mas no fato de que
enquanto o Logos opera neles de forma fragmentada (kata meros) ou como uma semente em
Cristo Ele opera como um todordquo477 ou seja no Verbo que encarnou temos a plenitude da
manifestaccedilatildeo do Logos divino sendo este aquele mesmo que os filoacutesofos gregos anteriormente
jaacute haviam esquematizado478 poreacutem de maneira imperfeita
Prosseguindo em nossa construccedilatildeo algo que fica evidente neste exame eacute que mais que
esboccedilar uma ldquoexplicaccedilatildeo intelectualmente satisfatoacuteriardquo479 para o Logos Justino procura ser
expressivo mas natildeo necessariamente um sistemaacutetico deixando-nos carecentes de uma loacutegica
argumentativa mais robusta nesta questatildeo
Nesse aspecto encontramos orientaccedilatildeo junto a obras como a de Santos que
especificamente em nosso objetivo de pesquisa aparece provavelmente como uma das mais
qualificadas definiccedilotildees sobre agrave visatildeo de Justino e sua ressignificaccedilatildeo sobre o assunto Logos de
que disponibilizamos Partindo de dados extraiacutedos da anaacutelise sociorreligiosa do Seacuteculo II e a
473 Ver JUSTINO I Apologia XLVI 3
474 Ver JUSTINO II Apologia X 2 XIII 3
475 Deve-se distinguir entre o ldquoVerbo inteirordquo ingecircnito inefaacutevel o proacuteprio Cristo e o ldquoVerbo seminalrdquo que habita
nos homens especialmente nos saacutebios Ver FRANGIOTTI In Nota c II Apologia 1995 p 74
476 JUSTINO II Apologia X 1
477 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 108
478 Para Simone Justino se ampara claramente em uma tese oriunda do meacutedio platonismo quando procura
estabilizar sua ideia sobre haacute preexistecircncia antiguidade e universalidade do Logos Nesta inferecircncia o Apologista
baseia-se na ideia do meacutedio platonismo de que a transformaccedilatildeo do demiurgo miacutetico de Platatildeo visto como uma
forma de mente transcendente (PLATAcircO Timeu-Criacutetias 28c) se associa plenamente haacute figura do Deus Pai e
Criador do Cosmos trazida pela revelaccedilatildeo (sublime) do cristianismo Sendo deste modo o Logos apresentado
como ldquonascidogeradocriadordquo a partir do proacuteprio Deus Ver SIMONE In JUSTINO filoacutesofo e maacutertir
Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 799 LOPES In Nota 67 Timeu-Criacutetias 2011 p 95
479 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 71
109
estes somando algumas porccedilotildees da II Apologia de Justino Santos estabelece uma soacutelida
conexatildeo entre o Logos e o cristianismo Nesse conjunto de dados Santos consegue incorporar
a sua descriccedilatildeo uma das evidecircncias fundamentais que apontavam diretamente na diferenciaccedilatildeo
do extrato social agrave eacutepoca denominado cristatildeo Essa conjectura aplica-se assim se por um lado
o Logos eacute eterno foi anunciado anteriormente pelos profetas esteve manifesto na mente
(brilhante) dos filoacutesofos Logo isso o define como cristatildeo Conclusatildeo o Logos eacute Cristo Nossa
deduccedilatildeo eacute fraacutegil (em sentido teacutecnico) nem visa ser emblemaacutetica No entanto define e salienta
o pensamento de Justino que como veremos abaixo Santos ratifica se utilizando de raciociacutenio
similar por entender que Justino demonstra com clareza a concepccedilatildeo cristatilde daquele periacuteodo
sobre o Logos
O Logos total eacute aquele que soacute os cristatildeos possuem Por isso o cristianismo eacute a religiatildeo
por excelecircncia acima de toda filosofia e de qualquer matriz de pensamento humano
Justino declara que o cristianismo ldquomostra-se mais sublime do que todo o ensinamento
humano pela simples razatildeo de que possuiacutemos o Verbo por inteiro que eacute Cristo
manifestado por noacutes tornando-se corpo razatildeo e almardquo (JUSTINO II Apologia X 1)
O Logos eacute o Deus visiacutevel que manifesta o Deus invisiacutevel Os cristatildeos satildeo aqueles que
manifestam o Logos divino pois o possuem de forma integral O que eles manifestam
do Logos eacute o seu amor pela humanidade que eacute a razatildeo maacutexima de sua encarnaccedilatildeo
Entatildeo os cristatildeos revelam ao mundo que ldquoEle se tornou homem para partilhar de
nossos sofrimentos e curaacute-losrdquo (JUSTINO II Apologia XIII 4) O Logos serve para
explicar a semelhanccedila do comportamento moral dos cristatildeos com os ensinamentos dos
filoacutesofos principalmente os platocircnicos e estoicos (JUSTINO II Apologia XIII 2) e
ao mesmo tempo classifica os cristatildeos como superiores a eles (JUSTINO II Apologia
X 1)480
Para concluir a exposiccedilatildeo acerca de Justino dentro da filosofia grega podemos afirmar
sem nenhuma duacutevida que o Apologista eacute um verdadeiro filoacutesofo que entre outras coisas
compreendeu e praticou a vivacidade da revelaccedilatildeo do Logos divino entre os homens sempre
salientando que ldquotoda a verdade deve ser relacionada ao Logosrdquo481 Assim neste processo
conduzido por Justino podemos afirmar que revelou-se ldquoa grande ideia (Logos) marcada com
o selo do gecircnio (Justino) que vai fazer desembocar na verdade cristatilde o platonismo o filonismo
e toda a expectativa das geraccedilotildees humanasrdquo482
A partir disto prosseguiremos falando a respeito do capiacutetulo XXVIII de nossa obra
referencial Poreacutem a partir de agora abordaremos precisamente uma de suas principais
480 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 47
481 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 29
482 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
110
caracteriacutesticas Essa peculiaridade que possivelmente se mostra como a mais elaborada entre
as proposiccedilotildees por noacutes jaacute apresentadas realccedila e enobrece nossa busca pelos melhores
argumentos para a definiccedilatildeo do termo Verdade retratado na I Apologia Assim uma
interrogaccedilatildeo elementar em nossa construccedilatildeo comeccedila a ser diretamente respondida
33 RAZAtildeO DEUS SE PREOCUPA COM ESSAS COISAS
No princiacutepio ele criou o gecircnero humano racional capaz de escolher a verdade e
praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus
pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade Se algueacutem natildeo
crecirc que Deus se preocupe com essas coisas ou teraacute que confessar com sofismas que
natildeo existe ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como
uma pedra Virtude e vicio seriam puros nomes e os homens considerariam as coisas
como boas ou maacutes unicamente por sua opiniatildeo o que eacute a maior impiedade e
iniquidade483
O uacuteltimo item deste capiacutetulo visa possibilitar uma clara visatildeo bem como garantir a
genuiacutena adesatildeo ndash questatildeo que entendemos natildeo apenas como necessaacuteria mas sim como
fundamental para a compreensatildeo deste conceito ndash agrave perspectiva de Justino quanto ao que ele
sentenciou como algo determinante em sua proposta apologeacutetica Este modelo de conduta
adotado por Justino natildeo apenas relacionado pontualmente neste caso (I Apologia) caracteriza
com vigor desde o iniacutecio sua orientaccedilatildeo intelectual Aleacutem disso Justino passou a afirmar com
esta evidenciaccedilatildeo de casos toda sua ordem teoloacutegica baseada em sua anaacutelise racional como
tambeacutem agrave explicava ou no miacutenimo agrave definia mediante a maneira que estas relaccedilotildees se
posicionavam
Walde ao analisar aquilo que poderiacuteamos chamar do ldquocampo de anaacutelise racionalrdquo de
Justino ndash ao qual este estabelecia e limitava a sua reflexatildeo ndash sustenta que o pensamento da
Apologista parte de um ponto fixo de uma base depositada profundamente num conceito de
sua racionalizaccedilatildeo Segundo Walde para Justino ldquoQualquer coisa racional eacute cristatilde e qualquer
coisa cristatilde eacute racional Os Logos dotaram a todos os homens da razatildeo e liberdade que natildeo
estavam perdidos desde a quedardquo484
Apoacutes esta citaccedilatildeo faz-se novamente necessaacuterio afirmar que esta pesquisa natildeo almeja
diretamente um debate soterioloacutegico nem sequer visa agregar conceitos ndash de nenhuma espeacutecie
ndash ao termo ldquoLivre Arbiacutetriordquo que empregado indiretamente por Walde possa sugerir debates
483 JUSTINO I Apologia XXVIII 3-4 grifo nosso)
484 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
111
teoloacutegicos nessa esfera Contudo salientamos que a ideia transmitida por Justino no capiacutetulo
XXVIII pode ser empregada com determinada liberdade nesta discussatildeo soterioloacutegica pois a
tomada do Livre Arbiacutetrio como atributo caracteriza uma abrangecircncia muito significativa
especialmente quando Justino afirma que o homem racional eacute ldquocapaz de escolher a verdade e
praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus pois todos
foram criados racionais e capazes de contemplar a verdaderdquo485
Entretanto agregar este ldquoescolherrdquo para fins soterioloacutegicos na tentativa de se
apresentar alguma possibilidade (em forma ou modo) de participaccedilatildeo humana no ato salviacutefico
de Deus em Cristo buscando dar o sentido de que o convencimento salviacutefico natildeo eacute uma
exclusividade da accedilatildeo Divina parece-nos ser um literal descaso com o texto uma vez que se
agrega a Justino algo que ele simplesmente natildeo estava tentando comunicar
Dando seguimento ao nosso assunto mencionamos que o principal criteacuterio que
procuramos definir nesta exposiccedilatildeo estaacute relacionado a importacircncia delegada por Justino agrave razatildeo
humana Eacute imprescindiacutevel nesta construccedilatildeo salientarmos que este recurso humano
(razatildeoracionalidade) era compreendido por Justino (e tambeacutem dos demais Apologistas do
periacuteodo) como uma das principais (se natildeo haacute principal) daacutedivas de Deus ao ser humano486 e
natildeo apenas isso mas este ldquopresenterdquo (uma espeacutecie de ldquodomrdquo praacutetico) possuiacutea tambeacutem uma
accedilatildeo determinante na existecircncia humana para com as coisas celestiais tanto no presente
(cotidiano) como para o futuro (escatoloacutegico) do ser criado
Inicialmente detectamos em Justino a importacircncia por ele atribuiacuteda agrave racionalidade
no homem quando passa a afirmar que ldquoNo princiacutepio ele criou o gecircnero humano racional
capaz de escolher a verdade e praticar o bemrdquo487 Desta forma na concepccedilatildeo do Apologista a
Verdade era comunicada ndash ou ateacute mesmo sentenciada ndash ao ser humano por meio de sua
condiccedilatildeo inata (existente e natildeo adquirida) ou seja seu estado racional Aqui cabe-nos ainda
ressaltar que para Justino o homem para receber a revelaccedilatildeo da feacute em Cristo e mediante isso
agregar a si as benesses eou becircnccedilatildeos desta relaccedilatildeo se fazia necessaacuterio uma transmissatildeo desse
conhecimento ao entendimento humano e isso se dava pelo uso da razatildeo
Walde novamente soma a nossa pesquisa ao conceituar que ldquoDeus simplesmente natildeo
era conhecido por meio da razatildeo abstratardquo488 Assim podemos afirmar que Justino compreendia
485 JUSTINO I Apologia XXVIII 3 grifo nosso
486 DROBNER Manual de Patrologia 2008
487 JUSTINO I Apologia XXVIII 3 grifo nosso
488 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
112
(fortemente influenciado por uma tendecircncia apologista) que a Verdade naturalmente emergia
ao intelecto humano pela razatildeo apoacutes a conversatildeo do homem a Cristo Isso se condicionava
porque era o proacuteprio fruto da accedilatildeo regeneradora do Evangelho no ser humano que agora era
capaz de compreender o processo de separaccedilatildeo entre o joio e o trigo caso contraacuterio os ldquohomens
considerariam as coisas como boas ou maacutes unicamente por sua opiniatildeo o que eacute a maior
impiedade e iniquidaderdquo489
Neste contexto vemos um contraste interessante se formar Pois o Apologista nos
conduz a um quadro extremo no qual apresenta a opiniatildeo humana versus a Verdade Neste
ponto importa mencionarmos Fluck que afirma que Justino ldquoConsiderava que os adversaacuterios
do cristianismo insultavam a razatildeo e a moralrdquo490 Pode ateacute mesmo ser loacutegico poreacutem para nossa
pesquisa eacute imperativo e necessaacuterio salientar que para Justino natildeo havia duacutevidas acerca da
superioridade da Verdade quando revelada (especialmente no Logos) em oposiccedilatildeo agrave razatildeo
humana (caracterizada principalmente pela razatildeo oriunda da filosofia grega) Neste aspecto
Walde eacute categoacuterico e nos apresenta alguns paracircmetros dessa distinccedilatildeo empregada por Justino
Devo notar aqui que esta ecircnfase na razatildeo natildeo deve nos fazer pensar que a feacute natildeo
significava nada para Justino Ele se refere muitas vezes agrave feacute em suas apologias Ele
fala de noacutes sendo transformados ldquopor feacute atraveacutes do sangue e da morte de Cristordquo Ele
inclusive se refere a Abraatildeo que ldquofoi justificado e abenccediloado por Deus devido a sua
feacute nelerdquo No entanto o assunto de conhecimento eacute central aqui porque Justino deu
mais peso em crer nos ensinos de Cristo que crer no proacuteprio Cristo491
Em vista disso natildeo haacute duacutevidas de que a capacidade para decidir para escolher para
tonificar juiacutezos para agregar ou natildeo inferecircncias ou ateacute mesmo para se possuir um meacutetodo de
postura loacutegica passava claramente pela apropriaccedilatildeo da Verdade por meio da razatildeo humana na
concepccedilatildeo de Justino Sendo possiacutevel a partir de entatildeo formar-se no homem (exclusivamente
na experiencia cristatilde ndash com o verdadeiro Logos) os acordos morais para constituiccedilatildeo dos
pensamentos ou das ideias necessaacuterias para a vida humana
Por conseguinte somente aqueles que agregavam a si esta ldquorazatildeordquo (o Logos) poderiam
usufruir de um verdadeiro discernimento e juiacutezo que era proveniente Daquele que se tornou
489 JUSTINO I Apologia XXVIII 4
490 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2009 p 32 apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da
Feacute Cristatilde 2014 p 15
491 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
113
ldquocorpo razatildeo e almardquo492 Diante disso clarificasse a ideia e torna-se vigente o conceito de que
para Justino o Logos eacute o ldquoDeus visiacutevel que manifesta o Deus invisiacutevel Os cristatildeos satildeo aqueles
que manifestam o Logos divino pois O possuem de forma integralrdquo493 Neste ponto em questatildeo
Schaff nos ajuda na compreensatildeo desta distinccedilatildeo
O cristianismo conteacutem a racionalidade necessaacuteria para ser aceito e compreendido pela
filosofia grega Dessa maneira defendendo o cristianismo Justino defendeu a feacute
cristatilde referindo-se agrave feacute em Cristo como forma de justificaccedilatildeo e transformaccedilatildeo sendo
essa feacute totalmente racional494
Este comportamento da feacute compreendida eou assimilada pela razatildeo mostrou-se mais
como uma forma de pensamento do que de conduta naquele momento da histoacuteria495 Isso levou
a classe Apologista do periacuteodo de Justino (praticamente toda helenista em sua origem eou base
cultural) a considerar este procedimento justo e legiacutetimo em sua ordem o que tambeacutem de
maneira muito razoaacutevel possibilitou que este entendimento fosse aceito e vivido496 de forma
significativa em determinados nichos da referida realidade sociorreligiosa
Neste quesito em particular notamos com clareza que o procedimento adotado por
Justino para defender a feacute cristatilde se utilizou de admiraacuteveis recursos filosoacuteficos (racionais)
Justino ldquoSoube juntar admiravelmente os princiacutepios da razatildeo com os dogmas da feacuterdquo497 para
comunicar-se com uma classe distinta intelectualmente de modo especial com aqueles
(Imperadores Senadores outros) aos quais as obras foram dirigidas (a I e II Apologias e o
Diaacutelogo com Trifatildeo no caso de Justino especificamente) A legitimidade da proposta de Justino
(apresentar a feacute cristatilde como um fato racional a ser implantado e assimilado pelos ouvintes)
permite algumas consideraccedilotildees Walde argumenta nesta direccedilatildeo quando diz
Era importante mostrar a racionalidade da feacute e o Logos era o locus da razatildeo nas altas
escolas de filosofia grega [] Isso garantiu a racionalidade do cristianismo
492 JUSTINO II Apologia X 1
493 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 47
494 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 723
apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 21
495 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
496 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
497 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 52
114
identificando a Jesus como o Logos indicando Sua antiguidade que era importante
para a mentalidade grega em estabelecer uma crenccedila498
A partir deste ponto fomentaremos a atribuiccedilatildeo enfaacutetica do capiacutetulo XXVIII da I
Apologia onde Justino afirma com veemecircncia e certo rigor que ldquoSe algueacutem natildeo crecirc que Deus
se preocupe com essas coisasrdquo499 este (ou estes) passa por um consideraacutevel descompasso de
ordem moral Esta afirmaccedilatildeo eacute muito relevante no conjunto em que estaacute aplicada pois denota
de maneira singular toda a estrutura da mensagem do Apologista
Referente a esse caso nos eacute possiacutevel afirmar balizados em toda a descriccedilatildeo
empreendida do sistema de loacutegica adotado por Justino ndash sob clara influecircncia da escola
platocircnica500 ndash que para o Apologista os natildeo-cristatildeos (praticantes ou natildeo dos valores atribuiacutedos
a razatildeo) natildeo conseguiam ponderar com a autecircntica ldquorazatildeo universalrdquo a mesma que era e estava
implantada no ser humano de maneira inata e agora se fazia conhecer porque manifestava-se
nas vidas (consciecircncias regeneradas) dos cristatildeos501
A concepccedilatildeo sobre uma ordenaccedilatildeo coacutesmica universal vista na filosofia estoica502
comeccedila no contexto teoloacutegico de Justino a ser denominada de Logos Spermatikoacutes503 Conceito
que de forma ampla e sistemaacutetica passa a ser usado pelo autor ndash e consequentemente pelo meio
cristatildeo ndash em sua II Apologia na qual Justino ldquoatribui a Cristo a expressatildeo lsquoLogos Spermatikoacutesrsquo
(verbo seminal ou semente da razatildeo) significando que dEle procedem todas as coisasrdquo504
Assim quando os homens natildeo aceitam a distinccedilatildeo que a Verdade oferece para tudo que a ela eacute
estranho prova-se que eles (homens) necessariamente agem sem estar em seu juiacutezo pleno
completo perfeito ou seja natildeo satildeo dirigidos nem governados pelo verdadeiro Logos Nisso se
498 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
499 JUSTINO I Apologia XXVIII 4
500 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
501 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
502 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
503 Fluck explica que o que se entendia na filosofia como ldquorazatildeo universalrdquo imanente em todas as coisas foi
relacionado a ldquosemente racionalrdquo que estaacute presente em todo ser humano (Logos Spermatikoacutes ou semente do
Logos) Ver FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2009 p 33 apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em
Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 17 Jaacute Haumlgglund diz que a razatildeo como um embriatildeo encontra-se implantada dentro
deles (Loacutegos Spermatikoacutes) Mas os apologistas em contraste com os estoicos natildeo diziam ser ela uma espeacutecie de
razatildeo universal concebida panteisticamente Em vez disso identificavam o Logos com Cristo Ver HAumlGGLUND
Histoacuteria da Teologia 1999 p 23
504 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 20
115
conclui que estes homens estatildeo corrompidos na ldquosua opiniatildeo o que eacute a maior impiedade e
iniquidaderdquo505
Logo podemos deduzir um final especiacutefico ao pensamento de Justino nesta periacutecope
Entendemos que o paralelo entre feacute e razatildeo eacute um excelente instrumento indicativo orientador
e balizador na tentativa de afirmaccedilatildeo de sua doutrina e de refutaccedilatildeo do erro sendo que o
constituidor dessa anaacutelise deficiente da realidade (o erro de natildeo se utilizar corretamente da
razatildeo) se estabelecia em um conjunto temaacutetico muito amplo e complexo (crenccedilas instituiccedilotildees
poliacutetica etc) o qual decidimos chamar de realidade ou meio sociorreligioso
Sabemos que aplicar o relato de Justino a anaacutelises contemporacircneas pode causar um
aprisionamento indevido de um pensamento nobre e puro mas eacute inquestionaacutevel o uso de meios
e ferramentas que mostram com clareza ndash em uma orquestraccedilatildeo quase impecaacutevel ndash os incriacuteveis
subsiacutedios racionais que Justino possui para julgar o cenaacuterio de seus conflitos Dreher nesta
esteira enfatiza que para Justino em ldquoCristo toda a filosofia chega agrave perfeiccedilatildeo Por isso os
cristatildeos satildeo os verdadeiros seres racionaisrdquo506
Portanto deduzimos a partir de tantas evidecircncias que na compreensatildeo de Justino a
Verdade tambeacutem se encontra no seu oposto pois sempre que o homem natildeo usar da razatildeo para
assumir viver e praticar a Verdade ldquoou teraacute que confessar com sofismas que natildeo existe (a
Verdade) ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como uma
pedrardquo507
Na abordagem deste capiacutetulo trabalhamos a construccedilatildeo da imagem de Justino Maacutertir
como um filoacutesofo inserido e atuante no mundo greco-romano do Seacuteculo II dC ou como citado
anteriormente da filosofia na vida do cristatildeo Justino Procuramos por meio deste exame fazer
uma clara e suficiente descriccedilatildeo do corpo base desta anaacutelise que partiu e se concentrou no
capiacutetulo XXVIII da I Apologia Em seguida passamos a um exame da vida do autor em meio
agrave filosofia de sua eacutepoca e descrevemos as principais influecircncias filosoacuteficas na formaccedilatildeo do
Apologista Aleacutem disso abordamos o efeito desta construccedilatildeo que possivelmente se tornou um
dos maiores (se natildeo o principal) legados deixado pelo autor Por uacuteltimo buscamos estabelecer
um comentaacuterio soacutebrio sobre a tese de Justino a respeito da realidade da razatildeo regenerada como
o agente arbitral na vida humana como a ldquoforccedilardquo condutora para se conhecer agrave Verdade
505 JUSTINO I Apologia XXVIII 4
506 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47 grifo nosso
507 JUSTINO I Apologia XXVIII 4 grifo nosso
116
No proacuteximo capiacutetulo trataremos do que em nossa opiniatildeo eacute o ponto epiteacutetico deste
relato apologeacutetico de Justino Mesmo diante de muitas circunstacircncias que em sua eacutepoca afligiam
consideravelmente a cristandade Justino nos apresenta uma ldquochave mestrardquo que no seu
entendimento nos prova que o cristianismo eacute a religiatildeo mais antiga e deste modo a uacutenica que
revela genuinamente a Verdade
117
4 A VERDADE REVELADA POR FATOS PROFEacuteTICOS SEGUNDO JUSTINO
Poderiam nos objetar ldquoQue inconveniente haacute em que esse que noacutes chamamos Cristo
seja um homem que vem de outros homens e que por arte maacutegica fez os prodiacutegios
que dizemos e por isso pareceu ser filho de Deusrdquo Apresentaremos pois a
demonstraccedilatildeo natildeo dando feacute agravequeles que nos contam os fatos mas crendo por
necessidade naqueles que os profetizaram antes de acontecer da forma que os vemos
cumpridos ou que estatildeo se cumprindo diante dos nossos olhos tal como foram
profetizados demonstraccedilatildeo que acreditamos que pareceraacute a voacutes mesmos a mais forte
e a mais verdadeira508
Iniciamos a seccedilatildeo final desta dissertaccedilatildeo partindo novamente da principal delimitaccedilatildeo
textual empregada a esta pesquisa Neste espaccedilo nossa anaacutelise se concentraraacute no capiacutetulo XXX
da I Apologia onde encontramos uma enfaacutetica afirmaccedilatildeo apresentada acerca da leitura das
profecias do Antigo Testamento e da interpretaccedilatildeo que Justino fez delas
Quando examinamos a trajetoacuteria de Justino na feacute cristatilde nos deparamos com
comentaacuterios situacionais que visam fixar conjuntos referenciais sobre as coisas consideradas
reais as quais nos possibilitem identificar com clareza as situaccedilotildees existentes no cenaacuterio
analisado Uma dessas afirmaccedilotildees seria a de que ldquoSeguindo sua inspiraccedilatildeo (de Justino) logo
houve outros cristatildeos que se dedicaram a construir pontes entre sua feacute e a cultura da
antiguidaderdquo509 Asserccedilotildees como esta mostram um caminho amplo e sistecircmico de um projeto
de construccedilatildeo que visa estabelecer novos paradigmas neste caso especiacutefico para a cristandade
da eacutepoca
Este processo natildeo eacute formado simplesmente por elementos de coesatildeo mas tambeacutem por
muitas medidas de desconexatildeo Em alguns momentos o projeto evangeliacutestico de Justino eacute
desenvolvido majoritariamente por meios apologeacuteticos e foi amplamente caracterizado por
visar um processo de desconstruccedilatildeo dos valores vigentes de seu meio sociorreligioso algo que
jaacute atestamos anteriormente relacionando o processo dialeacutetico de Justino a outros fatores
Seguindo esse processo este capiacutetulo nasce da necessidade de apresentarmos uma
resposta satisfatoacuteria para algo que surge na parte final da porccedilatildeo selecionada como base
(capiacutetulos XXIII a XXX da I Apologia) de nossa busca de soluccedilotildees para o objetivo central desta
pesquisa Neste contexto um ponto epiteacutetico surge e se move em meio agraves palavras de Justino
sendo enfaticamente referido ao cumprimento profeacutetico do Antigo Testamento Esse caso
508 JUSTINO I Apologia XXX 1 grifo nosso
509 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 92 grifo nosso
118
interpretativo do Apologista natildeo ocorre apenas no capiacutetulo XXX mas tambeacutem em outras
passagens da I Apologia510 as quais condicionaratildeo o alvo final de nossa anaacutelise
Entretanto se haacute um epiacuteteto significa que haacute um cliacutemax neste conjunto que requer ser
exposto e acima de tudo abordado Deste modo surgem algumas indagaccedilotildees sobre este ponto
alto levantado e abordado por Justino Essa busca nos leva a perguntar como estava a
consciecircncia sobre a realidade messiacircnica no Seacuteculo II em meio aos cristatildeos O que eram e o
que significavam as profecias consideradas messiacircnicas do Antigo Testamento para Justino
Elas se realizaram na visatildeo do autor O que ele visava comunicar para seus leitores atraveacutes
delas Havia nelas um ponto alto uma maacutexima a ser revelada Por uacuteltimo havia como a
Verdade ser revelada eou representada por meio do cumprimento dessas profecias
41 O MESSIANISMO ATEacute OS DIAS DE JUSTINO
O messianismo como movimento teoloacutegico tem uma longiacutenqua e variada histoacuteria em
sua estruturaccedilatildeo e desenvolvimento Diversos cenaacuterios humanos desde as antigas dinastias do
Impeacuterio Egiacutepcio passando por quase todo crescente feacutertil chegando ateacute a antiga realeza
Mesopotacircmica descreviam traccedilos de similaridade que apresentavam um ser protagonista em
seu ambiente poliacutetico e religioso (caso essa diferenciaccedilatildeo possa existir para a eacutepoca) o qual
passa a caber como uma entidade superior gerada manifestada sustentada e dirigida
Divinamente
A pesquisa moderna nos tem surpreendido de maneira constante ao apresentar
elementos encontrados nas civilizaccedilotildees antigas os quais se referem agrave ideia sobre a existecircncia
de uma figura messiacircnica de presenccedila soberana potencial salviacutefico e valor moral ilibado O
Egito como um grande Impeacuterio na antiguidade jaacute nos expotildee uma diversidade de personagens
exoacuteticos (que envolviam essencialmente a figura do ImperadorFaraoacute) que deveriam de
maneira fundamental exercer uma ordem religiosa poliacutetica e moral Cabe-nos ressaltar de iniacutecio
que ldquolonge de produzir qualquer coisa parecida com a figura de um lsquoMessiasrsquordquo511 como no
judaiacutesmo as crenccedilas religiosas no antigo Egito salientavam que esse agente mantenedor da
ordem coacutesmica ndash com accedilatildeo visiacutevel no tempo presente ndash faria por meio de sua sucessatildeo
(dinastia) a manutenccedilatildeo desses elementos cariacutessimos para o bem geral e deste modo
510 Ver JUSTINO I Apologia XXXIII 1 XXXVI 6 XLIV 3 XLVIII 1 LI 6 LII 1 4
511 BAINES In A realeza egiacutepcia antiga formas oficiais retoacuterica contexto Rei e Messias em Israel e no Antigo
Oriente Proacuteximo dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 52
119
possibilitaria a passagem para o mundo futuro de qualidade superior por ser santificado pela
ldquopassagem do deus-Sol pelo aleacutemrdquo512
Quanto agrave regiatildeo da Mesopotacircmia os povos de origem Sumeacuteria Babilocircnica e Assiacuteria
demonstram similar afinidade quando buscam exteriorizar o modelo de realeza ideal a ser
desempenhado pelo respectivo soberano em atividade Nestes povos nos chama a atenccedilatildeo que
a linhagem deste personagem era considerada uma inquestionaacutevel instituiccedilatildeo Divina sendo
ldquodesignado pelo pai (Rei predecessor) como o priacutencipe herdeirordquo513 Tal nomeaccedilatildeo era ldquofeita
com a aprovaccedilatildeo dos deusesrdquo514 algo que tambeacutem ocorre de forma similar na aprovaccedilatildeo de
Davi e sua linhagem como monarquia perpeacutetua515 Quanto aos Mesopotacircmicos ainda eacute
necessaacuterio mencionar a respeito de suas ldquoinscriccedilotildees reacutegiasrdquo516 que apresentavam a solene
tradiccedilatildeo ao povo tambeacutem traziam consigo a responsabilidade de descrever o ethos do Soberano
como algueacutem que fora designado e iluminado divinamente para o cargoposiccedilatildeo Essa
contestaccedilatildeo explica por que ldquoNesse sentido a antiga Mesopotacircmia era verdadeiramente
messiacircnicardquo517
No Antigo Testamento variadas e amplas satildeo as alternativas que se apresentam na
construccedilatildeo de uma possiacutevel linha de pesquisa sobre o tema Elas perpassam todo o texto biacuteblico
do Pentateuco aos Profetas Menores ganhando destaque junto aos Livros Histoacuterico que ldquonos
permitem conhecer todas as luzes e sombras da esperanccedila messiacircnicardquo518 aleacutem de tambeacutem
encontrar uma ecircnfase diretiva nos Profetas Maiores (Isaiacuteas e Ezequiel por exemplo) Contudo
eacute nos escritos Poeacuteticos e Sapienciais que encontra-se o repouso pleno dessa mensagem de
esperanccedila e o Livro dos Salmos ganha significativa relevacircncia junto ao cenaacuterio Hamilton nos
enfatiza que a ldquoliteratura de Salmos considera de modo todo especial o mashicircah como agente
512 BAINES In A realeza egiacutepcia antiga formas oficiais retoacuterica contexto Rei e Messias em Israel e no Antigo
Oriente Proacuteximo dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 53
513 CAZELLES Il Messia della Bibbia Cristologia dellrsquoAntico Testamento 1993 p 43 grifo nosso No Original
Designato dal padre come principe ereditario
514 CAZELLES Il Messia della Bibbia Cristologia dellrsquoAntico Testamento 1993 p 43 No original fatta con
lapprovazione degli dei
515 LAMBERT In A realeza na antiga Mesopotacircmia Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 53
516 LAMBERT In A realeza na antiga Mesopotacircmia Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 73
517 LAMBERT In A realeza na antiga Mesopotacircmia Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 73
518 SICRE De Davi ao Messias textos baacutesicos da esperanccedila messiacircnica 2000 p 103
120
de Deus ou seu vice regente (como em Sl 22)rdquo519 Esta perspectiva ndash recebida mediante os
escritos considerados profeacuteticos sobre a figura ldquosalviacuteficardquo para Israel ndash fica clara quando
salienta a trajetoacuteria do Ungido ao fazer seu percurso de caraacuteter libertador e restaurativo Este
anuacutencio salviacutefico conecta-se automaticamente de forma simples ao proacuteximo passo desta missatildeo
libertadora520 a qual consideraraacute as profecias como realizadas em definitivo
Ao examinarmos alguns dos conceitos fundamentais da hermenecircutica messiacircnica no
Novo Testamento vemos que a expectativa sobre o restabelecimento de um reino Daviacutedico
sobre a terra (amplamente difundido na concepccedilatildeo religiosa do judaiacutesmo tardio) faz com que a
Nova Alianccedila estabelecida na concepccedilatildeo dos cristatildeos atraveacutes do advento do Ungido ganhe
contornos bem definidos no sentido de enxergar na figura de Jesus Cristo o cumprimento
absoluto das promessas messiacircnicas
Dos Evangelhos ao Apocalipse de Joatildeo o messianismo que antes representava
majoritariamente um princiacutepio de restauraccedilatildeo poliacutetica e espiritual para diversos movimentos
judaicos passou a ganhar nova e emblemaacutetica posiccedilatildeo pois tudo ndash em maior ou menor
proporccedilatildeo dependendo do autor biacuteblico ndash foi constituiacutedo pela forte convicccedilatildeo do elemento
messiacircnico (como um ente) relacionado agrave ldquopresenccedila terrena passada de Jesus o Messias
(prometido a Israel)rdquo521 vinculando Este agrave realidade dos fatos presentes e dos eventos futuros
(escatoloacutegicos) aguardados pelos cristatildeos Importante tambeacutem citarmos que para a formaccedilatildeo
dogmaacutetica no Seacuteculo I os relatos histoacutericos do cristianismo (Atos dos Apoacutestolos) tiveram
fundamental importacircncia nesta construccedilatildeo teoloacutegica pois viriam ldquopara confirmar tanto a
historicidade do personagem quanto sua consideraccedilatildeo popular do Messiasrdquo522
Tratando-se do periacuteodo poacutes-apostoacutelico ateacute os dias de Justino ndash ponto que se torna o
delimitador desse item ndash vemos que uma pujante cristalizaccedilatildeo sobre o conceito messiacircnico se
estruturava sem maiores dificuldades O relato escrituriacutestico somado agrave forte conscientizaccedilatildeo
sobre a existecircncia de um futuro reinado messiacircnico sobre a terra ratificava de forma decisiva
519 HAMILTON In 1255c maumlshicircah Ungido aquele que eacute ungido Dicionaacuterio Internacional de Teologia do
Antigo Testamento 1998 p 885 grifo do autor
520 Cabe-nos registrar que o periacuteodo entre 340 aC a 30 dC eacute riquiacutessimo no que se trata de documentaccedilatildeo
envolvendo o tema messiacircnico em Israel Os escritos de Qumran satildeo proacutedigos em registros que tratam sobre a
expectativaesperanccedila messiacircnica para o periacuteodo que antecede e inaugura o Novo Testamento Ver BROOKE In
Realeza e messianismo nos manuscritos do Mar Morto Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 451-472 SICRE De Davi ao Messias textos
baacutesicos da esperanccedila messiacircnica 2000 p 334-351
521 ROWLAND In Cristo no Novo Testamento Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 510 grifo nosso
522 MIRALLES El Mesiacuteas en tiempos del NT 2006 p 40 No original a confirmar tanto la historicidad el
personaje como su consideracioacuten popular de Mesiacuteas
121
a mentalidade cristatilde no periacuteodo a ponto de podermos afirmar que ldquotornou-se caracteriacutestica da
escatologia cristatilde primitiva por exemplo Justino Dial 113 139 Tertuliano Adv Marcionem
3 24 Irineu Adv Haer 5 33 3-4rdquo523 entre outros Pais ateacute final do Seacuteculo II o estabelecimento
do entendimento de que o pleno cumprimento das profecias messiacircnicas estava em Jesus Cristo
tanto nos fatos jaacute realizados quanto nos ainda por se cumprirem524 Este caso em especiacutefico
tambeacutem nos atesta que os Pais Apologistas foram aqueles que produziram os ldquoprimeiros ensaios
de teologia cientiacutefica que apareceram na Igrejardquo525 mostrando deste modo quatildeo notaacutevel foi
sua influecircncia Esta tendecircncia hermenecircutica messiacircnica na Patriacutestica perdurou ateacute o advento da
escola alexandrina no iniacutecio do Seacuteculo III526
Deste modo de maneira incontestaacutevel podemos afirmar que o messianismo como
temaacutetica teoloacutegica tornou-se uma das contribuiccedilotildees mais importantes da histoacuteria da
religiosidade monoteiacutesta a niacutevel mundial tendo como seus baluartes intelectuais o cristianismo
(de forma maciccedila) e algumas correntes do judaiacutesmo Este ideaacuterio teoloacutegico ndash que se concentra
em um ou dois agentes527 de superaccedilatildeo da realidade sociorreligiosa ndash iniciou-se provavelmente
como algo inserido profundamente em ditames de teor poliacutetico passando posteriormente a ser
um princiacutepio orientativo para determinados seguimentos religiosos e acabou por se definir em
uma expectativaesperanccedila de caraacuteter excepcionalmente escatoloacutegico
Salientamos que a partir do desenvolvimento da ldquoideologiardquo messiacircnica houve uma
abrupta ruptura entre as suas duas principais correntes de aclamaccedilatildeo especialmente devido a
singularidade identitaacuteria do protagonista algo de imensa relevacircncia para ambos os lados Este
fato requerido e inegociaacutevel em sua espeacutecie tornou-se o ldquoatestadordquo do cumprimento profeacutetico
das exigecircncias teoloacutegicas que distinguiam especialmente a ldquoliteratura cristatilde primitivardquo528
Obviamente sabemos que estas ldquobalizasrdquo envolvem a pessoa de Jesus morador histoacuterico da
cidade de Nazareacute como sendo o autecircntico Ungido (MessiasCristo) prometido a Israel
Os passos a seguir nos conduziratildeo de maneira especiacutefica novamente ao pensamento
de Justino Sua compreensatildeo do escopo profeacutetico messiacircnico do Antigo Testamento torna-se a
523 ROWLAND In Cristo no Novo Testamento Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 493 grifo do autor
524 Aqui nos referimos a tese moderna do ldquojaacute e o ainda natildeordquo desenvolvida por Oscar Cullmann Ver
CULLMANN Salvation in History 1967
525 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 49
526 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
527 Ver SICRE De Davi ao Messias textos baacutesicos da esperanccedila messiacircnica 2000 p 342-343
528 ROWLAND In Cristo no Novo Testamento Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 492
122
partir de agora nosso alvo e objeto de anaacutelise Esse conjunto de fatos que exteriorizou a
revelaccedilatildeo Divina antes do advento do cristianismo como religiatildeo acabou por condicionar-se
entre outras coisas em um dos casos mais pertinentes da doutrina cristatilde em toda a sua histoacuteria
O Logos Palavra Verbo que encarnou na concepccedilatildeo cristatilde foi entendimento claramente como
o Messias prometido a Israel o qual toda a tradiccedilatildeo religiosa judaica (por seacuteculos) ainda
esperava poreacutem Justino junto aos seus (cristatildeos) jaacute o havia reconhecido e recebido como
Deus
42 AS PROFECIAS MESSIAcircNICAS NA VISAtildeO DE JUSTINO
Toda abordagem de Justino nesta temaacutetica possui um elevado grau de reconhecimento
especialmente devido agrave sua posiccedilatildeo Patriacutestica pois em Justino nos eacute possiacutevel afirmar que este
foi ldquoum dos primeiros autores cristatildeos a formular a exegese da presenccedila do Verbo-Messias na
Lei e nos profetasrdquo529 Esse reconhecimento se destaca por meio de um forte aparato
metodoloacutegico no qual a estruturaccedilatildeo escrituriacutestica do Apologista ganha ecircnfase Xavier salienta-
nos esta orientaccedilatildeo definindo-a como um proacutedigo ldquoponto cardealrdquo na temaacutetica do autor ldquosua
obra como um todo contribuiacute para explicar a feacute cristatilde baseada nas Escrituras como a fonte
suprema de autoridade cujas profecias podem ser compreendidas somente pela Graccedila de
Deusrdquo530
Ao analisarmos a I Apologia fica-nos evidente a relaccedilatildeo que Justino faz de forma
automaacutetica ou seja como uma consequecircncia procedimental do papel das Escrituras Sagradas
referente a manifestaccedilatildeo de Cristo como pessoa humana e como ministro das coisas celestiais
Aleacutem disso Justino contempla (reconhece) nas profecias toda a revelaccedilatildeo que Deus visou
apresentar aos Homens atraveacutes do Logos encarnado em Cristo Notamos que este
condicionamento oferecido por Justino acaba por se tornar desde cedo em sua anaacutelise profeacutetica
(do Antigo Testamento) algo absolutamente imperativo e imparcial para com o
desenvolvimento de sua perspectiva messiacircnica Na visatildeo do Apologista tudo o que eacute
legalmente oferecido e constituiacutedo em Cristo ldquorepousa nas profecias veterotestamentaacuterias e no
que ele chama de lsquomemoacuteriasrsquo dos apoacutestolos ou seja os evangelhos (JUSTINO I Apologia
LXVI 3)rdquo531
529 SIMONE In JUSTINO filoacutesofo e maacutertir Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 799
530 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 21
531 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 114
123
Neste contexto cabe-nos ressaltar esta importante fundamentaccedilatildeo do Texto Sagrado
como tambeacutem da Tradiccedilatildeo Apostoacutelica encontrada em Justino Estes alicerces da feacute cristatilde
significam e tem para Justino a funccedilatildeo de ldquobuacutessolardquo teoloacutegica a qual neste caso
especificamente sempre estaacute estabilizada na direccedilatildeo do ldquonorterdquo profeacutetico o qual sem exageros
podemos chamar de uma espeacutecie de ldquonorte messiacircnicordquo Isso porque sua interpretaccedilatildeo
(exegese) nasce de uma hermenecircutica claramente messiacircnica algo que notamos sempre de
forma niacutetida quando o Apologista aponta para a direccedilatildeo de tentar migrar agrave atenccedilatildeo ndash ou
poderiacuteamos dizer moldar o entendimento ndash de seus ouvintes para estes fatos (profecias
messiacircnicas) que possuiacuteam um teor incontestaacutevel na oacutetica do Apologista Indiscutivelmente
para Justino a ldquoprofecia eacute a prova maacuteximardquo532 eacute ldquoo ponto mais forte em relaccedilatildeo agrave veracidade
do cristianismordquo533
Algumas das passagens da I Apologia contribuem decisivamente para este conceito
Por exemplo quando Justino afirma ldquoDisso proveacutem nossa firmeza em aceitar seus
ensinamentos pois se manifesta realizado tudo quanto ele predisse que aconteceria Eis a obra
de Deus dizer as coisas antes que aconteccedilam e depois mostrar o acontecido tal qual ele foi
preditordquo534 Logo adiante no mesmo contexto o Apologista robustece ainda mais seu
raciociacutenio seguindo em uma de suas mais peculiares abordagens Justino claramente natildeo visa
um posicionamento maiecircutico535 nem busca uma manifestaccedilatildeo sofista para com o puacuteblico-alvo
de sua I Apologia Assim ele reafirma com zelo a determinaccedilatildeo de seu ideaacuterio de feacute
ldquoPoderiacuteamos terminar aqui o nosso discurso sem acrescentar mais nada considerando que
pedimos coisas justas e verdadeirasrdquo536
Neste trecho transparece-nos a ideia de que Justino reconhecia nas profecias algo de
elementar e misterioso que natildeo podia ser ocultado Para o Apologista estaacute expliacutecito que aquilo
que esta projeccedilatildeo Divina ndash de essecircncia clara devida e orientada segundo a obra do Espiacuterito
Santo ndash visava expressar ao conhecimento humano era o conteuacutedo filosoacutefico salviacutefico do Logos
que ldquoilumina toda alma de boa vontaderdquo537 fazendo com que as profecias da Antiga Alianccedila
532 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 23
533 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 114
534 JUSTINO I Apologia XII 10 grifo nosso
535 Maiecircutica (maimiddotecircumiddottimiddotca) grego maieutikeacute ciecircncia ou arte do parto Substantivo feminino Significa Uma das
formas pedagoacutegicas do processo socraacutetico a qual consiste em multiplicar as perguntas a fim de obter por induccedilatildeo
dos casos particulares e concretos um conceito geral do objeto em estudo Ver Dicionaacuterio Priberam da Liacutengua
Portuguesa Disponiacutevel em lthttpsdicionariopriberamorgmaiecircuticagt Acesso em 12 de mar 2019
536 JUSTINO I Apologia XII 11 grifo nosso
537 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 31
124
evidentemente conseguissem comunicar seu caraacuteter e estado superior o qual por ter-se
concretizado na manifestaccedilatildeo do Evangelho de Cristo atestava o cumprimento das Boas Novas
do Logos que os profetas (e tambeacutem os filoacutesofos538) haviam recebido no passado como um
sinal visiacutevel de que agrave Palavra Incriada visitaria plenamente aos homens Neste aspecto
podemos celebrar juntamente com Justino sua tentativa ordenada ndash e consequentemente loacutegica
ndash de aprumar a religiatildeo cristatilde neste cenaacuterio profeacutetico Sobre esta praacutetica Santos comenta o
seguinte
Em seu texto Justino parece revelar-nos que as profecias foram o que mais o
convenceram quanto agrave ldquoverdaderdquo do evangelho Se sua busca era encontrar Deus
(JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6) no cristianismo ele o encontrou a partir da
veracidade das profecias Elas eram a confirmaccedilatildeo de que o cristianismo era a
verdade que ele tanto procurava539
Quando se lecirc a I Apologia percebe-se que o contato de Justino com o Antigo
Testamento foi muito significativo algo que possivelmente foi ocasionado e fomentado por sua
relaccedilatildeo de proximidade na infacircncia e juventude com o ambiente judeu na cidade de Flaacutevia
Neaacutepolis mesmo que sua obra natildeo nos indique um ldquoconhecimento aprofundado do
judaiacutesmordquo540 do periacuteodo por parte de Justino
Contudo uma ordenaccedilatildeo de caraacuteter sadia ndash no sentido interpretativo ndash nos parece ter
surgido desde cedo na relaccedilatildeo analiacutetica de Justino para com as profecias veterotestamentaacuterios
Pode-se afirmar que os profetas e suas profecias lhe despertaram muito a consciecircncia e
provocaram grande reflexatildeo em Justino Dois outros aspectos chamam bastante a atenccedilatildeo
porque descrevem com consistecircncia a posiccedilatildeo hermenecircutica de Justino O primeiro estaacute
relacionado a sua defesa da ideia de que o Antigo Testamento retrata tipologicamente a Nova
Alianccedila O segundo eacute o conjunto messiacircnico desenvolvido na I Apologia541 algo que veremos
mais detalhadamente a seguir Voltando ao primeiro ponto a pesquisa de Xavier nos auxilia
significativamente pois consegue sintetizaacute-lo de forma ampla e coerente
538 Ver JUSTINO I Apologia XLIV 1-13
539 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 114
grifo nosso
540 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 83
541 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
125
No tratado ldquoContra Maacutercionrdquo refuta os ensinos deste que instigavam a crer em outro
deus maior do que o criador proferindo blasfecircmias e negando que o criador do
universo seja o Pai de Cristo Embora Marciatildeo fosse considerado cristatildeo ensinava
que o Antigo Testamento natildeo devia ser seguido pelos cristatildeos por ser muito diferente
dos ensinos de Cristo Os judeus por sua vez tambeacutem diziam que os cristatildeos
interpretavam mal o Antigo Testamento vendo nele a preparaccedilatildeo para a vinda de
Jesus Essas discussotildees propiciaram Justino a escrever ldquoDiaacutelogo com Trifatildeordquo onde
ele argumenta com o judeu Trifatildeo acerca da relaccedilatildeo entre a feacute cristatilde e o Antigo
Testamento utilizando-se de tipologias visando demonstrar como se interpreta o
Antigo Testamento afirmando que ldquo[] o Antigo Testamento aponta para Jesus
principalmente de dois modos mediante suas palavras profeacuteticas e mediante atos e
accedilotildees que satildeo lsquofigurasrsquo ou lsquotiposrsquo que tambeacutem apontam para Jesusrdquo A interpretaccedilatildeo
tipoloacutegica de Justino baseia-se nos proacuteprios fatos histoacutericos em particular nos fatos
da vida de Jesus542
Nesta posiccedilatildeo do exame cabe-nos recordar e ressaltar o caraacuteter fortemente
empiacuterico543 que se apresenta novamente no relato de nosso autor Este se sustenta de maneira
consideraacutevel pois eacute utilizado como um criteacuterio comprobatoacuterio da metodologia apologeacutetica de
Justino Como jaacute vimos anteriormente Justino natildeo era um empirista segundo o rigor que o
termo exige a partir do Seacuteculo XVII Entretanto o Apologista parece conduzir a concepccedilatildeo do
real a uma inevitaacutevel relaccedilatildeo entre teoria e praacutetica especialmente no caso do Logos profetizado
que se manifestou em Cristo Assim torna-se inevitaacutevel reconhecer que para Justino a Verdade
se manifestou no reconhecimento da experiecircncia do homem para com agrave profecia Divina
Algo que tambeacutem nos chama bastante atenccedilatildeo nesta cena eacute que este suposto meacutetodo
empirista que poderiacuteamos chamar de claacutessico544 parece ser mais atrelado agraves teorias aristoteacutelicas
do que platocircnicas545 devido agrave grande valorizaccedilatildeo do meacutetodo indutivo Desta forma vemos no
capiacutetulo XXX da I Apologista um conjunto que visa apontar elementos de teor comprobatoacuterio
Nesta porccedilatildeo encontramos a partir da visatildeo do Apologista a seguinte conceituaccedilatildeo
Apresentaremos pois a demonstraccedilatildeo natildeo dando feacute agravequeles que nos contam os fatos
mas crendo por necessidade naqueles que os profetizaram antes de acontecer da
forma que os vemos cumpridos ou que estatildeo se cumprindo diante dos nossos olhos
tal como foram profetizados demonstraccedilatildeo que acreditamos que pareceraacute a voacutes
mesmos a mais forte e a mais verdadeira546
542 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 19
543 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
544 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994
545 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
546 JUSTINO I Apologia XXX 1 grifo nosso
126
Algo de importacircncia singular em toda esta exposiccedilatildeo eacute o estabelecimento da ideia
como tambeacutem a percepccedilatildeo de um estado ativo de consciecircncia em Justino Para ele as profecias
veterotestamentaacuterias tecircm sua origem (entenda-se inspiraccedilatildeo) na terceira pessoa da Trindade547
O Espiacuterito Santo que Justino chama de ldquoEspiacuterito profeacuteticordquo548 aparece em seus registros como
Aquele que atua de forma proclamadora sendo o agente inspirador e formador no espiacuterito dos
profetas da Palavra a ser promulgada trazendo ao conhecimento de todos por meio desses
servos os eventos divinos que futuramente se revelariam Aqui vale-nos registrar que o
princiacutepio de pressaacutegio como algo que foi ajuizado para se revelar num tempo futuro possuiacutea
fundamental importacircncia nesta conceituaccedilatildeo Para Justino era imprescindiacutevel em sua
construccedilatildeo apologeacutetica salientar que as profecias foram registradas efetivamente antes de seu
cumprimento ou seja antes de terem se tornado fatos reais549
Neste contexto cabe-nos examinar duas passagens da I Apologia que promovem esta
ideia Sem desejarmos abordar de maneira direta qualquer outra ecircnfase teoloacutegica nestas
passagens ndash por exemplo aplicaccedilotildees escatoloacutegicas e outras ndash iremos apenas nos focar naquilo
que entendemos ser o grau de concordacircncia substancial oferecido e exigido por ambas as
porccedilotildees dentro de nossa temaacutetica A anaacutelise profeacutetica (interpretaccedilatildeo) do Apologista se
desenvolve desta forma
Entre os judeus houve profetas de Deus atraveacutes dos quais o Espiacuterito profeacutetico
anunciou antecipadamente os acontecimentos futuros e os reis que segundo os
tempos se sucederam entre os judeus apropriando-se de tais profecias guardaram-nas
cuidadosamente tal como foram ditas e tal como os proacuteprios profetas as consignaram
em seus livros escritos em sua proacutepria liacutengua hebraica [] E de novo o mesmo
profeta Isaiacuteas inspirado pelo Espiacuterito profeacutetico disse [hellip]rdquo550
De forma emblemaacutetica vemos na apresentaccedilatildeo de Justino relacionada ao proacuteprio
Cristo Logos Messias o ponto elementar e essencial para a interpretaccedilatildeo da revelaccedilatildeo profeacutetica
do Antigo Testamento uma vez que o conhecimento transcendental relacionado agrave pessoa de
547 Justino coordena com certa razoabilidade em seus escritos a descriccedilatildeo das Trecircs Pessoas Divinas utilizando-se
especialmente para isso de foacutermulas obtidas dos ritos de batismo e eucaristia Suas referecircncias ao Espiacuterito Santo
aparecem com normalidade em suas obras embora Justino natildeo seja absolutamente claro acerca da relaccedilatildeo entre as
funccedilotildees do Espiacuterito e as do Logos em algumas passagens Entretanto eacute niacutetido que o Apologista considerava que
estes (Pai Logos e Espiacuterito) eram realmente pessoas distintas Ver JUSTINO I Apologia LXI 3-12 KELLY
Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 75
548 JUSTINO I Apologia VI 2
549 JUSTINO I Apologia XII 9-10
550 JUSTINO I Apologia XXXI 1 XXXV 3a grifo nosso
127
Jesus manifestava a sua proacutepria natureza ministerial ou seja revelava o Messias prometido a
Israel Em um contexto que aborda sobre Moiseacutes e as profecias messiacircnicas Justino eacute
categoacuterico em afirmar ldquoateacute agrave apariccedilatildeo de Jesus Cristo nosso Mestre e interprete das profecias
desconhecidas tal como foi de antematildeo dito pelo Espiacuterito Santo profeacutetico por meio de Moiseacutes
que natildeo faltaria priacutencipe dos judeus ateacute aquele para o qual estaacute reservada a realezardquo551
Nesta mesma abordagem torna-se importante fazer uma observaccedilatildeo quanto agrave
excepcional erudiccedilatildeo apresentada por Justino O Apologista fomenta uma impecaacutevel exegese
de caracteriacutestica e ordenamento dogmaacutetico algo que explica as peculiaridades do autor e seu
meio intelectual (Patriacutestico)552 distinccedilatildeo que tambeacutem pode ser detectada em sua apresentaccedilatildeo
de caraacuteter expositivo dos textos biacuteblicos utilizados553 Santos contribui decisivamente na
construccedilatildeo deste realce
Mas ele mesmo se mostra um exiacutemio exegeta ao enumerar e manusear as profecias
tanto do Antigo Testamento quanto as do Novo Testamento Justino as interpreta as
explica as esclarece revela a que se referem com uma forte argumentaccedilatildeo Haacute
algumas incoerecircncias em suas interpretaccedilotildees poreacutem estas satildeo frutos das boas
intenccedilotildees em demonstrar o quanto as profecias comprovam a superioridade da feacute dos
cristatildeos554
Notamos portanto que Justino representa mais do que uma ideia destacadamente ele
representa a continuidade de uma fiel relaccedilatildeo entre a profecia aplicada no passado e a
orquestraccedilatildeo de seu estabelecimento no presente555 Este presente que agora estaacute sob o efeito
daacute ldquotransformaccedilatildeo completa do conceito da filosofiardquo556 passa a ser entendido como um estado
contiacutenuo que invade e preenche o futuro com sua proclamaccedilatildeo por ser fidedignamente um
retrato do dogma cristoloacutegico557 ecircnfase que acaba por cristalizar-se a ponto de ser possiacutevel se
afirmar que ldquoJustino foi o primeiro verdadeiro teoacutelogo a formular uma teologia da histoacuteria
551 JUSTINO I Apologia XXXII 2b
552 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
553 HALL Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja 2003
554 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 114-
115
555 HALL Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja 2003
556 Para Boehner e Gilson agrave filosofia grega como ciecircncia entendida a eacutepoca passa para os cristatildeos o controle
histoacuterico de seus atos a partir da Era dos Pais Apologista sendo Justino o elemento decisivo para que ocorresse
esse fenocircmeno cultural Ver BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 28
557 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
128
cristocecircntricardquo558 Deste modo finalizamos este item com o pensamento de Walde Neste
vemos com clareza que no conceito de Justino a figura humana de Jesus Cristo era literalmente
a manifestaccedilatildeo do que poderia ser considerado ldquoprofecias cumpridasrdquo559
Adicionado a esta leitura apresentamos a partir de agora o exame de um dos elementos
teoloacutegicos mais caros ao cristianismo Este singelo criteacuterio nos conduziraacute ao cliacutemax daquilo que
Justino visava comunicar por meio do processo de revelaccedilatildeo contido nas profecias do Antigo
Testamento Deste modo iniciamos a parte final desta pesquisa O item seguinte iraacute
complementar o atual e finalizar este capiacutetulo com uma anaacutelise sobre o cumprimento profeacutetico
da Primeira Alianccedila sendo esse processo o grande resultado que para Justino equivale agrave
apropriaccedilatildeo da Verdade como uma definiccedilatildeo real sobre a vida e os acontecimentos humanos
pois para Justino isso prova de maneira definitiva que a Verdade estaacute com o cristianismo Essa
evidecircncia indubitaacutevel para o Apologista eacute a encarnaccedilatildeo de Cristo
43 A ENCARNACcedilAtildeO DO LOGOS APOGEU DA REVELACcedilAtildeO
Iniciamos este item citando a Walde que eacute emblemaacutetico ao se utilizar do pensamento
de Schaff quando procura introduzir em sua pesquisa um conjunto de mediadas loacutegicas que
parecem visar o estabelecimento de uma proposta a teologia de Justino Walde buscando de
maneira clara estabelecer um rigor de orientaccedilatildeo para causas que ele considera balizares
apresenta-nos mediante um meacutetodo a priori560 seu entendimento de que para Justino haacute uma
consequecircncia ndash dando-nos a impressatildeo de que este evento eacute o grau maacuteximo possiacutevel para o
caso ndash causal para aquilo que a humanidade testificou sobre a accedilatildeo salviacutefica de Deus Deste
modo Walde conjectura sobre a ideia de Schaff e nos afirma que ldquolsquoo cristianismo eacute a alta
razatildeorsquo para Justino lsquoO Logos eacute a razatildeo preacute-existente absoluta pessoal e Cristo eacute a encarnaccedilatildeo
dele o Logos encarnadorsquordquo561
Eacute oportuno aqui apresentarmos um resumo de alguns pontos essenciais jaacute
desenvolvidos em nossa pesquisa principalmente na questatildeo que envolve o conceito do Logos
em Justino poreacutem agora focado no dogma da encarnaccedilatildeo de Jesus Cristo
558 SIMONE In JUSTINO filoacutesofo e maacutertir Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 799
559 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
560 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
561 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 723
apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5 grifo nosso
129
Desta maneira optamos por comeccedilar esta reapresentaccedilatildeo de uma forma mais geneacuterica
onde a explanaccedilatildeo de Dreher contribui de maneira significativa Ele escreve ldquoO cristianismo
segundo Justino natildeo soacute eacute a mais antiga como tambeacutem a religiatildeo mais natural e praacuteticardquo562
Trata-se de uma harmoniosa relaccedilatildeo entre estado e forma ou talvez entre causa e efeito O
cristianismo como corpo (uma coletividade organizada) passa a ser o efeito seleto de uma
substacircncia (Logos) que eacute perfeita e sublime na concepccedilatildeo de Justino563 O mesmo sentido
conseguimos captar em Dreher que apresenta a seguinte definiccedilatildeo a respeito do ideaacuterio
apologeacutetico do Seacuteculo II
Toda a histoacuteria em uacuteltima anaacutelise se desenrola em direccedilatildeo ao cristianismo Homens
como Heraacuteclito e Soacutecrates foram inspirados pelo Logos divino bem como os
precursores do cristianismo Abraatildeo Elias e outros profetas Judeus Em Cristo toda a
filosofia chega agrave perfeiccedilatildeo564
Novamente algo bem condensado nos aparece junto aos comentaacuterios feitos a respeito
do Logos especialmente no que se refere aquilo ou aqueles que envolviam o ambiente
sociorreligioso de Justino ndash lugar de sua conceituaccedilatildeo por excelecircncia O cenaacuterio cultural
descrito conduz (de maneira linear) o tema a uma nova anaacutelise temporal devido ao forte teor
teoloacutegico que possuiacutea Esta mensagem reorientada (o Logos que tornou-se Homem) por Justino
afirmava que tudo o que um dia foi profetizado por um povo estrangeiro ndash considerado de
cultura ldquoestranha e inferiorrdquo a realidade do mundo greco-romano ndash a partir de agora os conduzia
a Verdade e isso de forma antroacutepica por meio de uma ideia um tanto quanto exoacutetica (absurda)
para esse meio cultural Esse novo conceito afirma que um ser excelso (divino) tinha se tornado
um ser humano ou seja que ele havia encarnado
Na mesma linha de Dreher Wachholz se pronuncia de forma muito similar ele
escreve ldquoPara Justino o cristianismo eacute a religiatildeo mais antiga pois foi preparada pelo Logos
como se evidecircncia nos profetas e no pensamento grego Em Cristo a filosofia chega agrave plenitude
Mais do que isso toda a histoacuteria se desenvolve na direccedilatildeo do cristianismordquo565 Desta maneira
a transmissatildeo dessa ideia acaba por ganhar um teor imperativo em sua implicaccedilatildeo pois nesse
ponto (encarnaccedilatildeo do Logos) a leitura que compreendemos ter havido por parte de Justino
562 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47
563 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991
564 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47 grifo nosso
565 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 61 grifo nosso
130
referente agrave Primeira Alianccedila comeccedila a apresentar de maneira elaborada seu ente e
consequentemente a este sua essecircncia Seu ente eacute Jesus Cristo (o Homem) sua essecircncia eacute
Logos566
Deste modo manifesta-se algo profundo na construccedilatildeo e postura de Justino quando
ele passa a atribuir (mesmo que de forma implicitamente) agrave encarnaccedilatildeo de Cristo toda a
eficiecircncia necessaacuteria para o pleno cumprimento das profecias do passado Notamos que na
opiniatildeo do Apologista as questotildees referentes a libertaccedilatildeo do homem de sua ignoracircncia e das
accedilotildees demoniacuteacas que o escravizam ndash assunto que eacute amplamente tratado na I Apologia567 ndash
acabam por exercer relevante importacircncia no cenaacuterio humano de forma geral porque estas
mazelas espirituais dominam e vituperam o ser humano aprisionando-o por meio de sofismas
e de falsos exames da verdadeira realidade histoacuterica Esse ponto eacute realmente relevante quando
tratamos sobre o pensamento de Justino pois ele entendia de maneira praacutetica568 que os
democircnios possuiacuteam uma missatildeo ordinaacuteria de ldquoreduzir os homens a escravos e assistentes
seusrdquo569
A ligaccedilatildeo entre a feacute cristatilde e a filosofia grega natildeo se faz sem conflitos570 e natildeo eacute uma
questatildeo de menor impacto no periacuteodo do Seacuteculo II No que cabe a delimitaccedilatildeo deste estudo o
comentaacuterio de Gonzaacutelez a respeito do Tratado de Taciano571 retrata esse conflito de visotildees que
cercava o avanccedilo do Evangelho em meio a cultura helecircnica do periacuteodo Este registro traz
importante contribuiccedilatildeo ao nosso raciociacutenio Gonzaacutelez diz
Tudo o que a haacute de valioso entre os gregos ndash prossegue Taciano ndash eles o tomaram dos
baacuterbaros Assim por exemplo a astronomia aprenderam dos babilocircnios a geometria
dos egiacutepcios e a escrita dos feniacutecios E o mesmo pode se dizer acerca da filosofia e da
religiatildeo pois os escritos de Moiseacutes satildeo muito mais antigos que os de Platatildeo e ateacute mais
antigos que os de Homero Se Homero e Platatildeo realmente eram pessoas cultas
segundo os proacuteprios gregos dizem era de se supor que conhecessem os escritos de
Moiseacutes Portanto qualquer coincidecircncia entre a cultura supostamente grega e a
religiatildeo dos ldquobaacuterbarosrdquo hebreus e cristatildeos deve-se a que os gregos aprenderam sua
sabedoria dos baacuterbaros Mas em todo caso o certo eacute que os gregos ao lerem a
566 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991
567 JUSTINO I Apologia V 1-4 IX 1 X 6
568 JUSTINO I Apologia XIV 1
569 SIMONE In JUSTINO filoacutesofo e maacutertir Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 799
570 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
571 O escrito chama-se de Discurso aos Gregos composto por Taciano o mais famoso entre os disciacutepulos de
Justino Esta obra reconhecidamente representa um ataque frontal contra tudo que os gregos consideravam
valioso em seu exerciacutecio da racionalidade especialmente naquilo que constituiacutea as bases de sua metafisica O
escrito de caraacuteter apologeacutetico tambeacutem se salienta pela defesa dos chamados ldquobaacuterbarosrdquo isto eacute dos cristatildeos Ver
GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 89
131
sabedoria dos ldquobaacuterbarosrdquo natildeo a entenderam e portanto adulteraram a verdade que os
hebreus conheciam Portanto a suposta sabedoria grega natildeo eacute senatildeo um paacutelido reflexo
e uma caricatura da verdade que Moiseacutes conheceu e que os cristatildeos agora pregam572
Um fator nesta conjuntura que apresenta caracteriacutesticas agudas estaacute na apropriaccedilatildeo de
que agrave ldquosabedoriardquo (como sendo o grande fundo de conhecimento) proveniente da filosofia e
toda ou qualquer outra forma de conhecimento humano considerado como elevado para a
concepccedilatildeo da eacutepoca usava de bases ontoloacutegicas em sua refutaccedilatildeo dos elementos vitais
apresentados pela feacute cristatilde que estava em pleno estabelecimento e curso de seu exerciacutecio
naquele ambiente gentiacutelico573
O ministeacuterio a morte e especialmente a ressurreiccedilatildeo de Cristo574 causavam natildeo apenas
estranheza mas tambeacutem incocircmodo a classe intelectual dominante O testemunho de Paulo nos
apresenta uma fraccedilatildeo dessa realidade cultural O Apoacutestolo desenvolve uma definiccedilatildeo
figurativa mas nada ilusoacuteria desta realidade e de sua reaccedilatildeo para com a nova mensagem que
surgia Ele escreve ldquoPorque tanto os judeus pedem sinais como os gregos buscam sabedoria
mas noacutes pregamos a Cristo crucificado escacircndalo para os judeus loucura para os gentiosrdquo (1
Co 122-23) Neste contexto Paulo afirma que os ldquogregos insistiam em explicaccedilotildees racionais e
buscavam sistemas especulativosrdquo575 Um procedimento de harmonizaccedilatildeo que facilmente
condicionava a si exigecircncias de que ldquoDeus se revelasse em harmonia com as suas ideias em
particularrdquo576
Portanto atraveacutes dos relatos registrados acima podemos afirmar que uma espeacutecie de
ldquomonopoacutelio do saberrdquo procurava se manter vigorosamente ativo Este cenaacuterio histoacuterico foi o
mesmo em que Justino teve que apresentar sua mensagem apologeacutetica afirmando que Aquele
ao qual representava simbolizava a plena afirmaccedilatildeo de uma loacutegica da ordenaccedilatildeo Divina entre
os homens Isso se concretiza em suas obras especialmente na I Apologia quando afirma ndash de
uma forma praticamente sistemaacutetica ndash que as profecias do Antigo Testamento se cumpriram na
encarnaccedilatildeo do Logos A obra de Gonzaacutelez nos auxilia na compreensatildeo desta loacutegica orientada e
proposta por Justino
572 TACIANO Discurso Contra os Gregos apud GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 89
573 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 88
574 Ver Atos dos Apoacutestolos 1718-32
575 METZ In A Primeira Epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006 p 253 grifo do
autor
576 METZ In A Primeira Epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006 p 254
132
Segundo os filoacutesofos gregos tudo o que nossa mente consegue compreender o faz
porquecirc de algum modo participa do ldquologosrdquo ou razatildeo universal Por exemplo se
podemos compreender que dois e dois satildeo quatro isso se deve ao fato de que tanto
em nossa mente como no universo existe um ldquologosrdquo uma razatildeo ou ordem segundo
o qual dois e dois satildeo quatro Ora o que os cristatildeos creem eacute que em Jesus Cristo esse
logos ndash e esta eacute a palavra que aparece no proacutelogo do Quarto Evangelho ndash se fez carne
O que Joatildeo 114 nos diz eacute que a razatildeo fundamental do universo o verbo ou palavra
(logos) de Deus se fez carne em Jesus Cristo577
Nesse ambiente tatildeo carregado de ordenamentos filosoacuteficos e por conseguinte tambeacutem
teoloacutegicos nasce uma interrogaccedilatildeo de acentuada relevacircncia ldquoMas por que esta interpretaccedilatildeo
sobre Jesus deve ser acreditadardquo578 Como premissa seria interessante (ou necessaacuterio)
providenciar uma soluccedilatildeo para esta demanda partindo do que podemos encontrar no proacuteprio
autor (Justino)
Assim o Apologista comeccedila a nos responder este ponto que poderia ser interpretada
como repetitiva eou ateacute mesmo ldquotrivialrdquo para com o contexto filosoacutefico e teoloacutegico moderno
Contudo esta questatildeo parece ter sido solucionada de forma amplamente criativa e inovadora
para com aquele contexto sociorreligioso Justino responde essa pergunta de caraacuteter entranhaacutevel
ndash figadal para alguns ouvintes espirituosa para outros ndash dizendo ldquoos homens poderiam
considerar incriacutevel e impossiacutevel de acontecer Deus o indicou antecipadamente por meio do
Espiacuterito profeacutetico para que quando acontecesse natildeo lhe fosse negada a feacute e sim justamente
por ter sido predito fosse acreditadordquo579
Entretanto cabe-nos realocar Walde nesta construccedilatildeo conceitual (a pergunta acima eacute
de sua autoria) Ele nos propotildee duas razoaacuteveis respostas na tentativa de concretizar sua ideia
tendo como base o que pode ser considerado um resultado ordenado na tentativa de tornar a
mensagem de Justino plausiacutevel A primeira baseia-se direta e integralmente em uma citaccedilatildeo da
I Apologia Walde vecirc com consideraacutevel eficiecircncia nas palavras de Justino580 uma opccedilatildeo
admissiacutevel para emoldurar essa questatildeo Importante tambeacutem eacute entendermos que no contexto
daquela eacutepoca (e igualmente na atualidade) em questotildees que envolviam a aplicaccedilatildeo de algumas
proposiccedilotildees natildeo bastava ser diretivo era necessaacuterio ser consequente Desta forma o autor
inicia a resposta agrave sua pergunta citando o Apologista581
577 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 92 grifo nosso
578 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
579 JUSTINO I Apologia XXXIII 2
580 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
581 Ver JUSTINO I Apologia XXXI 7-8
133
Nos livros dos profetas jaacute encontramos anunciado que Jesus nosso Cristo deveria vir
nascido de uma virgem que ele chegaria agrave idade adulta curaria toda doenccedila toda
fraqueza e ressuscitaria dos mortos que seria invejado desconhecido e crucificado
que morreria ressuscitaria e subiria aos ceacuteus que ele eacute e se chama Filho de Deus que
ele enviaria alguns para proclamar essas coisas a todo o gecircnero humano e seriam os
homens das naccedilotildees aqueles que mais creriam nelerdquo E essas profecias foram feitas
umas cinco outras trecircs outras dois mil e outras mil e oitocentos anos antes que ele
aparecesse no mundo Com efeito eacute sabido que os profetas se sucederam uns aos
outros de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo582
A segunda resposta de Walde se orienta atraveacutes de uma questatildeo cultural que tambeacutem
possui uma importante relevacircncia neste cenaacuterio ldquoNatildeo soacute foi o cumprimento da profecia notaacutevel
em si mesmo mas tambeacutem foi significante que tais profecias foram feitas muito antes dos
filoacutesofos gregos pois diferente de hoje a antiguidade era importante para a mentalidade grega
em estabelecer uma crenccedilardquo583 Cabe-nos registrar que nesse enlace a pesquisa biacuteblica teoloacutegica
poderia apontar datas posteriores (ao periacuteodo da Filosofia Claacutessica) para a promulgaccedilatildeo dessas
Palavras Profeacuteticas (Messiacircnicas) aleacutem de debater se os ldquotextos satildeo autecircnticosrdquo584 no entanto
lembramos que nosso alvo em anaacutelise estaacute centrado na pessoa de Justino o qual sem nenhuma
duacutevida eacute um dos pioneiros da interpretaccedilatildeo de caraacuteter expositivo e natildeo cientiacutefico meacutetodo (por
assim chamar) reconhecidamente usual no periacuteodo Patriacutestico ateacute o Seacuteculo V585 Deste modo
para Justino natildeo havia duacutevidas as profecias satildeo anteriores aos filoacutesofos
Na busca de um resultado mais qualificado para esta pesquisa entendemos que uma
anaacutelise mais pormenorizada da I Apologia ainda se faz necessaacuteria em pelo menos um quesito
O cenaacuterio no qual a I Apologia foi escrita expunha necessidades claras de se apresentar
evidecircncias fortes na tentativa de se estabelecer o status necessaacuterio as provas que visavam
atestar o cumprimento das profecias messiacircnicas na existecircncia futura (encarnaccedilatildeo) de Cristo
Nunca podemos esquecer que para Justino de forma primordial o cristianismo se estabelecia
em um esquema com propriedades ldquomorfoloacutegicasrdquo pois este era mais que um sistema ndash como
configurado em escolas filosoacuteficas ndash ele era essencialmente ldquouma pessoa o Verbo encarnado
e crucificado em Jesus que lhe revelou o misteacuterio de Deusrdquo586 Para Justino questotildees factiacuteveis
parecem ser importantes ou ateacute mesmo fundamentais no programa que ele visava representar
582 JUSTINO I Apologia XXXI 7-8
583 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
584 ROumlSEL Panorama do Antigo Testamento histoacuteria contexto e teologiacutea 2009 p 95
585 HALL Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja 2003
586 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 152 grifo nosso
134
de forma minuciosa Sendo assim vemos em sua construccedilatildeo apologeacutetica um claro objetivo de
desenvolvimento daquilo que ele desejava provar por meio de suas palavras
Eacute portanto necessaacuterio apresentar detalhadamente as citaccedilotildees que salientam a
encarnaccedilatildeo de Cristo na visatildeo de Justino O esquema abaixo baseia-se nas obras de Frangiotti587
e Santos588 os quais retratam em seus trabalhos esta conexatildeo exegeacutetica existente em Justino
Neste esquema conseguimos visualizar com significativa clareza (de maneira ateacute mesmo
didaacutetica) a notaacutevel relaccedilatildeo dos textos da I Apologia com os textos do Antigo Testamento que
para Justino antecipam a encarnaccedilatildeo de Cristo Segundo a obra do Apologista a realizaccedilatildeo das
Palavras preditas pelos profetas de Israel constitui a conexatildeo com o Logos tornado carne e
concretiza um dos pontos elementares da accedilatildeo de Deus em meio aos homens Partindo da I
Apologia em paralelo com a Primeira Alianccedila vemos
I Apologia Antigo Testamento
Moiseacutes que foi o primeiro dos profetas
disse literalmente ldquoNatildeo faltaraacute priacutencipe
de Judaacute nem chefe saiacutedo de seus
muacutesculos ateacute que venha aquele a quem
estaacute reservado Ele seraacute a esperanccedila das
naccedilotildees amarrando seu jumentinho agrave
vinha e lavando sua roupa no sangue da
uvardquo (JUSTINO I Apologia XXXII 1)
ldquoNatildeo faltaraacute priacutencipe de Judaacute nem mesmo um
chefe de suas entranhas ateacute que venha aquilo
que estaacute guardado para ele ele eacute a expectativa
dos povos Ele amarraraacute seu jumentinho agrave
vinha e o filhote do seu jumento ao ramo ele
lavaraacute sua veste em vinho e o seu manto no
sangue das uvasrdquo589 Gecircnesis 4910-11
E Isaiacuteas outro profeta diz a mesma coisa
com outras palavras ldquoLevantar-se-aacute uma
estrela de Jacoacute e uma flor subiraacute da raiz
de Isaiacute e as naccedilotildees esperaram sobre o seu
braccedilordquo (JUSTINO I Apologia XXXII
12a)
ldquoLevantar-se-aacute um broto da raiz de Jesseacute e um
renovo subiraacute desta raiz [] Naquele dia
haveraacute a raiz de Jesseacute que se levanta para
587 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 24-26
588 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 115-
117
589 No original ldquoοὐκ ἐκλείψει ἄρχων ἐξ Ιουδα καὶ ἡγούμενος ἐκ τῶν μηρῶν αὐτοῦ ἕως ἂν ἔλθῃ τὰ ἀποκείμενα αὐτῷ
καὶ αὐτὸς προσδοκία ἐθνῶν δεσμεύων πρὸς ἄμπελον τὸν πῶλον αὐτοῦ καὶ τῇ ἕλικι τὸν πῶλον τῆς ὄνου αὐτοῦ πλυνεῖ
ἐν οἴνῳ τὴν στολὴν αὐτοῦ καὶ ἐν αἵματι σταφυλῆς τὴν περιβολὴν αὐτοῦrdquo
135
governar as naccedilotildees nele esperaratildeo as naccedilotildees
e seu repouso seraacute gloriosordquo590 Isaiacuteas 11110
Escutai agora como foi literalmente
profetizado por Isaiacuteas que Cristo seria
concebido por uma virgem Ele diz o
seguinte ldquoEis que uma virgem conceberaacute
e daraacute agrave luz um filho e lhe poratildeo o nome
Deus conoscordquo (JUSTINO I Apologia
XXXIII 1)
ldquoPor causa disto o proacuteprio Senhor vos daraacute
um sinal eis que a virgem conceberaacute e daraacute agrave
luz um filho e tu lhe daraacutes o nome de
Emanuelrdquo591 Isaiacuteas 714
Escutai agora como Miqueacuteias outro
profeta predisse o lugar da terra em que
ele nasceria Assim diz ldquoE tu Beleacutem terra
de Judaacute de modo algum eacutes a menor entre
os priacutencipes de Judaacute pois de ti sairaacute o
chefe que apascentaraacute o meu povordquo
(JUSTINO I Apologia XXXIV 1)
ldquoE tu Beleacutem casa de Efrata eacutes insignificante
em tua existecircncia entre os milhares de Judaacute
poreacutem em teu meio se levantaraacute aquele que
seraacute governante em Israel Tambeacutem as
origens dele satildeo desde o princiacutepio desde os
tempos eternosrdquo592 Miqueacuteias 51
Tambeacutem foi predito que Cristo depois de
nascer viveria oculto aos outros homens
ateacute agrave idade adulta Escutai o que foi dito
antecipadamente a esse respeito Eacute o
seguinte ldquoUm menino nasceu um
pequenino nos foi dado cujo impeacuterio estaacute
sobre os ombrosrdquo ( JUSTINO I Apologia
XXXV 1-2a)
ldquoPorque um menino vos nasceu e um filho vos
foi dado o qual recebeu o governo sobre os
seus ombros E ele seraacute chamado de
Mensageiro do Magniacutefico Conselho pois eu
trarei paz sobre os priacutencipes e sauacutede para
elerdquo593 Isaiacuteas 95
590 No original ldquoκαὶ ἐξελεύσεται ῥάβδος ἐκ τῆς ῥίζης Ιεσσαι καὶ ἄνθος ἐκ τῆς ῥίζης ἀναβήσεται [] καὶ ἔσται ἐν
τῇ ἡμέρᾳ ἐκείνῃ ἡ ῥίζα τοῦ Ιεσσαι καὶ ὁ ἀνιστάμενος ἄρχειν ἐθνῶν ἐπrsquo αὐτῷ ἔθνη ἐλπιοῦσιν καὶ ἔσται ἡ ἀνάπαυσις
αὐτοῦ τιμήrdquo
591 No original ldquoδιὰ τοῦτο δώσει κύριος αὐτὸς ὑμῖν σημεῖον ἰδοὺ ἡ παρθένος ἐν γαστρὶ ἕξει καὶ τέξεται υἱόν καὶ
καλέσεις τὸ ὄνομα αὐτοῦ Εμμανουηλrdquo
592 No original ldquoκαὶ σύ Βηθλεεμ οἶκος τοῦ Εφραθα ὀλιγοστὸς εἶ τοῦ εἶναι ἐν χιλιάσιν Ιουδα ἐκ σοῦ μοι ἐξελεύσεται
τοῦ εἶναι εἰς ἄρχοντα ἐν τῷ Ισραηλ καὶ αἱ ἔξοδοι αὐτοῦ ἀπrsquo ἀρχῆς ἐξ ἡμερῶν αἰῶνοςrdquo
593 No original ldquoὅτι παιδίον ἐγεννήθη ἡμῖν υἱὸς καὶ ἐδόθη ἡμῖν οὗ ἡ ἀρχὴ ἐγενήθη ἐπὶ τοῦ ὤμου αὐτοῦ καὶ καλεῖται
τὸ ὄνομα αὐτοῦ μεγάλης βουλῆς ἄγγελος ἐγὼ γὰρ ἄξω εἰρήνην ἐπὶ τοὺς ἄρχοντας εἰρήνην καὶ ὑγίειαν αὐτῷrdquo
136
E outra vez por meio de outro profeta diz
com outras palavras ldquoEles transpassaram
meus peacutes e minhas matildeos e lanccedilaram sorte
sobre a minha roupardquo (JUSTINO I
Apologia XXXV 5)
ldquoPois muitos catildees me cercaram a assembleia
dos perversos me rodeia traspassaram as
minhas matildeos e os meus peacutes [] Repartiram
entre si as minhas vestes e sobre o meu traje
lanccedilaram sortesrdquo594 Salmos 211719
Citamos tambeacutem a profecia de outro
profeta Sofonias595 que literalmente
profetizou que ele montaria sobre um
jumentinho e desse modo entraria em
Jerusaleacutem Satildeo estas as suas palavras
ldquoAlegra-te muito filha de Siatildeo daacute gritos
filha de Jerusaleacutem Eis que o teu rei vem a
ti manso montado sobre um jumento
sobre um jumentinho filho de um animal
de jugordquo (JUSTINO I Apologia XXXV
10-11)
ldquoRegozija-te muito Filha de Siatildeo proclama
Filha de Jerusaleacutem Eis que o teu rei vem a ti
ele eacute justo e salvador Ele eacute humilde e estaacute
montado sobre um jumentinho um asno
novordquo596 Zacarias 99
Em suma podemos afirmar que em Justino encontra-se uma salutar e liacutempida
cristologia messiacircnica baseada consistentemente no Antigo Testamento597 De maneira
objetiva a descriccedilatildeo que conseguimos desenvolver a partir do texto de Justino nos aponta para
uma consistente elaboraccedilatildeo no qual alguns detalhes de caraacuteter terminante (irrevogaacuteveis)
quanto a funccedilatildeo de serem utilizados como conceitos primazes ndash na tentativa de estabelecer
princiacutepios e valores fundantes ndash se evidenciam por parte e a partir dos apontamentos de caraacuteter
particular que Justino faz agrave pessoa de Jesus Cristo (especialmente na I Apologia) Sem exageros
eacute possiacutevel agregarmos a esta organizaccedilatildeo textual a intenccedilatildeo de apresentar uma proposta de
constituiccedilatildeo messiacircnica segundo um modelo cristoloacutegico em desenvolvimento o qual seguia
594 No original ldquoὅτι ἐκύκλωσάν με κύνες πολλοί συναγωγὴ πονηρευομένων περιέσχον με ὤρυξαν χεῖράς μου καὶ
πόδας [] διεμερίσαντο τὰ ἱμάτιά μου ἑαυτοῖς καὶ ἐπὶ τὸν ἱματισμόν μου ἔβαλον κλῆρονrdquo
595 O Profeta aqui mencionado deveria ser Zacarias e natildeo Sofonias O equiacutevoco possivelmente natildeo eacute do tradutor
mas sim de Justino No texto grego temos σοφονιανSofonian
596 No original ldquoχαῖρε σφόδρα θύγατερ Σιων κήρυσσε θύγατερ Ιερουσαλημ ἰδοὺ ὁ βασιλεύς σου ἔρχεταί σοι δίκαιος
καὶ σῴζων αὐτός πραῢς καὶ ἐπιβεβηκὼς ἐπὶ ὑποζύγιον καὶ πῶλον νέονrdquo
597 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
137
de perto a ortodoxia da eacutepoca que jaacute estava sofrendo inuacutemeros ataques de acircmbito interno e
externo598
Natildeo haacute consenso de que Justino tenha inaugurado esse meacutetodo exegeacutetico599 mas sem
duacutevida eacute um dos que melhor conseguiu contribuir para o desenvolvimento desta temaacutetica na
histoacuteria da teologia dogmaacutetica600 Neste contexto em particular o Apologista passou a ser visto
como um claro orientador eou catalisador dos pressupostos existentes na filosofia grega Ele eacute
o primeiro a conceber o Logos como uma evidecircncia viaacutevel para uma siacutentese teoacuterica
possibilitando deste modo seu envolvimento no cristianismo Essa participaccedilatildeo intelectual
indiscutivelmente se destaca em sua autenticidade autoral a ponto de podermos dizer que
Justino foi o responsaacutevel por lanccedilar ldquoos fundamentos de um humanismo cristatildeordquo601
Este estudo evidenciou o apreccedilo e o temor de Justino pelas Sagradas Escrituras Sua
abordagem leitura e registro das profecias veterotestamentaacuterias constituem um quadro de
profunda responsabilidade e sobriedade por parte do Apologista especialmente naquilo que se
refere agrave descriccedilatildeo e aplicaccedilatildeo de seu conceito sobre o que seria a Verdade sempre focando esse
fim como um resultado da revelaccedilatildeo escrituriacutestica Nesse ponto em especiacutefico a ponderaccedilatildeo de
Xavier nos oferece generosa lucidez ldquosua obra como um todo contribui para explicar a feacute cristatilde
baseada nas Escrituras como a fonte suprema de autoridade cujas profecias podem ser
compreendidas somente pela Graccedila de Deusrdquo602
Por uacuteltimo ainda devemos adotar uma postura clara e objetiva junto a este processo
que em si traz elementos fortemente interpretativos Assim salientamos que na concepccedilatildeo de
Justino era fundamental que o procedimento exegeacutetico de um cristatildeo sempre orientasse seus
leitoresouvintesmeditantes a conhecer e descobrir agrave Verdade O acontecimento que expressava
de forma incondicional que a revelaccedilatildeo Divina se realizou concretiza-se de maneira simples
nos elementos (profecias) que provam que o Logos encarnou603 Estes relatos profeacuteticos
apresentavam as condiccedilotildees ideais tornando-se assim em fatos irrefutaacuteveis para aqueles que
598 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
599 Para Daniel-Rops Justino utiliza-se do meacutetodo de interpretaccedilatildeo jaacute encontrado em Fiacutelon de Alexandria Nesse
processo partia-se do sentido concreto e histoacuterico do relato (biacuteblico) passando a seguir a busca de se obter
(alcanccedilardescobrir) uma explicaccedilatildeo de espeacutecie simboacutelica existente (implicitamente) nos Textos Sagrados Deste
modo essa ldquodescobertardquo de caraacuteter esoteacuterico tornava-se o objetivo uacuteltimo (principal) a ser alcanccedilado nesse meacutetodo
interpretativo Contudo faltam evidecircncias mais concretas sobre essa relaccedilatildeo e influecircncia autoral sobre Justino
Ver DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 280
600 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
601 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 30
602 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 21
603 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000
138
nisso criam fazendo com que cristatildeos de todas as classes e niacuteveis viessem a abraccedilar essa ideia
(como conceito) passando a compreender o cristianismo como um valor permanente do
ldquoespiacuterito humano a que a Encarnaccedilatildeo deu o seu verdadeiro sentido e o seu alcancerdquo604 Neste
contexto de impressionante singularidade a citaccedilatildeo de Santos nos permite encerrar com
excepcional qualidade esse item apresentado ldquoTodos os detalhes da histoacuteria de Jesus jaacute estavam
preditos nos profetas do Antigo Testamento Essa eacute a maior prova da superioridade da religiatildeo
cristatilde Por isso na concepccedilatildeo de Justino tudo o que eles (os cristatildeos) dizem eacute a verdaderdquo605
604 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279 grifo nosso
605 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 117
grifo nosso
139
CONCLUSAtildeO
A presente dissertaccedilatildeo procurou explanar a respeito de uma concepccedilatildeo que se destaca
por sua ordem moral e por seus paracircmetros dogmaacuteticos apresentando-se como uma chancela
na descriccedilatildeo apologeacutetica de Justino Maacutertir Este ponto de valor axiomaacutetico revelado pelo
Apologista torna-se de maneira evidente em uma espeacutecie de mediador de sua mensagem
permeando-se em toda a extensatildeo de um de seus mais conhecidos tratados literaacuterios Assim
reconhecemos que a I Apologia de Justino estaacute repleta de uma empolgante apresentaccedilatildeo do
termo Verdade sendo este substantivo normalmente utilizado pelo autor para uma distinccedilatildeo de
caraacuteter qualitativo sobre a representaccedilatildeo de um novo conjunto humano da realidade
sociorreligiosa do Seacuteculo II
Para Justino evidenciar a Verdade era tambeacutem ldquosetorizaacute-lardquo de alguma maneira dentro
da realidade humana Necessariamente essa postura adotada pelo Apologista acabou por se
definir por meio de sua leitura ativa sobre o estado e as praacuteticas de um grupo do qual ele mesmo
pertencia e do qual se estabeleciam as bases para sua dialeacutetica Logo falar sobre a Verdade
para Justino era falar dos recursos conceituais e praacuteticos vivenciados pelos cristatildeos de seu
tempo
Importa-nos nesta conclusatildeo ressaltar que Justino visava necessariamente qualificar o
ldquoobjetordquo junto a ldquoideiardquo que possuiacutea e defendia e como um bom filoacutesofo procurou obter
explicaccedilotildees satisfatoacuterias que salientassem sua posse daquilo que realmente era verdadeiro Na
esteira desta ideia o pensamento contemporacircneo balizado em argumentos considerados
ldquoortodoxosrdquo ndash mesmo tendo se passado quase vinte seacuteculos ndash ainda redunda com forccedila pois
consegue conceber que se estar na Verdade eacute para o espiacuterito humano possibilitar que as coisas
recebam agrave devida e real importacircncia que elas possuem na realidade
A partir disso na consciecircncia do Apologista tudo o que era produzido pela feacute cristatilde ndash
sendo ela assumida como um meio constitutivo de vida e praacutetica ndash possibilitava o
desenvolvimento de um senso de valor inesgotaacutevel sobre aquilo que se pode minimamente
relacionar como sendo o real o lugar onde a Verdade se ldquohospedardquo sendo que esta existecircncia
estaacute soberanamente ligada a uma realidade superiortranscendente ou seja esse real eacute Deus
Logo estar na Verdade seraacute sempre reconhecer a soberana realidade de Deus Esta
realidade percebida de forma geral pela noccedilatildeo de se possuir a Verdade eacute a realidade de Deus
manifestada pois aquilo que os cristatildeos vivem eacute a realidade de Deus entre noacutes Assim a
Verdade seraacute confessar a infinita majestade e santidade divinas por meio do legado de Deus
140
orquestrado pelos cristatildeos Nesta linha por meio dos princiacutepios metodoloacutegicos de Justino
consegue-se sintetizar com eficaacutecia e transparecircncia os resultados aos quais o Apologista
chegou como tambeacutem compreende-se melhor sua finalidade apologeacutetica que aponta com
clareza para uma identificaccedilatildeo que conforma a ideia (Verdade) ao objeto (Jesus Cristo) o dito
(novo Modus Vivendi) ao feito (Praxis Fidei) o anunciado (Profecias Messiacircnicas) ao ocorrido
(Encarnaccedilatildeo) em seu sentido absoluto
O problema que esta pesquisa levantou objetivamente foi qual o sentido do vocaacutebulo
ldquoVerdaderdquo empreendido de forma maximal por Justino na sua primeira obra apologeacutetica A
partir disto quatro capiacutetulos foram desenvolvidos na busca de se estabelecer um caminho
central e loacutegico para a soluccedilatildeo dessa questatildeo
O primeiro capiacutetulo fez uma breve apresentaccedilatildeo de Justino sua vida seu ministeacuterio
sua obra e seu contexto histoacuterico De maneira objetiva apresentamos um resumo biograacutefico da
pessoa de Justino em seu meio social e histoacuterico Procurou-se tambeacutem apresentar traccedilos
importantes para a compreensatildeo do cenaacuterio que elaborou nossa argumentaccedilatildeo central onde o
Pai Apologista Justino foi apresentado e a obra base desta pesquisa foi examinada de modo
literaacuterio dentro da necessidade requerida ndash relaccedilatildeo na qual ainda se agregou a perspectiva
cultural de Justino e por consequecircncia esta nos conduziu a uma abordagem sobre sua formaccedilatildeo
filosoacutefica
Mesmo natildeo sendo um dos pontos de sustentaacuteculo para a estrutura desta pesquisa em
nossa opiniatildeo o fator mais importante deste primeiro capiacutetulo certamente eacute o fenocircmeno do
martiacuterio entre os cristatildeos Fora do acircmbito teoloacutegico este traacutegico processo poderia ser
interpretado de forma estranha quando apresentado como um elemento determinante e ateacute
mesmo uacutetil enquanto via para que os natildeo-cristatildeos viessem a se converter e assim conhecerem a
Verdade Desta forma compreendemos que o processo de martiacuterio dos cristatildeos como um fato
histoacuterico foi influente na concepccedilatildeo e fundamental na constituiccedilatildeo do desenvolvimento do
ideaacuterio de Justino O Apologista por meio de sua obra nos oferece a niacutetida impressatildeo de ser um
habilidoso comentador da revelaccedilatildeo escrituriacutestica tambeacutem um autecircntico conhecedor da vida
espiritual mas acima de tudo demonstra ser um irredutiacutevel defensor da crenccedila que possuiacutea
selando sua obra ministeacuterio e vida com o proacuteprio sangue derramado O martiacuterio cristatildeo foi eacute e
continuaraacute sendo um dos casos mais misterioso e emblemaacutetico da histoacuteria da civilizaccedilatildeo
humana
O segundo capiacutetulo falou sobre o novo modus vivendi orquestrado pelos cristatildeos onde
se pode de maneira sinteacutetica observar as praacuteticas do contexto social de Justino apresentando e
clarificando o que eram os haacutebitos cristatildeos em contraste com o cotidiano da cultura greco-
141
romana Nesse processo estabeleceu-se uma descriccedilatildeo de cunho analiacutetico que procurou seguir
uma loacutegica encontrada em Justino o qual pocircs em praacutetica nossa leitura sobre o meacutetodo dialeacutetico
e empiacuterico do Apologista O capiacutetulo apresenta ldquoa nova identidaderdquo surgida junto ao cenaacuterio
sociorreligioso da eacutepoca o cristianismo Aleacutem disto definir aqueles que natildeo compunham esse
grupo de feacute ndash os Judeus e os Gentios ndash tornou-se tambeacutem uma tarefa necessaacuteria Por isso foi
indispensaacutevel apresentar os criteacuterios que para Justino demonstravam a ordem sistemaacutetica de um
grupo que se distinguia e separava dos demais Para Justino tratava-se da praxis fidei Adversus
Iniquitatem ldquoa praacutetica da feacute contra a iniquidaderdquo um realce com tonalidades absolutamente
opostas que apresentava um claro e inevitaacutevel ambiente de separaccedilatildeo entre os grupos
Deste modo esta segunda divisatildeo da pesquisa nos conduziu a uma inserccedilatildeo de postura
paradoxal para com alguns haacutebitos e assuntos humanos que no periacuteodo ocupavam tanto o
acircmbito privado quanto puacuteblico Assim algumas provas factiacuteveis passaram a ser descritas como
sentenccedilas de um novo modus vivendi ndash proposto por Justino ndash na conjuntura sociorreligiosa do
Seacuteculo II fato altamente desafiador o qual definimos em sentenccedilas classificadas como
teologais deterministas e puristas de acordo com suas consequecircncias praacuteticas Aqui salientou-
se o iniacutecio das distinccedilotildees que descreviam a certeza de haver um estado manifesto e claro do
que era a Verdade para Justino
O terceiro capiacutetulo retratou a filosofia em Justino tratando a respeito de sua influecircncia
e seu legado nesse seguimento O desenvolvimento desse capiacutetulo partiu de um formal apelo
desenvolvido pelo proacuteprio Apologista no capiacutetulo XXVIII da I Apologia para o uso da razatildeo
como um elemento determinante para o reconhecimento da Verdade oriunda da revelaccedilatildeo
Divina Um exame introdutoacuterio sobre o capiacutetulo XXVIII abriu o caminho para o entendimento
do que eacute filosofia para Justino A partir disto explicitou-se o filoacutesofo Justino evidenciando
suas principais influecircncias filosoacuteficas oriundas do estoicismo e do meacutedio platonismo aleacutem de
apresentar um sinteacutetico esboccedilo do autecircntico conceito de Logos encontrado em nosso autor
filoacutesofo-teoacutelogo
Todavia o aacutepice desta seccedilatildeo encontra-se em seu uacuteltimo item onde se justificou o que
Justino almejava com a citaccedilatildeo ldquoSe algueacutem natildeo crecirc que Deus se preocupe com essas coisas
(uso da razatildeo)rdquo606 O Apologista realccedila de uma forma quase ldquopalpaacutevelrdquo sua compreensatildeo de
como se concebia naturalmente a feacute em Jesus Cristo Partindo do fato de que a razatildeo eacute um
recurso exclusivamente humano Justino entendia que apenas nisso estavam condicionadas
todas as possibilidades reais do autecircntico Logos ser recebido e concebido pelos homens o que
606 JUSTINO I Apologia XXVIII 4 grifo nosso
142
os levava a verdadeira filosofia e os afastava decisivamente dos equiacutevocos e enganos praticados
pelos democircnios
O quarto e derradeiro capiacutetulo deste estudo salienta o que Justino considera o ponto
alto da revelaccedilatildeo por ele recebida o cumprimento das profecias messiacircnicas e as consequecircncias
para compreender o que Justino considera como sendo a Verdade
Iniciamos com uma sinteacutetica poreacutem objetiva descriccedilatildeo dos elementos socioculturais
de acircmbito religioso que desde a Antiguidade ateacute os dias de Justino formaram e identificaram a
figura de um Messias na cultura judaica Em seguida analisamos a revelaccedilatildeo das profecias
messiacircnicas do Antigo Testamento na visatildeo de Justino referentes a pessoa de Jesus Cristo
Finalizamos este capiacutetulo ratificando o conceito que definimos como principal para
Justino em sua descriccedilatildeo apologeacutetica o qual apresentava a Verdade ao mundo O modo e o
sentido que o Apologista procurava dar agrave concepccedilatildeo central de sua feacute passava necessariamente
pela identificaccedilatildeo entre o Logos dos filoacutesofos com o personagem messiacircnico preconizado pelos
profetas do Antigo Testamento Vimos que esse ser que havia sido reconhecido pelos filoacutesofos
como o Logos tambeacutem havia sido profetizado pelos servos de Deus A providecircncia Divina
levou a humanidade ao ponto alto desta histoacuteria quando o Logos profetizado se encarnado
Logo as profecias se cumpriram Assim concluiacutemos que este cenaacuterio e seus casos tornaram-se
para Justino um elemento real que evidenciava de maneira inquestionaacutevel o que era a Verdade
em sentido absoluto
Por fim eacute oportuno registrar a pertinente e categoacuterica postura do Apologista em aceitar
o cristianismo como ldquoa verdadeira razatildeordquo607 Justino compreendeu que a feacute cristatilde tinha em si
alguns pontos de caraacuteter deliberativo e proposital que consequentemente se estabeleciam nas
vidas que se estruturavam sobre esses preceitos utilizando-os de forma resolutiva Aqui cabe
ressaltar que para uma correta anaacutelise de Justino como autor eacute necessaacuterio se utilizar de medidas
efetivas que amparem o uso da razatildeo para os fins que o Apologista entendia serem ordenados
por Deus Nisso salienta-se a compreensatildeo jaacute atestada no ideaacuterio de Justino de natildeo haver
acepccedilatildeo do recurso da razatildeo a nenhum homem pois todos aqueles que foram criados agrave imagem
e semelhanccedila de Deus podiam ser instruiacutedos desse modo desde as mentes mais simples as mais
capacitadas
Importa-nos ainda registrar que outros aspectos de relevacircncia para esta pesquisa
poderiam ter sido tratados visando um maior aprofundamento desta temaacutetica e suas possiacuteveis
variaccedilotildees De forma praacutetica podemos citar as seguintes observaccedilotildees propor uma maior ecircnfase
607 JUSTINO I Apologia XLIII 6b
143
na questatildeo do martiacuterio cristatildeo como elemento habilitador na construccedilatildeo do conceito da Verdade
como princiacutepio moral e dogmaacutetico uma mais detalhada descriccedilatildeo do conceito Logos tanto para
a cultura helecircnica quanto para os cristatildeos do Seacuteculo II abordar sobre o conceito elaborado por
Justino de Jesus Cristo ser o mestre dos cristatildeos608 referindo-se ao Messias como o condutor
pleno de toda verdadeira revelaccedilatildeo Divina em detrimento aos mitos criados pelo helenismo
oferecer uma pormenorizada anaacutelise sobre a forccedila ilocucionaacuteria desses atos e discursos
apologeacuteticos Aleacutem disso outros pontos significativos poderiam ter sido abordados na tentativa
de se construir de forma mais completa esse importantiacutessimo cenaacuterio do cristianismo histoacuterico
Contudo essa ampliaccedilatildeo possivelmente ultrapassaria os limites propostos desta pesquisa
provavelmente poluindo sua intenccedilatildeo central
A abordagem desta dissertaccedilatildeo demonstrou que na I Apologia Justino revela e retrata
a sua concepccedilatildeo do que eacute ser cristatildeo e viver na Verdade O Apologista transparece de forma
intensa sua postura em transmitir essa maacutexima que natildeo era simplesmente verossiacutemil em seu
entendimento Eacute fato que essa demonstraccedilatildeo tambeacutem visava proteger e resgatar seu povo de
um cenaacuterio hostil salientando por meio de sua postura uma clara separaccedilatildeo de valores e
preceitos
Vimos que as vicissitudes do tempo natildeo seriam capazes de alterar o objeto e as coisas
que caracterizavam sua posiccedilatildeo que estava plenamente balizada e sustentada por meio de sua
dialeacutetica Isso nos impressiona porque para quem procura entender este testemunho sobre a
Verdade os livros de Justino nunca envelhecem aleacutem disso quase vinte seacuteculos depois os
textos desse notaacutevel cristatildeo ainda reverberam o som do eco causado por nossos vazios que
precisam ser preenchidos pelos conceitos princiacutepios e valores que natildeo pertence a este mundo
Por essa razatildeo ldquodialogarrdquo com Justino na atualidade eacute algo importantiacutessimo e ateacute mesmo
fundamental
Em resumo para Justino a uacutenica via para possuir a Verdade era ser cristatildeo o que
equivale a crer e professar sobre Aquele que prometido pelos antigos profetas de Israel e
percebido pelos antigos filoacutesofos gregos veio em carne para apresentar agrave razatildeo humana os
meios de como se proceder ldquoafirmando a Verdaderdquo609
608 Ver JUSTINO I Apologia XIII 3 XIX 6 XXI 1-6
609 JUSTINO I Apologia XLIII 2a grifo nosso
144
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DIEGO DOS SANTOS WINGERT
CONFORMIDADE ENTRE IDEIA E OBJETO REFLEXAtildeO
SOBRE A VERDADE NA I APOLOGIA DE JUSTINO MAacuteRTIR
Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Faculdade de
Teologia da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica
do Rio Grande do Sul como requisito parcial
para obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Teologia
Aacuterea de Concentraccedilatildeo em Teologia
Sistemaacutetica
Orientador Prof Dr Caacutessio Murilo Dias da
Silva
Porto Alegre
2019
DIEGO DOS SANTOS WINGERT
CONFORMIDADE ENTRE IDEIA E OBJETO REFLEXAtildeO
SOBRE A VERDADE NA I APOLOGIA DE JUSTINO MAacuteRTIR
Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Faculdade de
Teologia da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica
do Rio Grande do Sul como requisito parcial
para obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Teologia
Aacuterea de Concentraccedilatildeo em Teologia
Sistemaacutetica
Orientador Prof Dr Caacutessio Murilo Dias da
Silva
Aprovada em _____ de _____ de _______ pela Comissatildeo Examinadora
COMISSAtildeO EXAMINADORA
______________________________________
Prof Dr Caacutessio Murilo Dias da Silva ndash PUCRS
______________________________________
Prof Dr Nythamar Hilario Fernandes de Oliveira Junior ndash PUCRS
______________________________________
Prof Dr Andreacute Luiz Rodrigues da Silva ndash PUC-Rio
A memoacuteria de meus familiares
Isidor Nairto Wingert meu querido pai por sua
histoacuteria como docente mas principalmente
pelas doces e constantes lembranccedilas de seu
carinho
Anisio e Maria Andradina dos Santos meus
saudosos avoacutes por seu amor sem medida por
sua entrega total a minha vida
Sempre os amarei
AGRADECIMENTOS
A minha amada Esposa uma luz constante em
minha vida Nela tudo sempre se renova sem
ela pouco restaria
Aos meus queridos filhos Pedro e Maria os
maiores presentes que Deus me deu Cristo
formado em voacutes eacute a maior heranccedila que pretendo
deixar
A minha amada Matildee que foi fundamental para
a realizaccedilatildeo desse sonho Seu amor foi constate
em todo tempo sua coragem sempre me
inspirou e seu legado me enche de orgulho
A meu Tio Ademir que eacute um exemplo vivo do
caraacuteter de Cristo sendo presente nessa
caminhada como um pai que acompanha seu
filho Essa conquista tambeacutem pertence a vocecirc
Ao Prof Caacutessio mestre por vocaccedilatildeo modelo de
excelecircncia para a docecircncia Sua orientaccedilatildeo foi
excepcional sua honestidade intelectual eacute
admiraacutevel Sua postura se tornou um exemplo a
ser seguido por esse teoacutelogo
Aos meus colegas Alexandre Dorcelina
Fernando Filipe Rodrigo e Samuel por tudo o
que compartilhamos e vivemos nesse tempo
jamais os esquecerei
Ao Pai ao Filho ao Espiacuterito Santo de quem eacute
o reino o poder e a gloacuteria de geraccedilatildeo em
geraccedilatildeo pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutem
ldquoEu lhes tenho dado a tua palavra e o mundo
os odiou porque eles natildeo satildeo do mundo como
tambeacutem eu natildeo sou Natildeo peccedilo que os tires do
mundo e sim que os guardes do mal Eles natildeo
satildeo do mundo como tambeacutem eu natildeo sou
Santifica-os na verdade a tua palavra eacute a
verdaderdquo
Joatildeo 1714-17
RESUMO
Esta dissertaccedilatildeo apresenta uma pesquisa bibliograacutefica direcionada a estabelecer a
identificaccedilatildeo moral e dogmaacutetica do termo Verdade exposto de forma predicativa na obra
intitulada I Apologia de Justino Maacutertir Acredita-se que na formaccedilatildeo e constituiccedilatildeo histoacuterica
do cristianismo alguns autores como Justino de Roma ajudaram a criar e fomentar os
paracircmetros necessaacuterios para se estabelecer uma ldquoidentidade cristatilderdquo durante os dois primeiros
seacuteculos da era atual A partir de novos valores e preceitos ordenou-se de maneira pragmaacutetica
uma tentativa de reconhecer e distinguir o fato de ser cristatildeo em meio ao contexto
sociorreligioso do mundo greco-romano De maneira expliacutecita e impliacutecita ndash e agraves vezes de forma
paradoxal ndash Justino categoricamente identifica o que era ser um seguidor de Cristo em sua I
Apologia aleacutem de apresentar o que poderia ser considerado como a Verdade de forma
categoacuterica e ateacute mesmo tangiacutevel nesse processo A partir desse ideaacuterio de feacute a dissertaccedilatildeo
discute questotildees pertinentes sobre o autor a obra base e outras caracteriacutesticas de seu contexto
histoacuterico Foram investigadas as relaccedilotildees entre a cultura helecircnica e o novo modus vivendi
naquele ambiente e nele a identidade filosoacutefica de Justino Por fim apresentou-se um quadro
clarificador sobre os elementos que satildeo considerados evidecircncias inquestionaacuteveis para Justino
do que eacute a Verdade revelada em meio aos homens Desenvolveu-se deste modo uma provaacutevel
definiccedilatildeo da Verdade segundo a concepccedilatildeo de Justino Maacutertir a partir de sua I Apologia
Palavras-chave Justino Maacutertir I Apologia Verdade
ABSTRACT
This dissertation presents a bibliographical research directed to establish the moral and
dogmatic identification of the term Truth exposed in a predicative way in the work entitled I
Apology of Justin Martyr It is believed that in the formation and historical constitution of
Christianity some authors like Justin of Rome helped to create and foster the parameters
necessary to establish a Christian identity during the first two centuries of the present era
From new values and precepts an attempt to recognize and distinguish the fact of being
Christian amidst the socioreligious context of the Greco-Roman world was pragmatically
ordered Explicitly and implicitly - and sometimes in a paradoxical way - Justin categorically
identifies what it was like to be a follower of Christ in his Apology in addition to presenting
what could be categorically and even tangibly Truth in that process From this idea of faith the
dissertation discusses pertinent questions about the author the base work and other
characteristics of its historical context The relations between the Hellenic culture and the new
modus vivendi in that environment were investigated and in it the philosophical identity of
Justin Finally a clarifying picture was presented on the elements that are considered
unquestionable evidences for Justino of what is the Truth revealed among men In this way a
probable definition of the Truth according to the conception of Justin Martyr from his I
Apologia was developed
Keywords Justin Martyr I Apologia Truth
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
1 Pe ndash Primeira Epiacutestola de Pedro
1 Pet ndash The First Epistle of Peter
aC ndash Antes de Cristo
Adv Haer ndash Adversus Haereses
Adv Marcionem ndash Adversus Marcionem
Cap ndash Capiacutetulo
Caps ndash Capiacutetulos
dC ndash Depois de Cristo
Dial ndash Diaacutelogo com Trifatildeo
Gn ndash Livro de Gecircnesis
ICAR ndash Igreja Catoacutelica Apostoacutelica Romana
Jo ndash Evangelho de Joatildeo
Js ndash Livro de Josueacute
Sl ndash Livro dos Salmos
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 11
1 JUSTINO MAacuteRTIR VIDA E OBRA NO CONTEXTO HISTOacuteRICO DO SEacuteCULO II
17
11 JUSTINO DE ROMA 17
12 PAIS DA IGREJA 23
121 Pais Apologistas 26
122 O Apologista Justino 29
13 ANAacuteLISE LITERAacuteRIA DA I APOLOGIA DE JUSTINO 32
131 Dataccedilatildeo 32
132 Divisatildeo Textual 34
133 Gecircnero Literaacuterio 35
134 Manuscritos 38
14 A PERSEGUICcedilAtildeO AOS CRISTAtildeOS 39
141 O Impeacuterio Romano e a Perseguiccedilatildeo ao Cristianismo 40
142 A Perseguiccedilatildeo no Periacuteodo da I Apologia 43
2 O NOVO MODUS VIVENDI 50
21 CRISTIANISMO A NOVA IDENTIDADE 51
22 O MUNDO NAtildeO-CRISTAtildeO 56
221 Os Judeus 58
222 Os Gentios 61
23 PRAXIS FIDEI ADVERSUS INIQUITATEM 65
231 Um Princiacutepio Teologal 68
2311 Praacutetica da Feacute Contra o Politeiacutesmo Relativista 69
2312 Praacutetica da Feacute Contra a Idolatria 70
2313 Praacutetica da Feacute Contra o Ateiacutesmo 71
232 Um Princiacutepio Determinista 75
233 Um Princiacutepio de Pureza 78
3 A VERDADE REVELADA Agrave RAZAtildeO A FILOSOFIA E SEU CONTEXTO NA
PERSPECTIVA DE JUSTINO MAacuteRTIR 84
31 INTRODUCcedilAtildeO AO CAPIacuteTULO XXVIII 85
32 O FILOacuteSOFO JUSTINO 90
321 Estoicismo e Platonismo em Justino 95
322 O Logos em Justino 104
33 RAZAtildeO DEUS SE PREOCUPA COM ESSAS COISAS 110
4 A VERDADE REVELADA POR FATOS PROFEacuteTICOS SEGUNDO JUSTINO 117
41 O MESSIANISMO ATEacute OS DIAS DE JUSTINO 118
42 AS PROFECIAS MESSIAcircNICAS NA VISAtildeO DE JUSTINO 122
43 A ENCARNACcedilAtildeO DO LOGOS APOGEU DA REVELACcedilAtildeO 128
CONCLUSAtildeO 139
REFEREcircNCIAS 144
OBRAS CONSULTADAS 151
11
INTRODUCcedilAtildeO
O assunto desta pesquisa dissertativa vem a ser um exame sobre uma proposta
desenvolvida a partir da obra intitulada I Apologia de Justino Maacutertir tambeacutem conhecido junto
ao meio eclesiaacutestico e acadecircmico como Justino de Roma Reconhecido de forma unacircnime como
um dos ldquomais ceacutelebres apologistas do seacuteculo IIrdquo1 Justino pertence agrave segunda era Patriacutestica
conhecida tradicionalmente pela definiccedilatildeo Pais Apologistas Nessa abordagem visamos
caracterizar a ideia de Justino a partir de sua definiccedilatildeo da palavra Verdade apresentada de
forma axiomaacutetica por diversas vezes em seu primeiro tratado apologeacutetico
Acredita-se que no processo de formaccedilatildeo desenvolvimento e consolidaccedilatildeo do
cristianismo como religiatildeo alguns valores de sentido absoluto (poderiacuteamos dizer dogmaacuteticos)
foram provedores e promovedores de um esquema de reconhecimento2 por meio de fortes
ascendentes (voltados para sua origem) de caracterizaccedilatildeo Esses valores amparados por sinais
e siacutembolos ndash alguns que receberam literal evidecircncia informativa ndash projetaram uma eficiente
identificaccedilatildeo cristatilde conseguindo externar a partir de preceitos e praacuteticas ordenadas um real
estado de enobrecimento3 e assim distinguiram o ser cristatildeo dos demais4
Aleacutem disso em toda a histoacuteria conhecida o homem sempre buscou descobrir quais
eram os reais elementos que promovem e garantem a certeza do bem (conquista felicidade
realizaccedilatildeo etc)5 e da verdade junto aos seres e as coisas com quem convive e se relaciona6
Nesse processo de desenvolvimento passando por todo percurso da histoacuteria humana nos
deparamos com as sequelas de um estado de consciecircncia que estaacute eacutetica eou moralmente
corrompido enfatizado em nosso em caso em especiacutefico pelo incocircmodo que o ser humano
passa quando exposto as consequecircncias e dilemas apresentados pelas ldquofacesrdquo da Verdade
Nesta mesma perspectiva reconhecemos que as ldquotestemunhas da verdade sempre
irritaram os ceacuteticos e os espertosrdquo7 Nessa missatildeo de testificar a Verdade os Apologistas
cristatildeos do Seacuteculo II acabaram por se distinguir mediante contribuiccedilotildees pertinentes para esse
1 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 51
2 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
3 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
4 SCOTT As Catacumbas de Roma 1996
5 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia Dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994
6 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
7 DANIEacuteLOU O Escacircndalo da Verdade1963 p 11
12
processo construtivo tornando-se diferenciais em seu tempo e espaccedilo de atuaccedilatildeo8 Justino
nesse mesmo seguimento acaba ganhando destaque atraveacutes de seus tratados que descrevem a
vida cotidiana dos cristatildeos do periacuteodo sendo-nos possiacutevel afirmar que no que se refere ao
conceito de Verdade (como predicativo) Justino parece estar ldquomais proacuteximo de noacutes do que
muitos pensadores modernosrdquo9
Uma especificidade que devemos apontar como elemento introdutoacuterio neste processo
refere-se ao entendimento de Justino para com o vocaacutebulo Verdade Neste quesito um
imperativo surge pois de forma inquestionaacutevel mediante o registro do Apologista conseguimos
considerar o que ele compreendia sobre o termo verdade em sua dimensatildeo epistemoloacutegica O
vocaacutebulo grego αλήθεια10 que comumente se traduz por verdade em portuguecircs eacute amplamente
utilizado por Justino em sua I Apologia sempre visando dar sentido e precisatildeo (absoluta) para
aquilo que o Apologista procurava identificar como algo literalmente manifesto mas que
dependia de ser apontado como agrave realidade presente e necessaacuteria para os Homens
Este conceito gramatical que Justino carrega sobre o termo Verdade jaacute estaacute presente
nos filoacutesofos11 e seu significado incorpora algo que define bem sua temaacutetica apologeacutetica
Justino compreendia que a realidade necessitava ser deslumbrada pois a verdade estaacute
subentendida a um ldquoestado preacutevio que viemos a descobrir a colocar de manifesto
estabelecendo o que a coisa eacuterdquo12 Deste modo Justino mediante sua metodologia dialeacutetica e
empiacuterica procurava salientar sua posse da Verdade por meio de um ldquosentido de certezardquo que
envolvia e incorporava a comprovaccedilatildeo de seus resultados Estes efeitos eram obtidos no
afastamento de dados distorcidos e encobertos sobre a realidade isso porque uma vez aplicado
tal desvelamento percebia-se como as coisas eram13 fazendo com que a Verdade fosse
colocada diante de seus expectadores
8 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
9 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 152
10 Rusconi ao apresentar este vocaacutebulo aborda inicialmente sobre sua composiccedilatildeo composta onde salienta que a
existecircncia da letra ldquoαrdquo no iniacutecio da palavra eacute uma partiacutecula negativa que estaacute somada ao termo ldquoλαθλήθrdquo que
significa ldquoestar escondidordquo Assim no caso em especiacutefico quase sempre a composiccedilatildeo visa expressar uma
realidade que estaacute ldquoescondida obscura eou esquecidardquo Deste modo a construccedilatildeo gramatical do termo propotildee
que a consequecircncia da autenticidade (verdade) dos fatos eacute o efeito causado pelo desvelamento destes casos Sendo
assim passa-se a conhecer a verdade a partir do momento que se remove as coisas que a ocultam Rusconi ainda
indica que o termo procurava apresentar a realidade como sendo a condiccedilatildeo objetiva das coisas visiacuteveis e
recordaacuteveis ao Homem o que atestava esse desvelamento do que estava oculto Ver RUSCONI Dicionaacuterio do
Grego do Novo Testamento 2003 p 32
11 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
12 HEGENBERG Significado e Conhecimento 1975 p 12
13 HEGENBERG Significado e Conhecimento 1975 p 15
13
A base dessa compreensatildeo sobre o vocaacutebulo verdade eacute utilizada amplamente por
Justino em sua I Apologia sempre visando dar sentido e precisatildeo absoluta para aquilo que o
Apologista procurava identificar como algo literalmente manifesto mas que dependia de ser
apontado como a realidade presente e necessaacuteria para os homens
Neste compasso eacute que esta dissertaccedilatildeo procura examinar como Justino interpretava
um de seus mais usados e emblemaacuteticos termos Este exerciacutecio nos conduz agrave questatildeo principal
que visamos responder nesta pesquisa sendo possiacutevel deste modo argumentarmos sobre este
ponto fundamental atraveacutes da seguinte interrogaccedilatildeo qual o sentido do vocaacutebulo ldquoVerdaderdquo
empreendido de forma maximal por Justino na sua primeira obra apologeacutetica
Sendo assim a realizaccedilatildeo desta pesquisa se deu atraveacutes de um exame bibliograacutefico
com literatura do tipo teoloacutegica filosoacutefica histoacuterica entre outras aacutereas relacionadas ao seu tema
base Cabe-nos salientar que esta dissertaccedilatildeo procura se apresentar como um agregado
intelectual em liacutengua portuguesa14 para sua aacuterea teoloacutegica especiacutefica
(PatriacutesticaPatrologiaHistoacuteria do Dogma) como tambeacutem para as demais aacutereas Humanas que
da mesma forma possam colher frutos num acircmbito interdisciplinar O estudo aqui proposto
baseia-se nos capiacutetulos XXIII-XXX da I Apologia de Justino Maacutertir tornando-se este nosso
principal ponto de delimitaccedilatildeo textual na busca de se compreender o conceito de Verdade para
Justino
Tratando-se dos termos Pai(s) ou Padre(s) ndash convencionalmente utilizados de forma
padratildeo e geneacuterica na titulaccedilatildeo das figuras de destaque na aacuterea Patriacutestica ndash optamos pelo
vocaacutebulo Pai como elemento descritivo a ser utilizado nesta pesquisa Isso devido a duas
questotildees orientativas A primeira busca priorizar a originalidade da liacutengua vernacular desta
dissertaccedilatildeo (portuguecircs) Jaacute a segunda procura seguir uma postura de acircmbito ecumecircnico visto
que o termo Pai se adapta melhor agrave compreensatildeo confessional cristatilde fora da realidade teoloacutegica
da Igreja Catoacutelica Apostoacutelica Romana natildeo trazendo nenhum prejuiacutezo cognitivo aos leitores
desta uacuteltima Instituiccedilatildeo
As citaccedilotildees da I Apologia de Justino foram extraiacutedas de versotildees em liacutengua portuguesa
e grega Em portuguecircs a I Apologia eacute traduzida e editada por Ivo Storniolo e Euclides M
Balancin e comentada por Roque Frangiotti para a coleccedilatildeo Patriacutestica da editora Paulus Jaacute o
texto em seu idioma original estaacute presente em duas publicaccedilotildees a primeira estaacute na coletacircnea
Patrologiae Cursus Completus Series Graeca Volume 6 editado por Jacques Paul Migne e a
14 A falta de trabalhos sobre o pensamento de Justino Maacutertir em liacutengua portuguesa no cenaacuterio nacional (Brasil) eacute
uma evidente deficiecircncia acadecircmica ateacute o momento Ver SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma
Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 12
14
segunda estaacute na coletacircnea Apologies (contendo a I e a II Apologias) traduzida e comentada por
Louis Pautigny A traduccedilatildeo e transliteraccedilatildeo do original grego quando se fez necessaacuterio satildeo de
nossa autoria15
Duas satildeo as traduccedilotildees da Biacuteblia Sagrada em liacutengua portuguesa utilizadas nesta
dissertaccedilatildeo A primeira que eacute aplicada de forma padratildeo em todo corpo textual desta pesquisa
eacute a traduzida em portuguecircs por Joatildeo Ferreira de Almeida 2ordf ediccedilatildeo Revista e Atualizada no
Brasil da Sociedade Biacuteblica do Brasil de 1993 A segunda traduccedilatildeo que eacute utilizada
exclusivamente no quadro comparativo entre os textos da I Apologia de Justino e os textos
escrituriacutesticos do Antigo Testamento localizado no IV capiacutetulo eacute de nossa inteira autoria16
Quanto ao texto grego utiliza-se o Novo Testamento Grego tradicionalmente conhecido por
Textus Receptus 15501894 (que significa texto recebido) de domiacutenio puacuteblico poreacutem editado
e produzido eletronicamente pela Sociedade Biacuteblica do Brasil em 2007 Quanto ao Antigo
Testamento emprega-se a versatildeo grega conhecida como Septuaginta de 190317 de domiacutenio
puacuteblico editada e produzida eletronicamente pela Sociedade Biacuteblica do Brasil em 2007
Esta pesquisa se desenvolve textualmente em quatro capiacutetulos O primeiro capiacutetulo
discute quatro pontos principais O primeiro eacute uma sucinta abordagem biograacutefica da figura
humana de Justino diante dos fatos existentes em seu contexto O segundo apresenta o perfil
histoacuterico e intelectual especialmente na classe Patriacutestica em que estaacute inserido O terceiro ponto
faz uma anaacutelise literaacuteria da I Apologia sua dataccedilatildeo sua divisatildeo textual seu gecircnero literaacuterio e
os manuscritos que se dispotildeem da obra Por uacuteltimo se aborda por meio de uma breve exposiccedilatildeo
histoacuterica o ponto-chave que em meados do Seacuteculo II motivou Justino a redigir esta obra o
fenocircmeno do martiacuterio cristatildeo eacute analisado como sendo a forccedila motriz que conduziu a pena de
Justino neste tratado
O segundo capiacutetulo estaacute dividido em trecircs pontos O primeiro descreve quem eram os
cristatildeos como grupo apresentando algumas de suas particularidades mas visa especialmente
construir algo que se pode explicar como uma definiccedilatildeo ldquoidentitaacuteriardquo destes homens e mulheres
que se haviam tornado mais um segmento do contexto sociorreligioso do Seacuteculo II O segundo
15 As obras de referecircncia utilizadas para tal exerciacutecio de traduccedilatildeo foram Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-
Grego de Isidoro Pereira Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento de Carlo Rusconi Dicionaacuterio Biacuteblico Strong
de James Strong e A Greek-English lexicon of the New Testament being Grimms Wilkes clavis novi testamenti
de Joseph Thayer
16 Esta opccedilatildeo se daacute devido ao fato de natildeo existir em liacutengua portuguesa uma traduccedilatildeo que represente ou se
assemelhe de maneira teacutecnica ao original grego da Septuaginta
17 Os editores empregam correlatamente o termo ldquosem acentuaccedilatildeordquo junto a titulaccedilatildeo desta versatildeo O emprego
ocorre devido ao texto grego natildeo apresentar acentos
15
que daacute seguimento ao ponto anterior visa apresentar um melhor desenvolvimento dos objetivos
deste trabalho deste modo eacute imprescindiacutevel se apresenta um esboccedilo do que para Justino se
caracteriza como os setores da sociedade opostos ao cristianismo nesta relaccedilatildeo duas ldquoclassesrdquo
surgem judeus e gentios Por fim o terceiro ponto aborda o exame principal desta etapa Aqui
se descreve uma potencial relaccedilatildeo entre fatores que por regra se diferenciam essencialmente
sendo esta diferenciaccedilatildeo estabelecida necessariamente por uma nova postura espiritual eou
religiosa Novas variantes surgem de forma definitiva no cenaacuterio sociorreligioso da eacutepoca
confrontando seu status quo o que leva Justino a reagir criando automaticamente uma accedilatildeo
dialeacutetica que envolve conceitos teologais providenciais eacuteticos e morais aleacutem de gerar outras
variaccedilotildees que estabelecem o passo futuro a ser dado por Justino visando um desdobramento
que estabeleccedila sua confissatildeo de feacute Neste cenaacuterio eacute possiacutevel propor uma definiccedilatildeo do que seja
a Verdade para Justino
Tambeacutem o terceiro capiacutetulo tem sua estrutura dividida em trecircs pontos bases O
primeiro aborda o capiacutetulo XXVIII da I Apologia o qual seraacute analisado de forma introdutoacuteria
levando desta maneira ao desenvolvimento do restante da proposta aleacutem de dar fundamento agrave
construccedilatildeo do argumento central que estaacute ancorado no pensamento do Apologista O segundo
ponto do capiacutetulo concentra-se na descriccedilatildeo da filosofia como a principal ldquociecircnciardquo e a base
intelectual na formaccedilatildeo de Justino Neste espaccedilo se vecirc de forma sumarizada o filoacutesofo Justino
aqui tambeacutem se mencionam as principais influecircncias filosoacuteficas na formaccedilatildeo deste Pai da Igreja
onde o estoicismo e o platonismo satildeo salientados Aleacutem disso eacute discutida tambeacutem o conceito
de Logos questatildeo filosoacutefica-teoloacutegica que acabou por se tornar em uma de suas principais
contribuiccedilotildees para a histoacuteria do dogma cristatildeo18 Finalmente o terceiro ponto concentra
esforccedilos no desenvolvimento de uma peculiar abordagem de Justino quanto ao uso e o fim que
a racionalidade humana exerce no seu conjunto de relaccedilotildees Este ambiente formado de coisas
temporais e atemporais caracteriza de maneira clara e oacutebvia para Justino uma postura sistecircmica
como modelo para as atitudes humanas que concentram em si a resposta que define a Verdade
para este Apologista
O quarto e derradeiro capiacutetulo se compotildeem de trecircs pontos elementares Inicia-se por
uma abordagem que procura desenvolver uma raacutepida relaccedilatildeo histoacuterica do conceito messiacircnico
em algumas culturas direcionando seu foco final para a eacutepoca de Justino O segundo item
descreve com certo grau de peculiaridade a definiccedilatildeo do que eram e consequentemente o que
representavam as profecias messiacircnicas do Antigo Testamento para Justino aleacutem de visar
18 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
16
comunicaacute-las de maneira correta acima de tudo a quem ele as apresentou como tipo alvo e
revelaccedilatildeo maacutexima19 Por fim o terceiro ponto expotildee por meio do auxiacutelio de fontes que para
Justino havia um evidente qualificador em sua definiccedilatildeo do cumprimento profeacutetico da Antiga
Alianccedila Este fator se concentra em um axioma que se tornou visiacutevel sendo bem definido pelo
autor do Quarto Evangelho ldquoo Verbo se fez carne e habitou entre noacutes cheio de graccedila e de
verdade e vimos a sua gloacuteria gloacuteria como do unigecircnito do Pairdquo (Joatildeo 114)
Em resumo o primeiro capiacutetulo estaacute centrado no contexto da figura histoacuterica de
Justino O segundo em aspectos significativos sobre a contraposiccedilatildeo de ideias e haacutebitos O
terceiro na obtenccedilatildeo da inteligibilidade do Apologista em resistecircncia a uma previsatildeo
meramente sensiacutevel do agregado vivencial ou funcional de sua realidade O quarto na
afirmaccedilatildeo de um apogeu que sustentado em evidecircncias irrefutaacuteveis para Justino se estabelece
como uma sentenccedila irrevogaacutevel
Este apanhado nos convida a uma reflexatildeo para conhecer e a uma busca para
comprovar o que seria a Verdade na visatildeo de Justino de Roma Daniel-Rops foi mais um dos
tantos que foram conquistados pelas nuances do legado apologeacutetico de Justino e como
consequecircncia deste encontro encoraja seus leitores a aceitarem este desafio
Como os seus problemas satildeo semelhantes aos nossos Como bate seu coraccedilatildeo num
ritmo que conhecemos tatildeo bem Neste filoacutesofo de dezoito seacuteculos ressoa aos nossos
ouvidos uma espeacutecie de Pascal neste dialeacutetico emeacuterito encontra-se uma vontade de
acolhimento e uma abertura de alma que os cristatildeos de hoje podem tomar por
modelo20
19 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991
20 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 277
17
1 JUSTINO MAacuteRTIR VIDA E OBRA NO CONTEXTO HISTOacuteRICO DO SEacuteCULO II
Ao imperador Tito Eacutelio Adriano Antonino Pio Ceacutesar Augusto ao seu filho Veriacutessimo
filoacutesofo e a Luacutecio filho natural do Ceacutesar filoacutesofo e filho adotivo de Pio amante do
saber ao sacro Senado e a todo o povo romano Em prol dos homens de qualquer raccedila
que satildeo injustamente odiados e caluniados eu Justino um deles filho de Prisco que
o foi de Baacutequio natural de Flaacutevia Neaacutepolis na Siacuteria Palestina compus este discurso e
esta suacuteplica21
Para conhecermos melhor a Justino o cognominado Maacutertir da ainda jovem Igreja de
Cristo ndash como tambeacutem ilustre residente da comunidade romana do Seacuteculo II ndash devemos nos
aproximar de suas obras Especialmente nas conhecidas I Apologia e Diaacutelogo com Trifatildeo nos
deparamos com um pequeno poreacutem significativo acesso a informaccedilotildees que fundamenta um
consideraacutevel entendimento histoacuterico desta figura tatildeo destacada daquele periacuteodo22
A partir desta anaacutelise histoacuterica buscaremos desenvolver uma construccedilatildeo por meio de
fatores que entendemos serem essenciais para o progresso do restante desta pesquisa no qual
assuntos de teor elementar procuraratildeo ser respondidos Entre estes podemos identificar alguns
como Quem foi esse homem chamado Justino o qual o testemunho cristatildeo antigo afirma ter
sido morador da cidade de Roma e martirizado por sua feacute A qual classe da sociedade romana
de sua eacutepoca ele pertenceu A qual grupo da ldquointelectualidaderdquo cristatilde ele somou Como e
quando escreveu suas obras em especial a I Apologia Como este escrito encomiaacutestico de
defesa nasce Quem eou o quecirc (fatores diversosplurais) o incentivaram a escrevecirc-la de forma
proposital
11 JUSTINO DE ROMA
Torna-se necessaacuterio desde o iniacutecio salientar que se possui atualmente informaccedilotildees bem
detalhadas de quem teria sido Justino ndash o qual foi cunhado por Tertuliano como ldquofiloacutesofo e
maacutertirrdquo23 ndash morador da capital do Impeacuterio Romano isso tudo devido especialmente agraves claras
ldquoreferecircncias autobiograacuteficas de suas proacuteprias obras a um relato sobre seu martiacuterio e a notiacutecias
encontradas na Histoacuteria eclesiaacutestica de Euseacutebio e em Epifacircniordquo24 Uma gama consideraacutevel de
21 JUSTINO I Apologia I 1
22 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011
23 TERTULIANO Contra os Valentinianos V 1
24 DROHNER Manual de Patrologia 2008 p 82-83
18
estudiosos concorda que Justino tenha nascido por volta do ano 100 da era cristatilde25 isso devido
agrave referecircncia textual apresentada pelo proacuteprio Apologista ldquoeu Justino um deles filho de Prisco
que o foi de Baacutequio natural de Flaacutevia Neaacutepolis na Siacuteria Palestinardquo26 Neste contexto contribui
o trabalho de Xavier que afirma acreditar ldquoque ele (Justino) nasceu depois do ano 100 dC em
Flavia Neaacutepolis (atual Naplusa) na Siacuteria-Palestina ou Samaria a Siqueacutem dos tempos biacuteblicos
(Palestina)rdquo27 Nota-se atraveacutes do auto relato de Justino que este nasceu em pleno ldquocoraccedilatildeo da
Galileiardquo28 em uma cidade remodelada (modernizada) para sua eacutepoca agrave cultura romana ou seja
pagatilde Logo sua famiacutelia provavelmente tambeacutem era pagatilde possivelmente seus pais ldquoeram
colonos abastadosrdquo29 e de origem latina ou grega sendo a primeira opccedilatildeo de preferecircncia por
Hamman que afirma serem de caracteriacutestica latina a qualidade de caraacuteter o gosto por dados
histoacutericos e a natildeo apreciaccedilatildeo de argumentaccedilotildees pomposas e prolixas encontradas em Justino30
Vale tambeacutem citar que a etimologia dos nomes do seu pai (Prisco) e do seu avocirc (Baacutequio)
colabora para uma origem natildeo judaicaisraelita mesmo tendo nascido na regiatildeo da Samaria
local no qual possivelmente tenha crescido e sido educado31
Os proacuteximos relatos biograacuteficos apresentados por nosso autor jaacute se estabeleceram no
decorrer de sua jornada em direccedilatildeo ao alvo que buscava atingir eacute quando em seu escrito
intitulado de Diaacutelogo com Trifatildeo Justino se apresentaraacute como um apaixonado apreciador da
filosofia e do absoluto que a razatildeo deveria perscrutar Em um escrito estiliacutestico e repleto de
artifiacutecios literaacuterios Justino cita seu passado em meio aos estoicos peripateacuteticos pitagoacutericos e
platocircnicos32 observando desde cedo que o objetivo de seu caminho nestes grupos que
ldquocultuavamrdquo o bem-estar do viver humano era o de descobrir a verdade como um estado livre
de contingecircncias Hamman endossa esse processo de peregrinaccedilatildeo filosoacutefica na vida do autor
25 FRANGIOTTI In Introduccedilatildeo I Apologia 1995 p 5 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da
tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 81
26 JUSTINO I Apologia I 1
27 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 14 grifo nosso
28 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
29 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
30 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
31 Flaacutevia Neaacutepolis foi fundada em 72 de nossa era por Vespasiano sobre a antiga Siqueacutem A cidade existe hoje
sob o nome de Naplusa Natildeo se deve esquecer a importacircncia deste siacutetio geograacutefico para a histoacuteria religiosa de
judeus e cristatildeos Foi em Siqueacutem que Deus apareceu a Abraatildeo e este lhe dedicou um altar (cf Gn 126-7) Ali se
conservava a memoacuteria de um ldquopoccedilo de Jacoacuterdquo junto ao qual Jesus dialogou com a samaritana (cf Jo 45-6) Foi em
Siqueacutem que Josueacute reuniu a grande assembleia das tribos para ratificar a alianccedila entre Deus e seu povo (cf Js 24)
Ver FRANGIOTTI In Introduccedilatildeo I Apologia 1995 p 5
32 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 3-6
19
O proacuteprio Justino conta-nos no Diaacutelogo com Trifatildeo o longo itineraacuterio de sua busca
[] Sucessivamente em Naplusa frequentou as aulas de um estoico depois de um
disciacutepulo de Aristoacuteteles que logo abandonou trocando-o por um platocircnico Com
candura esperava que a filosofia de Platatildeo lhe permitisse ldquover imediatamente a
Deusrdquo33
Entretanto Justino diante de diversas circunstacircncias e ainda acometido de inuacutemeras
inquietaccedilotildees decorridas das mesmas perguntas que o afligiam em sua busca pela verdade passa
a relatar seu impressionante encontro com o Evangelho de Cristo em seu Diaacutelogo com um judeu
chamado Trifatildeo34 Justino que aparentemente parece ter sido encorajado apoacutes ser ensinado por
um mestre da escola platocircnica passa a viver por meio de haacutebitos mais austeros e se retira a um
lugar isolado onde segundo ele mesmo procuraria encontrar ldquoo proacuteprio Deusrdquo35 Poreacutem em
meio a esta experiecircncia de isolamento ndash possivelmente ocorrida na regiatildeo da Aacutesia Menor36 ndash
Justino se depara com um anciatildeo que seraacute o arauto da mais significativa filosofia que conheceu
Hamman daacute ecircnfase a esse evento ldquoRetirando-se agrave solidatildeo Justino passeava pela areia a beira-
mar para meditar sobre a visatildeo de Deus sem conseguir apaziguar sua inquietaccedilatildeo quando
encontrou um anciatildeo misterioso que dissipou suas ilusotildeesrdquo37
Nesse Diaacutelogo nos deparamos com uma seacuterie de interrogaccedilotildees vindas da parte do
Anciatildeo judeu dirigidas a pessoa de Justino assuntos sobre Deus (divindade) sobre o saber
humano (filosofia) sobre a felicidade e a disposiccedilatildeo da alma (psique) satildeo algumas das questotildees
apresentadas ao ldquointelectordquo do filoacutesofo Justino No que tudo indica parecer um processo
baseado na maiecircutica socraacutetica o Anciatildeo leva nosso autor a inuacutemeras duacutevidas e consegue
estabelecer contradiccedilotildees naquela que parecia ser a melhor via (meacutedio platonismo) para o
entendimento da verdade conhecida por Justino ateacute entatildeo38 Diante das argumentaccedilotildees
apresentadas pelo Anciatildeo e sentindo-se vencido por elas Justino reconhece a sua limitaccedilatildeo e
pergunta ldquoEntatildeo a quem vamos tomar como mestre ou de quem poderemos tirar algum
proveito se nem mesmo nestes (filoacutesofos) se encontra a verdaderdquo39
33 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
34 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo III 1-VIII 2
35 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6-III 1
36 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010
37 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
38 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II
dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
39 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo VII 1 grifo nosso
20
O decorrer do caso nos eacute apresentado com entusiasmo pelo autor o Anciatildeo eacute retratado
como algueacutem que natildeo hesita em afirmar ao sedento Justino que os profetas da antiga alianccedila
foram aqueles que manifestaramproclamaram a Verdade antes de todos os outros homens40
pois a resposta ao apelo do espiacuterito de Justino jaacute encontrava razatildeo e sentido na revelaccedilatildeo
anteriormente profetizada (Antigo Testamento) Estes fatos (profecias) tinham total relevacircncia
pois eram ldquomais antigos do que todos estes considerados filoacutesofos homens bem-aventurados
justos e amigos de Deusrdquo41 Neste ponto soma-se de forma significativa a descriccedilatildeo de Walde
desenvolvida junto ao texto de Justino sobre a sua conversatildeo
Justino foi introduzido na feacute diretamente por um velho homem que o envolveu numa
discussatildeo sobre problemas filosoacuteficos e entatildeo lhe falou sobre Jesus Ele falou a Justino
sobre os profetas que vieram antes dos filoacutesofos ele disse e que falou ldquocomo
confiaacutevel testemunha da verdaderdquo Eles profetizaram a vinda de Cristo e suas
profecias se cumpriram em Jesus Justino disse depois que ldquomeu espiacuterito foi
imediatamente posto no fogo e uma afeiccedilatildeo pelos profetas e para aqueles que satildeo
amigos de Cristo tomaram conta de mim enquanto ponderava nestas palavras
descobri que a sua era a uacutenica filosofia segura e uacutetil [] eacute meu desejo que todos
tivessem os mesmos sentimentos que eu e nunca desprezassem as palavras do
Salvadorrdquo42
Apoacutes este evento notabilizador na histoacuteria de Justino um evento que atesta a
conversaccedilatildeo do filoacutesofo a nova religiatildeo que se apresentava a cada dia com maior forccedila em meio
ao mundo heleniacutestico nasce um ministeacuterio que iraacute se caracterizar por uma profunda e inegaacutevel
entrega a causa que o conquistou Chegando agrave cidade de Eacutefeso Justino se deparou com irmatildeos
que se diziam disciacutepulos do apoacutestolo Joatildeo os quais por meio de uma intensa relaccedilatildeo lhe
mostraram o novo e relevante aspecto da nova filosofia que agora havia decidido seguir
passando a entender que o cristianismo deve ser ldquoum cristianismo de atos e natildeo soacute de
palavrasrdquo43
Poreacutem o maior entendimento que o Apologista obteve foi o de encontrar a Verdade a
qual buscava incessantemente unindo este axioma (Verdade) com o Logos revelado pelas
Escrituras contexto que definiu como a uacutenica ldquofilosofia segura e proveitosardquo44 para a vida a
40 DROHNER Manual de Patrologia 2008
41 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo VII 1
42 WALDE Defensor da Igreja 2000 p 1
43 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 32 apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da
Feacute Cristatilde 2014 p 15
44 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo VIII 1
21
qual eacute a fonte do saber primordial que manteve-se inalterada poreacutem tendo assumido ldquonovas
formas e expressotildees diferentesrdquo atraveacutes dos seacuteculos45 Este esteio da intelectualidade de Justino
foi tatildeo decisivo para a histoacuteria do cristianismo que segundo Hamman passou a apresentar
(temporariamente) uma satisfatoacuteria ldquoconclusatildeo para todas as verdades parciais [] Instante
inesqueciacutevel que assinala uma data na histoacuteria cristatilde em que se encontram a alma platocircnica e
a alma cristatilde A Igreja acolhia Justino e Platatildeordquo46
Aleacutem disto Justino guardou caracteriacutesticas daquilo que reconhecia ser saudaacutevel de seu
passado como amigo da sabedoria vestindo-se com ldquomanto de filoacutesofo como sinal do pregador
cristatildeo itineranterdquo47 Desta forma Justino procurou caracterizar-se entre os seus
contemporacircneos como algueacutem que representava a Verdade que havia encontrado Ateacute onde se
tem notiacutecias jamais foi ordenado assim como a maioria dos Pais de sua classe Patriacutestica
(Apologistas)48 No entanto ele iniciou em Roma possivelmente a pedido do Bispo Higino49
ldquoagrave maneira das escolas de filosofia uma escola de iniciaccedilatildeo agrave religiatildeo cristatilderdquo50 na qual formou
disciacutepulos recebendo tambeacutem por esta iniciativa a possiacutevel desaprovaccedilatildeo da ldquoclasserdquo
intelectual de sua eacutepoca pois tudo indica que natildeo cobrava nenhuma compensaccedilatildeo ndash entenda-se
salaacuteriopagamento ndash de seus alunos51 Este periacuteodo ministerial de Justino na ldquocapital do mundordquo
teve tamanha repercussatildeo na histoacuteria da Igreja a ponto de Euseacutebio fazer questatildeo de reproduzir
algumas particularidades desse filoacutesofo cristatildeo deixando-nos assim uma robusta base
historiograacutefica de Justino o primeiro historiador da Igreja afirma que ldquofloresceu Justino Com
estofo de filoacutesofo era embaixador da palavra de Deus e lutava pela feacute com seus escritosrdquo52
Decorrido um periacuteodo de confrontaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas ndash especialmente no
acircmbito da eacuteticamoral ndash e de crescentes atritos com as esferas aristocraacuteticas da sociedade
romana Justino foi acusado de ser cristatildeo53 Tudo indica que a denuacutencia partiu de um filoacutesofo
45 FIGUEIREDO Curso de Teologia Patriacutestica I 1983 p 115
46 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
47 DROHNER Manual de Patrologia 2008 p 83
48 RIVAS San Justino en el proceso de separaciacuteon entre Judaiacutesmo y Cristianismo 2018
49 Acredita-se que devido ao crescimento de alguns movimentos gnoacutesticos (Marcionismo Valentianismo etc)
junto a capital do Impeacuterio o Bispo Higino (Nono Papa) solicitou a presenccedila de Justino na tentativa de se introduzir
uma formaccedilatildeo filosoacutefico-cultural cristatilde em Roma no empenho de se responder adequadamente mediante a
verdadeira doutrina de Cristo a estes representantes heterodoxos Ver FEacuteLIX Las filosofiacuteas en la teologiacutea de
Justino Maacutertir 2014 p 438
50 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1145
51 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010
52 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 10 8
53 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014
22
ciacutenico54 de caraacuteter duvidoso chamado Crescente O proacuteprio Justino registra em sua segunda
Apologia o pressentimento de que entregaria sua vida em prol da causa do Evangelho que o
libertou da ignoracircncia e o salvou da morte eterna Ele escreve ldquoEu mesmo espero ser viacutetima
das ciladas de algum desses democircnios aludidos e ser cravado no cepo ou pelo menos das ciladas
de Crescente esse amigo da desordem e da ostentaccedilatildeordquo55 Deste modo Justino e provavelmente
seis de seus disciacutepulos foram conduzidos diante do Prefeito de Roma chamado Juacutenio Ruacutestico56
Apoacutes ser julgado e condenado agrave morte ldquoSua sentenccedila foi a decapitaccedilatildeo que ocorreu por volta
do ano 165 dCrdquo57 Hamman ainda enobrece a posiccedilatildeo de Justino salientando que o Apologista
tinha a compreensatildeo de que diante de seus algozes natildeo se tratava ldquomais de convencer senatildeo de
confessarrdquo58 Assim mesmo nesse cenaacuterio de violecircncia a identidade e histoacuteria do filoacutesofo que
quando jovem peregrinava atraacutes das respostas do absoluto acaba por transformar-se por meio
de um ato de feacute o entatildeo filoacutesofo cristatildeo chamado Justino e morador da cidade de Roma passa
agora a ser tambeacutem o Maacutertir da Igreja de Cristo
Finalizamos este item com a descriccedilatildeo de Euseacutebio que com realce e temor retrata os
fatos finais da histoacuteria da vida de Justino
Por este mesmo tempo Justino mencionado haacute pouco depois de dedicar aos
supracitados imperadores seu segundo livro em defesa de nossas doutrinas foi
adornado com o sagrado martiacuterio O responsaacutevel pela conspiraccedilatildeo foi o filoacutesofo
Crescente - homem que se esforccedilava em levar uma vida e uma conduta bem adequadas
ao cognome de ciacutenico - pois Justino o havia repreendido muitas vezes em presenccedila
de seus ouvintes Justino com seu martiacuterio acabou cingindo o precircmio da vitoacuteria da
verdade da qual era embaixador59
54 O cinismo origina-se nas escolas filosoacuteficas da Greacutecia antiga que reivindicam uma linhagem socraacutetica Chamar
os ciacutenicos de ldquoescolardquo no entanto imediatamente levanta uma dificuldade para um grupo natildeo convencional e anti-
teoacuterico Seus principais interesses satildeo eacuteticos mas eles concebem a eacutetica mais como um modo de viver do que
como uma doutrina que precisa de explicaccedilatildeo Como tal askēsis ndash uma palavra grega que significa um tipo de
treinamento do eu ou da praacutetica ndash eacute fundamental Os ciacutenicos assim como os estoacuteicos que os seguiram caracterizam
o modo de vida ciacutenico como um ldquoatalho para a virtuderdquo (ver Dioacutegenes Laeacutercio Vidas de Filoacutesofos Eminentes)
Livro 6 Capiacutetulo 104 e Livro 7 Capiacutetulo 122) Embora muitas vezes sugiram que descobriram o caminho mais
raacutepido e talvez o mais certo para a vida virtuosa eles reconhecem a dificuldade desse caminho Ver PIERING
Julie In Cynics Internet Encyclopedia of Philosophy Texto completo em
lthttpswwwieputmeducynicsSSH3aigt
55 JUSTINO II Apologia VIII 9 1
56 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010
57 CAMPENHAUSEN Os Pais da Igreja A Vida e a Doutrina dos Primeiros Teoacutelogos Cristatildeos 2005 p 22 apud
SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 67
58 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 32
59 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 16 1
23
Apoacutes este introdutoacuterio exame biograacutefico comeccedilaremos a apresentar o cristatildeo e filoacutesofo
Justino em seu grupo de definiccedilatildeo Patriacutestica ou poderiacuteamos dizer no condicionamento
ministerial de seu exerciacutecio da manutenccedilatildeo e defesa da feacute cristatilde
12 PAIS DA IGREJA
Justino eacute um personagem histoacuterico do cristianismo mundial e possui seu assento no
espaccedilo definido pela teologia Patriacutestica como um PaiPadre da Igreja60 Em sua pesquisa de
ordenamento histoacuterico Santos salienta que ldquoele se insere num momento e num ciacuterculo muito
importante da histoacuteria do cristianismo primitivo naquilo que se convencionou chamar de
Padres da Igrejardquo61 Neste espaccedilo analiacutetico em que surgem terminologias de caraacuteter mais
temaacutetico desenvolvem-se alguns viacutenculos que visam obter uma melhor orientaccedilatildeo teoloacutegica
As ciecircncias intituladas Patriacutestica e Patrologia (denominaccedilatildeo predominante no acircmbito teoloacutegico
Catoacutelico Romano) detecircm as estruturas funcionalidades e linguagens que buscam o
aperfeiccediloamento deste ramo de pesquisa histoacuterica em meio a teologia Nesse espaccedilo torna-se
importante apresentar a sinteacutetica definiccedilatildeo oriunda da Congregaccedilatildeo para a Educaccedilatildeo Catoacutelica
em sua Instruccedilatildeo sobre o Estudo dos Padres da Igreja na Formaccedilatildeo Sacerdotal esta diz ldquoa
Patriacutestica ocupa-se do pensamento teoloacutegico dos Padres [] a Patrologia tem por objeto a vida
e os escritos dos mesmosrdquo62 Notamos que nesse ambiente se caracteriza uma espeacutecie de
sinoniacutemia entre os termos sendo isso o resultado de diversas siacutenteses oriundas do confronto de
algumas posiccedilotildees divergentes ao longo da histoacuteria da elaboraccedilatildeo teoloacutegica ocidental63 poreacutem
a definiccedilatildeo terminoloacutegica conhecida por Histoacuteria da Literatura Cristatilde Antiga utilizada por
Lazzati e Simonetti ndash mesmo que extensa e ainda pouco usada ndash devido a sua qualificaccedilatildeo
linguiacutestica acabou por se estabelecer Padovese resume bem essa proposta de ldquosimbioserdquo ao
60 Em vaacuterias liacutenguas eacute a mesma palavra para o significado de Padre e Pai pater em latim padre em italiano e em
espanhol pegravere em francecircs father em inglecircs Em portuguecircs haacute hoje distinccedilatildeo niacutetida entre Padre e Pai mas o sentido
original da palavra eacute o de Pai (ateacute natildeo muitos anos atraacutes diziacuteamos [na liturgia da ICAR] ldquoPadre nosso que estais
no ceacuteurdquo) Ver PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 17 grifo nosso
61 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 68
62 CONGREGACcedilAtildeO PARA A EDUCACcedilAtildeO CATOacuteLICA Instruccedilatildeo sobre o estudo dos Padres da Igreja na
Formaccedilatildeo Sacerdotal 1989 art 49
63 A Patriacutestica no mundo protestante tornou-se ldquoHistoacuteria dos Dogmasrdquo e tanto no acircmbito catoacutelico como
protestante alguns identificaram a Patrologia com a histoacuteria da literatura cristatilde (Harnack) ou com a ldquohistoacuteria da
literatura eclesiaacutesticardquo (Bardenhewer) ou ainda com a ldquohistoacuteria da literatura cristatilde antigardquo (Lazzati Simonetti)
Ver PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 22
24
sugerir que ldquoambas (Patriacutestica e Patrologia) juntamente com a histoacuteria da literatura cristatilde
antiga trabalham com as mesmas obrasrdquo64
Desta maneira a aacuterea de estudo dos Pais da Igreja tem sido objeto e alvo de diversas
pesquisas na atualidade aleacutem de ter sido um feacutertil campo para inuacutemeras e variadas abordagens
no decorrer dos seacuteculos havendo significativos trabalhos jaacute no Seacuteculo XVII65 Mais
recentemente (Seacuteculo XX)66 houve um reconhecimento do grande valor estrutural desse
segmento para o meio teoloacutegico de forma transconfessional onde acabou por acarretar
expressiva contribuiccedilatildeo em questotildees especialmente dogmaacuteticas Hall baseando-se no
pensamento de Casey desenvolve sua ideia atraveacutes de afirmaccedilotildees relevantes sob a importacircncia
do estudo da PatriacutesticaPatrologia para o ensino ordinaacuterio da teologia (academia) e da Igreja
(catequese)
Primeiro os pais satildeo os ldquomais proacuteximos beneficiaacuterios da tradiccedilatildeo apostoacutelicardquo Em
minhas proacuteprias palavras eles viveram e trabalharam em aproximaccedilatildeo hermenecircutica
com os escritores biacuteblicos especialmente os do novo testamento Segundo os pais
ldquoajudam-nos a entender nossas proacuteprias raiacutezesrdquo na feacute Terceiro muitos pais
escreveram e viveram como pastores Eles escreveram para ajudar as pessoas a
agarrar-se ao ensino de Cristo67
De maneira ampla podemos dizer que haacute algumas variaccedilotildees no meacutetodo e no estilo de
estudar o cenaacuterio patriacutestico em sua estrutura conjuntural Devemos iniciar salientando que o
periacuteodo patriacutestico simplesmente ldquonatildeo eacute definido como um marco cronoloacutegico mas como um
periacuteodo de passagemrdquo68 Deste modo uma delimitaccedilatildeo se constroacutei atraveacutes de uma conclusatildeo de
periacuteodos (estrutura temporal) ndash onde atributos culturais e eclesiaacutesticos se mesclam para gerar
uma definiccedilatildeo conceitual Nessa espeacutecie de ldquorestriccedilatildeo conceitualrdquo tambeacutem se encaixa o
conjunto de criteacuterios adotados no processo de seleccedilatildeo daqueles que podem receber tal tiacutetulo
honoriacutefico de Pai da Igreja mesmo que estes elementos de classificaccedilatildeo (ortodoxia
64 PADOVESE Leacutexicon ndash Dicionaacuterio Teoloacutegico Enciclopeacutedico 2003 p 576 apud SANTOS Identidade Cristatilde
no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 68 grifo nosso
65 DAILLEacute Traicte de lemploy des Saincts Peres pour le iugement des differends qui sont auiourdhui en la
religion 1632
66 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
67 CASEY Sacred Reading The Ancient Art of Lectio Divina 1995 p 105 apud HALL Lendo as Escrituras
com os Pais da Igreja 2003 p 56
68 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 25
25
santificaccedilatildeo reconhecimento eclesiaacutestico antiguidade)69 tenham possuiacutedo variaacuteveis (de meacuterito
e de forma)70 em sua aplicaccedilatildeo durante toda a histoacuteria Ainda nesse processo de formaccedilatildeo
tambeacutem cabe registrar a profunda influecircncia de indicaccedilatildeo geograacutefica ocorrida em todo esse
desenvolvimento onde uma linha divisoacuteria de significativa relevacircncia se apresenta quando faz
a separaccedilatildeo do ldquotemperamento teoloacutegico entre o Oriente e Ocidenterdquo71
Contudo cabe-nos assumir uma forma de classificaccedilatildeo e organizaccedilatildeo na elaboraccedilatildeo
desta pesquisa desta forma por utilizar-se de uma linguagem acessiacutevel e por apresentar maior
incidecircncia literaacuteria em meios natildeo teoloacutegicos utilizaremos das seguintes divisotildees baseadas no
trabalho de Hall descritas como
I Pais Apostoacutelicos (final do Seacuteculo I ateacute meados do II)
II Pais Apologistas ou Ante-Nicenos (Seacuteculo II)
III Pais Polemistas ou Nicenos (final do Seacuteculo II e Seacuteculo III)
IV Pais Cientiacuteficos ou Poacutes-Nicenos (Seacuteculo III ao V)72
O primeiro modo de classificaccedilatildeo iraacute se designar por uma abordagem de caraacuteter mais
funcional no que diz respeito a seus integrantes todos estatildeo relacionados ao periacuteodo
denominado de cristianismo antigoprimitivo recebendo assim o nome de Pais Apostoacutelicos
Foram os herdeiros diretos do chamado ldquodepoacutesito da Feacuterdquo o qual foi estabelecido atraveacutes da
missatildeo dos apoacutestolos de Cristo que detinham a autoridade e a grande responsabilidade de
perpetuar a doutrina apostoacutelica (entenda-se afirmar a continuidade da mensagem una santa e
catoacutelica do cristianismo por meio da manutenccedilatildeo daacute mensagem original) Jaacute os denominados
Pais Apologistas (grupo agrave qual Justino pertence) notabilizaram-se ndash principalmente devido agrave
notaacutevel qualidade de seus escritos ndash por defender a Feacute cristatilde de inuacutemeras accedilotildees repressivas agrave
doutrina e agraves comunidades fenocircmeno que se caracterizou especialmente no decurso do Seacuteculo
II Os Pais Polemistas salientam-se por sua ampla argumentaccedilatildeo no que confere a asseveraccedilatildeo
dos principais ensinos (doutrinasdogmas) do cristianismo protegendo-os das mais variadas
heresias tambeacutem afirmando suas peculiaridades mas acima de tudo pontuando estas instruccedilotildees
como questotildees indispensaacuteveis para a existecircncia da verdadeira Feacute em Cristo Por uacuteltimo os Pais
chamados ldquocientiacuteficosrdquo distinguiram-se por sua ecircnfase na densa aplicaccedilatildeo da Teologia em aacutereas
69 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 11
70 Bogaz Couto e Hansen indicam ainda um quinto criteacuterio na classificaccedilatildeo dos elementos para se ser credenciado
como um integrante do mundo patriacutestico eles o chamam de COLEGIALIDADE E DIAacuteLOGO Este visa analisar
a abrangecircncia do patrimocircnio teoloacutegico deixado pelo autor Ver BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica
caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 28 grifo do autor
71 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
72 HALL Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja 2003 Ver capiacutetulos III-V
26
filosoacuteficas e do conhecimento ldquonaturalrdquo (antropologia sociologia psicologia etc) de seu
tempo Cabe-nos ainda frisar por uma questatildeo teacutecnica que o periacuteodo Patriacutestico normalmente eacute
descrito ateacute figuras do Seacuteculo VIII73 poreacutem nossa abordagem natildeo esmiuccedilara tal fato pelo
mesmo exceder o tema proposto nesta pesquisa
Para terminar nossa lacocircnia abordagem de uma aacuterea tatildeo ampla e rica de conteuacutedo
devemos sustentar a premissa de que uma consistente estrutura para anaacutelise Patriacutestica se daacute
atraveacutes da apropriaccedilatildeo de seu legado intelectual e isso se constroacutei atraveacutes de um genuiacuteno exame
de suas obras Aqui se apresenta a Patrologia como a ciecircncia a ser seguida e exercitada em
sentido literal isso devido a essa ser a organizadora deste sistema Santos em sua pesquisa
contribui neste enfoque
Haacute ainda outra forma muito comum de se estudar os padres da Igreja que eacute a partir de
suas obras e ainda o estudo deles todos sem qualquer divisatildeo atendo-se agraves vezes agrave
cronologia tanto de suas obras quanto de sua existecircncia na linha do tempo agraves vezes
de forma alfabeacutetica Em ambos os casos satildeo estruturados de forma enciclopeacutedica ou
dispostos como um dicionaacuterio de pensadores cristatildeos Assim os padres da Igreja
fazem parte de um campo de estudo maior inserido no que pode ser chamado de
Histoacuteria das ideias ou do pensamento cristatildeo74
Seguindo em uma ordem organograacutefica examinaremos a partir de agora o grupo
Patriacutestico no qual Justino se enquadrou em seu exerciacutecio ministerial devido a suas
caracteriacutesticas filosoacuteficas e teoloacutegicas
121 Pais Apologistas
Verificamos que no decorrer do Seacuteculo II surgiu nas comunidades cristatildes uma iminente
necessidade de combater determinadas acusaccedilotildees aleacutem de procurar dissuadir visotildees distorcidas
sobre o cristianismo75 especialmente as relacionadas a questotildees que adotavam posturas parciais
que simplesmente acusavam a religiatildeo cristatilde de ser um legado para pessoas ldquoignorantes e
fanaacuteticasrdquo76 Tal incitaccedilatildeo jaacute estava ativa em grande parte do Impeacuterio Romano Desta forma a
73 Os estudiosos patriacutesticos definem o fechamento deste periacuteodo no ocidente com Gregoacuterio Magno (ou Isidoro de
Sevilha) no Seacuteculo VII e no Oriente com Joatildeo Damasceno no Seacuteculo VIII Ver BOGAZ COUTO HANSEN
Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 25
74 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 69
75 Ver FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 29-31
76 SIMONETTI In Apologeacutetica Literatura Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 181
27
Igreja ancorada em um ldquonuacutemero notaacutevel de gentios dotados de soacutelida formaccedilatildeo intelectualrdquo77
sendo sua maioria formada por ldquofiloacutesofosrdquo que haviam se convertido ao cristianismo acabaram
postando-se como baluartes desta nova religiatildeo tendo seus escritos (chamados de ldquotradiccedilatildeo
apologeacutetica cristatilderdquo78) como sua principal ldquoarmardquo de defesa estes (escritores e suas obras)
visavam ldquorefutar as calunias e [] expor o absurdo e a incoerecircncia dos ritos e dos mitos
pagatildeosrdquo79 aleacutem de apresentarem suas vidas como testemunhos da transformaccedilatildeo almejada por
esta feacute que defendiam Diante dos recursos aos quais protegiam e frente a busca de
ldquolegitimaccedilatildeordquo do cristianismo como religiatildeo no Impeacuterio estes cristatildeos questionavam de
maneira enfaacutetica as infundadas agressotildees propostas por aqueles que decidiam ldquofechar os seus
olhosrdquo as virtuosas obras geradas pelos seguidores desta Boa Nova Fluck contribui com ecircnfase
na tentativa de legitimaccedilatildeo que estes escritores apologistas procuraram dar a sua pregaccedilatildeo na
busca de toleracircncia para sua mensagem
Os apologistas queriam manifestar diante da opiniatildeo puacuteblica a verdadeira natureza do
Cristianismo Eles tinham a preocupaccedilatildeo de demonstrar a conformidade do
Cristianismo com o ideal helecircnico Proclamavam ndash na maioria dos casos ndash a alianccedila
do Cristianismo e da Filosofia Queriam mais do que somente toleracircncia Mostravam
que os cristatildeos eram os melhores cidadatildeos do Impeacuterio e que o Cristianismo favorecia
a grandeza do Impeacuterio80
Esta postura adotada por homens de elevada cultura acabou por robustecer e superar
uma necessidade existencial que havia surgido na relaccedilatildeo do cristianismo para com mundo
greco-romano isso devido agrave expansatildeo e estabilizaccedilatildeo em sociedades predominantemente
heleniacutesticas Os Pais Apologistas (em sua ampla maioria) inauguraram o que podemos chamar
de informaccedilatildeo ldquoad extrardquo81 ou seja estabelecer uma relaccedilatildeo de comunicaccedilatildeo para fora dos
ldquomurosrdquo da Igreja O que antes era conhecida como a dimensatildeo (alcance e destino para
mensagem) literaacuteria ndash definida como ldquoad intrardquo82 ndash no periacuteodo dos Pais Apostoacutelico agora era
acompanhada de um novo estilo linguiacutestico que abria espaccedilo e trazia em sua armaccedilatildeo tambeacutem
77 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988 p 69
78 ARZANI VENTURINI A Origem da Tradiccedilatildeo Apologeacutetica Cristatilde e Justino Maacutertir 2010 p 2
79 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 73
80 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 31
81 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011
82 FIGUEIREDO Curso de Teologia Patriacutestica I 1983 p 97
28
o ldquoconhecimento das ciecircncias das letras e da filosofiardquo83 Torna-se valiosa nessa abordagem as
consideraccedilotildees gerais de Haumlgglund sobre a importacircncia da accedilatildeo literaacuteria dos Apologistas
Os apologistas ocupam lugar de destaque na histoacuteria do dogma natildeo soacute devido a sua
descriccedilatildeo do cristianismo como a verdadeira filosofia como tambeacutem por sua tentativa
de elucidar ensinamentos teoloacutegicos com o auxiacutelio de terminologia filosoacutefica
contemporacircnea (por exemplo na assim chamada laquocristologia do Logosraquo) O que neles
encontramos por conseguinte eacute a primeira tentativa de definir de maneira loacutegica o
conteuacutedo da feacute cristatilde bem como a primeira conexatildeo entre teologia e ciecircncia entre
cristianismo e filosofia grega84
Acredita-se que o periacuteodo apologeacutetico teve seu iniacutecio no seio da Igreja com a literatura
de um disciacutepulo chamado Quadrato que possivelmente em 124125 dC apresentou ldquodianterdquo
do Imperador Adriano na cidade de Atenas (Greacutecia) uma espeacutecie de tratado que visava enfatizar
que Cristo em seu ministeacuterio terreno havia realizado diversas curas e milagres afirmando que
a ressurreiccedilatildeo de mortos foi algo emblemaacutetico entre esses feitos prodigiosos85 Aristides eacute outro
personagem que merece destaque como precursor desta classe Patriacutestica Euseacutebio se refere a
ele deste modo ldquoMas tambeacutem Aristides homem de feacute entregue a nossa religiatildeo deixou assim
como Codratos uma Apologia em favor da feacute que havia dirigido a Adriano Tambeacutem a obra
deste escritor se conservou ateacute nossos dias em muitos lugaresrdquo86 Nesse escrito o historiador da
Igreja iraacute apresentar uma das proposiccedilotildees recorrentes entre os escritos apologeacuteticos do periacuteodo
o de que somente os cristatildeos satildeo verdadeiramente eacuteticos isso devido principalmente aos seus
haacutebitos de elevada postura moral87 o que buscava demonstrar que eram os uacutenicos que
verdadeiramente conheciam a DeusDivindade88 e deste modo acabavam por serem os
ldquomelhores cidadatildeos do Impeacuteriordquo89 Desta forma seguindo quase que um modelo padratildeo de
abordagem esses Apologistas apelaram aacute razoabilidade dos governantes romanos de sua eacutepoca
exigindo destes natildeo apenas toleracircncia mas acima de tudo justiccedila
83 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 73
84 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 21
85 MORESCHINI NORELLI Manual de Literatura Cristatilde Antiga Grega e Latina 2005
86 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 3 3
87 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
88 MORESCHINI NORELLI Manual de Literatura Cristatilde Antiga Grega e Latina 2005
89 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 28
29
Ainda citamos o trabalho de Xavier que aborda de forma sinteacutetica outras figuras desse
periacuteodo apologeacutetico destacando sua alta produccedilatildeo textual que acabou por ter significativa
relevacircncia na estruturaccedilatildeo e funcionalidade de diversos segmentos do processo de formaccedilatildeo
dogmaacutetico na Igreja O relato agrega teor agrave nossa construccedilatildeo
Taciano disciacutepulo de Justino que compocircs ldquoDiscurso aos gregosrdquo Atenaacutegoras que
escreveu ldquoDefesa dos cristatildeosrdquo e um tratado ldquoSobre a ressurreiccedilatildeo dos mortosrdquo Por
volta do ano 180 o bispo de Antioquia Teoacutefilo escreveu ldquoTrecircs livros a Autoacutelicordquo
tratando da doutrina cristatilde de Deus a interpretaccedilatildeo das Escrituras e a vida cristatilde
refutando as objeccedilotildees dos pagatildeos sobre essas questotildees No seacuteculo terceiro Oriacutegenes
de Alexandria escreveu uma refutaccedilatildeo ldquoContra Celsordquo Todas essas obras foram
escritas em grego sendo que na liacutengua latina destacam-se dois escritos apologeacuteticos
a ldquoApologiardquo de Tertuliano e o ldquoOtaacuteviordquo de Minuacutecio Feacutelix90
Portanto fica registrado na histoacuteria da identidade cristatilde mais que um gecircnero literaacuterio
antes uma postura corajosa de homens de estimado caraacuteter que ldquotocados pelo testemunho dos
cristatildeos e pelo querigma apostoacutelicordquo91 comunicaram uma genuiacutena e autecircntica mensagem de
vida e esperanccedila Tambeacutem devemos afirmar que a ldquotarefa de defender a feacute diante desta classe
de ataques produziu algumas das mais notaacuteveis obras teoloacutegicas do seacuteculo segundordquo92
Provavelmente muitos poderosos abastados intelectuais e outros detentores das benesses que
compunham a aristocracia romana do periacuteodo foram confrontados e alcanccedilados pelo
testemunho destes disciacutepulos que enfatizaram o apelo agrave razatildeo na tentativa de evitar a loucura
humana Nesse ponto Xavier consegue expressar com clareza a provaacutevel motivaccedilatildeo destes
homens ldquoSuas principais intenccedilotildees eram fazer com que o cristianismo fosse visto como um
ideal de vida que podia ser aceito e vivido em conformidade com a cultura greco-romana sem
necessidade de serem os cristatildeos perseguidos mortos ou marginalizadosrdquo93
122 O Apologista Justino
Eacute importantiacutessimo iniciarmos este item com as palavras de Dreher Frangiotti
Haumlgglund e Hamman O primeiro diz ldquoEntre os apologetas cristatildeos que procuraram estabelecer
90 XAXIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 14 grifo do autor
91 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 73
92 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 86
93 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 14
30
um diaacutelogo com os filoacutesofos Justino (110-165) foi o mais importanterdquo94 O segundo
similarmente afirma ldquoJustino eacute certamente o melhor apologista do seacuteculo IIrdquo95 O terceiro daacute
mesma forma garante no uso de um superlativo a importacircncia do Apologista ldquoO mais notaacutevel
dos apologistas foi Justino cognominado laquoo maacutertirraquo cujas duas laquoapologiasraquo datam de meados
do segundo seacuteculordquo96 O quarto usando de adjetivaccedilatildeo similar agrave do anterior enobrece com
insigne descriccedilatildeo a figura do Apologista ldquoDe todos os filoacutesofos cristatildeos do seacuteculo II Justino eacute
o mais ceacutelebre e o maiorrdquo97
Neste espaccedilo faremos uma descriccedilatildeo sinteacutetica apresentando a figura de Justino dentro
de sua classe Patriacutestica tendo como centro de nossa atenccedilatildeo sua produccedilatildeo textual
especialmente de suas duas apologias que satildeo as nossas principais ferramentas de ponderaccedilatildeo
sobre sua atuaccedilatildeo ministerial Nessa composiccedilatildeo podemos dizer que entre os ldquoApologistas
Maioresrdquo98 nenhum ldquoestava mais bem preparado para esse confronto do que Justinordquo99 isso
devido a sua variada formaccedilatildeo filosoacutefica Aproximadamente entre os ldquoanos de 150 e 165
dCrdquo100 Justino se apresentou no cenaacuterio apologeacutetico cristatildeo de forma avultosa mesmo natildeo
sendo um literato de destaque ganhou espaccedilo seja por seu caraacuteter iacutentegro como tambeacutem por
sua postura de retidatildeo haacute doutrina a ponto de seus escritos mostrarem ldquoo calor nunca
desmentido das suas convicccedilotildeesrdquo101 Hamman define bem essa peculiaridade na literatura de
Justino ao dizer que a ldquooriginalidade de Justino natildeo estaacute na sua qualidade literaacuteria mas na
novidade de seu esforccedilo teoloacutegicordquo102
Deste modo Justino conseguiu expressar muito bem aquilo que se tornaria o estandarte
apologeacutetico deste periacuteodo afirmando que o cristianismo ldquoeacute a filosofia segura e proveitosardquo103
levando-nos a conclusatildeo de que em ldquoCristo deu-se portanto a restauraccedilatildeo da filosofiardquo104
Nota-se que Justino estava absolutamente convencido de que havia encontrado o verdadeiro
94 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47 grifo nosso
95 FRANGIOTTI Introduccedilatildeo In I Apologia 1995 p 6 grifo nosso
96 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 21 grifo nosso
97 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 27 grifo nosso
98 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 80
99 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 28
100 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1145
101 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 56
102 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 31
103 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo VIII 1
104 BARRERA A Biacuteblia Judaica e a Biacuteblia Cristatilde introduccedilatildeo a histoacuteria da Biacuteblia 1995 p 663 apud FLUCK
Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 32
31
caminho ldquoe passou a defendecirc-lo de diversas maneiras por meio de seus ensinos em seus
escritos e em sua vida e morte como maacutertirrdquo105 Assim como resultado de sua produccedilatildeo
literaacuteria Justino acabou destacando-se a ponto de se tornar ldquoo principal dos apologistas gregos
do seacuteculo IIrdquo106 como jaacute referido acima vale ainda mencionar o seleto testemunho de Euseacutebio
nessa constituiccedilatildeo este nos sugere que o legado apologeacutetico de Justino eacute consequecircncia de um
elaborado processo do conhecimento ao qual este passou a possuir ele escreve ldquoTambeacutem por
este tempo Justino sincero amante da verdadeira filosofia continuava ainda ocupado em
exercitar-se nas doutrinas dos gregos [] Na mesma obra demonstra que sua conversatildeo da
filosofia grega agrave religiatildeo natildeo se fez sem razatildeo mas com juiacutezordquo107
Contudo ainda nos cabe um raacutepido registro histoacuterico relativo agrave produccedilatildeo literaacuteria de
Justino referente a questatildeo de se apontar qual seria sua habilitaccedilatildeo como um autecircntico
Apologista do Seacuteculo II Obviamente esta capacidade teacutecnica proveacutem daquilo que eacute a parte
material de sua arte no caso de Justino suas obras108 A pesquisa historiograacutefica apresenta ldquo8
obrasrdquo109 creditadas a Justino por Euseacutebio110 fazendo com que nosso autor seja reconhecido
como um escritor de ldquofecundardquo111 atividade literaacuteria no passado entretanto como autecircnticas
chegaram ateacute noacutes apenas trecircs destas diversas obras satildeo elas a I e II Apologia e um relato
argumentativo com um provaacutevel rabino judeu intitulado de Diaacutelogo com Trifatildeo112 Entre as
Apologias a primeira eacute direcionada agrave classe imperial Romana (Antonino Pio e seus filhos
Marco Aureacutelio e Luacutecio Vero) como tambeacutem ao senado Jaacute a segunda eacute motivo de um amplo
debate na esfera da criacutetica textual por natildeo apresentar um relato introdutoacuterio nem um
destinataacuterio de forma objetiva Muitos acreditam ser esta obra um apecircndice da I Apologia Nesta
cena eacute relevante a pesquisa de Santos que cita as bases de Euseacutebio aleacutem de outros trecircs autores
que nos auxiliam de forma eficaz na elucidaccedilatildeo desta questatildeo mesmo que natildeo possam pocircr um
fim a discussatildeo ele diz
105 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 13 grifo nosso
106 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 13
107 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 3 5
108 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
109 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988 p 76
110 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 18 1-6
111 FIGUEIREDO Curso de Teologia Patriacutestica I 1983 p 115
112 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 83 SIMONETTI In Justino
Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1145
32
Destas obras cabem-nos as seguintes consideraccedilotildees quanto agraves duas primeiras a
primeira apologia citada em Euseacutebio corresponde a I Apologia que chegou ateacute noacutes A
segunda apologia natildeo corresponde a II Apologia que temos Primeiro porque natildeo
possui uma introduccedilatildeo e nem um destinataacuterio enquanto que a citada por Euseacutebio
possui um destinataacuterio O segundo ponto que corrobora este ponto de vista eacute a citaccedilatildeo
que Euseacutebio faz da primeira apologia Diz ele ldquoo mesmo autor (Justino) em sua
primeira Apologiardquo e conta uma histoacuteria que consta em nossa II Apologia II 1-20
(EUSEacuteBIO DE CESAREacuteIA Histoacuteria Eclesiaacutestica IV 17) Eacute mais provaacutevel que a dita
II Apologia que chegou ateacute noacutes seja um apecircndice da I Apologia (FRANGIOTTI 1995
MORESCHINI amp NORELLI 2005 p 110)113
Diante de tatildeo curioso e desafiante cenaacuterio eacute valioso buscar compreender o propoacutesito
dos tratados de Justino pois por ldquotraacutes deste esforccedilo descobrimos o testemunho de um homem
de uma conversatildeo de uma opccedilatildeo definitivardquo114 opccedilatildeo que nos oferece a possibilidade de
conhecer o verdadeiro e uacutenico Deus e se necessaacuterio for viver e morrer na defesa deste
Evangelho que nos leva ao verdadeiro conhecimento115
Apoacutes abordar a figura de Justino em sua classe Patriacutestica e salientar resumidamente
seu instrutivo serviccedilo para com o cristianismo seraacute analisada de maneira diminuta mas com
dedicado alinho a dataccedilatildeo e a estrutura literaacuteria da primeira obra apologeacutetica que serve de esteio
para esta pesquisa
13 ANAacuteLISE LITERAacuteRIA DA I APOLOGIA DE JUSTINO
A constituiccedilatildeo textual da primeira obra de Justino apresenta caracteriacutesticas histoacuterico-
literaacuterias muito interessantes como tambeacutem evidecircncia aspectos relevantes na assimilaccedilatildeo do
desenvolvimento do cristianismo dos dois primeiros seacuteculos Desta forma reconhecemos a
necessidade de uma abordagem cientiacutefica ndash mesmo que aqui apresentada de maneira lacocircnica
ndash de algumas aacutereas da anaacutelise criacutetica textual para uma melhor assimilaccedilatildeo de nosso escrito
alicerccedilante Assim um enfoque calculado na dataccedilatildeo na divisatildeo no gecircnero literaacuterio e nas
principais peccedilas quirograacuteficas da I Apologia de Justino nos possibilitaratildeo uma melhor
compreensatildeo dos conteuacutedos e elementos que a mesma visa comunicar A partir de agora nosso
objetivo seraacute examinar estas quatro aacutereas
131 Dataccedilatildeo
113 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 70
114 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 31
115 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
33
Apresenta-se praticamente como ponto paciacutefico na pesquisa histoacuterica-teoloacutegica que a
obra tenha sido escrita em meados do Seacuteculo II de nossa Era sendo reconhecida como a data
mais aceita para esta afirmaccedilatildeo o periacuteodo entre os anos de 150 e 160 dC116 Essa tese encontra
forccedila significativa atraveacutes de quatro argumentos todos de cunho e alccedilada existencial
comunicados na proacutepria obra Inicialmente os destinataacuterios para quem esse escrito apologeacutetico
de Justino se dirigiu garantem um aporte histoacuterico consideraacutevel neste exame o mesmo escreve
ldquoAo imperador Tito Eacutelio Adriano Antonino Pio Ceacutesar Augusto ao seu filho Veriacutessimo filoacutesofo
e a Luacutecio filho natural do Ceacutesar filoacutesofo e filho adotivo de Pio amante do saber ao sacro
Senado e a todo o povo romanordquo117 Por meio desse dado Frangiotti eacute categoacuterico ao afirmar que
eacute ldquofato que estes imperadores reinaram do ano 147 ao ano 161 A Apologia deve ter sido escrita
ao longo destes 15 anosrdquo118
Em segundo outro fator se apresenta determinante na tentativa de se apontar
satisfatoriamente a data desse escrito o ponto em questatildeo se apresenta no capiacutetulo XLVI da
obra novamente o comentaacuterio de Frangiotti eacute valioso por apresentar evidecircncias importantes
Justino menciona que uma das objeccedilotildees contra a doutrina cristatilde era a de ldquodizermos
que Cristo nasceu somente haacute cento e cinquenta anos sob Quirino e ensinou sua
doutrina mais tarde no tempo de Pocircncio Pilatosrdquo Embora se deva tomar o ano cento
e cinquenta como um arredondamento pode-se pensar que a redaccedilatildeo da I Apologia
natildeo se deu antes desta data119
O terceiro elemento a se tornar pontual no texto de Justino eacute sua menccedilatildeo a respeito da
terceira revolta judaica liderada por Simatildeo Bar Koacutekeba em meados do Seacuteculo II A respeito
disto Justino relata com ecircnfase apologeacutetica que ldquoCom efeito na guerra dos judeus agora
terminada Bar Koacutekeba o cabeccedila da rebeliatildeordquo120 estaria aplicando meacutetodos de tortura nos
cristatildeos ao seu redor Santos mostra em sua pesquisa que esta exposiccedilatildeo de Justino pode ser
considerada como um ponto norteador para uma medida qualificada de dataccedilatildeo de sua obra o
116 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988 DROHNER Manual
de Patrologia 2008
117 JUSTINO I Apologia I 1
118 FRANGIOTTI Introduccedilatildeo In I Apologia 1995 p 7
119 FRANGIOTTI Introduccedilatildeo In I Apologia 1995 p 7
120 JUSTINO I Apologia XXXI 6
34
historiador diz ldquoEssa rebeliatildeo ocorreu entre os anos de 132 e 135 dC A expressatildeo lsquoagora
terminadarsquo nos remete a uma data posterior ao final da revoltardquo121
O quarto e uacuteltimo argumento baseia-se no relato de Justino encontrado no capiacutetulo
XXIX nos versos 2 e 3 da I Apologia Neste espaccedilo o Apologista retrata um caso juriacutedico
envolvendo o prefeito de Alexandria denominado Feacutelix que havia indeferido um pedido
exoacutetico proposto por um jovem cristatildeo que desejava castrar-se por motivos asceacuteticos Bases
histoacutericas confiaacuteveis ldquoidentificam o prefeito Feacutelix como Minuacutecio Feacutelix o qual reinou em
Alexandria do ano 148 a 154rdquo122 podendo-se deste modo catalogar outro importante elemento
que corrobora para a dataccedilatildeo da I Apologia
Por fim mesmo que natildeo sejamos especialistas na anaacutelise historiograacutefica nem mesmo
nos seja possiacutevel definir uma data precisa para o escrito examinado ainda assim em vista dos
termos aqui apresentados reconhecemos com a ampla maioria de pesquisadores da aacuterea que
os elementos apresentados trazem recursos suficientes para que atestemos que a I Apologia de
Justino tenha realmente sido escrita por volta da deacutecada de 50 do Seacuteculo II da era cristatilde
132 Divisatildeo Textual
O escrito natildeo segue um padratildeo riacutegido de construccedilatildeo textual pelo contraacuterio digressotildees
satildeo comuns em todas as obras de Justino mesmo que suas apologias sofram menos com
divagaccedilotildees abruptas ou mudanccedilas draacutesticas de rumo nas intenccedilotildees e consideraccedilotildees centrais que
o autor propotildee em suas conjunccedilotildees temaacuteticas Essas variaccedilotildees possivelmente ocorrem devido a
Justino preferir seguir uma proposta de caraacuteter mais catequeacutetico em vez de sua proacutepria
elaboraccedilatildeo conceitual123
Baliza-se de maneira majoritaacuteria na anaacutelise criacutetica a concordacircncia de que a obra se
divide em duas partes principais124 Contudo apresentam-se variaccedilotildees nessa forma de
separaccedilatildeo Nossa opccedilatildeo seraacute por apresentar a estrutura oferecia por Drohner por ser a mais
utilizada por outros autores aleacutem de parecer a que melhor reporta o teor do pensamento
proposto por Justino em sua construccedilatildeo apologeacutetica-doutrinal
121 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 72
122 FRANGIOTTI Introduccedilatildeo In I Apologia 1995 p 7
123 DROHNER Manual de Patrologia 2008
124 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988 DROHNER Manual
de Patrologia 2008
35
Na primeira parte os capiacutetulos I ao XXIX estabelecem uma forte e riacutegida postura de
defesa contra algumas acusaccedilotildees lanccediladas sobre os cristatildeos como a praacutetica do ateiacutesmo por
exemplo Salienta-se neste espaccedilo sua afirmaccedilatildeo de que Jesus Cristo eacute ldquoo Logos e Filho de
Deusrdquo125 que revelou os planos demoniacuteacos que aprisionam a humanidade atraveacutes de praacuteticas
pecaminosas afastando-os do plano de salvaccedilatildeo No entanto boas novas se anunciam a partir
de agora pela revelaccedilatildeo do Logos por meio dos cristatildeos pelo qual todos (homens) poderatildeo
tornar-se tementes a Deus A segunda parte se desenvolve entre os capiacutetulos XXX ao LXVIII
nesta seccedilatildeo questotildees dogmaacuteticas (Encarnaccedilatildeo Divindade Profecias etc) questotildees filosoacuteficas
(revelaccedilatildeo do Logos faacutebulas humanas Platonismo etc) e questotildees sacramentaiseclesiaacutesticas
(Batismo Santa Ceia Liturgia) se aglutinam na formataccedilatildeo de uma ideia para defesa da
identidade e do bem-estar de um ldquopovordquo (conceito que abordaremos mais detalhadamente no II
capiacutetulo deste trabalho)
A partir desse item trataremos do gecircnero literaacuterio da obra algo muito importante na
elaboraccedilatildeo desta pesquisa
133 Gecircnero Literaacuterio
O estilo natildeo eacute novo nem recente e foi muito utilizado na antiguidade126 Podemos
afirmar com seguranccedila que as primeiras referecircncias a esse tipo de literatura de que dispomos
datam do periacuteodo da Filosofia Claacutessica e podem ser encontradas a partir do Seacuteculo IV aC
Provavelmente uma das obras mais conhecidas e renomadas deste tipo eacute a Apologia de Soacutecrates
escrita por seu aluno Platatildeo Nela aquele que possivelmente foi o mais dedicado dentre seus
disciacutepulos procura defender o legado e a imagem de seu mestre por meio da preservaccedilatildeo do seu
pensamento Eacute importante frisar neste contexto a abordagem de forma direta e completa (em
um estilo dialogal-filosoacutefico) do processo (meacutetodo) de julgamento de Soacutecrates oferecida por
Platatildeo a tocircnica do relato parece ganhar a direccedilatildeo de querer conscientizar seus ouvintes da
necessidade de se fazer justiccedila independentemente do caso e das circunstacircncias que estatildeo em
debate Esse estilo acaba por influenciar sua eacutepoca e torna-se o modelo apologeacutetico a ser
seguido nos seacuteculos seguintes127
Contribui ainda para uma melhor assimilaccedilatildeo das intenccedilotildees subjacentes a esse estilo
de linguagem e escrita o pensamento de Malta que ao comentar os diaacutelogos que tratam do
125 DROHNER Manual de Patrologia 2008 p 84
126 MALTA Introduccedilatildeo In Apologia de Soacutecrates 2008
127 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
36
processo contra Soacutecrates (os quais satildeo quatro Ecircutifon Apologia de Soacutecrates Criacuteton e Feacutedon)
acaba por colaborar de maneira expressiva na elaboraccedilatildeo do caraacuteter que estas obras (apologias)
procuravam transmitir aos seus receptores ldquoEntre eles haacute uma clara sequencia dramaacutetica desde
a discussatildeo sobre o ponto central da acusaccedilatildeo (o que eacute piedade) passando pela defesa no
tribunal e a estada na prisatildeo ateacute o momento em que a pena de morte eacute cumpridardquo128
A palavra apologia (grego απολογια) que no portuguecircs eacute definido como um
substantivo feminino129 eacute formada por dois vocaacutebulos gregos O primeiro eacute απο uma partiacutecula
primaacuteria uma preposiccedilatildeo cujo significado baacutesico eacute a ideia ldquode separaccedilatildeo eou de origem do
lugar de onde algo estaacute vem acontece eacute tomadordquo130 O segundo eacute o vocaacutebulo λογος de
significado vasto ndash desenvolvendo inclusive uma estrutura particular junto ao cristianismo131
ndash mas colocado em paralelo com o nosso exame pode ser definido como ldquopalavra proferida
a viva voz que expressa uma concepccedilatildeo ou ideia o que eacute declarado pensamento declaraccedilatildeo
aforismo dito significativo sentenccedila maacuteximardquo132 ldquoproclamaccedilatildeo ensinamento [] doutrina
parte de uma doutrinardquo133 Entretanto deve-se sempre se levar em conta que junto ao ambiente
filosoacutefico-teoloacutegico de Justino ldquoum duplo uso do termo deve ser distinguido um que diz
respeito ao falar e outro que se relaciona com o pensamentordquo134 Neste cenaacuterio ainda se
robustece a ideia de que o termo composto (απολογια) era condutor de um conceito de
soberania instaurado pela ldquosabedoria pessoal e poder em uniatildeo com Deusrdquo135 Ainda focando
128 MALTA Introduccedilatildeo In Apologia de Soacutecrates 2008 p 11
129 Apologia (amiddotpomiddotlomiddotgimiddota) Substantivo feminino Significa 1 Discurso encomiaacutestico 2 [Figurado] Elogio 3
Defesa laudatoacuteria Ver Dicionaacuterio Priberam da Liacutengua Portuguesa Disponiacutevel em
lthttpsdicionariopriberamorgapologiagt Acesso em 28 de set 2018
130 STRONG Dicionaacuterio Biacuteblico Strong 2002 p 1317
131 Ritt sugere-nos que a partir dos registros neotestamentaacuterios houve uma guinada na concepccedilatildeo do Logos como
elemento estrutural e funcional para a realidade histoacuterica do termo junto as culturas e os ambientes intelectuais
que o utilizavam Utilizando-se de um sistema de progressatildeo biacuteblica Ritt chega ao proacutelogo do Evangelho de Joatildeo
onde salienta que ldquoEstas declaraccedilotildees que estatildeo concentradas na encarnaccedilatildeo permitem reconhecer uma origem
cristatilde do hino (proacutelogo do Evangelho de Joatildeo)rdquo onde a autenticidade do sujeito (Logos) como um recurso estaacutevel
e completo para a humanidade se daacute a conhecer nesse evento apoteoacutetico (encarnaccedilatildeo de Cristo) Ver RITT In
λόγος ου ό Diccionario Exegetico del Nuevo Testamento Volumen II 1998 p 78 grifo nosso No original Estos
enunciados que se concentran en la encarnacioacuten permiten reconocer un origen cristiano del himno
132 STRONG Dicionaacuterio Biacuteblico Strong 2002 p 1622
133 RUSCONI Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento 2003 p 288 grifo nosso
134 THAYER A Greek-English lexicon of the New Testament being Grimms Wilkes clavis novi testamenti 1889
p 880 No original a twofold use of the term is to be distinguished one which relates to speaking and one which
relates to thinking
135 THAYER A Greek-English lexicon of the New Testament being Grimms Wilkes clavis novi testamenti 1889
p 882 No original personal wisdom and power in union with god
37
este segundo vocaacutebulo para uma maior amplitude do assunto sobre este termo grego tatildeo
ilustrativo vale-nos citar a definiccedilatildeo de Pereira
Palavra dito revelaccedilatildeo divina resposta dum oraacuteculo maacutexima sentenccedila exemplo
decisatildeo resoluccedilatildeo condiccedilatildeo promessas pretexto argumento ordem menccedilatildeo
notiacutecia que corre conversaccedilatildeo relato mateacuteria de estudo ou de conversaccedilatildeo razatildeo
inteligecircncia senso comum a razatildeo de uma coisa motivo juiacutezo opiniatildeo estima valor
que se daacute a uma coisa justificaccedilatildeo explicaccedilatildeo a razatildeo divina136
Rapidamente atentando aos escritos apologeacuteticos cristatildeos do Seacuteculo II notamos um
ldquoesforccedilo de aproximaccedilatildeordquo137 dos Pais Apologistas (em sua ampla maioria) para a utilizaccedilatildeo da
consagrada forma do diaacutelogo-filosoacutefico (como citado acima) isso devido especialmente ao fato
de essas obras serem direcionadas agrave aristocracia poliacuteticaintelectual de sua eacutepoca incluindo
nesse cenaacuterio opulente os proacuteprios Imperadores de Roma138 Uma importante referecircncia a ser
associada a este contexto estaacute relacionada agrave utilizaccedilatildeo e significado da palavra ldquoapologiardquo
utilizada por Euseacutebio na identificaccedilatildeo da obra de Justino Euseacutebio ndash possivelmente o primeiro
a empregar o termo (apologia) para definir um conjunto de escritos do meio cristatildeo139 ndash utiliza
das seguintes descriccedilotildees para se referir ao nosso autor ldquoEm sua primeira Apologiardquo140 ou ldquoao
escrever sua Apologia dirigida a Antoninordquo141 e ainda ldquoem sua Apologiardquo142 Eacute importante
frisar que Justino em nenhum momento se utiliza do termo ldquoapologiardquo em sua obra143 mas a
define como ldquodiscurso e suacuteplicardquo144 todavia para Euseacutebio (e para a Sagrada Tradiccedilatildeo na qual
este se amparava) Justino indiscutivelmente havia sido um fiel defensor da verdade revelada
de Deus Aleacutem disso neste quadro cabe-nos ainda ressaltar o comentaacuterio de Arzani e Venturini
ao trabalho de Euseacutebio pois ambos buscam definir uma ideia qualitativa e funcional na
utilizaccedilatildeo do termo pelo historiador
136 PEREIRA Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 1998 p 350
137 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 188
138 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988
139 ARZANI VENTURINI A Origem da Tradiccedilatildeo Apologeacutetica Cristatilde e Justino Maacutertir 2010 Para um maior
aprofundamento do tema ver 2 Euseacutebio de Cesareia as apologias e os apologistas p 2-7
140 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica II 13 2 VI 17 1
141 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 3
142 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 11 11
143 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
144 JUSTINO I Apologia I 1
38
Uma anaacutelise mais ampla sobre a constituiccedilatildeo (ou natildeo) dos gecircneros apologeacuteticos
cristatildeos deve ficar para uma outra oportunidade entretanto considerando que eacute
Euseacutebio quem primeiro apresenta uma ideia mesmo que hipoteacutetica do
reconhecimento das formas dos textos de defesa dos cristatildeos ou de suas crenccedilas eacute
preciso considerar como ele emprega o termo apologia Aleacutem de empregar o termo
apologia para se referir aos sete textos anteriormente citados ele tambeacutem o usa no seu
sentido claacutessico como simples ldquodiscurso de defesardquo145
Desta forma podemos concluir que os escritos apologeacuteticos buscavam efeitos
similares tanto no cenaacuterio cristatildeo quanto no pagatildeo Poreacutem no que cabe agrave Igreja vale ressaltar
que o estilo apologeacutetico procurou desconstruir equiacutevocos salientar o cristianismo como religiatildeo
ordeira e beneacutefica ndash entenda-se (baseado em alguns relatos Patriacutesticos) como superior agraves
demais crenccedilas ndash mas acima de tudo sanar as injusticcedilas cometidas contra os cristatildeos Nesse
uacuteltimo ponto a penna dos Apologistas procurava pesar contra a consciecircncia dos governantes
de seu tempo a reflexatildeo de Richard Norris considera bem essa questatildeo ldquoo objetivo de tais
escritos eram em geral persuadir as autoridades de que as frequentes perseguiccedilotildees locais eram
injustas desnecessaacuterias e indignas de governantes esclarecidosrdquo146
A partir deste item visando a qualificaccedilatildeo deste trabalho damos segmento a nosso
exame estrutural agregando a seu corpo um destacado incremento teacutecnico falemos agora dos
manuscritos da I Apologia
134 Manuscritos
A criacutetica textual somada a inuacutemeras e significativas descobertas arqueoloacutegicas tecircm
possibilitado haacute teologia avanccedilos consideraacuteveis em suas pesquisas acerca dos documentos
antigos do cristianismo No que se refere as obras de Justino isso natildeo eacute diferente pois desde o
Seacuteculo XIX a criacutetica textual jaacute possibilitava exames bem estruturados ao meio acadecircmico
Exemplo disto eacute Johann Otto que ao analisar o Codex Claromontanus LXXXII ratificou que
este de maneira inicial ldquonos fornece alguns dos escritos de Justinordquo147 Nesta questatildeo cabe
ressaltar que das obras preservadas de Justino possuiacutemos apenas trecircs manuscritos mesmo que
apenas um seja considerado absolutamente confiaacutevel pela criacutetica suscitando desta forma certa
controveacutersia entre os analistas Quanto a esta pendecircncia citamos parte consideraacutevel da pesquisa
145 ARZANI VENTURINI A Origem da Tradiccedilatildeo Apologeacutetica Cristatilde e Justino Maacutertir 2010 p 3-4
146 NORRIS The Apologists 2004 p 36 apud SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I
Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 74
147 OTTO Prolegocircmenos XXI In S Iustini philosophi et martyris opera quae feruntur omnia Volume 1 Part 1
1847
39
de Santos que baseada em autores renomados da aacuterea daacute o destaque necessaacuterio a essa anaacutelise
quirograacutefica O autor nos agrega relevante contribuiccedilatildeo neste item teacutecnico
Haacute trecircs manuscritos para as obras de Justino o Codex Parisinus Graecus 45055 o
Codex Claromontanus LXXXII e o Codex Ottobonianus Graecus 274 (MINNS amp
PARVIS 2009 p 3) Alguns comentadores preferem atribuir um manuscrito (AUNE
2003 p 257 ALLERT 2002 p 32 POPE 2001 p 7) ou dois manuscritos
(DONALDSON 1866 p 144) Os que defendem a existecircncia de somente um
manuscrito levam em conta que o Codex Parisinus Graecus 450 eacute o uacutenico vaacutelido uma
vez que o Codex Claromontanus LXXXII eacute apenas uma coacutepia deste e o Codex
Ottobonianus Graecus 274 possui apenas trecircs capiacutetulos da I Apologia Aqueles que
consideram como dois manuscritos referem-se aos dois primeiros Por questatildeo de
coerecircncia (pois apesar do Claromontaus ser coacutepia natildeo deixa de ser um manuscrito e
o Ottobonianus mesmo tendo apenas trecircs capiacutetulos tambeacutem natildeo) concordamos com
a afirmaccedilatildeo de Minns e Parvis de que existem trecircs manuscritos148
No entanto eacute fato que o Codex Parisinus Graecus 450 se condiciona como o ldquomelhorrdquo
destes manuscritos existentes Este manuscrito data de 11 de setembro de 1363-1364 possui
467 paacuteginas duplas (ou foacutelios que medem 285 x 215 cm) e atualmente permanece arquivado
na Bibliothegraveque Nationale em Paris149 Infelizmente natildeo haacute informaccedilotildees sobre quem teria sido
o copista apenas sabe-se graccedilas a um registro oficial que ele pertenceu a Guillaume Pellicier
um notaacutevel Bispo Catoacutelico Romano do Seacuteculo XVI que provavelmente o adquiriu em uma de
suas atividades diplomaacuteticas possivelmente entre os anos de 1539 a 1542150
Enfim apoacutes explorarmos ndash mesmo que de maneira sucinta ndash a estrutura textual da obra
central desta dissertaccedilatildeo podemos afirmar que estes documentos histoacutericos nos ldquocomunicamrdquo
e ldquotraduzemrdquo um melhor conhecimento do passado edificando a Igreja e tambeacutem certificando
o meio acadecircmico de forma eficaz (cientificamente) de que homens como Justino lutaram
corajosamente para defender a feacute de seus irmatildeos especialmente das perseguiccedilotildees oficiais
assunto que trataremos a seguir
14 A PERSEGUICcedilAtildeO AOS CRISTAtildeOS
Compreendemos ser ainda importante na construccedilatildeo desta pesquisa enfocarmos
mesmo que de maneira sucinta e setorizada um dos fatores que constituiu uma das
caracteriacutesticas mais vibrantes e significativas da histoacuteria do cristianismo em sua gecircnese como
148 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 74
149 PAUTIGNY In Introduction Justin Apologies 1904 p 10
150 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
40
movimento humano-religioso fato que mobilizou o cenaacuterio social da eacutepoca comprovando a
ldquoexistecircncia de um esquemardquo151 de perseguiccedilatildeo e cerceamento da liberdade de crenccedila e culto dos
cristatildeos isso tanto atraveacutes do agir do poder estatal quanto de setores organizados (especialmente
do meio religioso) da sociedade de entatildeo em sua formaccedilatildeo soacutecia-politica-religiosa de caraacuteter
cultural greco-romana Esta caracteriacutestica coativa acabou por se comprovar tambeacutem atraveacutes do
desenvolvimento de material textual como o que norteia nosso trabalho (I Apologia) acento
que sancionou uma regra funcional dos dias de nosso autor a de acionar a razatildeo humana para
tentar evitar uma insensata postura detrativa entre os homens autodeclarados de civilizados
Desta forma como parte derradeira deste capiacutetulo introdutoacuterio apresentamos duas
divisotildees uma temaacutetica e outra analiacutetica trazendo ambas carateriacutesticas funcionais especiacuteficas
desse sistema de repressatildeo A primeira retrata uma siacutentese deste processo na organizaccedilatildeo
estrutural do Impeacuterio Romano A segunda se orienta por um periacuteodo cronoloacutegico que se
desenvolveu durante o Seacuteculo II especialmente concentrando-se no dececircnio em que se acredita
que Justino tenha escrito sua primeira obra apologeacutetica
141 O Impeacuterio Romano e a Perseguiccedilatildeo ao Cristianismo
Desde o Seacuteculo I a ldquopesquisa histoacutericardquo152 jaacute nos retrata com eficiecircncia fatos que
tiveram influecircncia decisiva do poder humano controlador do mundo de entatildeo (Impeacuterio Romano)
para com a Igreja de Cristo sobre a terra Dessa grande estrutura poliacutetica da antiguidade emergiu
tanto a perseguiccedilatildeo quanto o resultado mais elementar e simboacutelico deste processo que tinha o
cristianismo como alvo o martiacuterio de seus seguidores Poderiacuteamos chamaacute-lo sem o apelo a
nenhum eufemismo de ldquoassassinatordquo de centenas de pessoas
Contudo nesta seacuterie de sucessivos acontecimentos anormais vem a nascer a mais
significativa contribuiccedilatildeo deste intolerante processo governamental a saber a expansatildeo do
cristianismo Hatzenberger desenvolve uma soacutelida ideia a esse respeito quando conjectura sobre
o caraacuteter poliacutetico vigente junto ao Impeacuterio Tendo analisado seus preconceitos limitaccedilotildees e
maliacutecias Hatzenberger tenta explicar a capacidade desse sistema atraveacutes de sua multiplicidade
de gecircnios dando a entender que nesta ampla diversidade o cristianismo encontrou sua
possibilidade de crescer Hatzenberger afirma que podemos ldquodizer que o Impeacuterio Romano era
um tambor de gasolina agrave espera da faiacutesca da feacute cristatilderdquo153
151 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004 p 356
152 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004 p 356
153 HATZENBERGER Histoacuteria da Igreja 2012 p 1
41
Entretanto as perseguiccedilotildees estatais ao cristianismo satildeo um caso histoacuterico delicado e
nada romacircntico pois tornou-se uma dura realidade para muitas comunidades cristatildes na
antiguidade isso devido ao grande desenvolvimento do cristianismo que no decorrer dos seus
primeiros 100 anos suscitou uma consideraacutevel preocupaccedilatildeo ao Impeacuterio Catalogada desde cedo
como uma religiatildeo antagonista e excludente154 pela sua recusa em seguir praacuteticas comuns do
meio social vigente das grandes cidades onde jaacute se encontrava consolidada ndash devido
especialmente as suas posiccedilotildees quanto as questotildees de ordem cuacuteltica (ldquofestas oficiaisrdquo155) como
a adoraccedilatildeo aos ldquodeuses pagatildeos em particular o Imperador a quem negavam o caraacuteter divinordquo156
ndash fazia com que os seguidores desse movimento que inicialmente foi interpretado como uma
seita judaica157 fossem em muitos casos expressivamente acusados de colocarem em risco a
ldquopax deorumrdquo158 devido ao entendimento comum e geral de que o Imperador era o supremo
mantenedor desse estado de satisfaccedilatildeo e gloacuteria conquistados por Roma Outras questotildees
depreciativas eram atribuiacutedas aos cristatildeos antissociabilidade ateiacutesmo canibalismo fanatismo
orgias sexuais entre outras desvirtudes que eram amplamente apresentadas como acusaccedilotildees de
ordem formal e agraves vezes informal (atraveacutes de buchichos fofocas e relatos puacuteblicos natildeo oficiais)
as quais despertavam ldquoreaccedilotildees populares descontroladas de medo de intoleracircncia e de
violecircnciardquo159 contra estes que se colocavam como disciacutepulos de Cristo
Desta forma entre falsas ideias e verdadeiras demandas ndash a recusa ao ldquojuramento e os
ritos implicados no serviccedilo militarrdquo160 eacute outro exemplo da suposta ldquorebeliatildeordquo cristatilde ao Impeacuterio
ndash criou-se um ldquoestadordquo de perigo que mediante uma forte campanha de difamaccedilatildeo passou a
ser considerado como uma ameaccedila a cultura e a forma do governo Romano Certamente
servindo de combustiacutevel para as perseguiccedilotildees pontuais eou sistematizadas161 especialmente
nos Seacuteculos I e II Aleacutem disto junto com a expansatildeo da nova doutrina e feacute cristatildes um novo
entendimento comeccedilou a se estabelecer que o cristianismo se diferenciava do judaiacutesmo162
154 TAacuteCITO Anais XV 44
155 FROumlHLICH Curso Baacutesico de Histoacuteria da Igreja 1987 p 23
156 LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975 p 15
157 LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975
STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004
158 TESTA In Igreja e Impeacuterio Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 969
159 TESTA In Igreja e Impeacuterio Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 976
160 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 84
161 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
162 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
42
Com o fim do ldquoequiacutevoco judaicordquo163 houve a reelaboraccedilatildeo de um esquema que gerou um
reposicionamento de Roma para essa nova perspectiva Aqui a siacutentese de Xavier retrata bem o
que desejamos comunicar sobre esse reposicionamento
O Impeacuterio Romano percebeu que a nova religiatildeo possuiacutea diferenccedilas acentuadas em
relaccedilatildeo ao judaiacutesmo Embora os judeus resistissem agrave cultura e religiatildeo greco-romana
o cristianismo passou a se organizar como religiatildeo crescendo em nuacutemero e em
organizaccedilatildeo sendo formadas igrejas em vaacuterios lugares O evangelho chegou aos
grandes centros da eacutepoca e ateacute os confins da terra devido a pregaccedilatildeo de cristatildeos que
viajavam a negoacutecios missatildeo ou levados pela perseguiccedilatildeo que dispersava os cristatildeos
fazendo com que a feacute se expandisse164
Quanto a questotildees que envolvem esse amplo periacuteodo conflituoso ainda eacute necessaacuterio
apresentarmos dois raacutepidos e sucintos registros O primeiro envolve um conjunto de fatos
constituiacutedos em mais de 250 anos onde podemos registrar periacuteodos que devem ser classificados
como ldquoperseguiccedilatildeo perseguiccedilatildeo geral perseguiccedilatildeo maior e toleracircnciardquo165 para com os cristatildeos
Satildeo muitas e variadas as circunstacircncias e as caracteriacutesticas que formam cada uma destas fases
e fazem com que elementos singulares a cada uma delas (como periacuteodo e regionalidade)
tornem-se fatores decisivos nesta diferenciaccedilatildeo Entretanto natildeo as abordaremos
especificamente por entendermos que o assunto foge de nosso exame central Segundo
compreendemos ser imprescindiacutevel junto a esta abordagem citar a tese amplamente sustentada
pelo meio histoacuterico-teoloacutegico da ldquoexistecircncia de um esquema de dez grandes perseguiccedilotildeesrdquo166
tendo seu primeiro caso ocorrido entre 64-68 dC sob o Imperador Nero desde seu uacuteltimo ato
no periacuteodo dos governos de Diocleciano e Maximiano entre 285-305 dC167 Tertuliano168 e
Euseacutebio fornecem-nos consideraacutevel conteuacutedo sobre aquela que possivelmente tenha sido a
primeira grande onda de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos promovida pelo Impeacuterio Citamos Euseacutebio
163 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 82
164 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 10
165 A ordem dos fatores apresentados natildeo eacute cronoloacutegica e sim alfabeacutetica Ver LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila
da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975 p 11-12
166 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004 p 356
167 As intituladas ldquoDez Perseguiccedilotildeesrdquo ao cristianismo por parte do Impeacuterio Romano satildeo protagonizadas por Nero
(54-68 dC) Domiciano (95-96 dC) Trajano (108 dC) Marco Aureacutelio (162 dC) Cocircmodo (192 dC)
Maximino (235 dC) Deacutecio (250-251 dC) Valeriano (257-260 dC) Aureliano (274 dC) Diocleciano (303-
313 dC) Ver FOXE O Livro dos Maacutertires 2003 p 16-32
168 TERTULIANO Apologia V
43
que ao falar sobre o reinado de Nero (54-68 dC) fomenta uma simbiose de dados histoacutericos
mencionando o proacuteprio Tertuliano
Firmado Nero no poder deu-se a praacuteticas iacutempias e tomou as armas contra a proacutepria
religiatildeo do Deus do universo [] Mas deve-se saber que a tudo o que foi dito sobre
ele faltava acrescentar que foi o primeiro imperador que se mostrou inimigo da
piedade para com Deus Disto faz menccedilatildeo tambeacutem o latino Tertuliano quando diz
ldquoLeiam vossas memoacuterias Nelas encontrareis que Nero foi o primeiro a perseguir esta
doutrina principalmente quando depois de submeter todo o Oriente em Roma era
cruel para com todosrdquo169
Portanto buscando apresentar uma ideia conclusiva a nossa concisa elaboraccedilatildeo sobre
esse tema tatildeo vasto da histoacuteria da Igreja podemos dizer que natildeo restam duacutevidas mediante
inuacutemeros argumentos histoacutericos apresentados por diversas e variadas fontes ser plausiacutevel e ateacute
mesmo luacutecido afirmar que o Impeacuterio Romano foi em diversos momentos um literal
perseguidor acusador juiz e algoz do cristianismo durante um periacuteodo de praticamente dois
seacuteculos e meio Scott por meio de bases historiograacuteficas retrata bem esse processo ajudando-o
a sancionaacute-lo
Repetidas vezes foram publicados editos para exterminar da terra os cristatildeos
Levantaram ateacute monumentos para celebrar e perpetuar os supostos ecircxitos das
perseguiccedilotildees Aqui estatildeo duas preservadas inscriccedilotildees desses monumentos em escritos
da eacutepoca DIOCLECIANO CEacuteSAR AUGUSTO TENDO ADOTADO GALEacuteRIO
NO ORIENTE A SUPERSTICcedilAtildeO DOS CRISTAtildeOS FOI DESTRUIacuteDA EM TODA
A PARTE E PROPAGADA A ADORACcedilAtildeO DOS DEUSES170
A partir de agora examinaremos um conjunto mais restrito desse longo periacuteodo
imperial (54-313 dC)171 de tensotildees entre a Igreja e seus perseguidores pagatildeos especificamente
abordaremos o periacuteodo endossado pelos registros de Justino atraveacutes de seu ministeacuterio
testemunho e vivecircncia na feacute cristatilde
142 A Perseguiccedilatildeo no Periacuteodo da I Apologia
169 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica II 25 1 3 4
170 SCOTT As Catacumbas de Roma 1996 p 84 grifo do autor
171 LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975
44
Durante o Seacuteculo II podemos dizer que um periacuteodo determinado pela irregularidade
ou seja pela ausecircncia de um padratildeo caracterizou o ambiente social da eacutepoca atraveacutes de uma
ldquoperseguiccedilatildeo difusa ora aqui ora ali hoje perseguiccedilatildeo amanhatilde toleracircnciardquo172 Este momento
tambeacutem pode ser realccedilado por outras questotildees pontuais mas sua principal distinccedilatildeo realmente
se define pela esporadicidade dos periacuteodos de repressatildeo estatal o que ocasionou momentos de
consideraacutevel toleracircncia ao cristianismo balizados e sustentados ldquojuridicamenterdquo pela resposta
do Imperador Trajano agrave consulta de Pliacutenio173 (Cocircnsul da Bitiacutenia) por volta do ano 111 dC
Santos sintetiza bem esses dececircnios da relaccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja ldquoA poliacutetica romana agrave
eacutepoca era de tanto quanto possiacutevel natildeo condenar os cristatildeos agrave morte De modo geral desde o
final do Seacuteculo I ateacute o final do II da era cristatilde houve vaacuterios Imperadores com poliacuteticas mais
paciacuteficas em relaccedilatildeo aos cristatildeosrdquo174 Vale tambeacutem ressaltarmos como um elemento
consideraacutevel a tese proposta que no momento ao qual Justino escreveu sua I Apologia Roma
era governada pela dinastia denominada de Nerva-Antonina a qual foi conhecida pela alcunha
dos ldquocinco bons imperadoresrdquo175 definiccedilatildeo que foi proposta por Maquiavel em uma anaacutelise
poliacutetica do ano de 1503 Maquiavel escreveu
Do estudo desta histoacuteria podemos tambeacutem aprender como um bom governo deve ser
fundado pois enquanto todos os imperadores que acederam ao trono por nascimento
exceto Tito foram ruins todos foram bons que acederam por adoccedilatildeo como foi o caso
dos cinco de Nerva ateacute Marco Mas tatildeo logo o impeacuterio caiu novamente nas matildeos dos
herdeiros por nascimento sua ruiacutena recomeccedilou176
Entretanto falaremos especificamente apenas de duas figuras deste periacuteodo chamado
de dinastia Nerva-Antonina (96 a 180 dC) mais precisamente de seus dois uacuteltimos
172 LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975 p 20
173 ROSSI BINATO As Cartas de Pliacutenio o Jovem traduccedilatildeo parcial do Livro X correspondecircncia administrativa
com o Imperador Trajano 2017
174 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 90
175 Relaccedilatildeo dos Imperadores da dinastia Nerva-antonina Nerva (96-98 dC) Trajano (98-117 dC) Adriano (117-
138 dC) Antonino Pio (138-161 dC) Marco Aureacutelio (161-180 dC) Ver SANTOS Identidade Cristatilde no
Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 90
176 MAQUIAVEL Discurso sobre a Primeira Deacutecada de Tito Liacutevio I 10
45
representantes a saber Antonino Pio177 (que sucedeu a Adriano) e seu filho adotivo Marco
Aureacutelio178 que o sucedeu
O Imperador Antonino Pio governou Roma por mais de vinte anos (138 a 161) Ele eacute
o destinataacuterio formal eou principal da I Apologia de Justino Neste aspecto vale muito para
esta pesquisa a anaacutelise referencial deixada por Foxe ldquoAdriano ao morrer no ano 138 dC foi
sucedido por Antonino Pio um dos mais gentis monarcas que jamais reinou e que deteve as
perseguiccedilotildees contra os cristatildeosrdquo179 Santos tambeacutem nos auxilia quando expotildeem o pensamento
de Bunson sobre a administraccedilatildeo de Antonino Pio ldquoQuanto agraves questotildees de poliacutetica externa
procurava sempre resolvecirc-las primeiramente de forma paciacutefica depois administrativamente e
por uacuteltimo com taacuteticas militaresrdquo180 Eacute fato praticamente livre de contestaccedilotildees que em seu
governo natildeo houve perseguiccedilotildees de maior envergadura sendo que as que ocorreram foram
pontuais e sem maiores impactos referendando deste modo a imagem do Imperador como a de
um monarca paciacutefico (para a eacutepoca) pois ateacute mesmo em seu periacuteodo como divus romanus foi
cognominado pelo povo de ldquoPIEDOSO pelo amor que dedicava aos pobresrdquo181
Quanto a Marco Aureacutelio seu sucessor os relatos sobre a sua postura para com o
cristianismo devem no miacutenimo ser apresentados com o adjetivo de obscurus Foxe retrata bem
esta dificuldade ldquoMarco Aureacutelio sucedeu no trono no ano 161 de nosso Senhor era um homem
de natureza mais riacutegida e severa e embora elogiaacutevel no estudo da filosofia e em sua atividade
de governo foi duro e feroz contra os cristatildeos e desencadeou a quarta (grande) perseguiccedilatildeordquo182
Extremamente vaacutelido eacute analisarmos os registros do proacuteprio Imperador os quais nos
demonstram de forma muita clara a incompatibilidade de sua filosofia com a doutrina de Cristo
como se vecirc em uma de suas citaccedilotildees
177 Titus Aurelius Fulvus Boionius Antoninus nasceu em 86 dC em Nimes na Gaacutelia Narbonense no sul da atual
Franccedila Devido agrave sua fidelidade Adriano o adotou em fevereiro de 138 dC para ser o seu sucessor no Impeacuterio o
que ocorreu logo depois no mecircs de julho com a morte de Adriano Ver BUNSON Encyclopedia of the Roman
Empire 2002 p 23-24 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino
Maacutertir 2012 p 95
178 Marcus Aurelius Antoninus nasceu em 121 dC na cidade de Roma Filho de Annius Verus e Domitia Lucilla
Tornou-se Imperador em 161 dC e a seu pedido Lucio Vero (Lucius Aerelius Verus) governou Roma juntamente
com ele Ver BIRLEY Marcus Aurelius A Biography 2001 p 116 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica IV 14
10
179 FOXE O Livro dos Maacutertires 2003 p 18
180 BUNSON Encyclopedia of the Roman Empire 2002 p 24 apud SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II
dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 96
181 MONTEIRO A Feacute e os Maacutertires breves apontamentos sobre as perseguiccedilotildees da Igreja 1940 p 81 grifo do
autor
182 FOXE O Livro dos Maacutertires 2003 p 18 grifo nosso
46
[] alma preparada para uma imediata separaccedilatildeo do corpo seja para extinguir seja
para se dispersar ou sobreviver [] Que essa preparaccedilatildeo poreacutem provenha de um juiacutezo
proacuteprio e natildeo dum simples sectarismo como o dos cristatildeos [] uma preparaccedilatildeo
raciocinada grave e para ser convincente nada teatral183
Alguns detalhes nos chamam muito a atenccedilatildeo no periacuteodo em que Marco Aureacutelio
governou especialmente se nosso estudo partir do ponto de vista de alguns historiadores que
fazem questatildeo de ratificar que esse periacuteodo foi como ldquoum lsquomarcorsquo negro fincado na histoacuteria
eclesiaacutestica assinalando com as sombras de sua tirania a eacutepoca triste de seu governo
nefastordquo184 Euseacutebio nos auxilia nesta anaacutelise de maneira importante pois segue a mesma
concepccedilatildeo de que os atos de Marco Aureacutelio foram excessivamente malignos para com o
cristianismo Buscando ser amplo e detalhista Euseacutebio promove sentimentos profundos em seu
relato quando nos retrata o martiacuterio de Policarpo Bispo de Esmirna ocorrido no reinado de
Marco Aureacutelio
E o prococircnsul disse ldquoTenho feras A elas te lanccedilarei se natildeo mudas tua posiccedilatildeordquo Mas
ele respondeu ldquoChama-as porque para noacutes natildeo eacute possiacutevel mudar de posiccedilatildeo se eacute do
melhor para o pior O bom eacute mudar do mau para o justordquo Insistiu o prococircnsul ldquoComo
natildeo te arrependes farei com que o fogo te dome se desprezas as ferasrdquo Policarpo
disse ldquoAmeaccedilas com um fogo que arde algum tempo mas depois de um pouco se
apaga E ignoras o fogo do juiacutezo futuro e do castigo eterno reservado aos iacutempios
Mas por que tardas Traga o que quiseresrdquo Enquanto dizia isto e muitas outras coisas
mais enchia-se de valor e de alegria e seu rosto transbordava de graccedila ao ponto de
que natildeo somente natildeo caiu em confusatildeo pelas coisas que lhe diziam mas pelo
contraacuterio foi o prococircnsul que ficou fora de si e chamou o arauto para que no meio do
estaacutedio apregoasse trecircs vezes Policarpo confessou que eacute cristatildeo185
Nesse cenaacuterio imperial ainda nos conveacutem apresentar a proacutepria experiecircncia de Justino
como um cristatildeo perseguido No ano de 165 dC o filoacutesofo Justino possivelmente
acompanhado de seis de seus disciacutepulos (todos cristatildeos como ele) eacute apresentado com estes a
um tribunal civil Romano sob a acusaccedilatildeo de serem cristatildeos Este relato estaacute amplamente
amparado por uma fonte secular pagatilde186 que goza de altiacutessima credibilidade Apoacutes ser
183 MARCO AUREacuteLIO Meditaccedilotildees XI 3 grifo nosso
184 MONTEIRO A Feacute e os Maacutertires breves apontamentos sobre as perseguiccedilotildees da Igreja 1940 p 90
185 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 15 23-25
186 As Atas dos Maacutertires eacute a transcriccedilatildeo dos processos verbais escritos pelas autoridades romanas e mantidos nos
arquivos oficiais do Impeacuterio Estes registros coletaram estenograficamente muitos dos atos relacionados aos
processos forenses aos quais os cristatildeos foram submetidos pelos magistrados principalmente nos interrogatoacuterios
puacuteblicos Posteriormente estes registros foram traduzidos para a escrita vulgar e assim as peccedilas foram passadas
para os arquivos judiciais Muitos dos atos foram destruiacutedos (queimados em praccedila puacuteblica) pelo Imperador
47
denunciado pelo ciacutenico Crescente Justino se apresenta diante de Ruacutestico (Prefeito de Roma)
onde o relato do processo forense se estabelece e desenrola
Venha ao tribunal o prefeito Ruacutestico disse a Justino ndash Primeiro acredite nos deuses
e obedeccedila aos imperadores Justino respondeu ndash O irrepreensiacutevel e que natildeo admite
condenaccedilatildeo eacute obedecer aos mandamentos de nosso Salvador Jesus Cristo O prefeito
Ruacutestico disse ndash Que doutrina vocecirc professa Justino respondeu ndash Tentei ouvir sobre
qualquer linhagem de doutrinas mas apenas aderi agraves doutrinas dos cristatildeos que satildeo
as verdadeiras mesmo que natildeo sejam agradaacuteveis para quem segue opiniotildees falsas187
Nessa projeccedilatildeo vemos que o Apologista apresenta natildeo somente sua feacute mas tambeacutem
sua consciecircncia de que os preceitos recebidos por ele mediante o cristianismo solidificavam
sua posiccedilatildeo Mesmo diante de um sistema que os poderia prejudicar e sendo incentivados a
recuar de suas convicccedilotildees por meio de uma aguccedilada ameaccedila de que poderiam ser
ldquoimpiedosamente punidosrdquo188 Justino e seus disciacutepulos passam a concentrar seus esforccedilos
naquilo que esta pesquisa define como um importante argumento para a Verdade que Justino
sustentava Aqui o fenocircmeno do martiacuterio cristatildeo conduzido e explorado pelo Impeacuterio Romano
ganha uma inopinada abrangecircncia pois o supliacutecio desses homens e mulheres registrados como
peccedilas do protocolo governamental acabariam por se tornar nos fatos que solidificaram e
encorajaram a militacircncia desses obreiros da feacute cristatilde Sem duacutevida Justino e seus disciacutepulos
parecem ter caminhado de forma soacutebria para ldquoonde foram decapitados e consumaram o martiacuterio
proclamando a feacute no Salvadorrdquo189 Deste modo diante de apresentaccedilotildees que se alternam entre
descriccedilotildees de caraacuteter romacircntico e fatalista vemos que os Imperadores e seus sistemas de
controle marcaram a histoacuteria natildeo apenas com sangue mas tambeacutem com o relato fidedigno da
convicccedilatildeo que suas viacutetimas sustentavam
Diocleciano (284-305 dC) pois havia notado que esses contos heroicos inflamavam a alma dos cristatildeos dando
testemunho favoraacutevel para que outros tambeacutem viessem a sofrer a pena capital sem constrangimento para com as
suas vidas Ver PRIMEROS CRISTIANOS 2016 Disponiacutevel em
lthttpswwwprimeroscristianoscomarticulosactas-de-los-martiresgt Acesso em 16 de set 2019
187 ACTAS DE LOS MAacuteRTIRES I p 311 grifo nosso No original Venidos ante el tribunal el prefecto Ruacutestico
dijo a Justino mdash En primer lugar cree en los dioses y obedece a los emperadores Justino respondioacute mdash Lo
irreprochable y que no admite condenacioacuten es obedecer a los mandatos de nuestro Salvador Jesucristo El prefecto
Ruacutestico dijo mdash iquestQueacute doctrina profesas Justino respondioacute mdash He procurado tener noticia de todo linaje de
doctrinas pero soacutelo me he adherido a las doctrinas de los cristianos que son las verdaderas por maacutes que no sean
gratas a quienes siguen falsas opiniones
188 ACTAS DE LOS MAacuteRTIRES I p 316 No original sereacuteis inexorablemente castigados
189 ACTAS DE LOS MAacuteRTIRES I p 316 No original salieron al lugar acostumbrado y cortaacutendoles alliacute las
cabezas consumaron su martirio en la confesioacuten de nuestro Salvador
48
Marco Aureacutelio tinha aproximadamente 34 anos quando Justino escreveu sua I
Apologia e cerca de 44 quando Justino sofreu o martiacuterio Mesmo diante de relatos assombrosos
de seu periacuteodo como governante ldquoe apesar de sua visatildeo negativa em relaccedilatildeo aos cristatildeos e dos
cristatildeos para com ele novamente natildeo haacute evidecircncias de qualquer (novo) decreto de perseguiccedilatildeo
aos cristatildeos por parte do Imperadorrdquo190 mesmo que se garanta uma expressiva deflagraccedilatildeo deste
expediente sombrio em seu reinado191 Devemos ainda colocar que um atento pesquisador
necessariamente se impressionaraacute com a latente crueza e dureza deste periacuteodo que esteve sob
o comando dos chamados Imperadores ldquofiloacutesofosrdquo Danieacutelou e Marrou chegam a ser aacutesperos
em sua abordagem entretanto nos parece absolutamente plausiacutevel sua definiccedilatildeo desse periacuteodo
ldquoEacute que a civilizaccedilatildeo greco-romana como tal muito embora sob um verniz humanista guardava
um fundo de crueldade Desconhecem-nos os historiadores racionalistas que pretendem reduzir
as perseguiccedilotildees a problemas socioloacutegicosrdquo192
Contudo as perseguiccedilotildees que marcaram o cristianismo e por consequecircncia geraram o
principal fruto (os martiacuterios) deste violento periacuteodo indiscutivelmente ainda satildeo sementes que
testificam e geram vida em meio a Igreja A realidade da cristandade dos primeiros seacuteculos foi
difiacutecil e desafiadora para sua feacute mas sua Esperanccedila e Amor em Jesus Cristo fez os cristatildeos
superarem ateacute a mais dolorosa realidade fosse no calor de uma fogueira nos dentes de uma
fera ou no supliacutecio de uma cruz Xavier em nosso ponto de vista consegue caracterizar bem o
fervor e feacute destes vencedores ldquoA doenccedila dificuldades e martiacuterio fizeram parte da vida dos
cristatildeos nos primeiros seacuteculos e ao longo da histoacuteria poreacutem a virtude do Evangelho natildeo deixou
de ser pregada de uma forma ou de outra pelo exemplo pela palavra falada ou escritardquo193
Apoacutes esta exposiccedilatildeo nos eacute possiacutevel reconhecer indicadores confiaacuteveis de quem foi
este filoacutesofo cristatildeo do Seacuteculo II chamado Justino de como a histoacuteria eclesiaacutestica o reconhece
e de como a histoacuteria teoloacutegica o depreende Mais ainda eacute possiacutevel compreender por meio de
dados teacutecnicos um de seus escritos mais importantes (I Apologia) Estas paacuteginas lanccedilaram luz
de maneira praacutetica (visando quando onde e por quecirc) sobre o cenaacuterio histoacuterico que envolveu
as perseguiccedilotildees e os martiacuterios dos cristatildeos especialmente no periacuteodo da atuaccedilatildeo apologeacutetica de
190 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 97 grifo
nosso
191 Para uma melhor compreensatildeo deste cenaacuterio hostil no reinado de Marco Aureacutelio ver MONTEIRO A Feacute e os
Maacutertires breves apontamentos sobre as perseguiccedilotildees da Igreja 1940 p 89-108
192 DANIEacuteLOU MARROU Nova histoacuteria da Igreja V I Dos Primoacuterdios a Santo Gregoacuterio Magno 1966 p
109
193 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 11-12
49
Justino Para efeito de conclusatildeo desta seccedilatildeo conveacutem transcrever o registro de Hamman em
formato de siacutentese que fomenta virtuosamente a descriccedilatildeo capitular desenvolvida
Neste homem que viveu haacute dezoito seacuteculos percebemos o eco de nossos anseios de
nossas objeccedilotildees de nossas certezas Descobrimos nele uma abertura de alma uma
possibilidade de acolhimento uma vontade de diaacutelogo que desarmam e seduzem Se
muitas de suas obras estatildeo hoje perdidas as que nos restam fornecem-nos o diaacuterio
iacutentimo desse cristatildeo e satildeo suficientes para nos revelar sua vida desde o seu
nascimento e a sua formaccedilatildeo ateacute o seu martiacuterio194
O proacuteximo capiacutetulo faz uma anaacutelise na qual procuramos mostrar elementos factiacuteveis
de uma nova praacutetica social vigente ndash descrita por Justino ndash em meio ao status quo da sociedade
romana de entatildeo Desta maneira tambeacutem nos cabe frisar que a partir deste ponto se salientaraacute
o iniacutecio da descriccedilatildeo daquilo que para nosso autor era uma das provas estaacuteveis do novo modus
vivendi no qual a Verdade se manifestava de forma irrefutaacutevel
194 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 27
50
2 O NOVO MODUS VIVENDI
Este capiacutetulo faraacute uma anaacutelise realiacutestica a partir da observaccedilatildeo de praacuteticas do contexto
social de Justino maacutertir Com ele iniciamos a perspectiva central proposta para esta pesquisa
aleacutem de apresentarmos de forma introdutoacuteria seu ponto nuclear Algumas marcas de cunho
histoacuterico nos permitem medir aquilo que aproximava ou afastava uma pessoa que confessava
a feacute cristatilde de seu meio sociocultural de suas atividades ordinaacuterias de seus afazeres do dia-a-
dia195 Assim neste espaccedilo apresentamos um teoacuterico conjunto de expressotildees que apontam os
conceitos que afloram do pensamento de Justino quanto agrave ldquomorfogeniardquo de sua feacute e porque natildeo
se dizer de seu grupo o qual eacute definido pelo autor como aqueles ldquoque se chamam irmatildeosrdquo196
A contemporaneidade retrata uma condiccedilatildeo ambiacutegua em comparaccedilatildeo com o Seacuteculo II
naquilo que se trata da transmissatildeo da religiosidade cristatilde ndash especialmente no que se reporta as
estruturas confessionais histoacutericas nos paiacuteses europeus e latino-americanos ndash tendo o processo
atual significativa ambivalecircncia com o padratildeo antigo o qual ainda natildeo havendo passado pelo
processo de enculturaccedilatildeo definia-se fortemente pela conversatildeo de pessoas adultas dado
amparado de forma eficiente por Tertuliano em sua Apologia ldquoos homens se tornam natildeo
nascem cristatildeosrdquo197
Deste modo notamos que a leitura histoacuterica praticamente natildeo abre concessotildees agrave
conversatildeo ao cristianismo na eacutepoca de Justino constituiacutea uma verdadeira transformaccedilatildeo na vida
do convertido implicando em uma real mudanccedila de vida ou seja de haacutebitos que
necessariamente provocava uma ldquoruptura com a cidade e isolava o cristatildeo de seu meio e de sua
famiacutelia se ela permanecesse pagatilderdquo198 Baseados em afirmaccedilotildees como esta eacute que delinearemos
um horizonte que possa definir de forma consideraacutevel a realidade do que seria estar vivendo a
Verdade para Justino mediante uma contraposiccedilatildeo de haacutebitos detectada por meio dessa
transformaccedilatildeo
Diante de tal teor surgem interrogaccedilotildees que nos trazem demandas pontuais
principalmente de caraacuteter especulativo orientadas a responder questotildees que despertam o
imaginaacuterio de nosso contexto atual Por estarem devidamente inseridas no cenaacuterio histoacuterico da
I Apologia estes assuntos caracterizam-se por suas pendecircncias mesmo que uma determinaccedilatildeo
em comum saliente todos os espaccedilos em branco tendo esta demarcaccedilatildeo em si um caraacuteter de
195 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997
196 JUSTINO I Apologia LXV 1
197 TERTULIANO Apologia XVIII 4
198 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 187
51
diferenciaccedilatildeo que evoca uma clara distinccedilatildeo de estados Desta forma seguem alguns modelos
nos quais visamos indagar esta distinccedilatildeo que detectamos em Justino como definia-se um cristatildeo
em meados do Seacuteculo II Quais pessoas natildeo pertenciam a este grupo religioso e quais eram as
limitaccedilotildees que as impediam de tal prerrogativa Que nova praacutetica de feacute eacute esta que descarta as
antigas tradiccedilotildees religiosas De qual maneira isso se tornou um criteacuterio a ponto de estabelecer
diferenciaccedilotildees a niacutevel existencial
21 CRISTIANISMO A NOVA IDENTIDADE
Este espaccedilo tende a abertura de um caminho ao qual entendemos ser fundamental para
o desenvolvimento desta pesquisa isso devido agrave necessidade de apontarmos bases soacutelidas na
construccedilatildeo de nosso conceito mater Desta maneira iniciamos este capiacutetulo essencial em nossa
estruturaccedilatildeo utilizando-nos de uma afirmaccedilatildeo desenvolvida junto agrave pesquisa de Santos e
Gonccedilalves a qual soma valiosamente a nossa tese por contemplar a seguinte definiccedilatildeo ldquoAo
analisarmos a I Apologia podemos verificar que ele pretende revelar quem satildeo os cristatildeos Isto
parece fazer bastante sentido Ao buscar defender o cristianismo parece natural desenvolver um
texto que visa mostrar a identidade do grupordquo199
O cristianismo como religiatildeo vem a se desenvolver (universalmente) a partir de uma
comunidade autoacutectone de seu ldquofundadorrdquo emergindo atraveacutes de um pequeno grupo de
seguidores (Atos dos Apoacutestolos capiacutetulo 2) altamente condicionados agrave sua cultura e tradiccedilatildeo
religiosa200 poreacutem passados aproximadamente 110 anos o movimento cristatildeo chega ateacute os
dias de Justino com uma proporccedilatildeo numeacuterica muito significativa para um periacuteodo de tempo natildeo
tatildeo extenso201 Nesse processo estruturante tambeacutem de modo irrefragaacutevel202 houve um
desenvolvimento de um novo processo conceitual de um novo status de conhecimento ndash ou se
poderia chamar de um autoconhecimento ndash da proacutepria identidade (natildeo eacutetnica) cristatilde Processo
ao qual os chamados seguidores de Cristo apresentavam preceitos de paridade em uma espeacutecie
de similaridade existencial fato que leva o historiador Santos ao afirmar que ldquoa concepccedilatildeo de
meros disciacutepulos passou posteriormente a adquirir a ideia de povordquo203 Santos na verdade
199 SANTOS GONCcedilALVES A Aplicaccedilatildeo do ldquoContextualismo Linguiacutesticordquo e a busca da compreensatildeo da I
Apologia de Justino Maacutertir 2011 p 3
200 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004
201 SCOTT As Catacumbas de Roma 1996
202 KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983
203 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 135
52
reproduz simplesmente um pensamento jaacute consolidado no meio teoloacutegico Harnack no capiacutetulo
sete de sua obra A Missatildeo e Expansatildeo do Cristianismo nos Primeiros Trecircs Seacuteculos204 jaacute
solidifica tal ideia O teoacutelogo alematildeo caracteriza seu pensamento socioteoloacutegico da seguinte
forma
Convencido de que Jesus o mestre e o profeta era tambeacutem o Messias que voltaria em
breve para terminar o seu trabalho as pessoas passaram da consciecircncia de serem seus
disciacutepulos para o seu povo o povo de Deus ὑμεῖς γένος ἐκλεκτόν βασίλειον
ἱεράτευμα ἔθνος ἅγιον λαὸς εἰς περιποίησιν (1 Pe II 9 ldquoVoacutes sois uma raccedila escolhida
um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo para possessatildeordquo) e na medida em
que se sentiam um povo os cristatildeos sabiam que eles eram o verdadeiro Israel pessoas
que ao mesmo tempo representavam o novo e o velho205
Cabe-nos tambeacutem frisar neste aspecto levantado por Harnack que na questatildeo referente
agrave formaccedilatildeo de uma nova identidade social de caraacuteter religiosa este foi um fenocircmeno tanto
perceptiacutevel para eacutepoca de Justino como tambeacutem o ainda eacute em alguns segmentos humanos na
contemporaneidade Esta accedilatildeo associativa organizou-se (e ainda se organiza) de forma
majoritariamente comunitaacuteria a partir de experiecircncias pessoais de seus participantes sendo isto
ocasionado quase que na totalidade dos casos por meio do fenocircmeno conversiacutevel ocorrido no
acircmbito individual Este processo normalmente excludente e sectaacuterio de um determinado extrato
social ndash absolutamente imperativo no periacuteodo histoacuterico analisado poreacutem na atualidade natildeo
mais apresentando necessariamente uma ambiguidade ao estado de crenccedila anterior do
confessando (agente humano) ndash acaba por ser adesivo a outro o que ocasionava o
comprometimento com uma nova forma de comunhatildeo a qual amparada em novas certezas
rechaccedilava com ousadia as referecircncias da antiga crenccedila Em relaccedilatildeo ao cristianismo esse
fenocircmeno foi mais saliente entre as comunidades gentiacutelicas que abandonaram o paganismo206
Mencionamos ainda a definiccedilatildeo de Mol utilizada por Kee por entendermos que ele consegue
esclarecer de maneira objetiva aquilo que nos interessa expressar neste item sendo uma
consequecircncia natural do processo de conversatildeo ao cristianismo em meados de Seacuteculo II Mol
204 No original The Mission and Expansion of Christianity in the First Three Centuries
205 HARNACK The Mission and Expansion of Christianity in the First Three Centuries 2005 p 152 No original
Convinced that Jesus the teacher and the prophet was also the Messiah who was to return ere long to finish off
his work people passed from the consciousness of being his disciples into that of being his people the people of
God ὑμεῖς γένος ἐκλεκτόν βασίλειον ἱεράτευμα ἔθνος ἅγιον λαὸς εἰς περιποίησιν (1 Pet ii 9 ldquoYe are a chosen
race a royal priesthood a holy nation a people for possessionrdquo) and in so far as they felt themselves to be a
people Christians knew they were the true Israel at once the new people and the old
206 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004
53
escreve que o primeiro estaacutegio de um novo convertido neste periacuteodo se caracterizava por aquilo
que ele define como um ldquodistanciamento de anteriores padrotildees de identidaderdquo207
Deste modo seguindo a proposta acima encontramos algumas afirmaccedilotildees que nos
parecem descrever com exatidatildeo a tese (por hipoacutetese cristatilde) que definia a sociedade de entatildeo
como que constituiacuteda por um suposto terceiro grupo de pessoas (holisticamente falando) Aleacutem
dos denominados gentios e judeus (no relato biacuteblico) haveria tambeacutem os cristatildeos Cabe-nos
ressaltar que esse indicador quantitativo variou dentro da construccedilatildeo desta proposiccedilatildeo
indicativa das supostas variaccedilotildees de ldquoraccedilasrdquo pois jaacute nos escritos dos Pais Apologistas esse
nuacutemero chegou a ser descrito em mais de trecircs segmentos (caldeus egiacutepcios gregos judeus e
cristatildeos)208 Assunto que voltaremos a tratar com mais exatidatildeo a seguir Vale-nos tambeacutem citar
que o conceito de estraneidade abordado especialmente em anaacutelises eclesioloacutegicas e
missioloacutegicas do meio Patriacutestico209 diferencia-se em alguns aspectos de nosso assunto
diferenciaccedilatildeo que natildeo seraacute abordada por entendermos que foge de nossa temaacutetica atual
Iniciamos nossa argumentaccedilatildeo apontando que este conceito identitaacuterio de caraacuteter
etnograacutefico jaacute se apresenta com clareza no relato da Escritura Sagrada Vemos o apoacutestolo Paulo
fazendo distinccedilatildeo similar quando opta por desenvolver uma anaacutelise contrastante do cenaacuterio
humano (eacutetnico religioso etc) de seu tempo apresentando-nos uma leitura com trecircs diferentes
grupos humanos ldquoNatildeo vos torneis causa de tropeccedilo nem para judeus nem para gentios nem
tampouco para a igreja de Deusrdquo (1 Coriacutentios 1032) Neste ponto posiccedilotildees exegeacuteticas variadas
podem corroborar para a compreensatildeo e tambeacutem assimilaccedilatildeo da passagem citada referente ao
suposto conceito de iacutendole eacutetnica apontado210 mas o proacuteprio cenaacuterio nos aponta determinados
viacutenculos que nos conduzem a ideia de que ser cristatildeo no suposto periacuteodo oferecia aos fieacuteis a
opiniatildeo de pertencer a um povo diferente211
Neste conjunto eacute necessaacuterio citar o Apologista Aristides que de maneira
inquestionaacutevel se apresenta no cenaacuterio cristatildeo como aquele que daraacute um salto intelectual na
direccedilatildeo do desenvolvimento daquilo que poderiacuteamos definir como a primeira concepccedilatildeo de um
ethnos propriamente cristatildeo212 Aristides ldquofiloacutesofo de Atenas e um dos primeiros defensores do
207 MOL Identity and the Sacred 1977 p 52-53 apud KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica
1983 p 65-66 grifo nosso
208 Ver ARISTIDES Apologia II XIV e XV
209 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
210 METZ In A Primeira Epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006
211 GONZAacuteLEZ 1995
212 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997
54
cristianismordquo213 permitiraacute a transmissatildeo conceitual deste tema apontado nos escritos paulinos
aproximadamente oitenta anos depois de Paulo escrever aos cristatildeos de Corinto Em sua obra
Apologia Aristides concentra esforccedilos em uma elaboraccedilatildeo pragmaacutetica que visa uma
apresentaccedilatildeo de diferentes aspectos teoloacutegicos e morais todos provenientes de haacutebitos e
costumes de outros padrotildees religiosos de entre as etniaspovosnaccedilotildees de sua eacutepoca
Neste exerciacutecio Aristides ldquodescreve os cristatildeos como um povo ou naccedilatildeordquo214 que iraacute
progressivamente e cada vez mais contrastar seus conhecimentos e seu comportamento com os
outros povos com que convivia a saber os babilocircnios os gregos os egiacutepcios e os judeus
Possivelmente Aristides desejava ldquoexprimir a autocompreensatildeo cristatilderdquo215 de seus dias no
entanto provavelmente tambeacutem expressava um conceito jaacute bem estruturado em seu meio
religioso utilizando-se de um escrito apologeacutetico muito diretivo desenvolvido em ldquoforma de
uma etnografia comparativardquo216 Importante eacute o fato de que um entendimento novo de forma
absolutamente objetiva retratava a nova maneira de viver e esta maneira era aplicada
adjetivamente como cristatilde
Este fenocircmeno ocorria devido a este novo conceito ter se estruturado sobre ldquouma
organizaccedilatildeo humana cada vez mais precisa e soacutelida uma sociedade cujos alicerces satildeo
inteiramente novos e um tipo de homem diferente de todos aqueles que o mundo conhecerardquo217
Desta forma acabou por se gerar um entendimento novo sobre uma nova realidade histoacuterica
diferente de todas as demais jaacute existentes algo que na compreensatildeo de seus participantes soacute
poderia ser condicionado por um novo organismo ou seja uma nova ldquoraccedilardquopovonaccedilatildeo
Contudo este fato pode ser tambeacutem comprovado atraveacutes de outros seguimentos uma vez que
os proacuteprios natildeo-cristatildeos parecem fomentar esta ideia de separaccedilatildeo eacutetnica Isso pode ser visto
com realce atraveacutes do relato de outra figura Patriacutestica de destaque o qual torna-se o personagem
central de nosso exame a partir deste ponto
A partir do Seacuteculo II haveraacute inuacutemeras contribuiccedilotildees para a histoacuteria da teologia Em
primeiro lugar na figura de Tertuliano por ser considerado o ldquofundador da tradiccedilatildeo teoloacutegica
ocidentalrdquo218 Entretanto referente ao tema em destaque Tertuliano em sua obra Agraves Naccedilotildees (Ad
nationes) ndash tambeacutem traduzida por Aos Pagatildeos ndash apresenta no capiacutetulo VIII do I livro uma
213 PIERINI A Idade Antiga Curso de histoacuteria da igreja ndash I 1998 p 73
214 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997 p 16
215 PIERINI A Idade Antiga Curso de histoacuteria da igreja ndash I 1998 p 73
216 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997 p 17
217 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 240
218 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 42
55
relevante informaccedilatildeo a respeito de nosso assunto pois atraveacutes de uma genuiacutena accedilatildeo apologeacutetica
passa a informar algo que estava sendo apregoado sobre os cristatildeos Ele menciona que alguns
ldquoCertamente dizem que somos a terceira raccedila dos homensrdquo219 Jaacute de iniacutecio torna-se simples
devido ao desenvolvimento do texto conceituar a definiccedilatildeo (ldquoterceira raccedilardquo) citada por
Tertuliano pois de maneira peculiar sua ironia consegue descrever com exatidatildeo sua intenccedilatildeo
e o que ele escreve a seguir acaba por orientar seu entendimento e interesse argumentativo Ele
diz ldquoDe que maneira Uma raccedila com cara de cachorro Ou uma que possui apenas um enorme
peacute Ou algum Antiacutepoda subterracircneordquo220
Obviamente Tertuliano natildeo tinha em mente elaborar uma refutaccedilatildeo que viesse a
discutir questotildees bioloacutegicas ou antropoloacutegicas referentes agraves pessoas que estavam sendo
atingidas por essa pecha de ordem etnorracial Seu estilo quase sarcaacutestico demonstra que na
verdade sua indignaccedilatildeo frente agraves agressotildees lanccediladas aos irmatildeos da feacute que eram protagonizadas
pelas perseguiccedilotildees oferecidas pelos descrentes e das quais ele era uma literal testemunha o
compeliam a reagir em sua defesa ldquoTenham cautela no entanto pois aqueles a quem vocecircs
chamam de terceira raccedila devem obter o primeiro lugar uma vez que natildeo haacute certamente naccedilatildeo
que natildeo seja cristatilderdquo221
Tertuliano ainda em sua fase Apologista222 procura nos apresentar uma descriccedilatildeo
pejorativa (ldquoterceira raccedilardquo) dos pagatildeos como absolutamente preconceituosa e totalmente
intolerante pois esta visa tatildeo somente implementar ldquoacusaccedilotildees contra os cristatildeosrdquo223 buscando
unicamente denigrir sua religiatildeo natildeo possuindo nenhuma ligaccedilatildeo especiacutefica com as relaccedilotildees
eacutetnicas eou nacionais destas pessoas Sobre este prisma o proacuteprio Tertuliano afirma ldquoMas eacute
no sentido de religiatildeo e natildeo de naccedilatildeo que somos tidos como a terceira raccedila Pela ordem os
romanos os judeus e por uacuteltimo os cristatildeosrdquo224 No decorrer do texto225 fica-nos ainda mais
evidente que esta tentativa de uma diferenciaccedilatildeo humana natildeo corresponde a dados bioloacutegicos e
antropoloacutegicos pois visa promover unicamente uma desqualificaccedilatildeo da crenccedila do grupo ao qual
ataca (cristatildeos) independentemente de suas origens eacutetnicas
219 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 1 grifo nosso
220 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 1
221 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 9
222 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
223 LEAL In Tertuliano Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1577
224 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 1 grifo nosso
225 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 9-11
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Deste modo assimilando os variados dados relacionados nesta construccedilatildeo
fenomenoloacutegica vemos que independentemente do meio (eclesiaacutestico ou secular) e da
temporalidade (periacuteodo biacuteblico ou patriacutestico) o sentido uniforme do conceito de ser cristatildeo
estava incondicionalmente ldquovinculado a um grupo com relaccedilotildees sociais distintas dos
demaisrdquo226 Aqui a reflexatildeo de Santos nos auxilia de forma significativa especialmente visando
o desenvolvimento restante deste capiacutetulo
Relaccedilotildees sociais estas que privilegiam os aspectos espirituais e morais Neste sentido
os cristatildeos podem ser entendidos como um povo particular com uma promessa
profeacutetica especificamente direcionada a eles Povo este que como vimos
anteriormente possui seu conjunto de crenccedilas um estilo de vida proacuteprio seus
siacutembolos sua interpretaccedilatildeo de mundo Tudo isto se traduz pela expressatildeo ldquonova vida
e os nossos ensinamentosrdquo utilizada por Justino (JUSTINO I Apologia III 3)227
Ao finalizarmos este item salientamos nossa intenccedilatildeo na proposta de agregar a esta
pesquisa a ideia de que para o cristianismo inicial como tambeacutem para seu meio social ndash onde
Justino necessariamente se enquadra ndash havia um conceito de identidade definido do que era ser
cristatildeo Cabe-nos agora complementaacute-lo Para isto propomos uma descriccedilatildeo de seu perfil
oposto ateacute mesmo antagocircnico para o periacuteodo ou seja descrevendo aquilo (ou aqueles) que na
visatildeo dos cristatildeos natildeo eram cristatildeos
22 O MUNDO NAtildeO-CRISTAtildeO
Em nossa proposta de pesquisa se faz indispensaacutevel conhecermos a visatildeo do meio
cristatildeo (eclesioloacutegica) a respeito daqueles que eram ao seu entendimento ndash pelo menos de
maneira preliminar ndash antagocircnicos agrave sua realidade existencial Obviamente este trabalho busca
ancorar-se ao pensamento de seu autor central Assim sendo Justino passa a nos ceder as bases
desse processo de incompatibilidade de grupos228 onde podemos sem exageros a partir de
Justino arquitetar um cenaacuterio que nos mostra eficientemente que este conceito evidenciado no
Apologista eacute oriundo da mensagem Apostoacutelica (Paulo) e Patriacutestica (Aristides) anteriores a ele
as quais parecem terem sido bem recebidas e definidas quanto a essa importante questatildeo
226 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 143
227 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 144
grifo nosso
228 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997
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etnograacutefica Percebemos isso com certa clareza quando ele diz que ldquoDeve-se saber que o
restante de todas as raccedilas humanas satildeo chamadas de naccedilotildees pelo Espiacuterito profeacutetico a casta dos
judeus e samaritanos poreacutem chama-se Israel e Casa de Jacoacuterdquo229
Nesta introduccedilatildeo ainda nos eacute possiacutevel descrever um conceito metafiacutesico a partir do
entendimento de Justino que era um filoacutesofo Utilizando-nos da objetivaccedilatildeo da identidade
(ethnos) cristatilde um modelo passa a se estabelecer nesta descriccedilatildeo e este modelo eacute que ldquotorna
uma entidade reconheciacutevelrdquo230 Assim este estado que passa a ser evidentemente concreto e
que estaacute constituiacutedo em uma forma de identificaccedilatildeo passa tambeacutem a possuir o seu oposto
definindo-se por meio de diversos exames tendo a partir disso haacute possibilidade de ser aceito
ou rejeitado por aquilo que lhe eacute diferente
Prosseguindo no desenvolvimento de nosso raciociacutenio comeccedilaremos a descrever
sinteticamente o ponto central a ser analisado nesta pesquisa Entendemos que a reflexatildeo que
recebemos a partir da oacutetica de Justino poder ser definida por meio de sua compreensatildeo do que
eacute a Verdade revelada para a humanidade Deste modo inicialmente nos cabe salientar que o
periacuteodo de tempo logo apoacutes o advento do cristianismo e sua consolidaccedilatildeo (informal para a
eacutepoca) como uma religiatildeo estabelecida em meio ao Impeacuterio Romano trouxe algumas
evidecircncias que caracterizavam e apontavam para a identificaccedilatildeo daqueles que eram seguidores
deste credo e ipso facto passava a distingui-los quase que de forma automaacutetica dos demais
seguidores de outras praacuteticas religiosas tais como o judaiacutesmo e os cultos politeiacutestas os quais
tambeacutem podem ser definidos no cenaacuterio imperial como ldquocultos estataisrdquo231 eou religiatildeo dos
povos gentios
Ainda neste espaccedilo nos eacute necessaacuterio salientar que a atribuiccedilatildeo religiosa como ponto
primaz na questatildeo orientativa dos que natildeo confessavam a feacute cristatilde eacute importante ou ateacute mesmo
necessaacuteria porque no referido periacuteodo natildeo se concebia a ideia de que as massas humanas ndash em
qualquer lugar independentemente de sua etnia ou nacionalidade ndash natildeo aderissem a uma forma
de crenccedila232 O pensamento de Santos qualifica esta ideia de contraste entre crenccedilas
Os cristatildeos precisavam ser diferentes dos judeus e dos demais povos para construiacuterem
uma identidade proacutepria ainda que algo dos dois fizesse parte de sua identidade E
mesmo esse algo teria uma leitura particular dentro do cristianismo Os siacutembolos
229 JUSTINO I Apologia LIII 4
230 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014 p 110
231 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 51
232 KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983
58
ainda que preservados natildeo teriam exatamente os mesmos significados Justino por
vezes ao apontar aquilo que os cristatildeos eram utiliza a comparaccedilatildeo Tal comparaccedilatildeo eacute
feita com base natildeo soacute naquilo que eacute semelhante nos grupos que ele considera natildeo-
cristatildeos mas principalmente nas suas diferenccedilas o que nos revela que no outro haacute
tanto pontos congruentes quanto incongruentes233
Desta forma a partir deste ponto falaremos a respeito dos dois respectivos grupos
humanos (em sentido eacutetnico e nacional) nos quais se estabeleciam a distinccedilatildeo e a divisatildeo
proposta por Justino em sua construccedilatildeo teoloacutegica
221 Os Judeus
Passando objetivamente a leitura da obra de Justino (I Apologia) constatamos com
razoaacutevel clareza a importacircncia dada pelo autor aquilo que corresponde diretamente ao povo
judeu este aspecto acaba por se tornar importantiacutessimo na elaboraccedilatildeo de nosso conceito pois
traz equiliacutebrio agrave orientaccedilatildeo que Justino propotildeem desenvolver como contrastante ao seu estado
de feacute e crenccedila Para Justino o povo eleito por Deus para receber as promessas diretrizes e
preceitos da Primeira Alianccedila acabou por se tornar uma espeacutecie de agente condutor e ateacute
mesmo catalisador de uma forma funcional do cumprimento das profecias descritas como
messiacircnicas234 Justino ao mencionar o Profeta Isaiacuteas e o Livro dos Salmos235 apresenta-nos esta
indicaccedilatildeo dizendo
Quando o Espiacuterito profeacutetico fala na pessoa de Cristo ele se expressa assim ldquoEu
estendi as minhas matildeos a um povo que natildeo crecirc e contradiz aos que andam por um
caminho que natildeo eacute bomrdquo E novamente ldquoEntreguei minhas costas aos accediloites e
minhas faces agraves bofetadas e natildeo afastei o meu rosto da vergonha das cuspidas E o
Senhor se tornou o meu auxiacutelio por isso eu natildeo fui confundido mas transformei o
meu rosto em rocha dura e soube que natildeo seria confundido pois estaacute perto aquele
que me justificardquo E o mesmo quando diz ldquoEles lanccedilaram sorte sobre as minhas
roupas e transpassaram as minhas matildeos e os meus peacutes mas eu adormeci e me
entreguei ao sono e ressuscitei porque o Senhor me protegeurdquo E outra vez quando
diz ldquoCochichavam com os seus laacutebios e balanccedilaram a cabeccedila dizendo Salve-se a si
mesmo Podeis comprovar que tudo isso cumpriu-se atraveacutes dos judeus em Cristordquo236
233 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 144
234 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
235 Acredita-se que os textos biacuteblicos usados por Justino segundo a versatildeo da Biacuteblia Grega (Septuaginta) satildeo Is
652 Is 506-8 Sl 2119 Sl 36 Sl 218-9 Ver FRANGIOTTI In Introduccedilatildeo I Apologia 1995 p 27
236 JUSTINO I Apologia XXXVIII 1-7
59
Nesta passagem da I Apologia onde jaacute nos deparamos com o exegeta Justino237 fica-
nos claro que na opiniatildeo deste os reconhecidos como natildeo-cristatildeos ndash particularmente tratando-
se do povo judeu e de sua religiatildeo ndash natildeo compreenderam o tempo de sua visitaccedilatildeo menos ainda
foram capazes de interpretar com eficiecircncia tudo aquilo que as profecias anunciavam a respeito
de seu Messias Esse processo ganha ainda mais ecircnfase quando o teor aplicado por Justino passa
a ser mediado atraveacutes do contexto entre os capiacutetulos XXXVI a XXXVIII onde o relato parece
sugerir um compecircndio baacutesico com ldquoregras de interpretaccedilatildeordquo238 do Apologista sobre as profecias
messiacircnicas Neste cenaacuterio eacute possiacutevel penetrar mais profundamente na realidade sugerida por
Justino os judeus natildeo obstante sua falta de discernimento tornaram-se por seu endurecimento
os proacuteprios algozes Daquele que veio libertaacute-los
Torna-se necessaacuterio dizer que a exegese aplicada por Justino natildeo se faz sem equiacutevocos
Alguns erros satildeo ateacute mesmo inocentes quando analisados agrave luz de elementos da ciecircncia biacuteblica
atual239 como por exemplo quando cita o texto do Salmo 2119 (segundo a Septuaginta) o
qual eacute amplamente interpretado pelos Evangelhos240 como uma accedilatildeo dos soldados romanos
junto ao relato da crucifixatildeo de Cristo e natildeo como um ato diretamente empregado pelo povo
judeu Entretanto Justino entende que os judeus natildeo apenas assumiram agrave culpa desse ato por
meio de seu embrutecimento mas principalmente por seu endurecimento o qual foi causado
originalmente por sua incredulidade (natildeo-assimilaccedilatildeo) para com a pessoa de Jesus Cristo na
opiniatildeo de Justino241 Deste modo parece natildeo permanecer nenhum constrangimento por parte
do Apologista em apontar aos judeus natildeo como meros colaboradores mas sim como os
grandes culpados pela morte de Cristo
Na verdade Davi rei e profeta que disse isso natildeo sofreu nada disso mas Jesus Cristo
estendeu as suas matildeos quando foi crucificado pelos judeus que o contradiziam e
falavam que ele natildeo era o Messias Com efeito como disse o profeta levaram-no
arrastando e fazendo-o sentar-se numa cadeira de juiz disseram-lhe ldquojulga-nosrdquo242
237 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948
238 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 26
239 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
240 Ver Mateus 2633-38 Marcos 1522-24 Lucas 2333-34 Joatildeo 1923-24
241 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
242 JUSTINO I Apologia XXXV 6
60
Mesmo jaacute tendo sido identificado por noacutes de forma preacutevia cabe-nos ainda citar de
maneira mais precisa as pertinentes consideraccedilotildees que Justino faz referente ao natildeo
reconhecimento da pessoa de Jesus Cristo como o Messias prometido ao povonaccedilatildeo de Israel
por parte dos judeus O Apologista escreve ldquoNatildeo entendendo isso os judeus que satildeo aqueles
que possuem os Livros dos profetas natildeo soacute natildeo reconheceram a Cristo jaacute vindo mas tambeacutem
odeiam a noacutes que dizemos que ele de fato veio e mostramos que como fora profetizado foi
por eles crucificadordquo243
Aleacutem dessa notificaccedilatildeo exortativa referente aquilo que poderiacuteamos definir como uma
leitura do cenaacuterio sociorreligioso judaico (que no presente momento e tambeacutem anteriormente a
ele interagiu conflituosamente com os cristatildeos) devemos tambeacutem reconhecer outro aspecto que
este ambiente social nos aponta por meio da ldquoobservaccedilatildeo de Justino segundo a qual Bar
Kochba244 ameaccedilou judeus messiacircnicos com pesados castigos caso natildeo negassem que Jesus eacute
o Cristordquo245 estabelecendo deste modo haacute opiniatildeo de que os cristatildeos realmente eram um povo
que sofria historicamente ldquohostilidade dos judeusrdquo246 principalmente porque os cristatildeos deram
o devido valor agrave revelaccedilatildeo de Deus247
Por uacuteltimo neste cenaacuterio de nossa anaacutelise concentrada na opiniatildeo de Justino frente ao
status sociorreligioso judaico devemos ainda olhar com bastante atenccedilatildeo para uma passagem
da Escritura Sagrada relacionada a Primeira Alianccedila que nos eacute apresentada enfaticamente por
Justino em sua obra apologeacutetica O texto do capiacutetulo 65 verso 2 do Livro do profeta Isaiacuteas eacute
citado por trecircs vezes na I Apologia248 caracterizando mediante este fato repetitivo uma
significativa elucubraccedilatildeo por parte de Justino a esta porccedilatildeo da Escritura Nosso autor se
distingui ao comentar o Texto Sagrado dizendo ldquoQuando o Espiacuterito profeacutetico fala na pessoa de
Cristo ele se expressa assim lsquoEu estendi as minhas matildeos a um povo que natildeo crecirc e contradiz
aos que andam por um caminho que natildeo eacute bomrsquordquo249
Partamos de um ponto conceitual Na esfera racional de Justino o caso das ldquomatildeos
estarem estendidas a um povo increacutedulo e contestadorrdquo era um fato indubitaacutevel apresentado
atraveacutes de um ar enfaacutetico que apontava agrave suposta culpa que os judeus teriam na rejeiccedilatildeo do
243 JUSTINO I Apologia XXXVI 3
244 JUSTINO I Apologia XXXI 6
245 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004 p 266
246 MONDONI Histoacuteria da Igreja na Antiguidade 2001 p 32
247 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
248 JUSTINO I Apologia XXXV 3 XXXVIII 1 XVIX 3
249 JUSTINO I Apologia XXXVIII 1
61
verdadeiro Ungido de Deus solidificando deste modo de maneira inevitaacutevel sua compreensatildeo
de que os judeus ao natildeo reconhecerem o Messias ldquoperderam o direito hereditaacuterio a promessa
que passou para os cristatildeosrdquo250 Este conceito251 acaba por ficar ainda mais saliente em sua
obra Diaacutelogo com Trifatildeo252 detalhe que natildeo apontaremos aqui devido a nossa opccedilatildeo de
delimitaccedilatildeo textual
Por fim necessitamos condicionar nossa pesquisa a um resultado Entatildeo ratificamos
que em nosso entendimento fica claro que na transmissatildeo da ideia de Justino os judeus foram
rejeitados como naccedilatildeopovoldquoraccedilardquo por sua incredulidade mesmo que estes tenham sido
anteriormente escolhidos como os herdeiros das promessas de Deus De fato Justino afirma
ldquoEntatildeo eles se arrependeratildeo quando de nada mais lhes valeraacuterdquo253 Logo para Justino os judeus
natildeo eram mais a ldquoraccedilardquo eleita porque natildeo eram cristatildeos
Passamos agora ao outro grupo compreendido como natildeo-cristatildeo pelo conceito
etnograacutefico dos seguidores do cristianismo na eacutepoca de Justino os Gentios
222 Os Gentios
De imediato devemos propor um referencial orientativo visando essa construccedilatildeo e
uma afirmaccedilatildeo parece definir de maneira satisfatoacuteria esta questatildeo Igualmente agrave anaacutelise anterior
(para com os judeus) partimos de referenciais de caraacuteter sociorreligioso baseados em nosso
autor central poreacutem com a diferenciaccedilatildeo de que agora falamos de um campo muito mais
abrangente a ser examinado pois os ldquogentiosrdquo254 (segundo o Apoacutestolo Paulo) ldquoos caldeus os
gregos e os egiacutepciosrdquo255 (segundo Aristides) e ldquoos romanosrdquo256 (segundo Tertuliano) formam
esse novo e amplo grupo que tambeacutem se caracteriza religiosamente em contraste tanto com
cristatildeos quanto com os judeus que haviam rejeitado o seu Messias
Todo esse enorme contingente religioso se distinguia por sua diversidade Nesta
multiplicidade surgia uma variedade imensa de divindades uma para cada gosto eou prazer
250 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 76
251 Segundo Insuelas as duas primeiras Apologias satildeo escritas ldquocontrardquo os pagatildeos jaacute o Diaacutelogo com Trifatildeo eacute
escrito ldquocontrardquo os judeus Neles Justino pretende provar que Jesus Cristo eacute o Messias e que a sua religiatildeo eacute a
verdadeira Ver INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 54
252 Ver JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo CVIII 1-3
253 JUSTINO I Apologia LII 9
254 Ver 1 Coriacutentios 1032
255 ARISTIDES Apologia II XIV e XV
256 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 1
62
com as quais estes devotos procuravam cobrir suas necessidades e as exigecircncias de culto em
seus dias257 Esta praacutetica reconhecida como politeiacutesmo envolve a coletividade humana desde
seus primoacuterdios258 No entanto para Justino quem seriam as pessoas que adoravam essa
imensidatildeo de outros deuses
Inicialmente afirmamos que os participantesocupantes desse distinto grupo
indiscutivelmente se diferenciavam dos judeus natildeo apenas por sua religiatildeo mas tambeacutem por
questotildees que podem (e devem) ser descritas como eacutetnicas No caso anterior o judaiacutesmo (ou
podemos chamar de religiatildeo judaica) natildeo se desvinculava (nem atualmente se desvincula) da
etnia de origem semita (judeus) que ocupava massivamente a regiatildeo do moderno estado de
Israel Ateacute os dias de hoje os judeus ndash tambeacutem chamados de ldquoisraelitasrdquo (genericamente) ndash satildeo
definidos regularmente como ldquofieacuteisrdquo da religiatildeo judaica259 Em nosso caso de destaque os
agentes religiosos que formavam as fileiras das religiotildees politeiacutestas eram seres humanos
oriundos das mais variadas sociedades da eacutepoca de diversas culturas mas que assumiam o
chamado culto de origem mitoloacutegica difundido amplamente na cultura de origem greco-
romana260 na qual Justino tambeacutem havia vivido e sido criado261 e que havia se tornado em um
elemento poliacutetico que ldquoos romanos chamavam de pax deorumrdquo262
Estes adoradores de outros e variados deuses usualmente possuem outra designaccedilatildeo
tanto para Justino quanto no relato biacuteblico satildeo os gentios ndash termo geneacuterico que adotaremos a
partir de agora neste item para a identificaccedilatildeo desse grupo devido a sua abrangecircncia e
complexidade A pesquisa de Santos nos auxilia consideravelmente nesta definiccedilatildeo
O termo utilizado na Biacuteblia hebraica para gentio eacute gocircy (גוי) e tanto no texto grego do
Antigo Testamento (Septuaginta) quanto no Novo Testamento temos os termos
ethnos (εθνος) ou hellen (ελλην) Satildeo geralmente traduzidos como naccedilatildeo raccedila
gentes gentios Se estiver no singular podem se referir aos judeus (HARRIS 1998 p
251-252 DOUGLAS 1995 p 662 VINE 2002 p 673) De forma geral quando no
plural eles se referem aos outros povos que natildeo os judeus e no caso mais
especificamente cristatildeo denotam natildeo soacute os natildeo-judeus mas podem se referir agravequeles
gentios que se converteram ao cristianismo ldquoOs quais pela minha vida expuseram as
257 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010
258 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
259 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014
260 SCOTT As Catacumbas de Roma 1996
261 PIERINI A Idade Antiga Curso de histoacuteria da igreja ndash I 1998
262 CORNELL MATTHEWS A Civilizaccedilatildeo Romana 2008 p 94
63
suas cabeccedilas o que natildeo soacute eu lhes agradeccedilo mas tambeacutem todas as igrejas dos gentiosrdquo
(Romanos 164)263
Justino natildeo apenas se utiliza dessa terminologia com desenvoltura mas tambeacutem se
serve de outros termos que designam este grupo de existecircncia gentiacutelica Encontramos citaccedilotildees
como ldquogente de todas as naccedilotildeesrdquo264 ldquogente de todas as raccedilasrdquo265 ldquohomens das naccedilotildeesrdquo266 ou
ldquoos povos das naccedilotildeesrdquo267 Ao analisarmos o contexto textual destas citaccedilotildees de Justino fica
evidente que o Apologista ao descrever estes trechos estaacute incondicionalmente se referindo ao
cumprimento das promessas messiacircnicas aos gentios Desta forma acaba por caracterizar (os
gentios) como os natildeo-judeus que estavam sem Cristo mas que iriam recebecirc-lo pela
proclamaccedilatildeo da mensagem evangeacutelica Drobner sugere que possivelmente Justino acreditava
que uma vez que os democircnios foram silenciados pela proclamaccedilatildeo da Verdade por meio da
mensagem da cruz ldquoos homens agora em todo o mundo se tornariam tementes a Deusrdquo268
Encontramos na I Apologia uma tendecircncia ndash pelo menos de maneira impliacutecita ndash de
apontar em menor nuacutemero elementos negativos eou pejorativos dos gentios e de suas praacuteticas
religiosas politeiacutestas Isso obviamente se comparados com agravequeles apresentados
volumosamente como prejuiacutezos trazidos eou deixados pelos judeus naquilo que se tratava da
revelaccedilatildeo de Deus em Jesus Cristo Tratando-se especificamente dessa questatildeo sociorreligiosa
que envolvia a religiatildeo judaica cabe-nos ressaltar com veemecircncia que em nossas afirmaccedilotildees
natildeo se estaacute buscando implicar de nenhuma maneira ou forma a Justino uma postura
antissemita269 pois sua polecircmica com os judeus ldquonada tem a ver com antissemitismo porque
natildeo se trata da raccedila mas da feacuterdquo270 Deste modo orientando-nos atraveacutes de dados da anaacutelise
historiograacutefica acreditamos que este fenocircmeno se baseou na tentativa de indicar com clareza
atribuiccedilotildees da histoacuteria da revelaccedilatildeo no fato de se contextualizar o relato salviacutefico de Deus para
263 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 147
264 JUSTINO I Apologia XXXII 3
265 JUSTINO I Apologia XXXII 4
266 JUSTINO I Apologia XXXI 7
267 JUSTINO I Apologia XLIX 1
268 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 84
269 Antissemita (anmiddottismiddotsemiddotmimiddotta) anti- + semita Adjetivo de dois gecircneros e substantivo de dois gecircneros Significa
Que ou quem se opotildee aos semitas e particularmente aos judeus Ver Dicionaacuterio Priberam da Liacutengua Portuguesa
Disponiacutevel em lthttpsdicionariopriberamorgantissemitagt Acesso em 17 de jan de 2019
270 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 76
64
a humanidade pois o ldquoproacuteprio texto nos fornece um contexto Mas tambeacutem pelos enunciados
que evidenciam sua forccedila ilocucionaacuteriardquo271
Poreacutem entendemos ainda ser oportuno citar a Justino de forma direta mais uma vez
em nossa elaboraccedilatildeo sobre o conceito de definiccedilatildeo daqueles que natildeo satildeo cristatildeos para ele
Indiscutivelmente os gentios gozavam de uma pequena parcela de toleracircncia por parte de
Justino especialmente diante do testemunho das conversotildees ocorridas junto o mundo greco-
romano das quais ele mesmo era fruto Aleacutem disso em nossa construccedilatildeo conceitual outra vez
fica notoacuterio que nosso autor natildeo procura mascarar em nenhum momento sua dificuldade para
com a religiatildeo judaica272 O texto de Justino transparece isso com muita clareza
Ao contraacuterio (dos judeus) os gentios que nunca tinham ouvido falar dele ateacute que os
apoacutestolos tendo saiacutedo de Jerusaleacutem lhes contaram sua vida e lhes entregaram as
profecias cheios de alegria e de feacute renunciaram aos iacutedolos e se consagraram ao Deus
ingecircnito por meio de Cristo273
Contudo torna-se claro tambeacutem que na concepccedilatildeo de Justino o alcance dessa
conformidade do plano salviacutefico de Deus atraveacutes de Jesus Cristo para com os gentios seria
segundo o posicionamento de feacute desse grupo pois o teor e a objetividade para o
desenvolvimento da I Apologia provam o contraacuterio pois esta obra acabou sendo redigida
condicionalmente na tentativa de aplacar os acircnimos daqueles que perseguiam os cristatildeos de
forma injustificaacutevel sendo evidente no relato de ambas as Apologias de Justino que os
perseguidores eram majoritariamente formados de natildeo-cristatildeos de origem gentiacutelica Essa
evidecircncia conseguimos resgatar no proacuteprio relato do Apologista quando este comenta a
respeito da idolatria dos gentios enfatizando seu politeiacutesmo Nessa passagem sua penna eacute
categoacuterica e imperativa
E aquilo mesmo que voacutes praticais e honrais publicamente voacutes o atribuiacutes a noacutes como
se tiveacutessemos decaiacutedo e a luz divina natildeo nos assistisse Todavia como estamos livres
por natildeo praticar nada disso vossas caluacutenias natildeo nos causam nenhum dano ao
271 SANTOS amp GONCcedilALVES A Aplicaccedilatildeo do ldquoContextualismo Linguiacutesticordquo e a busca da compreensatildeo da I
Apologia de Justino Maacutertir 2011 p 3
272 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
273 JUSTINO I Apologia XLIX 5 grifo nosso
65
contraacuterio danificam aqueles que cometem essas torpezas e ainda levantam falso
testemunho contra noacutes274
Finalizamos assim este item que visou especificar aquilo que se encontra aplicado na
explanaccedilatildeo do Apologista sobre o natildeo ser um cristatildeo Buscamos nesta explanaccedilatildeo uma espeacutecie
de caraacuteter identificativo aleacutem de termos procurado sinalizar para o oposto de cada caso
examinado distinguindo deste modo os grupos religiosos analisados atraveacutes de criteacuterios que
os contrastavam entre si e para com o objeto principal (cristianismo) pois notificamos que para
Justino como tambeacutem para a Igreja em sua eacutepoca judeus e gentios natildeo eram homens de outra
espeacutecie (em sentido bioloacutegico) mas natildeo sendo cristatildeos pertenciam necessariamente a outro
mundo um mundo natildeo-cristatildeo
A seguir trataremos de assuntos mais pontuais os quais podemos denominar de
ldquofactiacuteveisrdquo segundo a leitura de Justino para com a realidade que o cercava Esse conjunto de
fatos era polemizado de maneira constante (por meio de uma tentativa aguda de se diferenciar
proposiccedilotildees) pois possuiacutea uma importacircncia fundamental na definiccedilatildeo exigida para se
estabelecer a oposiccedilatildeo dos ldquomundosrdquo que apontamos
23 PRAXIS FIDEI ADVERSUS INIQUITATEM
E para que se torne evidente para voacutes vamos apresentar-vos a prova de que aquilo
que dizemos por tecirc-lo aprendido de Cristo e dos profetas que os precederam eacute a uacutenica
verdade e a mais antiga do que todos os escritores que existiram Natildeo pedimos que se
aceite a nossa doutrina por coincidir com eles mas porque dizemos a verdade275
A partir deste item apresentamos uma anaacutelise de meios e de casos os quais
entendemos serem absolutamente necessaacuterios para uma resposta realmente qualificada visando
uma conclusatildeo satisfatoacuteria desta pesquisa Neste processo que inicialmente abarcou de maneira
histoacuterica a estruturaccedilatildeo e funcionalidade de um ambiente confessional acabou por se
caracterizar cada vez mais atraveacutes de um distinto cenaacuterio sociorreligioso em seu tempo Nessa
verificaccedilatildeo de costumes do comportamento humano na esfera religiosa percebemos com certa
facilidade o profundo impacto ndash especialmente no acircmbito da eacuteticamoral ndash que o cristianismo
proporcionou ao apresentar-se ldquocomo a revoluccedilatildeo mais radical que a humanidade jaacute tinha
274 JUSTINO I Apologia XXVII 5
275 JUSTINO I Apologia XXIII 1 grifo nosso
66
realizadordquo276 Desta forma organizamos uma detalhada abordagem dessa conjuntura de caraacuteter
social na esfera religiosa a qual vamos descrever a seguir procurando direcionar de maneira
objetiva nossos apontamentos para dentro da soluccedilatildeo de nosso problema jaacute anteriormente
especificado e deste modo comeccedilarmos a indicar uma resposta plausiacutevel para o conceito do
que seria a Verdade redigida e sustentada por Justino
Importante para nossa sequecircncia de trabalho eacute procurarmos estabilizar desde cedo a
compreensatildeo de que esta elaboraccedilatildeo de caraacuteter eacutetico-moral natildeo visa ser pormenorizada tatildeo
pouco exaustiva pois acreditamos que isto nem mesmo seria possiacutevel diante da abrangecircncia a
qual o termo Verdade poderia alcanccedilar em um exame epistemoloacutegico mais aprofundado
Particularmente tratando-se de nosso caso em especial um agravante ainda se coloca isso
devido nossa palavra-chave nem mesmo ser aplicada como um simples substantivo por parte
do autor pois recebe por parte de Justino uma abrangecircncia axiomaacutetica muito singular somente
compreendida em seu contexto mais amplo (realidade sociorreligiosa)
Entretanto partimos da necessidade de nos orientarmos por meio de definiccedilotildees
provenientes das afirmaccedilotildees do proacuteprio Justino Diante da realidade sociorreligiosa ndash tambeacutem
pode-se classificaacute-la como cultural dependendo dos criteacuterios propostos ndash que cercava e
envolvia o Apologista (no periacuteodo de redaccedilatildeo da I Apologia) estava necessariamente instituiacuteda
uma forma de cerceamento agraves suas convicccedilotildees religiosas Sem restriccedilotildees podemos nos utilizar
de uma espeacutecie de pleonasmo ao dizermos que Justino ndash ldquose justificardquo ndash constantemente por
meio de um paralelo dialeacutetico que de maneira exata acaba por condicionar-se como loacutegico
pois o Apologista busca apresentar uma ldquoperfeita lealdade dos seus processosrdquo277 racionais em
toda a sua narrativa As contribuiccedilotildees oriundas da predominante linha filosoacutefica a qual Justino
aderiu em sua jornada na busca pela Verdade manifestam-se de forma niacutetida em sua construccedilatildeo
apofacircntica Esse meacutetodo se clarifica na abordagem de Chauiacute
A dialeacutetica platocircnica eacute um procedimento intelectual e linguiacutestico que parte de alguma
coisa que deve ser separada ou dividida em dois ou duas partes contraacuterias ou opostas
de modo que se conheccedila sua contradiccedilatildeo e se possa determinar qual dos contraacuterios eacute
verdadeiro e qual eacute falso278
276 MONDONI Histoacuteria da Igreja na Antiguidade 2001 p 44
277 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 56
278 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995 p 181
67
Deste modo Justino explanou suas conclusotildees de maneira categoacuterica por meio da
aplicaccedilatildeo de um meacutetodo que visava eliminar contradiccedilotildees essenciais daquilo que estava sendo
examinado279 Aparentemente o Apologista acreditava que algo de caraacuteter indivisiacutevel no
sentido de ser inquestionaacutevel poderia ser alcanccedilado mediante suas confrontaccedilotildees mesmo que
Justino afirmasse ser imprescindiacutevel ter que haver feacute em Jesus Cristo para tais fins elemento
(feacute) que era reconhecidamente ausente em seus opositores algo que no final parece desiquilibrar
a loacutegica da teoria de Justino Neste espaccedilo ainda nos eacute necessaacuterio dizer que nosso autor se
baseava fortemente em indicaccedilotildees de cunho comparativo e histoacuterico (a niacutevel de suas convicccedilotildees
religiosas) para defender suas comparaccedilotildees280 Neste item jaacute detectamos fortemente o ser
ldquofiloacutesofordquo em Justino realidade que abordaremos mais detalhadamente no proacuteximo capiacutetulo
Essa base filosoacutefica que acabamos de citar iraacute orientar o ministeacuterio de Justino no
decorrer de sua construccedilatildeo teoloacutegica e quanto a essa filosofia devemos sem constrangimento
atrelaacute-la agravequilo que acabou por se tornar o estilo literaacuterio preponderante em seus trabalhos
Estes se caracterizaram pela presenccedila de um forte teor (dispositivo) apologeacutetico possibilitando-
nos a partir da anaacutelise historiograacutefica281 afirmar que uma vez que os filoacutesofos (do periacuteodo de
Justino) receberam a feacute em Cristo estes podem defender a Verdade pois passam a possuir a
ldquoconsciecircncia da razatildeo filosoacutefica que nela estaacute contidardquo282
Desta forma seguindo uma postura assumidamente analiacutetica Justino passa a arquitetar
seu plano argumentativo utilizando-se de uma clara confrontaccedilatildeo de fatos em vista de alcanccedilar
o resultado desejado Mesmo sem ser um empirista ndash sistema filosoacutefico totalmente distante
cronologicamente de Justino ndash eacute impossiacutevel natildeo se detectar um apego por parte do Apologista
para com um meacutetodo de exame que venha a conferir com afinco a experiecircncia do uso dos
sentidos humanos como o meio para agrave origem e geraccedilatildeo do conhecimento Com isso mais um
detalhe pertinente segundo a nossa compreensatildeo vem a surgir nesta anaacutelise pois conseguimos
detectar com certa facilidade que Justino vincula os fatos registrados de sua feacute na rotina humana
presente efetivamente em seu contexto o que vem a somar para a caracterizaccedilatildeo de uma postura
que na praacutetica eacute empirista283
279 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
280 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
281 Ver SIMONETTI In Apologeacutetica Literatura Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 185-186
282 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
283 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
68
231 Um Princiacutepio Teologal
Seguindo o que acabamos de apontar apresentaremos uma posiccedilatildeo de ordem factiacutevel
da parte de Justino passando a citar elementos que em nosso entendimento estabelecem as
provas desenvolvidas pelo Apologista em seu relato de defesa dos cristatildeos Retrataremos dois
contextos em que Justino apresenta sua iniciativa de modo contundente na busca de seus
objetivos O primeiro cenaacuterio se desenvolve apoacutes o autor terminar uma ilustre analogia entre
ldquodoutrinas estoicas e cristatildesrdquo284
A primeira prova eacute que quando dizemos tais coisas aos gregos somos os uacutenicos a
serem odiados pelo nome de Cristo e nos tiram a vida sem termos cometido crime
algum como se focircssemos pecadores E tendes alguns aqui e outros ali que cultuam
aacutervores rios ratos gatos crocodilos e uma multidatildeo de animais irracionais O
interessante eacute que nem todos cultuam os mesmos mas uns satildeo honrados num lugar
outros em outro de modo que todos satildeo iacutempios entre si por natildeo ter a mesma religiatildeo
Esta eacute a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo veneramos os mesmos deuses que
voacutes e natildeo oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo colocamos coroas nos
sepulcros nem celebramos sacrifiacutecios sobre eles No entanto sabeis perfeitamente
que os mesmos animais por alguns satildeo considerados deuses por outros feras e por
outras viacutetimas para sacrifiacutecios285
A partir desta descriccedilatildeo passamos definitivamente a exposiccedilatildeo dos fatos que satildeo
contrastantes entre a praacutetica da feacute cristatilde e a ordem dos acontecimentos estabelecida nas
ocorrecircncias do meio secular ao redor da Igreja de Cristo isto porque o centro da coletividade
cristatilde (Assembleia Santa) era o que melhor distinguia exteriormente essa separaccedilatildeo
existencial286 A ecircnfase de Justino aplicada agrave realidade sociorreligiosa de seu tempo nos impotildee
a necessidade de uma adaptaccedilatildeo por meio de um delineamento de ordem temaacutetica isso devido
agrave diversidade de assuntos aos quais poderiacuteamos enfocar nesse exame pois a ldquoformalidade da
religiatildeo (pagatilde) manifestava-se de maneira diversardquo287 nos variados ciacuterculos sociais do mundo
greco-romano
O texto de Justino que estaacute depositado em uma genuiacutena literatura de estilo apologeacutetico
acaba ateacute mesmo por ganhar ares enfaticamente polemistas mesmo que esta definiccedilatildeo literaacuteria
do meio Patriacutestico seraacute apenas regulada sobre um escritor apologista a partir da figura de
284 FRANGIOTTI In Introduccedilatildeo I Apologia 1995 p 8
285 JUSTINO I Apologia XXIV 1-3
286 KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983
287 FUNARI Roma vida puacuteblica e vida privada 1993 p 20 grifo nosso
69
Tertuliano288 Isso porque a objetividade empregada por Justino natildeo visava unicamente
solicitar toleracircncia em relaccedilatildeo agrave feacute cristatilde mas tambeacutem evidenciar de forma categoacuterica direta e
especiacutefica uma superioridade do culto cristatildeo sobre as religiotildees pagatildes289
Deste modo de forma essencial entendemos que para uma melhor compreensatildeo do
contexto sugerido se faz necessaacuterio fracionaacute-lo Poreacutem devido agraves vaacuterias possibilidades de
argumentaccedilatildeo que a porccedilatildeo apresentada nos oferece decidimos concentrar nosso exame em
trecircs toacutepicos orientativos atraveacutes dos quais acreditamos ser possiacutevel desenvolver o escopo que
desejamos estes se condicionam a falta de valores absolutos a praacutetica da idolatria (na
concepccedilatildeo cristatilde) e as variaccedilotildees dos atos cuacutelticos que envolviam tal praacutetica mesmo que ambos
os casos apontados venham a se mesclar no seguimento de nosso relato textual devido sua
estreita relaccedilatildeo ldquosimbioacuteticardquo Os trecircs pontos nos conduzem de forma natural a uma reflexatildeo
historiograacutefica em torno do periacuteodo dos Seacuteculos I e II dC visando deste modo uma maior
clarificaccedilatildeo dos fatos que procuramos distinguir
2311 Praacutetica da Feacute Contra o Politeiacutesmo Relativista
Iniciamos a nossa estruturaccedilatildeo apresentando um registro que descreve esse cenaacuterio
cuacuteltico pagatildeo o qual estaacute disponibilizado no texto da Escritura Sagrada Aproximadamente
100 anos antes290 desse registro de Justino o Apoacutestolo Paulo jaacute censurava enfaticamente a
mesma praacutetica religiosa que natildeo estranhamente estava vigorando na cultura social ateacute os dias
de Justino Quando o Apologista acusa seus oponentes de adorarem uma variedade
(pluralidade) de seres criados (ou a natureza) abre-se um paralelismo com o texto biacuteblico que
diz ldquoInculcando-se por saacutebios tornaram-se loucos e mudaram a gloacuteria do Deus incorruptiacutevel
em semelhanccedila da imagem de homem corruptiacutevel bem como de aves quadruacutepedes e repteisrdquo
(Romanos 122-23)
Justino argumenta sobre este cenaacuterio afirmando que o status de honra a estas diversas
ldquodivindadesrdquo passava por variaccedilotildees ndash ou ateacute mesmo vacilaccedilotildees ndash natildeo possuindo nenhum teor
de algo que poderiacuteamos afirmar como ldquoabsolutordquo Justino fortemente tambeacutem salienta que o
simples fator geograacutefico eacute capaz de destituir este aspecto de adoraccedilatildeo realidades
(contingenciais) que acabam por confrontar-se com o credo cristatildeo que jaacute possui seu conceito
bem estabilizado nos dias Justino Nisto nos auxilia o texto da Didaqueacute (possivelmente
288 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
289 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
290 GREATHOUSE In A Epiacutestola aos Romanos Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006
70
redigido no final do Seacuteculo I291) o qual confessa que ldquoTu Senhor Todo-poderoso criaste todas
as coisas por causa do teu Nomerdquo292 solidificando desde muito cedo o princiacutepio que mais
tarde293 seria absolutamente consolidado no Credo Apostoacutelico que iraacute reproduzir conteuacutedo
idecircntico ao afirmar ldquoCreio em Deus Pai todo-poderoso Criador do ceacuteu e da terrardquo294
Deste modo a nova feacute em curso concebia desde seus primoacuterdios um uacutenico ser todo-
poderoso que natildeo pode nem mesmo estaacute sensiacutevel a sofrer as variantes temporais descritas por
Justino Aleacutem disso o Apologista nos apresenta uma variaccedilatildeo de grau que poderiacuteamos definir
como ldquocaoacuteticardquo para uma postura humana em sua relaccedilatildeo com estes ldquoobjetosrdquo de culto pois
cita como premissa que o mesmo ldquoobjetordquo tem determinada condiccedilatildeo de qualidade superior
para alguns mas torna-se trivial e comum para outros295 algo impossiacutevel de ser adaptado ao
elemento divino do culto cristatildeo
2312 Praacutetica da Feacute Contra a Idolatria
O outro ponto que desejamos destacar se aplica sobre a afirmaccedilatildeo de Justino ao dizer
ldquoEsta eacute a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo veneramos os mesmos deuses que voacutesrdquo296
A enfaacutetica argumentaccedilatildeo de Justino salienta a natildeo participaccedilatildeo dos cristatildeos nas atividades
religiosas dos ciacuterculos sociais aos quais pertenciam Estas atividades que eram implementadas
pelo mito popular297 e pelas classes poliacuteticas controladoras298 acabavam por definir-se como
os ritos religiosos ldquooficiaisrdquo ndash aceitos permitidos e em alguns casos tolerados pelas
autoridades ndash no Impeacuterio Romano299 O culto aos diversos deuses e ao imperador romano
caracterizam bem esta diversidade mitoloacutegica300 Assim passamos para um fato literaacuterio que
em nosso entendimento fomenta bem essa ideia estruturada na realidade humana que
desejamos retratar O escrito a seguir de autoria de Pliacutenio o Velho produzido possivelmente
291 STORNIOLO BALANCIN In Introduccedilatildeo DIDAQUEacute O catecismo dos primeiros cristatildeos para as
comunidades de hoje 2010 p 3
292 DIDAQUEacute X 3
293 SCHAFF The creeds of Christendom with a history and critical notes 1966
294 CREDO APOSTOacuteLICO 1ordm artigo (da criaccedilatildeo)
295 Ver GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 89-90
296 JUSTINO I Apologia XXIV 2
297 Ver KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983 p 91-97
298 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
299 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988
300 FUNARI Roma vida puacuteblica e vida privada 1993
71
em torno do ano 77 da era cristatilde301 nos expotildee por meio de um registro de tipo naturalista a
seguinte observaccedilatildeo quanto algumas praacuteticas ritualiacutesticas comuns ao cenaacuterio sociorreligioso de
entatildeo Pliacutenio assim escreve
Sacrificar animais sem oraccedilotildees natildeo funciona aparentemente nem produz a correta
relaccedilatildeo ritual com os deuses As foacutermulas variam uma para conseguir um bom
agouro uma segunda para evitar o mau agouro e uma terceira para cultuar as
divindades [] Ao usarmos as preces costumeiras nesse ritual admitimos a eficaacutecia
dessas foacutermulas comprovadas pela experiecircncia de 830 anos302
Cabe-nos dizer que Pliacutenio estava simplesmente retratando de maneira descritiva os
processos de ordem religiosa no meio social que estava inserido poreacutem o contexto claramente
nos sugere que Pliacutenio tambeacutem buscava salientar a ldquoimportacircncia do respeito agraves formalidades na
religiatildeo do Estadordquo303 Natildeo podemos esquecer que Pliacutenio como oficial e administrador romano
esteve inserido em diversas regiotildees do Impeacuterio304 o que nos possibilita afirmar que o registro
estaacute baseado em um amplo e avultado conteuacutedo experiencial e que portanto seu relato estaacute
condicionado a ser classificado como um ldquocaso geneacutericordquo de praacuteticas cuacutelticas das regiotildees
influenciadas pela cultura greco-romana
2313 Praacutetica da Feacute Contra o Ateiacutesmo
Uma praacutetica que era corrente nos tempos de Justino e jaacute antes dele era o de definir os
cristatildeos ldquocomo culpados do crime de ateiacutesmordquo305 A natildeo-aderecircncia dos cristatildeos a essas praacuteticas
religiosas pagatildes eram vistas e entendidas por alguns (elite social)306 como atos de
irracionalidade mas principalmente eram interpretadas pelos pagatildeos (de forma geral) como
301 BEARD SPQR uma histoacuteria da Roma Antiga 2017
302 PLIacuteNIO Histoacuteria Natural XXVIII 10-12 No original Sacrificar animales sin oraciones no funciona
aparentemente ni produce la correcta relacioacuten ritual con los dioses Las foacutermulas variacutean una para conseguir un
buen aguumlero una segunda para evitar el mal aguumlero y una tercera para cultuar a las divinidades [] Al usar las
oraciones acostumbradas en ese ritual admitimos la eficacia de esas foacutermulas comprobadas por la experiencia de
830 antildeos
303 FUNARI Roma vida puacuteblica e vida privada 1993 p 17 grifo nosso
304 BEARD SPQR uma histoacuteria da Roma Antiga 2017
305 IRVIN SUNQUIST Histoacuteria do Movimento Cristatildeo Mundial Volume I Do cristianismo primitivo a 1453
2004 p 100
306 IRVIN SUNQUIST Histoacuteria do Movimento Cristatildeo Mundial Volume I Do cristianismo primitivo a 1453
2004
72
accedilotildees que manifestavam uma evidente incredulidade307 ndash ou seja uma atitude de profundo
desrespeito ndash por parte dos cristatildeos agravequilo que era considerado como divino De ordem jaacute muito
habitual eram as acusaccedilotildees deste tipo junto agrave cultura greco-romana pois jaacute na antiguidade
algumas figuras de destaque como Soacutecrates foram alvos desse tipo de defraudaccedilatildeo
considerado de ordem moral para o periacuteodo
Voltemos ao caso de Soacutecrates pois este foi julgado aproximadamente 550 anos
antes308 de Justino escrever sua I Apologia vindo a receber por parte da parte de seus algozes
acusaccedilotildees de mesma ordem as quais os cristatildeos agora similarmente sofriam tal como Soacutecrates
que ldquodescobriu o embuste dos democircnios e os convidou (demais seres humanos) a procurar o
verdadeiro Deus por isso ele teve de morrer como maacutertirrdquo309 Justino cita-nos o fato dizendo
Quando Soacutecrates com raciociacutenio verdadeiro e investigando as coisas tentou
esclarecer tudo isso e afastar os homens dos democircnios estes conseguiram por meio
de homens que se comprazem na maldade que ele tambeacutem fosse executado como
ateu e iacutempio alegando que ele estava introduzindo novos democircnios Tentam fazer o
mesmo contra noacutes310
Entendemos que ainda se faz importante somar a estrutura dessa pesquisa o relato
redigido por Platatildeo referente ao processo de defesa e julgamento de seu mestre Nesse registro
apologeacutetico encontramos o diaacutelogo entre Soacutecrates e Ecircutrifron311 que comprova o fato juriacutedico
ocorrido na Greacutecia Antiga do qual citamos atraveacutes de Justino
Ecircutrifron ndash O que eu gostaria Soacutecrates mas receio que aconteccedila o contraacuterio Pois me
parece que ele simplesmente comeccedila por prejudicar a cidade pela lareira312 ao
tencionar fazer mal a vocecirc Mas me diga ele diz que vocecirc corrompe os jovens fazendo
o quecirc
307 Ver GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 84-86
308 Ver MALTA In Introduccedilatildeo Apologia de Soacutecrates 2008 p 11
309 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 85 grifo nosso
310 JUSTINO I Apologia V 3 grifo nosso
311 Natildeo temos outras informaccedilotildees sobre Ecircutifron ndash um adivinho prognosticador conforme subtiacutetulo da obra ndash
aleacutem das que encontramos em Platatildeo Mas seu nome tinha um significado claro para os gregos ldquoo de espiacuterito
direto ou ortodoxordquo Ver MALTA In Notas Apologia de Soacutecrates 2008 p 25
312 A lareira (ou Heacutestia) representava enquanto fogo sagrado da cidade e de cada casa o princiacutepio da estabilidade
Com essa fala Ecircutifron deixa clara sua admiraccedilatildeo por Soacutecrates Ver MALTA In Notas Apologia de Soacutecrates
2008 p 27
73
Soacutecrates ndash Coisas estranhas admiraacutevel homem para se ouvir assim Pois diz que sou
fazedor de deuses e que por isso mesmo ndash por fazer novos deuses e natildeo crer nos
antigos ndash me denunciou conforme diz313
Ainda referente ao assunto ndash cristatildeos definidos como ateus e iacutempios pelos pagatildeos ndash
vale-nos destacar o ponto de vista de um historiador Santos contribui muito em nosso exame
que visa apontar fatos contrastante por meio de fenocircmenos de intoleracircncia religiosa ocorridos
no passado Santos afirma que as acusaccedilotildees de ateiacutesmo por parte dos pagatildeos tiveram uma
importante contribuiccedilatildeo junto agrave construccedilatildeo de uma ldquoidentidaderdquo cristatilde durante o periacuteodo do
Seacuteculo II314 Tratando-se pontualmente do que acabamos de mencionar Santos novamente
contribui favoravelmente a nossa construccedilatildeo quando diz
Justino continua explicando que como acusaram Soacutecrates de ateiacutesmo assim satildeo
acusados os cristatildeos por natildeo adorarem os deuses de Roma Em seguida ele apresenta
uma pequena profissatildeo de feacute com o objetivo de esclarecer que os cristatildeos natildeo satildeo
ateus pois ldquocultuamos e adoramosrdquo o Deus verdadeiriacutessimo o seu Filho os seus
exeacutercitos de anjos e o Espiacuterito profeacutetico (JUSTINO I Apologia VI 1 2) Vaacuterios
exemplos desta estrutura do desenvolvimento podem ser observados no decorrer da I
Apologia315
A variaccedilatildeo entre o caso de Soacutecrates e a realidade de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos reforccedila
as atribuiccedilotildees de Justino quanto a postura que este buscava assumir e automaticamente
diferenciar Quando aponta de maneira clara para o estabelecimento de um distanciamento
ldquosegurordquo entre as partes que na concepccedilatildeo do Apologista apresentam uma clara distinccedilatildeo de
culto No entanto Justino natildeo deixa de assumir a significativa importacircncia que as ldquoestruturasrdquo
de feacute representam como objeto para a estabilidade humana no sentido de gerar nessa
coletividade uma espeacutecie de harmonia que pode ser definida com o um termo moderno como
ldquoseguranccedila socialrdquo mas claro isso somente se faz possiacutevel devido agrave Justino assumir ser um
crente ndash afastando assim todas as acusaccedilotildees de ateiacutesmo ndash mas natildeo um idoacutelatra exercendo deste
modo (novamente por meio de sua tradicional ferramenta apologeacutetica) um consideraacutevel
apontamento para as diferenccedilas entre estes dois (ou mais) estados de crenccedila e culto Walde
313 PLATAtildeO Ecircutrifon (Sobre a piedade) 2
314 Ver SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2010 Item
12 A apropriaccedilatildeo do estilo grego nos escritos e pregaccedilotildees p 31-38
315 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2010 p 108
grifo nosso
74
salienta bem esse enfoque comparativo que acabou por constituir uma espeacutecie de meacutetodo que
foi aplicado por Justino em sua verificaccedilatildeo entre as diferenccedilas que encontrou Desta forma
Walde resume seu entendimento
Parte do problema era uma maacute interpretaccedilatildeo da crenccedila cristatilde Por natildeo renderem culto
aos deuses gregos e romanos os cristatildeos eram chamados ateus Justino perguntou
como eles podiam ser ateus jaacute que eles rendiam culto ldquoao Deus verdadeirordquo Os
cristatildeos rendem culto ao Pai Filho e Espiacuterito Santo ele disse e ldquolhes datildeo homenagens
com razatildeo e verdaderdquo Justino tambeacutem apontou a inconsistecircncia dos governantes
romanos Alguns de seus proacuteprios filoacutesofos ensinaram que natildeo havia nenhum deus
mas eles natildeo os perseguiram soacute por terem o nome de filoacutesofos316
Aleacutem desses destaques de caraacuteter mais historiograacuteficos adquirimos atraveacutes do texto
biacuteblico o relato Apostoacutelico que certamente abarca os fatores que compotildeem a posiccedilatildeo de Justino
Este testemunho Sagrado retrata com esmero o que o autor de Atos dos Apoacutestolos buscava
comunicar ao seu status quo pois o discurso de Paulo em Atenas torna-se esclarecedor para o
fim de testificar o estado e o tipo da feacute que os cristatildeos confessavam Vemos nisso proposta uma
relocaccedilatildeo do ser humano em direccedilatildeo a nova concepccedilatildeo de se ser a geraccedilatildeo de Deus ndash atraveacutes
da nova criaccedilatildeo ndash pois os procedimentos dos cultos pagatildeos contrariavam os princiacutepios
fundamentais deste Deus absoluto uacutenico e consequentemente a isso verdadeiro na visatildeo de
Justino sendo absolutamente ldquotolice pensar que a divindade ndash lsquoo divinorsquo ou lsquodivinalrsquo ndash seria
semelhante agraves imagens de ouro ou de prata feitas pelos homensrdquo317 O Texto Sagrado
indiscutivelmente apresenta o caminho e o fundamento pelo qual Justino alcanccedilou e sustentava
suas convicccedilotildees
O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe sendo ele Senhor do ceacuteu e da terra
natildeo habita em santuaacuterios feitos por matildeos humanas Nem eacute servido por matildeos humanas
como se de alguma coisa precisasse pois ele mesmo eacute quem a todos daacute vida
respiraccedilatildeo e tudo mais [] Sendo pois geraccedilatildeo de Deus natildeo devemos pensar que
a divindade eacute semelhante ao ouro agrave prata ou agrave pedra trabalhados pela arte e
imaginaccedilatildeo do homem (Atos dos Apoacutestolos 17242529)
Apoacutes discorrermos sobre o meacuterito da questatildeo dos disciacutepulos de Jesus Cristo serem ou
natildeo ateus e tambeacutem de abordarmos com uma finalidade dissertativa algumas caracteriacutesticas de
316 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 3 grifo nosso
317 EARLE In Livro dos Atos dos Apoacutestolos Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006 p 343
75
ordem cultual do meio pagatildeo seguiremos explorando algumas citaccedilotildees de Justino que se
apresentam de forma diversificada em sua tentativa de enfatizar um latente antagonismo entre
os grupos religiosos de seu tempo
232 Um Princiacutepio Determinista
Os capiacutetulos XXV e XXVI da I Apologia nos apresentam inuacutemeras variaccedilotildees desses
haacutebitos religiosos todos sentenciados por nosso autor como nefastos porque Justino sempre
buscava afirmar como ponto inicial de sua argumentaccedilatildeo a premissa de que seu grupo (cristatildeos)
se diferencia dos demais por natildeo possuir as mesmas praacuteticas Essas praacuteticas pagatildes de culto no
entendimento de Justino fossem exercidas de maneira ordinaacuteria ou extraordinaacuteria por seus
seguidores no final incontestavelmente seriam condenadas pois se manifestariam como obras
demoniacuteacas Isso ocorria porque alguns ldquodemocircnios levaram certos homensrdquo318 a praticaacute-las
para prejuiacutezo dos cristatildeos sendo estes por fim injustamente acusados de praacuteticas danosas
Euseacutebio ao comentar sobre o ministeacuterio de Justino retrataraacute este contexto de forma
simposiasta
Isto eacute demonstrado por Justino que se distinguiu em nossa doutrina natildeo muito tempo
depois dos apoacutestolos e de quem exporemos oportunamente o que seja conveniente
Em sua primeira Apologia dirigida a Antonino em favor de nossa feacute escreve como
segue ldquoE depois da ascensatildeo do Senhor ao ceacuteu os democircnios levaram alguns homens
a dizer que eram deuses e estes natildeo somente natildeo foram perseguidos por voacutes mas ateacute
foram considerados dignos de honrasrdquo319
Nos capiacutetulos XXIV-XXVI Justino nos retrata de maneira sintetizada diversas
caracteriacutesticas da religiatildeo gentiacutelica de sua eacutepoca Ateacute aqui natildeo encontramos nada de novo ou
ateacute mesmo excepcional neste tipo de relato mas o que nos chama a atenccedilatildeo neste
enquadramento analiacutetico sobre o qual estamos ponderando eacute a proporccedilatildeo temaacutetica que o
assunto ganha referente agrave sua futura fundamentaccedilatildeo literaacuteria Cabe-nos aqui atestar que Justino
se utiliza de trecircs elementos indicativos naquilo que procura apresentar como casos evidentes da
perseguiccedilatildeo social para com aqueles que se denominavam cristatildeos Justino atraveacutes de uma
espeacutecie de ldquolista numeradardquo320 notoriamente sinaliza uma sequecircncia de fases as quais
318 JUSTINO I Apologia XXVI 1
319 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica II 13 2-3
320 Justino se utiliza dos termos gregos Πρωτον (Em primeiro lugar) no cap XXIV Δεύτερον (Em segundo lugar)
no cap XXV Τρίτον (Em terceiro lugar) no cap XXVI Sendo os vocaacutebulos empregados pelo autor na segunda
76
Frangiotti chama de ldquoProvasrdquo321 utilizadas pelo Apologista sendo que estes fatos em
perspectiva geral se apresentavam de maneira tenebrosa na visatildeo de Justino pois em sua
anaacutelise sustentavam-se sobre argumentos fraacutegeis duvidosos e absolutamente injustos
principalmente pelo fato dessas acusaccedilotildees possuiacuterem um caraacuteter preconceituoso fazendo
somente dos cristatildeos por princiacutepio legal as viacutetimas dessas regras estabelecidas
Neste breve conjunto propositivo encontramos um cenaacuterio real que passa a se
caracterizar por meio de uma descriccedilatildeo de fatos pujantes que ascendem ao nosso olhar atraveacutes
de uma linguagem conceitual Justino amparado por analogias literais passa mediante sua
construccedilatildeo da defesa da moral cristatilde322 a utilizar-se de accedilotildees dialeacuteticas as quais levam as
praacuteticas dos cultos pagatildeos a serem apontadas por Justino (especialmente no capiacutetulo XXV) e
tambeacutem examinadas de uma maneira imperativa mesmo que visando uma definiccedilatildeo satisfatoacuteria
para o entendimento de seus leitores Essa praacutetica literaacuteria eacute algo normalmente detectado junto
ao trabalho de um pensador com caracteriacutesticas platocircnicas pois estes ldquodisciacutepulosrdquo de Platatildeo
atraveacutes de uma confrontaccedilatildeo de imagens contraditoacuterias visavam chegar a ideias idecircnticas e
assim uniformizar o pensamento humano323
Entretanto esta conformidade natildeo era possiacutevel na anaacutelise de Justino pois os fatos
(praacuteticas pagatildes) natildeo possuiacuteam a ldquoidentidaderdquo necessaacuteria para o Apologista muito pelo
contraacuterio eram absolutamente antagocircnicos e inquestionavelmente se definiam como espuacuterios
aos olhos dos cristatildeos quando ponderados diante da doutrina cristatilde estabelecida pela
transmissatildeo e edificaccedilatildeo Apostoacutelica Deste modo a separaccedilatildeo essencial proposta pelo
Apologista torna-se ainda mais clara se confrontada com o comentaacuterio de Euseacutebio ao capiacutetulo
XXVI da I Apologia O Historiador constroacutei uma consideraacutevel argumentaccedilatildeo sobre uma figura
humana denominado Menandro o qual sendo participante de atos miacutesticos recebeu de Euseacutebio
o cognome de ldquoMagordquo
Tambeacutem Justino ao mencionar Simatildeo pela mesma razatildeo acrescenta uma relaccedilatildeo
sobre este outro dizendo ldquoSabemos tambeacutem que um certo Menandro tambeacutem
samaritano oriundo da aldeia chamada Caparatea depois de ser disciacutepulo de Simatildeo e
estando tambeacutem possuiacutedo por democircnios apareceu em Antioquia e com sua arte
maacutegica seduziu a muitos E convenceu seus seguidores de que natildeo morreriam Hoje
declinaccedilatildeo do acusativo permitem em sua traduccedilatildeo o emprego tanto da preposiccedilatildeo ldquoemrdquo quanto do substantivo
ldquolugarrdquo condicionando desta forma uma indicaccedilatildeo de relaccedilatildeo e loacutegica em sua estrutura organizacional Ver
PAUTIGNY In Notes Apologies XXVI 1 XXV 1 XXVI 1
321 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 21
322 JUSTINO I Apologia XXV 1-3
323 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
77
restam alguns de sua seita que continuam a professaacute-lordquo Era sem duacutevida obra da
influecircncia diaboacutelica lanccedilar matildeo de tais feiticeiros revestidos do nome de cristatildeos para
esforccedilar-se em caluniar o grande misteacuterio de piedade acusando de magia e destruir
por meio deles os dogmas da Igreja sobre a imortalidade da alma e a ressurreiccedilatildeo dos
mortos Mas aqueles que os reconhecem como salvadores chegaram abaixo da
verdadeira esperanccedila324
Neste comentaacuterio histoacuterico notamos com clareza a relaccedilatildeo de contribuiccedilatildeo que
Euseacutebio visa estender ao confronto apologeacutetico pelo qual Justino havia passado Desta maneira
acaba por nos manifestar seu condicionamento a um fato que em sua concepccedilatildeo parece-nos
claramente a expressatildeo de um princiacutepio pelo qual faz emergir um compromisso ndash algo que nos
soa como uma necessidade moral ndash que possui um caraacuteter imperioso Euseacutebio nos relata sem
restriccedilotildees que as accedilotildees maleacutevolas praticadas pelo meio sociorreligioso pagatildeo do periacuteodo de
Justino tinham claramente o objetivo de ldquocaluniar o grande misteacuterio de piedade [] e destruir
por meio deles os dogmas da Igrejardquo325 constituindo deste modo a noccedilatildeo histoacuterica de que os
valores da feacute cristatilde eram a expressatildeo perfeita da Verdade tanto para Justino quanto para a Igreja
(representada historicamente no relato de Euseacutebio) Tratando-se quanto agrave Igreja nesta questatildeo
pontualmente Justino entendia que em seu curso natural a Igreja vivenciava naturalmente essa
relaccedilatildeo dialeacutetica fazendo com que as difamaccedilotildees consequentes da falsa religiatildeo manifestassem
que a Igreja era (e estava) Santa mesmo que sob o ataque e a tentativa de manipulaccedilatildeo dos
seres demoniacuteacos326
Sem entrarmos diretamente no meacuterito teoloacutegico destas afirmaccedilotildees mas buscando nos
direcionarmos para aquilo que nos cabe como exame pretendido neste trabalho ressaltamos
que o comportamento daqueles que buscavam defender a feacute cristatilde nos parece visar de forma
clara o estabelecimento de um padratildeo entre causa e efeito em suas anaacutelises O efeito do
procedimento daqueles que assumiram esta postura hereacutetica em relaccedilatildeo agrave feacute cristatilde eacute assim
definido por Euseacutebio ldquoMas aqueles que os reconhecem como salvadores chegaram abaixo da
verdadeira esperanccedilardquo327 Aqui encontramos um destaque consideraacutevel para esta pesquisa pois
podemos sustentar que Euseacutebio baseia sua argumentaccedilatildeo de maneira evidente na
intelectualidade de Justino Logo devemos novamente afirmar de maneira expressiva que tanto
para Justino quanto para Euseacutebio havia uma definiccedilatildeo consistente do que seria a Verdade como
324 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica III 26 3-4
325 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica III 26 4
326 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997
327 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica III 26 4 grifo nosso
78
tambeacutem onde ela necessariamente estava eou se encontrava Aqui tambeacutem se caracterizava
um processo de objeccedilatildeo a Verdade sendo os registros historiograacutefico um peso consideraacutevel na
comprovaccedilatildeo deste caso
233 Um Princiacutepio de Pureza
Seguindo no tratado de Justino jaacute nos dirigindo ao segundo cenaacuterio de nossa anaacutelise
para este item apresentamos mais um relato de alccedilada histoacuterica que eacute proposto por nosso autor
Como nos temas anteriores este tambeacutem envolve primordialmente questotildees de foro social
poreacutem agora apontando precisamente para outras realidades do ambiente sociorreligioso que
envolvia a realidade de Justino Sendo assim a partir deste ponto iremos considerar o capiacutetulo
XXVII da I Apologia onde encontramos uma postura determinante por parte do Apologista
quanto a questotildees de ordem para com agrave conduta sexual humana Neste caso especiacutefico podemos
ateacute mesmo falar de um padratildeo de comportamento a ser adotado em detrimento de outro328
Tambeacutem devemos afirmar sem constrangimento que para Justino fazer figurar esta
exposiccedilatildeo era algo vaacutelido e ateacute mesmo fundamental para suas intenccedilotildees apologeacuteticas pois tudo
nos indica que ele natildeo apenas queria sinalizar uma conduta mas tambeacutem solidificaacute-la por meio
de um ordenamento ldquoA pureza da vida cristatilderdquo329 Entendemos que para uma melhor
compreensatildeo dessa questatildeo em especiacutefico se faz necessaacuterio uma leitura completa do registro
apologeacutetico de Justino quanto ao assunto Deste modo segue na integra o capiacutetulo XXVII da I
Apologia
Noacutes por outro lado a fim de natildeo cometer pecado ou impiedade professamos a
doutrina de que expor os receacutem-nascidos eacute obra de perversos Primeiro porque vemos
que quase todos vatildeo acabar na dissoluccedilatildeo natildeo soacute as meninas mas tambeacutem os
meninos Do mesmo modo como se conta que os antigos mantinham rebanhos de bois
cabras ovelhas ou cavalos de pasto assim se reuacutenem agora rebanhos de crianccedilas com
a uacutenica finalidade de usar torpemente delas e toda uma multidatildeo tanto de mulheres
como de androacuteginos e pervertidos estaacute preparada em cada proviacutencia para semelhante
abominaccedilatildeo Para isso recolheis taxas contribuiccedilotildees e tributos ao passo que o vosso
dever seria o de arrancaacute-las pela raiz do vosso impeacuterio Quando se abusa de tais seres
aleacutem de tratar de uma uniatildeo proacutepria de pessoas sem Deus iacutempia e torpe natildeo faltaraacute
quem se una conforme a circunstacircncia com um filho um parente ou um irmatildeo Haacute
tambeacutem aqueles que prostituem seus proacuteprios filhos e mulheres outros mutilam-se
publicamente para a torpeza e referem esses misteacuterios agrave matildee dos deuses Finalmente
em todos aqueles que considerais como deuses a serpente se pinta como siacutembolo e
grande misteacuterio E aquilo mesmo que voacutes praticais e honrais publicamente voacutes o
atribuiacutes a noacutes como se tiveacutessemos decaiacutedo e a luz divina natildeo nos assistisse Todavia
328 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997
329 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 22
79
como estamos livres por natildeo praticar nada disso vossas caluacutenias natildeo nos causam
nenhum dano ao contraacuterio danificam aqueles que cometem essas torpezas e ainda
levantam falso testemunho contra noacutes330
O conteuacutedo exposto no capiacutetulo XXVII nos retrata uma condiccedilatildeo muito conflituosa
para os cristatildeos Graccedilas agrave sua praxis fidei eles chegaram a ser considerados ldquoinimigos do estado
e ateusrdquo331 A Igreja em sua fase primitiva teve em seu ldquoexerciacutecio de feacuterdquo a acusaccedilatildeo de se
envolver amplamente com a imoralidade de seu meio cultural332 No entanto a situaccedilatildeo que
Justino enfrentava em seus dias natildeo era mais proveniente de uma solene admoestaccedilatildeo
Apostoacutelica Pelo contraacuterio agora os cristatildeos passaram a ser vitimados por efeitos de um estado
opressor No passado estes pecados haviam afligido a Igreja de Cristo a ponto de suas praacuteticas
lituacutergicas serem ldquoconfundidasrdquo com as muitas facetas do rito religioso natildeo-cristatildeo vigente em
sua eacutepoca algo que Justino se interpocircs de forma vertiginosa Sem termos a intenccedilatildeo de produzir
necessariamente um apanhado histoacuterico-cultural (entenda-se de se comentar detalhadamente o
capiacutetulo citado) procuraremos a partir deste ponto estabelecer agrave saliecircncia que entendemos
haver entre as praacuteticas descritas no capiacutetulo XXVII pois a descriccedilatildeo elementar de Justino nos
leva a uma singular oposiccedilatildeo de valores e preceitos considerados por ele como fundamentais
A cultura greco-romana alicerccedilada e solidificada nas entranhas do Impeacuterio nos
demonstra uma coletividade de fatos os quais eram considerados inoacutespitos ao ldquoideaacuteriordquo cristatildeo
que se encontrava estruturado no rigor das comunidades do Seacuteculo II333 Obviamente alguns
desvios de conduta por parte dos fieacuteis ocorriam em meio agraves ldquoassembleiasrdquo cristatildes ateacute mesmo
com certa normalidade especialmente nos grandes centros urbanos334 Entretanto a proteccedilatildeo
da disciplina eclesiaacutestica ndash principalmente mediante a accedilatildeo Episcopal e dos rigores penitenciais
ndash conseguia estabelecer um ldquocontrolerdquo por meio da manutenccedilatildeo da autecircntica doutrina de
Cristo335
Neste cenaacuterio as diversas praacuteticas religiosas pagatildes atreladas ao sistema social de entatildeo
ndash as quais envolviam de maneira ampla e robusta a vida cotidiana dos suacuteditos de Roma em
330 JUSTINO I Apologia XXVII 1-5
331 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4
332 Ver 1 Coriacutentios 5
333 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997
334 KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983
335 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
80
suas mais variadas atuaccedilotildees familiar civil militar etc336 ndash apontavam de forma depreciativa
para o puacuteblico cristatildeo O cristianismo nesse momento cada vez mais inserido na realidade
social do Impeacuterio trazia o ldquofermento de um ideal superiorrdquo337 elaborado tanto no niacutevel
intelectual de seus praticantes quanto tambeacutem no de seus defraudadores Isso fazia com que a
feacute cristatilde acabasse por se distinguir de forma evidente dos diversos haacutebitos e costumes
considerados ordinaacuterios do sistema religioso natildeo-cristatildeo que estava sendo analisado e
apologeticamente combatido por Justino
Os cristatildeos eram acusados falsamente de cometerem torpezas sexuais em seus
encontros cultuais sendo que os cristatildeos nem de perto praticavam fornicaccedilatildeo adulteacuterio
mutilaccedilatildeo entre outros atos repugnantes338 que eram comuns na ldquoliturgiardquo cuacuteltica pagatilde Neste
cenaacuterio para Justino a pior consequecircncia ainda era a de que o Impeacuterio tolerava tais atos sem
nenhuma forma ativa de puniccedilatildeo a estes pois caso um respectivo modo de culto viesse a trazer
benefiacutecios poliacuteticos ao Impeacuterio o mesmo era tolerado sem se levar em conta sua origem ou
meacutetodos de celebraccedilatildeo por mais esdruacutexulos que fossem 339
Seguindo ainda nesta temaacutetica a I Apologia nos permite afirmar que a celeuma de
origem pagatilde que procurava acusar os cristatildeos de realizarem orgias canibalismo pedofilia e
diversos outros atos de torpeza em suas celebraccedilotildees natildeo passava de um plano difamatoacuterio que
infelizmente conseguiu se estabelecer em meio a uma realidade sociorreligiosa com
caracteriacutesticas muito preconceituosas pois mesmo sendo sincretista em sua essecircncia340 tal
sociedade natildeo soube ou natildeo quis reconhecer esse tipo de crenccedila religiosa341 Poreacutem cabe-nos
336 CARCOPINO Jeacuterocircme Roma no Apogeu do Impeacuterio Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990
337 LEBRETON Jules ZEILLER Jacques Storia della Chiesa della origini ai nostri giorni V II Dalla fine
dell II Secolo alla pace Costantiniana (313) 1972 p 619 No original fermento drsquoun ideale superiore
338 Ver DANIEacuteLOU Jean MARROU Henri Nova histoacuteria da Igreja V I Dos Primoacuterdios a Santo Gregoacuterio
Magno Petroacutepolis Vozes 1966 p 105-109
339 Algumas formas rituais de culto eram tatildeo bizarras que solapam mais do que qualquer outra coisa o estereoacutetipo
moderno dos romanos como convencionais e serenos Exemplo disso na festa da Lupercaacutelia em fevereiro homens
jovens corriam nus pela cidade accediloitando qualquer mulher que encontrassem pela frente (trata-se da mesma festa
recriada na cena de abertura da peccedila Juacutelio Ceacutesar de Shakespeare) Ver BEARD SPQR uma histoacuteria da Roma
Antiga 2017 p 104
340 AYMARD AUBOYER Roma e Seu Impeacuterio Volume V As Civilizaccedilotildees da Unidade Romana (Fim) A Aacutesia
Oriental do Iniacutecio da Era Cristatilde ao Final do Seacuteculo II 1994 p 64-65 CORNELL Tim MATTHEWS John
Frederick A Civilizaccedilatildeo Romana Barcelona Folio 2008 p 97
341 Neste aspecto em particular o meio teoloacutegico diverge de posiccedilatildeo possivelmente devido a inclinaccedilatildeo do
pesquisador em ponderar aspectos filosoacuteficos eou ideoloacutegicos tanto do passado quanto do presente para a eacutepoca
(Seacuteculo II) em anaacutelise Por exemplo Meeks entende que as caracteriacutesticas da moralidade estabelecida entre os
cristatildeos jaacute possuiacuteam forte ascendecircncia em meio a setores da sociedade Romana em contraposiccedilatildeo Daniel-Rops
atesta que a moralidade de origem cristatilde constituiacuteda atraveacutes dos Seacuteculos I ao IV natildeo encontra antecedentes agrave altura
que possam ser considerados como paralelos realmente orientativos haacute esta Ver MEEKS As Origens da
Moralidade Cristatilde 1997 p 9-24 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 240-242
81
ressaltar que Justino em seus tratados apologeacuteticos procurou incansavelmente defender seu
grupo como ldquoseres transformadosrdquo que abandonaram as praacuteticas repugnantes e agora satildeo
portadores (possuidores) de uma alta qualificaccedilatildeo moral Quanto a esse aspecto Walde afirma
Justino tambeacutem deu ecircnfase agrave casta conduta dos cristatildeos em resposta a acusaccedilotildees de
conduta imoral durante o culto Para mostrar como isso natildeo era verdade ele contou a
histoacuteria de um homem que foi perguntado por um cirurgiatildeo que o queria fazecirc-lo de
eunuco para provar que os cristatildeos natildeo praticam promiscuidade O pedido foi negado
porque o homem escolheu ficar solteiro e seguir seus companheiros cristatildeos342
Apoacutes utilizarmos desse exemplo de teor absolutamente imperativo ndash por sua estrutura
excecircntrica ateacute mesmo junto a um nicho de caraacuteter sociorreligioso considerado peculiar em
suas caracteriacutesticas Entendemos que ainda se faz necessaacuterio apresentar junto a essa discussatildeo
uma abordagem que compreenda a realidade que procuramos descrever Encontramos esse
complemento junto ao trabalho de Walde Este por meio de uma entrada que nos indica agrave leitura
de alguns fatos apresenta-nos uma das teacutecnicas utilizadas por Justino em sua construccedilatildeo
literaacuteria Walde reconhece que o Apologista ao mencionar a situaccedilatildeo religiosa de seu cotidiano
aborda de forma contundente o desgaste entre os praticantes da nova feacute (cristatildeos) e os
adoradores do ldquopanteatildeordquo (natildeo-cristatildeos) Os exemplos descritos por Walde satildeo similares aos
usados por Justino e esta similaridade nos leva novamente a concentrarmos nosso foco agrave uma
accedilatildeo comparativa de estados opostos entre si ou seja dialeacuteticos Sendo assim torna-se notoacuterio
desde o iniacutecio do trabalho de Walde a aplicaccedilatildeo de uma metodologia comparativa e a
diferenciaccedilatildeo de casos tornando-se uma espeacutecie de ldquoconclusatildeordquo definitiva para esse processo
Uma das taacuteticas apologeacuteticas de Justino era contrastar o que os cristatildeos eram
falsamente acusados e castigados com que os romanos faziam com impunidade Por
exemplo os cristatildeos eram acusados de matar crianccedilas em seus cultos e comecirc-las
depois Justino lembrava que os adoradores de Saturno se entregavam a matar e beber
sangue e outros pagatildeos que jogavam sangue de homens e animais em seus iacutedolos Os
cristatildeos eram acusados de imoralidade sexual mas eram seus criacuteticos Justino dizia
quem imitavam ldquoJuacutepiter e os outros deuses na sodomia e relaccedilotildees pecadoras com
mulheres343
342 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4
343 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4 grifo nosso
82
Ao analisarmos o texto de Walde percebemos que este utiliza-se do verbo ldquocontrastarrdquo
em sentido intransitivo para salientar com bastante preponderacircncia uma forma calculada de
oposiccedilatildeo e apresentar uma literal contrariedade de estados em essecircncia Logo conseguimos
notar a diferenccedila entre estes Eacute impressionante aos nossos olhos a relaccedilatildeo que Walde estabelece
em seu trabalho sobre o termo Verdade (mesmo que indiretamente) sendo este vocaacutebulo
utilizado como habilitador de uma caracteriacutestica de cunho existencial que passa a ser
manifestada pelos cristatildeos Novamente citamos este teoacutelogo em nossa busca de clarificar ainda
mais essa base indicativa que para noacutes eacute entendida como uma evidecircncia concreta nesta
construccedilatildeo conceitual Walde diz ldquoEm primeiro lugar disse Justino os cristatildeos demonstravam
sua honestidade por natildeo mentir quando em julgamento Por serem pessoas da verdade eles
confessariam sua feacute ateacute a morte Eles amavam a verdade mais que a vidardquo344
Portanto Walde tem razatildeo em afirmar que a atitude ldquode viver segundo a verdade era
um exemplo de mudanccedila provocado nas vidas das pessoas seguindo sua conversatildeordquo345 Desta
forma compreendemos por meio de uma avaliaccedilatildeo baseada em medidas factiacuteveis que haacute
possibilidade de se ser cristatildeo na concepccedilatildeo de Justino ndash como tambeacutem na de Tertuliano
Euseacutebio Walde e outros ndash passava por um proceder de vida que designava com eloquecircncia
atributos de diferenciaccedilatildeo no contexto social ativo da cultura a qual esta pessoa estava inserida
Esta separaccedilatildeo de maneira simples e evidente se condicionava no testemunho de vida dos fieacuteis
na esfera puacuteblica Cabe-nos ainda neste contexto colocarmos a frase de Falls citada por Walde
este diz ldquoesta mudanccedila chegou a ser conhecida como lsquoa triunfal canccedilatildeo dos apologistasrsquordquo346
Encerramos aqui nosso desenvolvimento deste ponto distintivo referente agravequilo que
poderiacuteamos denominar de ldquodialeacutetica de Justinordquo Para isso utilizamos de um texto da I
Apologia no qual Justino enfatiza esta mudanccedila essencial entre as vidas humanas que
caracterizamos como cristatildeos e natildeo-cristatildeos Em seguida classificamos agrave realidade cristatilde
como algo superior atraveacutes do meacutetodo de comparaccedilatildeo que tanto utilizamos nesta seccedilatildeo
confrontando os opostos em uma relaccedilatildeo que atesta suas diferenccedilas as quais satildeo consideradas
por Justino como irreconciliaacuteveis
Antes noacutes nos compraziacuteamos na dissoluccedilatildeo agora abraccedilamos apenas a temperanccedila
antes nos entregaacutevamos agraves artes maacutegicas agora nos consagramos ao Deus bom e
ingecircnito antes amaacutevamos acima de tudo o dinheiro e as rendas de nossos bens
344 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4 grifo nosso
345 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4 grifo nosso
346 FALLS The Fathers of the Church 1948 apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4
83
agora colocamos em comum o que possuiacutemos e disso damos uma parte para todo
aquele que estaacute necessitado antes noacutes nos odiaacutevamos e nos mataacutevamos mutuamente
e natildeo compartilhaacutevamos o lar com aqueles que natildeo pertenciam agrave nossa raccedila pela
diferenccedila de costumes agora depois da apariccedilatildeo de Cristo vivemos todos juntos
rezamos por nossos inimigos e tratamos de persuadir os que nos aborrecem
injustamente a fim de que vivendo conforme os belos conselhos de Cristo tenham
boas esperanccedilas de alcanccedilar conosco os mesmos bens que esperamos de Deus
soberano de todas as coisas347
O objetivo deste capiacutetulo foi apresentar de modo sinteacutetico o conceito acerca dos
cristatildeos no periacuteodo do Seacuteculo II dC Tambeacutem arguimos com clareza sobre a tentativa de
clarificarmos a situaccedilatildeo daqueles que natildeo eram pertencentes a este grupo os quais procuramos
mediante a aplicaccedilatildeo de uma distinccedilatildeo elementar defini-los com o termo de natildeo-cristatildeos
poreacutem acima de tudo buscamos apresentar por meio de sinais constitutivos e fatos
historiograacuteficos348 quais eram os predicativos que formulavam esta definiccedilatildeo ou melhor
dizendo quais eram os qualificadores que definiam aqueles que eram seguidores da Verdade
na concepccedilatildeo de Justino e outros349
No proacuteximo capiacutetulo buscaremos vislumbrar o filoacutesofo Justino Apresentaremos um
conciso relato de sua histoacuteria na filosofia procurando abordar de maneira satisfatoacuteria quais
foram suas principais influecircncias dentro desse segmento Trabalharemos de forma especial na
tentativa de apontar qual foi a sua definiccedilatildeo sobre o uso da razatildeo para os planos salviacuteficos de
Deus para a humanidade sendo este em nosso entendimento mais um dos fatores determinantes
para a complementaridade de nosso exame sobre a definiccedilatildeo da Verdade junto a I Apologia de
Justino o Maacutertir
347 JUSTINO I Apologia XIV 2-3
348 DANIEacuteLOU MARROU Nova histoacuteria da Igreja V I Dos Primoacuterdios a Santo Gregoacuterio Magno 1966
349 Danieacutelou e Marrou definem agrave Euseacutebio e Lactacircncio como apologistas de Constantino dando a entender que
uma poliacutetica de reeducaccedilatildeo na esfera sociorreligiosa do Impeacuterio Romano se desenvolveu mediante uma nova
abordagem dos fatos do passado no caso em especifico (I Apologia de Justino e seu cenaacuterio social) os imperadores
do passado deixaram de ser ldquoendeusadosrdquo passando a serem reconhecidos como tiranos e deacutespotas aos quais o
processo de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos tornou-se em um de seus principais atos de ignomiacutenia Ver DANIEacuteLOU
MARROU Nova histoacuteria da Igreja V I Dos Primoacuterdios a Santo Gregoacuterio Magno 1966 p 106
84
3 A VERDADE REVELADA Agrave RAZAtildeO A FILOSOFIA E SEU CONTEXTO NA
PERSPECTIVA DE JUSTINO MAacuteRTIR
No princiacutepio ele criou o gecircnero humano racional capaz de escolher a verdade e
praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus
pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade Se algueacutem natildeo
crecirc que Deus se preocupe com essas coisas ou teraacute que confessar com sofismas que
natildeo existe ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como
uma pedra350
Partindo do capiacutetulo XXVIII da obra base de Justino para este trabalho eacute que
desenvolvemos o capiacutetulo III desta pesquisa no qual apresentamos um cenaacuterio diferenciado
sobre a figura humana de nosso autor O cristatildeo Justino o qual podemos registrar de forma
variaacutevel mediante seu ldquomeacutetierrdquo amplo estaacute classificado entre os Pais Apologistas elencado
como um seleto articulador da importante cidade de Roma catalogado como um dos mais
significativos maacutertires do Seacuteculo II mas tambeacutem estaacute sem nenhuma sombra para duacutevidas
definido nos compecircndios histoacutericos como um expressivo filoacutesofo do meio cristatildeo
Este aspecto pontual referente a intelectualidade de Justino por jaacute ter sido
consideravelmente explorado natildeo eacute mais uma novidade no meio acadecircmico351 no entanto esta
questatildeo ainda pode ser desenvolvida e ateacute mesmo arquitetada para fins que visam estabelecer
pontos de conexatildeo entre temas diversos os quais incluem o tema e agrave objetividade central
propostos para esta pesquisa
Podemos constatar por meio da anaacutelise do desenvolvimento da expressatildeo intelectual
de um filoacutesofo ou de uma escolalinha filosoacutefica uma ampla polissemia locucional e ateacute mesmo
perceber casos opostos quando ocorrem no estabelecimento de algumas propriedades termos
diferentes que evoluiacuteram para uma mesma fonologia construindo desta maneira tambeacutem casos
de homoniacutemia dentro da manifestaccedilatildeo filosoacutefica352 Deste modo torna-se possiacutevel ndash e ateacute
mesmo necessaacuterio ndash direcionar o caraacuteter conceitual contido em algumas expressotildees filosoacuteficas
quando estas satildeo analisadas visando estabelecer uma direccedilatildeo que busque esclarecer
determinado contexto ou cenaacuterio Assim por este meio podemos salientar que assaz entre noacutes
350 JUSTINO I Apologia XXVIII 3-4a grifo nosso
351 Ver HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 27-32
352 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
85
fortes indiacutecios que Justino desenvolveu uma postura robustamente teoloacutegica mediante ter
formado sua tese atraveacutes da ldquodiversidade filosoacuteficardquo da qual era apreciador353
No caso de nosso trabalho em especiacutefico notamos a necessidade da integraccedilatildeo de
indicadores que nos orientem agrave amplitude da filosofia de Justino em nossa busca da definiccedilatildeo
da que era agrave Verdade para este Apologista Esta amplitude natildeo visa se desviar de modelos
tradicionais nem propriamente somar a eles mas antes disso entendemos ser necessaacuterio
rejeitar a ideia de que trabalhamos com um conceito formado precariamente sem um
fundamento soacutelido o qual poderiacuteamos considerar como um mero estereoacutetipo sem originalidade
Ao contraacuterio este modelo encontrado em Justino natildeo se baseia em preconceitos mas sim num
corpo intelectual de ldquotalento respeitaacutevel ampla leitura e memoacuteria enormerdquo354 algo que eacute notoacuterio
na literatura de Justino e exposto ateacute entatildeo com uma consideraacutevel parcela de originalidade355
Neste exposto algumas interrogaccedilotildees nos surgem especialmente quando tentamos
descrever (definir) o filoacutesofo Justino e sua contribuiccedilatildeo Aqui esboccedilamos alguns destes
questionamentos Quem era Justino o filoacutesofo Quais foram as principais influecircncias que
Justino recebeu na filosofia Qual resultado se percebe na teologia do autor devido a esta
influecircncia Por fim existe um condicionante (entenda-se uma caracteriacutestica inata) no ser
humano que explique tal interesse de Justino em expressar seu conceito
31 INTRODUCcedilAtildeO AO CAPIacuteTULO XXVIII
O capiacutetulo XXVIII da I Apologia eacute de grande importacircncia para esta pesquisa
inaugurando por assim dizer um significativo espaccedilo de reflexatildeo na busca de alcanccedilarmos o
desfecho que almejamos Num breve conjunto de argumentos os quais se concentram sobre
um rigor metodologicamente dedutivo o capiacutetulo XXVIII nos eacute apresentado pelo Apologista
de modo perspiacutecuo onde a clareza de suas proposiccedilotildees salientam seus objetivos os quais
formulam-se mediante as propriedades de caraacuteter racionalista que ele apresenta Aqui notamos
uma aguccedilada aplicaccedilatildeo por parte do autor agravequilo que podemos chamar de uma postura
construtiva para com a estrutura inteligiacutevel do ser criado agrave imagem e semelhanccedila de Deus
353 WALDE 2000
354 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 715
apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 1
355 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948
86
Seguindo a argumentaccedilatildeo de Frangiotti podemos afirmar baseados nesse espaccedilo (cap XXVIII)
que Justino entendia que ldquoO homem eacute racional e livrerdquo356
Neste capiacutetulo (XXVIII) Justino desenvolve uma condensada e pragmaacutetica
abordagem envolvendo os quatro versiacuteculos que o compotildee Diante disso em momento algum
nossa argumentaccedilatildeo visa exaurir as diversas possibilidades contextuais ndash seja num campo
hermeneuticamente literal anaacutelogo ou metafoacuterico ndash do trabalho do Apologista mas apenas
organizaacute-lo de maneira ativa por meio de sua divisatildeo (versos) a um quadrante que possibilite
o interesse deste exame o qual se constroacutei na tentativa de aproximarmos as interpretaccedilotildees da
definiccedilatildeo de Verdade que detectamos em Justino de nosso interesse teoloacutegico
Neste item em especiacutefico (31) que visa uma abordagem introdutoacuteria desenvolvemos
em especial uma aproximaccedilatildeo entre os dois primeiros versiacuteculos do capiacutetulo onde priorizamos
apresentar sua estruturaccedilatildeo visando desta forma o aperfeiccediloamento destes pontos para
estabelecermos uma sentenccedila axiomaacutetica a qual eacute esboccedilada pelo autor no terceiro versiacuteculo do
relato Quanto ao primeiro versiacuteculo
Entre noacutes o priacutencipe dos maus democircnios se chama serpente satanaacutes diabo ou
caluniador como podeis ver caso desejardes averiguar isso atraveacutes de nossas
Escrituras Ele e todo o seu exeacutercito juntamente com os homens que o seguem seraacute
enviado ao fogo para ser castigado pela eternidade sem fim coisa que foi de antematildeo
anunciada por Cristo357
A primeira impressatildeo para um leitor moderno dessa descriccedilatildeo eacute de surpresa ou ateacute
mesmo de espanto poreacutem o verso devidamente encaixado no relato que o antecede o explica
e ateacute mesmo o suaviza As palavras de Justino satildeo absolutamente biacuteblicas e estatildeo enquadradas
em um absoluto arcabouccedilo escrituriacutestico Honestamente devemos salientar que nada lhe falta
como meacutetodo para que possamos empregar o tiacutetulo de ldquoortodoxordquo em seu embasamento
teoloacutegico358 Pois seus termos empregados tais como o ldquopriacutenciperdquo359 a chamada ldquoserpenterdquo360
aleacutem das demais terminologias como ldquosatanaacutesrdquo361 ldquodiabordquo eou ldquocaluniadorrdquo362 apresentam-se
356 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 22
357 JUSTINO I Apologia XXVIII 1
358 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948
359 Ver Joatildeo 1231 1430
360 Ver Gecircnesis 31 2 Coriacutentios 113 Apocalipse 129
361 Ver Mateus 410 Atos dos Apoacutestolos 2618
362 Ver Mateus 411 Atos dos Apoacutestolos 1310
87
neste cenaacuterio apologeacutetico como evidecircncias elementares extraiacutedas da Escritura Sagrada e
aplicadas em uma construccedilatildeo dialeacutetica sendo estas ainda vinculadas por Justino como uma
sentenccedila arbitral agravequeles que estatildeo sendo expostos e julgados pelo Apologista ndash caracteriacutestica
literaacuteria que notamos ser amplamente utilizada por Justino na afirmaccedilatildeo de suas convicccedilotildees363
Aqui fomenta-se uma configuraccedilatildeo de ordem proacutepria a qual apresenta Justino como
um filoacutesofo que pode ser definido como pertencente a um grupo que adota uma postura mais
claacutessica de linha platocircnica ndash algo que seraacute mais bem desenvolvido a seguir ndash onde atributos
que caracterizem causa e efeito que partindo de um suposto ldquomundo sensiacutevelrdquo364 passam a
somar caracteriacutesticas evidentes em sua construccedilatildeo textual sendo o teacutermino do capiacutetulo XXVII
uma expliacutecita manifestaccedilatildeo de fatos que atestam essa correlaccedilatildeo tatildeo dura mas tambeacutem
necessaacuteria no processo de evidenciaccedilatildeo proposto por Justino
Mas eacute preponderante para natildeo se dizer essencial que a loacutegica do Apologista se baseia
em artifiacutecios nucleares pois quem diz ldquocaso desejardes averiguar isso atraveacutes de nossas
Escriturasrdquo365 carrega consigo uma tonalidade de patentes e natildeo de meras suposiccedilotildees porque
a Verdade como elemento distinguiacutevel e diferencial eacute criteacuterio identificaacutevel na leitura de Justino
junto agravequilo que o mesmo salienta como sua (no caso do texto ldquonossardquo) ldquoEscriturardquo366 ou seja
sua preeminecircncia espiritual o que na descriccedilatildeo do Apologista deve ser entendida como uma
real vantagem distintiva sendo uma latente superioridade existencial para os homens que a
possuem Este ponto de prevalecircncia seraacute melhor abordado no uacuteltimo capiacutetulo desta pesquisa
Uma importante observaccedilatildeo ainda nos cabe fazer na parte final do primeiro verso
Antes mesmo de ocorrer os eventos conciliares de Niceacuteia eou Constantinopla a ecumenicidade
do Credo parece jaacute se caracterizar em uma forma de universalidade e um confessar da missatildeo
apostoacutelica jaacute anteriormente registrada no compecircndio biacuteblico se faz reverberar no ideaacuterio de
Justino Iniciamos nossa leitura do testemunho Apostoacutelico junto agrave estrutura biacuteblica O apoacutestolo
Judas escreveu ldquoele tem guardado sob trevas em algemas eternas para o juiacutezo do grande Dia
[] satildeo postas para exemplo do fogo eterno sofrendo puniccedilatildeordquo (Judas 6b7b) Nesta passagem
encontramos bases que se conformam ao relato de Justino que enfatiza que o proacuteprio Cristo as
havia anunciado367 Prosseguindo vemos que o Credo redigido anos depois iraacute afirmar o mesmo
363 DROBNER Manual de Patrologia 2008
364 SEVERINO A Filosofia Antiga 1984 p 84
365 JUSTINO I Apologia XXVIII 1
366 JUSTINO I Apologia XXVIII 1
367 Ver Joatildeo 1248
88
quando diz ldquoe viraacute novamente em gloacuteria a julgar os vivos e os mortosrdquo368 Natildeo nos resta duacutevidas
que a missatildeo apostoacutelica gerou a doutrina e consolidou o Credo369 mas passagens de ordem
Patriacutestica como esta salientam que o mesmo (Credo) tambeacutem balizou sua eficiecircncia atraveacutes da
ecircnfase da atuaccedilatildeo de homens que pela feacute natildeo sucumbiram agraves dificuldades370 pelo contraacuterio
salientaram com seu testemunho que estas propriedades de ordem atemporal miacutestica e
existencial foram e ainda eram a proacutepria forma da Verdade em meio aos homens
Quanto ao segundo verso eacute necessaacuterio algumas observaccedilotildees iniciais especialmente
em relaccedilatildeo ao ldquoteorrdquo teoloacutegico que Justino desenvolve nesta pequena porccedilatildeo a qual apresenta
dificuldades interpretativas consideraacuteveis junto ao acircmbito dogmaacutetico ndash independentemente da
estrutura confessional que a examine ndash sugerindo-nos desta forma apresentarmos uma sucinta
argumentaccedilatildeo antes de abordaacute-lo Entendemos que esse procedimento se faz necessaacuterio para
que natildeo aja em nossa construccedilatildeo conceitual-programaacutetica (caps XXIII-XXX) um ponto natildeo
devidamente abordado
Variados debates podem surgir a partir da ecircnfase destacada por Justino (verso 2 do
cap XXVIII) porque afirmaccedilotildees desta espeacutecie fomentam diversos tipos de interesses de ordem
miacutestica no caso em questatildeo (texto de Justino) podem inclusive alavancar questotildees
soterioloacutegicas por exemplo Algumas anaacutelises ldquomodernasrdquo371 se esforccedilam atualmente em
descrever a figura de Justino como ocupante empregador defensor ou ateacute mesmo praticante
de uma ou outra escola teoloacutegica do cenaacuterio cristatildeo atual Entretanto optamos por natildeo abranger
este e outros contextos nesta pesquisa por entendermos que estes assuntos e temas natildeo se
envolvem diretamente com o ponto central de nosso trabalho Aleacutem de reconhecermos outra
dificuldade que nos parece ser muito significativa neste tipo de situaccedilatildeo a de se incorrer no
grave risco de se cometer um anacronismo textual histoacuterico e teoloacutegico372 e desta forma
sugerir um teoacuterico dilema teoloacutegico que para Justino e seus contemporacircneos possivelmente
natildeo era nem sequer um problema doutrinal
Passando agora efetivamente ao texto este diz ldquoNa verdade a paciecircncia que Deus
mostra em natildeo fazecirc-lo imediatamente tem como causa o seu amor pelo gecircnero humano pois
ele prevecirc que alguns se salvaratildeo pela penitecircncia entre os quais alguns que talvez ainda natildeo
368 CREDO NICENO-CONSTANTINOPOLITANO 7ordm Artigo
369 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
370 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
371 Ver SANTOS Justino o Maacutertir ndash Calvinista ou Arminiano 2014 Disponivel em
httpswwwgospelprimecombrjustino-martir-calvinista-arminiano
372 VIRKLER Hermenecircutica Avanccedilada Princiacutepios e Processos de Interpretaccedilatildeo Biacuteblica 2001
89
tenham nascidordquo373 Iniciamos esta parte de um ponto elementar da teologia de Justino374 ao
qual abordaremos mais detalhadamente a frente contudo compreendemos que sua aplicaccedilatildeo
neste item natildeo eacute apenas orientativa mas tambeacutem qualitativa para o restante da argumentaccedilatildeo
Um fato muito criativo do pensamento filosoacutefico de Justino se apresenta quando o
Apologista passa a enfatizar a existecircncia do Logos como o Cristo revelado Isto para Justino eacute
uma asserccedilatildeo de valores pontuais em uma escala ascendente que com facilidade se encontram
e se envolvem em sistemas transcendentais Wachholz elucida a abrangecircncia do termo Logos
dizendo o seguinte
O termo Logos (grego) quer dizer ldquopalavrardquo e tambeacutem ldquorazatildeordquo Segundo os gregos
nossa mente consegue compreender por que participa de alguma maneira do Logos
ou razatildeo universal Justino assume este discurso afirmando que em Jesus Cristo esse
Logos que se fez carne Jesus eacute fonte de todo o conhecimento375
Torna-se necessaacuterio entendermos a notoriedade que Justino aplica agrave onipotecircncia
onisciecircncia e preexistecircncia de Cristo em sua atuaccedilatildeo salviacutefica a partir deste ponto questotildees
(atributos divinos) as quais devemos considerar como absolutamente factiacuteveis no entendimento
do Apologista pois satildeo atributos da Escritura Sagrada ou seja satildeo consideradas evidecircncias
inquestionaacuteveis da vontade Divina (ativa e passiva) na leitura de Justino Poreacutem o ponto de
repouso deste exame se concentra na primeira parte do texto onde novamente Justino enfatiza
sua clarificaccedilatildeo de um estado de conformidade entre ideias e objetos (Verdade)
Mesmo o pensamento de Justino estando alavancado a uma espeacutecie de meacuterito para a
salvaccedilatildeo eacute evidente que sua afirmaccedilatildeo a soberania de Deus ndash a quem adjetiva como
ldquopacienciosordquo ndash caracteriza que esta benesse estaacute intimamente unida ao contexto temaacutetico que
podemos definir como amor de Deus O relato Apostoacutelico a Igreja em Corinto jaacute registrava a
seguinte afirmaccedilatildeo ldquoPorque todas as coisas existem por amor de voacutesrdquo (2 Coriacutentios 415a)
Carver diraacute sobre essa passagem que ldquoA expressatildeo tudo isso eacute por amor de voacutes explica o
acreacutescimo de convosco no versiacuteculo anterior O sofrimento de Paulo eacute um chamado ou uma
daacutediva que ele compartilha com toda a igrejardquo376 Da mesma forma notamos que Justino sofria
373 JUSTINO I Apologia XXVIII 2 grifo nosso
374 DROBNER Manual de Patrologia 2008
375 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 60
376 CARVER In A Segunda Epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006 p 427
90
por este grupo chamado a viver a Verdade o qual neste quadro eacute pintado como a resistecircncia
que manifesta esse amor imerecido e incondicional
Na descriccedilatildeo o Apologista nos parece transparecer com certa naturalidade seu intuito
em tentar provar algo como tambeacutem busca possivelmente sanar um erro (o do porquecirc este
juiacutezo de Deus ainda natildeo se manifestou) No entanto esse cenaacuterio eacute aplicado como uma forma
de ldquotranscriccedilotildeesrdquo que satildeo provenientes das afirmaccedilotildees e revelaccedilotildees inquestionaacuteveis para a
percepccedilatildeo de Justino por estarem devidamente relacionadas aos misteacuterios do Evangelho ao
qual ele servia Inclusive Justino claramente submetia sua razatildeo aos enigmas que a feacute em Cristo
natildeo lhe elucidava satisfatoriamente mas tambeacutem natildeo abalava sua convicccedilatildeo nesta feacute que ldquonatildeo
soacute eacute boa e santa em si mesma mas acima de tudo eacute a uacutenica religiatildeo verdadeirardquo377 Por fim
apontamos neste contexto (verso 2) aquilo que com clareza descreve esta certeza teoloacutegica
ancorada no Apologista que de forma contumaz declara que ldquoNa verdaderdquo378 algo se revelava
e condensava-se nos coraccedilotildees daqueles que o recebiam
Apoacutes descrevermos de maneira introdutoacuteria parte de nossa periacutecope base passamos a
uma abordagem sinteacutetica de uma faceta importantiacutessima de nosso autor para a construccedilatildeo do
restante desta pesquisa Comeccedilamos de imediato a elaborar uma descriccedilatildeo do filoacutesofo Justino
apresentando um resumo de sua jornada no mundo da ldquosabedoriardquo helecircnica descrevendo quais
foram suas principais influecircncias neste meio e quais desiacutegnios esta ascendecircncia deixou em sua
teologia
32 O FILOacuteSOFO JUSTINO
Os acontecimentos relacionados agrave vida de Justino nos direcionam ndash podemos ateacute
mesmo dizer que incontestavelmente nos norteiam ndash para um mesmo ponto de convergecircncia
independentemente da aacuterea ou fase que procuremos abordar sobre esta Desde cedo ateacute o fim
de sua jornada ministerial Justino nos apresentaraacute influecircncias significativas do meio intelectual
ao qual havia pertencido desde sua juventude e ao qual nunca abandonou pelo contraacuterio fez
deste seguimento o ponto principal de irradiaccedilatildeo de sua teologia379 tornando-o necessariamente
uma peccedila-chave para agrave compreensatildeo de suas obras
Este ponto de equiliacutebrio na vida de Justino se daacute principalmente no fato de este ser
um filoacutesofo ao qual podemos catalogar como claacutessico em sua formaccedilatildeo (de origem helecircnica)
377 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 47
378 JUSTINO I Apologia XXVIII 2 grifo nosso
379 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
91
natildeo necessariamente por enquadrar-se ldquono modo de pensar e exprimir os pensamentos que
surgiu especificamente com os gregosrdquo380 mas especialmente na virtude apresentada por sua
filosofia que desde cedo natildeo se pautou por um caraacuteter meramente especulativo sem um fim
praacutetico em si mesma mas sim notabiliza-se pela ldquobusca da sabedoria e da verdaderdquo381 como
estados beneacuteficos disponiacuteveis para serem procurados conhecidos e vivenciados por todos os
homens
O primeiro historiador da Igreja nos comprova tal fato assinalando o claacutessico teor
filosoacutefico existente no Apologista os termos de Euseacutebio muito nos dizem a respeito do
ministeacuterio de Justino
Tambeacutem por este tempo Justino sincero amante da verdadeira filosofia continuava
ainda ocupado em exercitar-se nas doutrinas dos gregos [] Mas sobretudo foi nesta
eacutepoca que floresceu Justino Com estofo de filoacutesofo era embaixador da palavra de
Deus e lutava pela feacute com seus escritos382
A doutrina cristatilde encontrada em Justino ndash sua compreensatildeo ativa sobre o que era o
cristianismo como agrave religiatildeo salviacutefica do verdadeiro e uacutenico Deus aos homens ndash foi recebida
e necessariamente desenvolvida por ele atraveacutes de um filtro ou podemos ateacute mesmo dizer por
uma forma de catalisador Este ensino constituiacutea-se de diversas mateacuterias filosoacuteficas nas quais
a diversidade conceitual e estiliacutestica das muitas escolas sapienciais da eacutepoca foram agregadas
ao experimento (de caraacuteter circunspecto) do Apologista383 Notamos deste modo em muitos
aspectos em particular que Justino foi exercitado a uma postura pragmaacutetica de seu tempo a
qual necessariamente o contingenciou a algumas demandas de sua ordem puacuteblica provenientes
de seu status sociorreligioso Neste aspecto a abordagem de Wachholz nos atualiza e ilumina
sobre este cenaacuterio ele diz
A cultura claacutessica pagatilde incluiacutea obra e pensamento de Platatildeo Aristoacuteteles e dos estoicos
que eram muito admirados Rejeitar tais pensamentos era assumir posiccedilatildeo de
ignoracircncia Para os cristatildeos por outro lado aceitar toda esta carga de cultura poderia
tambeacutem significar concessatildeo ao paganismo e comeccedilo de uma nova idolatria Diante
380 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995 p 21
381 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 278
382 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 3 11 8
383 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
92
desta alternativa somente havia dois caminhos possiacuteveis oposiccedilatildeo radical entre feacute
cristatilde e cultura pagatilde ou postura natildeo tatildeo negativa em relaccedilatildeo agrave cultura pagatilde384
A histoacuteria nos testifica que Justino de maneira evidente foi um baluarte em sua postura
de proclamador e representante da feacute cristatilde mais ainda portou-se de maneira excepcional
(como testificam seus procedimentos) no exerciacutecio de sua crenccedila fosse isso relacionado ao seu
foro iacutentimo (Igreja) ou no puacuteblico (social)
Desta forma eacute interessante e necessaacuterio reconhecer que Justino se apresentaraacute como
uma espeacutecie de precursor entre aqueles que eram oriundos da filosofia e que ldquohabitavamrdquo
especialmente em meio agrave cultura helecircnica385 contudo natildeo era o uacutenico Assim estes (filoacutesofos
convertidos ao cristianismo) passando agora a praticar os novos haacutebitos e costumes (modus
vivendi) recebidos do cristianismo natildeo abandonaram de forma absoluta suas praacuteticas cotidianas
do passado ndash ou poderiacuteamos tambeacutem chamaacute-las de ordinaacuterias ndash as quais eram vivenciadas
dentro de um sistema pedagoacutegico da filosofia por assim dizer Isso ocorreu simplesmente
porque tais accedilotildees natildeo requeriam tal censura devido a sua natildeo contrariedade com a Doctrina
Sanctorum que orientava os cristatildeos386 Obviamente tais disposiccedilotildees eram amplamente revistas
e reformuladas com um vieacutes cristatildeo embora mantendo uma estrutura didaacutetica proacutepria e ateacute
mesmo peculiar387 pois na praacutetica estes novos mestres cristatildeos agora ensinavam ldquoexatamente
como os filoacutesofos mas em conformidade com Cristordquo388
Vale-nos ressaltar ainda que essa postura de adaptaccedilatildeo dos convertidos do paganismo
para o cristianismo se desencadeou em muitos segmentos da realidade social do periacuteodo389
especialmente naqueles que se identificavam com as ciecircncias da eacutepoca Indiscutivelmente
nisto Justino se destacou pois seus ldquoconhecimentos filosoacuteficos eram muito profundosrdquo390
Neste ponto novamente recorremos a um registro de Wachholz que nos descreve com clareza
este processo de identificaccedilatildeo na figura de Justino
384 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 58
385 Alguns pesquisadores apresentam Aristides de Atenas como o primeiro filoacutesofo (Grego) propriamente
convertido ao cristianismo a escrever uma obra apologeacutetica Entretanto faltam evidecircncias mais robustas para
sustentar tal afirmaccedilatildeo Ver INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p
50-51
386 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
387 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991
388 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
389 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997
390 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47
93
Por outro lado houve tambeacutem aqueles que defenderam uma postura ldquoconciliatoacuteriardquo
entre feacute cristatilde e cultura pagatilde Justino (110-165) foi um destes representantes que natildeo
deixou de ser filoacutesofo mas passou a dedicar-se em fazer ldquofilosofia cristatilderdquo abrindo
caminho para que o cristianismo pudesse reclamar tambeacutem para si a cultura claacutessica
apesar de ser cultura pagatilde391
Sendo o registro histoacuterico uma peccedila fundamental na elaboraccedilatildeo e construccedilatildeo
conceitual desta pesquisa entendemos ser emblemaacutetico trazer-se agrave tona alguns registros de
pesquisadores que atestam entre si acometimentos similares isso se daacute quando mencionam
pontos que caracterizam a figura de Justino como um distinto representante da Filosofia
mediante sua penetraccedilatildeo investigaccedilatildeo e conclusatildeo dos fatos algo que era ndash como se viu
anteriormente ndash relevante na busca de respostas junto ao meio sociorreligioso ao qual estava
inserido
Deste modo dando seguimento ao nosso intento de esclarecer historicamente um
pouco mais a respeito deste personagem cristatildeo oriundo da filosofia grega392 eacute que registramos
o seu desenvolvimento a parti das palavras de Walde ldquoJustino continuou usando a capa que o
identificava como filoacutesofo e ensinou estudantes em Eacutefeso e depois em Romardquo393 O relato ainda
se estende sobre a pesquisa de Walde poreacutem agora registrando o pensamento de Schaff este
diz ldquoEle havia adquirido cultura claacutessica e filosoacutefica consideraacutevel antes de sua conversatildeo e
entatildeo a fez ficar subordinada a defesa da feacuterdquo394 Ainda sobre esta esteira agregamos outras duas
elaboraccedilotildees A primeira estaacute no trabalho de Xavier que se baseia no pensamento de Fluck E
somado a ela encaixamos a siacutentese de Wachholz sobre Justino Ambos convencionam ideias
similares quando retratam o Apologista e por consequecircncia acabam por se moverem
metodologicamente na mesma direccedilatildeo
Em sua caminhada cristatilde ensinou estudantes em Eacutefeso e chegou a Roma em 150 dC
onde fundou uma escola filosoacutefica debatendo com natildeo-cristatildeos tanto pagatildeos quanto
judeus ou hereges em defesa do cristianismo Para Justino o cristianismo era a
391 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 59
392 Eacute importante que se diga que a Filosofia (a qual no acircmbito do conceito moderno eacute entendida como uma ciecircncia
da aacuterea de estudos Humanos) permaneceu completamente associada a consciecircncia de Justino durante todo o
periacuteodo de sua atuaccedilatildeo teoloacutegica Partindo-se do fato de que a vida de Justino se encerrou no martiacuterio podemos
concluir que de sua conversatildeo ateacute sua morte nunca houve um ldquoJustinordquo que tambeacutem natildeo fosse um filoacutesofo Ver
HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29-30
393 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 1
394 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 715
apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 1
94
ldquoverdadeira filosofiardquo sendo que os cristatildeos eram ldquoos autecircnticos herdeiros da
civilizaccedilatildeo greco-romanardquo395
Tornou-se cristatildeo aos 25 anos de idade apoacutes ter estudado filosofia o que o levou a
fazer uma siacutentese entre teologia e filosofia afirmando que a feacute cristatilde eacute a forma plena
de toda a filosofia Em sua escola em Roma ensinava entatildeo a ldquoverdadeira filosofiardquo
Boa parte de seu labor consistia em descobrir e explicar as relaccedilotildees entre o
cristianismo e a sabedoria claacutessica396
Finalizando esta seacuterie de registros cabe-nos ainda citar algumas relevantes
argumentaccedilotildees A primeira condicionada por Gonzaacutelez nos traz uma definiccedilatildeo da histoacuteria de
Justino em questotildees junto a filosofia ele diz ldquoAo se converter ao cristianismo Justino natildeo
deixou de ser filoacutesofo mas dedicou-se a fazer filosofia cristatilde e boa parte dessa filosofia
consistia em descobrir e explicar as relaccedilotildees entre o cristianismo e a sabedoria claacutessicardquo397 A
segunda elaborada por Daniel-Rops diz ldquoFoi uma fase importante para a histoacuteria do
pensamento cristatildeo que com Justino passou a ser tomado a seacuteriordquo398 Esta ecircnfase somada ao
primeiro apontamento nos afirma uma importante contribuiccedilatildeo para o meio Patriacutestico pois
trabalha com paracircmetros qualitativos referentes agrave relevacircncia da figura de Justino como
articulador filosoacutefico e sucessivamente no meio teoloacutegico como um exegeta399 nos levando a
considerar deste modo que a formaccedilatildeo dogmaacutetica em seu sentido histoacuterico passa
necessariamente por afirmaccedilotildees como esta
Portanto eacute impossiacutevel caracterizar Justino como um pensador e teoacutelogo fora da
filosofia claacutessica pois o personagem que veio a fundar escolas filosoacuteficas cristatildes (primeiro em
Eacutefeso e depois em Roma)400 deve ser compreendido como um autecircntico ldquoamante da sabedoriardquo
Neste quesito distintivo no caso de Justino em especial um agravante modal deve aqui ser
aplicado sendo que esta caracteriacutestica de caraacuteter peculiar eacute o proacuteprio processo de conversaccedilatildeo
ao cristianismo que em seu entendimento ldquoo transformou em um verdadeiro filoacutesofordquo401 arauto
395 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2009 p 32 apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da
Feacute Cristatilde 2014 p 15 grifo nosso
396 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 59 grifo nosso
397 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 91
398 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
399 Ver HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 31-32
400 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
401 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 28
95
da verdadeira sabedoria ndash peccedila final a qual Justino possivelmente exigiria como um
complemento fundamental na elaboraccedilatildeo dessa descriccedilatildeo
Dando seguimento agrave nossa construccedilatildeo ainda nos eacute necessaacuterio examinar duas questotildees
relevantes junto a postura filosoacutefica de nosso autor A primeira estaacute relacionada aos seus
pressupostos na Filosofia como aacuterea de estudo propriamente na qual o estoicismo e o
platonismo se destacam no cenaacuterio em seguida naquilo que possivelmente se tornou a principal
elaboraccedilatildeo teoloacutegica deixada como teoria por Justino a sua concepccedilatildeo do Logos Eterno
321 Estoicismo e Platonismo em Justino
Quando pesquisamos a respeito de quais seriam as principais influecircncias da filosofia
grega que poderiacuteamos encontrar em Justino logo nos saltam aos olhos duas linhas majoritaacuterias
do pensamento histoacuterico filosoacutefico e que tiveram fundamental importacircncia na formaccedilatildeo
intelectual deste Pai da Igreja Desta forma torna-se indispensaacutevel falar do estoicismo e do
meacutedio platonismo402 como elementos filosoacuteficos na vida de Justino pois a anaacutelise dessas
escolas sapienciais junto agrave construccedilatildeo de nosso objetivo de pesquisa apresenta-se como
fundamental para a compreensatildeo do cristianismo apresentado por Justino403
Nossa intenccedilatildeo nesta construccedilatildeo natildeo eacute haacute de se estabelecer um relato minucioso sobre
os aportes princiacutepios e valores filosoacuteficos de Zenon de Ciacutecio (fundador do estoicismo) nem
mesmo dos seguidores ideoloacutegicos do legado de Platatildeo os quais sustentavam no presente
periacuteodo a fase denominada de meacutedio platonismo Pelo contraacuterio visamos apenas retratar de
maneira sinteacutetica a influecircncia dessas escolas no pensamento apologeacutetico do Seacuteculo II tendo a
pessoa de Justino como alvo central e em alguns momentos ateacute mesmo exclusivo neste exame
O advento do Seacuteculo II trouxe consigo um contato mais amplo e consequentemente
tambeacutem mais vantajoso das correntes filosoacuteficas gregas para com o ocidente de uma maneira
em geral Influenciada especialmente pela administraccedilatildeo e organizaccedilatildeo do Impeacuterio Romano agrave
discussatildeo sobre a importacircncia e a manutenccedilatildeo dessas identidades intelectuais (escolas
filosoacuteficas) tornou-se muito ativa especialmente para o meio aristocraacutetico de entatildeo404 Sendo
402 O meacutedio platonismo teve seu iniacutecio no Seacuteculo I aC com Antioco de Ascalona e vai ateacute aproximadamente o
Seacuteculo II dC Entre os seus principais representantes encontram-se os nomes de Filo de Alexandria Apuleio e do
bioacutegrafo Plutarco Este recorte temporal eacute um dos pontos que justifica a nossa opccedilatildeo pelo uso do termo meacutedio
platonismo uma vez que coincide com o periacuteodo de Justino Ver EMILSSON Neo-Platonism 1999 p 358
AUDI The Cambridge Dictionary of Philosophy 1999 p 567 apud SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II
dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 123
403 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
404 CARCOPINO Roma no Apogeu do Impeacuterio 1990
96
o cristianismo cada vez mais presente na estrutura sociorreligiosa do Impeacuterio natildeo demorou
para se considerar ldquotambeacutem os leitores natildeo-cristatildeosrdquo405 como parte do exame teoloacutegico dos
Pais No entanto os mestres e principais arautos dessas claacutessicas estruturas filosoacuteficas eram
pagatildeos em seu modo de vida espiritual o que ocasionou ndash quase automaticamente ndash uma
investidura por parte dos Pais (remodelaccedilatildeo cristatilde) das concepccedilotildees filosoacuteficas de alguns
autores claacutessicos do paganismo Como consequecircncia desse processo o periacuteodo dos Pais
Apologistas se confirma e se engrandece de maneira significativa na histoacuteria cristatilde devido ao
seu importante conteuacutedo teoloacutegico406 desenvolvido a partir dessa adaptaccedilatildeoremodelaccedilatildeo
Voltando precisamente para a pessoa de Justino vemos a partir da pesquisa de Walde
ndash o qual soma seu pensamento a Falls ndash o estabelecimento de uma expressiva comunicaccedilatildeo
entre Justino e as escolas filosoacuteficas apresentadas Walde escreve ldquoComo jovem adulto
mostrou interesse por filosofia e estudou primeiramente estoicismo e platonismo Justino
buscava a Deus que eacute a meta da filosofia de Platatildeo diziardquo407 Este retrato dos fatos nos
demonstra com clareza que o diaacutelogo do Apologista com as referidas escolas filosoacuteficas
norteou sua formaccedilatildeo intelectual de forma significativa
A primeira experiecircncia de fato com a filosofia grega e a qual podemos afirmar ter
deixado marcas consideraacuteveis na vida de Justino foi com a escola estoica Em sua busca da
autecircntica sabedoria Justino comeccedilou a frequentar as aulas de um mestre estoico408
provavelmente ainda em sua cidade natal Se tratando de sua experiecircncia com o estoicismo em
particular o Apologista nos oferece um relato autobiograacutefico no qual informa detalhes
interessantes referentes a sua jornada pela Verdade ldquoEu mesmo no iniacutecio desejando tambeacutem
reunir-me com algum deles (mestres filoacutesofos) coloquei-me nas matildeos de um estoico e passei
bastante tempo com elerdquo409
O interessante nessa narraccedilatildeo eacute que o expressivo contato de Justino com o estoicismo
natildeo surtiu nele o beneacutefico resultado que Justino parecia esperar Efetivamente Justino afirma
em seu Diaacutelogo com Trifatildeo ldquoTodavia percebi que nada me adiantava para o conhecimento de
Deus pois nem sequer ele sabia nada nem dizia que esse conhecimento era necessaacuterio Entatildeo
405 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 140
406 Ver DROBNER Manual de Patrologia 2008 p76-80
407 FALLS The Fathers of the Church 1948 p 151 apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p
1
408 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
409 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 3a grifo nosso
97
separei dele e dirigi-me a outrordquo410 Kelly inclusive salienta mediante a auto narraccedilatildeo de
Justino que parece ter havido um esforccedilo da parte deste em se apropriar ndash ou melhor se
aprofundar ndash das maacuteximas da doutrina estoica Isso devido especialmente ao seu ldquoelevado
padratildeo moral ainda que um tanto impessoalrdquo411 mas com um forte apelo agrave posturas e posiccedilotildees
que estabeleciam um padratildeo moralmente bom para seus praticantes preceitos que eram de
alguma maneira dogmatizados pela doutrina estoica na tentativa de se alcanccedilar ldquouma norma
para os humanos seguiremrdquo412 Dessa forma os praticantes de tal sistema chegavam aquilo que
poderiacuteamos (forccedilosamente) definir como o verdadeiro conhecimento do ldquoSerrdquo e da ldquoEsferardquo
divina pois a ldquovida moral eacute vista como assimilaccedilatildeo a Deus e como imitaccedilatildeo de Deusrdquo413
Contudo apoacutes um periacuteodo de deferecircncia a doutrina estoica ldquopareceu-lhe rudimentar e de uma
metafisica falazrdquo414 aleacutem do sistema natildeo conseguir ldquoesclarececirc-lo a respeito de Deusrdquo415 ou
seja o estoicismo natildeo pode oferecer as condiccedilotildees necessaacuterias para suprir os vaacutecuos e demandas
existecircncias de Justino
Entretanto o estoicismo como doutrina filosoacutefica teve uma significativa relevacircncia na
formaccedilatildeo de Justino como tambeacutem na construccedilatildeo teoloacutegica dos demais Pais Apologistas Na
anaacutelise desse cenaacuterio houve ateacute mesmo quem afirmasse que caso natildeo houvesse o encontro
entre o Poacutertico416 e a Igreja natildeo teria existido uma linguagem inteligiacutevel por parte da doutrina
cristatilde para alguns ambientes gentiacutelicos ou seja o ldquocristianismo seria incompreensiacutevelrdquo417 para
alguns segmentos que formavam o quadro sociorreligioso agrave eacutepoca Teses como essa levantam
questotildees pertinentes No caso em exame parece-nos que tal afirmaccedilatildeo havia se desenvolvido
como um marco referencial junto agrave Era Patriacutestica citada explicando tambeacutem deste modo o que
permitiu que esse conceito teoloacutegico-filosoacutefico viesse a se construir Neste processo as relaccedilotildees
de conformidade entre cristianismo e estoicismo foram absolutamente decisivas sendo o campo
410 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 3b
411 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 13
412 ALGRA In Teologia estoacuteica Os Estoacuteicos 2006 p 189
413 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 132
414 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 278
415 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 52
416 Poacutertico Ornado (ou Pintado) grego Stoagrave Poikiacutele Local na cidade de Atenas onde o filoacutesofo grego Zenon
(fundador do estoicismo) ensinava a seus disciacutepulos Ver SEDLEY In A Escola de Zenon a Aacuterio Diacutedimo Os
Estoacuteicos 2006 p 7-13
417 POHLENZ La Stoa storia di un movimento spirituale 1967 p 397 apud PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia
Patriacutestica 1999 p 131
98
moral junto agrave formaccedilatildeo dogmaacutetica cristatilde ndash poderiacuteamos ateacute mesmo chamaacute-lo de eacutetico ndash decisivo
nessa correlaccedilatildeo (modelagem) de valores
Entre os fatos desse paralelismo ideoloacutegico vemos o otimismo religioso expressado
pelo estoicismo que encontrou de forma geral na consciecircncia dos Pais (ateacute o Seacuteculo III) uma
beneacutevola e favoraacutevel proximidade com a Divindade onipotente e onipresente a qual os
Apologistas reconheciam especialmente na figura de Deus Pai e em sua traduccedilatildeo do Ser
absoluto cenaacuterio que agora expressava-se inclusive na manifestaccedilatildeo Deste (Deus) em uma
relaccedilatildeo de perfeita imanecircncia com seus eleitos Minuacutecio Feacutelix (Apologista do final do Seacuteculo
II) retrata com clareza esse conceito gerado no meio Apologista fruto da relaccedilatildeo destes com os
ditames estoicos ldquonatildeo soacute estaacute perto de noacutes como tambeacutem dentro de noacutes [] natildeo soacute vivemos
sob seu olhar como tambeacutem em seu seiordquo418
Neste contexto ainda vale-nos identificar uma caracteriacutestica peculiar da relaccedilatildeo de
Justino com o estoicismo Trata-se das interpretaccedilotildees escrituriacutesticas desenvolvidas por meio de
meacutetodos alegoacutericos Essa metodologia jaacute estava em uso no meio cristatildeo e jaacute antes era
amplamente ldquodifundida tambeacutem entre os filoacutesofos gregos sobretudo os estoicos com o objetivo
de fazer enquadrarem-se as tradicionais faacutebulas mitoloacutegicas com as suas ideiasrdquo419 Justino se
torna ldquoceacutelebrerdquo no meio Patriacutestico tambeacutem por sua exegese atestando isso quando passa a
unificar textos referentes a economia da Antiga e Nova Alianccedilas fazendo uso em muitos
momentos da teacutecnica citada
Desta forma mormente veremos na construccedilatildeo teoloacutegica de Justino que se encontram
traccedilos desse sistema da filosofia grega que se fizeram notoacuterios em seu registro apologeacutetico
Santos ao citar Staniforth retrata com precisatildeo essa inspiraccedilatildeo e sua contribuiccedilatildeo junto ao
trabalho do Apologista Aleacutem disto consegue descrever com clareza e harmonia agrave postura de
Justino referente sua interpretaccedilatildeo das bases substanciais do estoicismo Santos assim registra
essa relaccedilatildeo
Segundo Staniforth os elementos que predominavam no cristianismo antes de seu
contato com o estoicismo eram os morais e espirituais jaacute os intelectuais eram
subordinados a estes Ele acrescenta poreacutem que ldquoquando a mensagem se espalhou
para aleacutem dos confins da Palestina e as suas implicaccedilotildees foram assimiladas pelos
pensadores de outras terras fez-se sentir a necessidade de concepccedilotildees mais exatas da
verdaderdquo (STANIFORTH 2002 p 20) [] Entre outras coisas citadas por Staniforth
estatildeo ainda a noccedilatildeo de unidade divina a ideia de que os homens satildeo filhos de Deus
e participam da sua natureza e procuram fazer sempre o bem (STANIFORTH 2002
418 MINUacuteCIO FEacuteLIX Otaacutevio 32-33
419 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1146
99
p 22) Justino traz uma argumentaccedilatildeo inversa Segundo ele os imitadores satildeo os
demais povos ldquonatildeo somos noacutes que professamos opiniotildees iguais aos outros e sim
todos por imitaccedilatildeo repetem as nossas doutrinas (JUSTINO I Apologia LX 10)rdquo420
Sendo jaacute anteriormente caracterizado por meio do relato da vida de Justino a elementar
decepccedilatildeo de Justino pelo estoicismo como doutrina a ser seguida levou-o a uma nova fase na
sua busca do ldquoideal da sabedoria perfeitardquo421 Assim seu intento redirecionou-se para outras
esferas da filosofia grega passando por algumas experiecircncias variadas por meio de suas
relaccedilotildees com outras escolas sistemas e mestres Neste cenaacuterio naquilo que possuiacutemos relatos
confiaacuteveis Justino chegou a conviver com ldquoum peripateacutetico e um pitagoacutericordquo422 sempre
buscando alcanccedilar seu intento maacuteximo como amante do saber
Por fim a escola platocircnica tornou-se sua uacuteltima instacircncia de apelo nessa busca intensa
pelo saber supremo que inclusive ele imagina ter alcanccedilado ldquona filosofia (meacutedio) platocircnicardquo423
fazendo desse caso em especiacutefico (platonismo) o encontro ldquomais positivordquo424 Neste ponto
compreendemos que o desenvolvimento do pensamento teoloacutegico que encontramos
futuramente estabelecido em Justino eacute o que o constituiu categoricamente como um filoacutesofo
cristatildeo e foi principalmente detalhado pela influecircncia desta corrente filosoacutefica (platonismo)
mais do que por sua experiecircncia com os demais sistemas O ponto de vista de Xavier colabora
com nossa anaacutelise transmitindo a mesma ideia
A procura incansaacutevel pela verdade levou Justino a se tornar um distinto filoacutesofo do
pensamento grego adotando principalmente a filosofia de Platatildeo que para ele tinha
muita semelhanccedila com os ensinamentos judaicos no que diz respeito agrave Palavra de
Deus (Logos Verbo)425
Eacute portanto necessaacuterio fazer ainda que rapidamente algumas consideraccedilotildees geneacutericas
referentes agrave influecircncia desse importante sistema filosoacutefico (platonismo) no contexto
sociorreligioso ao qual Justino estava inserido O chamado meacutedio platonismo teve singular
420 STANIFORTH In Introduccedilatildeo Meditaccedilotildees 2002 apud SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma
Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 119 122
421 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 25
422 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 27
423 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 83
424 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 119
425 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 15
100
influecircncia junto ao meio teoloacutegico cristatildeo em meados do Seacuteculo II Sua importacircncia em
questotildees como a metafiacutesica por exemplo ldquodeterminou profundamente a compreensatildeo
teoloacutegicardquo426 dos Pais Apologistas Ainda neste cenaacuterio eacute necessaacuterio afirmar que na eacutepoca o
pensamento de Platatildeo estruturado pela manutenccedilatildeo de seus seguidores (meacutedio platonismo)
plasmou-se quase que na totalidade dos seguimentos ditos intelectuais do periacuteodo ocasionando
um expliacutecito e permanente ldquodesenvolvimento do saber filosoacutefico e portanto da cultura
ocidentalrdquo427 a qual teve sua formaccedilatildeo por meio da mecanicidade da Filosofia propriamente
reconhecida como cristatilde em sua formaccedilatildeo
Voltando especificamente para nosso autor retratamos com certa facilidade ndash por se
considerar a questatildeo como um ponto paciacutefico referente agrave figura de Justino ndash sua ampla e notoacuteria
relaccedilatildeo com os ensinamentos baseados na doutrina de Platatildeo Insuelas nos diz que Justino
possivelmente procurou o sistema platocircnico porque este ldquogozava naquele tempo de grande
reputaccedilatildeo e era seguido por homem de valorrdquo428 Fato eacute que Justino progrediu de maneira
consideravelmente raacutepida na doutrina pois ldquoesperava que na filosofia de Platatildeordquo429 veria
imediatamente a Deus questatildeo (enxergar agrave Divindade) que nos indica uma praacutetica
contemplativa que provavelmente levou o jovem filoacutesofo a peregrinar isoladamente ateacute a praia
onde em algum momento ocorreu sua conversatildeo ao cristianismo Utilizamos ainda a ecircnfase
dada por Daniel-Rops a este caso o qual salienta que nesse acesso para a doutrina platocircnica
Justino deu o ldquopasso decisivo levando-o a ver que o uacutenico fim verdadeiro da filosofia era o
conhecimento de Deusrdquo430
Outra descriccedilatildeo que se soma a esta tese nasce das palavras do proacuteprio Justino na sua
I Apologia Estas construccedilotildees do Apologista ganham eficaacutecia e nitidez quando retratadas por
Euseacutebio em seu relato histoacuterico Elas apresentam um Justino intreacutepido e resoluto movendo-se
na eficaacutecia daquilo que encontrou em sua jornada tornando-se desta maneira em um ldquosincero
amante da verdadeira filosofiardquo431 Quanto ao platonismo descrito pelo autor em sua
experiecircncia Euseacutebio escreve
426 SANTOS Platonismo e cristianismo Irreconciabilidade Radical ou Elementos Comuns 2003 p 335
427 SEVERINO A Filosofia Antiga 1984 p 81
428 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 52
429 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
430 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 278
431 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 3 grifo nosso
101
Na mesma obra demonstra que sua conversatildeo da filosofia grega agrave religiatildeo natildeo se fez
sem razatildeo mas com juiacutezo escreve o seguinte ldquoporque tambeacutem eu mesmo que me
comprazia nos ensinamentos de Platatildeo ao ouvir as caluacutenias contra os cristatildeos e vecirc-
los irem intreacutepidos para a morte e para tudo que eacute terriacutevel comecei a pensar que natildeo
era possiacutevel que aqueles homens vivessem na maldade e no amor aos prazeresrdquo432
Seguindo no mesmo contexto vemos que Justino no capiacutetulo II de seu Diaacutelogo com
Trifatildeo agrega agrave sua biografia um relato exponencial no qual nos descreve um encontro com um
filoacutesofo platocircnico na cidade de Flaacutevia Neaacutepolis Justino como vimos acima foi procurar este
mestre a fim de conferenciarem sobre temas de relevacircncia para o Apologista Assim havendo
ldquoaprendido bastante do platonismordquo433 Justino envolto de uma acentuada euforia ateacute mesmo
presumiu (erroneamente) haver obtido um distinto conhecimento de superior e incomparaacutevel
qualidade todavia por fim salientou uma conclusatildeo ambiacutegua e de aspecto desfalecente sobre
esta experiecircncia quando se referiu as coisas que em determinado momento lhe pareciam
absolutamente certas e vivazes Ele nos afirma foi ldquotornado saacutebio num aacutetimo e minha estupidez
fazia-me esperar que de um momento para outro contemplaria o proacuteprio Deusrdquo434
No entanto cabe-nos apontar que mesmo diante desta pessimista afirmaccedilatildeo por parte
de Justino o platonismo de sua eacutepoca ldquotinha grande forccedila teiacutestardquo435 aleacutem de apresentar um
ldquoalto tocircnus moralrdquo436 expressatildeo que posteriormente em seu desenvolvimento teoloacutegico passou
a comprovar o cristianismo como o conjunto doutrinal por excelecircncia Sendo essa conclusatildeo
obtida na consequecircncia do emprego de sua metodologia dialeacutetica como teoria do conhecimento
ndash fato (dialeacutetica platocircnica) que jaacute abordamos anteriormente
No que se refere ao raciociacutenio de Justino que encontramos especificamente baseado
no ideaacuterio platocircnico notamos com certa facilidade que este conjunto de ideias o levou a
desenvolver em seus tratados (I e II Apologias e Diaacutelogo com Trifatildeo) algumas referecircncias que
se atestam como elementos de comparaccedilatildeo entre a filosofia grega e a feacute cristatilde Neste periacuteodo
(Seacuteculo II) o meio filosoacutefico grego jaacute registrava haacute algum tempo a noccedilatildeo de um Ser ou Estado
supremo437 ldquoque estaacute acima de todos os seres e do qual todos derivam sua existecircnciardquo438
432 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 5
433 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 119
434 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6
435 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
436 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
437 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994
438 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 16
102
Sabemos baseados em amplas evidecircncias textuais que a vida aleacutem da morte fiacutesica jaacute era
ensinada ou ateacute mesmo garantida por Soacutecrates439 No pensamento de Platatildeo esta teoria eacute
estruturada filosoficamente como uma realidade diferente mas igualmente atemporal a qual
existe aleacutem eou fora deste mundo440
Em Platatildeo detectamos um referencial que nos salienta sobre a expressividade agrave sua
ldquoexposiccedilatildeo da separaccedilatildeo e diferenccedila entre o mundo sensiacutevel (sentidos) e o mundo inteligiacutevel
(intelecto)rdquo441 fazendo com que a percepccedilatildeo humana seja uma espeacutecie de imagem da
realidade442 mas natildeo necessariamente a realidade em si Deste modo Platatildeo automaticamente
condicionava seus leitoresouvintes a compreender que aquilo que estava oculto (natildeo visiacutevel)
deveria pelo encontro com a pura razatildeo voltar ao seu estado inicial ou seja o Uno mesmo
que Platatildeo natildeo considerasse a ldquoForma do Bem ou o Um como Deus no sentido comum da
palavrardquo443 A tese do retorno ao Uno eacute uma performance originalmente desenvolvida na fase
denominada de meacutedio platonismo444
Justino nos demonstra com clareza sua relativa conformidade com essa ideia que de
uma maneira orientativa procurava dar coesatildeo e expressividade agrave realidade perceptiacutevel do
homem em encontrar o que era verdadeiro definido como o ldquonatildeo-escondidordquo445 para o espiacuterito
humano Poreacutem tambeacutem nos apresenta de forma incondicional uma clara distinccedilatildeo substancial
a este conceito segundo o qual ldquoo centro da esperanccedila cristatilde natildeo eacute a imortalidade da alma mas
a ressurreiccedilatildeo do corpordquo446 Corroborando a esta proposiccedilatildeo encontramos a posiccedilatildeo de
Wachholz que organiza o referido cenaacuterio em uma descriccedilatildeo cronoloacutegica embasada no
desenvolvimento do pensamento (dogma) cristatildeo do periacuteodo
Assim por exemplo percebia que tambeacutem Soacutecrates e Platatildeo afirmavam que existia
vida aleacutem da morte fiacutesica Platatildeo afirmava que este mundo natildeo esgota toda a realidade
mas que existe outro mundo de realidades eternas Neste sentido Justino concorda
439 A discussatildeo sobre a imortalidade da alma ndash a uacuteltima de que Soacutecrates participa no dia de sua morte ndash eacute narrada
na obra intitulada Feacutedon de Platatildeo Ver MALTA In Nota 103 Apologia de Soacutecrates 2008 p 97
440 SEVERINO A Filosofia Antiga 1984
441 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994 p 189 grifo nosso
442 Um exemplo claacutessico dessa ideia se encontra no Livro VII de sua obra intitulada A Repuacuteblica em uma alegoria
conhecida como o Mito da Caverna Ver PLATAtildeO A Repuacuteblica VII 514a-541b
443 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 12
444 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
445 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994 p 197
446 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 16
103
pois afirma que o centro da esperanccedila cristatilde natildeo estaacute na imortalidade da alma mas na
ressurreiccedilatildeo do corpo447
Amparado nesse conceito filosoacutefico Justino passa a desdobrar sua concepccedilatildeo sobre a
ideia do estado de um ldquomundo inteligiacutevelrdquo que passa a ser compreendido como a uacutenica
condiccedilatildeo pela qual as coisas satildeo eternas imutaacuteveis e incorruptiacuteveis constituindo deste modo
sua posiccedilatildeo sobre o que seria o proacuteprio ldquomundo de Deusrdquo possiacutevel de ser alcanccedilado Na visatildeo
platocircnica este mundo ideal soacute pode ser alcanccedilado pelo intelecto humano quando este eacute elevado
a seu patamar maacuteximo sendo isso possiacutevel somente por meio do auxiacutelio da filosofia Para
Justino essa filosofia soacute pode ser o cristianismo pois este foi revelado como a uacutenica Verdade
oferecida aos homens
Desta forma para Justino soacute mediante o cristianismo a concepccedilatildeo platocircnica de
alcanccedilar o mundo real torna-se possiacutevel No final da apresentaccedilatildeo de sua jornada entre as
escolas filosoacuteficas Justino nos relata que aquilo que fez com que ele se decidisse pela escola
platocircnica ndash entendendo que esta seria a melhor alternativa para desenvolver sua mente (razatildeo)
na tentativa de receber a verdadeira sapiecircncia ndash fosse agrave profunda admiraccedilatildeo inicial que ele
encontrou em alguns pontos que distinguiam a doutrina das demais ldquoprincipalmente com a
consideraccedilatildeo do incorpoacutereordquo448 mas tambeacutem pela referente ldquocontemplaccedilatildeo das ideiasrdquo449 as
quais ele afirma ldquodava asas agrave minha inteligecircnciardquo450
Nesta jornada de conhecimento Justino salienta que compreendia e admirava o
objetivo desse ensino que se demonstrava estaacutevel e possuiacutea intenccedilotildees muito nobres para agrave
natureza humana a ponto de afirmar que ldquoCom efeito esta eacute a meta da filosofia de Platatildeordquo451
Jaacute como cristatildeo Justino esclarece para o judeu Trifatildeo que ldquoVemos e estamos convencidos de
que por meio do nome de Jesus Cristo crucificado as pessoas se afastam da idolatria e de toda
iniquidade para aproximar-se de Deusrdquo452 ou seja somente um caminho leva definitivamente
a verdadeira filosofia e este caminho natildeo eacute a filosofia de Platatildeo
Apoacutes este raacutepido mas importante embasamento sobre a formaccedilatildeo filosoacutefica de nosso
autor ainda eacute necessaacuteria uma descriccedilatildeo final sobre os elementos filosoacuteficos estruturantes
447 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 59-60
448 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6a
449 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6a
450 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6a
451 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6b
452 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo XI 4
104
encontrados em Justino Entre estes insumos um se destaca consideravelmente como fruto da
ampla influecircncia deixada pelo predomiacutenio de suas bases filosoacuteficas (estoicismo e platonismo)
Desta forma o Logos em Justino seraacute o ponto central de anaacutelise a seguir
322 O Logos em Justino
Este ponto eacute fundamental para nossa descriccedilatildeo do pensamento de Justino como um Pai
Apologista Mesmo que nos falte uma sistematizaccedilatildeo sobre o tema Logos tanto em Justino
como tambeacutem nos demais representantes de sua Era Patriacutestica453 o Logos eacute um conteuacutedo
teoloacutegico fundamental para a histoacuteria do cristianismo e natildeo aparece com suficiente clareza em
nenhum outro escritor cristatildeo anterior a Justino que acaba por se evidenciar neste assunto de
forma muito significativa
Jaacute no Seacuteculo I a doutrina referente agrave PalavraVerbo divino era conhecida pelo
judaiacutesmo em sua forma posterior devido agrave grande influecircncia do filoacutesofo judeu Filo de
Alexandria O estoicismo como doutrina filosoacutefica tambeacutem foi muito atuante na elaboraccedilatildeo
do termo Logos como um conceito paralelo entre uma plena imanecircncia e uma total expressatildeo
do que eacute superior eou eterno454 O Evangelho de Joatildeo em seu proacutelogo (Joatildeo 11-5) nos oferece
o termo de forma sublime mesmo que o Logos em Joatildeo pareccedila ter sido influenciado por
Heraacuteclito455 Quanto agrave Patriacutestica em sua fase inicial (Pais Apostoacutelicos) Inaacutecio Bispo de
Antioquia parece ser a melhor opccedilatildeo de uma leitura consistente sobre a ideia de a Palavra
Divina preexistente ter sido anunciada antecipadamente aos homens das geraccedilotildees passadas
ldquoInspiraram-se (os profetas) em Sua graccedila a fim de que os increacutedulos se convencessem
plenamente que haacute um soacute Deus a manifestar-se por Jesus Cristo Seu Filho Sua palavra saiacuteda
do silecircncio que em tudo agradou Aquele que O enviourdquo456
Poreacutem vale-nos novamente frisar que aqui como em outras partes desta pesquisa natildeo
procuraremos ser exaustivos muito menos conclusivos especialmente tratando-se de uma
anaacutelise que possui uma conjuntura tatildeo extensa mas de maneira sucinta desenvolveremos uma
siacutentese que visa ser orientativa nesta definiccedilatildeo sobre o legado teoloacutegico do Apologista Justino
A relaccedilatildeo de Justino com esta temaacutetica filosoacutefica (Logos) foi ampla e profunda Eacute
possiacutevel condicionarmos jaacute a partir de Justino uma realidade conclusiva para o tema naquilo
453 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
454 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
455 TORRES A retoacuterica joanina do Logos 2016
456 INAacuteCIO Epiacutestola aos Magneacutesios VIII 2 grifo nosso
105
que ele se refere a revelaccedilatildeo cristatilde esta conclusatildeo estaacute na ldquoconcepccedilatildeo justiacutenica do Logos como
entidade divina intermediaacuteria entre Deus e o mundordquo457 Isso gerou uma nova perspectiva a
qual Justino com certa originalidade conceitual passa a definir o Logos como um agente que
jaacute orientava a humanidade antes mesmo de Sua encarnaccedilatildeo desejando por meio da ldquoIgreja com
a sua accedilatildeo missionaacuteriardquo458 tornar participantes todos os homens que por meio da feacute em Cristo
poderatildeo gozar da esperanccedila do cumprimento profeacutetico do segundo advento do Salvador
Em seu trabalho apologeacutetico Justino estabeleceu uma conjunccedilatildeo entre proposiccedilotildees
separadas mas que se demonstraram de uma mesma espeacutecie Esse ato invariaacutevel conectou de
maneira significativa o Logos459 da filosofia grega ndash aqui expresso em uma de suas definiccedilotildees
temporais do meio filosoacutefico sendo apresentado como o ldquoPrinciacutepio platocircnico mediador entre o
mundo sensiacutevel e o inteligiacutevelrdquo460 ndash com o Logos do Evangelho de Joatildeo ou poderiacuteamos dizer
da interpretaccedilatildeo feita pelo meio apologeacutetico cristatildeo do Seacuteculo II Tratando ainda um pouco mais
sobre o cenaacuterio histoacuterico envolvendo a realidade conceitual sobre o Logos Walde nos indica
este princiacutepio conectivo quando cita Schaff em um exame sobre esta teoria Vemos em sua
descriccedilatildeo que o historiador
Philip Schaff descreve o pensamento desta maneira O Logos eacute a razatildeo preacute-existente
absoluta pessoal e Cristo eacute a encarnaccedilatildeo dele o Logos encarnado Qualquer coisa
racional eacute cristatilde e qualquer coisa cristatilde eacute racional Os Logos dotaram a todos os
homens da razatildeo e liberdade que natildeo estavam perdidos desde a queda Ele espalhou
sementes da verdade antes de sua encarnaccedilatildeo natildeo soacute entre os judeus mas tambeacutem
entre os gregos e baacuterbaros sobretudo entre os filoacutesofos e poetas que satildeo os profetas
pagatildeos Os que viveram razoavelmente e virtuosamente em obediecircncia a esta luz
preparatoacuteria foram de fato cristatildeos ainda que natildeo no nome ao contraacuterio os que
viveram irracionalmente eram inimigos de Cristo Soacutecrates foi um cristatildeo assim como
Abraatildeo ainda que ele natildeo o conheceu461
457 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1147
458 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1148
459 O conceito de Logos derivado da filosofia contemporacircnea especialmente do estoicismo com sua doutrina da
razatildeo universal foi usado pelos Apologistas para explicar como Cristo se relacionava com Deus Pai Algo do
Logos diziam encontra-se em todos os homens Ver HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 23
460 Logos (grego loacutegograves) Substantivo masculino de dois nuacutemeros Significa 1 Palavra 2 Discurso 3 Linguagem
4 Estudo 5 Teoria Significado em aacutereas proacuteprias 1 Filosofia Razatildeo ou princiacutepio da inteligibilidade 2
Filosofia Princiacutepio platocircnico mediador entre o mundo sensiacutevel e o inteligiacutevel 3 Filosofia Forccedila divina ou
criadora que eacute organizadora do mundo 1 Teologia Cristo ou o Verbo de Deus segunda pessoa da Trindade Ver
Dicionaacuterio Priberam da Liacutengua Portuguesa ltDisponiacutevel em httpsdicionariopriberamorglogosgt Acesso em
27 de fev 2019
461 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 723
apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
106
Esta ideia por assim dizer protagonizou aquilo que possivelmente foi o primeiro
encontro consistente entre filosofia e teologia na Era atual (dC) O conjunto deste exerciacutecio
que vemos pouco tempo depois jaacute constituiacutedo na escola de Alexandria (aproximadamente 50
anos) sob a preeminecircncia de Clemente (Bispo de Alexandria)462 continuou a evoluir no
decorrer dos seacuteculos e encontrou seu aacutepice no movimento Escolaacutestico da Idade Meacutedia463
Contudo parece-nos que a funccedilatildeo do Logos propriamente empregado dentro da realidade
teoloacutegica cristatilde originalmente foi de alguma maneira semeada por Justino
Ainda sobre esta praacutetica hermenecircutica de se assemelhar a teorema dos filoacutesofos gregos
com a revelaccedilatildeo biacuteblica (ou Patriacutestica) notamos com facilidade a apresentaccedilatildeo de certas
evidecircncias que nos levam ao ldquoberccedilordquo da obra do Apologista Definitivamente Justino parece
agregar conceitos em seu relato que claramente evidenciam isto pois ldquoa principal contribuiccedilatildeo
dos apologistas (sendo Justino expoente no contexto) foi sua tentativa de correlacionar o
cristianismo com a erudiccedilatildeo grega tentativa que encontrou sua expressatildeo mais marcante na
teoria do Logos e sua aplicaccedilatildeo agrave cristologia (mateacuteria determinante em Justino)rdquo464
A teoria cristatilde sobre o Logos tem caraacuteter preceituador e exerceu impacto relevante na
histoacuteria dogmaacutetica cristatilde pois de maneira imperiosa tornou acessiacutevel a sua realidade intelectual
tanto intra quanto extra muros transmitindo a ideia de que ldquoeste Verbo este Logos que assim
iluminou progressivamente a mente humana eacute o proacuteprio Cristo tal como se revelou em Jesus
por meio do qual o pensamento e a vida encontraram o seu significadordquo465 Nesta mesma linha
Wachholz apresenta um paralelo forte desta soma de posiccedilotildees
Justino assume este discurso afirmando que em Jesus Cristo esse Logos que se fez
carne Jesus eacute fonte de todo o conhecimento Por outro lado Justino tambeacutem pode
afirmar que os pagatildeos tambeacutem puderam conhecer o Logos embora parcialmente
(inclusive Soacutecrates e Platatildeo) Os cristatildeos por sua vez conhecem o Logos tal qual ele
eacute por causa da encarnaccedilatildeo do mesmo em Cristo466
Devemos ainda agregar a influecircncia estoica ndash a qual neste ponto de forma mais direta
inspirou intelectualmente a Justino ndash agrave preponderacircncia junto a apresentaccedilatildeo do Logos como o
462 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
463 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
464 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 24 grifo nosso
465 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
466 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 59
107
princiacutepio elementar (material e imaterial) de todas as coisas existentes nos escritos de Justino
O estoicismo mais que o platonismo conseguia de modo mais teacutecnico467 e com maior rigor no
periacuteodo definir tanto a convicccedilatildeo teoloacutegica de Justino468 como de todo o segmento Apologista
cristatildeo Dreher consegue frisar tal relaccedilatildeo e consequecircncia desta realidade ldquoLogos eacute para os
estoicos a Razatildeo Universal que tudo penetra e tudo comanda que tudo ordena Tambeacutem Justino
viu no Logos a Razatildeo Universal mas que se teria revelado no cristianismo de maneira mais
perfeitardquo469
Outro importante apontamento que merece destaque estaacute na ideia de criaccedilatildeo e
manutenccedilatildeo operado pelos Logos Aqui enfatiza-se que tudo estava ordenado pela Palavra que
era e foi criadora sustentadora e orientativa mais ainda tudo provinha desta mesma Palavra
que possuiacutea e estava (mantinha-se) em uma realidade imanente e preexistente a tudo Simonetti
afirma que ldquofunda-se sobre a conspecccedilatildeo de Cristo como Logos divino e nessa condiccedilatildeo
princiacutepio de racionalidade universal cujas sementes (spermata) entram em toda a criaccedilatildeo e
habilitam o homem a conhecer Deus como criador organizador e regente do mundordquo470 Disso
tudo podemos afirmar que Justino e seus contemporacircneos de fides et toga entendiam que ldquotoda
a verdade estaacute no Logos [] Logo toda a verdade deve ser relacionada ao Logosrdquo471
Cabe-nos nesse conjunto apontar que na exposiccedilatildeo intelectual de Justino referente ao
Logos este natildeo desenvolve com clareza aquilo que seria a presenccedila da Palavra nos outros
homens Em seus registros vemos em alguns momentos que essa relaccedilatildeo de habitaccedilatildeo do Logos
(entendido como incipiente) no ser humano eacute descrita como um processo de semeadura (o
Logos sendo semeado)472 jaacute em outras passagens a analogia se constroacutei atraveacutes de uma imagem
467 Os Apologista do Seacuteculo II empregavam textos do Antigo Testamento como o Salmo 336 (ldquoOs ceus por sua
palavra [isto eacute pela Palavra do Senhor] se fizeramrdquo) onde natildeo hesitavam em misturaacute-los com a distinccedilatildeo teacutecnica
que os estoacuteicos faziam entre ldquopalavra imanenterdquo (grego logos endiathetos) e a ldquopalavra pronunciada ou expressardquo
(grego logos prophorikos) Esta distinccedilatildeo empregada pelos Apologistas visava diferenciar o duplo fato da
unicidade preacute-temporal de Cristo Seu estado preexistente com o Pai Sua manifestaccedilatildeo no tempo e no espaccedilo
Ver KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 71
468 Nessa construccedilatildeo teoacuterica que em determinados momentos parece procurar indiacutecios sustentaacuteveis sobre qual
seria o sistema filosoacutefico de maior influecircncia na formaccedilatildeo do conceito de Logos em Justino ganha destaque o
apontamento de Simone o qual utilizando-se de um caraacuteter sucinto e soacutebrio parece definir com normatividade
esta relaccedilatildeo e seu desenvolvimento ldquoseu conceito estaacute mais proacuteximo do meacutedio platonismo do que do estoicismo
isto eacute a terminologia eacute estoica mas o pensamento subjacente eacute platocircnicordquo Ver SIMONE In JUSTINO filoacutesofo
e maacutertir Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 798
469 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47
470 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1148
471 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 27 grifo nosso
472 Ver JUSTINO I Apologia XXXII 8 JUSTINO II Apologia VIII 1
108
de ldquoocupaccedilatildeordquo (posse) tanto plena473 quanto parcial474 em sua abrangecircncia475 O proacuteprio Justino
em sua II Apologia nos conduz a uma afirmaccedilatildeo de caraacuteter muito pertinente na tentativa de
explicar o porquecirc da accedilatildeo e necessidade da Palavra se manifestar aos homens Nessa afirmaccedilatildeo
ele regula o cristianismo como algo superior aos demais ensinos que procuravam ensinar sobre
a realidade do Logos como sendo um elemento orientativo Justino escreve sobre isso e afirma
que ldquoPortanto a nossa religiatildeo mostra-se mais sublime do que todo o ensinamento humano
pela simples razatildeo de que possuiacutemos o Verbo inteiro que eacute Cristo manifestado por noacutes
tornando-se corpo razatildeo e almardquo476
Justino nessa abordagem acaba por gerar em seu contexto uma evidenciaccedilatildeo
cristoloacutegica de importacircncia iacutempar pois salienta que a ldquodiferenccedila entre Cristo e os Homens
comuns encontra-se natildeo em alguma disparidade essencial de constituiccedilatildeo mas no fato de que
enquanto o Logos opera neles de forma fragmentada (kata meros) ou como uma semente em
Cristo Ele opera como um todordquo477 ou seja no Verbo que encarnou temos a plenitude da
manifestaccedilatildeo do Logos divino sendo este aquele mesmo que os filoacutesofos gregos anteriormente
jaacute haviam esquematizado478 poreacutem de maneira imperfeita
Prosseguindo em nossa construccedilatildeo algo que fica evidente neste exame eacute que mais que
esboccedilar uma ldquoexplicaccedilatildeo intelectualmente satisfatoacuteriardquo479 para o Logos Justino procura ser
expressivo mas natildeo necessariamente um sistemaacutetico deixando-nos carecentes de uma loacutegica
argumentativa mais robusta nesta questatildeo
Nesse aspecto encontramos orientaccedilatildeo junto a obras como a de Santos que
especificamente em nosso objetivo de pesquisa aparece provavelmente como uma das mais
qualificadas definiccedilotildees sobre agrave visatildeo de Justino e sua ressignificaccedilatildeo sobre o assunto Logos de
que disponibilizamos Partindo de dados extraiacutedos da anaacutelise sociorreligiosa do Seacuteculo II e a
473 Ver JUSTINO I Apologia XLVI 3
474 Ver JUSTINO II Apologia X 2 XIII 3
475 Deve-se distinguir entre o ldquoVerbo inteirordquo ingecircnito inefaacutevel o proacuteprio Cristo e o ldquoVerbo seminalrdquo que habita
nos homens especialmente nos saacutebios Ver FRANGIOTTI In Nota c II Apologia 1995 p 74
476 JUSTINO II Apologia X 1
477 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 108
478 Para Simone Justino se ampara claramente em uma tese oriunda do meacutedio platonismo quando procura
estabilizar sua ideia sobre haacute preexistecircncia antiguidade e universalidade do Logos Nesta inferecircncia o Apologista
baseia-se na ideia do meacutedio platonismo de que a transformaccedilatildeo do demiurgo miacutetico de Platatildeo visto como uma
forma de mente transcendente (PLATAcircO Timeu-Criacutetias 28c) se associa plenamente haacute figura do Deus Pai e
Criador do Cosmos trazida pela revelaccedilatildeo (sublime) do cristianismo Sendo deste modo o Logos apresentado
como ldquonascidogeradocriadordquo a partir do proacuteprio Deus Ver SIMONE In JUSTINO filoacutesofo e maacutertir
Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 799 LOPES In Nota 67 Timeu-Criacutetias 2011 p 95
479 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 71
109
estes somando algumas porccedilotildees da II Apologia de Justino Santos estabelece uma soacutelida
conexatildeo entre o Logos e o cristianismo Nesse conjunto de dados Santos consegue incorporar
a sua descriccedilatildeo uma das evidecircncias fundamentais que apontavam diretamente na diferenciaccedilatildeo
do extrato social agrave eacutepoca denominado cristatildeo Essa conjectura aplica-se assim se por um lado
o Logos eacute eterno foi anunciado anteriormente pelos profetas esteve manifesto na mente
(brilhante) dos filoacutesofos Logo isso o define como cristatildeo Conclusatildeo o Logos eacute Cristo Nossa
deduccedilatildeo eacute fraacutegil (em sentido teacutecnico) nem visa ser emblemaacutetica No entanto define e salienta
o pensamento de Justino que como veremos abaixo Santos ratifica se utilizando de raciociacutenio
similar por entender que Justino demonstra com clareza a concepccedilatildeo cristatilde daquele periacuteodo
sobre o Logos
O Logos total eacute aquele que soacute os cristatildeos possuem Por isso o cristianismo eacute a religiatildeo
por excelecircncia acima de toda filosofia e de qualquer matriz de pensamento humano
Justino declara que o cristianismo ldquomostra-se mais sublime do que todo o ensinamento
humano pela simples razatildeo de que possuiacutemos o Verbo por inteiro que eacute Cristo
manifestado por noacutes tornando-se corpo razatildeo e almardquo (JUSTINO II Apologia X 1)
O Logos eacute o Deus visiacutevel que manifesta o Deus invisiacutevel Os cristatildeos satildeo aqueles que
manifestam o Logos divino pois o possuem de forma integral O que eles manifestam
do Logos eacute o seu amor pela humanidade que eacute a razatildeo maacutexima de sua encarnaccedilatildeo
Entatildeo os cristatildeos revelam ao mundo que ldquoEle se tornou homem para partilhar de
nossos sofrimentos e curaacute-losrdquo (JUSTINO II Apologia XIII 4) O Logos serve para
explicar a semelhanccedila do comportamento moral dos cristatildeos com os ensinamentos dos
filoacutesofos principalmente os platocircnicos e estoicos (JUSTINO II Apologia XIII 2) e
ao mesmo tempo classifica os cristatildeos como superiores a eles (JUSTINO II Apologia
X 1)480
Para concluir a exposiccedilatildeo acerca de Justino dentro da filosofia grega podemos afirmar
sem nenhuma duacutevida que o Apologista eacute um verdadeiro filoacutesofo que entre outras coisas
compreendeu e praticou a vivacidade da revelaccedilatildeo do Logos divino entre os homens sempre
salientando que ldquotoda a verdade deve ser relacionada ao Logosrdquo481 Assim neste processo
conduzido por Justino podemos afirmar que revelou-se ldquoa grande ideia (Logos) marcada com
o selo do gecircnio (Justino) que vai fazer desembocar na verdade cristatilde o platonismo o filonismo
e toda a expectativa das geraccedilotildees humanasrdquo482
A partir disto prosseguiremos falando a respeito do capiacutetulo XXVIII de nossa obra
referencial Poreacutem a partir de agora abordaremos precisamente uma de suas principais
480 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 47
481 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 29
482 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
110
caracteriacutesticas Essa peculiaridade que possivelmente se mostra como a mais elaborada entre
as proposiccedilotildees por noacutes jaacute apresentadas realccedila e enobrece nossa busca pelos melhores
argumentos para a definiccedilatildeo do termo Verdade retratado na I Apologia Assim uma
interrogaccedilatildeo elementar em nossa construccedilatildeo comeccedila a ser diretamente respondida
33 RAZAtildeO DEUS SE PREOCUPA COM ESSAS COISAS
No princiacutepio ele criou o gecircnero humano racional capaz de escolher a verdade e
praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus
pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade Se algueacutem natildeo
crecirc que Deus se preocupe com essas coisas ou teraacute que confessar com sofismas que
natildeo existe ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como
uma pedra Virtude e vicio seriam puros nomes e os homens considerariam as coisas
como boas ou maacutes unicamente por sua opiniatildeo o que eacute a maior impiedade e
iniquidade483
O uacuteltimo item deste capiacutetulo visa possibilitar uma clara visatildeo bem como garantir a
genuiacutena adesatildeo ndash questatildeo que entendemos natildeo apenas como necessaacuteria mas sim como
fundamental para a compreensatildeo deste conceito ndash agrave perspectiva de Justino quanto ao que ele
sentenciou como algo determinante em sua proposta apologeacutetica Este modelo de conduta
adotado por Justino natildeo apenas relacionado pontualmente neste caso (I Apologia) caracteriza
com vigor desde o iniacutecio sua orientaccedilatildeo intelectual Aleacutem disso Justino passou a afirmar com
esta evidenciaccedilatildeo de casos toda sua ordem teoloacutegica baseada em sua anaacutelise racional como
tambeacutem agrave explicava ou no miacutenimo agrave definia mediante a maneira que estas relaccedilotildees se
posicionavam
Walde ao analisar aquilo que poderiacuteamos chamar do ldquocampo de anaacutelise racionalrdquo de
Justino ndash ao qual este estabelecia e limitava a sua reflexatildeo ndash sustenta que o pensamento da
Apologista parte de um ponto fixo de uma base depositada profundamente num conceito de
sua racionalizaccedilatildeo Segundo Walde para Justino ldquoQualquer coisa racional eacute cristatilde e qualquer
coisa cristatilde eacute racional Os Logos dotaram a todos os homens da razatildeo e liberdade que natildeo
estavam perdidos desde a quedardquo484
Apoacutes esta citaccedilatildeo faz-se novamente necessaacuterio afirmar que esta pesquisa natildeo almeja
diretamente um debate soterioloacutegico nem sequer visa agregar conceitos ndash de nenhuma espeacutecie
ndash ao termo ldquoLivre Arbiacutetriordquo que empregado indiretamente por Walde possa sugerir debates
483 JUSTINO I Apologia XXVIII 3-4 grifo nosso)
484 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
111
teoloacutegicos nessa esfera Contudo salientamos que a ideia transmitida por Justino no capiacutetulo
XXVIII pode ser empregada com determinada liberdade nesta discussatildeo soterioloacutegica pois a
tomada do Livre Arbiacutetrio como atributo caracteriza uma abrangecircncia muito significativa
especialmente quando Justino afirma que o homem racional eacute ldquocapaz de escolher a verdade e
praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus pois todos
foram criados racionais e capazes de contemplar a verdaderdquo485
Entretanto agregar este ldquoescolherrdquo para fins soterioloacutegicos na tentativa de se
apresentar alguma possibilidade (em forma ou modo) de participaccedilatildeo humana no ato salviacutefico
de Deus em Cristo buscando dar o sentido de que o convencimento salviacutefico natildeo eacute uma
exclusividade da accedilatildeo Divina parece-nos ser um literal descaso com o texto uma vez que se
agrega a Justino algo que ele simplesmente natildeo estava tentando comunicar
Dando seguimento ao nosso assunto mencionamos que o principal criteacuterio que
procuramos definir nesta exposiccedilatildeo estaacute relacionado a importacircncia delegada por Justino agrave razatildeo
humana Eacute imprescindiacutevel nesta construccedilatildeo salientarmos que este recurso humano
(razatildeoracionalidade) era compreendido por Justino (e tambeacutem dos demais Apologistas do
periacuteodo) como uma das principais (se natildeo haacute principal) daacutedivas de Deus ao ser humano486 e
natildeo apenas isso mas este ldquopresenterdquo (uma espeacutecie de ldquodomrdquo praacutetico) possuiacutea tambeacutem uma
accedilatildeo determinante na existecircncia humana para com as coisas celestiais tanto no presente
(cotidiano) como para o futuro (escatoloacutegico) do ser criado
Inicialmente detectamos em Justino a importacircncia por ele atribuiacuteda agrave racionalidade
no homem quando passa a afirmar que ldquoNo princiacutepio ele criou o gecircnero humano racional
capaz de escolher a verdade e praticar o bemrdquo487 Desta forma na concepccedilatildeo do Apologista a
Verdade era comunicada ndash ou ateacute mesmo sentenciada ndash ao ser humano por meio de sua
condiccedilatildeo inata (existente e natildeo adquirida) ou seja seu estado racional Aqui cabe-nos ainda
ressaltar que para Justino o homem para receber a revelaccedilatildeo da feacute em Cristo e mediante isso
agregar a si as benesses eou becircnccedilatildeos desta relaccedilatildeo se fazia necessaacuterio uma transmissatildeo desse
conhecimento ao entendimento humano e isso se dava pelo uso da razatildeo
Walde novamente soma a nossa pesquisa ao conceituar que ldquoDeus simplesmente natildeo
era conhecido por meio da razatildeo abstratardquo488 Assim podemos afirmar que Justino compreendia
485 JUSTINO I Apologia XXVIII 3 grifo nosso
486 DROBNER Manual de Patrologia 2008
487 JUSTINO I Apologia XXVIII 3 grifo nosso
488 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
112
(fortemente influenciado por uma tendecircncia apologista) que a Verdade naturalmente emergia
ao intelecto humano pela razatildeo apoacutes a conversatildeo do homem a Cristo Isso se condicionava
porque era o proacuteprio fruto da accedilatildeo regeneradora do Evangelho no ser humano que agora era
capaz de compreender o processo de separaccedilatildeo entre o joio e o trigo caso contraacuterio os ldquohomens
considerariam as coisas como boas ou maacutes unicamente por sua opiniatildeo o que eacute a maior
impiedade e iniquidaderdquo489
Neste contexto vemos um contraste interessante se formar Pois o Apologista nos
conduz a um quadro extremo no qual apresenta a opiniatildeo humana versus a Verdade Neste
ponto importa mencionarmos Fluck que afirma que Justino ldquoConsiderava que os adversaacuterios
do cristianismo insultavam a razatildeo e a moralrdquo490 Pode ateacute mesmo ser loacutegico poreacutem para nossa
pesquisa eacute imperativo e necessaacuterio salientar que para Justino natildeo havia duacutevidas acerca da
superioridade da Verdade quando revelada (especialmente no Logos) em oposiccedilatildeo agrave razatildeo
humana (caracterizada principalmente pela razatildeo oriunda da filosofia grega) Neste aspecto
Walde eacute categoacuterico e nos apresenta alguns paracircmetros dessa distinccedilatildeo empregada por Justino
Devo notar aqui que esta ecircnfase na razatildeo natildeo deve nos fazer pensar que a feacute natildeo
significava nada para Justino Ele se refere muitas vezes agrave feacute em suas apologias Ele
fala de noacutes sendo transformados ldquopor feacute atraveacutes do sangue e da morte de Cristordquo Ele
inclusive se refere a Abraatildeo que ldquofoi justificado e abenccediloado por Deus devido a sua
feacute nelerdquo No entanto o assunto de conhecimento eacute central aqui porque Justino deu
mais peso em crer nos ensinos de Cristo que crer no proacuteprio Cristo491
Em vista disso natildeo haacute duacutevidas de que a capacidade para decidir para escolher para
tonificar juiacutezos para agregar ou natildeo inferecircncias ou ateacute mesmo para se possuir um meacutetodo de
postura loacutegica passava claramente pela apropriaccedilatildeo da Verdade por meio da razatildeo humana na
concepccedilatildeo de Justino Sendo possiacutevel a partir de entatildeo formar-se no homem (exclusivamente
na experiencia cristatilde ndash com o verdadeiro Logos) os acordos morais para constituiccedilatildeo dos
pensamentos ou das ideias necessaacuterias para a vida humana
Por conseguinte somente aqueles que agregavam a si esta ldquorazatildeordquo (o Logos) poderiam
usufruir de um verdadeiro discernimento e juiacutezo que era proveniente Daquele que se tornou
489 JUSTINO I Apologia XXVIII 4
490 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2009 p 32 apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da
Feacute Cristatilde 2014 p 15
491 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
113
ldquocorpo razatildeo e almardquo492 Diante disso clarificasse a ideia e torna-se vigente o conceito de que
para Justino o Logos eacute o ldquoDeus visiacutevel que manifesta o Deus invisiacutevel Os cristatildeos satildeo aqueles
que manifestam o Logos divino pois O possuem de forma integralrdquo493 Neste ponto em questatildeo
Schaff nos ajuda na compreensatildeo desta distinccedilatildeo
O cristianismo conteacutem a racionalidade necessaacuteria para ser aceito e compreendido pela
filosofia grega Dessa maneira defendendo o cristianismo Justino defendeu a feacute
cristatilde referindo-se agrave feacute em Cristo como forma de justificaccedilatildeo e transformaccedilatildeo sendo
essa feacute totalmente racional494
Este comportamento da feacute compreendida eou assimilada pela razatildeo mostrou-se mais
como uma forma de pensamento do que de conduta naquele momento da histoacuteria495 Isso levou
a classe Apologista do periacuteodo de Justino (praticamente toda helenista em sua origem eou base
cultural) a considerar este procedimento justo e legiacutetimo em sua ordem o que tambeacutem de
maneira muito razoaacutevel possibilitou que este entendimento fosse aceito e vivido496 de forma
significativa em determinados nichos da referida realidade sociorreligiosa
Neste quesito em particular notamos com clareza que o procedimento adotado por
Justino para defender a feacute cristatilde se utilizou de admiraacuteveis recursos filosoacuteficos (racionais)
Justino ldquoSoube juntar admiravelmente os princiacutepios da razatildeo com os dogmas da feacuterdquo497 para
comunicar-se com uma classe distinta intelectualmente de modo especial com aqueles
(Imperadores Senadores outros) aos quais as obras foram dirigidas (a I e II Apologias e o
Diaacutelogo com Trifatildeo no caso de Justino especificamente) A legitimidade da proposta de Justino
(apresentar a feacute cristatilde como um fato racional a ser implantado e assimilado pelos ouvintes)
permite algumas consideraccedilotildees Walde argumenta nesta direccedilatildeo quando diz
Era importante mostrar a racionalidade da feacute e o Logos era o locus da razatildeo nas altas
escolas de filosofia grega [] Isso garantiu a racionalidade do cristianismo
492 JUSTINO II Apologia X 1
493 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 47
494 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 723
apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 21
495 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
496 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
497 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 52
114
identificando a Jesus como o Logos indicando Sua antiguidade que era importante
para a mentalidade grega em estabelecer uma crenccedila498
A partir deste ponto fomentaremos a atribuiccedilatildeo enfaacutetica do capiacutetulo XXVIII da I
Apologia onde Justino afirma com veemecircncia e certo rigor que ldquoSe algueacutem natildeo crecirc que Deus
se preocupe com essas coisasrdquo499 este (ou estes) passa por um consideraacutevel descompasso de
ordem moral Esta afirmaccedilatildeo eacute muito relevante no conjunto em que estaacute aplicada pois denota
de maneira singular toda a estrutura da mensagem do Apologista
Referente a esse caso nos eacute possiacutevel afirmar balizados em toda a descriccedilatildeo
empreendida do sistema de loacutegica adotado por Justino ndash sob clara influecircncia da escola
platocircnica500 ndash que para o Apologista os natildeo-cristatildeos (praticantes ou natildeo dos valores atribuiacutedos
a razatildeo) natildeo conseguiam ponderar com a autecircntica ldquorazatildeo universalrdquo a mesma que era e estava
implantada no ser humano de maneira inata e agora se fazia conhecer porque manifestava-se
nas vidas (consciecircncias regeneradas) dos cristatildeos501
A concepccedilatildeo sobre uma ordenaccedilatildeo coacutesmica universal vista na filosofia estoica502
comeccedila no contexto teoloacutegico de Justino a ser denominada de Logos Spermatikoacutes503 Conceito
que de forma ampla e sistemaacutetica passa a ser usado pelo autor ndash e consequentemente pelo meio
cristatildeo ndash em sua II Apologia na qual Justino ldquoatribui a Cristo a expressatildeo lsquoLogos Spermatikoacutesrsquo
(verbo seminal ou semente da razatildeo) significando que dEle procedem todas as coisasrdquo504
Assim quando os homens natildeo aceitam a distinccedilatildeo que a Verdade oferece para tudo que a ela eacute
estranho prova-se que eles (homens) necessariamente agem sem estar em seu juiacutezo pleno
completo perfeito ou seja natildeo satildeo dirigidos nem governados pelo verdadeiro Logos Nisso se
498 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
499 JUSTINO I Apologia XXVIII 4
500 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
501 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
502 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
503 Fluck explica que o que se entendia na filosofia como ldquorazatildeo universalrdquo imanente em todas as coisas foi
relacionado a ldquosemente racionalrdquo que estaacute presente em todo ser humano (Logos Spermatikoacutes ou semente do
Logos) Ver FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2009 p 33 apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em
Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 17 Jaacute Haumlgglund diz que a razatildeo como um embriatildeo encontra-se implantada dentro
deles (Loacutegos Spermatikoacutes) Mas os apologistas em contraste com os estoicos natildeo diziam ser ela uma espeacutecie de
razatildeo universal concebida panteisticamente Em vez disso identificavam o Logos com Cristo Ver HAumlGGLUND
Histoacuteria da Teologia 1999 p 23
504 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 20
115
conclui que estes homens estatildeo corrompidos na ldquosua opiniatildeo o que eacute a maior impiedade e
iniquidaderdquo505
Logo podemos deduzir um final especiacutefico ao pensamento de Justino nesta periacutecope
Entendemos que o paralelo entre feacute e razatildeo eacute um excelente instrumento indicativo orientador
e balizador na tentativa de afirmaccedilatildeo de sua doutrina e de refutaccedilatildeo do erro sendo que o
constituidor dessa anaacutelise deficiente da realidade (o erro de natildeo se utilizar corretamente da
razatildeo) se estabelecia em um conjunto temaacutetico muito amplo e complexo (crenccedilas instituiccedilotildees
poliacutetica etc) o qual decidimos chamar de realidade ou meio sociorreligioso
Sabemos que aplicar o relato de Justino a anaacutelises contemporacircneas pode causar um
aprisionamento indevido de um pensamento nobre e puro mas eacute inquestionaacutevel o uso de meios
e ferramentas que mostram com clareza ndash em uma orquestraccedilatildeo quase impecaacutevel ndash os incriacuteveis
subsiacutedios racionais que Justino possui para julgar o cenaacuterio de seus conflitos Dreher nesta
esteira enfatiza que para Justino em ldquoCristo toda a filosofia chega agrave perfeiccedilatildeo Por isso os
cristatildeos satildeo os verdadeiros seres racionaisrdquo506
Portanto deduzimos a partir de tantas evidecircncias que na compreensatildeo de Justino a
Verdade tambeacutem se encontra no seu oposto pois sempre que o homem natildeo usar da razatildeo para
assumir viver e praticar a Verdade ldquoou teraacute que confessar com sofismas que natildeo existe (a
Verdade) ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como uma
pedrardquo507
Na abordagem deste capiacutetulo trabalhamos a construccedilatildeo da imagem de Justino Maacutertir
como um filoacutesofo inserido e atuante no mundo greco-romano do Seacuteculo II dC ou como citado
anteriormente da filosofia na vida do cristatildeo Justino Procuramos por meio deste exame fazer
uma clara e suficiente descriccedilatildeo do corpo base desta anaacutelise que partiu e se concentrou no
capiacutetulo XXVIII da I Apologia Em seguida passamos a um exame da vida do autor em meio
agrave filosofia de sua eacutepoca e descrevemos as principais influecircncias filosoacuteficas na formaccedilatildeo do
Apologista Aleacutem disso abordamos o efeito desta construccedilatildeo que possivelmente se tornou um
dos maiores (se natildeo o principal) legados deixado pelo autor Por uacuteltimo buscamos estabelecer
um comentaacuterio soacutebrio sobre a tese de Justino a respeito da realidade da razatildeo regenerada como
o agente arbitral na vida humana como a ldquoforccedilardquo condutora para se conhecer agrave Verdade
505 JUSTINO I Apologia XXVIII 4
506 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47 grifo nosso
507 JUSTINO I Apologia XXVIII 4 grifo nosso
116
No proacuteximo capiacutetulo trataremos do que em nossa opiniatildeo eacute o ponto epiteacutetico deste
relato apologeacutetico de Justino Mesmo diante de muitas circunstacircncias que em sua eacutepoca afligiam
consideravelmente a cristandade Justino nos apresenta uma ldquochave mestrardquo que no seu
entendimento nos prova que o cristianismo eacute a religiatildeo mais antiga e deste modo a uacutenica que
revela genuinamente a Verdade
117
4 A VERDADE REVELADA POR FATOS PROFEacuteTICOS SEGUNDO JUSTINO
Poderiam nos objetar ldquoQue inconveniente haacute em que esse que noacutes chamamos Cristo
seja um homem que vem de outros homens e que por arte maacutegica fez os prodiacutegios
que dizemos e por isso pareceu ser filho de Deusrdquo Apresentaremos pois a
demonstraccedilatildeo natildeo dando feacute agravequeles que nos contam os fatos mas crendo por
necessidade naqueles que os profetizaram antes de acontecer da forma que os vemos
cumpridos ou que estatildeo se cumprindo diante dos nossos olhos tal como foram
profetizados demonstraccedilatildeo que acreditamos que pareceraacute a voacutes mesmos a mais forte
e a mais verdadeira508
Iniciamos a seccedilatildeo final desta dissertaccedilatildeo partindo novamente da principal delimitaccedilatildeo
textual empregada a esta pesquisa Neste espaccedilo nossa anaacutelise se concentraraacute no capiacutetulo XXX
da I Apologia onde encontramos uma enfaacutetica afirmaccedilatildeo apresentada acerca da leitura das
profecias do Antigo Testamento e da interpretaccedilatildeo que Justino fez delas
Quando examinamos a trajetoacuteria de Justino na feacute cristatilde nos deparamos com
comentaacuterios situacionais que visam fixar conjuntos referenciais sobre as coisas consideradas
reais as quais nos possibilitem identificar com clareza as situaccedilotildees existentes no cenaacuterio
analisado Uma dessas afirmaccedilotildees seria a de que ldquoSeguindo sua inspiraccedilatildeo (de Justino) logo
houve outros cristatildeos que se dedicaram a construir pontes entre sua feacute e a cultura da
antiguidaderdquo509 Asserccedilotildees como esta mostram um caminho amplo e sistecircmico de um projeto
de construccedilatildeo que visa estabelecer novos paradigmas neste caso especiacutefico para a cristandade
da eacutepoca
Este processo natildeo eacute formado simplesmente por elementos de coesatildeo mas tambeacutem por
muitas medidas de desconexatildeo Em alguns momentos o projeto evangeliacutestico de Justino eacute
desenvolvido majoritariamente por meios apologeacuteticos e foi amplamente caracterizado por
visar um processo de desconstruccedilatildeo dos valores vigentes de seu meio sociorreligioso algo que
jaacute atestamos anteriormente relacionando o processo dialeacutetico de Justino a outros fatores
Seguindo esse processo este capiacutetulo nasce da necessidade de apresentarmos uma
resposta satisfatoacuteria para algo que surge na parte final da porccedilatildeo selecionada como base
(capiacutetulos XXIII a XXX da I Apologia) de nossa busca de soluccedilotildees para o objetivo central desta
pesquisa Neste contexto um ponto epiteacutetico surge e se move em meio agraves palavras de Justino
sendo enfaticamente referido ao cumprimento profeacutetico do Antigo Testamento Esse caso
508 JUSTINO I Apologia XXX 1 grifo nosso
509 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 92 grifo nosso
118
interpretativo do Apologista natildeo ocorre apenas no capiacutetulo XXX mas tambeacutem em outras
passagens da I Apologia510 as quais condicionaratildeo o alvo final de nossa anaacutelise
Entretanto se haacute um epiacuteteto significa que haacute um cliacutemax neste conjunto que requer ser
exposto e acima de tudo abordado Deste modo surgem algumas indagaccedilotildees sobre este ponto
alto levantado e abordado por Justino Essa busca nos leva a perguntar como estava a
consciecircncia sobre a realidade messiacircnica no Seacuteculo II em meio aos cristatildeos O que eram e o
que significavam as profecias consideradas messiacircnicas do Antigo Testamento para Justino
Elas se realizaram na visatildeo do autor O que ele visava comunicar para seus leitores atraveacutes
delas Havia nelas um ponto alto uma maacutexima a ser revelada Por uacuteltimo havia como a
Verdade ser revelada eou representada por meio do cumprimento dessas profecias
41 O MESSIANISMO ATEacute OS DIAS DE JUSTINO
O messianismo como movimento teoloacutegico tem uma longiacutenqua e variada histoacuteria em
sua estruturaccedilatildeo e desenvolvimento Diversos cenaacuterios humanos desde as antigas dinastias do
Impeacuterio Egiacutepcio passando por quase todo crescente feacutertil chegando ateacute a antiga realeza
Mesopotacircmica descreviam traccedilos de similaridade que apresentavam um ser protagonista em
seu ambiente poliacutetico e religioso (caso essa diferenciaccedilatildeo possa existir para a eacutepoca) o qual
passa a caber como uma entidade superior gerada manifestada sustentada e dirigida
Divinamente
A pesquisa moderna nos tem surpreendido de maneira constante ao apresentar
elementos encontrados nas civilizaccedilotildees antigas os quais se referem agrave ideia sobre a existecircncia
de uma figura messiacircnica de presenccedila soberana potencial salviacutefico e valor moral ilibado O
Egito como um grande Impeacuterio na antiguidade jaacute nos expotildee uma diversidade de personagens
exoacuteticos (que envolviam essencialmente a figura do ImperadorFaraoacute) que deveriam de
maneira fundamental exercer uma ordem religiosa poliacutetica e moral Cabe-nos ressaltar de iniacutecio
que ldquolonge de produzir qualquer coisa parecida com a figura de um lsquoMessiasrsquordquo511 como no
judaiacutesmo as crenccedilas religiosas no antigo Egito salientavam que esse agente mantenedor da
ordem coacutesmica ndash com accedilatildeo visiacutevel no tempo presente ndash faria por meio de sua sucessatildeo
(dinastia) a manutenccedilatildeo desses elementos cariacutessimos para o bem geral e deste modo
510 Ver JUSTINO I Apologia XXXIII 1 XXXVI 6 XLIV 3 XLVIII 1 LI 6 LII 1 4
511 BAINES In A realeza egiacutepcia antiga formas oficiais retoacuterica contexto Rei e Messias em Israel e no Antigo
Oriente Proacuteximo dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 52
119
possibilitaria a passagem para o mundo futuro de qualidade superior por ser santificado pela
ldquopassagem do deus-Sol pelo aleacutemrdquo512
Quanto agrave regiatildeo da Mesopotacircmia os povos de origem Sumeacuteria Babilocircnica e Assiacuteria
demonstram similar afinidade quando buscam exteriorizar o modelo de realeza ideal a ser
desempenhado pelo respectivo soberano em atividade Nestes povos nos chama a atenccedilatildeo que
a linhagem deste personagem era considerada uma inquestionaacutevel instituiccedilatildeo Divina sendo
ldquodesignado pelo pai (Rei predecessor) como o priacutencipe herdeirordquo513 Tal nomeaccedilatildeo era ldquofeita
com a aprovaccedilatildeo dos deusesrdquo514 algo que tambeacutem ocorre de forma similar na aprovaccedilatildeo de
Davi e sua linhagem como monarquia perpeacutetua515 Quanto aos Mesopotacircmicos ainda eacute
necessaacuterio mencionar a respeito de suas ldquoinscriccedilotildees reacutegiasrdquo516 que apresentavam a solene
tradiccedilatildeo ao povo tambeacutem traziam consigo a responsabilidade de descrever o ethos do Soberano
como algueacutem que fora designado e iluminado divinamente para o cargoposiccedilatildeo Essa
contestaccedilatildeo explica por que ldquoNesse sentido a antiga Mesopotacircmia era verdadeiramente
messiacircnicardquo517
No Antigo Testamento variadas e amplas satildeo as alternativas que se apresentam na
construccedilatildeo de uma possiacutevel linha de pesquisa sobre o tema Elas perpassam todo o texto biacuteblico
do Pentateuco aos Profetas Menores ganhando destaque junto aos Livros Histoacuterico que ldquonos
permitem conhecer todas as luzes e sombras da esperanccedila messiacircnicardquo518 aleacutem de tambeacutem
encontrar uma ecircnfase diretiva nos Profetas Maiores (Isaiacuteas e Ezequiel por exemplo) Contudo
eacute nos escritos Poeacuteticos e Sapienciais que encontra-se o repouso pleno dessa mensagem de
esperanccedila e o Livro dos Salmos ganha significativa relevacircncia junto ao cenaacuterio Hamilton nos
enfatiza que a ldquoliteratura de Salmos considera de modo todo especial o mashicircah como agente
512 BAINES In A realeza egiacutepcia antiga formas oficiais retoacuterica contexto Rei e Messias em Israel e no Antigo
Oriente Proacuteximo dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 53
513 CAZELLES Il Messia della Bibbia Cristologia dellrsquoAntico Testamento 1993 p 43 grifo nosso No Original
Designato dal padre come principe ereditario
514 CAZELLES Il Messia della Bibbia Cristologia dellrsquoAntico Testamento 1993 p 43 No original fatta con
lapprovazione degli dei
515 LAMBERT In A realeza na antiga Mesopotacircmia Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 53
516 LAMBERT In A realeza na antiga Mesopotacircmia Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 73
517 LAMBERT In A realeza na antiga Mesopotacircmia Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 73
518 SICRE De Davi ao Messias textos baacutesicos da esperanccedila messiacircnica 2000 p 103
120
de Deus ou seu vice regente (como em Sl 22)rdquo519 Esta perspectiva ndash recebida mediante os
escritos considerados profeacuteticos sobre a figura ldquosalviacuteficardquo para Israel ndash fica clara quando
salienta a trajetoacuteria do Ungido ao fazer seu percurso de caraacuteter libertador e restaurativo Este
anuacutencio salviacutefico conecta-se automaticamente de forma simples ao proacuteximo passo desta missatildeo
libertadora520 a qual consideraraacute as profecias como realizadas em definitivo
Ao examinarmos alguns dos conceitos fundamentais da hermenecircutica messiacircnica no
Novo Testamento vemos que a expectativa sobre o restabelecimento de um reino Daviacutedico
sobre a terra (amplamente difundido na concepccedilatildeo religiosa do judaiacutesmo tardio) faz com que a
Nova Alianccedila estabelecida na concepccedilatildeo dos cristatildeos atraveacutes do advento do Ungido ganhe
contornos bem definidos no sentido de enxergar na figura de Jesus Cristo o cumprimento
absoluto das promessas messiacircnicas
Dos Evangelhos ao Apocalipse de Joatildeo o messianismo que antes representava
majoritariamente um princiacutepio de restauraccedilatildeo poliacutetica e espiritual para diversos movimentos
judaicos passou a ganhar nova e emblemaacutetica posiccedilatildeo pois tudo ndash em maior ou menor
proporccedilatildeo dependendo do autor biacuteblico ndash foi constituiacutedo pela forte convicccedilatildeo do elemento
messiacircnico (como um ente) relacionado agrave ldquopresenccedila terrena passada de Jesus o Messias
(prometido a Israel)rdquo521 vinculando Este agrave realidade dos fatos presentes e dos eventos futuros
(escatoloacutegicos) aguardados pelos cristatildeos Importante tambeacutem citarmos que para a formaccedilatildeo
dogmaacutetica no Seacuteculo I os relatos histoacutericos do cristianismo (Atos dos Apoacutestolos) tiveram
fundamental importacircncia nesta construccedilatildeo teoloacutegica pois viriam ldquopara confirmar tanto a
historicidade do personagem quanto sua consideraccedilatildeo popular do Messiasrdquo522
Tratando-se do periacuteodo poacutes-apostoacutelico ateacute os dias de Justino ndash ponto que se torna o
delimitador desse item ndash vemos que uma pujante cristalizaccedilatildeo sobre o conceito messiacircnico se
estruturava sem maiores dificuldades O relato escrituriacutestico somado agrave forte conscientizaccedilatildeo
sobre a existecircncia de um futuro reinado messiacircnico sobre a terra ratificava de forma decisiva
519 HAMILTON In 1255c maumlshicircah Ungido aquele que eacute ungido Dicionaacuterio Internacional de Teologia do
Antigo Testamento 1998 p 885 grifo do autor
520 Cabe-nos registrar que o periacuteodo entre 340 aC a 30 dC eacute riquiacutessimo no que se trata de documentaccedilatildeo
envolvendo o tema messiacircnico em Israel Os escritos de Qumran satildeo proacutedigos em registros que tratam sobre a
expectativaesperanccedila messiacircnica para o periacuteodo que antecede e inaugura o Novo Testamento Ver BROOKE In
Realeza e messianismo nos manuscritos do Mar Morto Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 451-472 SICRE De Davi ao Messias textos
baacutesicos da esperanccedila messiacircnica 2000 p 334-351
521 ROWLAND In Cristo no Novo Testamento Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 510 grifo nosso
522 MIRALLES El Mesiacuteas en tiempos del NT 2006 p 40 No original a confirmar tanto la historicidad el
personaje como su consideracioacuten popular de Mesiacuteas
121
a mentalidade cristatilde no periacuteodo a ponto de podermos afirmar que ldquotornou-se caracteriacutestica da
escatologia cristatilde primitiva por exemplo Justino Dial 113 139 Tertuliano Adv Marcionem
3 24 Irineu Adv Haer 5 33 3-4rdquo523 entre outros Pais ateacute final do Seacuteculo II o estabelecimento
do entendimento de que o pleno cumprimento das profecias messiacircnicas estava em Jesus Cristo
tanto nos fatos jaacute realizados quanto nos ainda por se cumprirem524 Este caso em especiacutefico
tambeacutem nos atesta que os Pais Apologistas foram aqueles que produziram os ldquoprimeiros ensaios
de teologia cientiacutefica que apareceram na Igrejardquo525 mostrando deste modo quatildeo notaacutevel foi
sua influecircncia Esta tendecircncia hermenecircutica messiacircnica na Patriacutestica perdurou ateacute o advento da
escola alexandrina no iniacutecio do Seacuteculo III526
Deste modo de maneira incontestaacutevel podemos afirmar que o messianismo como
temaacutetica teoloacutegica tornou-se uma das contribuiccedilotildees mais importantes da histoacuteria da
religiosidade monoteiacutesta a niacutevel mundial tendo como seus baluartes intelectuais o cristianismo
(de forma maciccedila) e algumas correntes do judaiacutesmo Este ideaacuterio teoloacutegico ndash que se concentra
em um ou dois agentes527 de superaccedilatildeo da realidade sociorreligiosa ndash iniciou-se provavelmente
como algo inserido profundamente em ditames de teor poliacutetico passando posteriormente a ser
um princiacutepio orientativo para determinados seguimentos religiosos e acabou por se definir em
uma expectativaesperanccedila de caraacuteter excepcionalmente escatoloacutegico
Salientamos que a partir do desenvolvimento da ldquoideologiardquo messiacircnica houve uma
abrupta ruptura entre as suas duas principais correntes de aclamaccedilatildeo especialmente devido a
singularidade identitaacuteria do protagonista algo de imensa relevacircncia para ambos os lados Este
fato requerido e inegociaacutevel em sua espeacutecie tornou-se o ldquoatestadordquo do cumprimento profeacutetico
das exigecircncias teoloacutegicas que distinguiam especialmente a ldquoliteratura cristatilde primitivardquo528
Obviamente sabemos que estas ldquobalizasrdquo envolvem a pessoa de Jesus morador histoacuterico da
cidade de Nazareacute como sendo o autecircntico Ungido (MessiasCristo) prometido a Israel
Os passos a seguir nos conduziratildeo de maneira especiacutefica novamente ao pensamento
de Justino Sua compreensatildeo do escopo profeacutetico messiacircnico do Antigo Testamento torna-se a
523 ROWLAND In Cristo no Novo Testamento Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 493 grifo do autor
524 Aqui nos referimos a tese moderna do ldquojaacute e o ainda natildeordquo desenvolvida por Oscar Cullmann Ver
CULLMANN Salvation in History 1967
525 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 49
526 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
527 Ver SICRE De Davi ao Messias textos baacutesicos da esperanccedila messiacircnica 2000 p 342-343
528 ROWLAND In Cristo no Novo Testamento Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 492
122
partir de agora nosso alvo e objeto de anaacutelise Esse conjunto de fatos que exteriorizou a
revelaccedilatildeo Divina antes do advento do cristianismo como religiatildeo acabou por condicionar-se
entre outras coisas em um dos casos mais pertinentes da doutrina cristatilde em toda a sua histoacuteria
O Logos Palavra Verbo que encarnou na concepccedilatildeo cristatilde foi entendimento claramente como
o Messias prometido a Israel o qual toda a tradiccedilatildeo religiosa judaica (por seacuteculos) ainda
esperava poreacutem Justino junto aos seus (cristatildeos) jaacute o havia reconhecido e recebido como
Deus
42 AS PROFECIAS MESSIAcircNICAS NA VISAtildeO DE JUSTINO
Toda abordagem de Justino nesta temaacutetica possui um elevado grau de reconhecimento
especialmente devido agrave sua posiccedilatildeo Patriacutestica pois em Justino nos eacute possiacutevel afirmar que este
foi ldquoum dos primeiros autores cristatildeos a formular a exegese da presenccedila do Verbo-Messias na
Lei e nos profetasrdquo529 Esse reconhecimento se destaca por meio de um forte aparato
metodoloacutegico no qual a estruturaccedilatildeo escrituriacutestica do Apologista ganha ecircnfase Xavier salienta-
nos esta orientaccedilatildeo definindo-a como um proacutedigo ldquoponto cardealrdquo na temaacutetica do autor ldquosua
obra como um todo contribuiacute para explicar a feacute cristatilde baseada nas Escrituras como a fonte
suprema de autoridade cujas profecias podem ser compreendidas somente pela Graccedila de
Deusrdquo530
Ao analisarmos a I Apologia fica-nos evidente a relaccedilatildeo que Justino faz de forma
automaacutetica ou seja como uma consequecircncia procedimental do papel das Escrituras Sagradas
referente a manifestaccedilatildeo de Cristo como pessoa humana e como ministro das coisas celestiais
Aleacutem disso Justino contempla (reconhece) nas profecias toda a revelaccedilatildeo que Deus visou
apresentar aos Homens atraveacutes do Logos encarnado em Cristo Notamos que este
condicionamento oferecido por Justino acaba por se tornar desde cedo em sua anaacutelise profeacutetica
(do Antigo Testamento) algo absolutamente imperativo e imparcial para com o
desenvolvimento de sua perspectiva messiacircnica Na visatildeo do Apologista tudo o que eacute
legalmente oferecido e constituiacutedo em Cristo ldquorepousa nas profecias veterotestamentaacuterias e no
que ele chama de lsquomemoacuteriasrsquo dos apoacutestolos ou seja os evangelhos (JUSTINO I Apologia
LXVI 3)rdquo531
529 SIMONE In JUSTINO filoacutesofo e maacutertir Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 799
530 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 21
531 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 114
123
Neste contexto cabe-nos ressaltar esta importante fundamentaccedilatildeo do Texto Sagrado
como tambeacutem da Tradiccedilatildeo Apostoacutelica encontrada em Justino Estes alicerces da feacute cristatilde
significam e tem para Justino a funccedilatildeo de ldquobuacutessolardquo teoloacutegica a qual neste caso
especificamente sempre estaacute estabilizada na direccedilatildeo do ldquonorterdquo profeacutetico o qual sem exageros
podemos chamar de uma espeacutecie de ldquonorte messiacircnicordquo Isso porque sua interpretaccedilatildeo
(exegese) nasce de uma hermenecircutica claramente messiacircnica algo que notamos sempre de
forma niacutetida quando o Apologista aponta para a direccedilatildeo de tentar migrar agrave atenccedilatildeo ndash ou
poderiacuteamos dizer moldar o entendimento ndash de seus ouvintes para estes fatos (profecias
messiacircnicas) que possuiacuteam um teor incontestaacutevel na oacutetica do Apologista Indiscutivelmente
para Justino a ldquoprofecia eacute a prova maacuteximardquo532 eacute ldquoo ponto mais forte em relaccedilatildeo agrave veracidade
do cristianismordquo533
Algumas das passagens da I Apologia contribuem decisivamente para este conceito
Por exemplo quando Justino afirma ldquoDisso proveacutem nossa firmeza em aceitar seus
ensinamentos pois se manifesta realizado tudo quanto ele predisse que aconteceria Eis a obra
de Deus dizer as coisas antes que aconteccedilam e depois mostrar o acontecido tal qual ele foi
preditordquo534 Logo adiante no mesmo contexto o Apologista robustece ainda mais seu
raciociacutenio seguindo em uma de suas mais peculiares abordagens Justino claramente natildeo visa
um posicionamento maiecircutico535 nem busca uma manifestaccedilatildeo sofista para com o puacuteblico-alvo
de sua I Apologia Assim ele reafirma com zelo a determinaccedilatildeo de seu ideaacuterio de feacute
ldquoPoderiacuteamos terminar aqui o nosso discurso sem acrescentar mais nada considerando que
pedimos coisas justas e verdadeirasrdquo536
Neste trecho transparece-nos a ideia de que Justino reconhecia nas profecias algo de
elementar e misterioso que natildeo podia ser ocultado Para o Apologista estaacute expliacutecito que aquilo
que esta projeccedilatildeo Divina ndash de essecircncia clara devida e orientada segundo a obra do Espiacuterito
Santo ndash visava expressar ao conhecimento humano era o conteuacutedo filosoacutefico salviacutefico do Logos
que ldquoilumina toda alma de boa vontaderdquo537 fazendo com que as profecias da Antiga Alianccedila
532 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 23
533 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 114
534 JUSTINO I Apologia XII 10 grifo nosso
535 Maiecircutica (maimiddotecircumiddottimiddotca) grego maieutikeacute ciecircncia ou arte do parto Substantivo feminino Significa Uma das
formas pedagoacutegicas do processo socraacutetico a qual consiste em multiplicar as perguntas a fim de obter por induccedilatildeo
dos casos particulares e concretos um conceito geral do objeto em estudo Ver Dicionaacuterio Priberam da Liacutengua
Portuguesa Disponiacutevel em lthttpsdicionariopriberamorgmaiecircuticagt Acesso em 12 de mar 2019
536 JUSTINO I Apologia XII 11 grifo nosso
537 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 31
124
evidentemente conseguissem comunicar seu caraacuteter e estado superior o qual por ter-se
concretizado na manifestaccedilatildeo do Evangelho de Cristo atestava o cumprimento das Boas Novas
do Logos que os profetas (e tambeacutem os filoacutesofos538) haviam recebido no passado como um
sinal visiacutevel de que agrave Palavra Incriada visitaria plenamente aos homens Neste aspecto
podemos celebrar juntamente com Justino sua tentativa ordenada ndash e consequentemente loacutegica
ndash de aprumar a religiatildeo cristatilde neste cenaacuterio profeacutetico Sobre esta praacutetica Santos comenta o
seguinte
Em seu texto Justino parece revelar-nos que as profecias foram o que mais o
convenceram quanto agrave ldquoverdaderdquo do evangelho Se sua busca era encontrar Deus
(JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6) no cristianismo ele o encontrou a partir da
veracidade das profecias Elas eram a confirmaccedilatildeo de que o cristianismo era a
verdade que ele tanto procurava539
Quando se lecirc a I Apologia percebe-se que o contato de Justino com o Antigo
Testamento foi muito significativo algo que possivelmente foi ocasionado e fomentado por sua
relaccedilatildeo de proximidade na infacircncia e juventude com o ambiente judeu na cidade de Flaacutevia
Neaacutepolis mesmo que sua obra natildeo nos indique um ldquoconhecimento aprofundado do
judaiacutesmordquo540 do periacuteodo por parte de Justino
Contudo uma ordenaccedilatildeo de caraacuteter sadia ndash no sentido interpretativo ndash nos parece ter
surgido desde cedo na relaccedilatildeo analiacutetica de Justino para com as profecias veterotestamentaacuterios
Pode-se afirmar que os profetas e suas profecias lhe despertaram muito a consciecircncia e
provocaram grande reflexatildeo em Justino Dois outros aspectos chamam bastante a atenccedilatildeo
porque descrevem com consistecircncia a posiccedilatildeo hermenecircutica de Justino O primeiro estaacute
relacionado a sua defesa da ideia de que o Antigo Testamento retrata tipologicamente a Nova
Alianccedila O segundo eacute o conjunto messiacircnico desenvolvido na I Apologia541 algo que veremos
mais detalhadamente a seguir Voltando ao primeiro ponto a pesquisa de Xavier nos auxilia
significativamente pois consegue sintetizaacute-lo de forma ampla e coerente
538 Ver JUSTINO I Apologia XLIV 1-13
539 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 114
grifo nosso
540 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 83
541 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
125
No tratado ldquoContra Maacutercionrdquo refuta os ensinos deste que instigavam a crer em outro
deus maior do que o criador proferindo blasfecircmias e negando que o criador do
universo seja o Pai de Cristo Embora Marciatildeo fosse considerado cristatildeo ensinava
que o Antigo Testamento natildeo devia ser seguido pelos cristatildeos por ser muito diferente
dos ensinos de Cristo Os judeus por sua vez tambeacutem diziam que os cristatildeos
interpretavam mal o Antigo Testamento vendo nele a preparaccedilatildeo para a vinda de
Jesus Essas discussotildees propiciaram Justino a escrever ldquoDiaacutelogo com Trifatildeordquo onde
ele argumenta com o judeu Trifatildeo acerca da relaccedilatildeo entre a feacute cristatilde e o Antigo
Testamento utilizando-se de tipologias visando demonstrar como se interpreta o
Antigo Testamento afirmando que ldquo[] o Antigo Testamento aponta para Jesus
principalmente de dois modos mediante suas palavras profeacuteticas e mediante atos e
accedilotildees que satildeo lsquofigurasrsquo ou lsquotiposrsquo que tambeacutem apontam para Jesusrdquo A interpretaccedilatildeo
tipoloacutegica de Justino baseia-se nos proacuteprios fatos histoacutericos em particular nos fatos
da vida de Jesus542
Nesta posiccedilatildeo do exame cabe-nos recordar e ressaltar o caraacuteter fortemente
empiacuterico543 que se apresenta novamente no relato de nosso autor Este se sustenta de maneira
consideraacutevel pois eacute utilizado como um criteacuterio comprobatoacuterio da metodologia apologeacutetica de
Justino Como jaacute vimos anteriormente Justino natildeo era um empirista segundo o rigor que o
termo exige a partir do Seacuteculo XVII Entretanto o Apologista parece conduzir a concepccedilatildeo do
real a uma inevitaacutevel relaccedilatildeo entre teoria e praacutetica especialmente no caso do Logos profetizado
que se manifestou em Cristo Assim torna-se inevitaacutevel reconhecer que para Justino a Verdade
se manifestou no reconhecimento da experiecircncia do homem para com agrave profecia Divina
Algo que tambeacutem nos chama bastante atenccedilatildeo nesta cena eacute que este suposto meacutetodo
empirista que poderiacuteamos chamar de claacutessico544 parece ser mais atrelado agraves teorias aristoteacutelicas
do que platocircnicas545 devido agrave grande valorizaccedilatildeo do meacutetodo indutivo Desta forma vemos no
capiacutetulo XXX da I Apologista um conjunto que visa apontar elementos de teor comprobatoacuterio
Nesta porccedilatildeo encontramos a partir da visatildeo do Apologista a seguinte conceituaccedilatildeo
Apresentaremos pois a demonstraccedilatildeo natildeo dando feacute agravequeles que nos contam os fatos
mas crendo por necessidade naqueles que os profetizaram antes de acontecer da
forma que os vemos cumpridos ou que estatildeo se cumprindo diante dos nossos olhos
tal como foram profetizados demonstraccedilatildeo que acreditamos que pareceraacute a voacutes
mesmos a mais forte e a mais verdadeira546
542 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 19
543 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
544 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994
545 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
546 JUSTINO I Apologia XXX 1 grifo nosso
126
Algo de importacircncia singular em toda esta exposiccedilatildeo eacute o estabelecimento da ideia
como tambeacutem a percepccedilatildeo de um estado ativo de consciecircncia em Justino Para ele as profecias
veterotestamentaacuterias tecircm sua origem (entenda-se inspiraccedilatildeo) na terceira pessoa da Trindade547
O Espiacuterito Santo que Justino chama de ldquoEspiacuterito profeacuteticordquo548 aparece em seus registros como
Aquele que atua de forma proclamadora sendo o agente inspirador e formador no espiacuterito dos
profetas da Palavra a ser promulgada trazendo ao conhecimento de todos por meio desses
servos os eventos divinos que futuramente se revelariam Aqui vale-nos registrar que o
princiacutepio de pressaacutegio como algo que foi ajuizado para se revelar num tempo futuro possuiacutea
fundamental importacircncia nesta conceituaccedilatildeo Para Justino era imprescindiacutevel em sua
construccedilatildeo apologeacutetica salientar que as profecias foram registradas efetivamente antes de seu
cumprimento ou seja antes de terem se tornado fatos reais549
Neste contexto cabe-nos examinar duas passagens da I Apologia que promovem esta
ideia Sem desejarmos abordar de maneira direta qualquer outra ecircnfase teoloacutegica nestas
passagens ndash por exemplo aplicaccedilotildees escatoloacutegicas e outras ndash iremos apenas nos focar naquilo
que entendemos ser o grau de concordacircncia substancial oferecido e exigido por ambas as
porccedilotildees dentro de nossa temaacutetica A anaacutelise profeacutetica (interpretaccedilatildeo) do Apologista se
desenvolve desta forma
Entre os judeus houve profetas de Deus atraveacutes dos quais o Espiacuterito profeacutetico
anunciou antecipadamente os acontecimentos futuros e os reis que segundo os
tempos se sucederam entre os judeus apropriando-se de tais profecias guardaram-nas
cuidadosamente tal como foram ditas e tal como os proacuteprios profetas as consignaram
em seus livros escritos em sua proacutepria liacutengua hebraica [] E de novo o mesmo
profeta Isaiacuteas inspirado pelo Espiacuterito profeacutetico disse [hellip]rdquo550
De forma emblemaacutetica vemos na apresentaccedilatildeo de Justino relacionada ao proacuteprio
Cristo Logos Messias o ponto elementar e essencial para a interpretaccedilatildeo da revelaccedilatildeo profeacutetica
do Antigo Testamento uma vez que o conhecimento transcendental relacionado agrave pessoa de
547 Justino coordena com certa razoabilidade em seus escritos a descriccedilatildeo das Trecircs Pessoas Divinas utilizando-se
especialmente para isso de foacutermulas obtidas dos ritos de batismo e eucaristia Suas referecircncias ao Espiacuterito Santo
aparecem com normalidade em suas obras embora Justino natildeo seja absolutamente claro acerca da relaccedilatildeo entre as
funccedilotildees do Espiacuterito e as do Logos em algumas passagens Entretanto eacute niacutetido que o Apologista considerava que
estes (Pai Logos e Espiacuterito) eram realmente pessoas distintas Ver JUSTINO I Apologia LXI 3-12 KELLY
Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 75
548 JUSTINO I Apologia VI 2
549 JUSTINO I Apologia XII 9-10
550 JUSTINO I Apologia XXXI 1 XXXV 3a grifo nosso
127
Jesus manifestava a sua proacutepria natureza ministerial ou seja revelava o Messias prometido a
Israel Em um contexto que aborda sobre Moiseacutes e as profecias messiacircnicas Justino eacute
categoacuterico em afirmar ldquoateacute agrave apariccedilatildeo de Jesus Cristo nosso Mestre e interprete das profecias
desconhecidas tal como foi de antematildeo dito pelo Espiacuterito Santo profeacutetico por meio de Moiseacutes
que natildeo faltaria priacutencipe dos judeus ateacute aquele para o qual estaacute reservada a realezardquo551
Nesta mesma abordagem torna-se importante fazer uma observaccedilatildeo quanto agrave
excepcional erudiccedilatildeo apresentada por Justino O Apologista fomenta uma impecaacutevel exegese
de caracteriacutestica e ordenamento dogmaacutetico algo que explica as peculiaridades do autor e seu
meio intelectual (Patriacutestico)552 distinccedilatildeo que tambeacutem pode ser detectada em sua apresentaccedilatildeo
de caraacuteter expositivo dos textos biacuteblicos utilizados553 Santos contribui decisivamente na
construccedilatildeo deste realce
Mas ele mesmo se mostra um exiacutemio exegeta ao enumerar e manusear as profecias
tanto do Antigo Testamento quanto as do Novo Testamento Justino as interpreta as
explica as esclarece revela a que se referem com uma forte argumentaccedilatildeo Haacute
algumas incoerecircncias em suas interpretaccedilotildees poreacutem estas satildeo frutos das boas
intenccedilotildees em demonstrar o quanto as profecias comprovam a superioridade da feacute dos
cristatildeos554
Notamos portanto que Justino representa mais do que uma ideia destacadamente ele
representa a continuidade de uma fiel relaccedilatildeo entre a profecia aplicada no passado e a
orquestraccedilatildeo de seu estabelecimento no presente555 Este presente que agora estaacute sob o efeito
daacute ldquotransformaccedilatildeo completa do conceito da filosofiardquo556 passa a ser entendido como um estado
contiacutenuo que invade e preenche o futuro com sua proclamaccedilatildeo por ser fidedignamente um
retrato do dogma cristoloacutegico557 ecircnfase que acaba por cristalizar-se a ponto de ser possiacutevel se
afirmar que ldquoJustino foi o primeiro verdadeiro teoacutelogo a formular uma teologia da histoacuteria
551 JUSTINO I Apologia XXXII 2b
552 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
553 HALL Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja 2003
554 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 114-
115
555 HALL Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja 2003
556 Para Boehner e Gilson agrave filosofia grega como ciecircncia entendida a eacutepoca passa para os cristatildeos o controle
histoacuterico de seus atos a partir da Era dos Pais Apologista sendo Justino o elemento decisivo para que ocorresse
esse fenocircmeno cultural Ver BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 28
557 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
128
cristocecircntricardquo558 Deste modo finalizamos este item com o pensamento de Walde Neste
vemos com clareza que no conceito de Justino a figura humana de Jesus Cristo era literalmente
a manifestaccedilatildeo do que poderia ser considerado ldquoprofecias cumpridasrdquo559
Adicionado a esta leitura apresentamos a partir de agora o exame de um dos elementos
teoloacutegicos mais caros ao cristianismo Este singelo criteacuterio nos conduziraacute ao cliacutemax daquilo que
Justino visava comunicar por meio do processo de revelaccedilatildeo contido nas profecias do Antigo
Testamento Deste modo iniciamos a parte final desta pesquisa O item seguinte iraacute
complementar o atual e finalizar este capiacutetulo com uma anaacutelise sobre o cumprimento profeacutetico
da Primeira Alianccedila sendo esse processo o grande resultado que para Justino equivale agrave
apropriaccedilatildeo da Verdade como uma definiccedilatildeo real sobre a vida e os acontecimentos humanos
pois para Justino isso prova de maneira definitiva que a Verdade estaacute com o cristianismo Essa
evidecircncia indubitaacutevel para o Apologista eacute a encarnaccedilatildeo de Cristo
43 A ENCARNACcedilAtildeO DO LOGOS APOGEU DA REVELACcedilAtildeO
Iniciamos este item citando a Walde que eacute emblemaacutetico ao se utilizar do pensamento
de Schaff quando procura introduzir em sua pesquisa um conjunto de mediadas loacutegicas que
parecem visar o estabelecimento de uma proposta a teologia de Justino Walde buscando de
maneira clara estabelecer um rigor de orientaccedilatildeo para causas que ele considera balizares
apresenta-nos mediante um meacutetodo a priori560 seu entendimento de que para Justino haacute uma
consequecircncia ndash dando-nos a impressatildeo de que este evento eacute o grau maacuteximo possiacutevel para o
caso ndash causal para aquilo que a humanidade testificou sobre a accedilatildeo salviacutefica de Deus Deste
modo Walde conjectura sobre a ideia de Schaff e nos afirma que ldquolsquoo cristianismo eacute a alta
razatildeorsquo para Justino lsquoO Logos eacute a razatildeo preacute-existente absoluta pessoal e Cristo eacute a encarnaccedilatildeo
dele o Logos encarnadorsquordquo561
Eacute oportuno aqui apresentarmos um resumo de alguns pontos essenciais jaacute
desenvolvidos em nossa pesquisa principalmente na questatildeo que envolve o conceito do Logos
em Justino poreacutem agora focado no dogma da encarnaccedilatildeo de Jesus Cristo
558 SIMONE In JUSTINO filoacutesofo e maacutertir Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 799
559 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
560 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
561 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 723
apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5 grifo nosso
129
Desta maneira optamos por comeccedilar esta reapresentaccedilatildeo de uma forma mais geneacuterica
onde a explanaccedilatildeo de Dreher contribui de maneira significativa Ele escreve ldquoO cristianismo
segundo Justino natildeo soacute eacute a mais antiga como tambeacutem a religiatildeo mais natural e praacuteticardquo562
Trata-se de uma harmoniosa relaccedilatildeo entre estado e forma ou talvez entre causa e efeito O
cristianismo como corpo (uma coletividade organizada) passa a ser o efeito seleto de uma
substacircncia (Logos) que eacute perfeita e sublime na concepccedilatildeo de Justino563 O mesmo sentido
conseguimos captar em Dreher que apresenta a seguinte definiccedilatildeo a respeito do ideaacuterio
apologeacutetico do Seacuteculo II
Toda a histoacuteria em uacuteltima anaacutelise se desenrola em direccedilatildeo ao cristianismo Homens
como Heraacuteclito e Soacutecrates foram inspirados pelo Logos divino bem como os
precursores do cristianismo Abraatildeo Elias e outros profetas Judeus Em Cristo toda a
filosofia chega agrave perfeiccedilatildeo564
Novamente algo bem condensado nos aparece junto aos comentaacuterios feitos a respeito
do Logos especialmente no que se refere aquilo ou aqueles que envolviam o ambiente
sociorreligioso de Justino ndash lugar de sua conceituaccedilatildeo por excelecircncia O cenaacuterio cultural
descrito conduz (de maneira linear) o tema a uma nova anaacutelise temporal devido ao forte teor
teoloacutegico que possuiacutea Esta mensagem reorientada (o Logos que tornou-se Homem) por Justino
afirmava que tudo o que um dia foi profetizado por um povo estrangeiro ndash considerado de
cultura ldquoestranha e inferiorrdquo a realidade do mundo greco-romano ndash a partir de agora os conduzia
a Verdade e isso de forma antroacutepica por meio de uma ideia um tanto quanto exoacutetica (absurda)
para esse meio cultural Esse novo conceito afirma que um ser excelso (divino) tinha se tornado
um ser humano ou seja que ele havia encarnado
Na mesma linha de Dreher Wachholz se pronuncia de forma muito similar ele
escreve ldquoPara Justino o cristianismo eacute a religiatildeo mais antiga pois foi preparada pelo Logos
como se evidecircncia nos profetas e no pensamento grego Em Cristo a filosofia chega agrave plenitude
Mais do que isso toda a histoacuteria se desenvolve na direccedilatildeo do cristianismordquo565 Desta maneira
a transmissatildeo dessa ideia acaba por ganhar um teor imperativo em sua implicaccedilatildeo pois nesse
ponto (encarnaccedilatildeo do Logos) a leitura que compreendemos ter havido por parte de Justino
562 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47
563 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991
564 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47 grifo nosso
565 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 61 grifo nosso
130
referente agrave Primeira Alianccedila comeccedila a apresentar de maneira elaborada seu ente e
consequentemente a este sua essecircncia Seu ente eacute Jesus Cristo (o Homem) sua essecircncia eacute
Logos566
Deste modo manifesta-se algo profundo na construccedilatildeo e postura de Justino quando
ele passa a atribuir (mesmo que de forma implicitamente) agrave encarnaccedilatildeo de Cristo toda a
eficiecircncia necessaacuteria para o pleno cumprimento das profecias do passado Notamos que na
opiniatildeo do Apologista as questotildees referentes a libertaccedilatildeo do homem de sua ignoracircncia e das
accedilotildees demoniacuteacas que o escravizam ndash assunto que eacute amplamente tratado na I Apologia567 ndash
acabam por exercer relevante importacircncia no cenaacuterio humano de forma geral porque estas
mazelas espirituais dominam e vituperam o ser humano aprisionando-o por meio de sofismas
e de falsos exames da verdadeira realidade histoacuterica Esse ponto eacute realmente relevante quando
tratamos sobre o pensamento de Justino pois ele entendia de maneira praacutetica568 que os
democircnios possuiacuteam uma missatildeo ordinaacuteria de ldquoreduzir os homens a escravos e assistentes
seusrdquo569
A ligaccedilatildeo entre a feacute cristatilde e a filosofia grega natildeo se faz sem conflitos570 e natildeo eacute uma
questatildeo de menor impacto no periacuteodo do Seacuteculo II No que cabe a delimitaccedilatildeo deste estudo o
comentaacuterio de Gonzaacutelez a respeito do Tratado de Taciano571 retrata esse conflito de visotildees que
cercava o avanccedilo do Evangelho em meio a cultura helecircnica do periacuteodo Este registro traz
importante contribuiccedilatildeo ao nosso raciociacutenio Gonzaacutelez diz
Tudo o que a haacute de valioso entre os gregos ndash prossegue Taciano ndash eles o tomaram dos
baacuterbaros Assim por exemplo a astronomia aprenderam dos babilocircnios a geometria
dos egiacutepcios e a escrita dos feniacutecios E o mesmo pode se dizer acerca da filosofia e da
religiatildeo pois os escritos de Moiseacutes satildeo muito mais antigos que os de Platatildeo e ateacute mais
antigos que os de Homero Se Homero e Platatildeo realmente eram pessoas cultas
segundo os proacuteprios gregos dizem era de se supor que conhecessem os escritos de
Moiseacutes Portanto qualquer coincidecircncia entre a cultura supostamente grega e a
religiatildeo dos ldquobaacuterbarosrdquo hebreus e cristatildeos deve-se a que os gregos aprenderam sua
sabedoria dos baacuterbaros Mas em todo caso o certo eacute que os gregos ao lerem a
566 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991
567 JUSTINO I Apologia V 1-4 IX 1 X 6
568 JUSTINO I Apologia XIV 1
569 SIMONE In JUSTINO filoacutesofo e maacutertir Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 799
570 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
571 O escrito chama-se de Discurso aos Gregos composto por Taciano o mais famoso entre os disciacutepulos de
Justino Esta obra reconhecidamente representa um ataque frontal contra tudo que os gregos consideravam
valioso em seu exerciacutecio da racionalidade especialmente naquilo que constituiacutea as bases de sua metafisica O
escrito de caraacuteter apologeacutetico tambeacutem se salienta pela defesa dos chamados ldquobaacuterbarosrdquo isto eacute dos cristatildeos Ver
GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 89
131
sabedoria dos ldquobaacuterbarosrdquo natildeo a entenderam e portanto adulteraram a verdade que os
hebreus conheciam Portanto a suposta sabedoria grega natildeo eacute senatildeo um paacutelido reflexo
e uma caricatura da verdade que Moiseacutes conheceu e que os cristatildeos agora pregam572
Um fator nesta conjuntura que apresenta caracteriacutesticas agudas estaacute na apropriaccedilatildeo de
que agrave ldquosabedoriardquo (como sendo o grande fundo de conhecimento) proveniente da filosofia e
toda ou qualquer outra forma de conhecimento humano considerado como elevado para a
concepccedilatildeo da eacutepoca usava de bases ontoloacutegicas em sua refutaccedilatildeo dos elementos vitais
apresentados pela feacute cristatilde que estava em pleno estabelecimento e curso de seu exerciacutecio
naquele ambiente gentiacutelico573
O ministeacuterio a morte e especialmente a ressurreiccedilatildeo de Cristo574 causavam natildeo apenas
estranheza mas tambeacutem incocircmodo a classe intelectual dominante O testemunho de Paulo nos
apresenta uma fraccedilatildeo dessa realidade cultural O Apoacutestolo desenvolve uma definiccedilatildeo
figurativa mas nada ilusoacuteria desta realidade e de sua reaccedilatildeo para com a nova mensagem que
surgia Ele escreve ldquoPorque tanto os judeus pedem sinais como os gregos buscam sabedoria
mas noacutes pregamos a Cristo crucificado escacircndalo para os judeus loucura para os gentiosrdquo (1
Co 122-23) Neste contexto Paulo afirma que os ldquogregos insistiam em explicaccedilotildees racionais e
buscavam sistemas especulativosrdquo575 Um procedimento de harmonizaccedilatildeo que facilmente
condicionava a si exigecircncias de que ldquoDeus se revelasse em harmonia com as suas ideias em
particularrdquo576
Portanto atraveacutes dos relatos registrados acima podemos afirmar que uma espeacutecie de
ldquomonopoacutelio do saberrdquo procurava se manter vigorosamente ativo Este cenaacuterio histoacuterico foi o
mesmo em que Justino teve que apresentar sua mensagem apologeacutetica afirmando que Aquele
ao qual representava simbolizava a plena afirmaccedilatildeo de uma loacutegica da ordenaccedilatildeo Divina entre
os homens Isso se concretiza em suas obras especialmente na I Apologia quando afirma ndash de
uma forma praticamente sistemaacutetica ndash que as profecias do Antigo Testamento se cumpriram na
encarnaccedilatildeo do Logos A obra de Gonzaacutelez nos auxilia na compreensatildeo desta loacutegica orientada e
proposta por Justino
572 TACIANO Discurso Contra os Gregos apud GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 89
573 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 88
574 Ver Atos dos Apoacutestolos 1718-32
575 METZ In A Primeira Epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006 p 253 grifo do
autor
576 METZ In A Primeira Epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006 p 254
132
Segundo os filoacutesofos gregos tudo o que nossa mente consegue compreender o faz
porquecirc de algum modo participa do ldquologosrdquo ou razatildeo universal Por exemplo se
podemos compreender que dois e dois satildeo quatro isso se deve ao fato de que tanto
em nossa mente como no universo existe um ldquologosrdquo uma razatildeo ou ordem segundo
o qual dois e dois satildeo quatro Ora o que os cristatildeos creem eacute que em Jesus Cristo esse
logos ndash e esta eacute a palavra que aparece no proacutelogo do Quarto Evangelho ndash se fez carne
O que Joatildeo 114 nos diz eacute que a razatildeo fundamental do universo o verbo ou palavra
(logos) de Deus se fez carne em Jesus Cristo577
Nesse ambiente tatildeo carregado de ordenamentos filosoacuteficos e por conseguinte tambeacutem
teoloacutegicos nasce uma interrogaccedilatildeo de acentuada relevacircncia ldquoMas por que esta interpretaccedilatildeo
sobre Jesus deve ser acreditadardquo578 Como premissa seria interessante (ou necessaacuterio)
providenciar uma soluccedilatildeo para esta demanda partindo do que podemos encontrar no proacuteprio
autor (Justino)
Assim o Apologista comeccedila a nos responder este ponto que poderia ser interpretada
como repetitiva eou ateacute mesmo ldquotrivialrdquo para com o contexto filosoacutefico e teoloacutegico moderno
Contudo esta questatildeo parece ter sido solucionada de forma amplamente criativa e inovadora
para com aquele contexto sociorreligioso Justino responde essa pergunta de caraacuteter entranhaacutevel
ndash figadal para alguns ouvintes espirituosa para outros ndash dizendo ldquoos homens poderiam
considerar incriacutevel e impossiacutevel de acontecer Deus o indicou antecipadamente por meio do
Espiacuterito profeacutetico para que quando acontecesse natildeo lhe fosse negada a feacute e sim justamente
por ter sido predito fosse acreditadordquo579
Entretanto cabe-nos realocar Walde nesta construccedilatildeo conceitual (a pergunta acima eacute
de sua autoria) Ele nos propotildee duas razoaacuteveis respostas na tentativa de concretizar sua ideia
tendo como base o que pode ser considerado um resultado ordenado na tentativa de tornar a
mensagem de Justino plausiacutevel A primeira baseia-se direta e integralmente em uma citaccedilatildeo da
I Apologia Walde vecirc com consideraacutevel eficiecircncia nas palavras de Justino580 uma opccedilatildeo
admissiacutevel para emoldurar essa questatildeo Importante tambeacutem eacute entendermos que no contexto
daquela eacutepoca (e igualmente na atualidade) em questotildees que envolviam a aplicaccedilatildeo de algumas
proposiccedilotildees natildeo bastava ser diretivo era necessaacuterio ser consequente Desta forma o autor
inicia a resposta agrave sua pergunta citando o Apologista581
577 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 92 grifo nosso
578 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
579 JUSTINO I Apologia XXXIII 2
580 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
581 Ver JUSTINO I Apologia XXXI 7-8
133
Nos livros dos profetas jaacute encontramos anunciado que Jesus nosso Cristo deveria vir
nascido de uma virgem que ele chegaria agrave idade adulta curaria toda doenccedila toda
fraqueza e ressuscitaria dos mortos que seria invejado desconhecido e crucificado
que morreria ressuscitaria e subiria aos ceacuteus que ele eacute e se chama Filho de Deus que
ele enviaria alguns para proclamar essas coisas a todo o gecircnero humano e seriam os
homens das naccedilotildees aqueles que mais creriam nelerdquo E essas profecias foram feitas
umas cinco outras trecircs outras dois mil e outras mil e oitocentos anos antes que ele
aparecesse no mundo Com efeito eacute sabido que os profetas se sucederam uns aos
outros de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo582
A segunda resposta de Walde se orienta atraveacutes de uma questatildeo cultural que tambeacutem
possui uma importante relevacircncia neste cenaacuterio ldquoNatildeo soacute foi o cumprimento da profecia notaacutevel
em si mesmo mas tambeacutem foi significante que tais profecias foram feitas muito antes dos
filoacutesofos gregos pois diferente de hoje a antiguidade era importante para a mentalidade grega
em estabelecer uma crenccedilardquo583 Cabe-nos registrar que nesse enlace a pesquisa biacuteblica teoloacutegica
poderia apontar datas posteriores (ao periacuteodo da Filosofia Claacutessica) para a promulgaccedilatildeo dessas
Palavras Profeacuteticas (Messiacircnicas) aleacutem de debater se os ldquotextos satildeo autecircnticosrdquo584 no entanto
lembramos que nosso alvo em anaacutelise estaacute centrado na pessoa de Justino o qual sem nenhuma
duacutevida eacute um dos pioneiros da interpretaccedilatildeo de caraacuteter expositivo e natildeo cientiacutefico meacutetodo (por
assim chamar) reconhecidamente usual no periacuteodo Patriacutestico ateacute o Seacuteculo V585 Deste modo
para Justino natildeo havia duacutevidas as profecias satildeo anteriores aos filoacutesofos
Na busca de um resultado mais qualificado para esta pesquisa entendemos que uma
anaacutelise mais pormenorizada da I Apologia ainda se faz necessaacuteria em pelo menos um quesito
O cenaacuterio no qual a I Apologia foi escrita expunha necessidades claras de se apresentar
evidecircncias fortes na tentativa de se estabelecer o status necessaacuterio as provas que visavam
atestar o cumprimento das profecias messiacircnicas na existecircncia futura (encarnaccedilatildeo) de Cristo
Nunca podemos esquecer que para Justino de forma primordial o cristianismo se estabelecia
em um esquema com propriedades ldquomorfoloacutegicasrdquo pois este era mais que um sistema ndash como
configurado em escolas filosoacuteficas ndash ele era essencialmente ldquouma pessoa o Verbo encarnado
e crucificado em Jesus que lhe revelou o misteacuterio de Deusrdquo586 Para Justino questotildees factiacuteveis
parecem ser importantes ou ateacute mesmo fundamentais no programa que ele visava representar
582 JUSTINO I Apologia XXXI 7-8
583 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
584 ROumlSEL Panorama do Antigo Testamento histoacuteria contexto e teologiacutea 2009 p 95
585 HALL Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja 2003
586 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 152 grifo nosso
134
de forma minuciosa Sendo assim vemos em sua construccedilatildeo apologeacutetica um claro objetivo de
desenvolvimento daquilo que ele desejava provar por meio de suas palavras
Eacute portanto necessaacuterio apresentar detalhadamente as citaccedilotildees que salientam a
encarnaccedilatildeo de Cristo na visatildeo de Justino O esquema abaixo baseia-se nas obras de Frangiotti587
e Santos588 os quais retratam em seus trabalhos esta conexatildeo exegeacutetica existente em Justino
Neste esquema conseguimos visualizar com significativa clareza (de maneira ateacute mesmo
didaacutetica) a notaacutevel relaccedilatildeo dos textos da I Apologia com os textos do Antigo Testamento que
para Justino antecipam a encarnaccedilatildeo de Cristo Segundo a obra do Apologista a realizaccedilatildeo das
Palavras preditas pelos profetas de Israel constitui a conexatildeo com o Logos tornado carne e
concretiza um dos pontos elementares da accedilatildeo de Deus em meio aos homens Partindo da I
Apologia em paralelo com a Primeira Alianccedila vemos
I Apologia Antigo Testamento
Moiseacutes que foi o primeiro dos profetas
disse literalmente ldquoNatildeo faltaraacute priacutencipe
de Judaacute nem chefe saiacutedo de seus
muacutesculos ateacute que venha aquele a quem
estaacute reservado Ele seraacute a esperanccedila das
naccedilotildees amarrando seu jumentinho agrave
vinha e lavando sua roupa no sangue da
uvardquo (JUSTINO I Apologia XXXII 1)
ldquoNatildeo faltaraacute priacutencipe de Judaacute nem mesmo um
chefe de suas entranhas ateacute que venha aquilo
que estaacute guardado para ele ele eacute a expectativa
dos povos Ele amarraraacute seu jumentinho agrave
vinha e o filhote do seu jumento ao ramo ele
lavaraacute sua veste em vinho e o seu manto no
sangue das uvasrdquo589 Gecircnesis 4910-11
E Isaiacuteas outro profeta diz a mesma coisa
com outras palavras ldquoLevantar-se-aacute uma
estrela de Jacoacute e uma flor subiraacute da raiz
de Isaiacute e as naccedilotildees esperaram sobre o seu
braccedilordquo (JUSTINO I Apologia XXXII
12a)
ldquoLevantar-se-aacute um broto da raiz de Jesseacute e um
renovo subiraacute desta raiz [] Naquele dia
haveraacute a raiz de Jesseacute que se levanta para
587 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 24-26
588 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 115-
117
589 No original ldquoοὐκ ἐκλείψει ἄρχων ἐξ Ιουδα καὶ ἡγούμενος ἐκ τῶν μηρῶν αὐτοῦ ἕως ἂν ἔλθῃ τὰ ἀποκείμενα αὐτῷ
καὶ αὐτὸς προσδοκία ἐθνῶν δεσμεύων πρὸς ἄμπελον τὸν πῶλον αὐτοῦ καὶ τῇ ἕλικι τὸν πῶλον τῆς ὄνου αὐτοῦ πλυνεῖ
ἐν οἴνῳ τὴν στολὴν αὐτοῦ καὶ ἐν αἵματι σταφυλῆς τὴν περιβολὴν αὐτοῦrdquo
135
governar as naccedilotildees nele esperaratildeo as naccedilotildees
e seu repouso seraacute gloriosordquo590 Isaiacuteas 11110
Escutai agora como foi literalmente
profetizado por Isaiacuteas que Cristo seria
concebido por uma virgem Ele diz o
seguinte ldquoEis que uma virgem conceberaacute
e daraacute agrave luz um filho e lhe poratildeo o nome
Deus conoscordquo (JUSTINO I Apologia
XXXIII 1)
ldquoPor causa disto o proacuteprio Senhor vos daraacute
um sinal eis que a virgem conceberaacute e daraacute agrave
luz um filho e tu lhe daraacutes o nome de
Emanuelrdquo591 Isaiacuteas 714
Escutai agora como Miqueacuteias outro
profeta predisse o lugar da terra em que
ele nasceria Assim diz ldquoE tu Beleacutem terra
de Judaacute de modo algum eacutes a menor entre
os priacutencipes de Judaacute pois de ti sairaacute o
chefe que apascentaraacute o meu povordquo
(JUSTINO I Apologia XXXIV 1)
ldquoE tu Beleacutem casa de Efrata eacutes insignificante
em tua existecircncia entre os milhares de Judaacute
poreacutem em teu meio se levantaraacute aquele que
seraacute governante em Israel Tambeacutem as
origens dele satildeo desde o princiacutepio desde os
tempos eternosrdquo592 Miqueacuteias 51
Tambeacutem foi predito que Cristo depois de
nascer viveria oculto aos outros homens
ateacute agrave idade adulta Escutai o que foi dito
antecipadamente a esse respeito Eacute o
seguinte ldquoUm menino nasceu um
pequenino nos foi dado cujo impeacuterio estaacute
sobre os ombrosrdquo ( JUSTINO I Apologia
XXXV 1-2a)
ldquoPorque um menino vos nasceu e um filho vos
foi dado o qual recebeu o governo sobre os
seus ombros E ele seraacute chamado de
Mensageiro do Magniacutefico Conselho pois eu
trarei paz sobre os priacutencipes e sauacutede para
elerdquo593 Isaiacuteas 95
590 No original ldquoκαὶ ἐξελεύσεται ῥάβδος ἐκ τῆς ῥίζης Ιεσσαι καὶ ἄνθος ἐκ τῆς ῥίζης ἀναβήσεται [] καὶ ἔσται ἐν
τῇ ἡμέρᾳ ἐκείνῃ ἡ ῥίζα τοῦ Ιεσσαι καὶ ὁ ἀνιστάμενος ἄρχειν ἐθνῶν ἐπrsquo αὐτῷ ἔθνη ἐλπιοῦσιν καὶ ἔσται ἡ ἀνάπαυσις
αὐτοῦ τιμήrdquo
591 No original ldquoδιὰ τοῦτο δώσει κύριος αὐτὸς ὑμῖν σημεῖον ἰδοὺ ἡ παρθένος ἐν γαστρὶ ἕξει καὶ τέξεται υἱόν καὶ
καλέσεις τὸ ὄνομα αὐτοῦ Εμμανουηλrdquo
592 No original ldquoκαὶ σύ Βηθλεεμ οἶκος τοῦ Εφραθα ὀλιγοστὸς εἶ τοῦ εἶναι ἐν χιλιάσιν Ιουδα ἐκ σοῦ μοι ἐξελεύσεται
τοῦ εἶναι εἰς ἄρχοντα ἐν τῷ Ισραηλ καὶ αἱ ἔξοδοι αὐτοῦ ἀπrsquo ἀρχῆς ἐξ ἡμερῶν αἰῶνοςrdquo
593 No original ldquoὅτι παιδίον ἐγεννήθη ἡμῖν υἱὸς καὶ ἐδόθη ἡμῖν οὗ ἡ ἀρχὴ ἐγενήθη ἐπὶ τοῦ ὤμου αὐτοῦ καὶ καλεῖται
τὸ ὄνομα αὐτοῦ μεγάλης βουλῆς ἄγγελος ἐγὼ γὰρ ἄξω εἰρήνην ἐπὶ τοὺς ἄρχοντας εἰρήνην καὶ ὑγίειαν αὐτῷrdquo
136
E outra vez por meio de outro profeta diz
com outras palavras ldquoEles transpassaram
meus peacutes e minhas matildeos e lanccedilaram sorte
sobre a minha roupardquo (JUSTINO I
Apologia XXXV 5)
ldquoPois muitos catildees me cercaram a assembleia
dos perversos me rodeia traspassaram as
minhas matildeos e os meus peacutes [] Repartiram
entre si as minhas vestes e sobre o meu traje
lanccedilaram sortesrdquo594 Salmos 211719
Citamos tambeacutem a profecia de outro
profeta Sofonias595 que literalmente
profetizou que ele montaria sobre um
jumentinho e desse modo entraria em
Jerusaleacutem Satildeo estas as suas palavras
ldquoAlegra-te muito filha de Siatildeo daacute gritos
filha de Jerusaleacutem Eis que o teu rei vem a
ti manso montado sobre um jumento
sobre um jumentinho filho de um animal
de jugordquo (JUSTINO I Apologia XXXV
10-11)
ldquoRegozija-te muito Filha de Siatildeo proclama
Filha de Jerusaleacutem Eis que o teu rei vem a ti
ele eacute justo e salvador Ele eacute humilde e estaacute
montado sobre um jumentinho um asno
novordquo596 Zacarias 99
Em suma podemos afirmar que em Justino encontra-se uma salutar e liacutempida
cristologia messiacircnica baseada consistentemente no Antigo Testamento597 De maneira
objetiva a descriccedilatildeo que conseguimos desenvolver a partir do texto de Justino nos aponta para
uma consistente elaboraccedilatildeo no qual alguns detalhes de caraacuteter terminante (irrevogaacuteveis)
quanto a funccedilatildeo de serem utilizados como conceitos primazes ndash na tentativa de estabelecer
princiacutepios e valores fundantes ndash se evidenciam por parte e a partir dos apontamentos de caraacuteter
particular que Justino faz agrave pessoa de Jesus Cristo (especialmente na I Apologia) Sem exageros
eacute possiacutevel agregarmos a esta organizaccedilatildeo textual a intenccedilatildeo de apresentar uma proposta de
constituiccedilatildeo messiacircnica segundo um modelo cristoloacutegico em desenvolvimento o qual seguia
594 No original ldquoὅτι ἐκύκλωσάν με κύνες πολλοί συναγωγὴ πονηρευομένων περιέσχον με ὤρυξαν χεῖράς μου καὶ
πόδας [] διεμερίσαντο τὰ ἱμάτιά μου ἑαυτοῖς καὶ ἐπὶ τὸν ἱματισμόν μου ἔβαλον κλῆρονrdquo
595 O Profeta aqui mencionado deveria ser Zacarias e natildeo Sofonias O equiacutevoco possivelmente natildeo eacute do tradutor
mas sim de Justino No texto grego temos σοφονιανSofonian
596 No original ldquoχαῖρε σφόδρα θύγατερ Σιων κήρυσσε θύγατερ Ιερουσαλημ ἰδοὺ ὁ βασιλεύς σου ἔρχεταί σοι δίκαιος
καὶ σῴζων αὐτός πραῢς καὶ ἐπιβεβηκὼς ἐπὶ ὑποζύγιον καὶ πῶλον νέονrdquo
597 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
137
de perto a ortodoxia da eacutepoca que jaacute estava sofrendo inuacutemeros ataques de acircmbito interno e
externo598
Natildeo haacute consenso de que Justino tenha inaugurado esse meacutetodo exegeacutetico599 mas sem
duacutevida eacute um dos que melhor conseguiu contribuir para o desenvolvimento desta temaacutetica na
histoacuteria da teologia dogmaacutetica600 Neste contexto em particular o Apologista passou a ser visto
como um claro orientador eou catalisador dos pressupostos existentes na filosofia grega Ele eacute
o primeiro a conceber o Logos como uma evidecircncia viaacutevel para uma siacutentese teoacuterica
possibilitando deste modo seu envolvimento no cristianismo Essa participaccedilatildeo intelectual
indiscutivelmente se destaca em sua autenticidade autoral a ponto de podermos dizer que
Justino foi o responsaacutevel por lanccedilar ldquoos fundamentos de um humanismo cristatildeordquo601
Este estudo evidenciou o apreccedilo e o temor de Justino pelas Sagradas Escrituras Sua
abordagem leitura e registro das profecias veterotestamentaacuterias constituem um quadro de
profunda responsabilidade e sobriedade por parte do Apologista especialmente naquilo que se
refere agrave descriccedilatildeo e aplicaccedilatildeo de seu conceito sobre o que seria a Verdade sempre focando esse
fim como um resultado da revelaccedilatildeo escrituriacutestica Nesse ponto em especiacutefico a ponderaccedilatildeo de
Xavier nos oferece generosa lucidez ldquosua obra como um todo contribui para explicar a feacute cristatilde
baseada nas Escrituras como a fonte suprema de autoridade cujas profecias podem ser
compreendidas somente pela Graccedila de Deusrdquo602
Por uacuteltimo ainda devemos adotar uma postura clara e objetiva junto a este processo
que em si traz elementos fortemente interpretativos Assim salientamos que na concepccedilatildeo de
Justino era fundamental que o procedimento exegeacutetico de um cristatildeo sempre orientasse seus
leitoresouvintesmeditantes a conhecer e descobrir agrave Verdade O acontecimento que expressava
de forma incondicional que a revelaccedilatildeo Divina se realizou concretiza-se de maneira simples
nos elementos (profecias) que provam que o Logos encarnou603 Estes relatos profeacuteticos
apresentavam as condiccedilotildees ideais tornando-se assim em fatos irrefutaacuteveis para aqueles que
598 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
599 Para Daniel-Rops Justino utiliza-se do meacutetodo de interpretaccedilatildeo jaacute encontrado em Fiacutelon de Alexandria Nesse
processo partia-se do sentido concreto e histoacuterico do relato (biacuteblico) passando a seguir a busca de se obter
(alcanccedilardescobrir) uma explicaccedilatildeo de espeacutecie simboacutelica existente (implicitamente) nos Textos Sagrados Deste
modo essa ldquodescobertardquo de caraacuteter esoteacuterico tornava-se o objetivo uacuteltimo (principal) a ser alcanccedilado nesse meacutetodo
interpretativo Contudo faltam evidecircncias mais concretas sobre essa relaccedilatildeo e influecircncia autoral sobre Justino
Ver DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 280
600 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
601 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 30
602 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 21
603 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000
138
nisso criam fazendo com que cristatildeos de todas as classes e niacuteveis viessem a abraccedilar essa ideia
(como conceito) passando a compreender o cristianismo como um valor permanente do
ldquoespiacuterito humano a que a Encarnaccedilatildeo deu o seu verdadeiro sentido e o seu alcancerdquo604 Neste
contexto de impressionante singularidade a citaccedilatildeo de Santos nos permite encerrar com
excepcional qualidade esse item apresentado ldquoTodos os detalhes da histoacuteria de Jesus jaacute estavam
preditos nos profetas do Antigo Testamento Essa eacute a maior prova da superioridade da religiatildeo
cristatilde Por isso na concepccedilatildeo de Justino tudo o que eles (os cristatildeos) dizem eacute a verdaderdquo605
604 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279 grifo nosso
605 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 117
grifo nosso
139
CONCLUSAtildeO
A presente dissertaccedilatildeo procurou explanar a respeito de uma concepccedilatildeo que se destaca
por sua ordem moral e por seus paracircmetros dogmaacuteticos apresentando-se como uma chancela
na descriccedilatildeo apologeacutetica de Justino Maacutertir Este ponto de valor axiomaacutetico revelado pelo
Apologista torna-se de maneira evidente em uma espeacutecie de mediador de sua mensagem
permeando-se em toda a extensatildeo de um de seus mais conhecidos tratados literaacuterios Assim
reconhecemos que a I Apologia de Justino estaacute repleta de uma empolgante apresentaccedilatildeo do
termo Verdade sendo este substantivo normalmente utilizado pelo autor para uma distinccedilatildeo de
caraacuteter qualitativo sobre a representaccedilatildeo de um novo conjunto humano da realidade
sociorreligiosa do Seacuteculo II
Para Justino evidenciar a Verdade era tambeacutem ldquosetorizaacute-lardquo de alguma maneira dentro
da realidade humana Necessariamente essa postura adotada pelo Apologista acabou por se
definir por meio de sua leitura ativa sobre o estado e as praacuteticas de um grupo do qual ele mesmo
pertencia e do qual se estabeleciam as bases para sua dialeacutetica Logo falar sobre a Verdade
para Justino era falar dos recursos conceituais e praacuteticos vivenciados pelos cristatildeos de seu
tempo
Importa-nos nesta conclusatildeo ressaltar que Justino visava necessariamente qualificar o
ldquoobjetordquo junto a ldquoideiardquo que possuiacutea e defendia e como um bom filoacutesofo procurou obter
explicaccedilotildees satisfatoacuterias que salientassem sua posse daquilo que realmente era verdadeiro Na
esteira desta ideia o pensamento contemporacircneo balizado em argumentos considerados
ldquoortodoxosrdquo ndash mesmo tendo se passado quase vinte seacuteculos ndash ainda redunda com forccedila pois
consegue conceber que se estar na Verdade eacute para o espiacuterito humano possibilitar que as coisas
recebam agrave devida e real importacircncia que elas possuem na realidade
A partir disso na consciecircncia do Apologista tudo o que era produzido pela feacute cristatilde ndash
sendo ela assumida como um meio constitutivo de vida e praacutetica ndash possibilitava o
desenvolvimento de um senso de valor inesgotaacutevel sobre aquilo que se pode minimamente
relacionar como sendo o real o lugar onde a Verdade se ldquohospedardquo sendo que esta existecircncia
estaacute soberanamente ligada a uma realidade superiortranscendente ou seja esse real eacute Deus
Logo estar na Verdade seraacute sempre reconhecer a soberana realidade de Deus Esta
realidade percebida de forma geral pela noccedilatildeo de se possuir a Verdade eacute a realidade de Deus
manifestada pois aquilo que os cristatildeos vivem eacute a realidade de Deus entre noacutes Assim a
Verdade seraacute confessar a infinita majestade e santidade divinas por meio do legado de Deus
140
orquestrado pelos cristatildeos Nesta linha por meio dos princiacutepios metodoloacutegicos de Justino
consegue-se sintetizar com eficaacutecia e transparecircncia os resultados aos quais o Apologista
chegou como tambeacutem compreende-se melhor sua finalidade apologeacutetica que aponta com
clareza para uma identificaccedilatildeo que conforma a ideia (Verdade) ao objeto (Jesus Cristo) o dito
(novo Modus Vivendi) ao feito (Praxis Fidei) o anunciado (Profecias Messiacircnicas) ao ocorrido
(Encarnaccedilatildeo) em seu sentido absoluto
O problema que esta pesquisa levantou objetivamente foi qual o sentido do vocaacutebulo
ldquoVerdaderdquo empreendido de forma maximal por Justino na sua primeira obra apologeacutetica A
partir disto quatro capiacutetulos foram desenvolvidos na busca de se estabelecer um caminho
central e loacutegico para a soluccedilatildeo dessa questatildeo
O primeiro capiacutetulo fez uma breve apresentaccedilatildeo de Justino sua vida seu ministeacuterio
sua obra e seu contexto histoacuterico De maneira objetiva apresentamos um resumo biograacutefico da
pessoa de Justino em seu meio social e histoacuterico Procurou-se tambeacutem apresentar traccedilos
importantes para a compreensatildeo do cenaacuterio que elaborou nossa argumentaccedilatildeo central onde o
Pai Apologista Justino foi apresentado e a obra base desta pesquisa foi examinada de modo
literaacuterio dentro da necessidade requerida ndash relaccedilatildeo na qual ainda se agregou a perspectiva
cultural de Justino e por consequecircncia esta nos conduziu a uma abordagem sobre sua formaccedilatildeo
filosoacutefica
Mesmo natildeo sendo um dos pontos de sustentaacuteculo para a estrutura desta pesquisa em
nossa opiniatildeo o fator mais importante deste primeiro capiacutetulo certamente eacute o fenocircmeno do
martiacuterio entre os cristatildeos Fora do acircmbito teoloacutegico este traacutegico processo poderia ser
interpretado de forma estranha quando apresentado como um elemento determinante e ateacute
mesmo uacutetil enquanto via para que os natildeo-cristatildeos viessem a se converter e assim conhecerem a
Verdade Desta forma compreendemos que o processo de martiacuterio dos cristatildeos como um fato
histoacuterico foi influente na concepccedilatildeo e fundamental na constituiccedilatildeo do desenvolvimento do
ideaacuterio de Justino O Apologista por meio de sua obra nos oferece a niacutetida impressatildeo de ser um
habilidoso comentador da revelaccedilatildeo escrituriacutestica tambeacutem um autecircntico conhecedor da vida
espiritual mas acima de tudo demonstra ser um irredutiacutevel defensor da crenccedila que possuiacutea
selando sua obra ministeacuterio e vida com o proacuteprio sangue derramado O martiacuterio cristatildeo foi eacute e
continuaraacute sendo um dos casos mais misterioso e emblemaacutetico da histoacuteria da civilizaccedilatildeo
humana
O segundo capiacutetulo falou sobre o novo modus vivendi orquestrado pelos cristatildeos onde
se pode de maneira sinteacutetica observar as praacuteticas do contexto social de Justino apresentando e
clarificando o que eram os haacutebitos cristatildeos em contraste com o cotidiano da cultura greco-
141
romana Nesse processo estabeleceu-se uma descriccedilatildeo de cunho analiacutetico que procurou seguir
uma loacutegica encontrada em Justino o qual pocircs em praacutetica nossa leitura sobre o meacutetodo dialeacutetico
e empiacuterico do Apologista O capiacutetulo apresenta ldquoa nova identidaderdquo surgida junto ao cenaacuterio
sociorreligioso da eacutepoca o cristianismo Aleacutem disto definir aqueles que natildeo compunham esse
grupo de feacute ndash os Judeus e os Gentios ndash tornou-se tambeacutem uma tarefa necessaacuteria Por isso foi
indispensaacutevel apresentar os criteacuterios que para Justino demonstravam a ordem sistemaacutetica de um
grupo que se distinguia e separava dos demais Para Justino tratava-se da praxis fidei Adversus
Iniquitatem ldquoa praacutetica da feacute contra a iniquidaderdquo um realce com tonalidades absolutamente
opostas que apresentava um claro e inevitaacutevel ambiente de separaccedilatildeo entre os grupos
Deste modo esta segunda divisatildeo da pesquisa nos conduziu a uma inserccedilatildeo de postura
paradoxal para com alguns haacutebitos e assuntos humanos que no periacuteodo ocupavam tanto o
acircmbito privado quanto puacuteblico Assim algumas provas factiacuteveis passaram a ser descritas como
sentenccedilas de um novo modus vivendi ndash proposto por Justino ndash na conjuntura sociorreligiosa do
Seacuteculo II fato altamente desafiador o qual definimos em sentenccedilas classificadas como
teologais deterministas e puristas de acordo com suas consequecircncias praacuteticas Aqui salientou-
se o iniacutecio das distinccedilotildees que descreviam a certeza de haver um estado manifesto e claro do
que era a Verdade para Justino
O terceiro capiacutetulo retratou a filosofia em Justino tratando a respeito de sua influecircncia
e seu legado nesse seguimento O desenvolvimento desse capiacutetulo partiu de um formal apelo
desenvolvido pelo proacuteprio Apologista no capiacutetulo XXVIII da I Apologia para o uso da razatildeo
como um elemento determinante para o reconhecimento da Verdade oriunda da revelaccedilatildeo
Divina Um exame introdutoacuterio sobre o capiacutetulo XXVIII abriu o caminho para o entendimento
do que eacute filosofia para Justino A partir disto explicitou-se o filoacutesofo Justino evidenciando
suas principais influecircncias filosoacuteficas oriundas do estoicismo e do meacutedio platonismo aleacutem de
apresentar um sinteacutetico esboccedilo do autecircntico conceito de Logos encontrado em nosso autor
filoacutesofo-teoacutelogo
Todavia o aacutepice desta seccedilatildeo encontra-se em seu uacuteltimo item onde se justificou o que
Justino almejava com a citaccedilatildeo ldquoSe algueacutem natildeo crecirc que Deus se preocupe com essas coisas
(uso da razatildeo)rdquo606 O Apologista realccedila de uma forma quase ldquopalpaacutevelrdquo sua compreensatildeo de
como se concebia naturalmente a feacute em Jesus Cristo Partindo do fato de que a razatildeo eacute um
recurso exclusivamente humano Justino entendia que apenas nisso estavam condicionadas
todas as possibilidades reais do autecircntico Logos ser recebido e concebido pelos homens o que
606 JUSTINO I Apologia XXVIII 4 grifo nosso
142
os levava a verdadeira filosofia e os afastava decisivamente dos equiacutevocos e enganos praticados
pelos democircnios
O quarto e derradeiro capiacutetulo deste estudo salienta o que Justino considera o ponto
alto da revelaccedilatildeo por ele recebida o cumprimento das profecias messiacircnicas e as consequecircncias
para compreender o que Justino considera como sendo a Verdade
Iniciamos com uma sinteacutetica poreacutem objetiva descriccedilatildeo dos elementos socioculturais
de acircmbito religioso que desde a Antiguidade ateacute os dias de Justino formaram e identificaram a
figura de um Messias na cultura judaica Em seguida analisamos a revelaccedilatildeo das profecias
messiacircnicas do Antigo Testamento na visatildeo de Justino referentes a pessoa de Jesus Cristo
Finalizamos este capiacutetulo ratificando o conceito que definimos como principal para
Justino em sua descriccedilatildeo apologeacutetica o qual apresentava a Verdade ao mundo O modo e o
sentido que o Apologista procurava dar agrave concepccedilatildeo central de sua feacute passava necessariamente
pela identificaccedilatildeo entre o Logos dos filoacutesofos com o personagem messiacircnico preconizado pelos
profetas do Antigo Testamento Vimos que esse ser que havia sido reconhecido pelos filoacutesofos
como o Logos tambeacutem havia sido profetizado pelos servos de Deus A providecircncia Divina
levou a humanidade ao ponto alto desta histoacuteria quando o Logos profetizado se encarnado
Logo as profecias se cumpriram Assim concluiacutemos que este cenaacuterio e seus casos tornaram-se
para Justino um elemento real que evidenciava de maneira inquestionaacutevel o que era a Verdade
em sentido absoluto
Por fim eacute oportuno registrar a pertinente e categoacuterica postura do Apologista em aceitar
o cristianismo como ldquoa verdadeira razatildeordquo607 Justino compreendeu que a feacute cristatilde tinha em si
alguns pontos de caraacuteter deliberativo e proposital que consequentemente se estabeleciam nas
vidas que se estruturavam sobre esses preceitos utilizando-os de forma resolutiva Aqui cabe
ressaltar que para uma correta anaacutelise de Justino como autor eacute necessaacuterio se utilizar de medidas
efetivas que amparem o uso da razatildeo para os fins que o Apologista entendia serem ordenados
por Deus Nisso salienta-se a compreensatildeo jaacute atestada no ideaacuterio de Justino de natildeo haver
acepccedilatildeo do recurso da razatildeo a nenhum homem pois todos aqueles que foram criados agrave imagem
e semelhanccedila de Deus podiam ser instruiacutedos desse modo desde as mentes mais simples as mais
capacitadas
Importa-nos ainda registrar que outros aspectos de relevacircncia para esta pesquisa
poderiam ter sido tratados visando um maior aprofundamento desta temaacutetica e suas possiacuteveis
variaccedilotildees De forma praacutetica podemos citar as seguintes observaccedilotildees propor uma maior ecircnfase
607 JUSTINO I Apologia XLIII 6b
143
na questatildeo do martiacuterio cristatildeo como elemento habilitador na construccedilatildeo do conceito da Verdade
como princiacutepio moral e dogmaacutetico uma mais detalhada descriccedilatildeo do conceito Logos tanto para
a cultura helecircnica quanto para os cristatildeos do Seacuteculo II abordar sobre o conceito elaborado por
Justino de Jesus Cristo ser o mestre dos cristatildeos608 referindo-se ao Messias como o condutor
pleno de toda verdadeira revelaccedilatildeo Divina em detrimento aos mitos criados pelo helenismo
oferecer uma pormenorizada anaacutelise sobre a forccedila ilocucionaacuteria desses atos e discursos
apologeacuteticos Aleacutem disso outros pontos significativos poderiam ter sido abordados na tentativa
de se construir de forma mais completa esse importantiacutessimo cenaacuterio do cristianismo histoacuterico
Contudo essa ampliaccedilatildeo possivelmente ultrapassaria os limites propostos desta pesquisa
provavelmente poluindo sua intenccedilatildeo central
A abordagem desta dissertaccedilatildeo demonstrou que na I Apologia Justino revela e retrata
a sua concepccedilatildeo do que eacute ser cristatildeo e viver na Verdade O Apologista transparece de forma
intensa sua postura em transmitir essa maacutexima que natildeo era simplesmente verossiacutemil em seu
entendimento Eacute fato que essa demonstraccedilatildeo tambeacutem visava proteger e resgatar seu povo de
um cenaacuterio hostil salientando por meio de sua postura uma clara separaccedilatildeo de valores e
preceitos
Vimos que as vicissitudes do tempo natildeo seriam capazes de alterar o objeto e as coisas
que caracterizavam sua posiccedilatildeo que estava plenamente balizada e sustentada por meio de sua
dialeacutetica Isso nos impressiona porque para quem procura entender este testemunho sobre a
Verdade os livros de Justino nunca envelhecem aleacutem disso quase vinte seacuteculos depois os
textos desse notaacutevel cristatildeo ainda reverberam o som do eco causado por nossos vazios que
precisam ser preenchidos pelos conceitos princiacutepios e valores que natildeo pertence a este mundo
Por essa razatildeo ldquodialogarrdquo com Justino na atualidade eacute algo importantiacutessimo e ateacute mesmo
fundamental
Em resumo para Justino a uacutenica via para possuir a Verdade era ser cristatildeo o que
equivale a crer e professar sobre Aquele que prometido pelos antigos profetas de Israel e
percebido pelos antigos filoacutesofos gregos veio em carne para apresentar agrave razatildeo humana os
meios de como se proceder ldquoafirmando a Verdaderdquo609
608 Ver JUSTINO I Apologia XIII 3 XIX 6 XXI 1-6
609 JUSTINO I Apologia XLIII 2a grifo nosso
144
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DIEGO DOS SANTOS WINGERT
CONFORMIDADE ENTRE IDEIA E OBJETO REFLEXAtildeO
SOBRE A VERDADE NA I APOLOGIA DE JUSTINO MAacuteRTIR
Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Faculdade de
Teologia da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica
do Rio Grande do Sul como requisito parcial
para obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Teologia
Aacuterea de Concentraccedilatildeo em Teologia
Sistemaacutetica
Orientador Prof Dr Caacutessio Murilo Dias da
Silva
Aprovada em _____ de _____ de _______ pela Comissatildeo Examinadora
COMISSAtildeO EXAMINADORA
______________________________________
Prof Dr Caacutessio Murilo Dias da Silva ndash PUCRS
______________________________________
Prof Dr Nythamar Hilario Fernandes de Oliveira Junior ndash PUCRS
______________________________________
Prof Dr Andreacute Luiz Rodrigues da Silva ndash PUC-Rio
A memoacuteria de meus familiares
Isidor Nairto Wingert meu querido pai por sua
histoacuteria como docente mas principalmente
pelas doces e constantes lembranccedilas de seu
carinho
Anisio e Maria Andradina dos Santos meus
saudosos avoacutes por seu amor sem medida por
sua entrega total a minha vida
Sempre os amarei
AGRADECIMENTOS
A minha amada Esposa uma luz constante em
minha vida Nela tudo sempre se renova sem
ela pouco restaria
Aos meus queridos filhos Pedro e Maria os
maiores presentes que Deus me deu Cristo
formado em voacutes eacute a maior heranccedila que pretendo
deixar
A minha amada Matildee que foi fundamental para
a realizaccedilatildeo desse sonho Seu amor foi constate
em todo tempo sua coragem sempre me
inspirou e seu legado me enche de orgulho
A meu Tio Ademir que eacute um exemplo vivo do
caraacuteter de Cristo sendo presente nessa
caminhada como um pai que acompanha seu
filho Essa conquista tambeacutem pertence a vocecirc
Ao Prof Caacutessio mestre por vocaccedilatildeo modelo de
excelecircncia para a docecircncia Sua orientaccedilatildeo foi
excepcional sua honestidade intelectual eacute
admiraacutevel Sua postura se tornou um exemplo a
ser seguido por esse teoacutelogo
Aos meus colegas Alexandre Dorcelina
Fernando Filipe Rodrigo e Samuel por tudo o
que compartilhamos e vivemos nesse tempo
jamais os esquecerei
Ao Pai ao Filho ao Espiacuterito Santo de quem eacute
o reino o poder e a gloacuteria de geraccedilatildeo em
geraccedilatildeo pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutem
ldquoEu lhes tenho dado a tua palavra e o mundo
os odiou porque eles natildeo satildeo do mundo como
tambeacutem eu natildeo sou Natildeo peccedilo que os tires do
mundo e sim que os guardes do mal Eles natildeo
satildeo do mundo como tambeacutem eu natildeo sou
Santifica-os na verdade a tua palavra eacute a
verdaderdquo
Joatildeo 1714-17
RESUMO
Esta dissertaccedilatildeo apresenta uma pesquisa bibliograacutefica direcionada a estabelecer a
identificaccedilatildeo moral e dogmaacutetica do termo Verdade exposto de forma predicativa na obra
intitulada I Apologia de Justino Maacutertir Acredita-se que na formaccedilatildeo e constituiccedilatildeo histoacuterica
do cristianismo alguns autores como Justino de Roma ajudaram a criar e fomentar os
paracircmetros necessaacuterios para se estabelecer uma ldquoidentidade cristatilderdquo durante os dois primeiros
seacuteculos da era atual A partir de novos valores e preceitos ordenou-se de maneira pragmaacutetica
uma tentativa de reconhecer e distinguir o fato de ser cristatildeo em meio ao contexto
sociorreligioso do mundo greco-romano De maneira expliacutecita e impliacutecita ndash e agraves vezes de forma
paradoxal ndash Justino categoricamente identifica o que era ser um seguidor de Cristo em sua I
Apologia aleacutem de apresentar o que poderia ser considerado como a Verdade de forma
categoacuterica e ateacute mesmo tangiacutevel nesse processo A partir desse ideaacuterio de feacute a dissertaccedilatildeo
discute questotildees pertinentes sobre o autor a obra base e outras caracteriacutesticas de seu contexto
histoacuterico Foram investigadas as relaccedilotildees entre a cultura helecircnica e o novo modus vivendi
naquele ambiente e nele a identidade filosoacutefica de Justino Por fim apresentou-se um quadro
clarificador sobre os elementos que satildeo considerados evidecircncias inquestionaacuteveis para Justino
do que eacute a Verdade revelada em meio aos homens Desenvolveu-se deste modo uma provaacutevel
definiccedilatildeo da Verdade segundo a concepccedilatildeo de Justino Maacutertir a partir de sua I Apologia
Palavras-chave Justino Maacutertir I Apologia Verdade
ABSTRACT
This dissertation presents a bibliographical research directed to establish the moral and
dogmatic identification of the term Truth exposed in a predicative way in the work entitled I
Apology of Justin Martyr It is believed that in the formation and historical constitution of
Christianity some authors like Justin of Rome helped to create and foster the parameters
necessary to establish a Christian identity during the first two centuries of the present era
From new values and precepts an attempt to recognize and distinguish the fact of being
Christian amidst the socioreligious context of the Greco-Roman world was pragmatically
ordered Explicitly and implicitly - and sometimes in a paradoxical way - Justin categorically
identifies what it was like to be a follower of Christ in his Apology in addition to presenting
what could be categorically and even tangibly Truth in that process From this idea of faith the
dissertation discusses pertinent questions about the author the base work and other
characteristics of its historical context The relations between the Hellenic culture and the new
modus vivendi in that environment were investigated and in it the philosophical identity of
Justin Finally a clarifying picture was presented on the elements that are considered
unquestionable evidences for Justino of what is the Truth revealed among men In this way a
probable definition of the Truth according to the conception of Justin Martyr from his I
Apologia was developed
Keywords Justin Martyr I Apologia Truth
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
1 Pe ndash Primeira Epiacutestola de Pedro
1 Pet ndash The First Epistle of Peter
aC ndash Antes de Cristo
Adv Haer ndash Adversus Haereses
Adv Marcionem ndash Adversus Marcionem
Cap ndash Capiacutetulo
Caps ndash Capiacutetulos
dC ndash Depois de Cristo
Dial ndash Diaacutelogo com Trifatildeo
Gn ndash Livro de Gecircnesis
ICAR ndash Igreja Catoacutelica Apostoacutelica Romana
Jo ndash Evangelho de Joatildeo
Js ndash Livro de Josueacute
Sl ndash Livro dos Salmos
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 11
1 JUSTINO MAacuteRTIR VIDA E OBRA NO CONTEXTO HISTOacuteRICO DO SEacuteCULO II
17
11 JUSTINO DE ROMA 17
12 PAIS DA IGREJA 23
121 Pais Apologistas 26
122 O Apologista Justino 29
13 ANAacuteLISE LITERAacuteRIA DA I APOLOGIA DE JUSTINO 32
131 Dataccedilatildeo 32
132 Divisatildeo Textual 34
133 Gecircnero Literaacuterio 35
134 Manuscritos 38
14 A PERSEGUICcedilAtildeO AOS CRISTAtildeOS 39
141 O Impeacuterio Romano e a Perseguiccedilatildeo ao Cristianismo 40
142 A Perseguiccedilatildeo no Periacuteodo da I Apologia 43
2 O NOVO MODUS VIVENDI 50
21 CRISTIANISMO A NOVA IDENTIDADE 51
22 O MUNDO NAtildeO-CRISTAtildeO 56
221 Os Judeus 58
222 Os Gentios 61
23 PRAXIS FIDEI ADVERSUS INIQUITATEM 65
231 Um Princiacutepio Teologal 68
2311 Praacutetica da Feacute Contra o Politeiacutesmo Relativista 69
2312 Praacutetica da Feacute Contra a Idolatria 70
2313 Praacutetica da Feacute Contra o Ateiacutesmo 71
232 Um Princiacutepio Determinista 75
233 Um Princiacutepio de Pureza 78
3 A VERDADE REVELADA Agrave RAZAtildeO A FILOSOFIA E SEU CONTEXTO NA
PERSPECTIVA DE JUSTINO MAacuteRTIR 84
31 INTRODUCcedilAtildeO AO CAPIacuteTULO XXVIII 85
32 O FILOacuteSOFO JUSTINO 90
321 Estoicismo e Platonismo em Justino 95
322 O Logos em Justino 104
33 RAZAtildeO DEUS SE PREOCUPA COM ESSAS COISAS 110
4 A VERDADE REVELADA POR FATOS PROFEacuteTICOS SEGUNDO JUSTINO 117
41 O MESSIANISMO ATEacute OS DIAS DE JUSTINO 118
42 AS PROFECIAS MESSIAcircNICAS NA VISAtildeO DE JUSTINO 122
43 A ENCARNACcedilAtildeO DO LOGOS APOGEU DA REVELACcedilAtildeO 128
CONCLUSAtildeO 139
REFEREcircNCIAS 144
OBRAS CONSULTADAS 151
11
INTRODUCcedilAtildeO
O assunto desta pesquisa dissertativa vem a ser um exame sobre uma proposta
desenvolvida a partir da obra intitulada I Apologia de Justino Maacutertir tambeacutem conhecido junto
ao meio eclesiaacutestico e acadecircmico como Justino de Roma Reconhecido de forma unacircnime como
um dos ldquomais ceacutelebres apologistas do seacuteculo IIrdquo1 Justino pertence agrave segunda era Patriacutestica
conhecida tradicionalmente pela definiccedilatildeo Pais Apologistas Nessa abordagem visamos
caracterizar a ideia de Justino a partir de sua definiccedilatildeo da palavra Verdade apresentada de
forma axiomaacutetica por diversas vezes em seu primeiro tratado apologeacutetico
Acredita-se que no processo de formaccedilatildeo desenvolvimento e consolidaccedilatildeo do
cristianismo como religiatildeo alguns valores de sentido absoluto (poderiacuteamos dizer dogmaacuteticos)
foram provedores e promovedores de um esquema de reconhecimento2 por meio de fortes
ascendentes (voltados para sua origem) de caracterizaccedilatildeo Esses valores amparados por sinais
e siacutembolos ndash alguns que receberam literal evidecircncia informativa ndash projetaram uma eficiente
identificaccedilatildeo cristatilde conseguindo externar a partir de preceitos e praacuteticas ordenadas um real
estado de enobrecimento3 e assim distinguiram o ser cristatildeo dos demais4
Aleacutem disso em toda a histoacuteria conhecida o homem sempre buscou descobrir quais
eram os reais elementos que promovem e garantem a certeza do bem (conquista felicidade
realizaccedilatildeo etc)5 e da verdade junto aos seres e as coisas com quem convive e se relaciona6
Nesse processo de desenvolvimento passando por todo percurso da histoacuteria humana nos
deparamos com as sequelas de um estado de consciecircncia que estaacute eacutetica eou moralmente
corrompido enfatizado em nosso em caso em especiacutefico pelo incocircmodo que o ser humano
passa quando exposto as consequecircncias e dilemas apresentados pelas ldquofacesrdquo da Verdade
Nesta mesma perspectiva reconhecemos que as ldquotestemunhas da verdade sempre
irritaram os ceacuteticos e os espertosrdquo7 Nessa missatildeo de testificar a Verdade os Apologistas
cristatildeos do Seacuteculo II acabaram por se distinguir mediante contribuiccedilotildees pertinentes para esse
1 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 51
2 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
3 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
4 SCOTT As Catacumbas de Roma 1996
5 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia Dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994
6 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
7 DANIEacuteLOU O Escacircndalo da Verdade1963 p 11
12
processo construtivo tornando-se diferenciais em seu tempo e espaccedilo de atuaccedilatildeo8 Justino
nesse mesmo seguimento acaba ganhando destaque atraveacutes de seus tratados que descrevem a
vida cotidiana dos cristatildeos do periacuteodo sendo-nos possiacutevel afirmar que no que se refere ao
conceito de Verdade (como predicativo) Justino parece estar ldquomais proacuteximo de noacutes do que
muitos pensadores modernosrdquo9
Uma especificidade que devemos apontar como elemento introdutoacuterio neste processo
refere-se ao entendimento de Justino para com o vocaacutebulo Verdade Neste quesito um
imperativo surge pois de forma inquestionaacutevel mediante o registro do Apologista conseguimos
considerar o que ele compreendia sobre o termo verdade em sua dimensatildeo epistemoloacutegica O
vocaacutebulo grego αλήθεια10 que comumente se traduz por verdade em portuguecircs eacute amplamente
utilizado por Justino em sua I Apologia sempre visando dar sentido e precisatildeo (absoluta) para
aquilo que o Apologista procurava identificar como algo literalmente manifesto mas que
dependia de ser apontado como agrave realidade presente e necessaacuteria para os Homens
Este conceito gramatical que Justino carrega sobre o termo Verdade jaacute estaacute presente
nos filoacutesofos11 e seu significado incorpora algo que define bem sua temaacutetica apologeacutetica
Justino compreendia que a realidade necessitava ser deslumbrada pois a verdade estaacute
subentendida a um ldquoestado preacutevio que viemos a descobrir a colocar de manifesto
estabelecendo o que a coisa eacuterdquo12 Deste modo Justino mediante sua metodologia dialeacutetica e
empiacuterica procurava salientar sua posse da Verdade por meio de um ldquosentido de certezardquo que
envolvia e incorporava a comprovaccedilatildeo de seus resultados Estes efeitos eram obtidos no
afastamento de dados distorcidos e encobertos sobre a realidade isso porque uma vez aplicado
tal desvelamento percebia-se como as coisas eram13 fazendo com que a Verdade fosse
colocada diante de seus expectadores
8 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
9 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 152
10 Rusconi ao apresentar este vocaacutebulo aborda inicialmente sobre sua composiccedilatildeo composta onde salienta que a
existecircncia da letra ldquoαrdquo no iniacutecio da palavra eacute uma partiacutecula negativa que estaacute somada ao termo ldquoλαθλήθrdquo que
significa ldquoestar escondidordquo Assim no caso em especiacutefico quase sempre a composiccedilatildeo visa expressar uma
realidade que estaacute ldquoescondida obscura eou esquecidardquo Deste modo a construccedilatildeo gramatical do termo propotildee
que a consequecircncia da autenticidade (verdade) dos fatos eacute o efeito causado pelo desvelamento destes casos Sendo
assim passa-se a conhecer a verdade a partir do momento que se remove as coisas que a ocultam Rusconi ainda
indica que o termo procurava apresentar a realidade como sendo a condiccedilatildeo objetiva das coisas visiacuteveis e
recordaacuteveis ao Homem o que atestava esse desvelamento do que estava oculto Ver RUSCONI Dicionaacuterio do
Grego do Novo Testamento 2003 p 32
11 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
12 HEGENBERG Significado e Conhecimento 1975 p 12
13 HEGENBERG Significado e Conhecimento 1975 p 15
13
A base dessa compreensatildeo sobre o vocaacutebulo verdade eacute utilizada amplamente por
Justino em sua I Apologia sempre visando dar sentido e precisatildeo absoluta para aquilo que o
Apologista procurava identificar como algo literalmente manifesto mas que dependia de ser
apontado como a realidade presente e necessaacuteria para os homens
Neste compasso eacute que esta dissertaccedilatildeo procura examinar como Justino interpretava
um de seus mais usados e emblemaacuteticos termos Este exerciacutecio nos conduz agrave questatildeo principal
que visamos responder nesta pesquisa sendo possiacutevel deste modo argumentarmos sobre este
ponto fundamental atraveacutes da seguinte interrogaccedilatildeo qual o sentido do vocaacutebulo ldquoVerdaderdquo
empreendido de forma maximal por Justino na sua primeira obra apologeacutetica
Sendo assim a realizaccedilatildeo desta pesquisa se deu atraveacutes de um exame bibliograacutefico
com literatura do tipo teoloacutegica filosoacutefica histoacuterica entre outras aacutereas relacionadas ao seu tema
base Cabe-nos salientar que esta dissertaccedilatildeo procura se apresentar como um agregado
intelectual em liacutengua portuguesa14 para sua aacuterea teoloacutegica especiacutefica
(PatriacutesticaPatrologiaHistoacuteria do Dogma) como tambeacutem para as demais aacutereas Humanas que
da mesma forma possam colher frutos num acircmbito interdisciplinar O estudo aqui proposto
baseia-se nos capiacutetulos XXIII-XXX da I Apologia de Justino Maacutertir tornando-se este nosso
principal ponto de delimitaccedilatildeo textual na busca de se compreender o conceito de Verdade para
Justino
Tratando-se dos termos Pai(s) ou Padre(s) ndash convencionalmente utilizados de forma
padratildeo e geneacuterica na titulaccedilatildeo das figuras de destaque na aacuterea Patriacutestica ndash optamos pelo
vocaacutebulo Pai como elemento descritivo a ser utilizado nesta pesquisa Isso devido a duas
questotildees orientativas A primeira busca priorizar a originalidade da liacutengua vernacular desta
dissertaccedilatildeo (portuguecircs) Jaacute a segunda procura seguir uma postura de acircmbito ecumecircnico visto
que o termo Pai se adapta melhor agrave compreensatildeo confessional cristatilde fora da realidade teoloacutegica
da Igreja Catoacutelica Apostoacutelica Romana natildeo trazendo nenhum prejuiacutezo cognitivo aos leitores
desta uacuteltima Instituiccedilatildeo
As citaccedilotildees da I Apologia de Justino foram extraiacutedas de versotildees em liacutengua portuguesa
e grega Em portuguecircs a I Apologia eacute traduzida e editada por Ivo Storniolo e Euclides M
Balancin e comentada por Roque Frangiotti para a coleccedilatildeo Patriacutestica da editora Paulus Jaacute o
texto em seu idioma original estaacute presente em duas publicaccedilotildees a primeira estaacute na coletacircnea
Patrologiae Cursus Completus Series Graeca Volume 6 editado por Jacques Paul Migne e a
14 A falta de trabalhos sobre o pensamento de Justino Maacutertir em liacutengua portuguesa no cenaacuterio nacional (Brasil) eacute
uma evidente deficiecircncia acadecircmica ateacute o momento Ver SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma
Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 12
14
segunda estaacute na coletacircnea Apologies (contendo a I e a II Apologias) traduzida e comentada por
Louis Pautigny A traduccedilatildeo e transliteraccedilatildeo do original grego quando se fez necessaacuterio satildeo de
nossa autoria15
Duas satildeo as traduccedilotildees da Biacuteblia Sagrada em liacutengua portuguesa utilizadas nesta
dissertaccedilatildeo A primeira que eacute aplicada de forma padratildeo em todo corpo textual desta pesquisa
eacute a traduzida em portuguecircs por Joatildeo Ferreira de Almeida 2ordf ediccedilatildeo Revista e Atualizada no
Brasil da Sociedade Biacuteblica do Brasil de 1993 A segunda traduccedilatildeo que eacute utilizada
exclusivamente no quadro comparativo entre os textos da I Apologia de Justino e os textos
escrituriacutesticos do Antigo Testamento localizado no IV capiacutetulo eacute de nossa inteira autoria16
Quanto ao texto grego utiliza-se o Novo Testamento Grego tradicionalmente conhecido por
Textus Receptus 15501894 (que significa texto recebido) de domiacutenio puacuteblico poreacutem editado
e produzido eletronicamente pela Sociedade Biacuteblica do Brasil em 2007 Quanto ao Antigo
Testamento emprega-se a versatildeo grega conhecida como Septuaginta de 190317 de domiacutenio
puacuteblico editada e produzida eletronicamente pela Sociedade Biacuteblica do Brasil em 2007
Esta pesquisa se desenvolve textualmente em quatro capiacutetulos O primeiro capiacutetulo
discute quatro pontos principais O primeiro eacute uma sucinta abordagem biograacutefica da figura
humana de Justino diante dos fatos existentes em seu contexto O segundo apresenta o perfil
histoacuterico e intelectual especialmente na classe Patriacutestica em que estaacute inserido O terceiro ponto
faz uma anaacutelise literaacuteria da I Apologia sua dataccedilatildeo sua divisatildeo textual seu gecircnero literaacuterio e
os manuscritos que se dispotildeem da obra Por uacuteltimo se aborda por meio de uma breve exposiccedilatildeo
histoacuterica o ponto-chave que em meados do Seacuteculo II motivou Justino a redigir esta obra o
fenocircmeno do martiacuterio cristatildeo eacute analisado como sendo a forccedila motriz que conduziu a pena de
Justino neste tratado
O segundo capiacutetulo estaacute dividido em trecircs pontos O primeiro descreve quem eram os
cristatildeos como grupo apresentando algumas de suas particularidades mas visa especialmente
construir algo que se pode explicar como uma definiccedilatildeo ldquoidentitaacuteriardquo destes homens e mulheres
que se haviam tornado mais um segmento do contexto sociorreligioso do Seacuteculo II O segundo
15 As obras de referecircncia utilizadas para tal exerciacutecio de traduccedilatildeo foram Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-
Grego de Isidoro Pereira Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento de Carlo Rusconi Dicionaacuterio Biacuteblico Strong
de James Strong e A Greek-English lexicon of the New Testament being Grimms Wilkes clavis novi testamenti
de Joseph Thayer
16 Esta opccedilatildeo se daacute devido ao fato de natildeo existir em liacutengua portuguesa uma traduccedilatildeo que represente ou se
assemelhe de maneira teacutecnica ao original grego da Septuaginta
17 Os editores empregam correlatamente o termo ldquosem acentuaccedilatildeordquo junto a titulaccedilatildeo desta versatildeo O emprego
ocorre devido ao texto grego natildeo apresentar acentos
15
que daacute seguimento ao ponto anterior visa apresentar um melhor desenvolvimento dos objetivos
deste trabalho deste modo eacute imprescindiacutevel se apresenta um esboccedilo do que para Justino se
caracteriza como os setores da sociedade opostos ao cristianismo nesta relaccedilatildeo duas ldquoclassesrdquo
surgem judeus e gentios Por fim o terceiro ponto aborda o exame principal desta etapa Aqui
se descreve uma potencial relaccedilatildeo entre fatores que por regra se diferenciam essencialmente
sendo esta diferenciaccedilatildeo estabelecida necessariamente por uma nova postura espiritual eou
religiosa Novas variantes surgem de forma definitiva no cenaacuterio sociorreligioso da eacutepoca
confrontando seu status quo o que leva Justino a reagir criando automaticamente uma accedilatildeo
dialeacutetica que envolve conceitos teologais providenciais eacuteticos e morais aleacutem de gerar outras
variaccedilotildees que estabelecem o passo futuro a ser dado por Justino visando um desdobramento
que estabeleccedila sua confissatildeo de feacute Neste cenaacuterio eacute possiacutevel propor uma definiccedilatildeo do que seja
a Verdade para Justino
Tambeacutem o terceiro capiacutetulo tem sua estrutura dividida em trecircs pontos bases O
primeiro aborda o capiacutetulo XXVIII da I Apologia o qual seraacute analisado de forma introdutoacuteria
levando desta maneira ao desenvolvimento do restante da proposta aleacutem de dar fundamento agrave
construccedilatildeo do argumento central que estaacute ancorado no pensamento do Apologista O segundo
ponto do capiacutetulo concentra-se na descriccedilatildeo da filosofia como a principal ldquociecircnciardquo e a base
intelectual na formaccedilatildeo de Justino Neste espaccedilo se vecirc de forma sumarizada o filoacutesofo Justino
aqui tambeacutem se mencionam as principais influecircncias filosoacuteficas na formaccedilatildeo deste Pai da Igreja
onde o estoicismo e o platonismo satildeo salientados Aleacutem disso eacute discutida tambeacutem o conceito
de Logos questatildeo filosoacutefica-teoloacutegica que acabou por se tornar em uma de suas principais
contribuiccedilotildees para a histoacuteria do dogma cristatildeo18 Finalmente o terceiro ponto concentra
esforccedilos no desenvolvimento de uma peculiar abordagem de Justino quanto ao uso e o fim que
a racionalidade humana exerce no seu conjunto de relaccedilotildees Este ambiente formado de coisas
temporais e atemporais caracteriza de maneira clara e oacutebvia para Justino uma postura sistecircmica
como modelo para as atitudes humanas que concentram em si a resposta que define a Verdade
para este Apologista
O quarto e derradeiro capiacutetulo se compotildeem de trecircs pontos elementares Inicia-se por
uma abordagem que procura desenvolver uma raacutepida relaccedilatildeo histoacuterica do conceito messiacircnico
em algumas culturas direcionando seu foco final para a eacutepoca de Justino O segundo item
descreve com certo grau de peculiaridade a definiccedilatildeo do que eram e consequentemente o que
representavam as profecias messiacircnicas do Antigo Testamento para Justino aleacutem de visar
18 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
16
comunicaacute-las de maneira correta acima de tudo a quem ele as apresentou como tipo alvo e
revelaccedilatildeo maacutexima19 Por fim o terceiro ponto expotildee por meio do auxiacutelio de fontes que para
Justino havia um evidente qualificador em sua definiccedilatildeo do cumprimento profeacutetico da Antiga
Alianccedila Este fator se concentra em um axioma que se tornou visiacutevel sendo bem definido pelo
autor do Quarto Evangelho ldquoo Verbo se fez carne e habitou entre noacutes cheio de graccedila e de
verdade e vimos a sua gloacuteria gloacuteria como do unigecircnito do Pairdquo (Joatildeo 114)
Em resumo o primeiro capiacutetulo estaacute centrado no contexto da figura histoacuterica de
Justino O segundo em aspectos significativos sobre a contraposiccedilatildeo de ideias e haacutebitos O
terceiro na obtenccedilatildeo da inteligibilidade do Apologista em resistecircncia a uma previsatildeo
meramente sensiacutevel do agregado vivencial ou funcional de sua realidade O quarto na
afirmaccedilatildeo de um apogeu que sustentado em evidecircncias irrefutaacuteveis para Justino se estabelece
como uma sentenccedila irrevogaacutevel
Este apanhado nos convida a uma reflexatildeo para conhecer e a uma busca para
comprovar o que seria a Verdade na visatildeo de Justino de Roma Daniel-Rops foi mais um dos
tantos que foram conquistados pelas nuances do legado apologeacutetico de Justino e como
consequecircncia deste encontro encoraja seus leitores a aceitarem este desafio
Como os seus problemas satildeo semelhantes aos nossos Como bate seu coraccedilatildeo num
ritmo que conhecemos tatildeo bem Neste filoacutesofo de dezoito seacuteculos ressoa aos nossos
ouvidos uma espeacutecie de Pascal neste dialeacutetico emeacuterito encontra-se uma vontade de
acolhimento e uma abertura de alma que os cristatildeos de hoje podem tomar por
modelo20
19 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991
20 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 277
17
1 JUSTINO MAacuteRTIR VIDA E OBRA NO CONTEXTO HISTOacuteRICO DO SEacuteCULO II
Ao imperador Tito Eacutelio Adriano Antonino Pio Ceacutesar Augusto ao seu filho Veriacutessimo
filoacutesofo e a Luacutecio filho natural do Ceacutesar filoacutesofo e filho adotivo de Pio amante do
saber ao sacro Senado e a todo o povo romano Em prol dos homens de qualquer raccedila
que satildeo injustamente odiados e caluniados eu Justino um deles filho de Prisco que
o foi de Baacutequio natural de Flaacutevia Neaacutepolis na Siacuteria Palestina compus este discurso e
esta suacuteplica21
Para conhecermos melhor a Justino o cognominado Maacutertir da ainda jovem Igreja de
Cristo ndash como tambeacutem ilustre residente da comunidade romana do Seacuteculo II ndash devemos nos
aproximar de suas obras Especialmente nas conhecidas I Apologia e Diaacutelogo com Trifatildeo nos
deparamos com um pequeno poreacutem significativo acesso a informaccedilotildees que fundamenta um
consideraacutevel entendimento histoacuterico desta figura tatildeo destacada daquele periacuteodo22
A partir desta anaacutelise histoacuterica buscaremos desenvolver uma construccedilatildeo por meio de
fatores que entendemos serem essenciais para o progresso do restante desta pesquisa no qual
assuntos de teor elementar procuraratildeo ser respondidos Entre estes podemos identificar alguns
como Quem foi esse homem chamado Justino o qual o testemunho cristatildeo antigo afirma ter
sido morador da cidade de Roma e martirizado por sua feacute A qual classe da sociedade romana
de sua eacutepoca ele pertenceu A qual grupo da ldquointelectualidaderdquo cristatilde ele somou Como e
quando escreveu suas obras em especial a I Apologia Como este escrito encomiaacutestico de
defesa nasce Quem eou o quecirc (fatores diversosplurais) o incentivaram a escrevecirc-la de forma
proposital
11 JUSTINO DE ROMA
Torna-se necessaacuterio desde o iniacutecio salientar que se possui atualmente informaccedilotildees bem
detalhadas de quem teria sido Justino ndash o qual foi cunhado por Tertuliano como ldquofiloacutesofo e
maacutertirrdquo23 ndash morador da capital do Impeacuterio Romano isso tudo devido especialmente agraves claras
ldquoreferecircncias autobiograacuteficas de suas proacuteprias obras a um relato sobre seu martiacuterio e a notiacutecias
encontradas na Histoacuteria eclesiaacutestica de Euseacutebio e em Epifacircniordquo24 Uma gama consideraacutevel de
21 JUSTINO I Apologia I 1
22 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011
23 TERTULIANO Contra os Valentinianos V 1
24 DROHNER Manual de Patrologia 2008 p 82-83
18
estudiosos concorda que Justino tenha nascido por volta do ano 100 da era cristatilde25 isso devido
agrave referecircncia textual apresentada pelo proacuteprio Apologista ldquoeu Justino um deles filho de Prisco
que o foi de Baacutequio natural de Flaacutevia Neaacutepolis na Siacuteria Palestinardquo26 Neste contexto contribui
o trabalho de Xavier que afirma acreditar ldquoque ele (Justino) nasceu depois do ano 100 dC em
Flavia Neaacutepolis (atual Naplusa) na Siacuteria-Palestina ou Samaria a Siqueacutem dos tempos biacuteblicos
(Palestina)rdquo27 Nota-se atraveacutes do auto relato de Justino que este nasceu em pleno ldquocoraccedilatildeo da
Galileiardquo28 em uma cidade remodelada (modernizada) para sua eacutepoca agrave cultura romana ou seja
pagatilde Logo sua famiacutelia provavelmente tambeacutem era pagatilde possivelmente seus pais ldquoeram
colonos abastadosrdquo29 e de origem latina ou grega sendo a primeira opccedilatildeo de preferecircncia por
Hamman que afirma serem de caracteriacutestica latina a qualidade de caraacuteter o gosto por dados
histoacutericos e a natildeo apreciaccedilatildeo de argumentaccedilotildees pomposas e prolixas encontradas em Justino30
Vale tambeacutem citar que a etimologia dos nomes do seu pai (Prisco) e do seu avocirc (Baacutequio)
colabora para uma origem natildeo judaicaisraelita mesmo tendo nascido na regiatildeo da Samaria
local no qual possivelmente tenha crescido e sido educado31
Os proacuteximos relatos biograacuteficos apresentados por nosso autor jaacute se estabeleceram no
decorrer de sua jornada em direccedilatildeo ao alvo que buscava atingir eacute quando em seu escrito
intitulado de Diaacutelogo com Trifatildeo Justino se apresentaraacute como um apaixonado apreciador da
filosofia e do absoluto que a razatildeo deveria perscrutar Em um escrito estiliacutestico e repleto de
artifiacutecios literaacuterios Justino cita seu passado em meio aos estoicos peripateacuteticos pitagoacutericos e
platocircnicos32 observando desde cedo que o objetivo de seu caminho nestes grupos que
ldquocultuavamrdquo o bem-estar do viver humano era o de descobrir a verdade como um estado livre
de contingecircncias Hamman endossa esse processo de peregrinaccedilatildeo filosoacutefica na vida do autor
25 FRANGIOTTI In Introduccedilatildeo I Apologia 1995 p 5 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da
tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 81
26 JUSTINO I Apologia I 1
27 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 14 grifo nosso
28 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
29 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
30 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
31 Flaacutevia Neaacutepolis foi fundada em 72 de nossa era por Vespasiano sobre a antiga Siqueacutem A cidade existe hoje
sob o nome de Naplusa Natildeo se deve esquecer a importacircncia deste siacutetio geograacutefico para a histoacuteria religiosa de
judeus e cristatildeos Foi em Siqueacutem que Deus apareceu a Abraatildeo e este lhe dedicou um altar (cf Gn 126-7) Ali se
conservava a memoacuteria de um ldquopoccedilo de Jacoacuterdquo junto ao qual Jesus dialogou com a samaritana (cf Jo 45-6) Foi em
Siqueacutem que Josueacute reuniu a grande assembleia das tribos para ratificar a alianccedila entre Deus e seu povo (cf Js 24)
Ver FRANGIOTTI In Introduccedilatildeo I Apologia 1995 p 5
32 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 3-6
19
O proacuteprio Justino conta-nos no Diaacutelogo com Trifatildeo o longo itineraacuterio de sua busca
[] Sucessivamente em Naplusa frequentou as aulas de um estoico depois de um
disciacutepulo de Aristoacuteteles que logo abandonou trocando-o por um platocircnico Com
candura esperava que a filosofia de Platatildeo lhe permitisse ldquover imediatamente a
Deusrdquo33
Entretanto Justino diante de diversas circunstacircncias e ainda acometido de inuacutemeras
inquietaccedilotildees decorridas das mesmas perguntas que o afligiam em sua busca pela verdade passa
a relatar seu impressionante encontro com o Evangelho de Cristo em seu Diaacutelogo com um judeu
chamado Trifatildeo34 Justino que aparentemente parece ter sido encorajado apoacutes ser ensinado por
um mestre da escola platocircnica passa a viver por meio de haacutebitos mais austeros e se retira a um
lugar isolado onde segundo ele mesmo procuraria encontrar ldquoo proacuteprio Deusrdquo35 Poreacutem em
meio a esta experiecircncia de isolamento ndash possivelmente ocorrida na regiatildeo da Aacutesia Menor36 ndash
Justino se depara com um anciatildeo que seraacute o arauto da mais significativa filosofia que conheceu
Hamman daacute ecircnfase a esse evento ldquoRetirando-se agrave solidatildeo Justino passeava pela areia a beira-
mar para meditar sobre a visatildeo de Deus sem conseguir apaziguar sua inquietaccedilatildeo quando
encontrou um anciatildeo misterioso que dissipou suas ilusotildeesrdquo37
Nesse Diaacutelogo nos deparamos com uma seacuterie de interrogaccedilotildees vindas da parte do
Anciatildeo judeu dirigidas a pessoa de Justino assuntos sobre Deus (divindade) sobre o saber
humano (filosofia) sobre a felicidade e a disposiccedilatildeo da alma (psique) satildeo algumas das questotildees
apresentadas ao ldquointelectordquo do filoacutesofo Justino No que tudo indica parecer um processo
baseado na maiecircutica socraacutetica o Anciatildeo leva nosso autor a inuacutemeras duacutevidas e consegue
estabelecer contradiccedilotildees naquela que parecia ser a melhor via (meacutedio platonismo) para o
entendimento da verdade conhecida por Justino ateacute entatildeo38 Diante das argumentaccedilotildees
apresentadas pelo Anciatildeo e sentindo-se vencido por elas Justino reconhece a sua limitaccedilatildeo e
pergunta ldquoEntatildeo a quem vamos tomar como mestre ou de quem poderemos tirar algum
proveito se nem mesmo nestes (filoacutesofos) se encontra a verdaderdquo39
33 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
34 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo III 1-VIII 2
35 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6-III 1
36 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010
37 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
38 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II
dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
39 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo VII 1 grifo nosso
20
O decorrer do caso nos eacute apresentado com entusiasmo pelo autor o Anciatildeo eacute retratado
como algueacutem que natildeo hesita em afirmar ao sedento Justino que os profetas da antiga alianccedila
foram aqueles que manifestaramproclamaram a Verdade antes de todos os outros homens40
pois a resposta ao apelo do espiacuterito de Justino jaacute encontrava razatildeo e sentido na revelaccedilatildeo
anteriormente profetizada (Antigo Testamento) Estes fatos (profecias) tinham total relevacircncia
pois eram ldquomais antigos do que todos estes considerados filoacutesofos homens bem-aventurados
justos e amigos de Deusrdquo41 Neste ponto soma-se de forma significativa a descriccedilatildeo de Walde
desenvolvida junto ao texto de Justino sobre a sua conversatildeo
Justino foi introduzido na feacute diretamente por um velho homem que o envolveu numa
discussatildeo sobre problemas filosoacuteficos e entatildeo lhe falou sobre Jesus Ele falou a Justino
sobre os profetas que vieram antes dos filoacutesofos ele disse e que falou ldquocomo
confiaacutevel testemunha da verdaderdquo Eles profetizaram a vinda de Cristo e suas
profecias se cumpriram em Jesus Justino disse depois que ldquomeu espiacuterito foi
imediatamente posto no fogo e uma afeiccedilatildeo pelos profetas e para aqueles que satildeo
amigos de Cristo tomaram conta de mim enquanto ponderava nestas palavras
descobri que a sua era a uacutenica filosofia segura e uacutetil [] eacute meu desejo que todos
tivessem os mesmos sentimentos que eu e nunca desprezassem as palavras do
Salvadorrdquo42
Apoacutes este evento notabilizador na histoacuteria de Justino um evento que atesta a
conversaccedilatildeo do filoacutesofo a nova religiatildeo que se apresentava a cada dia com maior forccedila em meio
ao mundo heleniacutestico nasce um ministeacuterio que iraacute se caracterizar por uma profunda e inegaacutevel
entrega a causa que o conquistou Chegando agrave cidade de Eacutefeso Justino se deparou com irmatildeos
que se diziam disciacutepulos do apoacutestolo Joatildeo os quais por meio de uma intensa relaccedilatildeo lhe
mostraram o novo e relevante aspecto da nova filosofia que agora havia decidido seguir
passando a entender que o cristianismo deve ser ldquoum cristianismo de atos e natildeo soacute de
palavrasrdquo43
Poreacutem o maior entendimento que o Apologista obteve foi o de encontrar a Verdade a
qual buscava incessantemente unindo este axioma (Verdade) com o Logos revelado pelas
Escrituras contexto que definiu como a uacutenica ldquofilosofia segura e proveitosardquo44 para a vida a
40 DROHNER Manual de Patrologia 2008
41 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo VII 1
42 WALDE Defensor da Igreja 2000 p 1
43 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 32 apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da
Feacute Cristatilde 2014 p 15
44 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo VIII 1
21
qual eacute a fonte do saber primordial que manteve-se inalterada poreacutem tendo assumido ldquonovas
formas e expressotildees diferentesrdquo atraveacutes dos seacuteculos45 Este esteio da intelectualidade de Justino
foi tatildeo decisivo para a histoacuteria do cristianismo que segundo Hamman passou a apresentar
(temporariamente) uma satisfatoacuteria ldquoconclusatildeo para todas as verdades parciais [] Instante
inesqueciacutevel que assinala uma data na histoacuteria cristatilde em que se encontram a alma platocircnica e
a alma cristatilde A Igreja acolhia Justino e Platatildeordquo46
Aleacutem disto Justino guardou caracteriacutesticas daquilo que reconhecia ser saudaacutevel de seu
passado como amigo da sabedoria vestindo-se com ldquomanto de filoacutesofo como sinal do pregador
cristatildeo itineranterdquo47 Desta forma Justino procurou caracterizar-se entre os seus
contemporacircneos como algueacutem que representava a Verdade que havia encontrado Ateacute onde se
tem notiacutecias jamais foi ordenado assim como a maioria dos Pais de sua classe Patriacutestica
(Apologistas)48 No entanto ele iniciou em Roma possivelmente a pedido do Bispo Higino49
ldquoagrave maneira das escolas de filosofia uma escola de iniciaccedilatildeo agrave religiatildeo cristatilderdquo50 na qual formou
disciacutepulos recebendo tambeacutem por esta iniciativa a possiacutevel desaprovaccedilatildeo da ldquoclasserdquo
intelectual de sua eacutepoca pois tudo indica que natildeo cobrava nenhuma compensaccedilatildeo ndash entenda-se
salaacuteriopagamento ndash de seus alunos51 Este periacuteodo ministerial de Justino na ldquocapital do mundordquo
teve tamanha repercussatildeo na histoacuteria da Igreja a ponto de Euseacutebio fazer questatildeo de reproduzir
algumas particularidades desse filoacutesofo cristatildeo deixando-nos assim uma robusta base
historiograacutefica de Justino o primeiro historiador da Igreja afirma que ldquofloresceu Justino Com
estofo de filoacutesofo era embaixador da palavra de Deus e lutava pela feacute com seus escritosrdquo52
Decorrido um periacuteodo de confrontaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas ndash especialmente no
acircmbito da eacuteticamoral ndash e de crescentes atritos com as esferas aristocraacuteticas da sociedade
romana Justino foi acusado de ser cristatildeo53 Tudo indica que a denuacutencia partiu de um filoacutesofo
45 FIGUEIREDO Curso de Teologia Patriacutestica I 1983 p 115
46 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
47 DROHNER Manual de Patrologia 2008 p 83
48 RIVAS San Justino en el proceso de separaciacuteon entre Judaiacutesmo y Cristianismo 2018
49 Acredita-se que devido ao crescimento de alguns movimentos gnoacutesticos (Marcionismo Valentianismo etc)
junto a capital do Impeacuterio o Bispo Higino (Nono Papa) solicitou a presenccedila de Justino na tentativa de se introduzir
uma formaccedilatildeo filosoacutefico-cultural cristatilde em Roma no empenho de se responder adequadamente mediante a
verdadeira doutrina de Cristo a estes representantes heterodoxos Ver FEacuteLIX Las filosofiacuteas en la teologiacutea de
Justino Maacutertir 2014 p 438
50 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1145
51 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010
52 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 10 8
53 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014
22
ciacutenico54 de caraacuteter duvidoso chamado Crescente O proacuteprio Justino registra em sua segunda
Apologia o pressentimento de que entregaria sua vida em prol da causa do Evangelho que o
libertou da ignoracircncia e o salvou da morte eterna Ele escreve ldquoEu mesmo espero ser viacutetima
das ciladas de algum desses democircnios aludidos e ser cravado no cepo ou pelo menos das ciladas
de Crescente esse amigo da desordem e da ostentaccedilatildeordquo55 Deste modo Justino e provavelmente
seis de seus disciacutepulos foram conduzidos diante do Prefeito de Roma chamado Juacutenio Ruacutestico56
Apoacutes ser julgado e condenado agrave morte ldquoSua sentenccedila foi a decapitaccedilatildeo que ocorreu por volta
do ano 165 dCrdquo57 Hamman ainda enobrece a posiccedilatildeo de Justino salientando que o Apologista
tinha a compreensatildeo de que diante de seus algozes natildeo se tratava ldquomais de convencer senatildeo de
confessarrdquo58 Assim mesmo nesse cenaacuterio de violecircncia a identidade e histoacuteria do filoacutesofo que
quando jovem peregrinava atraacutes das respostas do absoluto acaba por transformar-se por meio
de um ato de feacute o entatildeo filoacutesofo cristatildeo chamado Justino e morador da cidade de Roma passa
agora a ser tambeacutem o Maacutertir da Igreja de Cristo
Finalizamos este item com a descriccedilatildeo de Euseacutebio que com realce e temor retrata os
fatos finais da histoacuteria da vida de Justino
Por este mesmo tempo Justino mencionado haacute pouco depois de dedicar aos
supracitados imperadores seu segundo livro em defesa de nossas doutrinas foi
adornado com o sagrado martiacuterio O responsaacutevel pela conspiraccedilatildeo foi o filoacutesofo
Crescente - homem que se esforccedilava em levar uma vida e uma conduta bem adequadas
ao cognome de ciacutenico - pois Justino o havia repreendido muitas vezes em presenccedila
de seus ouvintes Justino com seu martiacuterio acabou cingindo o precircmio da vitoacuteria da
verdade da qual era embaixador59
54 O cinismo origina-se nas escolas filosoacuteficas da Greacutecia antiga que reivindicam uma linhagem socraacutetica Chamar
os ciacutenicos de ldquoescolardquo no entanto imediatamente levanta uma dificuldade para um grupo natildeo convencional e anti-
teoacuterico Seus principais interesses satildeo eacuteticos mas eles concebem a eacutetica mais como um modo de viver do que
como uma doutrina que precisa de explicaccedilatildeo Como tal askēsis ndash uma palavra grega que significa um tipo de
treinamento do eu ou da praacutetica ndash eacute fundamental Os ciacutenicos assim como os estoacuteicos que os seguiram caracterizam
o modo de vida ciacutenico como um ldquoatalho para a virtuderdquo (ver Dioacutegenes Laeacutercio Vidas de Filoacutesofos Eminentes)
Livro 6 Capiacutetulo 104 e Livro 7 Capiacutetulo 122) Embora muitas vezes sugiram que descobriram o caminho mais
raacutepido e talvez o mais certo para a vida virtuosa eles reconhecem a dificuldade desse caminho Ver PIERING
Julie In Cynics Internet Encyclopedia of Philosophy Texto completo em
lthttpswwwieputmeducynicsSSH3aigt
55 JUSTINO II Apologia VIII 9 1
56 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010
57 CAMPENHAUSEN Os Pais da Igreja A Vida e a Doutrina dos Primeiros Teoacutelogos Cristatildeos 2005 p 22 apud
SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 67
58 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 32
59 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 16 1
23
Apoacutes este introdutoacuterio exame biograacutefico comeccedilaremos a apresentar o cristatildeo e filoacutesofo
Justino em seu grupo de definiccedilatildeo Patriacutestica ou poderiacuteamos dizer no condicionamento
ministerial de seu exerciacutecio da manutenccedilatildeo e defesa da feacute cristatilde
12 PAIS DA IGREJA
Justino eacute um personagem histoacuterico do cristianismo mundial e possui seu assento no
espaccedilo definido pela teologia Patriacutestica como um PaiPadre da Igreja60 Em sua pesquisa de
ordenamento histoacuterico Santos salienta que ldquoele se insere num momento e num ciacuterculo muito
importante da histoacuteria do cristianismo primitivo naquilo que se convencionou chamar de
Padres da Igrejardquo61 Neste espaccedilo analiacutetico em que surgem terminologias de caraacuteter mais
temaacutetico desenvolvem-se alguns viacutenculos que visam obter uma melhor orientaccedilatildeo teoloacutegica
As ciecircncias intituladas Patriacutestica e Patrologia (denominaccedilatildeo predominante no acircmbito teoloacutegico
Catoacutelico Romano) detecircm as estruturas funcionalidades e linguagens que buscam o
aperfeiccediloamento deste ramo de pesquisa histoacuterica em meio a teologia Nesse espaccedilo torna-se
importante apresentar a sinteacutetica definiccedilatildeo oriunda da Congregaccedilatildeo para a Educaccedilatildeo Catoacutelica
em sua Instruccedilatildeo sobre o Estudo dos Padres da Igreja na Formaccedilatildeo Sacerdotal esta diz ldquoa
Patriacutestica ocupa-se do pensamento teoloacutegico dos Padres [] a Patrologia tem por objeto a vida
e os escritos dos mesmosrdquo62 Notamos que nesse ambiente se caracteriza uma espeacutecie de
sinoniacutemia entre os termos sendo isso o resultado de diversas siacutenteses oriundas do confronto de
algumas posiccedilotildees divergentes ao longo da histoacuteria da elaboraccedilatildeo teoloacutegica ocidental63 poreacutem
a definiccedilatildeo terminoloacutegica conhecida por Histoacuteria da Literatura Cristatilde Antiga utilizada por
Lazzati e Simonetti ndash mesmo que extensa e ainda pouco usada ndash devido a sua qualificaccedilatildeo
linguiacutestica acabou por se estabelecer Padovese resume bem essa proposta de ldquosimbioserdquo ao
60 Em vaacuterias liacutenguas eacute a mesma palavra para o significado de Padre e Pai pater em latim padre em italiano e em
espanhol pegravere em francecircs father em inglecircs Em portuguecircs haacute hoje distinccedilatildeo niacutetida entre Padre e Pai mas o sentido
original da palavra eacute o de Pai (ateacute natildeo muitos anos atraacutes diziacuteamos [na liturgia da ICAR] ldquoPadre nosso que estais
no ceacuteurdquo) Ver PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 17 grifo nosso
61 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 68
62 CONGREGACcedilAtildeO PARA A EDUCACcedilAtildeO CATOacuteLICA Instruccedilatildeo sobre o estudo dos Padres da Igreja na
Formaccedilatildeo Sacerdotal 1989 art 49
63 A Patriacutestica no mundo protestante tornou-se ldquoHistoacuteria dos Dogmasrdquo e tanto no acircmbito catoacutelico como
protestante alguns identificaram a Patrologia com a histoacuteria da literatura cristatilde (Harnack) ou com a ldquohistoacuteria da
literatura eclesiaacutesticardquo (Bardenhewer) ou ainda com a ldquohistoacuteria da literatura cristatilde antigardquo (Lazzati Simonetti)
Ver PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 22
24
sugerir que ldquoambas (Patriacutestica e Patrologia) juntamente com a histoacuteria da literatura cristatilde
antiga trabalham com as mesmas obrasrdquo64
Desta maneira a aacuterea de estudo dos Pais da Igreja tem sido objeto e alvo de diversas
pesquisas na atualidade aleacutem de ter sido um feacutertil campo para inuacutemeras e variadas abordagens
no decorrer dos seacuteculos havendo significativos trabalhos jaacute no Seacuteculo XVII65 Mais
recentemente (Seacuteculo XX)66 houve um reconhecimento do grande valor estrutural desse
segmento para o meio teoloacutegico de forma transconfessional onde acabou por acarretar
expressiva contribuiccedilatildeo em questotildees especialmente dogmaacuteticas Hall baseando-se no
pensamento de Casey desenvolve sua ideia atraveacutes de afirmaccedilotildees relevantes sob a importacircncia
do estudo da PatriacutesticaPatrologia para o ensino ordinaacuterio da teologia (academia) e da Igreja
(catequese)
Primeiro os pais satildeo os ldquomais proacuteximos beneficiaacuterios da tradiccedilatildeo apostoacutelicardquo Em
minhas proacuteprias palavras eles viveram e trabalharam em aproximaccedilatildeo hermenecircutica
com os escritores biacuteblicos especialmente os do novo testamento Segundo os pais
ldquoajudam-nos a entender nossas proacuteprias raiacutezesrdquo na feacute Terceiro muitos pais
escreveram e viveram como pastores Eles escreveram para ajudar as pessoas a
agarrar-se ao ensino de Cristo67
De maneira ampla podemos dizer que haacute algumas variaccedilotildees no meacutetodo e no estilo de
estudar o cenaacuterio patriacutestico em sua estrutura conjuntural Devemos iniciar salientando que o
periacuteodo patriacutestico simplesmente ldquonatildeo eacute definido como um marco cronoloacutegico mas como um
periacuteodo de passagemrdquo68 Deste modo uma delimitaccedilatildeo se constroacutei atraveacutes de uma conclusatildeo de
periacuteodos (estrutura temporal) ndash onde atributos culturais e eclesiaacutesticos se mesclam para gerar
uma definiccedilatildeo conceitual Nessa espeacutecie de ldquorestriccedilatildeo conceitualrdquo tambeacutem se encaixa o
conjunto de criteacuterios adotados no processo de seleccedilatildeo daqueles que podem receber tal tiacutetulo
honoriacutefico de Pai da Igreja mesmo que estes elementos de classificaccedilatildeo (ortodoxia
64 PADOVESE Leacutexicon ndash Dicionaacuterio Teoloacutegico Enciclopeacutedico 2003 p 576 apud SANTOS Identidade Cristatilde
no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 68 grifo nosso
65 DAILLEacute Traicte de lemploy des Saincts Peres pour le iugement des differends qui sont auiourdhui en la
religion 1632
66 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
67 CASEY Sacred Reading The Ancient Art of Lectio Divina 1995 p 105 apud HALL Lendo as Escrituras
com os Pais da Igreja 2003 p 56
68 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 25
25
santificaccedilatildeo reconhecimento eclesiaacutestico antiguidade)69 tenham possuiacutedo variaacuteveis (de meacuterito
e de forma)70 em sua aplicaccedilatildeo durante toda a histoacuteria Ainda nesse processo de formaccedilatildeo
tambeacutem cabe registrar a profunda influecircncia de indicaccedilatildeo geograacutefica ocorrida em todo esse
desenvolvimento onde uma linha divisoacuteria de significativa relevacircncia se apresenta quando faz
a separaccedilatildeo do ldquotemperamento teoloacutegico entre o Oriente e Ocidenterdquo71
Contudo cabe-nos assumir uma forma de classificaccedilatildeo e organizaccedilatildeo na elaboraccedilatildeo
desta pesquisa desta forma por utilizar-se de uma linguagem acessiacutevel e por apresentar maior
incidecircncia literaacuteria em meios natildeo teoloacutegicos utilizaremos das seguintes divisotildees baseadas no
trabalho de Hall descritas como
I Pais Apostoacutelicos (final do Seacuteculo I ateacute meados do II)
II Pais Apologistas ou Ante-Nicenos (Seacuteculo II)
III Pais Polemistas ou Nicenos (final do Seacuteculo II e Seacuteculo III)
IV Pais Cientiacuteficos ou Poacutes-Nicenos (Seacuteculo III ao V)72
O primeiro modo de classificaccedilatildeo iraacute se designar por uma abordagem de caraacuteter mais
funcional no que diz respeito a seus integrantes todos estatildeo relacionados ao periacuteodo
denominado de cristianismo antigoprimitivo recebendo assim o nome de Pais Apostoacutelicos
Foram os herdeiros diretos do chamado ldquodepoacutesito da Feacuterdquo o qual foi estabelecido atraveacutes da
missatildeo dos apoacutestolos de Cristo que detinham a autoridade e a grande responsabilidade de
perpetuar a doutrina apostoacutelica (entenda-se afirmar a continuidade da mensagem una santa e
catoacutelica do cristianismo por meio da manutenccedilatildeo daacute mensagem original) Jaacute os denominados
Pais Apologistas (grupo agrave qual Justino pertence) notabilizaram-se ndash principalmente devido agrave
notaacutevel qualidade de seus escritos ndash por defender a Feacute cristatilde de inuacutemeras accedilotildees repressivas agrave
doutrina e agraves comunidades fenocircmeno que se caracterizou especialmente no decurso do Seacuteculo
II Os Pais Polemistas salientam-se por sua ampla argumentaccedilatildeo no que confere a asseveraccedilatildeo
dos principais ensinos (doutrinasdogmas) do cristianismo protegendo-os das mais variadas
heresias tambeacutem afirmando suas peculiaridades mas acima de tudo pontuando estas instruccedilotildees
como questotildees indispensaacuteveis para a existecircncia da verdadeira Feacute em Cristo Por uacuteltimo os Pais
chamados ldquocientiacuteficosrdquo distinguiram-se por sua ecircnfase na densa aplicaccedilatildeo da Teologia em aacutereas
69 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 11
70 Bogaz Couto e Hansen indicam ainda um quinto criteacuterio na classificaccedilatildeo dos elementos para se ser credenciado
como um integrante do mundo patriacutestico eles o chamam de COLEGIALIDADE E DIAacuteLOGO Este visa analisar
a abrangecircncia do patrimocircnio teoloacutegico deixado pelo autor Ver BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica
caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 28 grifo do autor
71 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
72 HALL Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja 2003 Ver capiacutetulos III-V
26
filosoacuteficas e do conhecimento ldquonaturalrdquo (antropologia sociologia psicologia etc) de seu
tempo Cabe-nos ainda frisar por uma questatildeo teacutecnica que o periacuteodo Patriacutestico normalmente eacute
descrito ateacute figuras do Seacuteculo VIII73 poreacutem nossa abordagem natildeo esmiuccedilara tal fato pelo
mesmo exceder o tema proposto nesta pesquisa
Para terminar nossa lacocircnia abordagem de uma aacuterea tatildeo ampla e rica de conteuacutedo
devemos sustentar a premissa de que uma consistente estrutura para anaacutelise Patriacutestica se daacute
atraveacutes da apropriaccedilatildeo de seu legado intelectual e isso se constroacutei atraveacutes de um genuiacuteno exame
de suas obras Aqui se apresenta a Patrologia como a ciecircncia a ser seguida e exercitada em
sentido literal isso devido a essa ser a organizadora deste sistema Santos em sua pesquisa
contribui neste enfoque
Haacute ainda outra forma muito comum de se estudar os padres da Igreja que eacute a partir de
suas obras e ainda o estudo deles todos sem qualquer divisatildeo atendo-se agraves vezes agrave
cronologia tanto de suas obras quanto de sua existecircncia na linha do tempo agraves vezes
de forma alfabeacutetica Em ambos os casos satildeo estruturados de forma enciclopeacutedica ou
dispostos como um dicionaacuterio de pensadores cristatildeos Assim os padres da Igreja
fazem parte de um campo de estudo maior inserido no que pode ser chamado de
Histoacuteria das ideias ou do pensamento cristatildeo74
Seguindo em uma ordem organograacutefica examinaremos a partir de agora o grupo
Patriacutestico no qual Justino se enquadrou em seu exerciacutecio ministerial devido a suas
caracteriacutesticas filosoacuteficas e teoloacutegicas
121 Pais Apologistas
Verificamos que no decorrer do Seacuteculo II surgiu nas comunidades cristatildes uma iminente
necessidade de combater determinadas acusaccedilotildees aleacutem de procurar dissuadir visotildees distorcidas
sobre o cristianismo75 especialmente as relacionadas a questotildees que adotavam posturas parciais
que simplesmente acusavam a religiatildeo cristatilde de ser um legado para pessoas ldquoignorantes e
fanaacuteticasrdquo76 Tal incitaccedilatildeo jaacute estava ativa em grande parte do Impeacuterio Romano Desta forma a
73 Os estudiosos patriacutesticos definem o fechamento deste periacuteodo no ocidente com Gregoacuterio Magno (ou Isidoro de
Sevilha) no Seacuteculo VII e no Oriente com Joatildeo Damasceno no Seacuteculo VIII Ver BOGAZ COUTO HANSEN
Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 25
74 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 69
75 Ver FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 29-31
76 SIMONETTI In Apologeacutetica Literatura Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 181
27
Igreja ancorada em um ldquonuacutemero notaacutevel de gentios dotados de soacutelida formaccedilatildeo intelectualrdquo77
sendo sua maioria formada por ldquofiloacutesofosrdquo que haviam se convertido ao cristianismo acabaram
postando-se como baluartes desta nova religiatildeo tendo seus escritos (chamados de ldquotradiccedilatildeo
apologeacutetica cristatilderdquo78) como sua principal ldquoarmardquo de defesa estes (escritores e suas obras)
visavam ldquorefutar as calunias e [] expor o absurdo e a incoerecircncia dos ritos e dos mitos
pagatildeosrdquo79 aleacutem de apresentarem suas vidas como testemunhos da transformaccedilatildeo almejada por
esta feacute que defendiam Diante dos recursos aos quais protegiam e frente a busca de
ldquolegitimaccedilatildeordquo do cristianismo como religiatildeo no Impeacuterio estes cristatildeos questionavam de
maneira enfaacutetica as infundadas agressotildees propostas por aqueles que decidiam ldquofechar os seus
olhosrdquo as virtuosas obras geradas pelos seguidores desta Boa Nova Fluck contribui com ecircnfase
na tentativa de legitimaccedilatildeo que estes escritores apologistas procuraram dar a sua pregaccedilatildeo na
busca de toleracircncia para sua mensagem
Os apologistas queriam manifestar diante da opiniatildeo puacuteblica a verdadeira natureza do
Cristianismo Eles tinham a preocupaccedilatildeo de demonstrar a conformidade do
Cristianismo com o ideal helecircnico Proclamavam ndash na maioria dos casos ndash a alianccedila
do Cristianismo e da Filosofia Queriam mais do que somente toleracircncia Mostravam
que os cristatildeos eram os melhores cidadatildeos do Impeacuterio e que o Cristianismo favorecia
a grandeza do Impeacuterio80
Esta postura adotada por homens de elevada cultura acabou por robustecer e superar
uma necessidade existencial que havia surgido na relaccedilatildeo do cristianismo para com mundo
greco-romano isso devido agrave expansatildeo e estabilizaccedilatildeo em sociedades predominantemente
heleniacutesticas Os Pais Apologistas (em sua ampla maioria) inauguraram o que podemos chamar
de informaccedilatildeo ldquoad extrardquo81 ou seja estabelecer uma relaccedilatildeo de comunicaccedilatildeo para fora dos
ldquomurosrdquo da Igreja O que antes era conhecida como a dimensatildeo (alcance e destino para
mensagem) literaacuteria ndash definida como ldquoad intrardquo82 ndash no periacuteodo dos Pais Apostoacutelico agora era
acompanhada de um novo estilo linguiacutestico que abria espaccedilo e trazia em sua armaccedilatildeo tambeacutem
77 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988 p 69
78 ARZANI VENTURINI A Origem da Tradiccedilatildeo Apologeacutetica Cristatilde e Justino Maacutertir 2010 p 2
79 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 73
80 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 31
81 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011
82 FIGUEIREDO Curso de Teologia Patriacutestica I 1983 p 97
28
o ldquoconhecimento das ciecircncias das letras e da filosofiardquo83 Torna-se valiosa nessa abordagem as
consideraccedilotildees gerais de Haumlgglund sobre a importacircncia da accedilatildeo literaacuteria dos Apologistas
Os apologistas ocupam lugar de destaque na histoacuteria do dogma natildeo soacute devido a sua
descriccedilatildeo do cristianismo como a verdadeira filosofia como tambeacutem por sua tentativa
de elucidar ensinamentos teoloacutegicos com o auxiacutelio de terminologia filosoacutefica
contemporacircnea (por exemplo na assim chamada laquocristologia do Logosraquo) O que neles
encontramos por conseguinte eacute a primeira tentativa de definir de maneira loacutegica o
conteuacutedo da feacute cristatilde bem como a primeira conexatildeo entre teologia e ciecircncia entre
cristianismo e filosofia grega84
Acredita-se que o periacuteodo apologeacutetico teve seu iniacutecio no seio da Igreja com a literatura
de um disciacutepulo chamado Quadrato que possivelmente em 124125 dC apresentou ldquodianterdquo
do Imperador Adriano na cidade de Atenas (Greacutecia) uma espeacutecie de tratado que visava enfatizar
que Cristo em seu ministeacuterio terreno havia realizado diversas curas e milagres afirmando que
a ressurreiccedilatildeo de mortos foi algo emblemaacutetico entre esses feitos prodigiosos85 Aristides eacute outro
personagem que merece destaque como precursor desta classe Patriacutestica Euseacutebio se refere a
ele deste modo ldquoMas tambeacutem Aristides homem de feacute entregue a nossa religiatildeo deixou assim
como Codratos uma Apologia em favor da feacute que havia dirigido a Adriano Tambeacutem a obra
deste escritor se conservou ateacute nossos dias em muitos lugaresrdquo86 Nesse escrito o historiador da
Igreja iraacute apresentar uma das proposiccedilotildees recorrentes entre os escritos apologeacuteticos do periacuteodo
o de que somente os cristatildeos satildeo verdadeiramente eacuteticos isso devido principalmente aos seus
haacutebitos de elevada postura moral87 o que buscava demonstrar que eram os uacutenicos que
verdadeiramente conheciam a DeusDivindade88 e deste modo acabavam por serem os
ldquomelhores cidadatildeos do Impeacuteriordquo89 Desta forma seguindo quase que um modelo padratildeo de
abordagem esses Apologistas apelaram aacute razoabilidade dos governantes romanos de sua eacutepoca
exigindo destes natildeo apenas toleracircncia mas acima de tudo justiccedila
83 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 73
84 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 21
85 MORESCHINI NORELLI Manual de Literatura Cristatilde Antiga Grega e Latina 2005
86 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 3 3
87 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
88 MORESCHINI NORELLI Manual de Literatura Cristatilde Antiga Grega e Latina 2005
89 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 28
29
Ainda citamos o trabalho de Xavier que aborda de forma sinteacutetica outras figuras desse
periacuteodo apologeacutetico destacando sua alta produccedilatildeo textual que acabou por ter significativa
relevacircncia na estruturaccedilatildeo e funcionalidade de diversos segmentos do processo de formaccedilatildeo
dogmaacutetico na Igreja O relato agrega teor agrave nossa construccedilatildeo
Taciano disciacutepulo de Justino que compocircs ldquoDiscurso aos gregosrdquo Atenaacutegoras que
escreveu ldquoDefesa dos cristatildeosrdquo e um tratado ldquoSobre a ressurreiccedilatildeo dos mortosrdquo Por
volta do ano 180 o bispo de Antioquia Teoacutefilo escreveu ldquoTrecircs livros a Autoacutelicordquo
tratando da doutrina cristatilde de Deus a interpretaccedilatildeo das Escrituras e a vida cristatilde
refutando as objeccedilotildees dos pagatildeos sobre essas questotildees No seacuteculo terceiro Oriacutegenes
de Alexandria escreveu uma refutaccedilatildeo ldquoContra Celsordquo Todas essas obras foram
escritas em grego sendo que na liacutengua latina destacam-se dois escritos apologeacuteticos
a ldquoApologiardquo de Tertuliano e o ldquoOtaacuteviordquo de Minuacutecio Feacutelix90
Portanto fica registrado na histoacuteria da identidade cristatilde mais que um gecircnero literaacuterio
antes uma postura corajosa de homens de estimado caraacuteter que ldquotocados pelo testemunho dos
cristatildeos e pelo querigma apostoacutelicordquo91 comunicaram uma genuiacutena e autecircntica mensagem de
vida e esperanccedila Tambeacutem devemos afirmar que a ldquotarefa de defender a feacute diante desta classe
de ataques produziu algumas das mais notaacuteveis obras teoloacutegicas do seacuteculo segundordquo92
Provavelmente muitos poderosos abastados intelectuais e outros detentores das benesses que
compunham a aristocracia romana do periacuteodo foram confrontados e alcanccedilados pelo
testemunho destes disciacutepulos que enfatizaram o apelo agrave razatildeo na tentativa de evitar a loucura
humana Nesse ponto Xavier consegue expressar com clareza a provaacutevel motivaccedilatildeo destes
homens ldquoSuas principais intenccedilotildees eram fazer com que o cristianismo fosse visto como um
ideal de vida que podia ser aceito e vivido em conformidade com a cultura greco-romana sem
necessidade de serem os cristatildeos perseguidos mortos ou marginalizadosrdquo93
122 O Apologista Justino
Eacute importantiacutessimo iniciarmos este item com as palavras de Dreher Frangiotti
Haumlgglund e Hamman O primeiro diz ldquoEntre os apologetas cristatildeos que procuraram estabelecer
90 XAXIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 14 grifo do autor
91 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 73
92 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 86
93 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 14
30
um diaacutelogo com os filoacutesofos Justino (110-165) foi o mais importanterdquo94 O segundo
similarmente afirma ldquoJustino eacute certamente o melhor apologista do seacuteculo IIrdquo95 O terceiro daacute
mesma forma garante no uso de um superlativo a importacircncia do Apologista ldquoO mais notaacutevel
dos apologistas foi Justino cognominado laquoo maacutertirraquo cujas duas laquoapologiasraquo datam de meados
do segundo seacuteculordquo96 O quarto usando de adjetivaccedilatildeo similar agrave do anterior enobrece com
insigne descriccedilatildeo a figura do Apologista ldquoDe todos os filoacutesofos cristatildeos do seacuteculo II Justino eacute
o mais ceacutelebre e o maiorrdquo97
Neste espaccedilo faremos uma descriccedilatildeo sinteacutetica apresentando a figura de Justino dentro
de sua classe Patriacutestica tendo como centro de nossa atenccedilatildeo sua produccedilatildeo textual
especialmente de suas duas apologias que satildeo as nossas principais ferramentas de ponderaccedilatildeo
sobre sua atuaccedilatildeo ministerial Nessa composiccedilatildeo podemos dizer que entre os ldquoApologistas
Maioresrdquo98 nenhum ldquoestava mais bem preparado para esse confronto do que Justinordquo99 isso
devido a sua variada formaccedilatildeo filosoacutefica Aproximadamente entre os ldquoanos de 150 e 165
dCrdquo100 Justino se apresentou no cenaacuterio apologeacutetico cristatildeo de forma avultosa mesmo natildeo
sendo um literato de destaque ganhou espaccedilo seja por seu caraacuteter iacutentegro como tambeacutem por
sua postura de retidatildeo haacute doutrina a ponto de seus escritos mostrarem ldquoo calor nunca
desmentido das suas convicccedilotildeesrdquo101 Hamman define bem essa peculiaridade na literatura de
Justino ao dizer que a ldquooriginalidade de Justino natildeo estaacute na sua qualidade literaacuteria mas na
novidade de seu esforccedilo teoloacutegicordquo102
Deste modo Justino conseguiu expressar muito bem aquilo que se tornaria o estandarte
apologeacutetico deste periacuteodo afirmando que o cristianismo ldquoeacute a filosofia segura e proveitosardquo103
levando-nos a conclusatildeo de que em ldquoCristo deu-se portanto a restauraccedilatildeo da filosofiardquo104
Nota-se que Justino estava absolutamente convencido de que havia encontrado o verdadeiro
94 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47 grifo nosso
95 FRANGIOTTI Introduccedilatildeo In I Apologia 1995 p 6 grifo nosso
96 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 21 grifo nosso
97 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 27 grifo nosso
98 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 80
99 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 28
100 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1145
101 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 56
102 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 31
103 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo VIII 1
104 BARRERA A Biacuteblia Judaica e a Biacuteblia Cristatilde introduccedilatildeo a histoacuteria da Biacuteblia 1995 p 663 apud FLUCK
Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 32
31
caminho ldquoe passou a defendecirc-lo de diversas maneiras por meio de seus ensinos em seus
escritos e em sua vida e morte como maacutertirrdquo105 Assim como resultado de sua produccedilatildeo
literaacuteria Justino acabou destacando-se a ponto de se tornar ldquoo principal dos apologistas gregos
do seacuteculo IIrdquo106 como jaacute referido acima vale ainda mencionar o seleto testemunho de Euseacutebio
nessa constituiccedilatildeo este nos sugere que o legado apologeacutetico de Justino eacute consequecircncia de um
elaborado processo do conhecimento ao qual este passou a possuir ele escreve ldquoTambeacutem por
este tempo Justino sincero amante da verdadeira filosofia continuava ainda ocupado em
exercitar-se nas doutrinas dos gregos [] Na mesma obra demonstra que sua conversatildeo da
filosofia grega agrave religiatildeo natildeo se fez sem razatildeo mas com juiacutezordquo107
Contudo ainda nos cabe um raacutepido registro histoacuterico relativo agrave produccedilatildeo literaacuteria de
Justino referente a questatildeo de se apontar qual seria sua habilitaccedilatildeo como um autecircntico
Apologista do Seacuteculo II Obviamente esta capacidade teacutecnica proveacutem daquilo que eacute a parte
material de sua arte no caso de Justino suas obras108 A pesquisa historiograacutefica apresenta ldquo8
obrasrdquo109 creditadas a Justino por Euseacutebio110 fazendo com que nosso autor seja reconhecido
como um escritor de ldquofecundardquo111 atividade literaacuteria no passado entretanto como autecircnticas
chegaram ateacute noacutes apenas trecircs destas diversas obras satildeo elas a I e II Apologia e um relato
argumentativo com um provaacutevel rabino judeu intitulado de Diaacutelogo com Trifatildeo112 Entre as
Apologias a primeira eacute direcionada agrave classe imperial Romana (Antonino Pio e seus filhos
Marco Aureacutelio e Luacutecio Vero) como tambeacutem ao senado Jaacute a segunda eacute motivo de um amplo
debate na esfera da criacutetica textual por natildeo apresentar um relato introdutoacuterio nem um
destinataacuterio de forma objetiva Muitos acreditam ser esta obra um apecircndice da I Apologia Nesta
cena eacute relevante a pesquisa de Santos que cita as bases de Euseacutebio aleacutem de outros trecircs autores
que nos auxiliam de forma eficaz na elucidaccedilatildeo desta questatildeo mesmo que natildeo possam pocircr um
fim a discussatildeo ele diz
105 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 13 grifo nosso
106 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 13
107 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 3 5
108 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
109 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988 p 76
110 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 18 1-6
111 FIGUEIREDO Curso de Teologia Patriacutestica I 1983 p 115
112 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 83 SIMONETTI In Justino
Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1145
32
Destas obras cabem-nos as seguintes consideraccedilotildees quanto agraves duas primeiras a
primeira apologia citada em Euseacutebio corresponde a I Apologia que chegou ateacute noacutes A
segunda apologia natildeo corresponde a II Apologia que temos Primeiro porque natildeo
possui uma introduccedilatildeo e nem um destinataacuterio enquanto que a citada por Euseacutebio
possui um destinataacuterio O segundo ponto que corrobora este ponto de vista eacute a citaccedilatildeo
que Euseacutebio faz da primeira apologia Diz ele ldquoo mesmo autor (Justino) em sua
primeira Apologiardquo e conta uma histoacuteria que consta em nossa II Apologia II 1-20
(EUSEacuteBIO DE CESAREacuteIA Histoacuteria Eclesiaacutestica IV 17) Eacute mais provaacutevel que a dita
II Apologia que chegou ateacute noacutes seja um apecircndice da I Apologia (FRANGIOTTI 1995
MORESCHINI amp NORELLI 2005 p 110)113
Diante de tatildeo curioso e desafiante cenaacuterio eacute valioso buscar compreender o propoacutesito
dos tratados de Justino pois por ldquotraacutes deste esforccedilo descobrimos o testemunho de um homem
de uma conversatildeo de uma opccedilatildeo definitivardquo114 opccedilatildeo que nos oferece a possibilidade de
conhecer o verdadeiro e uacutenico Deus e se necessaacuterio for viver e morrer na defesa deste
Evangelho que nos leva ao verdadeiro conhecimento115
Apoacutes abordar a figura de Justino em sua classe Patriacutestica e salientar resumidamente
seu instrutivo serviccedilo para com o cristianismo seraacute analisada de maneira diminuta mas com
dedicado alinho a dataccedilatildeo e a estrutura literaacuteria da primeira obra apologeacutetica que serve de esteio
para esta pesquisa
13 ANAacuteLISE LITERAacuteRIA DA I APOLOGIA DE JUSTINO
A constituiccedilatildeo textual da primeira obra de Justino apresenta caracteriacutesticas histoacuterico-
literaacuterias muito interessantes como tambeacutem evidecircncia aspectos relevantes na assimilaccedilatildeo do
desenvolvimento do cristianismo dos dois primeiros seacuteculos Desta forma reconhecemos a
necessidade de uma abordagem cientiacutefica ndash mesmo que aqui apresentada de maneira lacocircnica
ndash de algumas aacutereas da anaacutelise criacutetica textual para uma melhor assimilaccedilatildeo de nosso escrito
alicerccedilante Assim um enfoque calculado na dataccedilatildeo na divisatildeo no gecircnero literaacuterio e nas
principais peccedilas quirograacuteficas da I Apologia de Justino nos possibilitaratildeo uma melhor
compreensatildeo dos conteuacutedos e elementos que a mesma visa comunicar A partir de agora nosso
objetivo seraacute examinar estas quatro aacutereas
131 Dataccedilatildeo
113 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 70
114 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 31
115 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
33
Apresenta-se praticamente como ponto paciacutefico na pesquisa histoacuterica-teoloacutegica que a
obra tenha sido escrita em meados do Seacuteculo II de nossa Era sendo reconhecida como a data
mais aceita para esta afirmaccedilatildeo o periacuteodo entre os anos de 150 e 160 dC116 Essa tese encontra
forccedila significativa atraveacutes de quatro argumentos todos de cunho e alccedilada existencial
comunicados na proacutepria obra Inicialmente os destinataacuterios para quem esse escrito apologeacutetico
de Justino se dirigiu garantem um aporte histoacuterico consideraacutevel neste exame o mesmo escreve
ldquoAo imperador Tito Eacutelio Adriano Antonino Pio Ceacutesar Augusto ao seu filho Veriacutessimo filoacutesofo
e a Luacutecio filho natural do Ceacutesar filoacutesofo e filho adotivo de Pio amante do saber ao sacro
Senado e a todo o povo romanordquo117 Por meio desse dado Frangiotti eacute categoacuterico ao afirmar que
eacute ldquofato que estes imperadores reinaram do ano 147 ao ano 161 A Apologia deve ter sido escrita
ao longo destes 15 anosrdquo118
Em segundo outro fator se apresenta determinante na tentativa de se apontar
satisfatoriamente a data desse escrito o ponto em questatildeo se apresenta no capiacutetulo XLVI da
obra novamente o comentaacuterio de Frangiotti eacute valioso por apresentar evidecircncias importantes
Justino menciona que uma das objeccedilotildees contra a doutrina cristatilde era a de ldquodizermos
que Cristo nasceu somente haacute cento e cinquenta anos sob Quirino e ensinou sua
doutrina mais tarde no tempo de Pocircncio Pilatosrdquo Embora se deva tomar o ano cento
e cinquenta como um arredondamento pode-se pensar que a redaccedilatildeo da I Apologia
natildeo se deu antes desta data119
O terceiro elemento a se tornar pontual no texto de Justino eacute sua menccedilatildeo a respeito da
terceira revolta judaica liderada por Simatildeo Bar Koacutekeba em meados do Seacuteculo II A respeito
disto Justino relata com ecircnfase apologeacutetica que ldquoCom efeito na guerra dos judeus agora
terminada Bar Koacutekeba o cabeccedila da rebeliatildeordquo120 estaria aplicando meacutetodos de tortura nos
cristatildeos ao seu redor Santos mostra em sua pesquisa que esta exposiccedilatildeo de Justino pode ser
considerada como um ponto norteador para uma medida qualificada de dataccedilatildeo de sua obra o
116 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988 DROHNER Manual
de Patrologia 2008
117 JUSTINO I Apologia I 1
118 FRANGIOTTI Introduccedilatildeo In I Apologia 1995 p 7
119 FRANGIOTTI Introduccedilatildeo In I Apologia 1995 p 7
120 JUSTINO I Apologia XXXI 6
34
historiador diz ldquoEssa rebeliatildeo ocorreu entre os anos de 132 e 135 dC A expressatildeo lsquoagora
terminadarsquo nos remete a uma data posterior ao final da revoltardquo121
O quarto e uacuteltimo argumento baseia-se no relato de Justino encontrado no capiacutetulo
XXIX nos versos 2 e 3 da I Apologia Neste espaccedilo o Apologista retrata um caso juriacutedico
envolvendo o prefeito de Alexandria denominado Feacutelix que havia indeferido um pedido
exoacutetico proposto por um jovem cristatildeo que desejava castrar-se por motivos asceacuteticos Bases
histoacutericas confiaacuteveis ldquoidentificam o prefeito Feacutelix como Minuacutecio Feacutelix o qual reinou em
Alexandria do ano 148 a 154rdquo122 podendo-se deste modo catalogar outro importante elemento
que corrobora para a dataccedilatildeo da I Apologia
Por fim mesmo que natildeo sejamos especialistas na anaacutelise historiograacutefica nem mesmo
nos seja possiacutevel definir uma data precisa para o escrito examinado ainda assim em vista dos
termos aqui apresentados reconhecemos com a ampla maioria de pesquisadores da aacuterea que
os elementos apresentados trazem recursos suficientes para que atestemos que a I Apologia de
Justino tenha realmente sido escrita por volta da deacutecada de 50 do Seacuteculo II da era cristatilde
132 Divisatildeo Textual
O escrito natildeo segue um padratildeo riacutegido de construccedilatildeo textual pelo contraacuterio digressotildees
satildeo comuns em todas as obras de Justino mesmo que suas apologias sofram menos com
divagaccedilotildees abruptas ou mudanccedilas draacutesticas de rumo nas intenccedilotildees e consideraccedilotildees centrais que
o autor propotildee em suas conjunccedilotildees temaacuteticas Essas variaccedilotildees possivelmente ocorrem devido a
Justino preferir seguir uma proposta de caraacuteter mais catequeacutetico em vez de sua proacutepria
elaboraccedilatildeo conceitual123
Baliza-se de maneira majoritaacuteria na anaacutelise criacutetica a concordacircncia de que a obra se
divide em duas partes principais124 Contudo apresentam-se variaccedilotildees nessa forma de
separaccedilatildeo Nossa opccedilatildeo seraacute por apresentar a estrutura oferecia por Drohner por ser a mais
utilizada por outros autores aleacutem de parecer a que melhor reporta o teor do pensamento
proposto por Justino em sua construccedilatildeo apologeacutetica-doutrinal
121 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 72
122 FRANGIOTTI Introduccedilatildeo In I Apologia 1995 p 7
123 DROHNER Manual de Patrologia 2008
124 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988 DROHNER Manual
de Patrologia 2008
35
Na primeira parte os capiacutetulos I ao XXIX estabelecem uma forte e riacutegida postura de
defesa contra algumas acusaccedilotildees lanccediladas sobre os cristatildeos como a praacutetica do ateiacutesmo por
exemplo Salienta-se neste espaccedilo sua afirmaccedilatildeo de que Jesus Cristo eacute ldquoo Logos e Filho de
Deusrdquo125 que revelou os planos demoniacuteacos que aprisionam a humanidade atraveacutes de praacuteticas
pecaminosas afastando-os do plano de salvaccedilatildeo No entanto boas novas se anunciam a partir
de agora pela revelaccedilatildeo do Logos por meio dos cristatildeos pelo qual todos (homens) poderatildeo
tornar-se tementes a Deus A segunda parte se desenvolve entre os capiacutetulos XXX ao LXVIII
nesta seccedilatildeo questotildees dogmaacuteticas (Encarnaccedilatildeo Divindade Profecias etc) questotildees filosoacuteficas
(revelaccedilatildeo do Logos faacutebulas humanas Platonismo etc) e questotildees sacramentaiseclesiaacutesticas
(Batismo Santa Ceia Liturgia) se aglutinam na formataccedilatildeo de uma ideia para defesa da
identidade e do bem-estar de um ldquopovordquo (conceito que abordaremos mais detalhadamente no II
capiacutetulo deste trabalho)
A partir desse item trataremos do gecircnero literaacuterio da obra algo muito importante na
elaboraccedilatildeo desta pesquisa
133 Gecircnero Literaacuterio
O estilo natildeo eacute novo nem recente e foi muito utilizado na antiguidade126 Podemos
afirmar com seguranccedila que as primeiras referecircncias a esse tipo de literatura de que dispomos
datam do periacuteodo da Filosofia Claacutessica e podem ser encontradas a partir do Seacuteculo IV aC
Provavelmente uma das obras mais conhecidas e renomadas deste tipo eacute a Apologia de Soacutecrates
escrita por seu aluno Platatildeo Nela aquele que possivelmente foi o mais dedicado dentre seus
disciacutepulos procura defender o legado e a imagem de seu mestre por meio da preservaccedilatildeo do seu
pensamento Eacute importante frisar neste contexto a abordagem de forma direta e completa (em
um estilo dialogal-filosoacutefico) do processo (meacutetodo) de julgamento de Soacutecrates oferecida por
Platatildeo a tocircnica do relato parece ganhar a direccedilatildeo de querer conscientizar seus ouvintes da
necessidade de se fazer justiccedila independentemente do caso e das circunstacircncias que estatildeo em
debate Esse estilo acaba por influenciar sua eacutepoca e torna-se o modelo apologeacutetico a ser
seguido nos seacuteculos seguintes127
Contribui ainda para uma melhor assimilaccedilatildeo das intenccedilotildees subjacentes a esse estilo
de linguagem e escrita o pensamento de Malta que ao comentar os diaacutelogos que tratam do
125 DROHNER Manual de Patrologia 2008 p 84
126 MALTA Introduccedilatildeo In Apologia de Soacutecrates 2008
127 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
36
processo contra Soacutecrates (os quais satildeo quatro Ecircutifon Apologia de Soacutecrates Criacuteton e Feacutedon)
acaba por colaborar de maneira expressiva na elaboraccedilatildeo do caraacuteter que estas obras (apologias)
procuravam transmitir aos seus receptores ldquoEntre eles haacute uma clara sequencia dramaacutetica desde
a discussatildeo sobre o ponto central da acusaccedilatildeo (o que eacute piedade) passando pela defesa no
tribunal e a estada na prisatildeo ateacute o momento em que a pena de morte eacute cumpridardquo128
A palavra apologia (grego απολογια) que no portuguecircs eacute definido como um
substantivo feminino129 eacute formada por dois vocaacutebulos gregos O primeiro eacute απο uma partiacutecula
primaacuteria uma preposiccedilatildeo cujo significado baacutesico eacute a ideia ldquode separaccedilatildeo eou de origem do
lugar de onde algo estaacute vem acontece eacute tomadordquo130 O segundo eacute o vocaacutebulo λογος de
significado vasto ndash desenvolvendo inclusive uma estrutura particular junto ao cristianismo131
ndash mas colocado em paralelo com o nosso exame pode ser definido como ldquopalavra proferida
a viva voz que expressa uma concepccedilatildeo ou ideia o que eacute declarado pensamento declaraccedilatildeo
aforismo dito significativo sentenccedila maacuteximardquo132 ldquoproclamaccedilatildeo ensinamento [] doutrina
parte de uma doutrinardquo133 Entretanto deve-se sempre se levar em conta que junto ao ambiente
filosoacutefico-teoloacutegico de Justino ldquoum duplo uso do termo deve ser distinguido um que diz
respeito ao falar e outro que se relaciona com o pensamentordquo134 Neste cenaacuterio ainda se
robustece a ideia de que o termo composto (απολογια) era condutor de um conceito de
soberania instaurado pela ldquosabedoria pessoal e poder em uniatildeo com Deusrdquo135 Ainda focando
128 MALTA Introduccedilatildeo In Apologia de Soacutecrates 2008 p 11
129 Apologia (amiddotpomiddotlomiddotgimiddota) Substantivo feminino Significa 1 Discurso encomiaacutestico 2 [Figurado] Elogio 3
Defesa laudatoacuteria Ver Dicionaacuterio Priberam da Liacutengua Portuguesa Disponiacutevel em
lthttpsdicionariopriberamorgapologiagt Acesso em 28 de set 2018
130 STRONG Dicionaacuterio Biacuteblico Strong 2002 p 1317
131 Ritt sugere-nos que a partir dos registros neotestamentaacuterios houve uma guinada na concepccedilatildeo do Logos como
elemento estrutural e funcional para a realidade histoacuterica do termo junto as culturas e os ambientes intelectuais
que o utilizavam Utilizando-se de um sistema de progressatildeo biacuteblica Ritt chega ao proacutelogo do Evangelho de Joatildeo
onde salienta que ldquoEstas declaraccedilotildees que estatildeo concentradas na encarnaccedilatildeo permitem reconhecer uma origem
cristatilde do hino (proacutelogo do Evangelho de Joatildeo)rdquo onde a autenticidade do sujeito (Logos) como um recurso estaacutevel
e completo para a humanidade se daacute a conhecer nesse evento apoteoacutetico (encarnaccedilatildeo de Cristo) Ver RITT In
λόγος ου ό Diccionario Exegetico del Nuevo Testamento Volumen II 1998 p 78 grifo nosso No original Estos
enunciados que se concentran en la encarnacioacuten permiten reconocer un origen cristiano del himno
132 STRONG Dicionaacuterio Biacuteblico Strong 2002 p 1622
133 RUSCONI Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento 2003 p 288 grifo nosso
134 THAYER A Greek-English lexicon of the New Testament being Grimms Wilkes clavis novi testamenti 1889
p 880 No original a twofold use of the term is to be distinguished one which relates to speaking and one which
relates to thinking
135 THAYER A Greek-English lexicon of the New Testament being Grimms Wilkes clavis novi testamenti 1889
p 882 No original personal wisdom and power in union with god
37
este segundo vocaacutebulo para uma maior amplitude do assunto sobre este termo grego tatildeo
ilustrativo vale-nos citar a definiccedilatildeo de Pereira
Palavra dito revelaccedilatildeo divina resposta dum oraacuteculo maacutexima sentenccedila exemplo
decisatildeo resoluccedilatildeo condiccedilatildeo promessas pretexto argumento ordem menccedilatildeo
notiacutecia que corre conversaccedilatildeo relato mateacuteria de estudo ou de conversaccedilatildeo razatildeo
inteligecircncia senso comum a razatildeo de uma coisa motivo juiacutezo opiniatildeo estima valor
que se daacute a uma coisa justificaccedilatildeo explicaccedilatildeo a razatildeo divina136
Rapidamente atentando aos escritos apologeacuteticos cristatildeos do Seacuteculo II notamos um
ldquoesforccedilo de aproximaccedilatildeordquo137 dos Pais Apologistas (em sua ampla maioria) para a utilizaccedilatildeo da
consagrada forma do diaacutelogo-filosoacutefico (como citado acima) isso devido especialmente ao fato
de essas obras serem direcionadas agrave aristocracia poliacuteticaintelectual de sua eacutepoca incluindo
nesse cenaacuterio opulente os proacuteprios Imperadores de Roma138 Uma importante referecircncia a ser
associada a este contexto estaacute relacionada agrave utilizaccedilatildeo e significado da palavra ldquoapologiardquo
utilizada por Euseacutebio na identificaccedilatildeo da obra de Justino Euseacutebio ndash possivelmente o primeiro
a empregar o termo (apologia) para definir um conjunto de escritos do meio cristatildeo139 ndash utiliza
das seguintes descriccedilotildees para se referir ao nosso autor ldquoEm sua primeira Apologiardquo140 ou ldquoao
escrever sua Apologia dirigida a Antoninordquo141 e ainda ldquoem sua Apologiardquo142 Eacute importante
frisar que Justino em nenhum momento se utiliza do termo ldquoapologiardquo em sua obra143 mas a
define como ldquodiscurso e suacuteplicardquo144 todavia para Euseacutebio (e para a Sagrada Tradiccedilatildeo na qual
este se amparava) Justino indiscutivelmente havia sido um fiel defensor da verdade revelada
de Deus Aleacutem disso neste quadro cabe-nos ainda ressaltar o comentaacuterio de Arzani e Venturini
ao trabalho de Euseacutebio pois ambos buscam definir uma ideia qualitativa e funcional na
utilizaccedilatildeo do termo pelo historiador
136 PEREIRA Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 1998 p 350
137 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 188
138 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988
139 ARZANI VENTURINI A Origem da Tradiccedilatildeo Apologeacutetica Cristatilde e Justino Maacutertir 2010 Para um maior
aprofundamento do tema ver 2 Euseacutebio de Cesareia as apologias e os apologistas p 2-7
140 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica II 13 2 VI 17 1
141 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 3
142 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 11 11
143 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
144 JUSTINO I Apologia I 1
38
Uma anaacutelise mais ampla sobre a constituiccedilatildeo (ou natildeo) dos gecircneros apologeacuteticos
cristatildeos deve ficar para uma outra oportunidade entretanto considerando que eacute
Euseacutebio quem primeiro apresenta uma ideia mesmo que hipoteacutetica do
reconhecimento das formas dos textos de defesa dos cristatildeos ou de suas crenccedilas eacute
preciso considerar como ele emprega o termo apologia Aleacutem de empregar o termo
apologia para se referir aos sete textos anteriormente citados ele tambeacutem o usa no seu
sentido claacutessico como simples ldquodiscurso de defesardquo145
Desta forma podemos concluir que os escritos apologeacuteticos buscavam efeitos
similares tanto no cenaacuterio cristatildeo quanto no pagatildeo Poreacutem no que cabe agrave Igreja vale ressaltar
que o estilo apologeacutetico procurou desconstruir equiacutevocos salientar o cristianismo como religiatildeo
ordeira e beneacutefica ndash entenda-se (baseado em alguns relatos Patriacutesticos) como superior agraves
demais crenccedilas ndash mas acima de tudo sanar as injusticcedilas cometidas contra os cristatildeos Nesse
uacuteltimo ponto a penna dos Apologistas procurava pesar contra a consciecircncia dos governantes
de seu tempo a reflexatildeo de Richard Norris considera bem essa questatildeo ldquoo objetivo de tais
escritos eram em geral persuadir as autoridades de que as frequentes perseguiccedilotildees locais eram
injustas desnecessaacuterias e indignas de governantes esclarecidosrdquo146
A partir deste item visando a qualificaccedilatildeo deste trabalho damos segmento a nosso
exame estrutural agregando a seu corpo um destacado incremento teacutecnico falemos agora dos
manuscritos da I Apologia
134 Manuscritos
A criacutetica textual somada a inuacutemeras e significativas descobertas arqueoloacutegicas tecircm
possibilitado haacute teologia avanccedilos consideraacuteveis em suas pesquisas acerca dos documentos
antigos do cristianismo No que se refere as obras de Justino isso natildeo eacute diferente pois desde o
Seacuteculo XIX a criacutetica textual jaacute possibilitava exames bem estruturados ao meio acadecircmico
Exemplo disto eacute Johann Otto que ao analisar o Codex Claromontanus LXXXII ratificou que
este de maneira inicial ldquonos fornece alguns dos escritos de Justinordquo147 Nesta questatildeo cabe
ressaltar que das obras preservadas de Justino possuiacutemos apenas trecircs manuscritos mesmo que
apenas um seja considerado absolutamente confiaacutevel pela criacutetica suscitando desta forma certa
controveacutersia entre os analistas Quanto a esta pendecircncia citamos parte consideraacutevel da pesquisa
145 ARZANI VENTURINI A Origem da Tradiccedilatildeo Apologeacutetica Cristatilde e Justino Maacutertir 2010 p 3-4
146 NORRIS The Apologists 2004 p 36 apud SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I
Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 74
147 OTTO Prolegocircmenos XXI In S Iustini philosophi et martyris opera quae feruntur omnia Volume 1 Part 1
1847
39
de Santos que baseada em autores renomados da aacuterea daacute o destaque necessaacuterio a essa anaacutelise
quirograacutefica O autor nos agrega relevante contribuiccedilatildeo neste item teacutecnico
Haacute trecircs manuscritos para as obras de Justino o Codex Parisinus Graecus 45055 o
Codex Claromontanus LXXXII e o Codex Ottobonianus Graecus 274 (MINNS amp
PARVIS 2009 p 3) Alguns comentadores preferem atribuir um manuscrito (AUNE
2003 p 257 ALLERT 2002 p 32 POPE 2001 p 7) ou dois manuscritos
(DONALDSON 1866 p 144) Os que defendem a existecircncia de somente um
manuscrito levam em conta que o Codex Parisinus Graecus 450 eacute o uacutenico vaacutelido uma
vez que o Codex Claromontanus LXXXII eacute apenas uma coacutepia deste e o Codex
Ottobonianus Graecus 274 possui apenas trecircs capiacutetulos da I Apologia Aqueles que
consideram como dois manuscritos referem-se aos dois primeiros Por questatildeo de
coerecircncia (pois apesar do Claromontaus ser coacutepia natildeo deixa de ser um manuscrito e
o Ottobonianus mesmo tendo apenas trecircs capiacutetulos tambeacutem natildeo) concordamos com
a afirmaccedilatildeo de Minns e Parvis de que existem trecircs manuscritos148
No entanto eacute fato que o Codex Parisinus Graecus 450 se condiciona como o ldquomelhorrdquo
destes manuscritos existentes Este manuscrito data de 11 de setembro de 1363-1364 possui
467 paacuteginas duplas (ou foacutelios que medem 285 x 215 cm) e atualmente permanece arquivado
na Bibliothegraveque Nationale em Paris149 Infelizmente natildeo haacute informaccedilotildees sobre quem teria sido
o copista apenas sabe-se graccedilas a um registro oficial que ele pertenceu a Guillaume Pellicier
um notaacutevel Bispo Catoacutelico Romano do Seacuteculo XVI que provavelmente o adquiriu em uma de
suas atividades diplomaacuteticas possivelmente entre os anos de 1539 a 1542150
Enfim apoacutes explorarmos ndash mesmo que de maneira sucinta ndash a estrutura textual da obra
central desta dissertaccedilatildeo podemos afirmar que estes documentos histoacutericos nos ldquocomunicamrdquo
e ldquotraduzemrdquo um melhor conhecimento do passado edificando a Igreja e tambeacutem certificando
o meio acadecircmico de forma eficaz (cientificamente) de que homens como Justino lutaram
corajosamente para defender a feacute de seus irmatildeos especialmente das perseguiccedilotildees oficiais
assunto que trataremos a seguir
14 A PERSEGUICcedilAtildeO AOS CRISTAtildeOS
Compreendemos ser ainda importante na construccedilatildeo desta pesquisa enfocarmos
mesmo que de maneira sucinta e setorizada um dos fatores que constituiu uma das
caracteriacutesticas mais vibrantes e significativas da histoacuteria do cristianismo em sua gecircnese como
148 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 74
149 PAUTIGNY In Introduction Justin Apologies 1904 p 10
150 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
40
movimento humano-religioso fato que mobilizou o cenaacuterio social da eacutepoca comprovando a
ldquoexistecircncia de um esquemardquo151 de perseguiccedilatildeo e cerceamento da liberdade de crenccedila e culto dos
cristatildeos isso tanto atraveacutes do agir do poder estatal quanto de setores organizados (especialmente
do meio religioso) da sociedade de entatildeo em sua formaccedilatildeo soacutecia-politica-religiosa de caraacuteter
cultural greco-romana Esta caracteriacutestica coativa acabou por se comprovar tambeacutem atraveacutes do
desenvolvimento de material textual como o que norteia nosso trabalho (I Apologia) acento
que sancionou uma regra funcional dos dias de nosso autor a de acionar a razatildeo humana para
tentar evitar uma insensata postura detrativa entre os homens autodeclarados de civilizados
Desta forma como parte derradeira deste capiacutetulo introdutoacuterio apresentamos duas
divisotildees uma temaacutetica e outra analiacutetica trazendo ambas carateriacutesticas funcionais especiacuteficas
desse sistema de repressatildeo A primeira retrata uma siacutentese deste processo na organizaccedilatildeo
estrutural do Impeacuterio Romano A segunda se orienta por um periacuteodo cronoloacutegico que se
desenvolveu durante o Seacuteculo II especialmente concentrando-se no dececircnio em que se acredita
que Justino tenha escrito sua primeira obra apologeacutetica
141 O Impeacuterio Romano e a Perseguiccedilatildeo ao Cristianismo
Desde o Seacuteculo I a ldquopesquisa histoacutericardquo152 jaacute nos retrata com eficiecircncia fatos que
tiveram influecircncia decisiva do poder humano controlador do mundo de entatildeo (Impeacuterio Romano)
para com a Igreja de Cristo sobre a terra Dessa grande estrutura poliacutetica da antiguidade emergiu
tanto a perseguiccedilatildeo quanto o resultado mais elementar e simboacutelico deste processo que tinha o
cristianismo como alvo o martiacuterio de seus seguidores Poderiacuteamos chamaacute-lo sem o apelo a
nenhum eufemismo de ldquoassassinatordquo de centenas de pessoas
Contudo nesta seacuterie de sucessivos acontecimentos anormais vem a nascer a mais
significativa contribuiccedilatildeo deste intolerante processo governamental a saber a expansatildeo do
cristianismo Hatzenberger desenvolve uma soacutelida ideia a esse respeito quando conjectura sobre
o caraacuteter poliacutetico vigente junto ao Impeacuterio Tendo analisado seus preconceitos limitaccedilotildees e
maliacutecias Hatzenberger tenta explicar a capacidade desse sistema atraveacutes de sua multiplicidade
de gecircnios dando a entender que nesta ampla diversidade o cristianismo encontrou sua
possibilidade de crescer Hatzenberger afirma que podemos ldquodizer que o Impeacuterio Romano era
um tambor de gasolina agrave espera da faiacutesca da feacute cristatilderdquo153
151 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004 p 356
152 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004 p 356
153 HATZENBERGER Histoacuteria da Igreja 2012 p 1
41
Entretanto as perseguiccedilotildees estatais ao cristianismo satildeo um caso histoacuterico delicado e
nada romacircntico pois tornou-se uma dura realidade para muitas comunidades cristatildes na
antiguidade isso devido ao grande desenvolvimento do cristianismo que no decorrer dos seus
primeiros 100 anos suscitou uma consideraacutevel preocupaccedilatildeo ao Impeacuterio Catalogada desde cedo
como uma religiatildeo antagonista e excludente154 pela sua recusa em seguir praacuteticas comuns do
meio social vigente das grandes cidades onde jaacute se encontrava consolidada ndash devido
especialmente as suas posiccedilotildees quanto as questotildees de ordem cuacuteltica (ldquofestas oficiaisrdquo155) como
a adoraccedilatildeo aos ldquodeuses pagatildeos em particular o Imperador a quem negavam o caraacuteter divinordquo156
ndash fazia com que os seguidores desse movimento que inicialmente foi interpretado como uma
seita judaica157 fossem em muitos casos expressivamente acusados de colocarem em risco a
ldquopax deorumrdquo158 devido ao entendimento comum e geral de que o Imperador era o supremo
mantenedor desse estado de satisfaccedilatildeo e gloacuteria conquistados por Roma Outras questotildees
depreciativas eram atribuiacutedas aos cristatildeos antissociabilidade ateiacutesmo canibalismo fanatismo
orgias sexuais entre outras desvirtudes que eram amplamente apresentadas como acusaccedilotildees de
ordem formal e agraves vezes informal (atraveacutes de buchichos fofocas e relatos puacuteblicos natildeo oficiais)
as quais despertavam ldquoreaccedilotildees populares descontroladas de medo de intoleracircncia e de
violecircnciardquo159 contra estes que se colocavam como disciacutepulos de Cristo
Desta forma entre falsas ideias e verdadeiras demandas ndash a recusa ao ldquojuramento e os
ritos implicados no serviccedilo militarrdquo160 eacute outro exemplo da suposta ldquorebeliatildeordquo cristatilde ao Impeacuterio
ndash criou-se um ldquoestadordquo de perigo que mediante uma forte campanha de difamaccedilatildeo passou a
ser considerado como uma ameaccedila a cultura e a forma do governo Romano Certamente
servindo de combustiacutevel para as perseguiccedilotildees pontuais eou sistematizadas161 especialmente
nos Seacuteculos I e II Aleacutem disto junto com a expansatildeo da nova doutrina e feacute cristatildes um novo
entendimento comeccedilou a se estabelecer que o cristianismo se diferenciava do judaiacutesmo162
154 TAacuteCITO Anais XV 44
155 FROumlHLICH Curso Baacutesico de Histoacuteria da Igreja 1987 p 23
156 LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975 p 15
157 LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975
STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004
158 TESTA In Igreja e Impeacuterio Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 969
159 TESTA In Igreja e Impeacuterio Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 976
160 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 84
161 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
162 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
42
Com o fim do ldquoequiacutevoco judaicordquo163 houve a reelaboraccedilatildeo de um esquema que gerou um
reposicionamento de Roma para essa nova perspectiva Aqui a siacutentese de Xavier retrata bem o
que desejamos comunicar sobre esse reposicionamento
O Impeacuterio Romano percebeu que a nova religiatildeo possuiacutea diferenccedilas acentuadas em
relaccedilatildeo ao judaiacutesmo Embora os judeus resistissem agrave cultura e religiatildeo greco-romana
o cristianismo passou a se organizar como religiatildeo crescendo em nuacutemero e em
organizaccedilatildeo sendo formadas igrejas em vaacuterios lugares O evangelho chegou aos
grandes centros da eacutepoca e ateacute os confins da terra devido a pregaccedilatildeo de cristatildeos que
viajavam a negoacutecios missatildeo ou levados pela perseguiccedilatildeo que dispersava os cristatildeos
fazendo com que a feacute se expandisse164
Quanto a questotildees que envolvem esse amplo periacuteodo conflituoso ainda eacute necessaacuterio
apresentarmos dois raacutepidos e sucintos registros O primeiro envolve um conjunto de fatos
constituiacutedos em mais de 250 anos onde podemos registrar periacuteodos que devem ser classificados
como ldquoperseguiccedilatildeo perseguiccedilatildeo geral perseguiccedilatildeo maior e toleracircnciardquo165 para com os cristatildeos
Satildeo muitas e variadas as circunstacircncias e as caracteriacutesticas que formam cada uma destas fases
e fazem com que elementos singulares a cada uma delas (como periacuteodo e regionalidade)
tornem-se fatores decisivos nesta diferenciaccedilatildeo Entretanto natildeo as abordaremos
especificamente por entendermos que o assunto foge de nosso exame central Segundo
compreendemos ser imprescindiacutevel junto a esta abordagem citar a tese amplamente sustentada
pelo meio histoacuterico-teoloacutegico da ldquoexistecircncia de um esquema de dez grandes perseguiccedilotildeesrdquo166
tendo seu primeiro caso ocorrido entre 64-68 dC sob o Imperador Nero desde seu uacuteltimo ato
no periacuteodo dos governos de Diocleciano e Maximiano entre 285-305 dC167 Tertuliano168 e
Euseacutebio fornecem-nos consideraacutevel conteuacutedo sobre aquela que possivelmente tenha sido a
primeira grande onda de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos promovida pelo Impeacuterio Citamos Euseacutebio
163 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 82
164 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 10
165 A ordem dos fatores apresentados natildeo eacute cronoloacutegica e sim alfabeacutetica Ver LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila
da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975 p 11-12
166 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004 p 356
167 As intituladas ldquoDez Perseguiccedilotildeesrdquo ao cristianismo por parte do Impeacuterio Romano satildeo protagonizadas por Nero
(54-68 dC) Domiciano (95-96 dC) Trajano (108 dC) Marco Aureacutelio (162 dC) Cocircmodo (192 dC)
Maximino (235 dC) Deacutecio (250-251 dC) Valeriano (257-260 dC) Aureliano (274 dC) Diocleciano (303-
313 dC) Ver FOXE O Livro dos Maacutertires 2003 p 16-32
168 TERTULIANO Apologia V
43
que ao falar sobre o reinado de Nero (54-68 dC) fomenta uma simbiose de dados histoacutericos
mencionando o proacuteprio Tertuliano
Firmado Nero no poder deu-se a praacuteticas iacutempias e tomou as armas contra a proacutepria
religiatildeo do Deus do universo [] Mas deve-se saber que a tudo o que foi dito sobre
ele faltava acrescentar que foi o primeiro imperador que se mostrou inimigo da
piedade para com Deus Disto faz menccedilatildeo tambeacutem o latino Tertuliano quando diz
ldquoLeiam vossas memoacuterias Nelas encontrareis que Nero foi o primeiro a perseguir esta
doutrina principalmente quando depois de submeter todo o Oriente em Roma era
cruel para com todosrdquo169
Portanto buscando apresentar uma ideia conclusiva a nossa concisa elaboraccedilatildeo sobre
esse tema tatildeo vasto da histoacuteria da Igreja podemos dizer que natildeo restam duacutevidas mediante
inuacutemeros argumentos histoacutericos apresentados por diversas e variadas fontes ser plausiacutevel e ateacute
mesmo luacutecido afirmar que o Impeacuterio Romano foi em diversos momentos um literal
perseguidor acusador juiz e algoz do cristianismo durante um periacuteodo de praticamente dois
seacuteculos e meio Scott por meio de bases historiograacuteficas retrata bem esse processo ajudando-o
a sancionaacute-lo
Repetidas vezes foram publicados editos para exterminar da terra os cristatildeos
Levantaram ateacute monumentos para celebrar e perpetuar os supostos ecircxitos das
perseguiccedilotildees Aqui estatildeo duas preservadas inscriccedilotildees desses monumentos em escritos
da eacutepoca DIOCLECIANO CEacuteSAR AUGUSTO TENDO ADOTADO GALEacuteRIO
NO ORIENTE A SUPERSTICcedilAtildeO DOS CRISTAtildeOS FOI DESTRUIacuteDA EM TODA
A PARTE E PROPAGADA A ADORACcedilAtildeO DOS DEUSES170
A partir de agora examinaremos um conjunto mais restrito desse longo periacuteodo
imperial (54-313 dC)171 de tensotildees entre a Igreja e seus perseguidores pagatildeos especificamente
abordaremos o periacuteodo endossado pelos registros de Justino atraveacutes de seu ministeacuterio
testemunho e vivecircncia na feacute cristatilde
142 A Perseguiccedilatildeo no Periacuteodo da I Apologia
169 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica II 25 1 3 4
170 SCOTT As Catacumbas de Roma 1996 p 84 grifo do autor
171 LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975
44
Durante o Seacuteculo II podemos dizer que um periacuteodo determinado pela irregularidade
ou seja pela ausecircncia de um padratildeo caracterizou o ambiente social da eacutepoca atraveacutes de uma
ldquoperseguiccedilatildeo difusa ora aqui ora ali hoje perseguiccedilatildeo amanhatilde toleracircnciardquo172 Este momento
tambeacutem pode ser realccedilado por outras questotildees pontuais mas sua principal distinccedilatildeo realmente
se define pela esporadicidade dos periacuteodos de repressatildeo estatal o que ocasionou momentos de
consideraacutevel toleracircncia ao cristianismo balizados e sustentados ldquojuridicamenterdquo pela resposta
do Imperador Trajano agrave consulta de Pliacutenio173 (Cocircnsul da Bitiacutenia) por volta do ano 111 dC
Santos sintetiza bem esses dececircnios da relaccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja ldquoA poliacutetica romana agrave
eacutepoca era de tanto quanto possiacutevel natildeo condenar os cristatildeos agrave morte De modo geral desde o
final do Seacuteculo I ateacute o final do II da era cristatilde houve vaacuterios Imperadores com poliacuteticas mais
paciacuteficas em relaccedilatildeo aos cristatildeosrdquo174 Vale tambeacutem ressaltarmos como um elemento
consideraacutevel a tese proposta que no momento ao qual Justino escreveu sua I Apologia Roma
era governada pela dinastia denominada de Nerva-Antonina a qual foi conhecida pela alcunha
dos ldquocinco bons imperadoresrdquo175 definiccedilatildeo que foi proposta por Maquiavel em uma anaacutelise
poliacutetica do ano de 1503 Maquiavel escreveu
Do estudo desta histoacuteria podemos tambeacutem aprender como um bom governo deve ser
fundado pois enquanto todos os imperadores que acederam ao trono por nascimento
exceto Tito foram ruins todos foram bons que acederam por adoccedilatildeo como foi o caso
dos cinco de Nerva ateacute Marco Mas tatildeo logo o impeacuterio caiu novamente nas matildeos dos
herdeiros por nascimento sua ruiacutena recomeccedilou176
Entretanto falaremos especificamente apenas de duas figuras deste periacuteodo chamado
de dinastia Nerva-Antonina (96 a 180 dC) mais precisamente de seus dois uacuteltimos
172 LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975 p 20
173 ROSSI BINATO As Cartas de Pliacutenio o Jovem traduccedilatildeo parcial do Livro X correspondecircncia administrativa
com o Imperador Trajano 2017
174 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 90
175 Relaccedilatildeo dos Imperadores da dinastia Nerva-antonina Nerva (96-98 dC) Trajano (98-117 dC) Adriano (117-
138 dC) Antonino Pio (138-161 dC) Marco Aureacutelio (161-180 dC) Ver SANTOS Identidade Cristatilde no
Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 90
176 MAQUIAVEL Discurso sobre a Primeira Deacutecada de Tito Liacutevio I 10
45
representantes a saber Antonino Pio177 (que sucedeu a Adriano) e seu filho adotivo Marco
Aureacutelio178 que o sucedeu
O Imperador Antonino Pio governou Roma por mais de vinte anos (138 a 161) Ele eacute
o destinataacuterio formal eou principal da I Apologia de Justino Neste aspecto vale muito para
esta pesquisa a anaacutelise referencial deixada por Foxe ldquoAdriano ao morrer no ano 138 dC foi
sucedido por Antonino Pio um dos mais gentis monarcas que jamais reinou e que deteve as
perseguiccedilotildees contra os cristatildeosrdquo179 Santos tambeacutem nos auxilia quando expotildeem o pensamento
de Bunson sobre a administraccedilatildeo de Antonino Pio ldquoQuanto agraves questotildees de poliacutetica externa
procurava sempre resolvecirc-las primeiramente de forma paciacutefica depois administrativamente e
por uacuteltimo com taacuteticas militaresrdquo180 Eacute fato praticamente livre de contestaccedilotildees que em seu
governo natildeo houve perseguiccedilotildees de maior envergadura sendo que as que ocorreram foram
pontuais e sem maiores impactos referendando deste modo a imagem do Imperador como a de
um monarca paciacutefico (para a eacutepoca) pois ateacute mesmo em seu periacuteodo como divus romanus foi
cognominado pelo povo de ldquoPIEDOSO pelo amor que dedicava aos pobresrdquo181
Quanto a Marco Aureacutelio seu sucessor os relatos sobre a sua postura para com o
cristianismo devem no miacutenimo ser apresentados com o adjetivo de obscurus Foxe retrata bem
esta dificuldade ldquoMarco Aureacutelio sucedeu no trono no ano 161 de nosso Senhor era um homem
de natureza mais riacutegida e severa e embora elogiaacutevel no estudo da filosofia e em sua atividade
de governo foi duro e feroz contra os cristatildeos e desencadeou a quarta (grande) perseguiccedilatildeordquo182
Extremamente vaacutelido eacute analisarmos os registros do proacuteprio Imperador os quais nos
demonstram de forma muita clara a incompatibilidade de sua filosofia com a doutrina de Cristo
como se vecirc em uma de suas citaccedilotildees
177 Titus Aurelius Fulvus Boionius Antoninus nasceu em 86 dC em Nimes na Gaacutelia Narbonense no sul da atual
Franccedila Devido agrave sua fidelidade Adriano o adotou em fevereiro de 138 dC para ser o seu sucessor no Impeacuterio o
que ocorreu logo depois no mecircs de julho com a morte de Adriano Ver BUNSON Encyclopedia of the Roman
Empire 2002 p 23-24 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino
Maacutertir 2012 p 95
178 Marcus Aurelius Antoninus nasceu em 121 dC na cidade de Roma Filho de Annius Verus e Domitia Lucilla
Tornou-se Imperador em 161 dC e a seu pedido Lucio Vero (Lucius Aerelius Verus) governou Roma juntamente
com ele Ver BIRLEY Marcus Aurelius A Biography 2001 p 116 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica IV 14
10
179 FOXE O Livro dos Maacutertires 2003 p 18
180 BUNSON Encyclopedia of the Roman Empire 2002 p 24 apud SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II
dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 96
181 MONTEIRO A Feacute e os Maacutertires breves apontamentos sobre as perseguiccedilotildees da Igreja 1940 p 81 grifo do
autor
182 FOXE O Livro dos Maacutertires 2003 p 18 grifo nosso
46
[] alma preparada para uma imediata separaccedilatildeo do corpo seja para extinguir seja
para se dispersar ou sobreviver [] Que essa preparaccedilatildeo poreacutem provenha de um juiacutezo
proacuteprio e natildeo dum simples sectarismo como o dos cristatildeos [] uma preparaccedilatildeo
raciocinada grave e para ser convincente nada teatral183
Alguns detalhes nos chamam muito a atenccedilatildeo no periacuteodo em que Marco Aureacutelio
governou especialmente se nosso estudo partir do ponto de vista de alguns historiadores que
fazem questatildeo de ratificar que esse periacuteodo foi como ldquoum lsquomarcorsquo negro fincado na histoacuteria
eclesiaacutestica assinalando com as sombras de sua tirania a eacutepoca triste de seu governo
nefastordquo184 Euseacutebio nos auxilia nesta anaacutelise de maneira importante pois segue a mesma
concepccedilatildeo de que os atos de Marco Aureacutelio foram excessivamente malignos para com o
cristianismo Buscando ser amplo e detalhista Euseacutebio promove sentimentos profundos em seu
relato quando nos retrata o martiacuterio de Policarpo Bispo de Esmirna ocorrido no reinado de
Marco Aureacutelio
E o prococircnsul disse ldquoTenho feras A elas te lanccedilarei se natildeo mudas tua posiccedilatildeordquo Mas
ele respondeu ldquoChama-as porque para noacutes natildeo eacute possiacutevel mudar de posiccedilatildeo se eacute do
melhor para o pior O bom eacute mudar do mau para o justordquo Insistiu o prococircnsul ldquoComo
natildeo te arrependes farei com que o fogo te dome se desprezas as ferasrdquo Policarpo
disse ldquoAmeaccedilas com um fogo que arde algum tempo mas depois de um pouco se
apaga E ignoras o fogo do juiacutezo futuro e do castigo eterno reservado aos iacutempios
Mas por que tardas Traga o que quiseresrdquo Enquanto dizia isto e muitas outras coisas
mais enchia-se de valor e de alegria e seu rosto transbordava de graccedila ao ponto de
que natildeo somente natildeo caiu em confusatildeo pelas coisas que lhe diziam mas pelo
contraacuterio foi o prococircnsul que ficou fora de si e chamou o arauto para que no meio do
estaacutedio apregoasse trecircs vezes Policarpo confessou que eacute cristatildeo185
Nesse cenaacuterio imperial ainda nos conveacutem apresentar a proacutepria experiecircncia de Justino
como um cristatildeo perseguido No ano de 165 dC o filoacutesofo Justino possivelmente
acompanhado de seis de seus disciacutepulos (todos cristatildeos como ele) eacute apresentado com estes a
um tribunal civil Romano sob a acusaccedilatildeo de serem cristatildeos Este relato estaacute amplamente
amparado por uma fonte secular pagatilde186 que goza de altiacutessima credibilidade Apoacutes ser
183 MARCO AUREacuteLIO Meditaccedilotildees XI 3 grifo nosso
184 MONTEIRO A Feacute e os Maacutertires breves apontamentos sobre as perseguiccedilotildees da Igreja 1940 p 90
185 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 15 23-25
186 As Atas dos Maacutertires eacute a transcriccedilatildeo dos processos verbais escritos pelas autoridades romanas e mantidos nos
arquivos oficiais do Impeacuterio Estes registros coletaram estenograficamente muitos dos atos relacionados aos
processos forenses aos quais os cristatildeos foram submetidos pelos magistrados principalmente nos interrogatoacuterios
puacuteblicos Posteriormente estes registros foram traduzidos para a escrita vulgar e assim as peccedilas foram passadas
para os arquivos judiciais Muitos dos atos foram destruiacutedos (queimados em praccedila puacuteblica) pelo Imperador
47
denunciado pelo ciacutenico Crescente Justino se apresenta diante de Ruacutestico (Prefeito de Roma)
onde o relato do processo forense se estabelece e desenrola
Venha ao tribunal o prefeito Ruacutestico disse a Justino ndash Primeiro acredite nos deuses
e obedeccedila aos imperadores Justino respondeu ndash O irrepreensiacutevel e que natildeo admite
condenaccedilatildeo eacute obedecer aos mandamentos de nosso Salvador Jesus Cristo O prefeito
Ruacutestico disse ndash Que doutrina vocecirc professa Justino respondeu ndash Tentei ouvir sobre
qualquer linhagem de doutrinas mas apenas aderi agraves doutrinas dos cristatildeos que satildeo
as verdadeiras mesmo que natildeo sejam agradaacuteveis para quem segue opiniotildees falsas187
Nessa projeccedilatildeo vemos que o Apologista apresenta natildeo somente sua feacute mas tambeacutem
sua consciecircncia de que os preceitos recebidos por ele mediante o cristianismo solidificavam
sua posiccedilatildeo Mesmo diante de um sistema que os poderia prejudicar e sendo incentivados a
recuar de suas convicccedilotildees por meio de uma aguccedilada ameaccedila de que poderiam ser
ldquoimpiedosamente punidosrdquo188 Justino e seus disciacutepulos passam a concentrar seus esforccedilos
naquilo que esta pesquisa define como um importante argumento para a Verdade que Justino
sustentava Aqui o fenocircmeno do martiacuterio cristatildeo conduzido e explorado pelo Impeacuterio Romano
ganha uma inopinada abrangecircncia pois o supliacutecio desses homens e mulheres registrados como
peccedilas do protocolo governamental acabariam por se tornar nos fatos que solidificaram e
encorajaram a militacircncia desses obreiros da feacute cristatilde Sem duacutevida Justino e seus disciacutepulos
parecem ter caminhado de forma soacutebria para ldquoonde foram decapitados e consumaram o martiacuterio
proclamando a feacute no Salvadorrdquo189 Deste modo diante de apresentaccedilotildees que se alternam entre
descriccedilotildees de caraacuteter romacircntico e fatalista vemos que os Imperadores e seus sistemas de
controle marcaram a histoacuteria natildeo apenas com sangue mas tambeacutem com o relato fidedigno da
convicccedilatildeo que suas viacutetimas sustentavam
Diocleciano (284-305 dC) pois havia notado que esses contos heroicos inflamavam a alma dos cristatildeos dando
testemunho favoraacutevel para que outros tambeacutem viessem a sofrer a pena capital sem constrangimento para com as
suas vidas Ver PRIMEROS CRISTIANOS 2016 Disponiacutevel em
lthttpswwwprimeroscristianoscomarticulosactas-de-los-martiresgt Acesso em 16 de set 2019
187 ACTAS DE LOS MAacuteRTIRES I p 311 grifo nosso No original Venidos ante el tribunal el prefecto Ruacutestico
dijo a Justino mdash En primer lugar cree en los dioses y obedece a los emperadores Justino respondioacute mdash Lo
irreprochable y que no admite condenacioacuten es obedecer a los mandatos de nuestro Salvador Jesucristo El prefecto
Ruacutestico dijo mdash iquestQueacute doctrina profesas Justino respondioacute mdash He procurado tener noticia de todo linaje de
doctrinas pero soacutelo me he adherido a las doctrinas de los cristianos que son las verdaderas por maacutes que no sean
gratas a quienes siguen falsas opiniones
188 ACTAS DE LOS MAacuteRTIRES I p 316 No original sereacuteis inexorablemente castigados
189 ACTAS DE LOS MAacuteRTIRES I p 316 No original salieron al lugar acostumbrado y cortaacutendoles alliacute las
cabezas consumaron su martirio en la confesioacuten de nuestro Salvador
48
Marco Aureacutelio tinha aproximadamente 34 anos quando Justino escreveu sua I
Apologia e cerca de 44 quando Justino sofreu o martiacuterio Mesmo diante de relatos assombrosos
de seu periacuteodo como governante ldquoe apesar de sua visatildeo negativa em relaccedilatildeo aos cristatildeos e dos
cristatildeos para com ele novamente natildeo haacute evidecircncias de qualquer (novo) decreto de perseguiccedilatildeo
aos cristatildeos por parte do Imperadorrdquo190 mesmo que se garanta uma expressiva deflagraccedilatildeo deste
expediente sombrio em seu reinado191 Devemos ainda colocar que um atento pesquisador
necessariamente se impressionaraacute com a latente crueza e dureza deste periacuteodo que esteve sob
o comando dos chamados Imperadores ldquofiloacutesofosrdquo Danieacutelou e Marrou chegam a ser aacutesperos
em sua abordagem entretanto nos parece absolutamente plausiacutevel sua definiccedilatildeo desse periacuteodo
ldquoEacute que a civilizaccedilatildeo greco-romana como tal muito embora sob um verniz humanista guardava
um fundo de crueldade Desconhecem-nos os historiadores racionalistas que pretendem reduzir
as perseguiccedilotildees a problemas socioloacutegicosrdquo192
Contudo as perseguiccedilotildees que marcaram o cristianismo e por consequecircncia geraram o
principal fruto (os martiacuterios) deste violento periacuteodo indiscutivelmente ainda satildeo sementes que
testificam e geram vida em meio a Igreja A realidade da cristandade dos primeiros seacuteculos foi
difiacutecil e desafiadora para sua feacute mas sua Esperanccedila e Amor em Jesus Cristo fez os cristatildeos
superarem ateacute a mais dolorosa realidade fosse no calor de uma fogueira nos dentes de uma
fera ou no supliacutecio de uma cruz Xavier em nosso ponto de vista consegue caracterizar bem o
fervor e feacute destes vencedores ldquoA doenccedila dificuldades e martiacuterio fizeram parte da vida dos
cristatildeos nos primeiros seacuteculos e ao longo da histoacuteria poreacutem a virtude do Evangelho natildeo deixou
de ser pregada de uma forma ou de outra pelo exemplo pela palavra falada ou escritardquo193
Apoacutes esta exposiccedilatildeo nos eacute possiacutevel reconhecer indicadores confiaacuteveis de quem foi
este filoacutesofo cristatildeo do Seacuteculo II chamado Justino de como a histoacuteria eclesiaacutestica o reconhece
e de como a histoacuteria teoloacutegica o depreende Mais ainda eacute possiacutevel compreender por meio de
dados teacutecnicos um de seus escritos mais importantes (I Apologia) Estas paacuteginas lanccedilaram luz
de maneira praacutetica (visando quando onde e por quecirc) sobre o cenaacuterio histoacuterico que envolveu
as perseguiccedilotildees e os martiacuterios dos cristatildeos especialmente no periacuteodo da atuaccedilatildeo apologeacutetica de
190 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 97 grifo
nosso
191 Para uma melhor compreensatildeo deste cenaacuterio hostil no reinado de Marco Aureacutelio ver MONTEIRO A Feacute e os
Maacutertires breves apontamentos sobre as perseguiccedilotildees da Igreja 1940 p 89-108
192 DANIEacuteLOU MARROU Nova histoacuteria da Igreja V I Dos Primoacuterdios a Santo Gregoacuterio Magno 1966 p
109
193 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 11-12
49
Justino Para efeito de conclusatildeo desta seccedilatildeo conveacutem transcrever o registro de Hamman em
formato de siacutentese que fomenta virtuosamente a descriccedilatildeo capitular desenvolvida
Neste homem que viveu haacute dezoito seacuteculos percebemos o eco de nossos anseios de
nossas objeccedilotildees de nossas certezas Descobrimos nele uma abertura de alma uma
possibilidade de acolhimento uma vontade de diaacutelogo que desarmam e seduzem Se
muitas de suas obras estatildeo hoje perdidas as que nos restam fornecem-nos o diaacuterio
iacutentimo desse cristatildeo e satildeo suficientes para nos revelar sua vida desde o seu
nascimento e a sua formaccedilatildeo ateacute o seu martiacuterio194
O proacuteximo capiacutetulo faz uma anaacutelise na qual procuramos mostrar elementos factiacuteveis
de uma nova praacutetica social vigente ndash descrita por Justino ndash em meio ao status quo da sociedade
romana de entatildeo Desta maneira tambeacutem nos cabe frisar que a partir deste ponto se salientaraacute
o iniacutecio da descriccedilatildeo daquilo que para nosso autor era uma das provas estaacuteveis do novo modus
vivendi no qual a Verdade se manifestava de forma irrefutaacutevel
194 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 27
50
2 O NOVO MODUS VIVENDI
Este capiacutetulo faraacute uma anaacutelise realiacutestica a partir da observaccedilatildeo de praacuteticas do contexto
social de Justino maacutertir Com ele iniciamos a perspectiva central proposta para esta pesquisa
aleacutem de apresentarmos de forma introdutoacuteria seu ponto nuclear Algumas marcas de cunho
histoacuterico nos permitem medir aquilo que aproximava ou afastava uma pessoa que confessava
a feacute cristatilde de seu meio sociocultural de suas atividades ordinaacuterias de seus afazeres do dia-a-
dia195 Assim neste espaccedilo apresentamos um teoacuterico conjunto de expressotildees que apontam os
conceitos que afloram do pensamento de Justino quanto agrave ldquomorfogeniardquo de sua feacute e porque natildeo
se dizer de seu grupo o qual eacute definido pelo autor como aqueles ldquoque se chamam irmatildeosrdquo196
A contemporaneidade retrata uma condiccedilatildeo ambiacutegua em comparaccedilatildeo com o Seacuteculo II
naquilo que se trata da transmissatildeo da religiosidade cristatilde ndash especialmente no que se reporta as
estruturas confessionais histoacutericas nos paiacuteses europeus e latino-americanos ndash tendo o processo
atual significativa ambivalecircncia com o padratildeo antigo o qual ainda natildeo havendo passado pelo
processo de enculturaccedilatildeo definia-se fortemente pela conversatildeo de pessoas adultas dado
amparado de forma eficiente por Tertuliano em sua Apologia ldquoos homens se tornam natildeo
nascem cristatildeosrdquo197
Deste modo notamos que a leitura histoacuterica praticamente natildeo abre concessotildees agrave
conversatildeo ao cristianismo na eacutepoca de Justino constituiacutea uma verdadeira transformaccedilatildeo na vida
do convertido implicando em uma real mudanccedila de vida ou seja de haacutebitos que
necessariamente provocava uma ldquoruptura com a cidade e isolava o cristatildeo de seu meio e de sua
famiacutelia se ela permanecesse pagatilderdquo198 Baseados em afirmaccedilotildees como esta eacute que delinearemos
um horizonte que possa definir de forma consideraacutevel a realidade do que seria estar vivendo a
Verdade para Justino mediante uma contraposiccedilatildeo de haacutebitos detectada por meio dessa
transformaccedilatildeo
Diante de tal teor surgem interrogaccedilotildees que nos trazem demandas pontuais
principalmente de caraacuteter especulativo orientadas a responder questotildees que despertam o
imaginaacuterio de nosso contexto atual Por estarem devidamente inseridas no cenaacuterio histoacuterico da
I Apologia estes assuntos caracterizam-se por suas pendecircncias mesmo que uma determinaccedilatildeo
em comum saliente todos os espaccedilos em branco tendo esta demarcaccedilatildeo em si um caraacuteter de
195 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997
196 JUSTINO I Apologia LXV 1
197 TERTULIANO Apologia XVIII 4
198 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 187
51
diferenciaccedilatildeo que evoca uma clara distinccedilatildeo de estados Desta forma seguem alguns modelos
nos quais visamos indagar esta distinccedilatildeo que detectamos em Justino como definia-se um cristatildeo
em meados do Seacuteculo II Quais pessoas natildeo pertenciam a este grupo religioso e quais eram as
limitaccedilotildees que as impediam de tal prerrogativa Que nova praacutetica de feacute eacute esta que descarta as
antigas tradiccedilotildees religiosas De qual maneira isso se tornou um criteacuterio a ponto de estabelecer
diferenciaccedilotildees a niacutevel existencial
21 CRISTIANISMO A NOVA IDENTIDADE
Este espaccedilo tende a abertura de um caminho ao qual entendemos ser fundamental para
o desenvolvimento desta pesquisa isso devido agrave necessidade de apontarmos bases soacutelidas na
construccedilatildeo de nosso conceito mater Desta maneira iniciamos este capiacutetulo essencial em nossa
estruturaccedilatildeo utilizando-nos de uma afirmaccedilatildeo desenvolvida junto agrave pesquisa de Santos e
Gonccedilalves a qual soma valiosamente a nossa tese por contemplar a seguinte definiccedilatildeo ldquoAo
analisarmos a I Apologia podemos verificar que ele pretende revelar quem satildeo os cristatildeos Isto
parece fazer bastante sentido Ao buscar defender o cristianismo parece natural desenvolver um
texto que visa mostrar a identidade do grupordquo199
O cristianismo como religiatildeo vem a se desenvolver (universalmente) a partir de uma
comunidade autoacutectone de seu ldquofundadorrdquo emergindo atraveacutes de um pequeno grupo de
seguidores (Atos dos Apoacutestolos capiacutetulo 2) altamente condicionados agrave sua cultura e tradiccedilatildeo
religiosa200 poreacutem passados aproximadamente 110 anos o movimento cristatildeo chega ateacute os
dias de Justino com uma proporccedilatildeo numeacuterica muito significativa para um periacuteodo de tempo natildeo
tatildeo extenso201 Nesse processo estruturante tambeacutem de modo irrefragaacutevel202 houve um
desenvolvimento de um novo processo conceitual de um novo status de conhecimento ndash ou se
poderia chamar de um autoconhecimento ndash da proacutepria identidade (natildeo eacutetnica) cristatilde Processo
ao qual os chamados seguidores de Cristo apresentavam preceitos de paridade em uma espeacutecie
de similaridade existencial fato que leva o historiador Santos ao afirmar que ldquoa concepccedilatildeo de
meros disciacutepulos passou posteriormente a adquirir a ideia de povordquo203 Santos na verdade
199 SANTOS GONCcedilALVES A Aplicaccedilatildeo do ldquoContextualismo Linguiacutesticordquo e a busca da compreensatildeo da I
Apologia de Justino Maacutertir 2011 p 3
200 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004
201 SCOTT As Catacumbas de Roma 1996
202 KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983
203 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 135
52
reproduz simplesmente um pensamento jaacute consolidado no meio teoloacutegico Harnack no capiacutetulo
sete de sua obra A Missatildeo e Expansatildeo do Cristianismo nos Primeiros Trecircs Seacuteculos204 jaacute
solidifica tal ideia O teoacutelogo alematildeo caracteriza seu pensamento socioteoloacutegico da seguinte
forma
Convencido de que Jesus o mestre e o profeta era tambeacutem o Messias que voltaria em
breve para terminar o seu trabalho as pessoas passaram da consciecircncia de serem seus
disciacutepulos para o seu povo o povo de Deus ὑμεῖς γένος ἐκλεκτόν βασίλειον
ἱεράτευμα ἔθνος ἅγιον λαὸς εἰς περιποίησιν (1 Pe II 9 ldquoVoacutes sois uma raccedila escolhida
um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo para possessatildeordquo) e na medida em
que se sentiam um povo os cristatildeos sabiam que eles eram o verdadeiro Israel pessoas
que ao mesmo tempo representavam o novo e o velho205
Cabe-nos tambeacutem frisar neste aspecto levantado por Harnack que na questatildeo referente
agrave formaccedilatildeo de uma nova identidade social de caraacuteter religiosa este foi um fenocircmeno tanto
perceptiacutevel para eacutepoca de Justino como tambeacutem o ainda eacute em alguns segmentos humanos na
contemporaneidade Esta accedilatildeo associativa organizou-se (e ainda se organiza) de forma
majoritariamente comunitaacuteria a partir de experiecircncias pessoais de seus participantes sendo isto
ocasionado quase que na totalidade dos casos por meio do fenocircmeno conversiacutevel ocorrido no
acircmbito individual Este processo normalmente excludente e sectaacuterio de um determinado extrato
social ndash absolutamente imperativo no periacuteodo histoacuterico analisado poreacutem na atualidade natildeo
mais apresentando necessariamente uma ambiguidade ao estado de crenccedila anterior do
confessando (agente humano) ndash acaba por ser adesivo a outro o que ocasionava o
comprometimento com uma nova forma de comunhatildeo a qual amparada em novas certezas
rechaccedilava com ousadia as referecircncias da antiga crenccedila Em relaccedilatildeo ao cristianismo esse
fenocircmeno foi mais saliente entre as comunidades gentiacutelicas que abandonaram o paganismo206
Mencionamos ainda a definiccedilatildeo de Mol utilizada por Kee por entendermos que ele consegue
esclarecer de maneira objetiva aquilo que nos interessa expressar neste item sendo uma
consequecircncia natural do processo de conversatildeo ao cristianismo em meados de Seacuteculo II Mol
204 No original The Mission and Expansion of Christianity in the First Three Centuries
205 HARNACK The Mission and Expansion of Christianity in the First Three Centuries 2005 p 152 No original
Convinced that Jesus the teacher and the prophet was also the Messiah who was to return ere long to finish off
his work people passed from the consciousness of being his disciples into that of being his people the people of
God ὑμεῖς γένος ἐκλεκτόν βασίλειον ἱεράτευμα ἔθνος ἅγιον λαὸς εἰς περιποίησιν (1 Pet ii 9 ldquoYe are a chosen
race a royal priesthood a holy nation a people for possessionrdquo) and in so far as they felt themselves to be a
people Christians knew they were the true Israel at once the new people and the old
206 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004
53
escreve que o primeiro estaacutegio de um novo convertido neste periacuteodo se caracterizava por aquilo
que ele define como um ldquodistanciamento de anteriores padrotildees de identidaderdquo207
Deste modo seguindo a proposta acima encontramos algumas afirmaccedilotildees que nos
parecem descrever com exatidatildeo a tese (por hipoacutetese cristatilde) que definia a sociedade de entatildeo
como que constituiacuteda por um suposto terceiro grupo de pessoas (holisticamente falando) Aleacutem
dos denominados gentios e judeus (no relato biacuteblico) haveria tambeacutem os cristatildeos Cabe-nos
ressaltar que esse indicador quantitativo variou dentro da construccedilatildeo desta proposiccedilatildeo
indicativa das supostas variaccedilotildees de ldquoraccedilasrdquo pois jaacute nos escritos dos Pais Apologistas esse
nuacutemero chegou a ser descrito em mais de trecircs segmentos (caldeus egiacutepcios gregos judeus e
cristatildeos)208 Assunto que voltaremos a tratar com mais exatidatildeo a seguir Vale-nos tambeacutem citar
que o conceito de estraneidade abordado especialmente em anaacutelises eclesioloacutegicas e
missioloacutegicas do meio Patriacutestico209 diferencia-se em alguns aspectos de nosso assunto
diferenciaccedilatildeo que natildeo seraacute abordada por entendermos que foge de nossa temaacutetica atual
Iniciamos nossa argumentaccedilatildeo apontando que este conceito identitaacuterio de caraacuteter
etnograacutefico jaacute se apresenta com clareza no relato da Escritura Sagrada Vemos o apoacutestolo Paulo
fazendo distinccedilatildeo similar quando opta por desenvolver uma anaacutelise contrastante do cenaacuterio
humano (eacutetnico religioso etc) de seu tempo apresentando-nos uma leitura com trecircs diferentes
grupos humanos ldquoNatildeo vos torneis causa de tropeccedilo nem para judeus nem para gentios nem
tampouco para a igreja de Deusrdquo (1 Coriacutentios 1032) Neste ponto posiccedilotildees exegeacuteticas variadas
podem corroborar para a compreensatildeo e tambeacutem assimilaccedilatildeo da passagem citada referente ao
suposto conceito de iacutendole eacutetnica apontado210 mas o proacuteprio cenaacuterio nos aponta determinados
viacutenculos que nos conduzem a ideia de que ser cristatildeo no suposto periacuteodo oferecia aos fieacuteis a
opiniatildeo de pertencer a um povo diferente211
Neste conjunto eacute necessaacuterio citar o Apologista Aristides que de maneira
inquestionaacutevel se apresenta no cenaacuterio cristatildeo como aquele que daraacute um salto intelectual na
direccedilatildeo do desenvolvimento daquilo que poderiacuteamos definir como a primeira concepccedilatildeo de um
ethnos propriamente cristatildeo212 Aristides ldquofiloacutesofo de Atenas e um dos primeiros defensores do
207 MOL Identity and the Sacred 1977 p 52-53 apud KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica
1983 p 65-66 grifo nosso
208 Ver ARISTIDES Apologia II XIV e XV
209 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
210 METZ In A Primeira Epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006
211 GONZAacuteLEZ 1995
212 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997
54
cristianismordquo213 permitiraacute a transmissatildeo conceitual deste tema apontado nos escritos paulinos
aproximadamente oitenta anos depois de Paulo escrever aos cristatildeos de Corinto Em sua obra
Apologia Aristides concentra esforccedilos em uma elaboraccedilatildeo pragmaacutetica que visa uma
apresentaccedilatildeo de diferentes aspectos teoloacutegicos e morais todos provenientes de haacutebitos e
costumes de outros padrotildees religiosos de entre as etniaspovosnaccedilotildees de sua eacutepoca
Neste exerciacutecio Aristides ldquodescreve os cristatildeos como um povo ou naccedilatildeordquo214 que iraacute
progressivamente e cada vez mais contrastar seus conhecimentos e seu comportamento com os
outros povos com que convivia a saber os babilocircnios os gregos os egiacutepcios e os judeus
Possivelmente Aristides desejava ldquoexprimir a autocompreensatildeo cristatilderdquo215 de seus dias no
entanto provavelmente tambeacutem expressava um conceito jaacute bem estruturado em seu meio
religioso utilizando-se de um escrito apologeacutetico muito diretivo desenvolvido em ldquoforma de
uma etnografia comparativardquo216 Importante eacute o fato de que um entendimento novo de forma
absolutamente objetiva retratava a nova maneira de viver e esta maneira era aplicada
adjetivamente como cristatilde
Este fenocircmeno ocorria devido a este novo conceito ter se estruturado sobre ldquouma
organizaccedilatildeo humana cada vez mais precisa e soacutelida uma sociedade cujos alicerces satildeo
inteiramente novos e um tipo de homem diferente de todos aqueles que o mundo conhecerardquo217
Desta forma acabou por se gerar um entendimento novo sobre uma nova realidade histoacuterica
diferente de todas as demais jaacute existentes algo que na compreensatildeo de seus participantes soacute
poderia ser condicionado por um novo organismo ou seja uma nova ldquoraccedilardquopovonaccedilatildeo
Contudo este fato pode ser tambeacutem comprovado atraveacutes de outros seguimentos uma vez que
os proacuteprios natildeo-cristatildeos parecem fomentar esta ideia de separaccedilatildeo eacutetnica Isso pode ser visto
com realce atraveacutes do relato de outra figura Patriacutestica de destaque o qual torna-se o personagem
central de nosso exame a partir deste ponto
A partir do Seacuteculo II haveraacute inuacutemeras contribuiccedilotildees para a histoacuteria da teologia Em
primeiro lugar na figura de Tertuliano por ser considerado o ldquofundador da tradiccedilatildeo teoloacutegica
ocidentalrdquo218 Entretanto referente ao tema em destaque Tertuliano em sua obra Agraves Naccedilotildees (Ad
nationes) ndash tambeacutem traduzida por Aos Pagatildeos ndash apresenta no capiacutetulo VIII do I livro uma
213 PIERINI A Idade Antiga Curso de histoacuteria da igreja ndash I 1998 p 73
214 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997 p 16
215 PIERINI A Idade Antiga Curso de histoacuteria da igreja ndash I 1998 p 73
216 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997 p 17
217 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 240
218 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 42
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relevante informaccedilatildeo a respeito de nosso assunto pois atraveacutes de uma genuiacutena accedilatildeo apologeacutetica
passa a informar algo que estava sendo apregoado sobre os cristatildeos Ele menciona que alguns
ldquoCertamente dizem que somos a terceira raccedila dos homensrdquo219 Jaacute de iniacutecio torna-se simples
devido ao desenvolvimento do texto conceituar a definiccedilatildeo (ldquoterceira raccedilardquo) citada por
Tertuliano pois de maneira peculiar sua ironia consegue descrever com exatidatildeo sua intenccedilatildeo
e o que ele escreve a seguir acaba por orientar seu entendimento e interesse argumentativo Ele
diz ldquoDe que maneira Uma raccedila com cara de cachorro Ou uma que possui apenas um enorme
peacute Ou algum Antiacutepoda subterracircneordquo220
Obviamente Tertuliano natildeo tinha em mente elaborar uma refutaccedilatildeo que viesse a
discutir questotildees bioloacutegicas ou antropoloacutegicas referentes agraves pessoas que estavam sendo
atingidas por essa pecha de ordem etnorracial Seu estilo quase sarcaacutestico demonstra que na
verdade sua indignaccedilatildeo frente agraves agressotildees lanccediladas aos irmatildeos da feacute que eram protagonizadas
pelas perseguiccedilotildees oferecidas pelos descrentes e das quais ele era uma literal testemunha o
compeliam a reagir em sua defesa ldquoTenham cautela no entanto pois aqueles a quem vocecircs
chamam de terceira raccedila devem obter o primeiro lugar uma vez que natildeo haacute certamente naccedilatildeo
que natildeo seja cristatilderdquo221
Tertuliano ainda em sua fase Apologista222 procura nos apresentar uma descriccedilatildeo
pejorativa (ldquoterceira raccedilardquo) dos pagatildeos como absolutamente preconceituosa e totalmente
intolerante pois esta visa tatildeo somente implementar ldquoacusaccedilotildees contra os cristatildeosrdquo223 buscando
unicamente denigrir sua religiatildeo natildeo possuindo nenhuma ligaccedilatildeo especiacutefica com as relaccedilotildees
eacutetnicas eou nacionais destas pessoas Sobre este prisma o proacuteprio Tertuliano afirma ldquoMas eacute
no sentido de religiatildeo e natildeo de naccedilatildeo que somos tidos como a terceira raccedila Pela ordem os
romanos os judeus e por uacuteltimo os cristatildeosrdquo224 No decorrer do texto225 fica-nos ainda mais
evidente que esta tentativa de uma diferenciaccedilatildeo humana natildeo corresponde a dados bioloacutegicos e
antropoloacutegicos pois visa promover unicamente uma desqualificaccedilatildeo da crenccedila do grupo ao qual
ataca (cristatildeos) independentemente de suas origens eacutetnicas
219 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 1 grifo nosso
220 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 1
221 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 9
222 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
223 LEAL In Tertuliano Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1577
224 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 1 grifo nosso
225 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 9-11
56
Deste modo assimilando os variados dados relacionados nesta construccedilatildeo
fenomenoloacutegica vemos que independentemente do meio (eclesiaacutestico ou secular) e da
temporalidade (periacuteodo biacuteblico ou patriacutestico) o sentido uniforme do conceito de ser cristatildeo
estava incondicionalmente ldquovinculado a um grupo com relaccedilotildees sociais distintas dos
demaisrdquo226 Aqui a reflexatildeo de Santos nos auxilia de forma significativa especialmente visando
o desenvolvimento restante deste capiacutetulo
Relaccedilotildees sociais estas que privilegiam os aspectos espirituais e morais Neste sentido
os cristatildeos podem ser entendidos como um povo particular com uma promessa
profeacutetica especificamente direcionada a eles Povo este que como vimos
anteriormente possui seu conjunto de crenccedilas um estilo de vida proacuteprio seus
siacutembolos sua interpretaccedilatildeo de mundo Tudo isto se traduz pela expressatildeo ldquonova vida
e os nossos ensinamentosrdquo utilizada por Justino (JUSTINO I Apologia III 3)227
Ao finalizarmos este item salientamos nossa intenccedilatildeo na proposta de agregar a esta
pesquisa a ideia de que para o cristianismo inicial como tambeacutem para seu meio social ndash onde
Justino necessariamente se enquadra ndash havia um conceito de identidade definido do que era ser
cristatildeo Cabe-nos agora complementaacute-lo Para isto propomos uma descriccedilatildeo de seu perfil
oposto ateacute mesmo antagocircnico para o periacuteodo ou seja descrevendo aquilo (ou aqueles) que na
visatildeo dos cristatildeos natildeo eram cristatildeos
22 O MUNDO NAtildeO-CRISTAtildeO
Em nossa proposta de pesquisa se faz indispensaacutevel conhecermos a visatildeo do meio
cristatildeo (eclesioloacutegica) a respeito daqueles que eram ao seu entendimento ndash pelo menos de
maneira preliminar ndash antagocircnicos agrave sua realidade existencial Obviamente este trabalho busca
ancorar-se ao pensamento de seu autor central Assim sendo Justino passa a nos ceder as bases
desse processo de incompatibilidade de grupos228 onde podemos sem exageros a partir de
Justino arquitetar um cenaacuterio que nos mostra eficientemente que este conceito evidenciado no
Apologista eacute oriundo da mensagem Apostoacutelica (Paulo) e Patriacutestica (Aristides) anteriores a ele
as quais parecem terem sido bem recebidas e definidas quanto a essa importante questatildeo
226 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 143
227 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 144
grifo nosso
228 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997
57
etnograacutefica Percebemos isso com certa clareza quando ele diz que ldquoDeve-se saber que o
restante de todas as raccedilas humanas satildeo chamadas de naccedilotildees pelo Espiacuterito profeacutetico a casta dos
judeus e samaritanos poreacutem chama-se Israel e Casa de Jacoacuterdquo229
Nesta introduccedilatildeo ainda nos eacute possiacutevel descrever um conceito metafiacutesico a partir do
entendimento de Justino que era um filoacutesofo Utilizando-nos da objetivaccedilatildeo da identidade
(ethnos) cristatilde um modelo passa a se estabelecer nesta descriccedilatildeo e este modelo eacute que ldquotorna
uma entidade reconheciacutevelrdquo230 Assim este estado que passa a ser evidentemente concreto e
que estaacute constituiacutedo em uma forma de identificaccedilatildeo passa tambeacutem a possuir o seu oposto
definindo-se por meio de diversos exames tendo a partir disso haacute possibilidade de ser aceito
ou rejeitado por aquilo que lhe eacute diferente
Prosseguindo no desenvolvimento de nosso raciociacutenio comeccedilaremos a descrever
sinteticamente o ponto central a ser analisado nesta pesquisa Entendemos que a reflexatildeo que
recebemos a partir da oacutetica de Justino poder ser definida por meio de sua compreensatildeo do que
eacute a Verdade revelada para a humanidade Deste modo inicialmente nos cabe salientar que o
periacuteodo de tempo logo apoacutes o advento do cristianismo e sua consolidaccedilatildeo (informal para a
eacutepoca) como uma religiatildeo estabelecida em meio ao Impeacuterio Romano trouxe algumas
evidecircncias que caracterizavam e apontavam para a identificaccedilatildeo daqueles que eram seguidores
deste credo e ipso facto passava a distingui-los quase que de forma automaacutetica dos demais
seguidores de outras praacuteticas religiosas tais como o judaiacutesmo e os cultos politeiacutestas os quais
tambeacutem podem ser definidos no cenaacuterio imperial como ldquocultos estataisrdquo231 eou religiatildeo dos
povos gentios
Ainda neste espaccedilo nos eacute necessaacuterio salientar que a atribuiccedilatildeo religiosa como ponto
primaz na questatildeo orientativa dos que natildeo confessavam a feacute cristatilde eacute importante ou ateacute mesmo
necessaacuteria porque no referido periacuteodo natildeo se concebia a ideia de que as massas humanas ndash em
qualquer lugar independentemente de sua etnia ou nacionalidade ndash natildeo aderissem a uma forma
de crenccedila232 O pensamento de Santos qualifica esta ideia de contraste entre crenccedilas
Os cristatildeos precisavam ser diferentes dos judeus e dos demais povos para construiacuterem
uma identidade proacutepria ainda que algo dos dois fizesse parte de sua identidade E
mesmo esse algo teria uma leitura particular dentro do cristianismo Os siacutembolos
229 JUSTINO I Apologia LIII 4
230 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014 p 110
231 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 51
232 KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983
58
ainda que preservados natildeo teriam exatamente os mesmos significados Justino por
vezes ao apontar aquilo que os cristatildeos eram utiliza a comparaccedilatildeo Tal comparaccedilatildeo eacute
feita com base natildeo soacute naquilo que eacute semelhante nos grupos que ele considera natildeo-
cristatildeos mas principalmente nas suas diferenccedilas o que nos revela que no outro haacute
tanto pontos congruentes quanto incongruentes233
Desta forma a partir deste ponto falaremos a respeito dos dois respectivos grupos
humanos (em sentido eacutetnico e nacional) nos quais se estabeleciam a distinccedilatildeo e a divisatildeo
proposta por Justino em sua construccedilatildeo teoloacutegica
221 Os Judeus
Passando objetivamente a leitura da obra de Justino (I Apologia) constatamos com
razoaacutevel clareza a importacircncia dada pelo autor aquilo que corresponde diretamente ao povo
judeu este aspecto acaba por se tornar importantiacutessimo na elaboraccedilatildeo de nosso conceito pois
traz equiliacutebrio agrave orientaccedilatildeo que Justino propotildeem desenvolver como contrastante ao seu estado
de feacute e crenccedila Para Justino o povo eleito por Deus para receber as promessas diretrizes e
preceitos da Primeira Alianccedila acabou por se tornar uma espeacutecie de agente condutor e ateacute
mesmo catalisador de uma forma funcional do cumprimento das profecias descritas como
messiacircnicas234 Justino ao mencionar o Profeta Isaiacuteas e o Livro dos Salmos235 apresenta-nos esta
indicaccedilatildeo dizendo
Quando o Espiacuterito profeacutetico fala na pessoa de Cristo ele se expressa assim ldquoEu
estendi as minhas matildeos a um povo que natildeo crecirc e contradiz aos que andam por um
caminho que natildeo eacute bomrdquo E novamente ldquoEntreguei minhas costas aos accediloites e
minhas faces agraves bofetadas e natildeo afastei o meu rosto da vergonha das cuspidas E o
Senhor se tornou o meu auxiacutelio por isso eu natildeo fui confundido mas transformei o
meu rosto em rocha dura e soube que natildeo seria confundido pois estaacute perto aquele
que me justificardquo E o mesmo quando diz ldquoEles lanccedilaram sorte sobre as minhas
roupas e transpassaram as minhas matildeos e os meus peacutes mas eu adormeci e me
entreguei ao sono e ressuscitei porque o Senhor me protegeurdquo E outra vez quando
diz ldquoCochichavam com os seus laacutebios e balanccedilaram a cabeccedila dizendo Salve-se a si
mesmo Podeis comprovar que tudo isso cumpriu-se atraveacutes dos judeus em Cristordquo236
233 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 144
234 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
235 Acredita-se que os textos biacuteblicos usados por Justino segundo a versatildeo da Biacuteblia Grega (Septuaginta) satildeo Is
652 Is 506-8 Sl 2119 Sl 36 Sl 218-9 Ver FRANGIOTTI In Introduccedilatildeo I Apologia 1995 p 27
236 JUSTINO I Apologia XXXVIII 1-7
59
Nesta passagem da I Apologia onde jaacute nos deparamos com o exegeta Justino237 fica-
nos claro que na opiniatildeo deste os reconhecidos como natildeo-cristatildeos ndash particularmente tratando-
se do povo judeu e de sua religiatildeo ndash natildeo compreenderam o tempo de sua visitaccedilatildeo menos ainda
foram capazes de interpretar com eficiecircncia tudo aquilo que as profecias anunciavam a respeito
de seu Messias Esse processo ganha ainda mais ecircnfase quando o teor aplicado por Justino passa
a ser mediado atraveacutes do contexto entre os capiacutetulos XXXVI a XXXVIII onde o relato parece
sugerir um compecircndio baacutesico com ldquoregras de interpretaccedilatildeordquo238 do Apologista sobre as profecias
messiacircnicas Neste cenaacuterio eacute possiacutevel penetrar mais profundamente na realidade sugerida por
Justino os judeus natildeo obstante sua falta de discernimento tornaram-se por seu endurecimento
os proacuteprios algozes Daquele que veio libertaacute-los
Torna-se necessaacuterio dizer que a exegese aplicada por Justino natildeo se faz sem equiacutevocos
Alguns erros satildeo ateacute mesmo inocentes quando analisados agrave luz de elementos da ciecircncia biacuteblica
atual239 como por exemplo quando cita o texto do Salmo 2119 (segundo a Septuaginta) o
qual eacute amplamente interpretado pelos Evangelhos240 como uma accedilatildeo dos soldados romanos
junto ao relato da crucifixatildeo de Cristo e natildeo como um ato diretamente empregado pelo povo
judeu Entretanto Justino entende que os judeus natildeo apenas assumiram agrave culpa desse ato por
meio de seu embrutecimento mas principalmente por seu endurecimento o qual foi causado
originalmente por sua incredulidade (natildeo-assimilaccedilatildeo) para com a pessoa de Jesus Cristo na
opiniatildeo de Justino241 Deste modo parece natildeo permanecer nenhum constrangimento por parte
do Apologista em apontar aos judeus natildeo como meros colaboradores mas sim como os
grandes culpados pela morte de Cristo
Na verdade Davi rei e profeta que disse isso natildeo sofreu nada disso mas Jesus Cristo
estendeu as suas matildeos quando foi crucificado pelos judeus que o contradiziam e
falavam que ele natildeo era o Messias Com efeito como disse o profeta levaram-no
arrastando e fazendo-o sentar-se numa cadeira de juiz disseram-lhe ldquojulga-nosrdquo242
237 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948
238 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 26
239 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
240 Ver Mateus 2633-38 Marcos 1522-24 Lucas 2333-34 Joatildeo 1923-24
241 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
242 JUSTINO I Apologia XXXV 6
60
Mesmo jaacute tendo sido identificado por noacutes de forma preacutevia cabe-nos ainda citar de
maneira mais precisa as pertinentes consideraccedilotildees que Justino faz referente ao natildeo
reconhecimento da pessoa de Jesus Cristo como o Messias prometido ao povonaccedilatildeo de Israel
por parte dos judeus O Apologista escreve ldquoNatildeo entendendo isso os judeus que satildeo aqueles
que possuem os Livros dos profetas natildeo soacute natildeo reconheceram a Cristo jaacute vindo mas tambeacutem
odeiam a noacutes que dizemos que ele de fato veio e mostramos que como fora profetizado foi
por eles crucificadordquo243
Aleacutem dessa notificaccedilatildeo exortativa referente aquilo que poderiacuteamos definir como uma
leitura do cenaacuterio sociorreligioso judaico (que no presente momento e tambeacutem anteriormente a
ele interagiu conflituosamente com os cristatildeos) devemos tambeacutem reconhecer outro aspecto que
este ambiente social nos aponta por meio da ldquoobservaccedilatildeo de Justino segundo a qual Bar
Kochba244 ameaccedilou judeus messiacircnicos com pesados castigos caso natildeo negassem que Jesus eacute
o Cristordquo245 estabelecendo deste modo haacute opiniatildeo de que os cristatildeos realmente eram um povo
que sofria historicamente ldquohostilidade dos judeusrdquo246 principalmente porque os cristatildeos deram
o devido valor agrave revelaccedilatildeo de Deus247
Por uacuteltimo neste cenaacuterio de nossa anaacutelise concentrada na opiniatildeo de Justino frente ao
status sociorreligioso judaico devemos ainda olhar com bastante atenccedilatildeo para uma passagem
da Escritura Sagrada relacionada a Primeira Alianccedila que nos eacute apresentada enfaticamente por
Justino em sua obra apologeacutetica O texto do capiacutetulo 65 verso 2 do Livro do profeta Isaiacuteas eacute
citado por trecircs vezes na I Apologia248 caracterizando mediante este fato repetitivo uma
significativa elucubraccedilatildeo por parte de Justino a esta porccedilatildeo da Escritura Nosso autor se
distingui ao comentar o Texto Sagrado dizendo ldquoQuando o Espiacuterito profeacutetico fala na pessoa de
Cristo ele se expressa assim lsquoEu estendi as minhas matildeos a um povo que natildeo crecirc e contradiz
aos que andam por um caminho que natildeo eacute bomrsquordquo249
Partamos de um ponto conceitual Na esfera racional de Justino o caso das ldquomatildeos
estarem estendidas a um povo increacutedulo e contestadorrdquo era um fato indubitaacutevel apresentado
atraveacutes de um ar enfaacutetico que apontava agrave suposta culpa que os judeus teriam na rejeiccedilatildeo do
243 JUSTINO I Apologia XXXVI 3
244 JUSTINO I Apologia XXXI 6
245 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004 p 266
246 MONDONI Histoacuteria da Igreja na Antiguidade 2001 p 32
247 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
248 JUSTINO I Apologia XXXV 3 XXXVIII 1 XVIX 3
249 JUSTINO I Apologia XXXVIII 1
61
verdadeiro Ungido de Deus solidificando deste modo de maneira inevitaacutevel sua compreensatildeo
de que os judeus ao natildeo reconhecerem o Messias ldquoperderam o direito hereditaacuterio a promessa
que passou para os cristatildeosrdquo250 Este conceito251 acaba por ficar ainda mais saliente em sua
obra Diaacutelogo com Trifatildeo252 detalhe que natildeo apontaremos aqui devido a nossa opccedilatildeo de
delimitaccedilatildeo textual
Por fim necessitamos condicionar nossa pesquisa a um resultado Entatildeo ratificamos
que em nosso entendimento fica claro que na transmissatildeo da ideia de Justino os judeus foram
rejeitados como naccedilatildeopovoldquoraccedilardquo por sua incredulidade mesmo que estes tenham sido
anteriormente escolhidos como os herdeiros das promessas de Deus De fato Justino afirma
ldquoEntatildeo eles se arrependeratildeo quando de nada mais lhes valeraacuterdquo253 Logo para Justino os judeus
natildeo eram mais a ldquoraccedilardquo eleita porque natildeo eram cristatildeos
Passamos agora ao outro grupo compreendido como natildeo-cristatildeo pelo conceito
etnograacutefico dos seguidores do cristianismo na eacutepoca de Justino os Gentios
222 Os Gentios
De imediato devemos propor um referencial orientativo visando essa construccedilatildeo e
uma afirmaccedilatildeo parece definir de maneira satisfatoacuteria esta questatildeo Igualmente agrave anaacutelise anterior
(para com os judeus) partimos de referenciais de caraacuteter sociorreligioso baseados em nosso
autor central poreacutem com a diferenciaccedilatildeo de que agora falamos de um campo muito mais
abrangente a ser examinado pois os ldquogentiosrdquo254 (segundo o Apoacutestolo Paulo) ldquoos caldeus os
gregos e os egiacutepciosrdquo255 (segundo Aristides) e ldquoos romanosrdquo256 (segundo Tertuliano) formam
esse novo e amplo grupo que tambeacutem se caracteriza religiosamente em contraste tanto com
cristatildeos quanto com os judeus que haviam rejeitado o seu Messias
Todo esse enorme contingente religioso se distinguia por sua diversidade Nesta
multiplicidade surgia uma variedade imensa de divindades uma para cada gosto eou prazer
250 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 76
251 Segundo Insuelas as duas primeiras Apologias satildeo escritas ldquocontrardquo os pagatildeos jaacute o Diaacutelogo com Trifatildeo eacute
escrito ldquocontrardquo os judeus Neles Justino pretende provar que Jesus Cristo eacute o Messias e que a sua religiatildeo eacute a
verdadeira Ver INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 54
252 Ver JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo CVIII 1-3
253 JUSTINO I Apologia LII 9
254 Ver 1 Coriacutentios 1032
255 ARISTIDES Apologia II XIV e XV
256 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 1
62
com as quais estes devotos procuravam cobrir suas necessidades e as exigecircncias de culto em
seus dias257 Esta praacutetica reconhecida como politeiacutesmo envolve a coletividade humana desde
seus primoacuterdios258 No entanto para Justino quem seriam as pessoas que adoravam essa
imensidatildeo de outros deuses
Inicialmente afirmamos que os participantesocupantes desse distinto grupo
indiscutivelmente se diferenciavam dos judeus natildeo apenas por sua religiatildeo mas tambeacutem por
questotildees que podem (e devem) ser descritas como eacutetnicas No caso anterior o judaiacutesmo (ou
podemos chamar de religiatildeo judaica) natildeo se desvinculava (nem atualmente se desvincula) da
etnia de origem semita (judeus) que ocupava massivamente a regiatildeo do moderno estado de
Israel Ateacute os dias de hoje os judeus ndash tambeacutem chamados de ldquoisraelitasrdquo (genericamente) ndash satildeo
definidos regularmente como ldquofieacuteisrdquo da religiatildeo judaica259 Em nosso caso de destaque os
agentes religiosos que formavam as fileiras das religiotildees politeiacutestas eram seres humanos
oriundos das mais variadas sociedades da eacutepoca de diversas culturas mas que assumiam o
chamado culto de origem mitoloacutegica difundido amplamente na cultura de origem greco-
romana260 na qual Justino tambeacutem havia vivido e sido criado261 e que havia se tornado em um
elemento poliacutetico que ldquoos romanos chamavam de pax deorumrdquo262
Estes adoradores de outros e variados deuses usualmente possuem outra designaccedilatildeo
tanto para Justino quanto no relato biacuteblico satildeo os gentios ndash termo geneacuterico que adotaremos a
partir de agora neste item para a identificaccedilatildeo desse grupo devido a sua abrangecircncia e
complexidade A pesquisa de Santos nos auxilia consideravelmente nesta definiccedilatildeo
O termo utilizado na Biacuteblia hebraica para gentio eacute gocircy (גוי) e tanto no texto grego do
Antigo Testamento (Septuaginta) quanto no Novo Testamento temos os termos
ethnos (εθνος) ou hellen (ελλην) Satildeo geralmente traduzidos como naccedilatildeo raccedila
gentes gentios Se estiver no singular podem se referir aos judeus (HARRIS 1998 p
251-252 DOUGLAS 1995 p 662 VINE 2002 p 673) De forma geral quando no
plural eles se referem aos outros povos que natildeo os judeus e no caso mais
especificamente cristatildeo denotam natildeo soacute os natildeo-judeus mas podem se referir agravequeles
gentios que se converteram ao cristianismo ldquoOs quais pela minha vida expuseram as
257 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010
258 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
259 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014
260 SCOTT As Catacumbas de Roma 1996
261 PIERINI A Idade Antiga Curso de histoacuteria da igreja ndash I 1998
262 CORNELL MATTHEWS A Civilizaccedilatildeo Romana 2008 p 94
63
suas cabeccedilas o que natildeo soacute eu lhes agradeccedilo mas tambeacutem todas as igrejas dos gentiosrdquo
(Romanos 164)263
Justino natildeo apenas se utiliza dessa terminologia com desenvoltura mas tambeacutem se
serve de outros termos que designam este grupo de existecircncia gentiacutelica Encontramos citaccedilotildees
como ldquogente de todas as naccedilotildeesrdquo264 ldquogente de todas as raccedilasrdquo265 ldquohomens das naccedilotildeesrdquo266 ou
ldquoos povos das naccedilotildeesrdquo267 Ao analisarmos o contexto textual destas citaccedilotildees de Justino fica
evidente que o Apologista ao descrever estes trechos estaacute incondicionalmente se referindo ao
cumprimento das promessas messiacircnicas aos gentios Desta forma acaba por caracterizar (os
gentios) como os natildeo-judeus que estavam sem Cristo mas que iriam recebecirc-lo pela
proclamaccedilatildeo da mensagem evangeacutelica Drobner sugere que possivelmente Justino acreditava
que uma vez que os democircnios foram silenciados pela proclamaccedilatildeo da Verdade por meio da
mensagem da cruz ldquoos homens agora em todo o mundo se tornariam tementes a Deusrdquo268
Encontramos na I Apologia uma tendecircncia ndash pelo menos de maneira impliacutecita ndash de
apontar em menor nuacutemero elementos negativos eou pejorativos dos gentios e de suas praacuteticas
religiosas politeiacutestas Isso obviamente se comparados com agravequeles apresentados
volumosamente como prejuiacutezos trazidos eou deixados pelos judeus naquilo que se tratava da
revelaccedilatildeo de Deus em Jesus Cristo Tratando-se especificamente dessa questatildeo sociorreligiosa
que envolvia a religiatildeo judaica cabe-nos ressaltar com veemecircncia que em nossas afirmaccedilotildees
natildeo se estaacute buscando implicar de nenhuma maneira ou forma a Justino uma postura
antissemita269 pois sua polecircmica com os judeus ldquonada tem a ver com antissemitismo porque
natildeo se trata da raccedila mas da feacuterdquo270 Deste modo orientando-nos atraveacutes de dados da anaacutelise
historiograacutefica acreditamos que este fenocircmeno se baseou na tentativa de indicar com clareza
atribuiccedilotildees da histoacuteria da revelaccedilatildeo no fato de se contextualizar o relato salviacutefico de Deus para
263 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 147
264 JUSTINO I Apologia XXXII 3
265 JUSTINO I Apologia XXXII 4
266 JUSTINO I Apologia XXXI 7
267 JUSTINO I Apologia XLIX 1
268 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 84
269 Antissemita (anmiddottismiddotsemiddotmimiddotta) anti- + semita Adjetivo de dois gecircneros e substantivo de dois gecircneros Significa
Que ou quem se opotildee aos semitas e particularmente aos judeus Ver Dicionaacuterio Priberam da Liacutengua Portuguesa
Disponiacutevel em lthttpsdicionariopriberamorgantissemitagt Acesso em 17 de jan de 2019
270 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 76
64
a humanidade pois o ldquoproacuteprio texto nos fornece um contexto Mas tambeacutem pelos enunciados
que evidenciam sua forccedila ilocucionaacuteriardquo271
Poreacutem entendemos ainda ser oportuno citar a Justino de forma direta mais uma vez
em nossa elaboraccedilatildeo sobre o conceito de definiccedilatildeo daqueles que natildeo satildeo cristatildeos para ele
Indiscutivelmente os gentios gozavam de uma pequena parcela de toleracircncia por parte de
Justino especialmente diante do testemunho das conversotildees ocorridas junto o mundo greco-
romano das quais ele mesmo era fruto Aleacutem disso em nossa construccedilatildeo conceitual outra vez
fica notoacuterio que nosso autor natildeo procura mascarar em nenhum momento sua dificuldade para
com a religiatildeo judaica272 O texto de Justino transparece isso com muita clareza
Ao contraacuterio (dos judeus) os gentios que nunca tinham ouvido falar dele ateacute que os
apoacutestolos tendo saiacutedo de Jerusaleacutem lhes contaram sua vida e lhes entregaram as
profecias cheios de alegria e de feacute renunciaram aos iacutedolos e se consagraram ao Deus
ingecircnito por meio de Cristo273
Contudo torna-se claro tambeacutem que na concepccedilatildeo de Justino o alcance dessa
conformidade do plano salviacutefico de Deus atraveacutes de Jesus Cristo para com os gentios seria
segundo o posicionamento de feacute desse grupo pois o teor e a objetividade para o
desenvolvimento da I Apologia provam o contraacuterio pois esta obra acabou sendo redigida
condicionalmente na tentativa de aplacar os acircnimos daqueles que perseguiam os cristatildeos de
forma injustificaacutevel sendo evidente no relato de ambas as Apologias de Justino que os
perseguidores eram majoritariamente formados de natildeo-cristatildeos de origem gentiacutelica Essa
evidecircncia conseguimos resgatar no proacuteprio relato do Apologista quando este comenta a
respeito da idolatria dos gentios enfatizando seu politeiacutesmo Nessa passagem sua penna eacute
categoacuterica e imperativa
E aquilo mesmo que voacutes praticais e honrais publicamente voacutes o atribuiacutes a noacutes como
se tiveacutessemos decaiacutedo e a luz divina natildeo nos assistisse Todavia como estamos livres
por natildeo praticar nada disso vossas caluacutenias natildeo nos causam nenhum dano ao
271 SANTOS amp GONCcedilALVES A Aplicaccedilatildeo do ldquoContextualismo Linguiacutesticordquo e a busca da compreensatildeo da I
Apologia de Justino Maacutertir 2011 p 3
272 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
273 JUSTINO I Apologia XLIX 5 grifo nosso
65
contraacuterio danificam aqueles que cometem essas torpezas e ainda levantam falso
testemunho contra noacutes274
Finalizamos assim este item que visou especificar aquilo que se encontra aplicado na
explanaccedilatildeo do Apologista sobre o natildeo ser um cristatildeo Buscamos nesta explanaccedilatildeo uma espeacutecie
de caraacuteter identificativo aleacutem de termos procurado sinalizar para o oposto de cada caso
examinado distinguindo deste modo os grupos religiosos analisados atraveacutes de criteacuterios que
os contrastavam entre si e para com o objeto principal (cristianismo) pois notificamos que para
Justino como tambeacutem para a Igreja em sua eacutepoca judeus e gentios natildeo eram homens de outra
espeacutecie (em sentido bioloacutegico) mas natildeo sendo cristatildeos pertenciam necessariamente a outro
mundo um mundo natildeo-cristatildeo
A seguir trataremos de assuntos mais pontuais os quais podemos denominar de
ldquofactiacuteveisrdquo segundo a leitura de Justino para com a realidade que o cercava Esse conjunto de
fatos era polemizado de maneira constante (por meio de uma tentativa aguda de se diferenciar
proposiccedilotildees) pois possuiacutea uma importacircncia fundamental na definiccedilatildeo exigida para se
estabelecer a oposiccedilatildeo dos ldquomundosrdquo que apontamos
23 PRAXIS FIDEI ADVERSUS INIQUITATEM
E para que se torne evidente para voacutes vamos apresentar-vos a prova de que aquilo
que dizemos por tecirc-lo aprendido de Cristo e dos profetas que os precederam eacute a uacutenica
verdade e a mais antiga do que todos os escritores que existiram Natildeo pedimos que se
aceite a nossa doutrina por coincidir com eles mas porque dizemos a verdade275
A partir deste item apresentamos uma anaacutelise de meios e de casos os quais
entendemos serem absolutamente necessaacuterios para uma resposta realmente qualificada visando
uma conclusatildeo satisfatoacuteria desta pesquisa Neste processo que inicialmente abarcou de maneira
histoacuterica a estruturaccedilatildeo e funcionalidade de um ambiente confessional acabou por se
caracterizar cada vez mais atraveacutes de um distinto cenaacuterio sociorreligioso em seu tempo Nessa
verificaccedilatildeo de costumes do comportamento humano na esfera religiosa percebemos com certa
facilidade o profundo impacto ndash especialmente no acircmbito da eacuteticamoral ndash que o cristianismo
proporcionou ao apresentar-se ldquocomo a revoluccedilatildeo mais radical que a humanidade jaacute tinha
274 JUSTINO I Apologia XXVII 5
275 JUSTINO I Apologia XXIII 1 grifo nosso
66
realizadordquo276 Desta forma organizamos uma detalhada abordagem dessa conjuntura de caraacuteter
social na esfera religiosa a qual vamos descrever a seguir procurando direcionar de maneira
objetiva nossos apontamentos para dentro da soluccedilatildeo de nosso problema jaacute anteriormente
especificado e deste modo comeccedilarmos a indicar uma resposta plausiacutevel para o conceito do
que seria a Verdade redigida e sustentada por Justino
Importante para nossa sequecircncia de trabalho eacute procurarmos estabilizar desde cedo a
compreensatildeo de que esta elaboraccedilatildeo de caraacuteter eacutetico-moral natildeo visa ser pormenorizada tatildeo
pouco exaustiva pois acreditamos que isto nem mesmo seria possiacutevel diante da abrangecircncia a
qual o termo Verdade poderia alcanccedilar em um exame epistemoloacutegico mais aprofundado
Particularmente tratando-se de nosso caso em especial um agravante ainda se coloca isso
devido nossa palavra-chave nem mesmo ser aplicada como um simples substantivo por parte
do autor pois recebe por parte de Justino uma abrangecircncia axiomaacutetica muito singular somente
compreendida em seu contexto mais amplo (realidade sociorreligiosa)
Entretanto partimos da necessidade de nos orientarmos por meio de definiccedilotildees
provenientes das afirmaccedilotildees do proacuteprio Justino Diante da realidade sociorreligiosa ndash tambeacutem
pode-se classificaacute-la como cultural dependendo dos criteacuterios propostos ndash que cercava e
envolvia o Apologista (no periacuteodo de redaccedilatildeo da I Apologia) estava necessariamente instituiacuteda
uma forma de cerceamento agraves suas convicccedilotildees religiosas Sem restriccedilotildees podemos nos utilizar
de uma espeacutecie de pleonasmo ao dizermos que Justino ndash ldquose justificardquo ndash constantemente por
meio de um paralelo dialeacutetico que de maneira exata acaba por condicionar-se como loacutegico
pois o Apologista busca apresentar uma ldquoperfeita lealdade dos seus processosrdquo277 racionais em
toda a sua narrativa As contribuiccedilotildees oriundas da predominante linha filosoacutefica a qual Justino
aderiu em sua jornada na busca pela Verdade manifestam-se de forma niacutetida em sua construccedilatildeo
apofacircntica Esse meacutetodo se clarifica na abordagem de Chauiacute
A dialeacutetica platocircnica eacute um procedimento intelectual e linguiacutestico que parte de alguma
coisa que deve ser separada ou dividida em dois ou duas partes contraacuterias ou opostas
de modo que se conheccedila sua contradiccedilatildeo e se possa determinar qual dos contraacuterios eacute
verdadeiro e qual eacute falso278
276 MONDONI Histoacuteria da Igreja na Antiguidade 2001 p 44
277 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 56
278 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995 p 181
67
Deste modo Justino explanou suas conclusotildees de maneira categoacuterica por meio da
aplicaccedilatildeo de um meacutetodo que visava eliminar contradiccedilotildees essenciais daquilo que estava sendo
examinado279 Aparentemente o Apologista acreditava que algo de caraacuteter indivisiacutevel no
sentido de ser inquestionaacutevel poderia ser alcanccedilado mediante suas confrontaccedilotildees mesmo que
Justino afirmasse ser imprescindiacutevel ter que haver feacute em Jesus Cristo para tais fins elemento
(feacute) que era reconhecidamente ausente em seus opositores algo que no final parece desiquilibrar
a loacutegica da teoria de Justino Neste espaccedilo ainda nos eacute necessaacuterio dizer que nosso autor se
baseava fortemente em indicaccedilotildees de cunho comparativo e histoacuterico (a niacutevel de suas convicccedilotildees
religiosas) para defender suas comparaccedilotildees280 Neste item jaacute detectamos fortemente o ser
ldquofiloacutesofordquo em Justino realidade que abordaremos mais detalhadamente no proacuteximo capiacutetulo
Essa base filosoacutefica que acabamos de citar iraacute orientar o ministeacuterio de Justino no
decorrer de sua construccedilatildeo teoloacutegica e quanto a essa filosofia devemos sem constrangimento
atrelaacute-la agravequilo que acabou por se tornar o estilo literaacuterio preponderante em seus trabalhos
Estes se caracterizaram pela presenccedila de um forte teor (dispositivo) apologeacutetico possibilitando-
nos a partir da anaacutelise historiograacutefica281 afirmar que uma vez que os filoacutesofos (do periacuteodo de
Justino) receberam a feacute em Cristo estes podem defender a Verdade pois passam a possuir a
ldquoconsciecircncia da razatildeo filosoacutefica que nela estaacute contidardquo282
Desta forma seguindo uma postura assumidamente analiacutetica Justino passa a arquitetar
seu plano argumentativo utilizando-se de uma clara confrontaccedilatildeo de fatos em vista de alcanccedilar
o resultado desejado Mesmo sem ser um empirista ndash sistema filosoacutefico totalmente distante
cronologicamente de Justino ndash eacute impossiacutevel natildeo se detectar um apego por parte do Apologista
para com um meacutetodo de exame que venha a conferir com afinco a experiecircncia do uso dos
sentidos humanos como o meio para agrave origem e geraccedilatildeo do conhecimento Com isso mais um
detalhe pertinente segundo a nossa compreensatildeo vem a surgir nesta anaacutelise pois conseguimos
detectar com certa facilidade que Justino vincula os fatos registrados de sua feacute na rotina humana
presente efetivamente em seu contexto o que vem a somar para a caracterizaccedilatildeo de uma postura
que na praacutetica eacute empirista283
279 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
280 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
281 Ver SIMONETTI In Apologeacutetica Literatura Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 185-186
282 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
283 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
68
231 Um Princiacutepio Teologal
Seguindo o que acabamos de apontar apresentaremos uma posiccedilatildeo de ordem factiacutevel
da parte de Justino passando a citar elementos que em nosso entendimento estabelecem as
provas desenvolvidas pelo Apologista em seu relato de defesa dos cristatildeos Retrataremos dois
contextos em que Justino apresenta sua iniciativa de modo contundente na busca de seus
objetivos O primeiro cenaacuterio se desenvolve apoacutes o autor terminar uma ilustre analogia entre
ldquodoutrinas estoicas e cristatildesrdquo284
A primeira prova eacute que quando dizemos tais coisas aos gregos somos os uacutenicos a
serem odiados pelo nome de Cristo e nos tiram a vida sem termos cometido crime
algum como se focircssemos pecadores E tendes alguns aqui e outros ali que cultuam
aacutervores rios ratos gatos crocodilos e uma multidatildeo de animais irracionais O
interessante eacute que nem todos cultuam os mesmos mas uns satildeo honrados num lugar
outros em outro de modo que todos satildeo iacutempios entre si por natildeo ter a mesma religiatildeo
Esta eacute a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo veneramos os mesmos deuses que
voacutes e natildeo oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo colocamos coroas nos
sepulcros nem celebramos sacrifiacutecios sobre eles No entanto sabeis perfeitamente
que os mesmos animais por alguns satildeo considerados deuses por outros feras e por
outras viacutetimas para sacrifiacutecios285
A partir desta descriccedilatildeo passamos definitivamente a exposiccedilatildeo dos fatos que satildeo
contrastantes entre a praacutetica da feacute cristatilde e a ordem dos acontecimentos estabelecida nas
ocorrecircncias do meio secular ao redor da Igreja de Cristo isto porque o centro da coletividade
cristatilde (Assembleia Santa) era o que melhor distinguia exteriormente essa separaccedilatildeo
existencial286 A ecircnfase de Justino aplicada agrave realidade sociorreligiosa de seu tempo nos impotildee
a necessidade de uma adaptaccedilatildeo por meio de um delineamento de ordem temaacutetica isso devido
agrave diversidade de assuntos aos quais poderiacuteamos enfocar nesse exame pois a ldquoformalidade da
religiatildeo (pagatilde) manifestava-se de maneira diversardquo287 nos variados ciacuterculos sociais do mundo
greco-romano
O texto de Justino que estaacute depositado em uma genuiacutena literatura de estilo apologeacutetico
acaba ateacute mesmo por ganhar ares enfaticamente polemistas mesmo que esta definiccedilatildeo literaacuteria
do meio Patriacutestico seraacute apenas regulada sobre um escritor apologista a partir da figura de
284 FRANGIOTTI In Introduccedilatildeo I Apologia 1995 p 8
285 JUSTINO I Apologia XXIV 1-3
286 KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983
287 FUNARI Roma vida puacuteblica e vida privada 1993 p 20 grifo nosso
69
Tertuliano288 Isso porque a objetividade empregada por Justino natildeo visava unicamente
solicitar toleracircncia em relaccedilatildeo agrave feacute cristatilde mas tambeacutem evidenciar de forma categoacuterica direta e
especiacutefica uma superioridade do culto cristatildeo sobre as religiotildees pagatildes289
Deste modo de forma essencial entendemos que para uma melhor compreensatildeo do
contexto sugerido se faz necessaacuterio fracionaacute-lo Poreacutem devido agraves vaacuterias possibilidades de
argumentaccedilatildeo que a porccedilatildeo apresentada nos oferece decidimos concentrar nosso exame em
trecircs toacutepicos orientativos atraveacutes dos quais acreditamos ser possiacutevel desenvolver o escopo que
desejamos estes se condicionam a falta de valores absolutos a praacutetica da idolatria (na
concepccedilatildeo cristatilde) e as variaccedilotildees dos atos cuacutelticos que envolviam tal praacutetica mesmo que ambos
os casos apontados venham a se mesclar no seguimento de nosso relato textual devido sua
estreita relaccedilatildeo ldquosimbioacuteticardquo Os trecircs pontos nos conduzem de forma natural a uma reflexatildeo
historiograacutefica em torno do periacuteodo dos Seacuteculos I e II dC visando deste modo uma maior
clarificaccedilatildeo dos fatos que procuramos distinguir
2311 Praacutetica da Feacute Contra o Politeiacutesmo Relativista
Iniciamos a nossa estruturaccedilatildeo apresentando um registro que descreve esse cenaacuterio
cuacuteltico pagatildeo o qual estaacute disponibilizado no texto da Escritura Sagrada Aproximadamente
100 anos antes290 desse registro de Justino o Apoacutestolo Paulo jaacute censurava enfaticamente a
mesma praacutetica religiosa que natildeo estranhamente estava vigorando na cultura social ateacute os dias
de Justino Quando o Apologista acusa seus oponentes de adorarem uma variedade
(pluralidade) de seres criados (ou a natureza) abre-se um paralelismo com o texto biacuteblico que
diz ldquoInculcando-se por saacutebios tornaram-se loucos e mudaram a gloacuteria do Deus incorruptiacutevel
em semelhanccedila da imagem de homem corruptiacutevel bem como de aves quadruacutepedes e repteisrdquo
(Romanos 122-23)
Justino argumenta sobre este cenaacuterio afirmando que o status de honra a estas diversas
ldquodivindadesrdquo passava por variaccedilotildees ndash ou ateacute mesmo vacilaccedilotildees ndash natildeo possuindo nenhum teor
de algo que poderiacuteamos afirmar como ldquoabsolutordquo Justino fortemente tambeacutem salienta que o
simples fator geograacutefico eacute capaz de destituir este aspecto de adoraccedilatildeo realidades
(contingenciais) que acabam por confrontar-se com o credo cristatildeo que jaacute possui seu conceito
bem estabilizado nos dias Justino Nisto nos auxilia o texto da Didaqueacute (possivelmente
288 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
289 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
290 GREATHOUSE In A Epiacutestola aos Romanos Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006
70
redigido no final do Seacuteculo I291) o qual confessa que ldquoTu Senhor Todo-poderoso criaste todas
as coisas por causa do teu Nomerdquo292 solidificando desde muito cedo o princiacutepio que mais
tarde293 seria absolutamente consolidado no Credo Apostoacutelico que iraacute reproduzir conteuacutedo
idecircntico ao afirmar ldquoCreio em Deus Pai todo-poderoso Criador do ceacuteu e da terrardquo294
Deste modo a nova feacute em curso concebia desde seus primoacuterdios um uacutenico ser todo-
poderoso que natildeo pode nem mesmo estaacute sensiacutevel a sofrer as variantes temporais descritas por
Justino Aleacutem disso o Apologista nos apresenta uma variaccedilatildeo de grau que poderiacuteamos definir
como ldquocaoacuteticardquo para uma postura humana em sua relaccedilatildeo com estes ldquoobjetosrdquo de culto pois
cita como premissa que o mesmo ldquoobjetordquo tem determinada condiccedilatildeo de qualidade superior
para alguns mas torna-se trivial e comum para outros295 algo impossiacutevel de ser adaptado ao
elemento divino do culto cristatildeo
2312 Praacutetica da Feacute Contra a Idolatria
O outro ponto que desejamos destacar se aplica sobre a afirmaccedilatildeo de Justino ao dizer
ldquoEsta eacute a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo veneramos os mesmos deuses que voacutesrdquo296
A enfaacutetica argumentaccedilatildeo de Justino salienta a natildeo participaccedilatildeo dos cristatildeos nas atividades
religiosas dos ciacuterculos sociais aos quais pertenciam Estas atividades que eram implementadas
pelo mito popular297 e pelas classes poliacuteticas controladoras298 acabavam por definir-se como
os ritos religiosos ldquooficiaisrdquo ndash aceitos permitidos e em alguns casos tolerados pelas
autoridades ndash no Impeacuterio Romano299 O culto aos diversos deuses e ao imperador romano
caracterizam bem esta diversidade mitoloacutegica300 Assim passamos para um fato literaacuterio que
em nosso entendimento fomenta bem essa ideia estruturada na realidade humana que
desejamos retratar O escrito a seguir de autoria de Pliacutenio o Velho produzido possivelmente
291 STORNIOLO BALANCIN In Introduccedilatildeo DIDAQUEacute O catecismo dos primeiros cristatildeos para as
comunidades de hoje 2010 p 3
292 DIDAQUEacute X 3
293 SCHAFF The creeds of Christendom with a history and critical notes 1966
294 CREDO APOSTOacuteLICO 1ordm artigo (da criaccedilatildeo)
295 Ver GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 89-90
296 JUSTINO I Apologia XXIV 2
297 Ver KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983 p 91-97
298 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
299 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988
300 FUNARI Roma vida puacuteblica e vida privada 1993
71
em torno do ano 77 da era cristatilde301 nos expotildee por meio de um registro de tipo naturalista a
seguinte observaccedilatildeo quanto algumas praacuteticas ritualiacutesticas comuns ao cenaacuterio sociorreligioso de
entatildeo Pliacutenio assim escreve
Sacrificar animais sem oraccedilotildees natildeo funciona aparentemente nem produz a correta
relaccedilatildeo ritual com os deuses As foacutermulas variam uma para conseguir um bom
agouro uma segunda para evitar o mau agouro e uma terceira para cultuar as
divindades [] Ao usarmos as preces costumeiras nesse ritual admitimos a eficaacutecia
dessas foacutermulas comprovadas pela experiecircncia de 830 anos302
Cabe-nos dizer que Pliacutenio estava simplesmente retratando de maneira descritiva os
processos de ordem religiosa no meio social que estava inserido poreacutem o contexto claramente
nos sugere que Pliacutenio tambeacutem buscava salientar a ldquoimportacircncia do respeito agraves formalidades na
religiatildeo do Estadordquo303 Natildeo podemos esquecer que Pliacutenio como oficial e administrador romano
esteve inserido em diversas regiotildees do Impeacuterio304 o que nos possibilita afirmar que o registro
estaacute baseado em um amplo e avultado conteuacutedo experiencial e que portanto seu relato estaacute
condicionado a ser classificado como um ldquocaso geneacutericordquo de praacuteticas cuacutelticas das regiotildees
influenciadas pela cultura greco-romana
2313 Praacutetica da Feacute Contra o Ateiacutesmo
Uma praacutetica que era corrente nos tempos de Justino e jaacute antes dele era o de definir os
cristatildeos ldquocomo culpados do crime de ateiacutesmordquo305 A natildeo-aderecircncia dos cristatildeos a essas praacuteticas
religiosas pagatildes eram vistas e entendidas por alguns (elite social)306 como atos de
irracionalidade mas principalmente eram interpretadas pelos pagatildeos (de forma geral) como
301 BEARD SPQR uma histoacuteria da Roma Antiga 2017
302 PLIacuteNIO Histoacuteria Natural XXVIII 10-12 No original Sacrificar animales sin oraciones no funciona
aparentemente ni produce la correcta relacioacuten ritual con los dioses Las foacutermulas variacutean una para conseguir un
buen aguumlero una segunda para evitar el mal aguumlero y una tercera para cultuar a las divinidades [] Al usar las
oraciones acostumbradas en ese ritual admitimos la eficacia de esas foacutermulas comprobadas por la experiencia de
830 antildeos
303 FUNARI Roma vida puacuteblica e vida privada 1993 p 17 grifo nosso
304 BEARD SPQR uma histoacuteria da Roma Antiga 2017
305 IRVIN SUNQUIST Histoacuteria do Movimento Cristatildeo Mundial Volume I Do cristianismo primitivo a 1453
2004 p 100
306 IRVIN SUNQUIST Histoacuteria do Movimento Cristatildeo Mundial Volume I Do cristianismo primitivo a 1453
2004
72
accedilotildees que manifestavam uma evidente incredulidade307 ndash ou seja uma atitude de profundo
desrespeito ndash por parte dos cristatildeos agravequilo que era considerado como divino De ordem jaacute muito
habitual eram as acusaccedilotildees deste tipo junto agrave cultura greco-romana pois jaacute na antiguidade
algumas figuras de destaque como Soacutecrates foram alvos desse tipo de defraudaccedilatildeo
considerado de ordem moral para o periacuteodo
Voltemos ao caso de Soacutecrates pois este foi julgado aproximadamente 550 anos
antes308 de Justino escrever sua I Apologia vindo a receber por parte da parte de seus algozes
acusaccedilotildees de mesma ordem as quais os cristatildeos agora similarmente sofriam tal como Soacutecrates
que ldquodescobriu o embuste dos democircnios e os convidou (demais seres humanos) a procurar o
verdadeiro Deus por isso ele teve de morrer como maacutertirrdquo309 Justino cita-nos o fato dizendo
Quando Soacutecrates com raciociacutenio verdadeiro e investigando as coisas tentou
esclarecer tudo isso e afastar os homens dos democircnios estes conseguiram por meio
de homens que se comprazem na maldade que ele tambeacutem fosse executado como
ateu e iacutempio alegando que ele estava introduzindo novos democircnios Tentam fazer o
mesmo contra noacutes310
Entendemos que ainda se faz importante somar a estrutura dessa pesquisa o relato
redigido por Platatildeo referente ao processo de defesa e julgamento de seu mestre Nesse registro
apologeacutetico encontramos o diaacutelogo entre Soacutecrates e Ecircutrifron311 que comprova o fato juriacutedico
ocorrido na Greacutecia Antiga do qual citamos atraveacutes de Justino
Ecircutrifron ndash O que eu gostaria Soacutecrates mas receio que aconteccedila o contraacuterio Pois me
parece que ele simplesmente comeccedila por prejudicar a cidade pela lareira312 ao
tencionar fazer mal a vocecirc Mas me diga ele diz que vocecirc corrompe os jovens fazendo
o quecirc
307 Ver GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 84-86
308 Ver MALTA In Introduccedilatildeo Apologia de Soacutecrates 2008 p 11
309 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 85 grifo nosso
310 JUSTINO I Apologia V 3 grifo nosso
311 Natildeo temos outras informaccedilotildees sobre Ecircutifron ndash um adivinho prognosticador conforme subtiacutetulo da obra ndash
aleacutem das que encontramos em Platatildeo Mas seu nome tinha um significado claro para os gregos ldquoo de espiacuterito
direto ou ortodoxordquo Ver MALTA In Notas Apologia de Soacutecrates 2008 p 25
312 A lareira (ou Heacutestia) representava enquanto fogo sagrado da cidade e de cada casa o princiacutepio da estabilidade
Com essa fala Ecircutifron deixa clara sua admiraccedilatildeo por Soacutecrates Ver MALTA In Notas Apologia de Soacutecrates
2008 p 27
73
Soacutecrates ndash Coisas estranhas admiraacutevel homem para se ouvir assim Pois diz que sou
fazedor de deuses e que por isso mesmo ndash por fazer novos deuses e natildeo crer nos
antigos ndash me denunciou conforme diz313
Ainda referente ao assunto ndash cristatildeos definidos como ateus e iacutempios pelos pagatildeos ndash
vale-nos destacar o ponto de vista de um historiador Santos contribui muito em nosso exame
que visa apontar fatos contrastante por meio de fenocircmenos de intoleracircncia religiosa ocorridos
no passado Santos afirma que as acusaccedilotildees de ateiacutesmo por parte dos pagatildeos tiveram uma
importante contribuiccedilatildeo junto agrave construccedilatildeo de uma ldquoidentidaderdquo cristatilde durante o periacuteodo do
Seacuteculo II314 Tratando-se pontualmente do que acabamos de mencionar Santos novamente
contribui favoravelmente a nossa construccedilatildeo quando diz
Justino continua explicando que como acusaram Soacutecrates de ateiacutesmo assim satildeo
acusados os cristatildeos por natildeo adorarem os deuses de Roma Em seguida ele apresenta
uma pequena profissatildeo de feacute com o objetivo de esclarecer que os cristatildeos natildeo satildeo
ateus pois ldquocultuamos e adoramosrdquo o Deus verdadeiriacutessimo o seu Filho os seus
exeacutercitos de anjos e o Espiacuterito profeacutetico (JUSTINO I Apologia VI 1 2) Vaacuterios
exemplos desta estrutura do desenvolvimento podem ser observados no decorrer da I
Apologia315
A variaccedilatildeo entre o caso de Soacutecrates e a realidade de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos reforccedila
as atribuiccedilotildees de Justino quanto a postura que este buscava assumir e automaticamente
diferenciar Quando aponta de maneira clara para o estabelecimento de um distanciamento
ldquosegurordquo entre as partes que na concepccedilatildeo do Apologista apresentam uma clara distinccedilatildeo de
culto No entanto Justino natildeo deixa de assumir a significativa importacircncia que as ldquoestruturasrdquo
de feacute representam como objeto para a estabilidade humana no sentido de gerar nessa
coletividade uma espeacutecie de harmonia que pode ser definida com o um termo moderno como
ldquoseguranccedila socialrdquo mas claro isso somente se faz possiacutevel devido agrave Justino assumir ser um
crente ndash afastando assim todas as acusaccedilotildees de ateiacutesmo ndash mas natildeo um idoacutelatra exercendo deste
modo (novamente por meio de sua tradicional ferramenta apologeacutetica) um consideraacutevel
apontamento para as diferenccedilas entre estes dois (ou mais) estados de crenccedila e culto Walde
313 PLATAtildeO Ecircutrifon (Sobre a piedade) 2
314 Ver SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2010 Item
12 A apropriaccedilatildeo do estilo grego nos escritos e pregaccedilotildees p 31-38
315 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2010 p 108
grifo nosso
74
salienta bem esse enfoque comparativo que acabou por constituir uma espeacutecie de meacutetodo que
foi aplicado por Justino em sua verificaccedilatildeo entre as diferenccedilas que encontrou Desta forma
Walde resume seu entendimento
Parte do problema era uma maacute interpretaccedilatildeo da crenccedila cristatilde Por natildeo renderem culto
aos deuses gregos e romanos os cristatildeos eram chamados ateus Justino perguntou
como eles podiam ser ateus jaacute que eles rendiam culto ldquoao Deus verdadeirordquo Os
cristatildeos rendem culto ao Pai Filho e Espiacuterito Santo ele disse e ldquolhes datildeo homenagens
com razatildeo e verdaderdquo Justino tambeacutem apontou a inconsistecircncia dos governantes
romanos Alguns de seus proacuteprios filoacutesofos ensinaram que natildeo havia nenhum deus
mas eles natildeo os perseguiram soacute por terem o nome de filoacutesofos316
Aleacutem desses destaques de caraacuteter mais historiograacuteficos adquirimos atraveacutes do texto
biacuteblico o relato Apostoacutelico que certamente abarca os fatores que compotildeem a posiccedilatildeo de Justino
Este testemunho Sagrado retrata com esmero o que o autor de Atos dos Apoacutestolos buscava
comunicar ao seu status quo pois o discurso de Paulo em Atenas torna-se esclarecedor para o
fim de testificar o estado e o tipo da feacute que os cristatildeos confessavam Vemos nisso proposta uma
relocaccedilatildeo do ser humano em direccedilatildeo a nova concepccedilatildeo de se ser a geraccedilatildeo de Deus ndash atraveacutes
da nova criaccedilatildeo ndash pois os procedimentos dos cultos pagatildeos contrariavam os princiacutepios
fundamentais deste Deus absoluto uacutenico e consequentemente a isso verdadeiro na visatildeo de
Justino sendo absolutamente ldquotolice pensar que a divindade ndash lsquoo divinorsquo ou lsquodivinalrsquo ndash seria
semelhante agraves imagens de ouro ou de prata feitas pelos homensrdquo317 O Texto Sagrado
indiscutivelmente apresenta o caminho e o fundamento pelo qual Justino alcanccedilou e sustentava
suas convicccedilotildees
O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe sendo ele Senhor do ceacuteu e da terra
natildeo habita em santuaacuterios feitos por matildeos humanas Nem eacute servido por matildeos humanas
como se de alguma coisa precisasse pois ele mesmo eacute quem a todos daacute vida
respiraccedilatildeo e tudo mais [] Sendo pois geraccedilatildeo de Deus natildeo devemos pensar que
a divindade eacute semelhante ao ouro agrave prata ou agrave pedra trabalhados pela arte e
imaginaccedilatildeo do homem (Atos dos Apoacutestolos 17242529)
Apoacutes discorrermos sobre o meacuterito da questatildeo dos disciacutepulos de Jesus Cristo serem ou
natildeo ateus e tambeacutem de abordarmos com uma finalidade dissertativa algumas caracteriacutesticas de
316 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 3 grifo nosso
317 EARLE In Livro dos Atos dos Apoacutestolos Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006 p 343
75
ordem cultual do meio pagatildeo seguiremos explorando algumas citaccedilotildees de Justino que se
apresentam de forma diversificada em sua tentativa de enfatizar um latente antagonismo entre
os grupos religiosos de seu tempo
232 Um Princiacutepio Determinista
Os capiacutetulos XXV e XXVI da I Apologia nos apresentam inuacutemeras variaccedilotildees desses
haacutebitos religiosos todos sentenciados por nosso autor como nefastos porque Justino sempre
buscava afirmar como ponto inicial de sua argumentaccedilatildeo a premissa de que seu grupo (cristatildeos)
se diferencia dos demais por natildeo possuir as mesmas praacuteticas Essas praacuteticas pagatildes de culto no
entendimento de Justino fossem exercidas de maneira ordinaacuteria ou extraordinaacuteria por seus
seguidores no final incontestavelmente seriam condenadas pois se manifestariam como obras
demoniacuteacas Isso ocorria porque alguns ldquodemocircnios levaram certos homensrdquo318 a praticaacute-las
para prejuiacutezo dos cristatildeos sendo estes por fim injustamente acusados de praacuteticas danosas
Euseacutebio ao comentar sobre o ministeacuterio de Justino retrataraacute este contexto de forma
simposiasta
Isto eacute demonstrado por Justino que se distinguiu em nossa doutrina natildeo muito tempo
depois dos apoacutestolos e de quem exporemos oportunamente o que seja conveniente
Em sua primeira Apologia dirigida a Antonino em favor de nossa feacute escreve como
segue ldquoE depois da ascensatildeo do Senhor ao ceacuteu os democircnios levaram alguns homens
a dizer que eram deuses e estes natildeo somente natildeo foram perseguidos por voacutes mas ateacute
foram considerados dignos de honrasrdquo319
Nos capiacutetulos XXIV-XXVI Justino nos retrata de maneira sintetizada diversas
caracteriacutesticas da religiatildeo gentiacutelica de sua eacutepoca Ateacute aqui natildeo encontramos nada de novo ou
ateacute mesmo excepcional neste tipo de relato mas o que nos chama a atenccedilatildeo neste
enquadramento analiacutetico sobre o qual estamos ponderando eacute a proporccedilatildeo temaacutetica que o
assunto ganha referente agrave sua futura fundamentaccedilatildeo literaacuteria Cabe-nos aqui atestar que Justino
se utiliza de trecircs elementos indicativos naquilo que procura apresentar como casos evidentes da
perseguiccedilatildeo social para com aqueles que se denominavam cristatildeos Justino atraveacutes de uma
espeacutecie de ldquolista numeradardquo320 notoriamente sinaliza uma sequecircncia de fases as quais
318 JUSTINO I Apologia XXVI 1
319 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica II 13 2-3
320 Justino se utiliza dos termos gregos Πρωτον (Em primeiro lugar) no cap XXIV Δεύτερον (Em segundo lugar)
no cap XXV Τρίτον (Em terceiro lugar) no cap XXVI Sendo os vocaacutebulos empregados pelo autor na segunda
76
Frangiotti chama de ldquoProvasrdquo321 utilizadas pelo Apologista sendo que estes fatos em
perspectiva geral se apresentavam de maneira tenebrosa na visatildeo de Justino pois em sua
anaacutelise sustentavam-se sobre argumentos fraacutegeis duvidosos e absolutamente injustos
principalmente pelo fato dessas acusaccedilotildees possuiacuterem um caraacuteter preconceituoso fazendo
somente dos cristatildeos por princiacutepio legal as viacutetimas dessas regras estabelecidas
Neste breve conjunto propositivo encontramos um cenaacuterio real que passa a se
caracterizar por meio de uma descriccedilatildeo de fatos pujantes que ascendem ao nosso olhar atraveacutes
de uma linguagem conceitual Justino amparado por analogias literais passa mediante sua
construccedilatildeo da defesa da moral cristatilde322 a utilizar-se de accedilotildees dialeacuteticas as quais levam as
praacuteticas dos cultos pagatildeos a serem apontadas por Justino (especialmente no capiacutetulo XXV) e
tambeacutem examinadas de uma maneira imperativa mesmo que visando uma definiccedilatildeo satisfatoacuteria
para o entendimento de seus leitores Essa praacutetica literaacuteria eacute algo normalmente detectado junto
ao trabalho de um pensador com caracteriacutesticas platocircnicas pois estes ldquodisciacutepulosrdquo de Platatildeo
atraveacutes de uma confrontaccedilatildeo de imagens contraditoacuterias visavam chegar a ideias idecircnticas e
assim uniformizar o pensamento humano323
Entretanto esta conformidade natildeo era possiacutevel na anaacutelise de Justino pois os fatos
(praacuteticas pagatildes) natildeo possuiacuteam a ldquoidentidaderdquo necessaacuteria para o Apologista muito pelo
contraacuterio eram absolutamente antagocircnicos e inquestionavelmente se definiam como espuacuterios
aos olhos dos cristatildeos quando ponderados diante da doutrina cristatilde estabelecida pela
transmissatildeo e edificaccedilatildeo Apostoacutelica Deste modo a separaccedilatildeo essencial proposta pelo
Apologista torna-se ainda mais clara se confrontada com o comentaacuterio de Euseacutebio ao capiacutetulo
XXVI da I Apologia O Historiador constroacutei uma consideraacutevel argumentaccedilatildeo sobre uma figura
humana denominado Menandro o qual sendo participante de atos miacutesticos recebeu de Euseacutebio
o cognome de ldquoMagordquo
Tambeacutem Justino ao mencionar Simatildeo pela mesma razatildeo acrescenta uma relaccedilatildeo
sobre este outro dizendo ldquoSabemos tambeacutem que um certo Menandro tambeacutem
samaritano oriundo da aldeia chamada Caparatea depois de ser disciacutepulo de Simatildeo e
estando tambeacutem possuiacutedo por democircnios apareceu em Antioquia e com sua arte
maacutegica seduziu a muitos E convenceu seus seguidores de que natildeo morreriam Hoje
declinaccedilatildeo do acusativo permitem em sua traduccedilatildeo o emprego tanto da preposiccedilatildeo ldquoemrdquo quanto do substantivo
ldquolugarrdquo condicionando desta forma uma indicaccedilatildeo de relaccedilatildeo e loacutegica em sua estrutura organizacional Ver
PAUTIGNY In Notes Apologies XXVI 1 XXV 1 XXVI 1
321 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 21
322 JUSTINO I Apologia XXV 1-3
323 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
77
restam alguns de sua seita que continuam a professaacute-lordquo Era sem duacutevida obra da
influecircncia diaboacutelica lanccedilar matildeo de tais feiticeiros revestidos do nome de cristatildeos para
esforccedilar-se em caluniar o grande misteacuterio de piedade acusando de magia e destruir
por meio deles os dogmas da Igreja sobre a imortalidade da alma e a ressurreiccedilatildeo dos
mortos Mas aqueles que os reconhecem como salvadores chegaram abaixo da
verdadeira esperanccedila324
Neste comentaacuterio histoacuterico notamos com clareza a relaccedilatildeo de contribuiccedilatildeo que
Euseacutebio visa estender ao confronto apologeacutetico pelo qual Justino havia passado Desta maneira
acaba por nos manifestar seu condicionamento a um fato que em sua concepccedilatildeo parece-nos
claramente a expressatildeo de um princiacutepio pelo qual faz emergir um compromisso ndash algo que nos
soa como uma necessidade moral ndash que possui um caraacuteter imperioso Euseacutebio nos relata sem
restriccedilotildees que as accedilotildees maleacutevolas praticadas pelo meio sociorreligioso pagatildeo do periacuteodo de
Justino tinham claramente o objetivo de ldquocaluniar o grande misteacuterio de piedade [] e destruir
por meio deles os dogmas da Igrejardquo325 constituindo deste modo a noccedilatildeo histoacuterica de que os
valores da feacute cristatilde eram a expressatildeo perfeita da Verdade tanto para Justino quanto para a Igreja
(representada historicamente no relato de Euseacutebio) Tratando-se quanto agrave Igreja nesta questatildeo
pontualmente Justino entendia que em seu curso natural a Igreja vivenciava naturalmente essa
relaccedilatildeo dialeacutetica fazendo com que as difamaccedilotildees consequentes da falsa religiatildeo manifestassem
que a Igreja era (e estava) Santa mesmo que sob o ataque e a tentativa de manipulaccedilatildeo dos
seres demoniacuteacos326
Sem entrarmos diretamente no meacuterito teoloacutegico destas afirmaccedilotildees mas buscando nos
direcionarmos para aquilo que nos cabe como exame pretendido neste trabalho ressaltamos
que o comportamento daqueles que buscavam defender a feacute cristatilde nos parece visar de forma
clara o estabelecimento de um padratildeo entre causa e efeito em suas anaacutelises O efeito do
procedimento daqueles que assumiram esta postura hereacutetica em relaccedilatildeo agrave feacute cristatilde eacute assim
definido por Euseacutebio ldquoMas aqueles que os reconhecem como salvadores chegaram abaixo da
verdadeira esperanccedilardquo327 Aqui encontramos um destaque consideraacutevel para esta pesquisa pois
podemos sustentar que Euseacutebio baseia sua argumentaccedilatildeo de maneira evidente na
intelectualidade de Justino Logo devemos novamente afirmar de maneira expressiva que tanto
para Justino quanto para Euseacutebio havia uma definiccedilatildeo consistente do que seria a Verdade como
324 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica III 26 3-4
325 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica III 26 4
326 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997
327 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica III 26 4 grifo nosso
78
tambeacutem onde ela necessariamente estava eou se encontrava Aqui tambeacutem se caracterizava
um processo de objeccedilatildeo a Verdade sendo os registros historiograacutefico um peso consideraacutevel na
comprovaccedilatildeo deste caso
233 Um Princiacutepio de Pureza
Seguindo no tratado de Justino jaacute nos dirigindo ao segundo cenaacuterio de nossa anaacutelise
para este item apresentamos mais um relato de alccedilada histoacuterica que eacute proposto por nosso autor
Como nos temas anteriores este tambeacutem envolve primordialmente questotildees de foro social
poreacutem agora apontando precisamente para outras realidades do ambiente sociorreligioso que
envolvia a realidade de Justino Sendo assim a partir deste ponto iremos considerar o capiacutetulo
XXVII da I Apologia onde encontramos uma postura determinante por parte do Apologista
quanto a questotildees de ordem para com agrave conduta sexual humana Neste caso especiacutefico podemos
ateacute mesmo falar de um padratildeo de comportamento a ser adotado em detrimento de outro328
Tambeacutem devemos afirmar sem constrangimento que para Justino fazer figurar esta
exposiccedilatildeo era algo vaacutelido e ateacute mesmo fundamental para suas intenccedilotildees apologeacuteticas pois tudo
nos indica que ele natildeo apenas queria sinalizar uma conduta mas tambeacutem solidificaacute-la por meio
de um ordenamento ldquoA pureza da vida cristatilderdquo329 Entendemos que para uma melhor
compreensatildeo dessa questatildeo em especiacutefico se faz necessaacuterio uma leitura completa do registro
apologeacutetico de Justino quanto ao assunto Deste modo segue na integra o capiacutetulo XXVII da I
Apologia
Noacutes por outro lado a fim de natildeo cometer pecado ou impiedade professamos a
doutrina de que expor os receacutem-nascidos eacute obra de perversos Primeiro porque vemos
que quase todos vatildeo acabar na dissoluccedilatildeo natildeo soacute as meninas mas tambeacutem os
meninos Do mesmo modo como se conta que os antigos mantinham rebanhos de bois
cabras ovelhas ou cavalos de pasto assim se reuacutenem agora rebanhos de crianccedilas com
a uacutenica finalidade de usar torpemente delas e toda uma multidatildeo tanto de mulheres
como de androacuteginos e pervertidos estaacute preparada em cada proviacutencia para semelhante
abominaccedilatildeo Para isso recolheis taxas contribuiccedilotildees e tributos ao passo que o vosso
dever seria o de arrancaacute-las pela raiz do vosso impeacuterio Quando se abusa de tais seres
aleacutem de tratar de uma uniatildeo proacutepria de pessoas sem Deus iacutempia e torpe natildeo faltaraacute
quem se una conforme a circunstacircncia com um filho um parente ou um irmatildeo Haacute
tambeacutem aqueles que prostituem seus proacuteprios filhos e mulheres outros mutilam-se
publicamente para a torpeza e referem esses misteacuterios agrave matildee dos deuses Finalmente
em todos aqueles que considerais como deuses a serpente se pinta como siacutembolo e
grande misteacuterio E aquilo mesmo que voacutes praticais e honrais publicamente voacutes o
atribuiacutes a noacutes como se tiveacutessemos decaiacutedo e a luz divina natildeo nos assistisse Todavia
328 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997
329 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 22
79
como estamos livres por natildeo praticar nada disso vossas caluacutenias natildeo nos causam
nenhum dano ao contraacuterio danificam aqueles que cometem essas torpezas e ainda
levantam falso testemunho contra noacutes330
O conteuacutedo exposto no capiacutetulo XXVII nos retrata uma condiccedilatildeo muito conflituosa
para os cristatildeos Graccedilas agrave sua praxis fidei eles chegaram a ser considerados ldquoinimigos do estado
e ateusrdquo331 A Igreja em sua fase primitiva teve em seu ldquoexerciacutecio de feacuterdquo a acusaccedilatildeo de se
envolver amplamente com a imoralidade de seu meio cultural332 No entanto a situaccedilatildeo que
Justino enfrentava em seus dias natildeo era mais proveniente de uma solene admoestaccedilatildeo
Apostoacutelica Pelo contraacuterio agora os cristatildeos passaram a ser vitimados por efeitos de um estado
opressor No passado estes pecados haviam afligido a Igreja de Cristo a ponto de suas praacuteticas
lituacutergicas serem ldquoconfundidasrdquo com as muitas facetas do rito religioso natildeo-cristatildeo vigente em
sua eacutepoca algo que Justino se interpocircs de forma vertiginosa Sem termos a intenccedilatildeo de produzir
necessariamente um apanhado histoacuterico-cultural (entenda-se de se comentar detalhadamente o
capiacutetulo citado) procuraremos a partir deste ponto estabelecer agrave saliecircncia que entendemos
haver entre as praacuteticas descritas no capiacutetulo XXVII pois a descriccedilatildeo elementar de Justino nos
leva a uma singular oposiccedilatildeo de valores e preceitos considerados por ele como fundamentais
A cultura greco-romana alicerccedilada e solidificada nas entranhas do Impeacuterio nos
demonstra uma coletividade de fatos os quais eram considerados inoacutespitos ao ldquoideaacuteriordquo cristatildeo
que se encontrava estruturado no rigor das comunidades do Seacuteculo II333 Obviamente alguns
desvios de conduta por parte dos fieacuteis ocorriam em meio agraves ldquoassembleiasrdquo cristatildes ateacute mesmo
com certa normalidade especialmente nos grandes centros urbanos334 Entretanto a proteccedilatildeo
da disciplina eclesiaacutestica ndash principalmente mediante a accedilatildeo Episcopal e dos rigores penitenciais
ndash conseguia estabelecer um ldquocontrolerdquo por meio da manutenccedilatildeo da autecircntica doutrina de
Cristo335
Neste cenaacuterio as diversas praacuteticas religiosas pagatildes atreladas ao sistema social de entatildeo
ndash as quais envolviam de maneira ampla e robusta a vida cotidiana dos suacuteditos de Roma em
330 JUSTINO I Apologia XXVII 1-5
331 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4
332 Ver 1 Coriacutentios 5
333 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997
334 KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983
335 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
80
suas mais variadas atuaccedilotildees familiar civil militar etc336 ndash apontavam de forma depreciativa
para o puacuteblico cristatildeo O cristianismo nesse momento cada vez mais inserido na realidade
social do Impeacuterio trazia o ldquofermento de um ideal superiorrdquo337 elaborado tanto no niacutevel
intelectual de seus praticantes quanto tambeacutem no de seus defraudadores Isso fazia com que a
feacute cristatilde acabasse por se distinguir de forma evidente dos diversos haacutebitos e costumes
considerados ordinaacuterios do sistema religioso natildeo-cristatildeo que estava sendo analisado e
apologeticamente combatido por Justino
Os cristatildeos eram acusados falsamente de cometerem torpezas sexuais em seus
encontros cultuais sendo que os cristatildeos nem de perto praticavam fornicaccedilatildeo adulteacuterio
mutilaccedilatildeo entre outros atos repugnantes338 que eram comuns na ldquoliturgiardquo cuacuteltica pagatilde Neste
cenaacuterio para Justino a pior consequecircncia ainda era a de que o Impeacuterio tolerava tais atos sem
nenhuma forma ativa de puniccedilatildeo a estes pois caso um respectivo modo de culto viesse a trazer
benefiacutecios poliacuteticos ao Impeacuterio o mesmo era tolerado sem se levar em conta sua origem ou
meacutetodos de celebraccedilatildeo por mais esdruacutexulos que fossem 339
Seguindo ainda nesta temaacutetica a I Apologia nos permite afirmar que a celeuma de
origem pagatilde que procurava acusar os cristatildeos de realizarem orgias canibalismo pedofilia e
diversos outros atos de torpeza em suas celebraccedilotildees natildeo passava de um plano difamatoacuterio que
infelizmente conseguiu se estabelecer em meio a uma realidade sociorreligiosa com
caracteriacutesticas muito preconceituosas pois mesmo sendo sincretista em sua essecircncia340 tal
sociedade natildeo soube ou natildeo quis reconhecer esse tipo de crenccedila religiosa341 Poreacutem cabe-nos
336 CARCOPINO Jeacuterocircme Roma no Apogeu do Impeacuterio Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990
337 LEBRETON Jules ZEILLER Jacques Storia della Chiesa della origini ai nostri giorni V II Dalla fine
dell II Secolo alla pace Costantiniana (313) 1972 p 619 No original fermento drsquoun ideale superiore
338 Ver DANIEacuteLOU Jean MARROU Henri Nova histoacuteria da Igreja V I Dos Primoacuterdios a Santo Gregoacuterio
Magno Petroacutepolis Vozes 1966 p 105-109
339 Algumas formas rituais de culto eram tatildeo bizarras que solapam mais do que qualquer outra coisa o estereoacutetipo
moderno dos romanos como convencionais e serenos Exemplo disso na festa da Lupercaacutelia em fevereiro homens
jovens corriam nus pela cidade accediloitando qualquer mulher que encontrassem pela frente (trata-se da mesma festa
recriada na cena de abertura da peccedila Juacutelio Ceacutesar de Shakespeare) Ver BEARD SPQR uma histoacuteria da Roma
Antiga 2017 p 104
340 AYMARD AUBOYER Roma e Seu Impeacuterio Volume V As Civilizaccedilotildees da Unidade Romana (Fim) A Aacutesia
Oriental do Iniacutecio da Era Cristatilde ao Final do Seacuteculo II 1994 p 64-65 CORNELL Tim MATTHEWS John
Frederick A Civilizaccedilatildeo Romana Barcelona Folio 2008 p 97
341 Neste aspecto em particular o meio teoloacutegico diverge de posiccedilatildeo possivelmente devido a inclinaccedilatildeo do
pesquisador em ponderar aspectos filosoacuteficos eou ideoloacutegicos tanto do passado quanto do presente para a eacutepoca
(Seacuteculo II) em anaacutelise Por exemplo Meeks entende que as caracteriacutesticas da moralidade estabelecida entre os
cristatildeos jaacute possuiacuteam forte ascendecircncia em meio a setores da sociedade Romana em contraposiccedilatildeo Daniel-Rops
atesta que a moralidade de origem cristatilde constituiacuteda atraveacutes dos Seacuteculos I ao IV natildeo encontra antecedentes agrave altura
que possam ser considerados como paralelos realmente orientativos haacute esta Ver MEEKS As Origens da
Moralidade Cristatilde 1997 p 9-24 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 240-242
81
ressaltar que Justino em seus tratados apologeacuteticos procurou incansavelmente defender seu
grupo como ldquoseres transformadosrdquo que abandonaram as praacuteticas repugnantes e agora satildeo
portadores (possuidores) de uma alta qualificaccedilatildeo moral Quanto a esse aspecto Walde afirma
Justino tambeacutem deu ecircnfase agrave casta conduta dos cristatildeos em resposta a acusaccedilotildees de
conduta imoral durante o culto Para mostrar como isso natildeo era verdade ele contou a
histoacuteria de um homem que foi perguntado por um cirurgiatildeo que o queria fazecirc-lo de
eunuco para provar que os cristatildeos natildeo praticam promiscuidade O pedido foi negado
porque o homem escolheu ficar solteiro e seguir seus companheiros cristatildeos342
Apoacutes utilizarmos desse exemplo de teor absolutamente imperativo ndash por sua estrutura
excecircntrica ateacute mesmo junto a um nicho de caraacuteter sociorreligioso considerado peculiar em
suas caracteriacutesticas Entendemos que ainda se faz necessaacuterio apresentar junto a essa discussatildeo
uma abordagem que compreenda a realidade que procuramos descrever Encontramos esse
complemento junto ao trabalho de Walde Este por meio de uma entrada que nos indica agrave leitura
de alguns fatos apresenta-nos uma das teacutecnicas utilizadas por Justino em sua construccedilatildeo
literaacuteria Walde reconhece que o Apologista ao mencionar a situaccedilatildeo religiosa de seu cotidiano
aborda de forma contundente o desgaste entre os praticantes da nova feacute (cristatildeos) e os
adoradores do ldquopanteatildeordquo (natildeo-cristatildeos) Os exemplos descritos por Walde satildeo similares aos
usados por Justino e esta similaridade nos leva novamente a concentrarmos nosso foco agrave uma
accedilatildeo comparativa de estados opostos entre si ou seja dialeacuteticos Sendo assim torna-se notoacuterio
desde o iniacutecio do trabalho de Walde a aplicaccedilatildeo de uma metodologia comparativa e a
diferenciaccedilatildeo de casos tornando-se uma espeacutecie de ldquoconclusatildeordquo definitiva para esse processo
Uma das taacuteticas apologeacuteticas de Justino era contrastar o que os cristatildeos eram
falsamente acusados e castigados com que os romanos faziam com impunidade Por
exemplo os cristatildeos eram acusados de matar crianccedilas em seus cultos e comecirc-las
depois Justino lembrava que os adoradores de Saturno se entregavam a matar e beber
sangue e outros pagatildeos que jogavam sangue de homens e animais em seus iacutedolos Os
cristatildeos eram acusados de imoralidade sexual mas eram seus criacuteticos Justino dizia
quem imitavam ldquoJuacutepiter e os outros deuses na sodomia e relaccedilotildees pecadoras com
mulheres343
342 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4
343 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4 grifo nosso
82
Ao analisarmos o texto de Walde percebemos que este utiliza-se do verbo ldquocontrastarrdquo
em sentido intransitivo para salientar com bastante preponderacircncia uma forma calculada de
oposiccedilatildeo e apresentar uma literal contrariedade de estados em essecircncia Logo conseguimos
notar a diferenccedila entre estes Eacute impressionante aos nossos olhos a relaccedilatildeo que Walde estabelece
em seu trabalho sobre o termo Verdade (mesmo que indiretamente) sendo este vocaacutebulo
utilizado como habilitador de uma caracteriacutestica de cunho existencial que passa a ser
manifestada pelos cristatildeos Novamente citamos este teoacutelogo em nossa busca de clarificar ainda
mais essa base indicativa que para noacutes eacute entendida como uma evidecircncia concreta nesta
construccedilatildeo conceitual Walde diz ldquoEm primeiro lugar disse Justino os cristatildeos demonstravam
sua honestidade por natildeo mentir quando em julgamento Por serem pessoas da verdade eles
confessariam sua feacute ateacute a morte Eles amavam a verdade mais que a vidardquo344
Portanto Walde tem razatildeo em afirmar que a atitude ldquode viver segundo a verdade era
um exemplo de mudanccedila provocado nas vidas das pessoas seguindo sua conversatildeordquo345 Desta
forma compreendemos por meio de uma avaliaccedilatildeo baseada em medidas factiacuteveis que haacute
possibilidade de se ser cristatildeo na concepccedilatildeo de Justino ndash como tambeacutem na de Tertuliano
Euseacutebio Walde e outros ndash passava por um proceder de vida que designava com eloquecircncia
atributos de diferenciaccedilatildeo no contexto social ativo da cultura a qual esta pessoa estava inserida
Esta separaccedilatildeo de maneira simples e evidente se condicionava no testemunho de vida dos fieacuteis
na esfera puacuteblica Cabe-nos ainda neste contexto colocarmos a frase de Falls citada por Walde
este diz ldquoesta mudanccedila chegou a ser conhecida como lsquoa triunfal canccedilatildeo dos apologistasrsquordquo346
Encerramos aqui nosso desenvolvimento deste ponto distintivo referente agravequilo que
poderiacuteamos denominar de ldquodialeacutetica de Justinordquo Para isso utilizamos de um texto da I
Apologia no qual Justino enfatiza esta mudanccedila essencial entre as vidas humanas que
caracterizamos como cristatildeos e natildeo-cristatildeos Em seguida classificamos agrave realidade cristatilde
como algo superior atraveacutes do meacutetodo de comparaccedilatildeo que tanto utilizamos nesta seccedilatildeo
confrontando os opostos em uma relaccedilatildeo que atesta suas diferenccedilas as quais satildeo consideradas
por Justino como irreconciliaacuteveis
Antes noacutes nos compraziacuteamos na dissoluccedilatildeo agora abraccedilamos apenas a temperanccedila
antes nos entregaacutevamos agraves artes maacutegicas agora nos consagramos ao Deus bom e
ingecircnito antes amaacutevamos acima de tudo o dinheiro e as rendas de nossos bens
344 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4 grifo nosso
345 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4 grifo nosso
346 FALLS The Fathers of the Church 1948 apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4
83
agora colocamos em comum o que possuiacutemos e disso damos uma parte para todo
aquele que estaacute necessitado antes noacutes nos odiaacutevamos e nos mataacutevamos mutuamente
e natildeo compartilhaacutevamos o lar com aqueles que natildeo pertenciam agrave nossa raccedila pela
diferenccedila de costumes agora depois da apariccedilatildeo de Cristo vivemos todos juntos
rezamos por nossos inimigos e tratamos de persuadir os que nos aborrecem
injustamente a fim de que vivendo conforme os belos conselhos de Cristo tenham
boas esperanccedilas de alcanccedilar conosco os mesmos bens que esperamos de Deus
soberano de todas as coisas347
O objetivo deste capiacutetulo foi apresentar de modo sinteacutetico o conceito acerca dos
cristatildeos no periacuteodo do Seacuteculo II dC Tambeacutem arguimos com clareza sobre a tentativa de
clarificarmos a situaccedilatildeo daqueles que natildeo eram pertencentes a este grupo os quais procuramos
mediante a aplicaccedilatildeo de uma distinccedilatildeo elementar defini-los com o termo de natildeo-cristatildeos
poreacutem acima de tudo buscamos apresentar por meio de sinais constitutivos e fatos
historiograacuteficos348 quais eram os predicativos que formulavam esta definiccedilatildeo ou melhor
dizendo quais eram os qualificadores que definiam aqueles que eram seguidores da Verdade
na concepccedilatildeo de Justino e outros349
No proacuteximo capiacutetulo buscaremos vislumbrar o filoacutesofo Justino Apresentaremos um
conciso relato de sua histoacuteria na filosofia procurando abordar de maneira satisfatoacuteria quais
foram suas principais influecircncias dentro desse segmento Trabalharemos de forma especial na
tentativa de apontar qual foi a sua definiccedilatildeo sobre o uso da razatildeo para os planos salviacuteficos de
Deus para a humanidade sendo este em nosso entendimento mais um dos fatores determinantes
para a complementaridade de nosso exame sobre a definiccedilatildeo da Verdade junto a I Apologia de
Justino o Maacutertir
347 JUSTINO I Apologia XIV 2-3
348 DANIEacuteLOU MARROU Nova histoacuteria da Igreja V I Dos Primoacuterdios a Santo Gregoacuterio Magno 1966
349 Danieacutelou e Marrou definem agrave Euseacutebio e Lactacircncio como apologistas de Constantino dando a entender que
uma poliacutetica de reeducaccedilatildeo na esfera sociorreligiosa do Impeacuterio Romano se desenvolveu mediante uma nova
abordagem dos fatos do passado no caso em especifico (I Apologia de Justino e seu cenaacuterio social) os imperadores
do passado deixaram de ser ldquoendeusadosrdquo passando a serem reconhecidos como tiranos e deacutespotas aos quais o
processo de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos tornou-se em um de seus principais atos de ignomiacutenia Ver DANIEacuteLOU
MARROU Nova histoacuteria da Igreja V I Dos Primoacuterdios a Santo Gregoacuterio Magno 1966 p 106
84
3 A VERDADE REVELADA Agrave RAZAtildeO A FILOSOFIA E SEU CONTEXTO NA
PERSPECTIVA DE JUSTINO MAacuteRTIR
No princiacutepio ele criou o gecircnero humano racional capaz de escolher a verdade e
praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus
pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade Se algueacutem natildeo
crecirc que Deus se preocupe com essas coisas ou teraacute que confessar com sofismas que
natildeo existe ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como
uma pedra350
Partindo do capiacutetulo XXVIII da obra base de Justino para este trabalho eacute que
desenvolvemos o capiacutetulo III desta pesquisa no qual apresentamos um cenaacuterio diferenciado
sobre a figura humana de nosso autor O cristatildeo Justino o qual podemos registrar de forma
variaacutevel mediante seu ldquomeacutetierrdquo amplo estaacute classificado entre os Pais Apologistas elencado
como um seleto articulador da importante cidade de Roma catalogado como um dos mais
significativos maacutertires do Seacuteculo II mas tambeacutem estaacute sem nenhuma sombra para duacutevidas
definido nos compecircndios histoacutericos como um expressivo filoacutesofo do meio cristatildeo
Este aspecto pontual referente a intelectualidade de Justino por jaacute ter sido
consideravelmente explorado natildeo eacute mais uma novidade no meio acadecircmico351 no entanto esta
questatildeo ainda pode ser desenvolvida e ateacute mesmo arquitetada para fins que visam estabelecer
pontos de conexatildeo entre temas diversos os quais incluem o tema e agrave objetividade central
propostos para esta pesquisa
Podemos constatar por meio da anaacutelise do desenvolvimento da expressatildeo intelectual
de um filoacutesofo ou de uma escolalinha filosoacutefica uma ampla polissemia locucional e ateacute mesmo
perceber casos opostos quando ocorrem no estabelecimento de algumas propriedades termos
diferentes que evoluiacuteram para uma mesma fonologia construindo desta maneira tambeacutem casos
de homoniacutemia dentro da manifestaccedilatildeo filosoacutefica352 Deste modo torna-se possiacutevel ndash e ateacute
mesmo necessaacuterio ndash direcionar o caraacuteter conceitual contido em algumas expressotildees filosoacuteficas
quando estas satildeo analisadas visando estabelecer uma direccedilatildeo que busque esclarecer
determinado contexto ou cenaacuterio Assim por este meio podemos salientar que assaz entre noacutes
350 JUSTINO I Apologia XXVIII 3-4a grifo nosso
351 Ver HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 27-32
352 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
85
fortes indiacutecios que Justino desenvolveu uma postura robustamente teoloacutegica mediante ter
formado sua tese atraveacutes da ldquodiversidade filosoacuteficardquo da qual era apreciador353
No caso de nosso trabalho em especiacutefico notamos a necessidade da integraccedilatildeo de
indicadores que nos orientem agrave amplitude da filosofia de Justino em nossa busca da definiccedilatildeo
da que era agrave Verdade para este Apologista Esta amplitude natildeo visa se desviar de modelos
tradicionais nem propriamente somar a eles mas antes disso entendemos ser necessaacuterio
rejeitar a ideia de que trabalhamos com um conceito formado precariamente sem um
fundamento soacutelido o qual poderiacuteamos considerar como um mero estereoacutetipo sem originalidade
Ao contraacuterio este modelo encontrado em Justino natildeo se baseia em preconceitos mas sim num
corpo intelectual de ldquotalento respeitaacutevel ampla leitura e memoacuteria enormerdquo354 algo que eacute notoacuterio
na literatura de Justino e exposto ateacute entatildeo com uma consideraacutevel parcela de originalidade355
Neste exposto algumas interrogaccedilotildees nos surgem especialmente quando tentamos
descrever (definir) o filoacutesofo Justino e sua contribuiccedilatildeo Aqui esboccedilamos alguns destes
questionamentos Quem era Justino o filoacutesofo Quais foram as principais influecircncias que
Justino recebeu na filosofia Qual resultado se percebe na teologia do autor devido a esta
influecircncia Por fim existe um condicionante (entenda-se uma caracteriacutestica inata) no ser
humano que explique tal interesse de Justino em expressar seu conceito
31 INTRODUCcedilAtildeO AO CAPIacuteTULO XXVIII
O capiacutetulo XXVIII da I Apologia eacute de grande importacircncia para esta pesquisa
inaugurando por assim dizer um significativo espaccedilo de reflexatildeo na busca de alcanccedilarmos o
desfecho que almejamos Num breve conjunto de argumentos os quais se concentram sobre
um rigor metodologicamente dedutivo o capiacutetulo XXVIII nos eacute apresentado pelo Apologista
de modo perspiacutecuo onde a clareza de suas proposiccedilotildees salientam seus objetivos os quais
formulam-se mediante as propriedades de caraacuteter racionalista que ele apresenta Aqui notamos
uma aguccedilada aplicaccedilatildeo por parte do autor agravequilo que podemos chamar de uma postura
construtiva para com a estrutura inteligiacutevel do ser criado agrave imagem e semelhanccedila de Deus
353 WALDE 2000
354 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 715
apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 1
355 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948
86
Seguindo a argumentaccedilatildeo de Frangiotti podemos afirmar baseados nesse espaccedilo (cap XXVIII)
que Justino entendia que ldquoO homem eacute racional e livrerdquo356
Neste capiacutetulo (XXVIII) Justino desenvolve uma condensada e pragmaacutetica
abordagem envolvendo os quatro versiacuteculos que o compotildee Diante disso em momento algum
nossa argumentaccedilatildeo visa exaurir as diversas possibilidades contextuais ndash seja num campo
hermeneuticamente literal anaacutelogo ou metafoacuterico ndash do trabalho do Apologista mas apenas
organizaacute-lo de maneira ativa por meio de sua divisatildeo (versos) a um quadrante que possibilite
o interesse deste exame o qual se constroacutei na tentativa de aproximarmos as interpretaccedilotildees da
definiccedilatildeo de Verdade que detectamos em Justino de nosso interesse teoloacutegico
Neste item em especiacutefico (31) que visa uma abordagem introdutoacuteria desenvolvemos
em especial uma aproximaccedilatildeo entre os dois primeiros versiacuteculos do capiacutetulo onde priorizamos
apresentar sua estruturaccedilatildeo visando desta forma o aperfeiccediloamento destes pontos para
estabelecermos uma sentenccedila axiomaacutetica a qual eacute esboccedilada pelo autor no terceiro versiacuteculo do
relato Quanto ao primeiro versiacuteculo
Entre noacutes o priacutencipe dos maus democircnios se chama serpente satanaacutes diabo ou
caluniador como podeis ver caso desejardes averiguar isso atraveacutes de nossas
Escrituras Ele e todo o seu exeacutercito juntamente com os homens que o seguem seraacute
enviado ao fogo para ser castigado pela eternidade sem fim coisa que foi de antematildeo
anunciada por Cristo357
A primeira impressatildeo para um leitor moderno dessa descriccedilatildeo eacute de surpresa ou ateacute
mesmo de espanto poreacutem o verso devidamente encaixado no relato que o antecede o explica
e ateacute mesmo o suaviza As palavras de Justino satildeo absolutamente biacuteblicas e estatildeo enquadradas
em um absoluto arcabouccedilo escrituriacutestico Honestamente devemos salientar que nada lhe falta
como meacutetodo para que possamos empregar o tiacutetulo de ldquoortodoxordquo em seu embasamento
teoloacutegico358 Pois seus termos empregados tais como o ldquopriacutenciperdquo359 a chamada ldquoserpenterdquo360
aleacutem das demais terminologias como ldquosatanaacutesrdquo361 ldquodiabordquo eou ldquocaluniadorrdquo362 apresentam-se
356 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 22
357 JUSTINO I Apologia XXVIII 1
358 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948
359 Ver Joatildeo 1231 1430
360 Ver Gecircnesis 31 2 Coriacutentios 113 Apocalipse 129
361 Ver Mateus 410 Atos dos Apoacutestolos 2618
362 Ver Mateus 411 Atos dos Apoacutestolos 1310
87
neste cenaacuterio apologeacutetico como evidecircncias elementares extraiacutedas da Escritura Sagrada e
aplicadas em uma construccedilatildeo dialeacutetica sendo estas ainda vinculadas por Justino como uma
sentenccedila arbitral agravequeles que estatildeo sendo expostos e julgados pelo Apologista ndash caracteriacutestica
literaacuteria que notamos ser amplamente utilizada por Justino na afirmaccedilatildeo de suas convicccedilotildees363
Aqui fomenta-se uma configuraccedilatildeo de ordem proacutepria a qual apresenta Justino como
um filoacutesofo que pode ser definido como pertencente a um grupo que adota uma postura mais
claacutessica de linha platocircnica ndash algo que seraacute mais bem desenvolvido a seguir ndash onde atributos
que caracterizem causa e efeito que partindo de um suposto ldquomundo sensiacutevelrdquo364 passam a
somar caracteriacutesticas evidentes em sua construccedilatildeo textual sendo o teacutermino do capiacutetulo XXVII
uma expliacutecita manifestaccedilatildeo de fatos que atestam essa correlaccedilatildeo tatildeo dura mas tambeacutem
necessaacuteria no processo de evidenciaccedilatildeo proposto por Justino
Mas eacute preponderante para natildeo se dizer essencial que a loacutegica do Apologista se baseia
em artifiacutecios nucleares pois quem diz ldquocaso desejardes averiguar isso atraveacutes de nossas
Escriturasrdquo365 carrega consigo uma tonalidade de patentes e natildeo de meras suposiccedilotildees porque
a Verdade como elemento distinguiacutevel e diferencial eacute criteacuterio identificaacutevel na leitura de Justino
junto agravequilo que o mesmo salienta como sua (no caso do texto ldquonossardquo) ldquoEscriturardquo366 ou seja
sua preeminecircncia espiritual o que na descriccedilatildeo do Apologista deve ser entendida como uma
real vantagem distintiva sendo uma latente superioridade existencial para os homens que a
possuem Este ponto de prevalecircncia seraacute melhor abordado no uacuteltimo capiacutetulo desta pesquisa
Uma importante observaccedilatildeo ainda nos cabe fazer na parte final do primeiro verso
Antes mesmo de ocorrer os eventos conciliares de Niceacuteia eou Constantinopla a ecumenicidade
do Credo parece jaacute se caracterizar em uma forma de universalidade e um confessar da missatildeo
apostoacutelica jaacute anteriormente registrada no compecircndio biacuteblico se faz reverberar no ideaacuterio de
Justino Iniciamos nossa leitura do testemunho Apostoacutelico junto agrave estrutura biacuteblica O apoacutestolo
Judas escreveu ldquoele tem guardado sob trevas em algemas eternas para o juiacutezo do grande Dia
[] satildeo postas para exemplo do fogo eterno sofrendo puniccedilatildeordquo (Judas 6b7b) Nesta passagem
encontramos bases que se conformam ao relato de Justino que enfatiza que o proacuteprio Cristo as
havia anunciado367 Prosseguindo vemos que o Credo redigido anos depois iraacute afirmar o mesmo
363 DROBNER Manual de Patrologia 2008
364 SEVERINO A Filosofia Antiga 1984 p 84
365 JUSTINO I Apologia XXVIII 1
366 JUSTINO I Apologia XXVIII 1
367 Ver Joatildeo 1248
88
quando diz ldquoe viraacute novamente em gloacuteria a julgar os vivos e os mortosrdquo368 Natildeo nos resta duacutevidas
que a missatildeo apostoacutelica gerou a doutrina e consolidou o Credo369 mas passagens de ordem
Patriacutestica como esta salientam que o mesmo (Credo) tambeacutem balizou sua eficiecircncia atraveacutes da
ecircnfase da atuaccedilatildeo de homens que pela feacute natildeo sucumbiram agraves dificuldades370 pelo contraacuterio
salientaram com seu testemunho que estas propriedades de ordem atemporal miacutestica e
existencial foram e ainda eram a proacutepria forma da Verdade em meio aos homens
Quanto ao segundo verso eacute necessaacuterio algumas observaccedilotildees iniciais especialmente
em relaccedilatildeo ao ldquoteorrdquo teoloacutegico que Justino desenvolve nesta pequena porccedilatildeo a qual apresenta
dificuldades interpretativas consideraacuteveis junto ao acircmbito dogmaacutetico ndash independentemente da
estrutura confessional que a examine ndash sugerindo-nos desta forma apresentarmos uma sucinta
argumentaccedilatildeo antes de abordaacute-lo Entendemos que esse procedimento se faz necessaacuterio para
que natildeo aja em nossa construccedilatildeo conceitual-programaacutetica (caps XXIII-XXX) um ponto natildeo
devidamente abordado
Variados debates podem surgir a partir da ecircnfase destacada por Justino (verso 2 do
cap XXVIII) porque afirmaccedilotildees desta espeacutecie fomentam diversos tipos de interesses de ordem
miacutestica no caso em questatildeo (texto de Justino) podem inclusive alavancar questotildees
soterioloacutegicas por exemplo Algumas anaacutelises ldquomodernasrdquo371 se esforccedilam atualmente em
descrever a figura de Justino como ocupante empregador defensor ou ateacute mesmo praticante
de uma ou outra escola teoloacutegica do cenaacuterio cristatildeo atual Entretanto optamos por natildeo abranger
este e outros contextos nesta pesquisa por entendermos que estes assuntos e temas natildeo se
envolvem diretamente com o ponto central de nosso trabalho Aleacutem de reconhecermos outra
dificuldade que nos parece ser muito significativa neste tipo de situaccedilatildeo a de se incorrer no
grave risco de se cometer um anacronismo textual histoacuterico e teoloacutegico372 e desta forma
sugerir um teoacuterico dilema teoloacutegico que para Justino e seus contemporacircneos possivelmente
natildeo era nem sequer um problema doutrinal
Passando agora efetivamente ao texto este diz ldquoNa verdade a paciecircncia que Deus
mostra em natildeo fazecirc-lo imediatamente tem como causa o seu amor pelo gecircnero humano pois
ele prevecirc que alguns se salvaratildeo pela penitecircncia entre os quais alguns que talvez ainda natildeo
368 CREDO NICENO-CONSTANTINOPOLITANO 7ordm Artigo
369 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
370 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
371 Ver SANTOS Justino o Maacutertir ndash Calvinista ou Arminiano 2014 Disponivel em
httpswwwgospelprimecombrjustino-martir-calvinista-arminiano
372 VIRKLER Hermenecircutica Avanccedilada Princiacutepios e Processos de Interpretaccedilatildeo Biacuteblica 2001
89
tenham nascidordquo373 Iniciamos esta parte de um ponto elementar da teologia de Justino374 ao
qual abordaremos mais detalhadamente a frente contudo compreendemos que sua aplicaccedilatildeo
neste item natildeo eacute apenas orientativa mas tambeacutem qualitativa para o restante da argumentaccedilatildeo
Um fato muito criativo do pensamento filosoacutefico de Justino se apresenta quando o
Apologista passa a enfatizar a existecircncia do Logos como o Cristo revelado Isto para Justino eacute
uma asserccedilatildeo de valores pontuais em uma escala ascendente que com facilidade se encontram
e se envolvem em sistemas transcendentais Wachholz elucida a abrangecircncia do termo Logos
dizendo o seguinte
O termo Logos (grego) quer dizer ldquopalavrardquo e tambeacutem ldquorazatildeordquo Segundo os gregos
nossa mente consegue compreender por que participa de alguma maneira do Logos
ou razatildeo universal Justino assume este discurso afirmando que em Jesus Cristo esse
Logos que se fez carne Jesus eacute fonte de todo o conhecimento375
Torna-se necessaacuterio entendermos a notoriedade que Justino aplica agrave onipotecircncia
onisciecircncia e preexistecircncia de Cristo em sua atuaccedilatildeo salviacutefica a partir deste ponto questotildees
(atributos divinos) as quais devemos considerar como absolutamente factiacuteveis no entendimento
do Apologista pois satildeo atributos da Escritura Sagrada ou seja satildeo consideradas evidecircncias
inquestionaacuteveis da vontade Divina (ativa e passiva) na leitura de Justino Poreacutem o ponto de
repouso deste exame se concentra na primeira parte do texto onde novamente Justino enfatiza
sua clarificaccedilatildeo de um estado de conformidade entre ideias e objetos (Verdade)
Mesmo o pensamento de Justino estando alavancado a uma espeacutecie de meacuterito para a
salvaccedilatildeo eacute evidente que sua afirmaccedilatildeo a soberania de Deus ndash a quem adjetiva como
ldquopacienciosordquo ndash caracteriza que esta benesse estaacute intimamente unida ao contexto temaacutetico que
podemos definir como amor de Deus O relato Apostoacutelico a Igreja em Corinto jaacute registrava a
seguinte afirmaccedilatildeo ldquoPorque todas as coisas existem por amor de voacutesrdquo (2 Coriacutentios 415a)
Carver diraacute sobre essa passagem que ldquoA expressatildeo tudo isso eacute por amor de voacutes explica o
acreacutescimo de convosco no versiacuteculo anterior O sofrimento de Paulo eacute um chamado ou uma
daacutediva que ele compartilha com toda a igrejardquo376 Da mesma forma notamos que Justino sofria
373 JUSTINO I Apologia XXVIII 2 grifo nosso
374 DROBNER Manual de Patrologia 2008
375 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 60
376 CARVER In A Segunda Epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006 p 427
90
por este grupo chamado a viver a Verdade o qual neste quadro eacute pintado como a resistecircncia
que manifesta esse amor imerecido e incondicional
Na descriccedilatildeo o Apologista nos parece transparecer com certa naturalidade seu intuito
em tentar provar algo como tambeacutem busca possivelmente sanar um erro (o do porquecirc este
juiacutezo de Deus ainda natildeo se manifestou) No entanto esse cenaacuterio eacute aplicado como uma forma
de ldquotranscriccedilotildeesrdquo que satildeo provenientes das afirmaccedilotildees e revelaccedilotildees inquestionaacuteveis para a
percepccedilatildeo de Justino por estarem devidamente relacionadas aos misteacuterios do Evangelho ao
qual ele servia Inclusive Justino claramente submetia sua razatildeo aos enigmas que a feacute em Cristo
natildeo lhe elucidava satisfatoriamente mas tambeacutem natildeo abalava sua convicccedilatildeo nesta feacute que ldquonatildeo
soacute eacute boa e santa em si mesma mas acima de tudo eacute a uacutenica religiatildeo verdadeirardquo377 Por fim
apontamos neste contexto (verso 2) aquilo que com clareza descreve esta certeza teoloacutegica
ancorada no Apologista que de forma contumaz declara que ldquoNa verdaderdquo378 algo se revelava
e condensava-se nos coraccedilotildees daqueles que o recebiam
Apoacutes descrevermos de maneira introdutoacuteria parte de nossa periacutecope base passamos a
uma abordagem sinteacutetica de uma faceta importantiacutessima de nosso autor para a construccedilatildeo do
restante desta pesquisa Comeccedilamos de imediato a elaborar uma descriccedilatildeo do filoacutesofo Justino
apresentando um resumo de sua jornada no mundo da ldquosabedoriardquo helecircnica descrevendo quais
foram suas principais influecircncias neste meio e quais desiacutegnios esta ascendecircncia deixou em sua
teologia
32 O FILOacuteSOFO JUSTINO
Os acontecimentos relacionados agrave vida de Justino nos direcionam ndash podemos ateacute
mesmo dizer que incontestavelmente nos norteiam ndash para um mesmo ponto de convergecircncia
independentemente da aacuterea ou fase que procuremos abordar sobre esta Desde cedo ateacute o fim
de sua jornada ministerial Justino nos apresentaraacute influecircncias significativas do meio intelectual
ao qual havia pertencido desde sua juventude e ao qual nunca abandonou pelo contraacuterio fez
deste seguimento o ponto principal de irradiaccedilatildeo de sua teologia379 tornando-o necessariamente
uma peccedila-chave para agrave compreensatildeo de suas obras
Este ponto de equiliacutebrio na vida de Justino se daacute principalmente no fato de este ser
um filoacutesofo ao qual podemos catalogar como claacutessico em sua formaccedilatildeo (de origem helecircnica)
377 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 47
378 JUSTINO I Apologia XXVIII 2 grifo nosso
379 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
91
natildeo necessariamente por enquadrar-se ldquono modo de pensar e exprimir os pensamentos que
surgiu especificamente com os gregosrdquo380 mas especialmente na virtude apresentada por sua
filosofia que desde cedo natildeo se pautou por um caraacuteter meramente especulativo sem um fim
praacutetico em si mesma mas sim notabiliza-se pela ldquobusca da sabedoria e da verdaderdquo381 como
estados beneacuteficos disponiacuteveis para serem procurados conhecidos e vivenciados por todos os
homens
O primeiro historiador da Igreja nos comprova tal fato assinalando o claacutessico teor
filosoacutefico existente no Apologista os termos de Euseacutebio muito nos dizem a respeito do
ministeacuterio de Justino
Tambeacutem por este tempo Justino sincero amante da verdadeira filosofia continuava
ainda ocupado em exercitar-se nas doutrinas dos gregos [] Mas sobretudo foi nesta
eacutepoca que floresceu Justino Com estofo de filoacutesofo era embaixador da palavra de
Deus e lutava pela feacute com seus escritos382
A doutrina cristatilde encontrada em Justino ndash sua compreensatildeo ativa sobre o que era o
cristianismo como agrave religiatildeo salviacutefica do verdadeiro e uacutenico Deus aos homens ndash foi recebida
e necessariamente desenvolvida por ele atraveacutes de um filtro ou podemos ateacute mesmo dizer por
uma forma de catalisador Este ensino constituiacutea-se de diversas mateacuterias filosoacuteficas nas quais
a diversidade conceitual e estiliacutestica das muitas escolas sapienciais da eacutepoca foram agregadas
ao experimento (de caraacuteter circunspecto) do Apologista383 Notamos deste modo em muitos
aspectos em particular que Justino foi exercitado a uma postura pragmaacutetica de seu tempo a
qual necessariamente o contingenciou a algumas demandas de sua ordem puacuteblica provenientes
de seu status sociorreligioso Neste aspecto a abordagem de Wachholz nos atualiza e ilumina
sobre este cenaacuterio ele diz
A cultura claacutessica pagatilde incluiacutea obra e pensamento de Platatildeo Aristoacuteteles e dos estoicos
que eram muito admirados Rejeitar tais pensamentos era assumir posiccedilatildeo de
ignoracircncia Para os cristatildeos por outro lado aceitar toda esta carga de cultura poderia
tambeacutem significar concessatildeo ao paganismo e comeccedilo de uma nova idolatria Diante
380 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995 p 21
381 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 278
382 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 3 11 8
383 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
92
desta alternativa somente havia dois caminhos possiacuteveis oposiccedilatildeo radical entre feacute
cristatilde e cultura pagatilde ou postura natildeo tatildeo negativa em relaccedilatildeo agrave cultura pagatilde384
A histoacuteria nos testifica que Justino de maneira evidente foi um baluarte em sua postura
de proclamador e representante da feacute cristatilde mais ainda portou-se de maneira excepcional
(como testificam seus procedimentos) no exerciacutecio de sua crenccedila fosse isso relacionado ao seu
foro iacutentimo (Igreja) ou no puacuteblico (social)
Desta forma eacute interessante e necessaacuterio reconhecer que Justino se apresentaraacute como
uma espeacutecie de precursor entre aqueles que eram oriundos da filosofia e que ldquohabitavamrdquo
especialmente em meio agrave cultura helecircnica385 contudo natildeo era o uacutenico Assim estes (filoacutesofos
convertidos ao cristianismo) passando agora a praticar os novos haacutebitos e costumes (modus
vivendi) recebidos do cristianismo natildeo abandonaram de forma absoluta suas praacuteticas cotidianas
do passado ndash ou poderiacuteamos tambeacutem chamaacute-las de ordinaacuterias ndash as quais eram vivenciadas
dentro de um sistema pedagoacutegico da filosofia por assim dizer Isso ocorreu simplesmente
porque tais accedilotildees natildeo requeriam tal censura devido a sua natildeo contrariedade com a Doctrina
Sanctorum que orientava os cristatildeos386 Obviamente tais disposiccedilotildees eram amplamente revistas
e reformuladas com um vieacutes cristatildeo embora mantendo uma estrutura didaacutetica proacutepria e ateacute
mesmo peculiar387 pois na praacutetica estes novos mestres cristatildeos agora ensinavam ldquoexatamente
como os filoacutesofos mas em conformidade com Cristordquo388
Vale-nos ressaltar ainda que essa postura de adaptaccedilatildeo dos convertidos do paganismo
para o cristianismo se desencadeou em muitos segmentos da realidade social do periacuteodo389
especialmente naqueles que se identificavam com as ciecircncias da eacutepoca Indiscutivelmente
nisto Justino se destacou pois seus ldquoconhecimentos filosoacuteficos eram muito profundosrdquo390
Neste ponto novamente recorremos a um registro de Wachholz que nos descreve com clareza
este processo de identificaccedilatildeo na figura de Justino
384 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 58
385 Alguns pesquisadores apresentam Aristides de Atenas como o primeiro filoacutesofo (Grego) propriamente
convertido ao cristianismo a escrever uma obra apologeacutetica Entretanto faltam evidecircncias mais robustas para
sustentar tal afirmaccedilatildeo Ver INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p
50-51
386 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
387 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991
388 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
389 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997
390 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47
93
Por outro lado houve tambeacutem aqueles que defenderam uma postura ldquoconciliatoacuteriardquo
entre feacute cristatilde e cultura pagatilde Justino (110-165) foi um destes representantes que natildeo
deixou de ser filoacutesofo mas passou a dedicar-se em fazer ldquofilosofia cristatilderdquo abrindo
caminho para que o cristianismo pudesse reclamar tambeacutem para si a cultura claacutessica
apesar de ser cultura pagatilde391
Sendo o registro histoacuterico uma peccedila fundamental na elaboraccedilatildeo e construccedilatildeo
conceitual desta pesquisa entendemos ser emblemaacutetico trazer-se agrave tona alguns registros de
pesquisadores que atestam entre si acometimentos similares isso se daacute quando mencionam
pontos que caracterizam a figura de Justino como um distinto representante da Filosofia
mediante sua penetraccedilatildeo investigaccedilatildeo e conclusatildeo dos fatos algo que era ndash como se viu
anteriormente ndash relevante na busca de respostas junto ao meio sociorreligioso ao qual estava
inserido
Deste modo dando seguimento ao nosso intento de esclarecer historicamente um
pouco mais a respeito deste personagem cristatildeo oriundo da filosofia grega392 eacute que registramos
o seu desenvolvimento a parti das palavras de Walde ldquoJustino continuou usando a capa que o
identificava como filoacutesofo e ensinou estudantes em Eacutefeso e depois em Romardquo393 O relato ainda
se estende sobre a pesquisa de Walde poreacutem agora registrando o pensamento de Schaff este
diz ldquoEle havia adquirido cultura claacutessica e filosoacutefica consideraacutevel antes de sua conversatildeo e
entatildeo a fez ficar subordinada a defesa da feacuterdquo394 Ainda sobre esta esteira agregamos outras duas
elaboraccedilotildees A primeira estaacute no trabalho de Xavier que se baseia no pensamento de Fluck E
somado a ela encaixamos a siacutentese de Wachholz sobre Justino Ambos convencionam ideias
similares quando retratam o Apologista e por consequecircncia acabam por se moverem
metodologicamente na mesma direccedilatildeo
Em sua caminhada cristatilde ensinou estudantes em Eacutefeso e chegou a Roma em 150 dC
onde fundou uma escola filosoacutefica debatendo com natildeo-cristatildeos tanto pagatildeos quanto
judeus ou hereges em defesa do cristianismo Para Justino o cristianismo era a
391 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 59
392 Eacute importante que se diga que a Filosofia (a qual no acircmbito do conceito moderno eacute entendida como uma ciecircncia
da aacuterea de estudos Humanos) permaneceu completamente associada a consciecircncia de Justino durante todo o
periacuteodo de sua atuaccedilatildeo teoloacutegica Partindo-se do fato de que a vida de Justino se encerrou no martiacuterio podemos
concluir que de sua conversatildeo ateacute sua morte nunca houve um ldquoJustinordquo que tambeacutem natildeo fosse um filoacutesofo Ver
HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29-30
393 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 1
394 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 715
apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 1
94
ldquoverdadeira filosofiardquo sendo que os cristatildeos eram ldquoos autecircnticos herdeiros da
civilizaccedilatildeo greco-romanardquo395
Tornou-se cristatildeo aos 25 anos de idade apoacutes ter estudado filosofia o que o levou a
fazer uma siacutentese entre teologia e filosofia afirmando que a feacute cristatilde eacute a forma plena
de toda a filosofia Em sua escola em Roma ensinava entatildeo a ldquoverdadeira filosofiardquo
Boa parte de seu labor consistia em descobrir e explicar as relaccedilotildees entre o
cristianismo e a sabedoria claacutessica396
Finalizando esta seacuterie de registros cabe-nos ainda citar algumas relevantes
argumentaccedilotildees A primeira condicionada por Gonzaacutelez nos traz uma definiccedilatildeo da histoacuteria de
Justino em questotildees junto a filosofia ele diz ldquoAo se converter ao cristianismo Justino natildeo
deixou de ser filoacutesofo mas dedicou-se a fazer filosofia cristatilde e boa parte dessa filosofia
consistia em descobrir e explicar as relaccedilotildees entre o cristianismo e a sabedoria claacutessicardquo397 A
segunda elaborada por Daniel-Rops diz ldquoFoi uma fase importante para a histoacuteria do
pensamento cristatildeo que com Justino passou a ser tomado a seacuteriordquo398 Esta ecircnfase somada ao
primeiro apontamento nos afirma uma importante contribuiccedilatildeo para o meio Patriacutestico pois
trabalha com paracircmetros qualitativos referentes agrave relevacircncia da figura de Justino como
articulador filosoacutefico e sucessivamente no meio teoloacutegico como um exegeta399 nos levando a
considerar deste modo que a formaccedilatildeo dogmaacutetica em seu sentido histoacuterico passa
necessariamente por afirmaccedilotildees como esta
Portanto eacute impossiacutevel caracterizar Justino como um pensador e teoacutelogo fora da
filosofia claacutessica pois o personagem que veio a fundar escolas filosoacuteficas cristatildes (primeiro em
Eacutefeso e depois em Roma)400 deve ser compreendido como um autecircntico ldquoamante da sabedoriardquo
Neste quesito distintivo no caso de Justino em especial um agravante modal deve aqui ser
aplicado sendo que esta caracteriacutestica de caraacuteter peculiar eacute o proacuteprio processo de conversaccedilatildeo
ao cristianismo que em seu entendimento ldquoo transformou em um verdadeiro filoacutesofordquo401 arauto
395 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2009 p 32 apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da
Feacute Cristatilde 2014 p 15 grifo nosso
396 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 59 grifo nosso
397 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 91
398 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
399 Ver HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 31-32
400 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
401 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 28
95
da verdadeira sabedoria ndash peccedila final a qual Justino possivelmente exigiria como um
complemento fundamental na elaboraccedilatildeo dessa descriccedilatildeo
Dando seguimento agrave nossa construccedilatildeo ainda nos eacute necessaacuterio examinar duas questotildees
relevantes junto a postura filosoacutefica de nosso autor A primeira estaacute relacionada aos seus
pressupostos na Filosofia como aacuterea de estudo propriamente na qual o estoicismo e o
platonismo se destacam no cenaacuterio em seguida naquilo que possivelmente se tornou a principal
elaboraccedilatildeo teoloacutegica deixada como teoria por Justino a sua concepccedilatildeo do Logos Eterno
321 Estoicismo e Platonismo em Justino
Quando pesquisamos a respeito de quais seriam as principais influecircncias da filosofia
grega que poderiacuteamos encontrar em Justino logo nos saltam aos olhos duas linhas majoritaacuterias
do pensamento histoacuterico filosoacutefico e que tiveram fundamental importacircncia na formaccedilatildeo
intelectual deste Pai da Igreja Desta forma torna-se indispensaacutevel falar do estoicismo e do
meacutedio platonismo402 como elementos filosoacuteficos na vida de Justino pois a anaacutelise dessas
escolas sapienciais junto agrave construccedilatildeo de nosso objetivo de pesquisa apresenta-se como
fundamental para a compreensatildeo do cristianismo apresentado por Justino403
Nossa intenccedilatildeo nesta construccedilatildeo natildeo eacute haacute de se estabelecer um relato minucioso sobre
os aportes princiacutepios e valores filosoacuteficos de Zenon de Ciacutecio (fundador do estoicismo) nem
mesmo dos seguidores ideoloacutegicos do legado de Platatildeo os quais sustentavam no presente
periacuteodo a fase denominada de meacutedio platonismo Pelo contraacuterio visamos apenas retratar de
maneira sinteacutetica a influecircncia dessas escolas no pensamento apologeacutetico do Seacuteculo II tendo a
pessoa de Justino como alvo central e em alguns momentos ateacute mesmo exclusivo neste exame
O advento do Seacuteculo II trouxe consigo um contato mais amplo e consequentemente
tambeacutem mais vantajoso das correntes filosoacuteficas gregas para com o ocidente de uma maneira
em geral Influenciada especialmente pela administraccedilatildeo e organizaccedilatildeo do Impeacuterio Romano agrave
discussatildeo sobre a importacircncia e a manutenccedilatildeo dessas identidades intelectuais (escolas
filosoacuteficas) tornou-se muito ativa especialmente para o meio aristocraacutetico de entatildeo404 Sendo
402 O meacutedio platonismo teve seu iniacutecio no Seacuteculo I aC com Antioco de Ascalona e vai ateacute aproximadamente o
Seacuteculo II dC Entre os seus principais representantes encontram-se os nomes de Filo de Alexandria Apuleio e do
bioacutegrafo Plutarco Este recorte temporal eacute um dos pontos que justifica a nossa opccedilatildeo pelo uso do termo meacutedio
platonismo uma vez que coincide com o periacuteodo de Justino Ver EMILSSON Neo-Platonism 1999 p 358
AUDI The Cambridge Dictionary of Philosophy 1999 p 567 apud SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II
dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 123
403 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
404 CARCOPINO Roma no Apogeu do Impeacuterio 1990
96
o cristianismo cada vez mais presente na estrutura sociorreligiosa do Impeacuterio natildeo demorou
para se considerar ldquotambeacutem os leitores natildeo-cristatildeosrdquo405 como parte do exame teoloacutegico dos
Pais No entanto os mestres e principais arautos dessas claacutessicas estruturas filosoacuteficas eram
pagatildeos em seu modo de vida espiritual o que ocasionou ndash quase automaticamente ndash uma
investidura por parte dos Pais (remodelaccedilatildeo cristatilde) das concepccedilotildees filosoacuteficas de alguns
autores claacutessicos do paganismo Como consequecircncia desse processo o periacuteodo dos Pais
Apologistas se confirma e se engrandece de maneira significativa na histoacuteria cristatilde devido ao
seu importante conteuacutedo teoloacutegico406 desenvolvido a partir dessa adaptaccedilatildeoremodelaccedilatildeo
Voltando precisamente para a pessoa de Justino vemos a partir da pesquisa de Walde
ndash o qual soma seu pensamento a Falls ndash o estabelecimento de uma expressiva comunicaccedilatildeo
entre Justino e as escolas filosoacuteficas apresentadas Walde escreve ldquoComo jovem adulto
mostrou interesse por filosofia e estudou primeiramente estoicismo e platonismo Justino
buscava a Deus que eacute a meta da filosofia de Platatildeo diziardquo407 Este retrato dos fatos nos
demonstra com clareza que o diaacutelogo do Apologista com as referidas escolas filosoacuteficas
norteou sua formaccedilatildeo intelectual de forma significativa
A primeira experiecircncia de fato com a filosofia grega e a qual podemos afirmar ter
deixado marcas consideraacuteveis na vida de Justino foi com a escola estoica Em sua busca da
autecircntica sabedoria Justino comeccedilou a frequentar as aulas de um mestre estoico408
provavelmente ainda em sua cidade natal Se tratando de sua experiecircncia com o estoicismo em
particular o Apologista nos oferece um relato autobiograacutefico no qual informa detalhes
interessantes referentes a sua jornada pela Verdade ldquoEu mesmo no iniacutecio desejando tambeacutem
reunir-me com algum deles (mestres filoacutesofos) coloquei-me nas matildeos de um estoico e passei
bastante tempo com elerdquo409
O interessante nessa narraccedilatildeo eacute que o expressivo contato de Justino com o estoicismo
natildeo surtiu nele o beneacutefico resultado que Justino parecia esperar Efetivamente Justino afirma
em seu Diaacutelogo com Trifatildeo ldquoTodavia percebi que nada me adiantava para o conhecimento de
Deus pois nem sequer ele sabia nada nem dizia que esse conhecimento era necessaacuterio Entatildeo
405 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 140
406 Ver DROBNER Manual de Patrologia 2008 p76-80
407 FALLS The Fathers of the Church 1948 p 151 apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p
1
408 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
409 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 3a grifo nosso
97
separei dele e dirigi-me a outrordquo410 Kelly inclusive salienta mediante a auto narraccedilatildeo de
Justino que parece ter havido um esforccedilo da parte deste em se apropriar ndash ou melhor se
aprofundar ndash das maacuteximas da doutrina estoica Isso devido especialmente ao seu ldquoelevado
padratildeo moral ainda que um tanto impessoalrdquo411 mas com um forte apelo agrave posturas e posiccedilotildees
que estabeleciam um padratildeo moralmente bom para seus praticantes preceitos que eram de
alguma maneira dogmatizados pela doutrina estoica na tentativa de se alcanccedilar ldquouma norma
para os humanos seguiremrdquo412 Dessa forma os praticantes de tal sistema chegavam aquilo que
poderiacuteamos (forccedilosamente) definir como o verdadeiro conhecimento do ldquoSerrdquo e da ldquoEsferardquo
divina pois a ldquovida moral eacute vista como assimilaccedilatildeo a Deus e como imitaccedilatildeo de Deusrdquo413
Contudo apoacutes um periacuteodo de deferecircncia a doutrina estoica ldquopareceu-lhe rudimentar e de uma
metafisica falazrdquo414 aleacutem do sistema natildeo conseguir ldquoesclarececirc-lo a respeito de Deusrdquo415 ou
seja o estoicismo natildeo pode oferecer as condiccedilotildees necessaacuterias para suprir os vaacutecuos e demandas
existecircncias de Justino
Entretanto o estoicismo como doutrina filosoacutefica teve uma significativa relevacircncia na
formaccedilatildeo de Justino como tambeacutem na construccedilatildeo teoloacutegica dos demais Pais Apologistas Na
anaacutelise desse cenaacuterio houve ateacute mesmo quem afirmasse que caso natildeo houvesse o encontro
entre o Poacutertico416 e a Igreja natildeo teria existido uma linguagem inteligiacutevel por parte da doutrina
cristatilde para alguns ambientes gentiacutelicos ou seja o ldquocristianismo seria incompreensiacutevelrdquo417 para
alguns segmentos que formavam o quadro sociorreligioso agrave eacutepoca Teses como essa levantam
questotildees pertinentes No caso em exame parece-nos que tal afirmaccedilatildeo havia se desenvolvido
como um marco referencial junto agrave Era Patriacutestica citada explicando tambeacutem deste modo o que
permitiu que esse conceito teoloacutegico-filosoacutefico viesse a se construir Neste processo as relaccedilotildees
de conformidade entre cristianismo e estoicismo foram absolutamente decisivas sendo o campo
410 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 3b
411 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 13
412 ALGRA In Teologia estoacuteica Os Estoacuteicos 2006 p 189
413 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 132
414 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 278
415 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 52
416 Poacutertico Ornado (ou Pintado) grego Stoagrave Poikiacutele Local na cidade de Atenas onde o filoacutesofo grego Zenon
(fundador do estoicismo) ensinava a seus disciacutepulos Ver SEDLEY In A Escola de Zenon a Aacuterio Diacutedimo Os
Estoacuteicos 2006 p 7-13
417 POHLENZ La Stoa storia di un movimento spirituale 1967 p 397 apud PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia
Patriacutestica 1999 p 131
98
moral junto agrave formaccedilatildeo dogmaacutetica cristatilde ndash poderiacuteamos ateacute mesmo chamaacute-lo de eacutetico ndash decisivo
nessa correlaccedilatildeo (modelagem) de valores
Entre os fatos desse paralelismo ideoloacutegico vemos o otimismo religioso expressado
pelo estoicismo que encontrou de forma geral na consciecircncia dos Pais (ateacute o Seacuteculo III) uma
beneacutevola e favoraacutevel proximidade com a Divindade onipotente e onipresente a qual os
Apologistas reconheciam especialmente na figura de Deus Pai e em sua traduccedilatildeo do Ser
absoluto cenaacuterio que agora expressava-se inclusive na manifestaccedilatildeo Deste (Deus) em uma
relaccedilatildeo de perfeita imanecircncia com seus eleitos Minuacutecio Feacutelix (Apologista do final do Seacuteculo
II) retrata com clareza esse conceito gerado no meio Apologista fruto da relaccedilatildeo destes com os
ditames estoicos ldquonatildeo soacute estaacute perto de noacutes como tambeacutem dentro de noacutes [] natildeo soacute vivemos
sob seu olhar como tambeacutem em seu seiordquo418
Neste contexto ainda vale-nos identificar uma caracteriacutestica peculiar da relaccedilatildeo de
Justino com o estoicismo Trata-se das interpretaccedilotildees escrituriacutesticas desenvolvidas por meio de
meacutetodos alegoacutericos Essa metodologia jaacute estava em uso no meio cristatildeo e jaacute antes era
amplamente ldquodifundida tambeacutem entre os filoacutesofos gregos sobretudo os estoicos com o objetivo
de fazer enquadrarem-se as tradicionais faacutebulas mitoloacutegicas com as suas ideiasrdquo419 Justino se
torna ldquoceacutelebrerdquo no meio Patriacutestico tambeacutem por sua exegese atestando isso quando passa a
unificar textos referentes a economia da Antiga e Nova Alianccedilas fazendo uso em muitos
momentos da teacutecnica citada
Desta forma mormente veremos na construccedilatildeo teoloacutegica de Justino que se encontram
traccedilos desse sistema da filosofia grega que se fizeram notoacuterios em seu registro apologeacutetico
Santos ao citar Staniforth retrata com precisatildeo essa inspiraccedilatildeo e sua contribuiccedilatildeo junto ao
trabalho do Apologista Aleacutem disto consegue descrever com clareza e harmonia agrave postura de
Justino referente sua interpretaccedilatildeo das bases substanciais do estoicismo Santos assim registra
essa relaccedilatildeo
Segundo Staniforth os elementos que predominavam no cristianismo antes de seu
contato com o estoicismo eram os morais e espirituais jaacute os intelectuais eram
subordinados a estes Ele acrescenta poreacutem que ldquoquando a mensagem se espalhou
para aleacutem dos confins da Palestina e as suas implicaccedilotildees foram assimiladas pelos
pensadores de outras terras fez-se sentir a necessidade de concepccedilotildees mais exatas da
verdaderdquo (STANIFORTH 2002 p 20) [] Entre outras coisas citadas por Staniforth
estatildeo ainda a noccedilatildeo de unidade divina a ideia de que os homens satildeo filhos de Deus
e participam da sua natureza e procuram fazer sempre o bem (STANIFORTH 2002
418 MINUacuteCIO FEacuteLIX Otaacutevio 32-33
419 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1146
99
p 22) Justino traz uma argumentaccedilatildeo inversa Segundo ele os imitadores satildeo os
demais povos ldquonatildeo somos noacutes que professamos opiniotildees iguais aos outros e sim
todos por imitaccedilatildeo repetem as nossas doutrinas (JUSTINO I Apologia LX 10)rdquo420
Sendo jaacute anteriormente caracterizado por meio do relato da vida de Justino a elementar
decepccedilatildeo de Justino pelo estoicismo como doutrina a ser seguida levou-o a uma nova fase na
sua busca do ldquoideal da sabedoria perfeitardquo421 Assim seu intento redirecionou-se para outras
esferas da filosofia grega passando por algumas experiecircncias variadas por meio de suas
relaccedilotildees com outras escolas sistemas e mestres Neste cenaacuterio naquilo que possuiacutemos relatos
confiaacuteveis Justino chegou a conviver com ldquoum peripateacutetico e um pitagoacutericordquo422 sempre
buscando alcanccedilar seu intento maacuteximo como amante do saber
Por fim a escola platocircnica tornou-se sua uacuteltima instacircncia de apelo nessa busca intensa
pelo saber supremo que inclusive ele imagina ter alcanccedilado ldquona filosofia (meacutedio) platocircnicardquo423
fazendo desse caso em especiacutefico (platonismo) o encontro ldquomais positivordquo424 Neste ponto
compreendemos que o desenvolvimento do pensamento teoloacutegico que encontramos
futuramente estabelecido em Justino eacute o que o constituiu categoricamente como um filoacutesofo
cristatildeo e foi principalmente detalhado pela influecircncia desta corrente filosoacutefica (platonismo)
mais do que por sua experiecircncia com os demais sistemas O ponto de vista de Xavier colabora
com nossa anaacutelise transmitindo a mesma ideia
A procura incansaacutevel pela verdade levou Justino a se tornar um distinto filoacutesofo do
pensamento grego adotando principalmente a filosofia de Platatildeo que para ele tinha
muita semelhanccedila com os ensinamentos judaicos no que diz respeito agrave Palavra de
Deus (Logos Verbo)425
Eacute portanto necessaacuterio fazer ainda que rapidamente algumas consideraccedilotildees geneacutericas
referentes agrave influecircncia desse importante sistema filosoacutefico (platonismo) no contexto
sociorreligioso ao qual Justino estava inserido O chamado meacutedio platonismo teve singular
420 STANIFORTH In Introduccedilatildeo Meditaccedilotildees 2002 apud SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma
Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 119 122
421 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 25
422 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 27
423 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 83
424 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 119
425 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 15
100
influecircncia junto ao meio teoloacutegico cristatildeo em meados do Seacuteculo II Sua importacircncia em
questotildees como a metafiacutesica por exemplo ldquodeterminou profundamente a compreensatildeo
teoloacutegicardquo426 dos Pais Apologistas Ainda neste cenaacuterio eacute necessaacuterio afirmar que na eacutepoca o
pensamento de Platatildeo estruturado pela manutenccedilatildeo de seus seguidores (meacutedio platonismo)
plasmou-se quase que na totalidade dos seguimentos ditos intelectuais do periacuteodo ocasionando
um expliacutecito e permanente ldquodesenvolvimento do saber filosoacutefico e portanto da cultura
ocidentalrdquo427 a qual teve sua formaccedilatildeo por meio da mecanicidade da Filosofia propriamente
reconhecida como cristatilde em sua formaccedilatildeo
Voltando especificamente para nosso autor retratamos com certa facilidade ndash por se
considerar a questatildeo como um ponto paciacutefico referente agrave figura de Justino ndash sua ampla e notoacuteria
relaccedilatildeo com os ensinamentos baseados na doutrina de Platatildeo Insuelas nos diz que Justino
possivelmente procurou o sistema platocircnico porque este ldquogozava naquele tempo de grande
reputaccedilatildeo e era seguido por homem de valorrdquo428 Fato eacute que Justino progrediu de maneira
consideravelmente raacutepida na doutrina pois ldquoesperava que na filosofia de Platatildeordquo429 veria
imediatamente a Deus questatildeo (enxergar agrave Divindade) que nos indica uma praacutetica
contemplativa que provavelmente levou o jovem filoacutesofo a peregrinar isoladamente ateacute a praia
onde em algum momento ocorreu sua conversatildeo ao cristianismo Utilizamos ainda a ecircnfase
dada por Daniel-Rops a este caso o qual salienta que nesse acesso para a doutrina platocircnica
Justino deu o ldquopasso decisivo levando-o a ver que o uacutenico fim verdadeiro da filosofia era o
conhecimento de Deusrdquo430
Outra descriccedilatildeo que se soma a esta tese nasce das palavras do proacuteprio Justino na sua
I Apologia Estas construccedilotildees do Apologista ganham eficaacutecia e nitidez quando retratadas por
Euseacutebio em seu relato histoacuterico Elas apresentam um Justino intreacutepido e resoluto movendo-se
na eficaacutecia daquilo que encontrou em sua jornada tornando-se desta maneira em um ldquosincero
amante da verdadeira filosofiardquo431 Quanto ao platonismo descrito pelo autor em sua
experiecircncia Euseacutebio escreve
426 SANTOS Platonismo e cristianismo Irreconciabilidade Radical ou Elementos Comuns 2003 p 335
427 SEVERINO A Filosofia Antiga 1984 p 81
428 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 52
429 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
430 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 278
431 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 3 grifo nosso
101
Na mesma obra demonstra que sua conversatildeo da filosofia grega agrave religiatildeo natildeo se fez
sem razatildeo mas com juiacutezo escreve o seguinte ldquoporque tambeacutem eu mesmo que me
comprazia nos ensinamentos de Platatildeo ao ouvir as caluacutenias contra os cristatildeos e vecirc-
los irem intreacutepidos para a morte e para tudo que eacute terriacutevel comecei a pensar que natildeo
era possiacutevel que aqueles homens vivessem na maldade e no amor aos prazeresrdquo432
Seguindo no mesmo contexto vemos que Justino no capiacutetulo II de seu Diaacutelogo com
Trifatildeo agrega agrave sua biografia um relato exponencial no qual nos descreve um encontro com um
filoacutesofo platocircnico na cidade de Flaacutevia Neaacutepolis Justino como vimos acima foi procurar este
mestre a fim de conferenciarem sobre temas de relevacircncia para o Apologista Assim havendo
ldquoaprendido bastante do platonismordquo433 Justino envolto de uma acentuada euforia ateacute mesmo
presumiu (erroneamente) haver obtido um distinto conhecimento de superior e incomparaacutevel
qualidade todavia por fim salientou uma conclusatildeo ambiacutegua e de aspecto desfalecente sobre
esta experiecircncia quando se referiu as coisas que em determinado momento lhe pareciam
absolutamente certas e vivazes Ele nos afirma foi ldquotornado saacutebio num aacutetimo e minha estupidez
fazia-me esperar que de um momento para outro contemplaria o proacuteprio Deusrdquo434
No entanto cabe-nos apontar que mesmo diante desta pessimista afirmaccedilatildeo por parte
de Justino o platonismo de sua eacutepoca ldquotinha grande forccedila teiacutestardquo435 aleacutem de apresentar um
ldquoalto tocircnus moralrdquo436 expressatildeo que posteriormente em seu desenvolvimento teoloacutegico passou
a comprovar o cristianismo como o conjunto doutrinal por excelecircncia Sendo essa conclusatildeo
obtida na consequecircncia do emprego de sua metodologia dialeacutetica como teoria do conhecimento
ndash fato (dialeacutetica platocircnica) que jaacute abordamos anteriormente
No que se refere ao raciociacutenio de Justino que encontramos especificamente baseado
no ideaacuterio platocircnico notamos com certa facilidade que este conjunto de ideias o levou a
desenvolver em seus tratados (I e II Apologias e Diaacutelogo com Trifatildeo) algumas referecircncias que
se atestam como elementos de comparaccedilatildeo entre a filosofia grega e a feacute cristatilde Neste periacuteodo
(Seacuteculo II) o meio filosoacutefico grego jaacute registrava haacute algum tempo a noccedilatildeo de um Ser ou Estado
supremo437 ldquoque estaacute acima de todos os seres e do qual todos derivam sua existecircnciardquo438
432 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 5
433 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 119
434 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6
435 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
436 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
437 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994
438 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 16
102
Sabemos baseados em amplas evidecircncias textuais que a vida aleacutem da morte fiacutesica jaacute era
ensinada ou ateacute mesmo garantida por Soacutecrates439 No pensamento de Platatildeo esta teoria eacute
estruturada filosoficamente como uma realidade diferente mas igualmente atemporal a qual
existe aleacutem eou fora deste mundo440
Em Platatildeo detectamos um referencial que nos salienta sobre a expressividade agrave sua
ldquoexposiccedilatildeo da separaccedilatildeo e diferenccedila entre o mundo sensiacutevel (sentidos) e o mundo inteligiacutevel
(intelecto)rdquo441 fazendo com que a percepccedilatildeo humana seja uma espeacutecie de imagem da
realidade442 mas natildeo necessariamente a realidade em si Deste modo Platatildeo automaticamente
condicionava seus leitoresouvintes a compreender que aquilo que estava oculto (natildeo visiacutevel)
deveria pelo encontro com a pura razatildeo voltar ao seu estado inicial ou seja o Uno mesmo
que Platatildeo natildeo considerasse a ldquoForma do Bem ou o Um como Deus no sentido comum da
palavrardquo443 A tese do retorno ao Uno eacute uma performance originalmente desenvolvida na fase
denominada de meacutedio platonismo444
Justino nos demonstra com clareza sua relativa conformidade com essa ideia que de
uma maneira orientativa procurava dar coesatildeo e expressividade agrave realidade perceptiacutevel do
homem em encontrar o que era verdadeiro definido como o ldquonatildeo-escondidordquo445 para o espiacuterito
humano Poreacutem tambeacutem nos apresenta de forma incondicional uma clara distinccedilatildeo substancial
a este conceito segundo o qual ldquoo centro da esperanccedila cristatilde natildeo eacute a imortalidade da alma mas
a ressurreiccedilatildeo do corpordquo446 Corroborando a esta proposiccedilatildeo encontramos a posiccedilatildeo de
Wachholz que organiza o referido cenaacuterio em uma descriccedilatildeo cronoloacutegica embasada no
desenvolvimento do pensamento (dogma) cristatildeo do periacuteodo
Assim por exemplo percebia que tambeacutem Soacutecrates e Platatildeo afirmavam que existia
vida aleacutem da morte fiacutesica Platatildeo afirmava que este mundo natildeo esgota toda a realidade
mas que existe outro mundo de realidades eternas Neste sentido Justino concorda
439 A discussatildeo sobre a imortalidade da alma ndash a uacuteltima de que Soacutecrates participa no dia de sua morte ndash eacute narrada
na obra intitulada Feacutedon de Platatildeo Ver MALTA In Nota 103 Apologia de Soacutecrates 2008 p 97
440 SEVERINO A Filosofia Antiga 1984
441 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994 p 189 grifo nosso
442 Um exemplo claacutessico dessa ideia se encontra no Livro VII de sua obra intitulada A Repuacuteblica em uma alegoria
conhecida como o Mito da Caverna Ver PLATAtildeO A Repuacuteblica VII 514a-541b
443 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 12
444 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
445 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994 p 197
446 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 16
103
pois afirma que o centro da esperanccedila cristatilde natildeo estaacute na imortalidade da alma mas na
ressurreiccedilatildeo do corpo447
Amparado nesse conceito filosoacutefico Justino passa a desdobrar sua concepccedilatildeo sobre a
ideia do estado de um ldquomundo inteligiacutevelrdquo que passa a ser compreendido como a uacutenica
condiccedilatildeo pela qual as coisas satildeo eternas imutaacuteveis e incorruptiacuteveis constituindo deste modo
sua posiccedilatildeo sobre o que seria o proacuteprio ldquomundo de Deusrdquo possiacutevel de ser alcanccedilado Na visatildeo
platocircnica este mundo ideal soacute pode ser alcanccedilado pelo intelecto humano quando este eacute elevado
a seu patamar maacuteximo sendo isso possiacutevel somente por meio do auxiacutelio da filosofia Para
Justino essa filosofia soacute pode ser o cristianismo pois este foi revelado como a uacutenica Verdade
oferecida aos homens
Desta forma para Justino soacute mediante o cristianismo a concepccedilatildeo platocircnica de
alcanccedilar o mundo real torna-se possiacutevel No final da apresentaccedilatildeo de sua jornada entre as
escolas filosoacuteficas Justino nos relata que aquilo que fez com que ele se decidisse pela escola
platocircnica ndash entendendo que esta seria a melhor alternativa para desenvolver sua mente (razatildeo)
na tentativa de receber a verdadeira sapiecircncia ndash fosse agrave profunda admiraccedilatildeo inicial que ele
encontrou em alguns pontos que distinguiam a doutrina das demais ldquoprincipalmente com a
consideraccedilatildeo do incorpoacutereordquo448 mas tambeacutem pela referente ldquocontemplaccedilatildeo das ideiasrdquo449 as
quais ele afirma ldquodava asas agrave minha inteligecircnciardquo450
Nesta jornada de conhecimento Justino salienta que compreendia e admirava o
objetivo desse ensino que se demonstrava estaacutevel e possuiacutea intenccedilotildees muito nobres para agrave
natureza humana a ponto de afirmar que ldquoCom efeito esta eacute a meta da filosofia de Platatildeordquo451
Jaacute como cristatildeo Justino esclarece para o judeu Trifatildeo que ldquoVemos e estamos convencidos de
que por meio do nome de Jesus Cristo crucificado as pessoas se afastam da idolatria e de toda
iniquidade para aproximar-se de Deusrdquo452 ou seja somente um caminho leva definitivamente
a verdadeira filosofia e este caminho natildeo eacute a filosofia de Platatildeo
Apoacutes este raacutepido mas importante embasamento sobre a formaccedilatildeo filosoacutefica de nosso
autor ainda eacute necessaacuteria uma descriccedilatildeo final sobre os elementos filosoacuteficos estruturantes
447 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 59-60
448 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6a
449 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6a
450 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6a
451 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6b
452 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo XI 4
104
encontrados em Justino Entre estes insumos um se destaca consideravelmente como fruto da
ampla influecircncia deixada pelo predomiacutenio de suas bases filosoacuteficas (estoicismo e platonismo)
Desta forma o Logos em Justino seraacute o ponto central de anaacutelise a seguir
322 O Logos em Justino
Este ponto eacute fundamental para nossa descriccedilatildeo do pensamento de Justino como um Pai
Apologista Mesmo que nos falte uma sistematizaccedilatildeo sobre o tema Logos tanto em Justino
como tambeacutem nos demais representantes de sua Era Patriacutestica453 o Logos eacute um conteuacutedo
teoloacutegico fundamental para a histoacuteria do cristianismo e natildeo aparece com suficiente clareza em
nenhum outro escritor cristatildeo anterior a Justino que acaba por se evidenciar neste assunto de
forma muito significativa
Jaacute no Seacuteculo I a doutrina referente agrave PalavraVerbo divino era conhecida pelo
judaiacutesmo em sua forma posterior devido agrave grande influecircncia do filoacutesofo judeu Filo de
Alexandria O estoicismo como doutrina filosoacutefica tambeacutem foi muito atuante na elaboraccedilatildeo
do termo Logos como um conceito paralelo entre uma plena imanecircncia e uma total expressatildeo
do que eacute superior eou eterno454 O Evangelho de Joatildeo em seu proacutelogo (Joatildeo 11-5) nos oferece
o termo de forma sublime mesmo que o Logos em Joatildeo pareccedila ter sido influenciado por
Heraacuteclito455 Quanto agrave Patriacutestica em sua fase inicial (Pais Apostoacutelicos) Inaacutecio Bispo de
Antioquia parece ser a melhor opccedilatildeo de uma leitura consistente sobre a ideia de a Palavra
Divina preexistente ter sido anunciada antecipadamente aos homens das geraccedilotildees passadas
ldquoInspiraram-se (os profetas) em Sua graccedila a fim de que os increacutedulos se convencessem
plenamente que haacute um soacute Deus a manifestar-se por Jesus Cristo Seu Filho Sua palavra saiacuteda
do silecircncio que em tudo agradou Aquele que O enviourdquo456
Poreacutem vale-nos novamente frisar que aqui como em outras partes desta pesquisa natildeo
procuraremos ser exaustivos muito menos conclusivos especialmente tratando-se de uma
anaacutelise que possui uma conjuntura tatildeo extensa mas de maneira sucinta desenvolveremos uma
siacutentese que visa ser orientativa nesta definiccedilatildeo sobre o legado teoloacutegico do Apologista Justino
A relaccedilatildeo de Justino com esta temaacutetica filosoacutefica (Logos) foi ampla e profunda Eacute
possiacutevel condicionarmos jaacute a partir de Justino uma realidade conclusiva para o tema naquilo
453 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
454 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
455 TORRES A retoacuterica joanina do Logos 2016
456 INAacuteCIO Epiacutestola aos Magneacutesios VIII 2 grifo nosso
105
que ele se refere a revelaccedilatildeo cristatilde esta conclusatildeo estaacute na ldquoconcepccedilatildeo justiacutenica do Logos como
entidade divina intermediaacuteria entre Deus e o mundordquo457 Isso gerou uma nova perspectiva a
qual Justino com certa originalidade conceitual passa a definir o Logos como um agente que
jaacute orientava a humanidade antes mesmo de Sua encarnaccedilatildeo desejando por meio da ldquoIgreja com
a sua accedilatildeo missionaacuteriardquo458 tornar participantes todos os homens que por meio da feacute em Cristo
poderatildeo gozar da esperanccedila do cumprimento profeacutetico do segundo advento do Salvador
Em seu trabalho apologeacutetico Justino estabeleceu uma conjunccedilatildeo entre proposiccedilotildees
separadas mas que se demonstraram de uma mesma espeacutecie Esse ato invariaacutevel conectou de
maneira significativa o Logos459 da filosofia grega ndash aqui expresso em uma de suas definiccedilotildees
temporais do meio filosoacutefico sendo apresentado como o ldquoPrinciacutepio platocircnico mediador entre o
mundo sensiacutevel e o inteligiacutevelrdquo460 ndash com o Logos do Evangelho de Joatildeo ou poderiacuteamos dizer
da interpretaccedilatildeo feita pelo meio apologeacutetico cristatildeo do Seacuteculo II Tratando ainda um pouco mais
sobre o cenaacuterio histoacuterico envolvendo a realidade conceitual sobre o Logos Walde nos indica
este princiacutepio conectivo quando cita Schaff em um exame sobre esta teoria Vemos em sua
descriccedilatildeo que o historiador
Philip Schaff descreve o pensamento desta maneira O Logos eacute a razatildeo preacute-existente
absoluta pessoal e Cristo eacute a encarnaccedilatildeo dele o Logos encarnado Qualquer coisa
racional eacute cristatilde e qualquer coisa cristatilde eacute racional Os Logos dotaram a todos os
homens da razatildeo e liberdade que natildeo estavam perdidos desde a queda Ele espalhou
sementes da verdade antes de sua encarnaccedilatildeo natildeo soacute entre os judeus mas tambeacutem
entre os gregos e baacuterbaros sobretudo entre os filoacutesofos e poetas que satildeo os profetas
pagatildeos Os que viveram razoavelmente e virtuosamente em obediecircncia a esta luz
preparatoacuteria foram de fato cristatildeos ainda que natildeo no nome ao contraacuterio os que
viveram irracionalmente eram inimigos de Cristo Soacutecrates foi um cristatildeo assim como
Abraatildeo ainda que ele natildeo o conheceu461
457 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1147
458 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1148
459 O conceito de Logos derivado da filosofia contemporacircnea especialmente do estoicismo com sua doutrina da
razatildeo universal foi usado pelos Apologistas para explicar como Cristo se relacionava com Deus Pai Algo do
Logos diziam encontra-se em todos os homens Ver HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 23
460 Logos (grego loacutegograves) Substantivo masculino de dois nuacutemeros Significa 1 Palavra 2 Discurso 3 Linguagem
4 Estudo 5 Teoria Significado em aacutereas proacuteprias 1 Filosofia Razatildeo ou princiacutepio da inteligibilidade 2
Filosofia Princiacutepio platocircnico mediador entre o mundo sensiacutevel e o inteligiacutevel 3 Filosofia Forccedila divina ou
criadora que eacute organizadora do mundo 1 Teologia Cristo ou o Verbo de Deus segunda pessoa da Trindade Ver
Dicionaacuterio Priberam da Liacutengua Portuguesa ltDisponiacutevel em httpsdicionariopriberamorglogosgt Acesso em
27 de fev 2019
461 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 723
apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
106
Esta ideia por assim dizer protagonizou aquilo que possivelmente foi o primeiro
encontro consistente entre filosofia e teologia na Era atual (dC) O conjunto deste exerciacutecio
que vemos pouco tempo depois jaacute constituiacutedo na escola de Alexandria (aproximadamente 50
anos) sob a preeminecircncia de Clemente (Bispo de Alexandria)462 continuou a evoluir no
decorrer dos seacuteculos e encontrou seu aacutepice no movimento Escolaacutestico da Idade Meacutedia463
Contudo parece-nos que a funccedilatildeo do Logos propriamente empregado dentro da realidade
teoloacutegica cristatilde originalmente foi de alguma maneira semeada por Justino
Ainda sobre esta praacutetica hermenecircutica de se assemelhar a teorema dos filoacutesofos gregos
com a revelaccedilatildeo biacuteblica (ou Patriacutestica) notamos com facilidade a apresentaccedilatildeo de certas
evidecircncias que nos levam ao ldquoberccedilordquo da obra do Apologista Definitivamente Justino parece
agregar conceitos em seu relato que claramente evidenciam isto pois ldquoa principal contribuiccedilatildeo
dos apologistas (sendo Justino expoente no contexto) foi sua tentativa de correlacionar o
cristianismo com a erudiccedilatildeo grega tentativa que encontrou sua expressatildeo mais marcante na
teoria do Logos e sua aplicaccedilatildeo agrave cristologia (mateacuteria determinante em Justino)rdquo464
A teoria cristatilde sobre o Logos tem caraacuteter preceituador e exerceu impacto relevante na
histoacuteria dogmaacutetica cristatilde pois de maneira imperiosa tornou acessiacutevel a sua realidade intelectual
tanto intra quanto extra muros transmitindo a ideia de que ldquoeste Verbo este Logos que assim
iluminou progressivamente a mente humana eacute o proacuteprio Cristo tal como se revelou em Jesus
por meio do qual o pensamento e a vida encontraram o seu significadordquo465 Nesta mesma linha
Wachholz apresenta um paralelo forte desta soma de posiccedilotildees
Justino assume este discurso afirmando que em Jesus Cristo esse Logos que se fez
carne Jesus eacute fonte de todo o conhecimento Por outro lado Justino tambeacutem pode
afirmar que os pagatildeos tambeacutem puderam conhecer o Logos embora parcialmente
(inclusive Soacutecrates e Platatildeo) Os cristatildeos por sua vez conhecem o Logos tal qual ele
eacute por causa da encarnaccedilatildeo do mesmo em Cristo466
Devemos ainda agregar a influecircncia estoica ndash a qual neste ponto de forma mais direta
inspirou intelectualmente a Justino ndash agrave preponderacircncia junto a apresentaccedilatildeo do Logos como o
462 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
463 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
464 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 24 grifo nosso
465 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
466 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 59
107
princiacutepio elementar (material e imaterial) de todas as coisas existentes nos escritos de Justino
O estoicismo mais que o platonismo conseguia de modo mais teacutecnico467 e com maior rigor no
periacuteodo definir tanto a convicccedilatildeo teoloacutegica de Justino468 como de todo o segmento Apologista
cristatildeo Dreher consegue frisar tal relaccedilatildeo e consequecircncia desta realidade ldquoLogos eacute para os
estoicos a Razatildeo Universal que tudo penetra e tudo comanda que tudo ordena Tambeacutem Justino
viu no Logos a Razatildeo Universal mas que se teria revelado no cristianismo de maneira mais
perfeitardquo469
Outro importante apontamento que merece destaque estaacute na ideia de criaccedilatildeo e
manutenccedilatildeo operado pelos Logos Aqui enfatiza-se que tudo estava ordenado pela Palavra que
era e foi criadora sustentadora e orientativa mais ainda tudo provinha desta mesma Palavra
que possuiacutea e estava (mantinha-se) em uma realidade imanente e preexistente a tudo Simonetti
afirma que ldquofunda-se sobre a conspecccedilatildeo de Cristo como Logos divino e nessa condiccedilatildeo
princiacutepio de racionalidade universal cujas sementes (spermata) entram em toda a criaccedilatildeo e
habilitam o homem a conhecer Deus como criador organizador e regente do mundordquo470 Disso
tudo podemos afirmar que Justino e seus contemporacircneos de fides et toga entendiam que ldquotoda
a verdade estaacute no Logos [] Logo toda a verdade deve ser relacionada ao Logosrdquo471
Cabe-nos nesse conjunto apontar que na exposiccedilatildeo intelectual de Justino referente ao
Logos este natildeo desenvolve com clareza aquilo que seria a presenccedila da Palavra nos outros
homens Em seus registros vemos em alguns momentos que essa relaccedilatildeo de habitaccedilatildeo do Logos
(entendido como incipiente) no ser humano eacute descrita como um processo de semeadura (o
Logos sendo semeado)472 jaacute em outras passagens a analogia se constroacutei atraveacutes de uma imagem
467 Os Apologista do Seacuteculo II empregavam textos do Antigo Testamento como o Salmo 336 (ldquoOs ceus por sua
palavra [isto eacute pela Palavra do Senhor] se fizeramrdquo) onde natildeo hesitavam em misturaacute-los com a distinccedilatildeo teacutecnica
que os estoacuteicos faziam entre ldquopalavra imanenterdquo (grego logos endiathetos) e a ldquopalavra pronunciada ou expressardquo
(grego logos prophorikos) Esta distinccedilatildeo empregada pelos Apologistas visava diferenciar o duplo fato da
unicidade preacute-temporal de Cristo Seu estado preexistente com o Pai Sua manifestaccedilatildeo no tempo e no espaccedilo
Ver KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 71
468 Nessa construccedilatildeo teoacuterica que em determinados momentos parece procurar indiacutecios sustentaacuteveis sobre qual
seria o sistema filosoacutefico de maior influecircncia na formaccedilatildeo do conceito de Logos em Justino ganha destaque o
apontamento de Simone o qual utilizando-se de um caraacuteter sucinto e soacutebrio parece definir com normatividade
esta relaccedilatildeo e seu desenvolvimento ldquoseu conceito estaacute mais proacuteximo do meacutedio platonismo do que do estoicismo
isto eacute a terminologia eacute estoica mas o pensamento subjacente eacute platocircnicordquo Ver SIMONE In JUSTINO filoacutesofo
e maacutertir Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 798
469 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47
470 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1148
471 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 27 grifo nosso
472 Ver JUSTINO I Apologia XXXII 8 JUSTINO II Apologia VIII 1
108
de ldquoocupaccedilatildeordquo (posse) tanto plena473 quanto parcial474 em sua abrangecircncia475 O proacuteprio Justino
em sua II Apologia nos conduz a uma afirmaccedilatildeo de caraacuteter muito pertinente na tentativa de
explicar o porquecirc da accedilatildeo e necessidade da Palavra se manifestar aos homens Nessa afirmaccedilatildeo
ele regula o cristianismo como algo superior aos demais ensinos que procuravam ensinar sobre
a realidade do Logos como sendo um elemento orientativo Justino escreve sobre isso e afirma
que ldquoPortanto a nossa religiatildeo mostra-se mais sublime do que todo o ensinamento humano
pela simples razatildeo de que possuiacutemos o Verbo inteiro que eacute Cristo manifestado por noacutes
tornando-se corpo razatildeo e almardquo476
Justino nessa abordagem acaba por gerar em seu contexto uma evidenciaccedilatildeo
cristoloacutegica de importacircncia iacutempar pois salienta que a ldquodiferenccedila entre Cristo e os Homens
comuns encontra-se natildeo em alguma disparidade essencial de constituiccedilatildeo mas no fato de que
enquanto o Logos opera neles de forma fragmentada (kata meros) ou como uma semente em
Cristo Ele opera como um todordquo477 ou seja no Verbo que encarnou temos a plenitude da
manifestaccedilatildeo do Logos divino sendo este aquele mesmo que os filoacutesofos gregos anteriormente
jaacute haviam esquematizado478 poreacutem de maneira imperfeita
Prosseguindo em nossa construccedilatildeo algo que fica evidente neste exame eacute que mais que
esboccedilar uma ldquoexplicaccedilatildeo intelectualmente satisfatoacuteriardquo479 para o Logos Justino procura ser
expressivo mas natildeo necessariamente um sistemaacutetico deixando-nos carecentes de uma loacutegica
argumentativa mais robusta nesta questatildeo
Nesse aspecto encontramos orientaccedilatildeo junto a obras como a de Santos que
especificamente em nosso objetivo de pesquisa aparece provavelmente como uma das mais
qualificadas definiccedilotildees sobre agrave visatildeo de Justino e sua ressignificaccedilatildeo sobre o assunto Logos de
que disponibilizamos Partindo de dados extraiacutedos da anaacutelise sociorreligiosa do Seacuteculo II e a
473 Ver JUSTINO I Apologia XLVI 3
474 Ver JUSTINO II Apologia X 2 XIII 3
475 Deve-se distinguir entre o ldquoVerbo inteirordquo ingecircnito inefaacutevel o proacuteprio Cristo e o ldquoVerbo seminalrdquo que habita
nos homens especialmente nos saacutebios Ver FRANGIOTTI In Nota c II Apologia 1995 p 74
476 JUSTINO II Apologia X 1
477 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 108
478 Para Simone Justino se ampara claramente em uma tese oriunda do meacutedio platonismo quando procura
estabilizar sua ideia sobre haacute preexistecircncia antiguidade e universalidade do Logos Nesta inferecircncia o Apologista
baseia-se na ideia do meacutedio platonismo de que a transformaccedilatildeo do demiurgo miacutetico de Platatildeo visto como uma
forma de mente transcendente (PLATAcircO Timeu-Criacutetias 28c) se associa plenamente haacute figura do Deus Pai e
Criador do Cosmos trazida pela revelaccedilatildeo (sublime) do cristianismo Sendo deste modo o Logos apresentado
como ldquonascidogeradocriadordquo a partir do proacuteprio Deus Ver SIMONE In JUSTINO filoacutesofo e maacutertir
Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 799 LOPES In Nota 67 Timeu-Criacutetias 2011 p 95
479 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 71
109
estes somando algumas porccedilotildees da II Apologia de Justino Santos estabelece uma soacutelida
conexatildeo entre o Logos e o cristianismo Nesse conjunto de dados Santos consegue incorporar
a sua descriccedilatildeo uma das evidecircncias fundamentais que apontavam diretamente na diferenciaccedilatildeo
do extrato social agrave eacutepoca denominado cristatildeo Essa conjectura aplica-se assim se por um lado
o Logos eacute eterno foi anunciado anteriormente pelos profetas esteve manifesto na mente
(brilhante) dos filoacutesofos Logo isso o define como cristatildeo Conclusatildeo o Logos eacute Cristo Nossa
deduccedilatildeo eacute fraacutegil (em sentido teacutecnico) nem visa ser emblemaacutetica No entanto define e salienta
o pensamento de Justino que como veremos abaixo Santos ratifica se utilizando de raciociacutenio
similar por entender que Justino demonstra com clareza a concepccedilatildeo cristatilde daquele periacuteodo
sobre o Logos
O Logos total eacute aquele que soacute os cristatildeos possuem Por isso o cristianismo eacute a religiatildeo
por excelecircncia acima de toda filosofia e de qualquer matriz de pensamento humano
Justino declara que o cristianismo ldquomostra-se mais sublime do que todo o ensinamento
humano pela simples razatildeo de que possuiacutemos o Verbo por inteiro que eacute Cristo
manifestado por noacutes tornando-se corpo razatildeo e almardquo (JUSTINO II Apologia X 1)
O Logos eacute o Deus visiacutevel que manifesta o Deus invisiacutevel Os cristatildeos satildeo aqueles que
manifestam o Logos divino pois o possuem de forma integral O que eles manifestam
do Logos eacute o seu amor pela humanidade que eacute a razatildeo maacutexima de sua encarnaccedilatildeo
Entatildeo os cristatildeos revelam ao mundo que ldquoEle se tornou homem para partilhar de
nossos sofrimentos e curaacute-losrdquo (JUSTINO II Apologia XIII 4) O Logos serve para
explicar a semelhanccedila do comportamento moral dos cristatildeos com os ensinamentos dos
filoacutesofos principalmente os platocircnicos e estoicos (JUSTINO II Apologia XIII 2) e
ao mesmo tempo classifica os cristatildeos como superiores a eles (JUSTINO II Apologia
X 1)480
Para concluir a exposiccedilatildeo acerca de Justino dentro da filosofia grega podemos afirmar
sem nenhuma duacutevida que o Apologista eacute um verdadeiro filoacutesofo que entre outras coisas
compreendeu e praticou a vivacidade da revelaccedilatildeo do Logos divino entre os homens sempre
salientando que ldquotoda a verdade deve ser relacionada ao Logosrdquo481 Assim neste processo
conduzido por Justino podemos afirmar que revelou-se ldquoa grande ideia (Logos) marcada com
o selo do gecircnio (Justino) que vai fazer desembocar na verdade cristatilde o platonismo o filonismo
e toda a expectativa das geraccedilotildees humanasrdquo482
A partir disto prosseguiremos falando a respeito do capiacutetulo XXVIII de nossa obra
referencial Poreacutem a partir de agora abordaremos precisamente uma de suas principais
480 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 47
481 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 29
482 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
110
caracteriacutesticas Essa peculiaridade que possivelmente se mostra como a mais elaborada entre
as proposiccedilotildees por noacutes jaacute apresentadas realccedila e enobrece nossa busca pelos melhores
argumentos para a definiccedilatildeo do termo Verdade retratado na I Apologia Assim uma
interrogaccedilatildeo elementar em nossa construccedilatildeo comeccedila a ser diretamente respondida
33 RAZAtildeO DEUS SE PREOCUPA COM ESSAS COISAS
No princiacutepio ele criou o gecircnero humano racional capaz de escolher a verdade e
praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus
pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade Se algueacutem natildeo
crecirc que Deus se preocupe com essas coisas ou teraacute que confessar com sofismas que
natildeo existe ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como
uma pedra Virtude e vicio seriam puros nomes e os homens considerariam as coisas
como boas ou maacutes unicamente por sua opiniatildeo o que eacute a maior impiedade e
iniquidade483
O uacuteltimo item deste capiacutetulo visa possibilitar uma clara visatildeo bem como garantir a
genuiacutena adesatildeo ndash questatildeo que entendemos natildeo apenas como necessaacuteria mas sim como
fundamental para a compreensatildeo deste conceito ndash agrave perspectiva de Justino quanto ao que ele
sentenciou como algo determinante em sua proposta apologeacutetica Este modelo de conduta
adotado por Justino natildeo apenas relacionado pontualmente neste caso (I Apologia) caracteriza
com vigor desde o iniacutecio sua orientaccedilatildeo intelectual Aleacutem disso Justino passou a afirmar com
esta evidenciaccedilatildeo de casos toda sua ordem teoloacutegica baseada em sua anaacutelise racional como
tambeacutem agrave explicava ou no miacutenimo agrave definia mediante a maneira que estas relaccedilotildees se
posicionavam
Walde ao analisar aquilo que poderiacuteamos chamar do ldquocampo de anaacutelise racionalrdquo de
Justino ndash ao qual este estabelecia e limitava a sua reflexatildeo ndash sustenta que o pensamento da
Apologista parte de um ponto fixo de uma base depositada profundamente num conceito de
sua racionalizaccedilatildeo Segundo Walde para Justino ldquoQualquer coisa racional eacute cristatilde e qualquer
coisa cristatilde eacute racional Os Logos dotaram a todos os homens da razatildeo e liberdade que natildeo
estavam perdidos desde a quedardquo484
Apoacutes esta citaccedilatildeo faz-se novamente necessaacuterio afirmar que esta pesquisa natildeo almeja
diretamente um debate soterioloacutegico nem sequer visa agregar conceitos ndash de nenhuma espeacutecie
ndash ao termo ldquoLivre Arbiacutetriordquo que empregado indiretamente por Walde possa sugerir debates
483 JUSTINO I Apologia XXVIII 3-4 grifo nosso)
484 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
111
teoloacutegicos nessa esfera Contudo salientamos que a ideia transmitida por Justino no capiacutetulo
XXVIII pode ser empregada com determinada liberdade nesta discussatildeo soterioloacutegica pois a
tomada do Livre Arbiacutetrio como atributo caracteriza uma abrangecircncia muito significativa
especialmente quando Justino afirma que o homem racional eacute ldquocapaz de escolher a verdade e
praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus pois todos
foram criados racionais e capazes de contemplar a verdaderdquo485
Entretanto agregar este ldquoescolherrdquo para fins soterioloacutegicos na tentativa de se
apresentar alguma possibilidade (em forma ou modo) de participaccedilatildeo humana no ato salviacutefico
de Deus em Cristo buscando dar o sentido de que o convencimento salviacutefico natildeo eacute uma
exclusividade da accedilatildeo Divina parece-nos ser um literal descaso com o texto uma vez que se
agrega a Justino algo que ele simplesmente natildeo estava tentando comunicar
Dando seguimento ao nosso assunto mencionamos que o principal criteacuterio que
procuramos definir nesta exposiccedilatildeo estaacute relacionado a importacircncia delegada por Justino agrave razatildeo
humana Eacute imprescindiacutevel nesta construccedilatildeo salientarmos que este recurso humano
(razatildeoracionalidade) era compreendido por Justino (e tambeacutem dos demais Apologistas do
periacuteodo) como uma das principais (se natildeo haacute principal) daacutedivas de Deus ao ser humano486 e
natildeo apenas isso mas este ldquopresenterdquo (uma espeacutecie de ldquodomrdquo praacutetico) possuiacutea tambeacutem uma
accedilatildeo determinante na existecircncia humana para com as coisas celestiais tanto no presente
(cotidiano) como para o futuro (escatoloacutegico) do ser criado
Inicialmente detectamos em Justino a importacircncia por ele atribuiacuteda agrave racionalidade
no homem quando passa a afirmar que ldquoNo princiacutepio ele criou o gecircnero humano racional
capaz de escolher a verdade e praticar o bemrdquo487 Desta forma na concepccedilatildeo do Apologista a
Verdade era comunicada ndash ou ateacute mesmo sentenciada ndash ao ser humano por meio de sua
condiccedilatildeo inata (existente e natildeo adquirida) ou seja seu estado racional Aqui cabe-nos ainda
ressaltar que para Justino o homem para receber a revelaccedilatildeo da feacute em Cristo e mediante isso
agregar a si as benesses eou becircnccedilatildeos desta relaccedilatildeo se fazia necessaacuterio uma transmissatildeo desse
conhecimento ao entendimento humano e isso se dava pelo uso da razatildeo
Walde novamente soma a nossa pesquisa ao conceituar que ldquoDeus simplesmente natildeo
era conhecido por meio da razatildeo abstratardquo488 Assim podemos afirmar que Justino compreendia
485 JUSTINO I Apologia XXVIII 3 grifo nosso
486 DROBNER Manual de Patrologia 2008
487 JUSTINO I Apologia XXVIII 3 grifo nosso
488 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
112
(fortemente influenciado por uma tendecircncia apologista) que a Verdade naturalmente emergia
ao intelecto humano pela razatildeo apoacutes a conversatildeo do homem a Cristo Isso se condicionava
porque era o proacuteprio fruto da accedilatildeo regeneradora do Evangelho no ser humano que agora era
capaz de compreender o processo de separaccedilatildeo entre o joio e o trigo caso contraacuterio os ldquohomens
considerariam as coisas como boas ou maacutes unicamente por sua opiniatildeo o que eacute a maior
impiedade e iniquidaderdquo489
Neste contexto vemos um contraste interessante se formar Pois o Apologista nos
conduz a um quadro extremo no qual apresenta a opiniatildeo humana versus a Verdade Neste
ponto importa mencionarmos Fluck que afirma que Justino ldquoConsiderava que os adversaacuterios
do cristianismo insultavam a razatildeo e a moralrdquo490 Pode ateacute mesmo ser loacutegico poreacutem para nossa
pesquisa eacute imperativo e necessaacuterio salientar que para Justino natildeo havia duacutevidas acerca da
superioridade da Verdade quando revelada (especialmente no Logos) em oposiccedilatildeo agrave razatildeo
humana (caracterizada principalmente pela razatildeo oriunda da filosofia grega) Neste aspecto
Walde eacute categoacuterico e nos apresenta alguns paracircmetros dessa distinccedilatildeo empregada por Justino
Devo notar aqui que esta ecircnfase na razatildeo natildeo deve nos fazer pensar que a feacute natildeo
significava nada para Justino Ele se refere muitas vezes agrave feacute em suas apologias Ele
fala de noacutes sendo transformados ldquopor feacute atraveacutes do sangue e da morte de Cristordquo Ele
inclusive se refere a Abraatildeo que ldquofoi justificado e abenccediloado por Deus devido a sua
feacute nelerdquo No entanto o assunto de conhecimento eacute central aqui porque Justino deu
mais peso em crer nos ensinos de Cristo que crer no proacuteprio Cristo491
Em vista disso natildeo haacute duacutevidas de que a capacidade para decidir para escolher para
tonificar juiacutezos para agregar ou natildeo inferecircncias ou ateacute mesmo para se possuir um meacutetodo de
postura loacutegica passava claramente pela apropriaccedilatildeo da Verdade por meio da razatildeo humana na
concepccedilatildeo de Justino Sendo possiacutevel a partir de entatildeo formar-se no homem (exclusivamente
na experiencia cristatilde ndash com o verdadeiro Logos) os acordos morais para constituiccedilatildeo dos
pensamentos ou das ideias necessaacuterias para a vida humana
Por conseguinte somente aqueles que agregavam a si esta ldquorazatildeordquo (o Logos) poderiam
usufruir de um verdadeiro discernimento e juiacutezo que era proveniente Daquele que se tornou
489 JUSTINO I Apologia XXVIII 4
490 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2009 p 32 apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da
Feacute Cristatilde 2014 p 15
491 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
113
ldquocorpo razatildeo e almardquo492 Diante disso clarificasse a ideia e torna-se vigente o conceito de que
para Justino o Logos eacute o ldquoDeus visiacutevel que manifesta o Deus invisiacutevel Os cristatildeos satildeo aqueles
que manifestam o Logos divino pois O possuem de forma integralrdquo493 Neste ponto em questatildeo
Schaff nos ajuda na compreensatildeo desta distinccedilatildeo
O cristianismo conteacutem a racionalidade necessaacuteria para ser aceito e compreendido pela
filosofia grega Dessa maneira defendendo o cristianismo Justino defendeu a feacute
cristatilde referindo-se agrave feacute em Cristo como forma de justificaccedilatildeo e transformaccedilatildeo sendo
essa feacute totalmente racional494
Este comportamento da feacute compreendida eou assimilada pela razatildeo mostrou-se mais
como uma forma de pensamento do que de conduta naquele momento da histoacuteria495 Isso levou
a classe Apologista do periacuteodo de Justino (praticamente toda helenista em sua origem eou base
cultural) a considerar este procedimento justo e legiacutetimo em sua ordem o que tambeacutem de
maneira muito razoaacutevel possibilitou que este entendimento fosse aceito e vivido496 de forma
significativa em determinados nichos da referida realidade sociorreligiosa
Neste quesito em particular notamos com clareza que o procedimento adotado por
Justino para defender a feacute cristatilde se utilizou de admiraacuteveis recursos filosoacuteficos (racionais)
Justino ldquoSoube juntar admiravelmente os princiacutepios da razatildeo com os dogmas da feacuterdquo497 para
comunicar-se com uma classe distinta intelectualmente de modo especial com aqueles
(Imperadores Senadores outros) aos quais as obras foram dirigidas (a I e II Apologias e o
Diaacutelogo com Trifatildeo no caso de Justino especificamente) A legitimidade da proposta de Justino
(apresentar a feacute cristatilde como um fato racional a ser implantado e assimilado pelos ouvintes)
permite algumas consideraccedilotildees Walde argumenta nesta direccedilatildeo quando diz
Era importante mostrar a racionalidade da feacute e o Logos era o locus da razatildeo nas altas
escolas de filosofia grega [] Isso garantiu a racionalidade do cristianismo
492 JUSTINO II Apologia X 1
493 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 47
494 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 723
apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 21
495 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
496 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
497 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 52
114
identificando a Jesus como o Logos indicando Sua antiguidade que era importante
para a mentalidade grega em estabelecer uma crenccedila498
A partir deste ponto fomentaremos a atribuiccedilatildeo enfaacutetica do capiacutetulo XXVIII da I
Apologia onde Justino afirma com veemecircncia e certo rigor que ldquoSe algueacutem natildeo crecirc que Deus
se preocupe com essas coisasrdquo499 este (ou estes) passa por um consideraacutevel descompasso de
ordem moral Esta afirmaccedilatildeo eacute muito relevante no conjunto em que estaacute aplicada pois denota
de maneira singular toda a estrutura da mensagem do Apologista
Referente a esse caso nos eacute possiacutevel afirmar balizados em toda a descriccedilatildeo
empreendida do sistema de loacutegica adotado por Justino ndash sob clara influecircncia da escola
platocircnica500 ndash que para o Apologista os natildeo-cristatildeos (praticantes ou natildeo dos valores atribuiacutedos
a razatildeo) natildeo conseguiam ponderar com a autecircntica ldquorazatildeo universalrdquo a mesma que era e estava
implantada no ser humano de maneira inata e agora se fazia conhecer porque manifestava-se
nas vidas (consciecircncias regeneradas) dos cristatildeos501
A concepccedilatildeo sobre uma ordenaccedilatildeo coacutesmica universal vista na filosofia estoica502
comeccedila no contexto teoloacutegico de Justino a ser denominada de Logos Spermatikoacutes503 Conceito
que de forma ampla e sistemaacutetica passa a ser usado pelo autor ndash e consequentemente pelo meio
cristatildeo ndash em sua II Apologia na qual Justino ldquoatribui a Cristo a expressatildeo lsquoLogos Spermatikoacutesrsquo
(verbo seminal ou semente da razatildeo) significando que dEle procedem todas as coisasrdquo504
Assim quando os homens natildeo aceitam a distinccedilatildeo que a Verdade oferece para tudo que a ela eacute
estranho prova-se que eles (homens) necessariamente agem sem estar em seu juiacutezo pleno
completo perfeito ou seja natildeo satildeo dirigidos nem governados pelo verdadeiro Logos Nisso se
498 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
499 JUSTINO I Apologia XXVIII 4
500 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
501 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
502 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
503 Fluck explica que o que se entendia na filosofia como ldquorazatildeo universalrdquo imanente em todas as coisas foi
relacionado a ldquosemente racionalrdquo que estaacute presente em todo ser humano (Logos Spermatikoacutes ou semente do
Logos) Ver FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2009 p 33 apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em
Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 17 Jaacute Haumlgglund diz que a razatildeo como um embriatildeo encontra-se implantada dentro
deles (Loacutegos Spermatikoacutes) Mas os apologistas em contraste com os estoicos natildeo diziam ser ela uma espeacutecie de
razatildeo universal concebida panteisticamente Em vez disso identificavam o Logos com Cristo Ver HAumlGGLUND
Histoacuteria da Teologia 1999 p 23
504 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 20
115
conclui que estes homens estatildeo corrompidos na ldquosua opiniatildeo o que eacute a maior impiedade e
iniquidaderdquo505
Logo podemos deduzir um final especiacutefico ao pensamento de Justino nesta periacutecope
Entendemos que o paralelo entre feacute e razatildeo eacute um excelente instrumento indicativo orientador
e balizador na tentativa de afirmaccedilatildeo de sua doutrina e de refutaccedilatildeo do erro sendo que o
constituidor dessa anaacutelise deficiente da realidade (o erro de natildeo se utilizar corretamente da
razatildeo) se estabelecia em um conjunto temaacutetico muito amplo e complexo (crenccedilas instituiccedilotildees
poliacutetica etc) o qual decidimos chamar de realidade ou meio sociorreligioso
Sabemos que aplicar o relato de Justino a anaacutelises contemporacircneas pode causar um
aprisionamento indevido de um pensamento nobre e puro mas eacute inquestionaacutevel o uso de meios
e ferramentas que mostram com clareza ndash em uma orquestraccedilatildeo quase impecaacutevel ndash os incriacuteveis
subsiacutedios racionais que Justino possui para julgar o cenaacuterio de seus conflitos Dreher nesta
esteira enfatiza que para Justino em ldquoCristo toda a filosofia chega agrave perfeiccedilatildeo Por isso os
cristatildeos satildeo os verdadeiros seres racionaisrdquo506
Portanto deduzimos a partir de tantas evidecircncias que na compreensatildeo de Justino a
Verdade tambeacutem se encontra no seu oposto pois sempre que o homem natildeo usar da razatildeo para
assumir viver e praticar a Verdade ldquoou teraacute que confessar com sofismas que natildeo existe (a
Verdade) ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como uma
pedrardquo507
Na abordagem deste capiacutetulo trabalhamos a construccedilatildeo da imagem de Justino Maacutertir
como um filoacutesofo inserido e atuante no mundo greco-romano do Seacuteculo II dC ou como citado
anteriormente da filosofia na vida do cristatildeo Justino Procuramos por meio deste exame fazer
uma clara e suficiente descriccedilatildeo do corpo base desta anaacutelise que partiu e se concentrou no
capiacutetulo XXVIII da I Apologia Em seguida passamos a um exame da vida do autor em meio
agrave filosofia de sua eacutepoca e descrevemos as principais influecircncias filosoacuteficas na formaccedilatildeo do
Apologista Aleacutem disso abordamos o efeito desta construccedilatildeo que possivelmente se tornou um
dos maiores (se natildeo o principal) legados deixado pelo autor Por uacuteltimo buscamos estabelecer
um comentaacuterio soacutebrio sobre a tese de Justino a respeito da realidade da razatildeo regenerada como
o agente arbitral na vida humana como a ldquoforccedilardquo condutora para se conhecer agrave Verdade
505 JUSTINO I Apologia XXVIII 4
506 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47 grifo nosso
507 JUSTINO I Apologia XXVIII 4 grifo nosso
116
No proacuteximo capiacutetulo trataremos do que em nossa opiniatildeo eacute o ponto epiteacutetico deste
relato apologeacutetico de Justino Mesmo diante de muitas circunstacircncias que em sua eacutepoca afligiam
consideravelmente a cristandade Justino nos apresenta uma ldquochave mestrardquo que no seu
entendimento nos prova que o cristianismo eacute a religiatildeo mais antiga e deste modo a uacutenica que
revela genuinamente a Verdade
117
4 A VERDADE REVELADA POR FATOS PROFEacuteTICOS SEGUNDO JUSTINO
Poderiam nos objetar ldquoQue inconveniente haacute em que esse que noacutes chamamos Cristo
seja um homem que vem de outros homens e que por arte maacutegica fez os prodiacutegios
que dizemos e por isso pareceu ser filho de Deusrdquo Apresentaremos pois a
demonstraccedilatildeo natildeo dando feacute agravequeles que nos contam os fatos mas crendo por
necessidade naqueles que os profetizaram antes de acontecer da forma que os vemos
cumpridos ou que estatildeo se cumprindo diante dos nossos olhos tal como foram
profetizados demonstraccedilatildeo que acreditamos que pareceraacute a voacutes mesmos a mais forte
e a mais verdadeira508
Iniciamos a seccedilatildeo final desta dissertaccedilatildeo partindo novamente da principal delimitaccedilatildeo
textual empregada a esta pesquisa Neste espaccedilo nossa anaacutelise se concentraraacute no capiacutetulo XXX
da I Apologia onde encontramos uma enfaacutetica afirmaccedilatildeo apresentada acerca da leitura das
profecias do Antigo Testamento e da interpretaccedilatildeo que Justino fez delas
Quando examinamos a trajetoacuteria de Justino na feacute cristatilde nos deparamos com
comentaacuterios situacionais que visam fixar conjuntos referenciais sobre as coisas consideradas
reais as quais nos possibilitem identificar com clareza as situaccedilotildees existentes no cenaacuterio
analisado Uma dessas afirmaccedilotildees seria a de que ldquoSeguindo sua inspiraccedilatildeo (de Justino) logo
houve outros cristatildeos que se dedicaram a construir pontes entre sua feacute e a cultura da
antiguidaderdquo509 Asserccedilotildees como esta mostram um caminho amplo e sistecircmico de um projeto
de construccedilatildeo que visa estabelecer novos paradigmas neste caso especiacutefico para a cristandade
da eacutepoca
Este processo natildeo eacute formado simplesmente por elementos de coesatildeo mas tambeacutem por
muitas medidas de desconexatildeo Em alguns momentos o projeto evangeliacutestico de Justino eacute
desenvolvido majoritariamente por meios apologeacuteticos e foi amplamente caracterizado por
visar um processo de desconstruccedilatildeo dos valores vigentes de seu meio sociorreligioso algo que
jaacute atestamos anteriormente relacionando o processo dialeacutetico de Justino a outros fatores
Seguindo esse processo este capiacutetulo nasce da necessidade de apresentarmos uma
resposta satisfatoacuteria para algo que surge na parte final da porccedilatildeo selecionada como base
(capiacutetulos XXIII a XXX da I Apologia) de nossa busca de soluccedilotildees para o objetivo central desta
pesquisa Neste contexto um ponto epiteacutetico surge e se move em meio agraves palavras de Justino
sendo enfaticamente referido ao cumprimento profeacutetico do Antigo Testamento Esse caso
508 JUSTINO I Apologia XXX 1 grifo nosso
509 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 92 grifo nosso
118
interpretativo do Apologista natildeo ocorre apenas no capiacutetulo XXX mas tambeacutem em outras
passagens da I Apologia510 as quais condicionaratildeo o alvo final de nossa anaacutelise
Entretanto se haacute um epiacuteteto significa que haacute um cliacutemax neste conjunto que requer ser
exposto e acima de tudo abordado Deste modo surgem algumas indagaccedilotildees sobre este ponto
alto levantado e abordado por Justino Essa busca nos leva a perguntar como estava a
consciecircncia sobre a realidade messiacircnica no Seacuteculo II em meio aos cristatildeos O que eram e o
que significavam as profecias consideradas messiacircnicas do Antigo Testamento para Justino
Elas se realizaram na visatildeo do autor O que ele visava comunicar para seus leitores atraveacutes
delas Havia nelas um ponto alto uma maacutexima a ser revelada Por uacuteltimo havia como a
Verdade ser revelada eou representada por meio do cumprimento dessas profecias
41 O MESSIANISMO ATEacute OS DIAS DE JUSTINO
O messianismo como movimento teoloacutegico tem uma longiacutenqua e variada histoacuteria em
sua estruturaccedilatildeo e desenvolvimento Diversos cenaacuterios humanos desde as antigas dinastias do
Impeacuterio Egiacutepcio passando por quase todo crescente feacutertil chegando ateacute a antiga realeza
Mesopotacircmica descreviam traccedilos de similaridade que apresentavam um ser protagonista em
seu ambiente poliacutetico e religioso (caso essa diferenciaccedilatildeo possa existir para a eacutepoca) o qual
passa a caber como uma entidade superior gerada manifestada sustentada e dirigida
Divinamente
A pesquisa moderna nos tem surpreendido de maneira constante ao apresentar
elementos encontrados nas civilizaccedilotildees antigas os quais se referem agrave ideia sobre a existecircncia
de uma figura messiacircnica de presenccedila soberana potencial salviacutefico e valor moral ilibado O
Egito como um grande Impeacuterio na antiguidade jaacute nos expotildee uma diversidade de personagens
exoacuteticos (que envolviam essencialmente a figura do ImperadorFaraoacute) que deveriam de
maneira fundamental exercer uma ordem religiosa poliacutetica e moral Cabe-nos ressaltar de iniacutecio
que ldquolonge de produzir qualquer coisa parecida com a figura de um lsquoMessiasrsquordquo511 como no
judaiacutesmo as crenccedilas religiosas no antigo Egito salientavam que esse agente mantenedor da
ordem coacutesmica ndash com accedilatildeo visiacutevel no tempo presente ndash faria por meio de sua sucessatildeo
(dinastia) a manutenccedilatildeo desses elementos cariacutessimos para o bem geral e deste modo
510 Ver JUSTINO I Apologia XXXIII 1 XXXVI 6 XLIV 3 XLVIII 1 LI 6 LII 1 4
511 BAINES In A realeza egiacutepcia antiga formas oficiais retoacuterica contexto Rei e Messias em Israel e no Antigo
Oriente Proacuteximo dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 52
119
possibilitaria a passagem para o mundo futuro de qualidade superior por ser santificado pela
ldquopassagem do deus-Sol pelo aleacutemrdquo512
Quanto agrave regiatildeo da Mesopotacircmia os povos de origem Sumeacuteria Babilocircnica e Assiacuteria
demonstram similar afinidade quando buscam exteriorizar o modelo de realeza ideal a ser
desempenhado pelo respectivo soberano em atividade Nestes povos nos chama a atenccedilatildeo que
a linhagem deste personagem era considerada uma inquestionaacutevel instituiccedilatildeo Divina sendo
ldquodesignado pelo pai (Rei predecessor) como o priacutencipe herdeirordquo513 Tal nomeaccedilatildeo era ldquofeita
com a aprovaccedilatildeo dos deusesrdquo514 algo que tambeacutem ocorre de forma similar na aprovaccedilatildeo de
Davi e sua linhagem como monarquia perpeacutetua515 Quanto aos Mesopotacircmicos ainda eacute
necessaacuterio mencionar a respeito de suas ldquoinscriccedilotildees reacutegiasrdquo516 que apresentavam a solene
tradiccedilatildeo ao povo tambeacutem traziam consigo a responsabilidade de descrever o ethos do Soberano
como algueacutem que fora designado e iluminado divinamente para o cargoposiccedilatildeo Essa
contestaccedilatildeo explica por que ldquoNesse sentido a antiga Mesopotacircmia era verdadeiramente
messiacircnicardquo517
No Antigo Testamento variadas e amplas satildeo as alternativas que se apresentam na
construccedilatildeo de uma possiacutevel linha de pesquisa sobre o tema Elas perpassam todo o texto biacuteblico
do Pentateuco aos Profetas Menores ganhando destaque junto aos Livros Histoacuterico que ldquonos
permitem conhecer todas as luzes e sombras da esperanccedila messiacircnicardquo518 aleacutem de tambeacutem
encontrar uma ecircnfase diretiva nos Profetas Maiores (Isaiacuteas e Ezequiel por exemplo) Contudo
eacute nos escritos Poeacuteticos e Sapienciais que encontra-se o repouso pleno dessa mensagem de
esperanccedila e o Livro dos Salmos ganha significativa relevacircncia junto ao cenaacuterio Hamilton nos
enfatiza que a ldquoliteratura de Salmos considera de modo todo especial o mashicircah como agente
512 BAINES In A realeza egiacutepcia antiga formas oficiais retoacuterica contexto Rei e Messias em Israel e no Antigo
Oriente Proacuteximo dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 53
513 CAZELLES Il Messia della Bibbia Cristologia dellrsquoAntico Testamento 1993 p 43 grifo nosso No Original
Designato dal padre come principe ereditario
514 CAZELLES Il Messia della Bibbia Cristologia dellrsquoAntico Testamento 1993 p 43 No original fatta con
lapprovazione degli dei
515 LAMBERT In A realeza na antiga Mesopotacircmia Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 53
516 LAMBERT In A realeza na antiga Mesopotacircmia Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 73
517 LAMBERT In A realeza na antiga Mesopotacircmia Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 73
518 SICRE De Davi ao Messias textos baacutesicos da esperanccedila messiacircnica 2000 p 103
120
de Deus ou seu vice regente (como em Sl 22)rdquo519 Esta perspectiva ndash recebida mediante os
escritos considerados profeacuteticos sobre a figura ldquosalviacuteficardquo para Israel ndash fica clara quando
salienta a trajetoacuteria do Ungido ao fazer seu percurso de caraacuteter libertador e restaurativo Este
anuacutencio salviacutefico conecta-se automaticamente de forma simples ao proacuteximo passo desta missatildeo
libertadora520 a qual consideraraacute as profecias como realizadas em definitivo
Ao examinarmos alguns dos conceitos fundamentais da hermenecircutica messiacircnica no
Novo Testamento vemos que a expectativa sobre o restabelecimento de um reino Daviacutedico
sobre a terra (amplamente difundido na concepccedilatildeo religiosa do judaiacutesmo tardio) faz com que a
Nova Alianccedila estabelecida na concepccedilatildeo dos cristatildeos atraveacutes do advento do Ungido ganhe
contornos bem definidos no sentido de enxergar na figura de Jesus Cristo o cumprimento
absoluto das promessas messiacircnicas
Dos Evangelhos ao Apocalipse de Joatildeo o messianismo que antes representava
majoritariamente um princiacutepio de restauraccedilatildeo poliacutetica e espiritual para diversos movimentos
judaicos passou a ganhar nova e emblemaacutetica posiccedilatildeo pois tudo ndash em maior ou menor
proporccedilatildeo dependendo do autor biacuteblico ndash foi constituiacutedo pela forte convicccedilatildeo do elemento
messiacircnico (como um ente) relacionado agrave ldquopresenccedila terrena passada de Jesus o Messias
(prometido a Israel)rdquo521 vinculando Este agrave realidade dos fatos presentes e dos eventos futuros
(escatoloacutegicos) aguardados pelos cristatildeos Importante tambeacutem citarmos que para a formaccedilatildeo
dogmaacutetica no Seacuteculo I os relatos histoacutericos do cristianismo (Atos dos Apoacutestolos) tiveram
fundamental importacircncia nesta construccedilatildeo teoloacutegica pois viriam ldquopara confirmar tanto a
historicidade do personagem quanto sua consideraccedilatildeo popular do Messiasrdquo522
Tratando-se do periacuteodo poacutes-apostoacutelico ateacute os dias de Justino ndash ponto que se torna o
delimitador desse item ndash vemos que uma pujante cristalizaccedilatildeo sobre o conceito messiacircnico se
estruturava sem maiores dificuldades O relato escrituriacutestico somado agrave forte conscientizaccedilatildeo
sobre a existecircncia de um futuro reinado messiacircnico sobre a terra ratificava de forma decisiva
519 HAMILTON In 1255c maumlshicircah Ungido aquele que eacute ungido Dicionaacuterio Internacional de Teologia do
Antigo Testamento 1998 p 885 grifo do autor
520 Cabe-nos registrar que o periacuteodo entre 340 aC a 30 dC eacute riquiacutessimo no que se trata de documentaccedilatildeo
envolvendo o tema messiacircnico em Israel Os escritos de Qumran satildeo proacutedigos em registros que tratam sobre a
expectativaesperanccedila messiacircnica para o periacuteodo que antecede e inaugura o Novo Testamento Ver BROOKE In
Realeza e messianismo nos manuscritos do Mar Morto Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 451-472 SICRE De Davi ao Messias textos
baacutesicos da esperanccedila messiacircnica 2000 p 334-351
521 ROWLAND In Cristo no Novo Testamento Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 510 grifo nosso
522 MIRALLES El Mesiacuteas en tiempos del NT 2006 p 40 No original a confirmar tanto la historicidad el
personaje como su consideracioacuten popular de Mesiacuteas
121
a mentalidade cristatilde no periacuteodo a ponto de podermos afirmar que ldquotornou-se caracteriacutestica da
escatologia cristatilde primitiva por exemplo Justino Dial 113 139 Tertuliano Adv Marcionem
3 24 Irineu Adv Haer 5 33 3-4rdquo523 entre outros Pais ateacute final do Seacuteculo II o estabelecimento
do entendimento de que o pleno cumprimento das profecias messiacircnicas estava em Jesus Cristo
tanto nos fatos jaacute realizados quanto nos ainda por se cumprirem524 Este caso em especiacutefico
tambeacutem nos atesta que os Pais Apologistas foram aqueles que produziram os ldquoprimeiros ensaios
de teologia cientiacutefica que apareceram na Igrejardquo525 mostrando deste modo quatildeo notaacutevel foi
sua influecircncia Esta tendecircncia hermenecircutica messiacircnica na Patriacutestica perdurou ateacute o advento da
escola alexandrina no iniacutecio do Seacuteculo III526
Deste modo de maneira incontestaacutevel podemos afirmar que o messianismo como
temaacutetica teoloacutegica tornou-se uma das contribuiccedilotildees mais importantes da histoacuteria da
religiosidade monoteiacutesta a niacutevel mundial tendo como seus baluartes intelectuais o cristianismo
(de forma maciccedila) e algumas correntes do judaiacutesmo Este ideaacuterio teoloacutegico ndash que se concentra
em um ou dois agentes527 de superaccedilatildeo da realidade sociorreligiosa ndash iniciou-se provavelmente
como algo inserido profundamente em ditames de teor poliacutetico passando posteriormente a ser
um princiacutepio orientativo para determinados seguimentos religiosos e acabou por se definir em
uma expectativaesperanccedila de caraacuteter excepcionalmente escatoloacutegico
Salientamos que a partir do desenvolvimento da ldquoideologiardquo messiacircnica houve uma
abrupta ruptura entre as suas duas principais correntes de aclamaccedilatildeo especialmente devido a
singularidade identitaacuteria do protagonista algo de imensa relevacircncia para ambos os lados Este
fato requerido e inegociaacutevel em sua espeacutecie tornou-se o ldquoatestadordquo do cumprimento profeacutetico
das exigecircncias teoloacutegicas que distinguiam especialmente a ldquoliteratura cristatilde primitivardquo528
Obviamente sabemos que estas ldquobalizasrdquo envolvem a pessoa de Jesus morador histoacuterico da
cidade de Nazareacute como sendo o autecircntico Ungido (MessiasCristo) prometido a Israel
Os passos a seguir nos conduziratildeo de maneira especiacutefica novamente ao pensamento
de Justino Sua compreensatildeo do escopo profeacutetico messiacircnico do Antigo Testamento torna-se a
523 ROWLAND In Cristo no Novo Testamento Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 493 grifo do autor
524 Aqui nos referimos a tese moderna do ldquojaacute e o ainda natildeordquo desenvolvida por Oscar Cullmann Ver
CULLMANN Salvation in History 1967
525 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 49
526 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
527 Ver SICRE De Davi ao Messias textos baacutesicos da esperanccedila messiacircnica 2000 p 342-343
528 ROWLAND In Cristo no Novo Testamento Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 492
122
partir de agora nosso alvo e objeto de anaacutelise Esse conjunto de fatos que exteriorizou a
revelaccedilatildeo Divina antes do advento do cristianismo como religiatildeo acabou por condicionar-se
entre outras coisas em um dos casos mais pertinentes da doutrina cristatilde em toda a sua histoacuteria
O Logos Palavra Verbo que encarnou na concepccedilatildeo cristatilde foi entendimento claramente como
o Messias prometido a Israel o qual toda a tradiccedilatildeo religiosa judaica (por seacuteculos) ainda
esperava poreacutem Justino junto aos seus (cristatildeos) jaacute o havia reconhecido e recebido como
Deus
42 AS PROFECIAS MESSIAcircNICAS NA VISAtildeO DE JUSTINO
Toda abordagem de Justino nesta temaacutetica possui um elevado grau de reconhecimento
especialmente devido agrave sua posiccedilatildeo Patriacutestica pois em Justino nos eacute possiacutevel afirmar que este
foi ldquoum dos primeiros autores cristatildeos a formular a exegese da presenccedila do Verbo-Messias na
Lei e nos profetasrdquo529 Esse reconhecimento se destaca por meio de um forte aparato
metodoloacutegico no qual a estruturaccedilatildeo escrituriacutestica do Apologista ganha ecircnfase Xavier salienta-
nos esta orientaccedilatildeo definindo-a como um proacutedigo ldquoponto cardealrdquo na temaacutetica do autor ldquosua
obra como um todo contribuiacute para explicar a feacute cristatilde baseada nas Escrituras como a fonte
suprema de autoridade cujas profecias podem ser compreendidas somente pela Graccedila de
Deusrdquo530
Ao analisarmos a I Apologia fica-nos evidente a relaccedilatildeo que Justino faz de forma
automaacutetica ou seja como uma consequecircncia procedimental do papel das Escrituras Sagradas
referente a manifestaccedilatildeo de Cristo como pessoa humana e como ministro das coisas celestiais
Aleacutem disso Justino contempla (reconhece) nas profecias toda a revelaccedilatildeo que Deus visou
apresentar aos Homens atraveacutes do Logos encarnado em Cristo Notamos que este
condicionamento oferecido por Justino acaba por se tornar desde cedo em sua anaacutelise profeacutetica
(do Antigo Testamento) algo absolutamente imperativo e imparcial para com o
desenvolvimento de sua perspectiva messiacircnica Na visatildeo do Apologista tudo o que eacute
legalmente oferecido e constituiacutedo em Cristo ldquorepousa nas profecias veterotestamentaacuterias e no
que ele chama de lsquomemoacuteriasrsquo dos apoacutestolos ou seja os evangelhos (JUSTINO I Apologia
LXVI 3)rdquo531
529 SIMONE In JUSTINO filoacutesofo e maacutertir Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 799
530 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 21
531 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 114
123
Neste contexto cabe-nos ressaltar esta importante fundamentaccedilatildeo do Texto Sagrado
como tambeacutem da Tradiccedilatildeo Apostoacutelica encontrada em Justino Estes alicerces da feacute cristatilde
significam e tem para Justino a funccedilatildeo de ldquobuacutessolardquo teoloacutegica a qual neste caso
especificamente sempre estaacute estabilizada na direccedilatildeo do ldquonorterdquo profeacutetico o qual sem exageros
podemos chamar de uma espeacutecie de ldquonorte messiacircnicordquo Isso porque sua interpretaccedilatildeo
(exegese) nasce de uma hermenecircutica claramente messiacircnica algo que notamos sempre de
forma niacutetida quando o Apologista aponta para a direccedilatildeo de tentar migrar agrave atenccedilatildeo ndash ou
poderiacuteamos dizer moldar o entendimento ndash de seus ouvintes para estes fatos (profecias
messiacircnicas) que possuiacuteam um teor incontestaacutevel na oacutetica do Apologista Indiscutivelmente
para Justino a ldquoprofecia eacute a prova maacuteximardquo532 eacute ldquoo ponto mais forte em relaccedilatildeo agrave veracidade
do cristianismordquo533
Algumas das passagens da I Apologia contribuem decisivamente para este conceito
Por exemplo quando Justino afirma ldquoDisso proveacutem nossa firmeza em aceitar seus
ensinamentos pois se manifesta realizado tudo quanto ele predisse que aconteceria Eis a obra
de Deus dizer as coisas antes que aconteccedilam e depois mostrar o acontecido tal qual ele foi
preditordquo534 Logo adiante no mesmo contexto o Apologista robustece ainda mais seu
raciociacutenio seguindo em uma de suas mais peculiares abordagens Justino claramente natildeo visa
um posicionamento maiecircutico535 nem busca uma manifestaccedilatildeo sofista para com o puacuteblico-alvo
de sua I Apologia Assim ele reafirma com zelo a determinaccedilatildeo de seu ideaacuterio de feacute
ldquoPoderiacuteamos terminar aqui o nosso discurso sem acrescentar mais nada considerando que
pedimos coisas justas e verdadeirasrdquo536
Neste trecho transparece-nos a ideia de que Justino reconhecia nas profecias algo de
elementar e misterioso que natildeo podia ser ocultado Para o Apologista estaacute expliacutecito que aquilo
que esta projeccedilatildeo Divina ndash de essecircncia clara devida e orientada segundo a obra do Espiacuterito
Santo ndash visava expressar ao conhecimento humano era o conteuacutedo filosoacutefico salviacutefico do Logos
que ldquoilumina toda alma de boa vontaderdquo537 fazendo com que as profecias da Antiga Alianccedila
532 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 23
533 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 114
534 JUSTINO I Apologia XII 10 grifo nosso
535 Maiecircutica (maimiddotecircumiddottimiddotca) grego maieutikeacute ciecircncia ou arte do parto Substantivo feminino Significa Uma das
formas pedagoacutegicas do processo socraacutetico a qual consiste em multiplicar as perguntas a fim de obter por induccedilatildeo
dos casos particulares e concretos um conceito geral do objeto em estudo Ver Dicionaacuterio Priberam da Liacutengua
Portuguesa Disponiacutevel em lthttpsdicionariopriberamorgmaiecircuticagt Acesso em 12 de mar 2019
536 JUSTINO I Apologia XII 11 grifo nosso
537 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 31
124
evidentemente conseguissem comunicar seu caraacuteter e estado superior o qual por ter-se
concretizado na manifestaccedilatildeo do Evangelho de Cristo atestava o cumprimento das Boas Novas
do Logos que os profetas (e tambeacutem os filoacutesofos538) haviam recebido no passado como um
sinal visiacutevel de que agrave Palavra Incriada visitaria plenamente aos homens Neste aspecto
podemos celebrar juntamente com Justino sua tentativa ordenada ndash e consequentemente loacutegica
ndash de aprumar a religiatildeo cristatilde neste cenaacuterio profeacutetico Sobre esta praacutetica Santos comenta o
seguinte
Em seu texto Justino parece revelar-nos que as profecias foram o que mais o
convenceram quanto agrave ldquoverdaderdquo do evangelho Se sua busca era encontrar Deus
(JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6) no cristianismo ele o encontrou a partir da
veracidade das profecias Elas eram a confirmaccedilatildeo de que o cristianismo era a
verdade que ele tanto procurava539
Quando se lecirc a I Apologia percebe-se que o contato de Justino com o Antigo
Testamento foi muito significativo algo que possivelmente foi ocasionado e fomentado por sua
relaccedilatildeo de proximidade na infacircncia e juventude com o ambiente judeu na cidade de Flaacutevia
Neaacutepolis mesmo que sua obra natildeo nos indique um ldquoconhecimento aprofundado do
judaiacutesmordquo540 do periacuteodo por parte de Justino
Contudo uma ordenaccedilatildeo de caraacuteter sadia ndash no sentido interpretativo ndash nos parece ter
surgido desde cedo na relaccedilatildeo analiacutetica de Justino para com as profecias veterotestamentaacuterios
Pode-se afirmar que os profetas e suas profecias lhe despertaram muito a consciecircncia e
provocaram grande reflexatildeo em Justino Dois outros aspectos chamam bastante a atenccedilatildeo
porque descrevem com consistecircncia a posiccedilatildeo hermenecircutica de Justino O primeiro estaacute
relacionado a sua defesa da ideia de que o Antigo Testamento retrata tipologicamente a Nova
Alianccedila O segundo eacute o conjunto messiacircnico desenvolvido na I Apologia541 algo que veremos
mais detalhadamente a seguir Voltando ao primeiro ponto a pesquisa de Xavier nos auxilia
significativamente pois consegue sintetizaacute-lo de forma ampla e coerente
538 Ver JUSTINO I Apologia XLIV 1-13
539 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 114
grifo nosso
540 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 83
541 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
125
No tratado ldquoContra Maacutercionrdquo refuta os ensinos deste que instigavam a crer em outro
deus maior do que o criador proferindo blasfecircmias e negando que o criador do
universo seja o Pai de Cristo Embora Marciatildeo fosse considerado cristatildeo ensinava
que o Antigo Testamento natildeo devia ser seguido pelos cristatildeos por ser muito diferente
dos ensinos de Cristo Os judeus por sua vez tambeacutem diziam que os cristatildeos
interpretavam mal o Antigo Testamento vendo nele a preparaccedilatildeo para a vinda de
Jesus Essas discussotildees propiciaram Justino a escrever ldquoDiaacutelogo com Trifatildeordquo onde
ele argumenta com o judeu Trifatildeo acerca da relaccedilatildeo entre a feacute cristatilde e o Antigo
Testamento utilizando-se de tipologias visando demonstrar como se interpreta o
Antigo Testamento afirmando que ldquo[] o Antigo Testamento aponta para Jesus
principalmente de dois modos mediante suas palavras profeacuteticas e mediante atos e
accedilotildees que satildeo lsquofigurasrsquo ou lsquotiposrsquo que tambeacutem apontam para Jesusrdquo A interpretaccedilatildeo
tipoloacutegica de Justino baseia-se nos proacuteprios fatos histoacutericos em particular nos fatos
da vida de Jesus542
Nesta posiccedilatildeo do exame cabe-nos recordar e ressaltar o caraacuteter fortemente
empiacuterico543 que se apresenta novamente no relato de nosso autor Este se sustenta de maneira
consideraacutevel pois eacute utilizado como um criteacuterio comprobatoacuterio da metodologia apologeacutetica de
Justino Como jaacute vimos anteriormente Justino natildeo era um empirista segundo o rigor que o
termo exige a partir do Seacuteculo XVII Entretanto o Apologista parece conduzir a concepccedilatildeo do
real a uma inevitaacutevel relaccedilatildeo entre teoria e praacutetica especialmente no caso do Logos profetizado
que se manifestou em Cristo Assim torna-se inevitaacutevel reconhecer que para Justino a Verdade
se manifestou no reconhecimento da experiecircncia do homem para com agrave profecia Divina
Algo que tambeacutem nos chama bastante atenccedilatildeo nesta cena eacute que este suposto meacutetodo
empirista que poderiacuteamos chamar de claacutessico544 parece ser mais atrelado agraves teorias aristoteacutelicas
do que platocircnicas545 devido agrave grande valorizaccedilatildeo do meacutetodo indutivo Desta forma vemos no
capiacutetulo XXX da I Apologista um conjunto que visa apontar elementos de teor comprobatoacuterio
Nesta porccedilatildeo encontramos a partir da visatildeo do Apologista a seguinte conceituaccedilatildeo
Apresentaremos pois a demonstraccedilatildeo natildeo dando feacute agravequeles que nos contam os fatos
mas crendo por necessidade naqueles que os profetizaram antes de acontecer da
forma que os vemos cumpridos ou que estatildeo se cumprindo diante dos nossos olhos
tal como foram profetizados demonstraccedilatildeo que acreditamos que pareceraacute a voacutes
mesmos a mais forte e a mais verdadeira546
542 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 19
543 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
544 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994
545 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
546 JUSTINO I Apologia XXX 1 grifo nosso
126
Algo de importacircncia singular em toda esta exposiccedilatildeo eacute o estabelecimento da ideia
como tambeacutem a percepccedilatildeo de um estado ativo de consciecircncia em Justino Para ele as profecias
veterotestamentaacuterias tecircm sua origem (entenda-se inspiraccedilatildeo) na terceira pessoa da Trindade547
O Espiacuterito Santo que Justino chama de ldquoEspiacuterito profeacuteticordquo548 aparece em seus registros como
Aquele que atua de forma proclamadora sendo o agente inspirador e formador no espiacuterito dos
profetas da Palavra a ser promulgada trazendo ao conhecimento de todos por meio desses
servos os eventos divinos que futuramente se revelariam Aqui vale-nos registrar que o
princiacutepio de pressaacutegio como algo que foi ajuizado para se revelar num tempo futuro possuiacutea
fundamental importacircncia nesta conceituaccedilatildeo Para Justino era imprescindiacutevel em sua
construccedilatildeo apologeacutetica salientar que as profecias foram registradas efetivamente antes de seu
cumprimento ou seja antes de terem se tornado fatos reais549
Neste contexto cabe-nos examinar duas passagens da I Apologia que promovem esta
ideia Sem desejarmos abordar de maneira direta qualquer outra ecircnfase teoloacutegica nestas
passagens ndash por exemplo aplicaccedilotildees escatoloacutegicas e outras ndash iremos apenas nos focar naquilo
que entendemos ser o grau de concordacircncia substancial oferecido e exigido por ambas as
porccedilotildees dentro de nossa temaacutetica A anaacutelise profeacutetica (interpretaccedilatildeo) do Apologista se
desenvolve desta forma
Entre os judeus houve profetas de Deus atraveacutes dos quais o Espiacuterito profeacutetico
anunciou antecipadamente os acontecimentos futuros e os reis que segundo os
tempos se sucederam entre os judeus apropriando-se de tais profecias guardaram-nas
cuidadosamente tal como foram ditas e tal como os proacuteprios profetas as consignaram
em seus livros escritos em sua proacutepria liacutengua hebraica [] E de novo o mesmo
profeta Isaiacuteas inspirado pelo Espiacuterito profeacutetico disse [hellip]rdquo550
De forma emblemaacutetica vemos na apresentaccedilatildeo de Justino relacionada ao proacuteprio
Cristo Logos Messias o ponto elementar e essencial para a interpretaccedilatildeo da revelaccedilatildeo profeacutetica
do Antigo Testamento uma vez que o conhecimento transcendental relacionado agrave pessoa de
547 Justino coordena com certa razoabilidade em seus escritos a descriccedilatildeo das Trecircs Pessoas Divinas utilizando-se
especialmente para isso de foacutermulas obtidas dos ritos de batismo e eucaristia Suas referecircncias ao Espiacuterito Santo
aparecem com normalidade em suas obras embora Justino natildeo seja absolutamente claro acerca da relaccedilatildeo entre as
funccedilotildees do Espiacuterito e as do Logos em algumas passagens Entretanto eacute niacutetido que o Apologista considerava que
estes (Pai Logos e Espiacuterito) eram realmente pessoas distintas Ver JUSTINO I Apologia LXI 3-12 KELLY
Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 75
548 JUSTINO I Apologia VI 2
549 JUSTINO I Apologia XII 9-10
550 JUSTINO I Apologia XXXI 1 XXXV 3a grifo nosso
127
Jesus manifestava a sua proacutepria natureza ministerial ou seja revelava o Messias prometido a
Israel Em um contexto que aborda sobre Moiseacutes e as profecias messiacircnicas Justino eacute
categoacuterico em afirmar ldquoateacute agrave apariccedilatildeo de Jesus Cristo nosso Mestre e interprete das profecias
desconhecidas tal como foi de antematildeo dito pelo Espiacuterito Santo profeacutetico por meio de Moiseacutes
que natildeo faltaria priacutencipe dos judeus ateacute aquele para o qual estaacute reservada a realezardquo551
Nesta mesma abordagem torna-se importante fazer uma observaccedilatildeo quanto agrave
excepcional erudiccedilatildeo apresentada por Justino O Apologista fomenta uma impecaacutevel exegese
de caracteriacutestica e ordenamento dogmaacutetico algo que explica as peculiaridades do autor e seu
meio intelectual (Patriacutestico)552 distinccedilatildeo que tambeacutem pode ser detectada em sua apresentaccedilatildeo
de caraacuteter expositivo dos textos biacuteblicos utilizados553 Santos contribui decisivamente na
construccedilatildeo deste realce
Mas ele mesmo se mostra um exiacutemio exegeta ao enumerar e manusear as profecias
tanto do Antigo Testamento quanto as do Novo Testamento Justino as interpreta as
explica as esclarece revela a que se referem com uma forte argumentaccedilatildeo Haacute
algumas incoerecircncias em suas interpretaccedilotildees poreacutem estas satildeo frutos das boas
intenccedilotildees em demonstrar o quanto as profecias comprovam a superioridade da feacute dos
cristatildeos554
Notamos portanto que Justino representa mais do que uma ideia destacadamente ele
representa a continuidade de uma fiel relaccedilatildeo entre a profecia aplicada no passado e a
orquestraccedilatildeo de seu estabelecimento no presente555 Este presente que agora estaacute sob o efeito
daacute ldquotransformaccedilatildeo completa do conceito da filosofiardquo556 passa a ser entendido como um estado
contiacutenuo que invade e preenche o futuro com sua proclamaccedilatildeo por ser fidedignamente um
retrato do dogma cristoloacutegico557 ecircnfase que acaba por cristalizar-se a ponto de ser possiacutevel se
afirmar que ldquoJustino foi o primeiro verdadeiro teoacutelogo a formular uma teologia da histoacuteria
551 JUSTINO I Apologia XXXII 2b
552 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
553 HALL Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja 2003
554 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 114-
115
555 HALL Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja 2003
556 Para Boehner e Gilson agrave filosofia grega como ciecircncia entendida a eacutepoca passa para os cristatildeos o controle
histoacuterico de seus atos a partir da Era dos Pais Apologista sendo Justino o elemento decisivo para que ocorresse
esse fenocircmeno cultural Ver BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 28
557 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
128
cristocecircntricardquo558 Deste modo finalizamos este item com o pensamento de Walde Neste
vemos com clareza que no conceito de Justino a figura humana de Jesus Cristo era literalmente
a manifestaccedilatildeo do que poderia ser considerado ldquoprofecias cumpridasrdquo559
Adicionado a esta leitura apresentamos a partir de agora o exame de um dos elementos
teoloacutegicos mais caros ao cristianismo Este singelo criteacuterio nos conduziraacute ao cliacutemax daquilo que
Justino visava comunicar por meio do processo de revelaccedilatildeo contido nas profecias do Antigo
Testamento Deste modo iniciamos a parte final desta pesquisa O item seguinte iraacute
complementar o atual e finalizar este capiacutetulo com uma anaacutelise sobre o cumprimento profeacutetico
da Primeira Alianccedila sendo esse processo o grande resultado que para Justino equivale agrave
apropriaccedilatildeo da Verdade como uma definiccedilatildeo real sobre a vida e os acontecimentos humanos
pois para Justino isso prova de maneira definitiva que a Verdade estaacute com o cristianismo Essa
evidecircncia indubitaacutevel para o Apologista eacute a encarnaccedilatildeo de Cristo
43 A ENCARNACcedilAtildeO DO LOGOS APOGEU DA REVELACcedilAtildeO
Iniciamos este item citando a Walde que eacute emblemaacutetico ao se utilizar do pensamento
de Schaff quando procura introduzir em sua pesquisa um conjunto de mediadas loacutegicas que
parecem visar o estabelecimento de uma proposta a teologia de Justino Walde buscando de
maneira clara estabelecer um rigor de orientaccedilatildeo para causas que ele considera balizares
apresenta-nos mediante um meacutetodo a priori560 seu entendimento de que para Justino haacute uma
consequecircncia ndash dando-nos a impressatildeo de que este evento eacute o grau maacuteximo possiacutevel para o
caso ndash causal para aquilo que a humanidade testificou sobre a accedilatildeo salviacutefica de Deus Deste
modo Walde conjectura sobre a ideia de Schaff e nos afirma que ldquolsquoo cristianismo eacute a alta
razatildeorsquo para Justino lsquoO Logos eacute a razatildeo preacute-existente absoluta pessoal e Cristo eacute a encarnaccedilatildeo
dele o Logos encarnadorsquordquo561
Eacute oportuno aqui apresentarmos um resumo de alguns pontos essenciais jaacute
desenvolvidos em nossa pesquisa principalmente na questatildeo que envolve o conceito do Logos
em Justino poreacutem agora focado no dogma da encarnaccedilatildeo de Jesus Cristo
558 SIMONE In JUSTINO filoacutesofo e maacutertir Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 799
559 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
560 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
561 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 723
apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5 grifo nosso
129
Desta maneira optamos por comeccedilar esta reapresentaccedilatildeo de uma forma mais geneacuterica
onde a explanaccedilatildeo de Dreher contribui de maneira significativa Ele escreve ldquoO cristianismo
segundo Justino natildeo soacute eacute a mais antiga como tambeacutem a religiatildeo mais natural e praacuteticardquo562
Trata-se de uma harmoniosa relaccedilatildeo entre estado e forma ou talvez entre causa e efeito O
cristianismo como corpo (uma coletividade organizada) passa a ser o efeito seleto de uma
substacircncia (Logos) que eacute perfeita e sublime na concepccedilatildeo de Justino563 O mesmo sentido
conseguimos captar em Dreher que apresenta a seguinte definiccedilatildeo a respeito do ideaacuterio
apologeacutetico do Seacuteculo II
Toda a histoacuteria em uacuteltima anaacutelise se desenrola em direccedilatildeo ao cristianismo Homens
como Heraacuteclito e Soacutecrates foram inspirados pelo Logos divino bem como os
precursores do cristianismo Abraatildeo Elias e outros profetas Judeus Em Cristo toda a
filosofia chega agrave perfeiccedilatildeo564
Novamente algo bem condensado nos aparece junto aos comentaacuterios feitos a respeito
do Logos especialmente no que se refere aquilo ou aqueles que envolviam o ambiente
sociorreligioso de Justino ndash lugar de sua conceituaccedilatildeo por excelecircncia O cenaacuterio cultural
descrito conduz (de maneira linear) o tema a uma nova anaacutelise temporal devido ao forte teor
teoloacutegico que possuiacutea Esta mensagem reorientada (o Logos que tornou-se Homem) por Justino
afirmava que tudo o que um dia foi profetizado por um povo estrangeiro ndash considerado de
cultura ldquoestranha e inferiorrdquo a realidade do mundo greco-romano ndash a partir de agora os conduzia
a Verdade e isso de forma antroacutepica por meio de uma ideia um tanto quanto exoacutetica (absurda)
para esse meio cultural Esse novo conceito afirma que um ser excelso (divino) tinha se tornado
um ser humano ou seja que ele havia encarnado
Na mesma linha de Dreher Wachholz se pronuncia de forma muito similar ele
escreve ldquoPara Justino o cristianismo eacute a religiatildeo mais antiga pois foi preparada pelo Logos
como se evidecircncia nos profetas e no pensamento grego Em Cristo a filosofia chega agrave plenitude
Mais do que isso toda a histoacuteria se desenvolve na direccedilatildeo do cristianismordquo565 Desta maneira
a transmissatildeo dessa ideia acaba por ganhar um teor imperativo em sua implicaccedilatildeo pois nesse
ponto (encarnaccedilatildeo do Logos) a leitura que compreendemos ter havido por parte de Justino
562 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47
563 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991
564 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47 grifo nosso
565 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 61 grifo nosso
130
referente agrave Primeira Alianccedila comeccedila a apresentar de maneira elaborada seu ente e
consequentemente a este sua essecircncia Seu ente eacute Jesus Cristo (o Homem) sua essecircncia eacute
Logos566
Deste modo manifesta-se algo profundo na construccedilatildeo e postura de Justino quando
ele passa a atribuir (mesmo que de forma implicitamente) agrave encarnaccedilatildeo de Cristo toda a
eficiecircncia necessaacuteria para o pleno cumprimento das profecias do passado Notamos que na
opiniatildeo do Apologista as questotildees referentes a libertaccedilatildeo do homem de sua ignoracircncia e das
accedilotildees demoniacuteacas que o escravizam ndash assunto que eacute amplamente tratado na I Apologia567 ndash
acabam por exercer relevante importacircncia no cenaacuterio humano de forma geral porque estas
mazelas espirituais dominam e vituperam o ser humano aprisionando-o por meio de sofismas
e de falsos exames da verdadeira realidade histoacuterica Esse ponto eacute realmente relevante quando
tratamos sobre o pensamento de Justino pois ele entendia de maneira praacutetica568 que os
democircnios possuiacuteam uma missatildeo ordinaacuteria de ldquoreduzir os homens a escravos e assistentes
seusrdquo569
A ligaccedilatildeo entre a feacute cristatilde e a filosofia grega natildeo se faz sem conflitos570 e natildeo eacute uma
questatildeo de menor impacto no periacuteodo do Seacuteculo II No que cabe a delimitaccedilatildeo deste estudo o
comentaacuterio de Gonzaacutelez a respeito do Tratado de Taciano571 retrata esse conflito de visotildees que
cercava o avanccedilo do Evangelho em meio a cultura helecircnica do periacuteodo Este registro traz
importante contribuiccedilatildeo ao nosso raciociacutenio Gonzaacutelez diz
Tudo o que a haacute de valioso entre os gregos ndash prossegue Taciano ndash eles o tomaram dos
baacuterbaros Assim por exemplo a astronomia aprenderam dos babilocircnios a geometria
dos egiacutepcios e a escrita dos feniacutecios E o mesmo pode se dizer acerca da filosofia e da
religiatildeo pois os escritos de Moiseacutes satildeo muito mais antigos que os de Platatildeo e ateacute mais
antigos que os de Homero Se Homero e Platatildeo realmente eram pessoas cultas
segundo os proacuteprios gregos dizem era de se supor que conhecessem os escritos de
Moiseacutes Portanto qualquer coincidecircncia entre a cultura supostamente grega e a
religiatildeo dos ldquobaacuterbarosrdquo hebreus e cristatildeos deve-se a que os gregos aprenderam sua
sabedoria dos baacuterbaros Mas em todo caso o certo eacute que os gregos ao lerem a
566 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991
567 JUSTINO I Apologia V 1-4 IX 1 X 6
568 JUSTINO I Apologia XIV 1
569 SIMONE In JUSTINO filoacutesofo e maacutertir Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 799
570 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
571 O escrito chama-se de Discurso aos Gregos composto por Taciano o mais famoso entre os disciacutepulos de
Justino Esta obra reconhecidamente representa um ataque frontal contra tudo que os gregos consideravam
valioso em seu exerciacutecio da racionalidade especialmente naquilo que constituiacutea as bases de sua metafisica O
escrito de caraacuteter apologeacutetico tambeacutem se salienta pela defesa dos chamados ldquobaacuterbarosrdquo isto eacute dos cristatildeos Ver
GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 89
131
sabedoria dos ldquobaacuterbarosrdquo natildeo a entenderam e portanto adulteraram a verdade que os
hebreus conheciam Portanto a suposta sabedoria grega natildeo eacute senatildeo um paacutelido reflexo
e uma caricatura da verdade que Moiseacutes conheceu e que os cristatildeos agora pregam572
Um fator nesta conjuntura que apresenta caracteriacutesticas agudas estaacute na apropriaccedilatildeo de
que agrave ldquosabedoriardquo (como sendo o grande fundo de conhecimento) proveniente da filosofia e
toda ou qualquer outra forma de conhecimento humano considerado como elevado para a
concepccedilatildeo da eacutepoca usava de bases ontoloacutegicas em sua refutaccedilatildeo dos elementos vitais
apresentados pela feacute cristatilde que estava em pleno estabelecimento e curso de seu exerciacutecio
naquele ambiente gentiacutelico573
O ministeacuterio a morte e especialmente a ressurreiccedilatildeo de Cristo574 causavam natildeo apenas
estranheza mas tambeacutem incocircmodo a classe intelectual dominante O testemunho de Paulo nos
apresenta uma fraccedilatildeo dessa realidade cultural O Apoacutestolo desenvolve uma definiccedilatildeo
figurativa mas nada ilusoacuteria desta realidade e de sua reaccedilatildeo para com a nova mensagem que
surgia Ele escreve ldquoPorque tanto os judeus pedem sinais como os gregos buscam sabedoria
mas noacutes pregamos a Cristo crucificado escacircndalo para os judeus loucura para os gentiosrdquo (1
Co 122-23) Neste contexto Paulo afirma que os ldquogregos insistiam em explicaccedilotildees racionais e
buscavam sistemas especulativosrdquo575 Um procedimento de harmonizaccedilatildeo que facilmente
condicionava a si exigecircncias de que ldquoDeus se revelasse em harmonia com as suas ideias em
particularrdquo576
Portanto atraveacutes dos relatos registrados acima podemos afirmar que uma espeacutecie de
ldquomonopoacutelio do saberrdquo procurava se manter vigorosamente ativo Este cenaacuterio histoacuterico foi o
mesmo em que Justino teve que apresentar sua mensagem apologeacutetica afirmando que Aquele
ao qual representava simbolizava a plena afirmaccedilatildeo de uma loacutegica da ordenaccedilatildeo Divina entre
os homens Isso se concretiza em suas obras especialmente na I Apologia quando afirma ndash de
uma forma praticamente sistemaacutetica ndash que as profecias do Antigo Testamento se cumpriram na
encarnaccedilatildeo do Logos A obra de Gonzaacutelez nos auxilia na compreensatildeo desta loacutegica orientada e
proposta por Justino
572 TACIANO Discurso Contra os Gregos apud GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 89
573 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 88
574 Ver Atos dos Apoacutestolos 1718-32
575 METZ In A Primeira Epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006 p 253 grifo do
autor
576 METZ In A Primeira Epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006 p 254
132
Segundo os filoacutesofos gregos tudo o que nossa mente consegue compreender o faz
porquecirc de algum modo participa do ldquologosrdquo ou razatildeo universal Por exemplo se
podemos compreender que dois e dois satildeo quatro isso se deve ao fato de que tanto
em nossa mente como no universo existe um ldquologosrdquo uma razatildeo ou ordem segundo
o qual dois e dois satildeo quatro Ora o que os cristatildeos creem eacute que em Jesus Cristo esse
logos ndash e esta eacute a palavra que aparece no proacutelogo do Quarto Evangelho ndash se fez carne
O que Joatildeo 114 nos diz eacute que a razatildeo fundamental do universo o verbo ou palavra
(logos) de Deus se fez carne em Jesus Cristo577
Nesse ambiente tatildeo carregado de ordenamentos filosoacuteficos e por conseguinte tambeacutem
teoloacutegicos nasce uma interrogaccedilatildeo de acentuada relevacircncia ldquoMas por que esta interpretaccedilatildeo
sobre Jesus deve ser acreditadardquo578 Como premissa seria interessante (ou necessaacuterio)
providenciar uma soluccedilatildeo para esta demanda partindo do que podemos encontrar no proacuteprio
autor (Justino)
Assim o Apologista comeccedila a nos responder este ponto que poderia ser interpretada
como repetitiva eou ateacute mesmo ldquotrivialrdquo para com o contexto filosoacutefico e teoloacutegico moderno
Contudo esta questatildeo parece ter sido solucionada de forma amplamente criativa e inovadora
para com aquele contexto sociorreligioso Justino responde essa pergunta de caraacuteter entranhaacutevel
ndash figadal para alguns ouvintes espirituosa para outros ndash dizendo ldquoos homens poderiam
considerar incriacutevel e impossiacutevel de acontecer Deus o indicou antecipadamente por meio do
Espiacuterito profeacutetico para que quando acontecesse natildeo lhe fosse negada a feacute e sim justamente
por ter sido predito fosse acreditadordquo579
Entretanto cabe-nos realocar Walde nesta construccedilatildeo conceitual (a pergunta acima eacute
de sua autoria) Ele nos propotildee duas razoaacuteveis respostas na tentativa de concretizar sua ideia
tendo como base o que pode ser considerado um resultado ordenado na tentativa de tornar a
mensagem de Justino plausiacutevel A primeira baseia-se direta e integralmente em uma citaccedilatildeo da
I Apologia Walde vecirc com consideraacutevel eficiecircncia nas palavras de Justino580 uma opccedilatildeo
admissiacutevel para emoldurar essa questatildeo Importante tambeacutem eacute entendermos que no contexto
daquela eacutepoca (e igualmente na atualidade) em questotildees que envolviam a aplicaccedilatildeo de algumas
proposiccedilotildees natildeo bastava ser diretivo era necessaacuterio ser consequente Desta forma o autor
inicia a resposta agrave sua pergunta citando o Apologista581
577 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 92 grifo nosso
578 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
579 JUSTINO I Apologia XXXIII 2
580 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
581 Ver JUSTINO I Apologia XXXI 7-8
133
Nos livros dos profetas jaacute encontramos anunciado que Jesus nosso Cristo deveria vir
nascido de uma virgem que ele chegaria agrave idade adulta curaria toda doenccedila toda
fraqueza e ressuscitaria dos mortos que seria invejado desconhecido e crucificado
que morreria ressuscitaria e subiria aos ceacuteus que ele eacute e se chama Filho de Deus que
ele enviaria alguns para proclamar essas coisas a todo o gecircnero humano e seriam os
homens das naccedilotildees aqueles que mais creriam nelerdquo E essas profecias foram feitas
umas cinco outras trecircs outras dois mil e outras mil e oitocentos anos antes que ele
aparecesse no mundo Com efeito eacute sabido que os profetas se sucederam uns aos
outros de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo582
A segunda resposta de Walde se orienta atraveacutes de uma questatildeo cultural que tambeacutem
possui uma importante relevacircncia neste cenaacuterio ldquoNatildeo soacute foi o cumprimento da profecia notaacutevel
em si mesmo mas tambeacutem foi significante que tais profecias foram feitas muito antes dos
filoacutesofos gregos pois diferente de hoje a antiguidade era importante para a mentalidade grega
em estabelecer uma crenccedilardquo583 Cabe-nos registrar que nesse enlace a pesquisa biacuteblica teoloacutegica
poderia apontar datas posteriores (ao periacuteodo da Filosofia Claacutessica) para a promulgaccedilatildeo dessas
Palavras Profeacuteticas (Messiacircnicas) aleacutem de debater se os ldquotextos satildeo autecircnticosrdquo584 no entanto
lembramos que nosso alvo em anaacutelise estaacute centrado na pessoa de Justino o qual sem nenhuma
duacutevida eacute um dos pioneiros da interpretaccedilatildeo de caraacuteter expositivo e natildeo cientiacutefico meacutetodo (por
assim chamar) reconhecidamente usual no periacuteodo Patriacutestico ateacute o Seacuteculo V585 Deste modo
para Justino natildeo havia duacutevidas as profecias satildeo anteriores aos filoacutesofos
Na busca de um resultado mais qualificado para esta pesquisa entendemos que uma
anaacutelise mais pormenorizada da I Apologia ainda se faz necessaacuteria em pelo menos um quesito
O cenaacuterio no qual a I Apologia foi escrita expunha necessidades claras de se apresentar
evidecircncias fortes na tentativa de se estabelecer o status necessaacuterio as provas que visavam
atestar o cumprimento das profecias messiacircnicas na existecircncia futura (encarnaccedilatildeo) de Cristo
Nunca podemos esquecer que para Justino de forma primordial o cristianismo se estabelecia
em um esquema com propriedades ldquomorfoloacutegicasrdquo pois este era mais que um sistema ndash como
configurado em escolas filosoacuteficas ndash ele era essencialmente ldquouma pessoa o Verbo encarnado
e crucificado em Jesus que lhe revelou o misteacuterio de Deusrdquo586 Para Justino questotildees factiacuteveis
parecem ser importantes ou ateacute mesmo fundamentais no programa que ele visava representar
582 JUSTINO I Apologia XXXI 7-8
583 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
584 ROumlSEL Panorama do Antigo Testamento histoacuteria contexto e teologiacutea 2009 p 95
585 HALL Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja 2003
586 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 152 grifo nosso
134
de forma minuciosa Sendo assim vemos em sua construccedilatildeo apologeacutetica um claro objetivo de
desenvolvimento daquilo que ele desejava provar por meio de suas palavras
Eacute portanto necessaacuterio apresentar detalhadamente as citaccedilotildees que salientam a
encarnaccedilatildeo de Cristo na visatildeo de Justino O esquema abaixo baseia-se nas obras de Frangiotti587
e Santos588 os quais retratam em seus trabalhos esta conexatildeo exegeacutetica existente em Justino
Neste esquema conseguimos visualizar com significativa clareza (de maneira ateacute mesmo
didaacutetica) a notaacutevel relaccedilatildeo dos textos da I Apologia com os textos do Antigo Testamento que
para Justino antecipam a encarnaccedilatildeo de Cristo Segundo a obra do Apologista a realizaccedilatildeo das
Palavras preditas pelos profetas de Israel constitui a conexatildeo com o Logos tornado carne e
concretiza um dos pontos elementares da accedilatildeo de Deus em meio aos homens Partindo da I
Apologia em paralelo com a Primeira Alianccedila vemos
I Apologia Antigo Testamento
Moiseacutes que foi o primeiro dos profetas
disse literalmente ldquoNatildeo faltaraacute priacutencipe
de Judaacute nem chefe saiacutedo de seus
muacutesculos ateacute que venha aquele a quem
estaacute reservado Ele seraacute a esperanccedila das
naccedilotildees amarrando seu jumentinho agrave
vinha e lavando sua roupa no sangue da
uvardquo (JUSTINO I Apologia XXXII 1)
ldquoNatildeo faltaraacute priacutencipe de Judaacute nem mesmo um
chefe de suas entranhas ateacute que venha aquilo
que estaacute guardado para ele ele eacute a expectativa
dos povos Ele amarraraacute seu jumentinho agrave
vinha e o filhote do seu jumento ao ramo ele
lavaraacute sua veste em vinho e o seu manto no
sangue das uvasrdquo589 Gecircnesis 4910-11
E Isaiacuteas outro profeta diz a mesma coisa
com outras palavras ldquoLevantar-se-aacute uma
estrela de Jacoacute e uma flor subiraacute da raiz
de Isaiacute e as naccedilotildees esperaram sobre o seu
braccedilordquo (JUSTINO I Apologia XXXII
12a)
ldquoLevantar-se-aacute um broto da raiz de Jesseacute e um
renovo subiraacute desta raiz [] Naquele dia
haveraacute a raiz de Jesseacute que se levanta para
587 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 24-26
588 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 115-
117
589 No original ldquoοὐκ ἐκλείψει ἄρχων ἐξ Ιουδα καὶ ἡγούμενος ἐκ τῶν μηρῶν αὐτοῦ ἕως ἂν ἔλθῃ τὰ ἀποκείμενα αὐτῷ
καὶ αὐτὸς προσδοκία ἐθνῶν δεσμεύων πρὸς ἄμπελον τὸν πῶλον αὐτοῦ καὶ τῇ ἕλικι τὸν πῶλον τῆς ὄνου αὐτοῦ πλυνεῖ
ἐν οἴνῳ τὴν στολὴν αὐτοῦ καὶ ἐν αἵματι σταφυλῆς τὴν περιβολὴν αὐτοῦrdquo
135
governar as naccedilotildees nele esperaratildeo as naccedilotildees
e seu repouso seraacute gloriosordquo590 Isaiacuteas 11110
Escutai agora como foi literalmente
profetizado por Isaiacuteas que Cristo seria
concebido por uma virgem Ele diz o
seguinte ldquoEis que uma virgem conceberaacute
e daraacute agrave luz um filho e lhe poratildeo o nome
Deus conoscordquo (JUSTINO I Apologia
XXXIII 1)
ldquoPor causa disto o proacuteprio Senhor vos daraacute
um sinal eis que a virgem conceberaacute e daraacute agrave
luz um filho e tu lhe daraacutes o nome de
Emanuelrdquo591 Isaiacuteas 714
Escutai agora como Miqueacuteias outro
profeta predisse o lugar da terra em que
ele nasceria Assim diz ldquoE tu Beleacutem terra
de Judaacute de modo algum eacutes a menor entre
os priacutencipes de Judaacute pois de ti sairaacute o
chefe que apascentaraacute o meu povordquo
(JUSTINO I Apologia XXXIV 1)
ldquoE tu Beleacutem casa de Efrata eacutes insignificante
em tua existecircncia entre os milhares de Judaacute
poreacutem em teu meio se levantaraacute aquele que
seraacute governante em Israel Tambeacutem as
origens dele satildeo desde o princiacutepio desde os
tempos eternosrdquo592 Miqueacuteias 51
Tambeacutem foi predito que Cristo depois de
nascer viveria oculto aos outros homens
ateacute agrave idade adulta Escutai o que foi dito
antecipadamente a esse respeito Eacute o
seguinte ldquoUm menino nasceu um
pequenino nos foi dado cujo impeacuterio estaacute
sobre os ombrosrdquo ( JUSTINO I Apologia
XXXV 1-2a)
ldquoPorque um menino vos nasceu e um filho vos
foi dado o qual recebeu o governo sobre os
seus ombros E ele seraacute chamado de
Mensageiro do Magniacutefico Conselho pois eu
trarei paz sobre os priacutencipes e sauacutede para
elerdquo593 Isaiacuteas 95
590 No original ldquoκαὶ ἐξελεύσεται ῥάβδος ἐκ τῆς ῥίζης Ιεσσαι καὶ ἄνθος ἐκ τῆς ῥίζης ἀναβήσεται [] καὶ ἔσται ἐν
τῇ ἡμέρᾳ ἐκείνῃ ἡ ῥίζα τοῦ Ιεσσαι καὶ ὁ ἀνιστάμενος ἄρχειν ἐθνῶν ἐπrsquo αὐτῷ ἔθνη ἐλπιοῦσιν καὶ ἔσται ἡ ἀνάπαυσις
αὐτοῦ τιμήrdquo
591 No original ldquoδιὰ τοῦτο δώσει κύριος αὐτὸς ὑμῖν σημεῖον ἰδοὺ ἡ παρθένος ἐν γαστρὶ ἕξει καὶ τέξεται υἱόν καὶ
καλέσεις τὸ ὄνομα αὐτοῦ Εμμανουηλrdquo
592 No original ldquoκαὶ σύ Βηθλεεμ οἶκος τοῦ Εφραθα ὀλιγοστὸς εἶ τοῦ εἶναι ἐν χιλιάσιν Ιουδα ἐκ σοῦ μοι ἐξελεύσεται
τοῦ εἶναι εἰς ἄρχοντα ἐν τῷ Ισραηλ καὶ αἱ ἔξοδοι αὐτοῦ ἀπrsquo ἀρχῆς ἐξ ἡμερῶν αἰῶνοςrdquo
593 No original ldquoὅτι παιδίον ἐγεννήθη ἡμῖν υἱὸς καὶ ἐδόθη ἡμῖν οὗ ἡ ἀρχὴ ἐγενήθη ἐπὶ τοῦ ὤμου αὐτοῦ καὶ καλεῖται
τὸ ὄνομα αὐτοῦ μεγάλης βουλῆς ἄγγελος ἐγὼ γὰρ ἄξω εἰρήνην ἐπὶ τοὺς ἄρχοντας εἰρήνην καὶ ὑγίειαν αὐτῷrdquo
136
E outra vez por meio de outro profeta diz
com outras palavras ldquoEles transpassaram
meus peacutes e minhas matildeos e lanccedilaram sorte
sobre a minha roupardquo (JUSTINO I
Apologia XXXV 5)
ldquoPois muitos catildees me cercaram a assembleia
dos perversos me rodeia traspassaram as
minhas matildeos e os meus peacutes [] Repartiram
entre si as minhas vestes e sobre o meu traje
lanccedilaram sortesrdquo594 Salmos 211719
Citamos tambeacutem a profecia de outro
profeta Sofonias595 que literalmente
profetizou que ele montaria sobre um
jumentinho e desse modo entraria em
Jerusaleacutem Satildeo estas as suas palavras
ldquoAlegra-te muito filha de Siatildeo daacute gritos
filha de Jerusaleacutem Eis que o teu rei vem a
ti manso montado sobre um jumento
sobre um jumentinho filho de um animal
de jugordquo (JUSTINO I Apologia XXXV
10-11)
ldquoRegozija-te muito Filha de Siatildeo proclama
Filha de Jerusaleacutem Eis que o teu rei vem a ti
ele eacute justo e salvador Ele eacute humilde e estaacute
montado sobre um jumentinho um asno
novordquo596 Zacarias 99
Em suma podemos afirmar que em Justino encontra-se uma salutar e liacutempida
cristologia messiacircnica baseada consistentemente no Antigo Testamento597 De maneira
objetiva a descriccedilatildeo que conseguimos desenvolver a partir do texto de Justino nos aponta para
uma consistente elaboraccedilatildeo no qual alguns detalhes de caraacuteter terminante (irrevogaacuteveis)
quanto a funccedilatildeo de serem utilizados como conceitos primazes ndash na tentativa de estabelecer
princiacutepios e valores fundantes ndash se evidenciam por parte e a partir dos apontamentos de caraacuteter
particular que Justino faz agrave pessoa de Jesus Cristo (especialmente na I Apologia) Sem exageros
eacute possiacutevel agregarmos a esta organizaccedilatildeo textual a intenccedilatildeo de apresentar uma proposta de
constituiccedilatildeo messiacircnica segundo um modelo cristoloacutegico em desenvolvimento o qual seguia
594 No original ldquoὅτι ἐκύκλωσάν με κύνες πολλοί συναγωγὴ πονηρευομένων περιέσχον με ὤρυξαν χεῖράς μου καὶ
πόδας [] διεμερίσαντο τὰ ἱμάτιά μου ἑαυτοῖς καὶ ἐπὶ τὸν ἱματισμόν μου ἔβαλον κλῆρονrdquo
595 O Profeta aqui mencionado deveria ser Zacarias e natildeo Sofonias O equiacutevoco possivelmente natildeo eacute do tradutor
mas sim de Justino No texto grego temos σοφονιανSofonian
596 No original ldquoχαῖρε σφόδρα θύγατερ Σιων κήρυσσε θύγατερ Ιερουσαλημ ἰδοὺ ὁ βασιλεύς σου ἔρχεταί σοι δίκαιος
καὶ σῴζων αὐτός πραῢς καὶ ἐπιβεβηκὼς ἐπὶ ὑποζύγιον καὶ πῶλον νέονrdquo
597 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
137
de perto a ortodoxia da eacutepoca que jaacute estava sofrendo inuacutemeros ataques de acircmbito interno e
externo598
Natildeo haacute consenso de que Justino tenha inaugurado esse meacutetodo exegeacutetico599 mas sem
duacutevida eacute um dos que melhor conseguiu contribuir para o desenvolvimento desta temaacutetica na
histoacuteria da teologia dogmaacutetica600 Neste contexto em particular o Apologista passou a ser visto
como um claro orientador eou catalisador dos pressupostos existentes na filosofia grega Ele eacute
o primeiro a conceber o Logos como uma evidecircncia viaacutevel para uma siacutentese teoacuterica
possibilitando deste modo seu envolvimento no cristianismo Essa participaccedilatildeo intelectual
indiscutivelmente se destaca em sua autenticidade autoral a ponto de podermos dizer que
Justino foi o responsaacutevel por lanccedilar ldquoos fundamentos de um humanismo cristatildeordquo601
Este estudo evidenciou o apreccedilo e o temor de Justino pelas Sagradas Escrituras Sua
abordagem leitura e registro das profecias veterotestamentaacuterias constituem um quadro de
profunda responsabilidade e sobriedade por parte do Apologista especialmente naquilo que se
refere agrave descriccedilatildeo e aplicaccedilatildeo de seu conceito sobre o que seria a Verdade sempre focando esse
fim como um resultado da revelaccedilatildeo escrituriacutestica Nesse ponto em especiacutefico a ponderaccedilatildeo de
Xavier nos oferece generosa lucidez ldquosua obra como um todo contribui para explicar a feacute cristatilde
baseada nas Escrituras como a fonte suprema de autoridade cujas profecias podem ser
compreendidas somente pela Graccedila de Deusrdquo602
Por uacuteltimo ainda devemos adotar uma postura clara e objetiva junto a este processo
que em si traz elementos fortemente interpretativos Assim salientamos que na concepccedilatildeo de
Justino era fundamental que o procedimento exegeacutetico de um cristatildeo sempre orientasse seus
leitoresouvintesmeditantes a conhecer e descobrir agrave Verdade O acontecimento que expressava
de forma incondicional que a revelaccedilatildeo Divina se realizou concretiza-se de maneira simples
nos elementos (profecias) que provam que o Logos encarnou603 Estes relatos profeacuteticos
apresentavam as condiccedilotildees ideais tornando-se assim em fatos irrefutaacuteveis para aqueles que
598 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
599 Para Daniel-Rops Justino utiliza-se do meacutetodo de interpretaccedilatildeo jaacute encontrado em Fiacutelon de Alexandria Nesse
processo partia-se do sentido concreto e histoacuterico do relato (biacuteblico) passando a seguir a busca de se obter
(alcanccedilardescobrir) uma explicaccedilatildeo de espeacutecie simboacutelica existente (implicitamente) nos Textos Sagrados Deste
modo essa ldquodescobertardquo de caraacuteter esoteacuterico tornava-se o objetivo uacuteltimo (principal) a ser alcanccedilado nesse meacutetodo
interpretativo Contudo faltam evidecircncias mais concretas sobre essa relaccedilatildeo e influecircncia autoral sobre Justino
Ver DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 280
600 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
601 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 30
602 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 21
603 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000
138
nisso criam fazendo com que cristatildeos de todas as classes e niacuteveis viessem a abraccedilar essa ideia
(como conceito) passando a compreender o cristianismo como um valor permanente do
ldquoespiacuterito humano a que a Encarnaccedilatildeo deu o seu verdadeiro sentido e o seu alcancerdquo604 Neste
contexto de impressionante singularidade a citaccedilatildeo de Santos nos permite encerrar com
excepcional qualidade esse item apresentado ldquoTodos os detalhes da histoacuteria de Jesus jaacute estavam
preditos nos profetas do Antigo Testamento Essa eacute a maior prova da superioridade da religiatildeo
cristatilde Por isso na concepccedilatildeo de Justino tudo o que eles (os cristatildeos) dizem eacute a verdaderdquo605
604 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279 grifo nosso
605 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 117
grifo nosso
139
CONCLUSAtildeO
A presente dissertaccedilatildeo procurou explanar a respeito de uma concepccedilatildeo que se destaca
por sua ordem moral e por seus paracircmetros dogmaacuteticos apresentando-se como uma chancela
na descriccedilatildeo apologeacutetica de Justino Maacutertir Este ponto de valor axiomaacutetico revelado pelo
Apologista torna-se de maneira evidente em uma espeacutecie de mediador de sua mensagem
permeando-se em toda a extensatildeo de um de seus mais conhecidos tratados literaacuterios Assim
reconhecemos que a I Apologia de Justino estaacute repleta de uma empolgante apresentaccedilatildeo do
termo Verdade sendo este substantivo normalmente utilizado pelo autor para uma distinccedilatildeo de
caraacuteter qualitativo sobre a representaccedilatildeo de um novo conjunto humano da realidade
sociorreligiosa do Seacuteculo II
Para Justino evidenciar a Verdade era tambeacutem ldquosetorizaacute-lardquo de alguma maneira dentro
da realidade humana Necessariamente essa postura adotada pelo Apologista acabou por se
definir por meio de sua leitura ativa sobre o estado e as praacuteticas de um grupo do qual ele mesmo
pertencia e do qual se estabeleciam as bases para sua dialeacutetica Logo falar sobre a Verdade
para Justino era falar dos recursos conceituais e praacuteticos vivenciados pelos cristatildeos de seu
tempo
Importa-nos nesta conclusatildeo ressaltar que Justino visava necessariamente qualificar o
ldquoobjetordquo junto a ldquoideiardquo que possuiacutea e defendia e como um bom filoacutesofo procurou obter
explicaccedilotildees satisfatoacuterias que salientassem sua posse daquilo que realmente era verdadeiro Na
esteira desta ideia o pensamento contemporacircneo balizado em argumentos considerados
ldquoortodoxosrdquo ndash mesmo tendo se passado quase vinte seacuteculos ndash ainda redunda com forccedila pois
consegue conceber que se estar na Verdade eacute para o espiacuterito humano possibilitar que as coisas
recebam agrave devida e real importacircncia que elas possuem na realidade
A partir disso na consciecircncia do Apologista tudo o que era produzido pela feacute cristatilde ndash
sendo ela assumida como um meio constitutivo de vida e praacutetica ndash possibilitava o
desenvolvimento de um senso de valor inesgotaacutevel sobre aquilo que se pode minimamente
relacionar como sendo o real o lugar onde a Verdade se ldquohospedardquo sendo que esta existecircncia
estaacute soberanamente ligada a uma realidade superiortranscendente ou seja esse real eacute Deus
Logo estar na Verdade seraacute sempre reconhecer a soberana realidade de Deus Esta
realidade percebida de forma geral pela noccedilatildeo de se possuir a Verdade eacute a realidade de Deus
manifestada pois aquilo que os cristatildeos vivem eacute a realidade de Deus entre noacutes Assim a
Verdade seraacute confessar a infinita majestade e santidade divinas por meio do legado de Deus
140
orquestrado pelos cristatildeos Nesta linha por meio dos princiacutepios metodoloacutegicos de Justino
consegue-se sintetizar com eficaacutecia e transparecircncia os resultados aos quais o Apologista
chegou como tambeacutem compreende-se melhor sua finalidade apologeacutetica que aponta com
clareza para uma identificaccedilatildeo que conforma a ideia (Verdade) ao objeto (Jesus Cristo) o dito
(novo Modus Vivendi) ao feito (Praxis Fidei) o anunciado (Profecias Messiacircnicas) ao ocorrido
(Encarnaccedilatildeo) em seu sentido absoluto
O problema que esta pesquisa levantou objetivamente foi qual o sentido do vocaacutebulo
ldquoVerdaderdquo empreendido de forma maximal por Justino na sua primeira obra apologeacutetica A
partir disto quatro capiacutetulos foram desenvolvidos na busca de se estabelecer um caminho
central e loacutegico para a soluccedilatildeo dessa questatildeo
O primeiro capiacutetulo fez uma breve apresentaccedilatildeo de Justino sua vida seu ministeacuterio
sua obra e seu contexto histoacuterico De maneira objetiva apresentamos um resumo biograacutefico da
pessoa de Justino em seu meio social e histoacuterico Procurou-se tambeacutem apresentar traccedilos
importantes para a compreensatildeo do cenaacuterio que elaborou nossa argumentaccedilatildeo central onde o
Pai Apologista Justino foi apresentado e a obra base desta pesquisa foi examinada de modo
literaacuterio dentro da necessidade requerida ndash relaccedilatildeo na qual ainda se agregou a perspectiva
cultural de Justino e por consequecircncia esta nos conduziu a uma abordagem sobre sua formaccedilatildeo
filosoacutefica
Mesmo natildeo sendo um dos pontos de sustentaacuteculo para a estrutura desta pesquisa em
nossa opiniatildeo o fator mais importante deste primeiro capiacutetulo certamente eacute o fenocircmeno do
martiacuterio entre os cristatildeos Fora do acircmbito teoloacutegico este traacutegico processo poderia ser
interpretado de forma estranha quando apresentado como um elemento determinante e ateacute
mesmo uacutetil enquanto via para que os natildeo-cristatildeos viessem a se converter e assim conhecerem a
Verdade Desta forma compreendemos que o processo de martiacuterio dos cristatildeos como um fato
histoacuterico foi influente na concepccedilatildeo e fundamental na constituiccedilatildeo do desenvolvimento do
ideaacuterio de Justino O Apologista por meio de sua obra nos oferece a niacutetida impressatildeo de ser um
habilidoso comentador da revelaccedilatildeo escrituriacutestica tambeacutem um autecircntico conhecedor da vida
espiritual mas acima de tudo demonstra ser um irredutiacutevel defensor da crenccedila que possuiacutea
selando sua obra ministeacuterio e vida com o proacuteprio sangue derramado O martiacuterio cristatildeo foi eacute e
continuaraacute sendo um dos casos mais misterioso e emblemaacutetico da histoacuteria da civilizaccedilatildeo
humana
O segundo capiacutetulo falou sobre o novo modus vivendi orquestrado pelos cristatildeos onde
se pode de maneira sinteacutetica observar as praacuteticas do contexto social de Justino apresentando e
clarificando o que eram os haacutebitos cristatildeos em contraste com o cotidiano da cultura greco-
141
romana Nesse processo estabeleceu-se uma descriccedilatildeo de cunho analiacutetico que procurou seguir
uma loacutegica encontrada em Justino o qual pocircs em praacutetica nossa leitura sobre o meacutetodo dialeacutetico
e empiacuterico do Apologista O capiacutetulo apresenta ldquoa nova identidaderdquo surgida junto ao cenaacuterio
sociorreligioso da eacutepoca o cristianismo Aleacutem disto definir aqueles que natildeo compunham esse
grupo de feacute ndash os Judeus e os Gentios ndash tornou-se tambeacutem uma tarefa necessaacuteria Por isso foi
indispensaacutevel apresentar os criteacuterios que para Justino demonstravam a ordem sistemaacutetica de um
grupo que se distinguia e separava dos demais Para Justino tratava-se da praxis fidei Adversus
Iniquitatem ldquoa praacutetica da feacute contra a iniquidaderdquo um realce com tonalidades absolutamente
opostas que apresentava um claro e inevitaacutevel ambiente de separaccedilatildeo entre os grupos
Deste modo esta segunda divisatildeo da pesquisa nos conduziu a uma inserccedilatildeo de postura
paradoxal para com alguns haacutebitos e assuntos humanos que no periacuteodo ocupavam tanto o
acircmbito privado quanto puacuteblico Assim algumas provas factiacuteveis passaram a ser descritas como
sentenccedilas de um novo modus vivendi ndash proposto por Justino ndash na conjuntura sociorreligiosa do
Seacuteculo II fato altamente desafiador o qual definimos em sentenccedilas classificadas como
teologais deterministas e puristas de acordo com suas consequecircncias praacuteticas Aqui salientou-
se o iniacutecio das distinccedilotildees que descreviam a certeza de haver um estado manifesto e claro do
que era a Verdade para Justino
O terceiro capiacutetulo retratou a filosofia em Justino tratando a respeito de sua influecircncia
e seu legado nesse seguimento O desenvolvimento desse capiacutetulo partiu de um formal apelo
desenvolvido pelo proacuteprio Apologista no capiacutetulo XXVIII da I Apologia para o uso da razatildeo
como um elemento determinante para o reconhecimento da Verdade oriunda da revelaccedilatildeo
Divina Um exame introdutoacuterio sobre o capiacutetulo XXVIII abriu o caminho para o entendimento
do que eacute filosofia para Justino A partir disto explicitou-se o filoacutesofo Justino evidenciando
suas principais influecircncias filosoacuteficas oriundas do estoicismo e do meacutedio platonismo aleacutem de
apresentar um sinteacutetico esboccedilo do autecircntico conceito de Logos encontrado em nosso autor
filoacutesofo-teoacutelogo
Todavia o aacutepice desta seccedilatildeo encontra-se em seu uacuteltimo item onde se justificou o que
Justino almejava com a citaccedilatildeo ldquoSe algueacutem natildeo crecirc que Deus se preocupe com essas coisas
(uso da razatildeo)rdquo606 O Apologista realccedila de uma forma quase ldquopalpaacutevelrdquo sua compreensatildeo de
como se concebia naturalmente a feacute em Jesus Cristo Partindo do fato de que a razatildeo eacute um
recurso exclusivamente humano Justino entendia que apenas nisso estavam condicionadas
todas as possibilidades reais do autecircntico Logos ser recebido e concebido pelos homens o que
606 JUSTINO I Apologia XXVIII 4 grifo nosso
142
os levava a verdadeira filosofia e os afastava decisivamente dos equiacutevocos e enganos praticados
pelos democircnios
O quarto e derradeiro capiacutetulo deste estudo salienta o que Justino considera o ponto
alto da revelaccedilatildeo por ele recebida o cumprimento das profecias messiacircnicas e as consequecircncias
para compreender o que Justino considera como sendo a Verdade
Iniciamos com uma sinteacutetica poreacutem objetiva descriccedilatildeo dos elementos socioculturais
de acircmbito religioso que desde a Antiguidade ateacute os dias de Justino formaram e identificaram a
figura de um Messias na cultura judaica Em seguida analisamos a revelaccedilatildeo das profecias
messiacircnicas do Antigo Testamento na visatildeo de Justino referentes a pessoa de Jesus Cristo
Finalizamos este capiacutetulo ratificando o conceito que definimos como principal para
Justino em sua descriccedilatildeo apologeacutetica o qual apresentava a Verdade ao mundo O modo e o
sentido que o Apologista procurava dar agrave concepccedilatildeo central de sua feacute passava necessariamente
pela identificaccedilatildeo entre o Logos dos filoacutesofos com o personagem messiacircnico preconizado pelos
profetas do Antigo Testamento Vimos que esse ser que havia sido reconhecido pelos filoacutesofos
como o Logos tambeacutem havia sido profetizado pelos servos de Deus A providecircncia Divina
levou a humanidade ao ponto alto desta histoacuteria quando o Logos profetizado se encarnado
Logo as profecias se cumpriram Assim concluiacutemos que este cenaacuterio e seus casos tornaram-se
para Justino um elemento real que evidenciava de maneira inquestionaacutevel o que era a Verdade
em sentido absoluto
Por fim eacute oportuno registrar a pertinente e categoacuterica postura do Apologista em aceitar
o cristianismo como ldquoa verdadeira razatildeordquo607 Justino compreendeu que a feacute cristatilde tinha em si
alguns pontos de caraacuteter deliberativo e proposital que consequentemente se estabeleciam nas
vidas que se estruturavam sobre esses preceitos utilizando-os de forma resolutiva Aqui cabe
ressaltar que para uma correta anaacutelise de Justino como autor eacute necessaacuterio se utilizar de medidas
efetivas que amparem o uso da razatildeo para os fins que o Apologista entendia serem ordenados
por Deus Nisso salienta-se a compreensatildeo jaacute atestada no ideaacuterio de Justino de natildeo haver
acepccedilatildeo do recurso da razatildeo a nenhum homem pois todos aqueles que foram criados agrave imagem
e semelhanccedila de Deus podiam ser instruiacutedos desse modo desde as mentes mais simples as mais
capacitadas
Importa-nos ainda registrar que outros aspectos de relevacircncia para esta pesquisa
poderiam ter sido tratados visando um maior aprofundamento desta temaacutetica e suas possiacuteveis
variaccedilotildees De forma praacutetica podemos citar as seguintes observaccedilotildees propor uma maior ecircnfase
607 JUSTINO I Apologia XLIII 6b
143
na questatildeo do martiacuterio cristatildeo como elemento habilitador na construccedilatildeo do conceito da Verdade
como princiacutepio moral e dogmaacutetico uma mais detalhada descriccedilatildeo do conceito Logos tanto para
a cultura helecircnica quanto para os cristatildeos do Seacuteculo II abordar sobre o conceito elaborado por
Justino de Jesus Cristo ser o mestre dos cristatildeos608 referindo-se ao Messias como o condutor
pleno de toda verdadeira revelaccedilatildeo Divina em detrimento aos mitos criados pelo helenismo
oferecer uma pormenorizada anaacutelise sobre a forccedila ilocucionaacuteria desses atos e discursos
apologeacuteticos Aleacutem disso outros pontos significativos poderiam ter sido abordados na tentativa
de se construir de forma mais completa esse importantiacutessimo cenaacuterio do cristianismo histoacuterico
Contudo essa ampliaccedilatildeo possivelmente ultrapassaria os limites propostos desta pesquisa
provavelmente poluindo sua intenccedilatildeo central
A abordagem desta dissertaccedilatildeo demonstrou que na I Apologia Justino revela e retrata
a sua concepccedilatildeo do que eacute ser cristatildeo e viver na Verdade O Apologista transparece de forma
intensa sua postura em transmitir essa maacutexima que natildeo era simplesmente verossiacutemil em seu
entendimento Eacute fato que essa demonstraccedilatildeo tambeacutem visava proteger e resgatar seu povo de
um cenaacuterio hostil salientando por meio de sua postura uma clara separaccedilatildeo de valores e
preceitos
Vimos que as vicissitudes do tempo natildeo seriam capazes de alterar o objeto e as coisas
que caracterizavam sua posiccedilatildeo que estava plenamente balizada e sustentada por meio de sua
dialeacutetica Isso nos impressiona porque para quem procura entender este testemunho sobre a
Verdade os livros de Justino nunca envelhecem aleacutem disso quase vinte seacuteculos depois os
textos desse notaacutevel cristatildeo ainda reverberam o som do eco causado por nossos vazios que
precisam ser preenchidos pelos conceitos princiacutepios e valores que natildeo pertence a este mundo
Por essa razatildeo ldquodialogarrdquo com Justino na atualidade eacute algo importantiacutessimo e ateacute mesmo
fundamental
Em resumo para Justino a uacutenica via para possuir a Verdade era ser cristatildeo o que
equivale a crer e professar sobre Aquele que prometido pelos antigos profetas de Israel e
percebido pelos antigos filoacutesofos gregos veio em carne para apresentar agrave razatildeo humana os
meios de como se proceder ldquoafirmando a Verdaderdquo609
608 Ver JUSTINO I Apologia XIII 3 XIX 6 XXI 1-6
609 JUSTINO I Apologia XLIII 2a grifo nosso
144
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153
A memoacuteria de meus familiares
Isidor Nairto Wingert meu querido pai por sua
histoacuteria como docente mas principalmente
pelas doces e constantes lembranccedilas de seu
carinho
Anisio e Maria Andradina dos Santos meus
saudosos avoacutes por seu amor sem medida por
sua entrega total a minha vida
Sempre os amarei
AGRADECIMENTOS
A minha amada Esposa uma luz constante em
minha vida Nela tudo sempre se renova sem
ela pouco restaria
Aos meus queridos filhos Pedro e Maria os
maiores presentes que Deus me deu Cristo
formado em voacutes eacute a maior heranccedila que pretendo
deixar
A minha amada Matildee que foi fundamental para
a realizaccedilatildeo desse sonho Seu amor foi constate
em todo tempo sua coragem sempre me
inspirou e seu legado me enche de orgulho
A meu Tio Ademir que eacute um exemplo vivo do
caraacuteter de Cristo sendo presente nessa
caminhada como um pai que acompanha seu
filho Essa conquista tambeacutem pertence a vocecirc
Ao Prof Caacutessio mestre por vocaccedilatildeo modelo de
excelecircncia para a docecircncia Sua orientaccedilatildeo foi
excepcional sua honestidade intelectual eacute
admiraacutevel Sua postura se tornou um exemplo a
ser seguido por esse teoacutelogo
Aos meus colegas Alexandre Dorcelina
Fernando Filipe Rodrigo e Samuel por tudo o
que compartilhamos e vivemos nesse tempo
jamais os esquecerei
Ao Pai ao Filho ao Espiacuterito Santo de quem eacute
o reino o poder e a gloacuteria de geraccedilatildeo em
geraccedilatildeo pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutem
ldquoEu lhes tenho dado a tua palavra e o mundo
os odiou porque eles natildeo satildeo do mundo como
tambeacutem eu natildeo sou Natildeo peccedilo que os tires do
mundo e sim que os guardes do mal Eles natildeo
satildeo do mundo como tambeacutem eu natildeo sou
Santifica-os na verdade a tua palavra eacute a
verdaderdquo
Joatildeo 1714-17
RESUMO
Esta dissertaccedilatildeo apresenta uma pesquisa bibliograacutefica direcionada a estabelecer a
identificaccedilatildeo moral e dogmaacutetica do termo Verdade exposto de forma predicativa na obra
intitulada I Apologia de Justino Maacutertir Acredita-se que na formaccedilatildeo e constituiccedilatildeo histoacuterica
do cristianismo alguns autores como Justino de Roma ajudaram a criar e fomentar os
paracircmetros necessaacuterios para se estabelecer uma ldquoidentidade cristatilderdquo durante os dois primeiros
seacuteculos da era atual A partir de novos valores e preceitos ordenou-se de maneira pragmaacutetica
uma tentativa de reconhecer e distinguir o fato de ser cristatildeo em meio ao contexto
sociorreligioso do mundo greco-romano De maneira expliacutecita e impliacutecita ndash e agraves vezes de forma
paradoxal ndash Justino categoricamente identifica o que era ser um seguidor de Cristo em sua I
Apologia aleacutem de apresentar o que poderia ser considerado como a Verdade de forma
categoacuterica e ateacute mesmo tangiacutevel nesse processo A partir desse ideaacuterio de feacute a dissertaccedilatildeo
discute questotildees pertinentes sobre o autor a obra base e outras caracteriacutesticas de seu contexto
histoacuterico Foram investigadas as relaccedilotildees entre a cultura helecircnica e o novo modus vivendi
naquele ambiente e nele a identidade filosoacutefica de Justino Por fim apresentou-se um quadro
clarificador sobre os elementos que satildeo considerados evidecircncias inquestionaacuteveis para Justino
do que eacute a Verdade revelada em meio aos homens Desenvolveu-se deste modo uma provaacutevel
definiccedilatildeo da Verdade segundo a concepccedilatildeo de Justino Maacutertir a partir de sua I Apologia
Palavras-chave Justino Maacutertir I Apologia Verdade
ABSTRACT
This dissertation presents a bibliographical research directed to establish the moral and
dogmatic identification of the term Truth exposed in a predicative way in the work entitled I
Apology of Justin Martyr It is believed that in the formation and historical constitution of
Christianity some authors like Justin of Rome helped to create and foster the parameters
necessary to establish a Christian identity during the first two centuries of the present era
From new values and precepts an attempt to recognize and distinguish the fact of being
Christian amidst the socioreligious context of the Greco-Roman world was pragmatically
ordered Explicitly and implicitly - and sometimes in a paradoxical way - Justin categorically
identifies what it was like to be a follower of Christ in his Apology in addition to presenting
what could be categorically and even tangibly Truth in that process From this idea of faith the
dissertation discusses pertinent questions about the author the base work and other
characteristics of its historical context The relations between the Hellenic culture and the new
modus vivendi in that environment were investigated and in it the philosophical identity of
Justin Finally a clarifying picture was presented on the elements that are considered
unquestionable evidences for Justino of what is the Truth revealed among men In this way a
probable definition of the Truth according to the conception of Justin Martyr from his I
Apologia was developed
Keywords Justin Martyr I Apologia Truth
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
1 Pe ndash Primeira Epiacutestola de Pedro
1 Pet ndash The First Epistle of Peter
aC ndash Antes de Cristo
Adv Haer ndash Adversus Haereses
Adv Marcionem ndash Adversus Marcionem
Cap ndash Capiacutetulo
Caps ndash Capiacutetulos
dC ndash Depois de Cristo
Dial ndash Diaacutelogo com Trifatildeo
Gn ndash Livro de Gecircnesis
ICAR ndash Igreja Catoacutelica Apostoacutelica Romana
Jo ndash Evangelho de Joatildeo
Js ndash Livro de Josueacute
Sl ndash Livro dos Salmos
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 11
1 JUSTINO MAacuteRTIR VIDA E OBRA NO CONTEXTO HISTOacuteRICO DO SEacuteCULO II
17
11 JUSTINO DE ROMA 17
12 PAIS DA IGREJA 23
121 Pais Apologistas 26
122 O Apologista Justino 29
13 ANAacuteLISE LITERAacuteRIA DA I APOLOGIA DE JUSTINO 32
131 Dataccedilatildeo 32
132 Divisatildeo Textual 34
133 Gecircnero Literaacuterio 35
134 Manuscritos 38
14 A PERSEGUICcedilAtildeO AOS CRISTAtildeOS 39
141 O Impeacuterio Romano e a Perseguiccedilatildeo ao Cristianismo 40
142 A Perseguiccedilatildeo no Periacuteodo da I Apologia 43
2 O NOVO MODUS VIVENDI 50
21 CRISTIANISMO A NOVA IDENTIDADE 51
22 O MUNDO NAtildeO-CRISTAtildeO 56
221 Os Judeus 58
222 Os Gentios 61
23 PRAXIS FIDEI ADVERSUS INIQUITATEM 65
231 Um Princiacutepio Teologal 68
2311 Praacutetica da Feacute Contra o Politeiacutesmo Relativista 69
2312 Praacutetica da Feacute Contra a Idolatria 70
2313 Praacutetica da Feacute Contra o Ateiacutesmo 71
232 Um Princiacutepio Determinista 75
233 Um Princiacutepio de Pureza 78
3 A VERDADE REVELADA Agrave RAZAtildeO A FILOSOFIA E SEU CONTEXTO NA
PERSPECTIVA DE JUSTINO MAacuteRTIR 84
31 INTRODUCcedilAtildeO AO CAPIacuteTULO XXVIII 85
32 O FILOacuteSOFO JUSTINO 90
321 Estoicismo e Platonismo em Justino 95
322 O Logos em Justino 104
33 RAZAtildeO DEUS SE PREOCUPA COM ESSAS COISAS 110
4 A VERDADE REVELADA POR FATOS PROFEacuteTICOS SEGUNDO JUSTINO 117
41 O MESSIANISMO ATEacute OS DIAS DE JUSTINO 118
42 AS PROFECIAS MESSIAcircNICAS NA VISAtildeO DE JUSTINO 122
43 A ENCARNACcedilAtildeO DO LOGOS APOGEU DA REVELACcedilAtildeO 128
CONCLUSAtildeO 139
REFEREcircNCIAS 144
OBRAS CONSULTADAS 151
11
INTRODUCcedilAtildeO
O assunto desta pesquisa dissertativa vem a ser um exame sobre uma proposta
desenvolvida a partir da obra intitulada I Apologia de Justino Maacutertir tambeacutem conhecido junto
ao meio eclesiaacutestico e acadecircmico como Justino de Roma Reconhecido de forma unacircnime como
um dos ldquomais ceacutelebres apologistas do seacuteculo IIrdquo1 Justino pertence agrave segunda era Patriacutestica
conhecida tradicionalmente pela definiccedilatildeo Pais Apologistas Nessa abordagem visamos
caracterizar a ideia de Justino a partir de sua definiccedilatildeo da palavra Verdade apresentada de
forma axiomaacutetica por diversas vezes em seu primeiro tratado apologeacutetico
Acredita-se que no processo de formaccedilatildeo desenvolvimento e consolidaccedilatildeo do
cristianismo como religiatildeo alguns valores de sentido absoluto (poderiacuteamos dizer dogmaacuteticos)
foram provedores e promovedores de um esquema de reconhecimento2 por meio de fortes
ascendentes (voltados para sua origem) de caracterizaccedilatildeo Esses valores amparados por sinais
e siacutembolos ndash alguns que receberam literal evidecircncia informativa ndash projetaram uma eficiente
identificaccedilatildeo cristatilde conseguindo externar a partir de preceitos e praacuteticas ordenadas um real
estado de enobrecimento3 e assim distinguiram o ser cristatildeo dos demais4
Aleacutem disso em toda a histoacuteria conhecida o homem sempre buscou descobrir quais
eram os reais elementos que promovem e garantem a certeza do bem (conquista felicidade
realizaccedilatildeo etc)5 e da verdade junto aos seres e as coisas com quem convive e se relaciona6
Nesse processo de desenvolvimento passando por todo percurso da histoacuteria humana nos
deparamos com as sequelas de um estado de consciecircncia que estaacute eacutetica eou moralmente
corrompido enfatizado em nosso em caso em especiacutefico pelo incocircmodo que o ser humano
passa quando exposto as consequecircncias e dilemas apresentados pelas ldquofacesrdquo da Verdade
Nesta mesma perspectiva reconhecemos que as ldquotestemunhas da verdade sempre
irritaram os ceacuteticos e os espertosrdquo7 Nessa missatildeo de testificar a Verdade os Apologistas
cristatildeos do Seacuteculo II acabaram por se distinguir mediante contribuiccedilotildees pertinentes para esse
1 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 51
2 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
3 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
4 SCOTT As Catacumbas de Roma 1996
5 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia Dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994
6 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
7 DANIEacuteLOU O Escacircndalo da Verdade1963 p 11
12
processo construtivo tornando-se diferenciais em seu tempo e espaccedilo de atuaccedilatildeo8 Justino
nesse mesmo seguimento acaba ganhando destaque atraveacutes de seus tratados que descrevem a
vida cotidiana dos cristatildeos do periacuteodo sendo-nos possiacutevel afirmar que no que se refere ao
conceito de Verdade (como predicativo) Justino parece estar ldquomais proacuteximo de noacutes do que
muitos pensadores modernosrdquo9
Uma especificidade que devemos apontar como elemento introdutoacuterio neste processo
refere-se ao entendimento de Justino para com o vocaacutebulo Verdade Neste quesito um
imperativo surge pois de forma inquestionaacutevel mediante o registro do Apologista conseguimos
considerar o que ele compreendia sobre o termo verdade em sua dimensatildeo epistemoloacutegica O
vocaacutebulo grego αλήθεια10 que comumente se traduz por verdade em portuguecircs eacute amplamente
utilizado por Justino em sua I Apologia sempre visando dar sentido e precisatildeo (absoluta) para
aquilo que o Apologista procurava identificar como algo literalmente manifesto mas que
dependia de ser apontado como agrave realidade presente e necessaacuteria para os Homens
Este conceito gramatical que Justino carrega sobre o termo Verdade jaacute estaacute presente
nos filoacutesofos11 e seu significado incorpora algo que define bem sua temaacutetica apologeacutetica
Justino compreendia que a realidade necessitava ser deslumbrada pois a verdade estaacute
subentendida a um ldquoestado preacutevio que viemos a descobrir a colocar de manifesto
estabelecendo o que a coisa eacuterdquo12 Deste modo Justino mediante sua metodologia dialeacutetica e
empiacuterica procurava salientar sua posse da Verdade por meio de um ldquosentido de certezardquo que
envolvia e incorporava a comprovaccedilatildeo de seus resultados Estes efeitos eram obtidos no
afastamento de dados distorcidos e encobertos sobre a realidade isso porque uma vez aplicado
tal desvelamento percebia-se como as coisas eram13 fazendo com que a Verdade fosse
colocada diante de seus expectadores
8 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
9 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 152
10 Rusconi ao apresentar este vocaacutebulo aborda inicialmente sobre sua composiccedilatildeo composta onde salienta que a
existecircncia da letra ldquoαrdquo no iniacutecio da palavra eacute uma partiacutecula negativa que estaacute somada ao termo ldquoλαθλήθrdquo que
significa ldquoestar escondidordquo Assim no caso em especiacutefico quase sempre a composiccedilatildeo visa expressar uma
realidade que estaacute ldquoescondida obscura eou esquecidardquo Deste modo a construccedilatildeo gramatical do termo propotildee
que a consequecircncia da autenticidade (verdade) dos fatos eacute o efeito causado pelo desvelamento destes casos Sendo
assim passa-se a conhecer a verdade a partir do momento que se remove as coisas que a ocultam Rusconi ainda
indica que o termo procurava apresentar a realidade como sendo a condiccedilatildeo objetiva das coisas visiacuteveis e
recordaacuteveis ao Homem o que atestava esse desvelamento do que estava oculto Ver RUSCONI Dicionaacuterio do
Grego do Novo Testamento 2003 p 32
11 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
12 HEGENBERG Significado e Conhecimento 1975 p 12
13 HEGENBERG Significado e Conhecimento 1975 p 15
13
A base dessa compreensatildeo sobre o vocaacutebulo verdade eacute utilizada amplamente por
Justino em sua I Apologia sempre visando dar sentido e precisatildeo absoluta para aquilo que o
Apologista procurava identificar como algo literalmente manifesto mas que dependia de ser
apontado como a realidade presente e necessaacuteria para os homens
Neste compasso eacute que esta dissertaccedilatildeo procura examinar como Justino interpretava
um de seus mais usados e emblemaacuteticos termos Este exerciacutecio nos conduz agrave questatildeo principal
que visamos responder nesta pesquisa sendo possiacutevel deste modo argumentarmos sobre este
ponto fundamental atraveacutes da seguinte interrogaccedilatildeo qual o sentido do vocaacutebulo ldquoVerdaderdquo
empreendido de forma maximal por Justino na sua primeira obra apologeacutetica
Sendo assim a realizaccedilatildeo desta pesquisa se deu atraveacutes de um exame bibliograacutefico
com literatura do tipo teoloacutegica filosoacutefica histoacuterica entre outras aacutereas relacionadas ao seu tema
base Cabe-nos salientar que esta dissertaccedilatildeo procura se apresentar como um agregado
intelectual em liacutengua portuguesa14 para sua aacuterea teoloacutegica especiacutefica
(PatriacutesticaPatrologiaHistoacuteria do Dogma) como tambeacutem para as demais aacutereas Humanas que
da mesma forma possam colher frutos num acircmbito interdisciplinar O estudo aqui proposto
baseia-se nos capiacutetulos XXIII-XXX da I Apologia de Justino Maacutertir tornando-se este nosso
principal ponto de delimitaccedilatildeo textual na busca de se compreender o conceito de Verdade para
Justino
Tratando-se dos termos Pai(s) ou Padre(s) ndash convencionalmente utilizados de forma
padratildeo e geneacuterica na titulaccedilatildeo das figuras de destaque na aacuterea Patriacutestica ndash optamos pelo
vocaacutebulo Pai como elemento descritivo a ser utilizado nesta pesquisa Isso devido a duas
questotildees orientativas A primeira busca priorizar a originalidade da liacutengua vernacular desta
dissertaccedilatildeo (portuguecircs) Jaacute a segunda procura seguir uma postura de acircmbito ecumecircnico visto
que o termo Pai se adapta melhor agrave compreensatildeo confessional cristatilde fora da realidade teoloacutegica
da Igreja Catoacutelica Apostoacutelica Romana natildeo trazendo nenhum prejuiacutezo cognitivo aos leitores
desta uacuteltima Instituiccedilatildeo
As citaccedilotildees da I Apologia de Justino foram extraiacutedas de versotildees em liacutengua portuguesa
e grega Em portuguecircs a I Apologia eacute traduzida e editada por Ivo Storniolo e Euclides M
Balancin e comentada por Roque Frangiotti para a coleccedilatildeo Patriacutestica da editora Paulus Jaacute o
texto em seu idioma original estaacute presente em duas publicaccedilotildees a primeira estaacute na coletacircnea
Patrologiae Cursus Completus Series Graeca Volume 6 editado por Jacques Paul Migne e a
14 A falta de trabalhos sobre o pensamento de Justino Maacutertir em liacutengua portuguesa no cenaacuterio nacional (Brasil) eacute
uma evidente deficiecircncia acadecircmica ateacute o momento Ver SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma
Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 12
14
segunda estaacute na coletacircnea Apologies (contendo a I e a II Apologias) traduzida e comentada por
Louis Pautigny A traduccedilatildeo e transliteraccedilatildeo do original grego quando se fez necessaacuterio satildeo de
nossa autoria15
Duas satildeo as traduccedilotildees da Biacuteblia Sagrada em liacutengua portuguesa utilizadas nesta
dissertaccedilatildeo A primeira que eacute aplicada de forma padratildeo em todo corpo textual desta pesquisa
eacute a traduzida em portuguecircs por Joatildeo Ferreira de Almeida 2ordf ediccedilatildeo Revista e Atualizada no
Brasil da Sociedade Biacuteblica do Brasil de 1993 A segunda traduccedilatildeo que eacute utilizada
exclusivamente no quadro comparativo entre os textos da I Apologia de Justino e os textos
escrituriacutesticos do Antigo Testamento localizado no IV capiacutetulo eacute de nossa inteira autoria16
Quanto ao texto grego utiliza-se o Novo Testamento Grego tradicionalmente conhecido por
Textus Receptus 15501894 (que significa texto recebido) de domiacutenio puacuteblico poreacutem editado
e produzido eletronicamente pela Sociedade Biacuteblica do Brasil em 2007 Quanto ao Antigo
Testamento emprega-se a versatildeo grega conhecida como Septuaginta de 190317 de domiacutenio
puacuteblico editada e produzida eletronicamente pela Sociedade Biacuteblica do Brasil em 2007
Esta pesquisa se desenvolve textualmente em quatro capiacutetulos O primeiro capiacutetulo
discute quatro pontos principais O primeiro eacute uma sucinta abordagem biograacutefica da figura
humana de Justino diante dos fatos existentes em seu contexto O segundo apresenta o perfil
histoacuterico e intelectual especialmente na classe Patriacutestica em que estaacute inserido O terceiro ponto
faz uma anaacutelise literaacuteria da I Apologia sua dataccedilatildeo sua divisatildeo textual seu gecircnero literaacuterio e
os manuscritos que se dispotildeem da obra Por uacuteltimo se aborda por meio de uma breve exposiccedilatildeo
histoacuterica o ponto-chave que em meados do Seacuteculo II motivou Justino a redigir esta obra o
fenocircmeno do martiacuterio cristatildeo eacute analisado como sendo a forccedila motriz que conduziu a pena de
Justino neste tratado
O segundo capiacutetulo estaacute dividido em trecircs pontos O primeiro descreve quem eram os
cristatildeos como grupo apresentando algumas de suas particularidades mas visa especialmente
construir algo que se pode explicar como uma definiccedilatildeo ldquoidentitaacuteriardquo destes homens e mulheres
que se haviam tornado mais um segmento do contexto sociorreligioso do Seacuteculo II O segundo
15 As obras de referecircncia utilizadas para tal exerciacutecio de traduccedilatildeo foram Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-
Grego de Isidoro Pereira Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento de Carlo Rusconi Dicionaacuterio Biacuteblico Strong
de James Strong e A Greek-English lexicon of the New Testament being Grimms Wilkes clavis novi testamenti
de Joseph Thayer
16 Esta opccedilatildeo se daacute devido ao fato de natildeo existir em liacutengua portuguesa uma traduccedilatildeo que represente ou se
assemelhe de maneira teacutecnica ao original grego da Septuaginta
17 Os editores empregam correlatamente o termo ldquosem acentuaccedilatildeordquo junto a titulaccedilatildeo desta versatildeo O emprego
ocorre devido ao texto grego natildeo apresentar acentos
15
que daacute seguimento ao ponto anterior visa apresentar um melhor desenvolvimento dos objetivos
deste trabalho deste modo eacute imprescindiacutevel se apresenta um esboccedilo do que para Justino se
caracteriza como os setores da sociedade opostos ao cristianismo nesta relaccedilatildeo duas ldquoclassesrdquo
surgem judeus e gentios Por fim o terceiro ponto aborda o exame principal desta etapa Aqui
se descreve uma potencial relaccedilatildeo entre fatores que por regra se diferenciam essencialmente
sendo esta diferenciaccedilatildeo estabelecida necessariamente por uma nova postura espiritual eou
religiosa Novas variantes surgem de forma definitiva no cenaacuterio sociorreligioso da eacutepoca
confrontando seu status quo o que leva Justino a reagir criando automaticamente uma accedilatildeo
dialeacutetica que envolve conceitos teologais providenciais eacuteticos e morais aleacutem de gerar outras
variaccedilotildees que estabelecem o passo futuro a ser dado por Justino visando um desdobramento
que estabeleccedila sua confissatildeo de feacute Neste cenaacuterio eacute possiacutevel propor uma definiccedilatildeo do que seja
a Verdade para Justino
Tambeacutem o terceiro capiacutetulo tem sua estrutura dividida em trecircs pontos bases O
primeiro aborda o capiacutetulo XXVIII da I Apologia o qual seraacute analisado de forma introdutoacuteria
levando desta maneira ao desenvolvimento do restante da proposta aleacutem de dar fundamento agrave
construccedilatildeo do argumento central que estaacute ancorado no pensamento do Apologista O segundo
ponto do capiacutetulo concentra-se na descriccedilatildeo da filosofia como a principal ldquociecircnciardquo e a base
intelectual na formaccedilatildeo de Justino Neste espaccedilo se vecirc de forma sumarizada o filoacutesofo Justino
aqui tambeacutem se mencionam as principais influecircncias filosoacuteficas na formaccedilatildeo deste Pai da Igreja
onde o estoicismo e o platonismo satildeo salientados Aleacutem disso eacute discutida tambeacutem o conceito
de Logos questatildeo filosoacutefica-teoloacutegica que acabou por se tornar em uma de suas principais
contribuiccedilotildees para a histoacuteria do dogma cristatildeo18 Finalmente o terceiro ponto concentra
esforccedilos no desenvolvimento de uma peculiar abordagem de Justino quanto ao uso e o fim que
a racionalidade humana exerce no seu conjunto de relaccedilotildees Este ambiente formado de coisas
temporais e atemporais caracteriza de maneira clara e oacutebvia para Justino uma postura sistecircmica
como modelo para as atitudes humanas que concentram em si a resposta que define a Verdade
para este Apologista
O quarto e derradeiro capiacutetulo se compotildeem de trecircs pontos elementares Inicia-se por
uma abordagem que procura desenvolver uma raacutepida relaccedilatildeo histoacuterica do conceito messiacircnico
em algumas culturas direcionando seu foco final para a eacutepoca de Justino O segundo item
descreve com certo grau de peculiaridade a definiccedilatildeo do que eram e consequentemente o que
representavam as profecias messiacircnicas do Antigo Testamento para Justino aleacutem de visar
18 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
16
comunicaacute-las de maneira correta acima de tudo a quem ele as apresentou como tipo alvo e
revelaccedilatildeo maacutexima19 Por fim o terceiro ponto expotildee por meio do auxiacutelio de fontes que para
Justino havia um evidente qualificador em sua definiccedilatildeo do cumprimento profeacutetico da Antiga
Alianccedila Este fator se concentra em um axioma que se tornou visiacutevel sendo bem definido pelo
autor do Quarto Evangelho ldquoo Verbo se fez carne e habitou entre noacutes cheio de graccedila e de
verdade e vimos a sua gloacuteria gloacuteria como do unigecircnito do Pairdquo (Joatildeo 114)
Em resumo o primeiro capiacutetulo estaacute centrado no contexto da figura histoacuterica de
Justino O segundo em aspectos significativos sobre a contraposiccedilatildeo de ideias e haacutebitos O
terceiro na obtenccedilatildeo da inteligibilidade do Apologista em resistecircncia a uma previsatildeo
meramente sensiacutevel do agregado vivencial ou funcional de sua realidade O quarto na
afirmaccedilatildeo de um apogeu que sustentado em evidecircncias irrefutaacuteveis para Justino se estabelece
como uma sentenccedila irrevogaacutevel
Este apanhado nos convida a uma reflexatildeo para conhecer e a uma busca para
comprovar o que seria a Verdade na visatildeo de Justino de Roma Daniel-Rops foi mais um dos
tantos que foram conquistados pelas nuances do legado apologeacutetico de Justino e como
consequecircncia deste encontro encoraja seus leitores a aceitarem este desafio
Como os seus problemas satildeo semelhantes aos nossos Como bate seu coraccedilatildeo num
ritmo que conhecemos tatildeo bem Neste filoacutesofo de dezoito seacuteculos ressoa aos nossos
ouvidos uma espeacutecie de Pascal neste dialeacutetico emeacuterito encontra-se uma vontade de
acolhimento e uma abertura de alma que os cristatildeos de hoje podem tomar por
modelo20
19 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991
20 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 277
17
1 JUSTINO MAacuteRTIR VIDA E OBRA NO CONTEXTO HISTOacuteRICO DO SEacuteCULO II
Ao imperador Tito Eacutelio Adriano Antonino Pio Ceacutesar Augusto ao seu filho Veriacutessimo
filoacutesofo e a Luacutecio filho natural do Ceacutesar filoacutesofo e filho adotivo de Pio amante do
saber ao sacro Senado e a todo o povo romano Em prol dos homens de qualquer raccedila
que satildeo injustamente odiados e caluniados eu Justino um deles filho de Prisco que
o foi de Baacutequio natural de Flaacutevia Neaacutepolis na Siacuteria Palestina compus este discurso e
esta suacuteplica21
Para conhecermos melhor a Justino o cognominado Maacutertir da ainda jovem Igreja de
Cristo ndash como tambeacutem ilustre residente da comunidade romana do Seacuteculo II ndash devemos nos
aproximar de suas obras Especialmente nas conhecidas I Apologia e Diaacutelogo com Trifatildeo nos
deparamos com um pequeno poreacutem significativo acesso a informaccedilotildees que fundamenta um
consideraacutevel entendimento histoacuterico desta figura tatildeo destacada daquele periacuteodo22
A partir desta anaacutelise histoacuterica buscaremos desenvolver uma construccedilatildeo por meio de
fatores que entendemos serem essenciais para o progresso do restante desta pesquisa no qual
assuntos de teor elementar procuraratildeo ser respondidos Entre estes podemos identificar alguns
como Quem foi esse homem chamado Justino o qual o testemunho cristatildeo antigo afirma ter
sido morador da cidade de Roma e martirizado por sua feacute A qual classe da sociedade romana
de sua eacutepoca ele pertenceu A qual grupo da ldquointelectualidaderdquo cristatilde ele somou Como e
quando escreveu suas obras em especial a I Apologia Como este escrito encomiaacutestico de
defesa nasce Quem eou o quecirc (fatores diversosplurais) o incentivaram a escrevecirc-la de forma
proposital
11 JUSTINO DE ROMA
Torna-se necessaacuterio desde o iniacutecio salientar que se possui atualmente informaccedilotildees bem
detalhadas de quem teria sido Justino ndash o qual foi cunhado por Tertuliano como ldquofiloacutesofo e
maacutertirrdquo23 ndash morador da capital do Impeacuterio Romano isso tudo devido especialmente agraves claras
ldquoreferecircncias autobiograacuteficas de suas proacuteprias obras a um relato sobre seu martiacuterio e a notiacutecias
encontradas na Histoacuteria eclesiaacutestica de Euseacutebio e em Epifacircniordquo24 Uma gama consideraacutevel de
21 JUSTINO I Apologia I 1
22 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011
23 TERTULIANO Contra os Valentinianos V 1
24 DROHNER Manual de Patrologia 2008 p 82-83
18
estudiosos concorda que Justino tenha nascido por volta do ano 100 da era cristatilde25 isso devido
agrave referecircncia textual apresentada pelo proacuteprio Apologista ldquoeu Justino um deles filho de Prisco
que o foi de Baacutequio natural de Flaacutevia Neaacutepolis na Siacuteria Palestinardquo26 Neste contexto contribui
o trabalho de Xavier que afirma acreditar ldquoque ele (Justino) nasceu depois do ano 100 dC em
Flavia Neaacutepolis (atual Naplusa) na Siacuteria-Palestina ou Samaria a Siqueacutem dos tempos biacuteblicos
(Palestina)rdquo27 Nota-se atraveacutes do auto relato de Justino que este nasceu em pleno ldquocoraccedilatildeo da
Galileiardquo28 em uma cidade remodelada (modernizada) para sua eacutepoca agrave cultura romana ou seja
pagatilde Logo sua famiacutelia provavelmente tambeacutem era pagatilde possivelmente seus pais ldquoeram
colonos abastadosrdquo29 e de origem latina ou grega sendo a primeira opccedilatildeo de preferecircncia por
Hamman que afirma serem de caracteriacutestica latina a qualidade de caraacuteter o gosto por dados
histoacutericos e a natildeo apreciaccedilatildeo de argumentaccedilotildees pomposas e prolixas encontradas em Justino30
Vale tambeacutem citar que a etimologia dos nomes do seu pai (Prisco) e do seu avocirc (Baacutequio)
colabora para uma origem natildeo judaicaisraelita mesmo tendo nascido na regiatildeo da Samaria
local no qual possivelmente tenha crescido e sido educado31
Os proacuteximos relatos biograacuteficos apresentados por nosso autor jaacute se estabeleceram no
decorrer de sua jornada em direccedilatildeo ao alvo que buscava atingir eacute quando em seu escrito
intitulado de Diaacutelogo com Trifatildeo Justino se apresentaraacute como um apaixonado apreciador da
filosofia e do absoluto que a razatildeo deveria perscrutar Em um escrito estiliacutestico e repleto de
artifiacutecios literaacuterios Justino cita seu passado em meio aos estoicos peripateacuteticos pitagoacutericos e
platocircnicos32 observando desde cedo que o objetivo de seu caminho nestes grupos que
ldquocultuavamrdquo o bem-estar do viver humano era o de descobrir a verdade como um estado livre
de contingecircncias Hamman endossa esse processo de peregrinaccedilatildeo filosoacutefica na vida do autor
25 FRANGIOTTI In Introduccedilatildeo I Apologia 1995 p 5 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da
tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 81
26 JUSTINO I Apologia I 1
27 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 14 grifo nosso
28 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
29 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
30 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
31 Flaacutevia Neaacutepolis foi fundada em 72 de nossa era por Vespasiano sobre a antiga Siqueacutem A cidade existe hoje
sob o nome de Naplusa Natildeo se deve esquecer a importacircncia deste siacutetio geograacutefico para a histoacuteria religiosa de
judeus e cristatildeos Foi em Siqueacutem que Deus apareceu a Abraatildeo e este lhe dedicou um altar (cf Gn 126-7) Ali se
conservava a memoacuteria de um ldquopoccedilo de Jacoacuterdquo junto ao qual Jesus dialogou com a samaritana (cf Jo 45-6) Foi em
Siqueacutem que Josueacute reuniu a grande assembleia das tribos para ratificar a alianccedila entre Deus e seu povo (cf Js 24)
Ver FRANGIOTTI In Introduccedilatildeo I Apologia 1995 p 5
32 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 3-6
19
O proacuteprio Justino conta-nos no Diaacutelogo com Trifatildeo o longo itineraacuterio de sua busca
[] Sucessivamente em Naplusa frequentou as aulas de um estoico depois de um
disciacutepulo de Aristoacuteteles que logo abandonou trocando-o por um platocircnico Com
candura esperava que a filosofia de Platatildeo lhe permitisse ldquover imediatamente a
Deusrdquo33
Entretanto Justino diante de diversas circunstacircncias e ainda acometido de inuacutemeras
inquietaccedilotildees decorridas das mesmas perguntas que o afligiam em sua busca pela verdade passa
a relatar seu impressionante encontro com o Evangelho de Cristo em seu Diaacutelogo com um judeu
chamado Trifatildeo34 Justino que aparentemente parece ter sido encorajado apoacutes ser ensinado por
um mestre da escola platocircnica passa a viver por meio de haacutebitos mais austeros e se retira a um
lugar isolado onde segundo ele mesmo procuraria encontrar ldquoo proacuteprio Deusrdquo35 Poreacutem em
meio a esta experiecircncia de isolamento ndash possivelmente ocorrida na regiatildeo da Aacutesia Menor36 ndash
Justino se depara com um anciatildeo que seraacute o arauto da mais significativa filosofia que conheceu
Hamman daacute ecircnfase a esse evento ldquoRetirando-se agrave solidatildeo Justino passeava pela areia a beira-
mar para meditar sobre a visatildeo de Deus sem conseguir apaziguar sua inquietaccedilatildeo quando
encontrou um anciatildeo misterioso que dissipou suas ilusotildeesrdquo37
Nesse Diaacutelogo nos deparamos com uma seacuterie de interrogaccedilotildees vindas da parte do
Anciatildeo judeu dirigidas a pessoa de Justino assuntos sobre Deus (divindade) sobre o saber
humano (filosofia) sobre a felicidade e a disposiccedilatildeo da alma (psique) satildeo algumas das questotildees
apresentadas ao ldquointelectordquo do filoacutesofo Justino No que tudo indica parecer um processo
baseado na maiecircutica socraacutetica o Anciatildeo leva nosso autor a inuacutemeras duacutevidas e consegue
estabelecer contradiccedilotildees naquela que parecia ser a melhor via (meacutedio platonismo) para o
entendimento da verdade conhecida por Justino ateacute entatildeo38 Diante das argumentaccedilotildees
apresentadas pelo Anciatildeo e sentindo-se vencido por elas Justino reconhece a sua limitaccedilatildeo e
pergunta ldquoEntatildeo a quem vamos tomar como mestre ou de quem poderemos tirar algum
proveito se nem mesmo nestes (filoacutesofos) se encontra a verdaderdquo39
33 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
34 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo III 1-VIII 2
35 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6-III 1
36 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010
37 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
38 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II
dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
39 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo VII 1 grifo nosso
20
O decorrer do caso nos eacute apresentado com entusiasmo pelo autor o Anciatildeo eacute retratado
como algueacutem que natildeo hesita em afirmar ao sedento Justino que os profetas da antiga alianccedila
foram aqueles que manifestaramproclamaram a Verdade antes de todos os outros homens40
pois a resposta ao apelo do espiacuterito de Justino jaacute encontrava razatildeo e sentido na revelaccedilatildeo
anteriormente profetizada (Antigo Testamento) Estes fatos (profecias) tinham total relevacircncia
pois eram ldquomais antigos do que todos estes considerados filoacutesofos homens bem-aventurados
justos e amigos de Deusrdquo41 Neste ponto soma-se de forma significativa a descriccedilatildeo de Walde
desenvolvida junto ao texto de Justino sobre a sua conversatildeo
Justino foi introduzido na feacute diretamente por um velho homem que o envolveu numa
discussatildeo sobre problemas filosoacuteficos e entatildeo lhe falou sobre Jesus Ele falou a Justino
sobre os profetas que vieram antes dos filoacutesofos ele disse e que falou ldquocomo
confiaacutevel testemunha da verdaderdquo Eles profetizaram a vinda de Cristo e suas
profecias se cumpriram em Jesus Justino disse depois que ldquomeu espiacuterito foi
imediatamente posto no fogo e uma afeiccedilatildeo pelos profetas e para aqueles que satildeo
amigos de Cristo tomaram conta de mim enquanto ponderava nestas palavras
descobri que a sua era a uacutenica filosofia segura e uacutetil [] eacute meu desejo que todos
tivessem os mesmos sentimentos que eu e nunca desprezassem as palavras do
Salvadorrdquo42
Apoacutes este evento notabilizador na histoacuteria de Justino um evento que atesta a
conversaccedilatildeo do filoacutesofo a nova religiatildeo que se apresentava a cada dia com maior forccedila em meio
ao mundo heleniacutestico nasce um ministeacuterio que iraacute se caracterizar por uma profunda e inegaacutevel
entrega a causa que o conquistou Chegando agrave cidade de Eacutefeso Justino se deparou com irmatildeos
que se diziam disciacutepulos do apoacutestolo Joatildeo os quais por meio de uma intensa relaccedilatildeo lhe
mostraram o novo e relevante aspecto da nova filosofia que agora havia decidido seguir
passando a entender que o cristianismo deve ser ldquoum cristianismo de atos e natildeo soacute de
palavrasrdquo43
Poreacutem o maior entendimento que o Apologista obteve foi o de encontrar a Verdade a
qual buscava incessantemente unindo este axioma (Verdade) com o Logos revelado pelas
Escrituras contexto que definiu como a uacutenica ldquofilosofia segura e proveitosardquo44 para a vida a
40 DROHNER Manual de Patrologia 2008
41 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo VII 1
42 WALDE Defensor da Igreja 2000 p 1
43 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 32 apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da
Feacute Cristatilde 2014 p 15
44 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo VIII 1
21
qual eacute a fonte do saber primordial que manteve-se inalterada poreacutem tendo assumido ldquonovas
formas e expressotildees diferentesrdquo atraveacutes dos seacuteculos45 Este esteio da intelectualidade de Justino
foi tatildeo decisivo para a histoacuteria do cristianismo que segundo Hamman passou a apresentar
(temporariamente) uma satisfatoacuteria ldquoconclusatildeo para todas as verdades parciais [] Instante
inesqueciacutevel que assinala uma data na histoacuteria cristatilde em que se encontram a alma platocircnica e
a alma cristatilde A Igreja acolhia Justino e Platatildeordquo46
Aleacutem disto Justino guardou caracteriacutesticas daquilo que reconhecia ser saudaacutevel de seu
passado como amigo da sabedoria vestindo-se com ldquomanto de filoacutesofo como sinal do pregador
cristatildeo itineranterdquo47 Desta forma Justino procurou caracterizar-se entre os seus
contemporacircneos como algueacutem que representava a Verdade que havia encontrado Ateacute onde se
tem notiacutecias jamais foi ordenado assim como a maioria dos Pais de sua classe Patriacutestica
(Apologistas)48 No entanto ele iniciou em Roma possivelmente a pedido do Bispo Higino49
ldquoagrave maneira das escolas de filosofia uma escola de iniciaccedilatildeo agrave religiatildeo cristatilderdquo50 na qual formou
disciacutepulos recebendo tambeacutem por esta iniciativa a possiacutevel desaprovaccedilatildeo da ldquoclasserdquo
intelectual de sua eacutepoca pois tudo indica que natildeo cobrava nenhuma compensaccedilatildeo ndash entenda-se
salaacuteriopagamento ndash de seus alunos51 Este periacuteodo ministerial de Justino na ldquocapital do mundordquo
teve tamanha repercussatildeo na histoacuteria da Igreja a ponto de Euseacutebio fazer questatildeo de reproduzir
algumas particularidades desse filoacutesofo cristatildeo deixando-nos assim uma robusta base
historiograacutefica de Justino o primeiro historiador da Igreja afirma que ldquofloresceu Justino Com
estofo de filoacutesofo era embaixador da palavra de Deus e lutava pela feacute com seus escritosrdquo52
Decorrido um periacuteodo de confrontaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas ndash especialmente no
acircmbito da eacuteticamoral ndash e de crescentes atritos com as esferas aristocraacuteticas da sociedade
romana Justino foi acusado de ser cristatildeo53 Tudo indica que a denuacutencia partiu de um filoacutesofo
45 FIGUEIREDO Curso de Teologia Patriacutestica I 1983 p 115
46 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
47 DROHNER Manual de Patrologia 2008 p 83
48 RIVAS San Justino en el proceso de separaciacuteon entre Judaiacutesmo y Cristianismo 2018
49 Acredita-se que devido ao crescimento de alguns movimentos gnoacutesticos (Marcionismo Valentianismo etc)
junto a capital do Impeacuterio o Bispo Higino (Nono Papa) solicitou a presenccedila de Justino na tentativa de se introduzir
uma formaccedilatildeo filosoacutefico-cultural cristatilde em Roma no empenho de se responder adequadamente mediante a
verdadeira doutrina de Cristo a estes representantes heterodoxos Ver FEacuteLIX Las filosofiacuteas en la teologiacutea de
Justino Maacutertir 2014 p 438
50 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1145
51 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010
52 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 10 8
53 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014
22
ciacutenico54 de caraacuteter duvidoso chamado Crescente O proacuteprio Justino registra em sua segunda
Apologia o pressentimento de que entregaria sua vida em prol da causa do Evangelho que o
libertou da ignoracircncia e o salvou da morte eterna Ele escreve ldquoEu mesmo espero ser viacutetima
das ciladas de algum desses democircnios aludidos e ser cravado no cepo ou pelo menos das ciladas
de Crescente esse amigo da desordem e da ostentaccedilatildeordquo55 Deste modo Justino e provavelmente
seis de seus disciacutepulos foram conduzidos diante do Prefeito de Roma chamado Juacutenio Ruacutestico56
Apoacutes ser julgado e condenado agrave morte ldquoSua sentenccedila foi a decapitaccedilatildeo que ocorreu por volta
do ano 165 dCrdquo57 Hamman ainda enobrece a posiccedilatildeo de Justino salientando que o Apologista
tinha a compreensatildeo de que diante de seus algozes natildeo se tratava ldquomais de convencer senatildeo de
confessarrdquo58 Assim mesmo nesse cenaacuterio de violecircncia a identidade e histoacuteria do filoacutesofo que
quando jovem peregrinava atraacutes das respostas do absoluto acaba por transformar-se por meio
de um ato de feacute o entatildeo filoacutesofo cristatildeo chamado Justino e morador da cidade de Roma passa
agora a ser tambeacutem o Maacutertir da Igreja de Cristo
Finalizamos este item com a descriccedilatildeo de Euseacutebio que com realce e temor retrata os
fatos finais da histoacuteria da vida de Justino
Por este mesmo tempo Justino mencionado haacute pouco depois de dedicar aos
supracitados imperadores seu segundo livro em defesa de nossas doutrinas foi
adornado com o sagrado martiacuterio O responsaacutevel pela conspiraccedilatildeo foi o filoacutesofo
Crescente - homem que se esforccedilava em levar uma vida e uma conduta bem adequadas
ao cognome de ciacutenico - pois Justino o havia repreendido muitas vezes em presenccedila
de seus ouvintes Justino com seu martiacuterio acabou cingindo o precircmio da vitoacuteria da
verdade da qual era embaixador59
54 O cinismo origina-se nas escolas filosoacuteficas da Greacutecia antiga que reivindicam uma linhagem socraacutetica Chamar
os ciacutenicos de ldquoescolardquo no entanto imediatamente levanta uma dificuldade para um grupo natildeo convencional e anti-
teoacuterico Seus principais interesses satildeo eacuteticos mas eles concebem a eacutetica mais como um modo de viver do que
como uma doutrina que precisa de explicaccedilatildeo Como tal askēsis ndash uma palavra grega que significa um tipo de
treinamento do eu ou da praacutetica ndash eacute fundamental Os ciacutenicos assim como os estoacuteicos que os seguiram caracterizam
o modo de vida ciacutenico como um ldquoatalho para a virtuderdquo (ver Dioacutegenes Laeacutercio Vidas de Filoacutesofos Eminentes)
Livro 6 Capiacutetulo 104 e Livro 7 Capiacutetulo 122) Embora muitas vezes sugiram que descobriram o caminho mais
raacutepido e talvez o mais certo para a vida virtuosa eles reconhecem a dificuldade desse caminho Ver PIERING
Julie In Cynics Internet Encyclopedia of Philosophy Texto completo em
lthttpswwwieputmeducynicsSSH3aigt
55 JUSTINO II Apologia VIII 9 1
56 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010
57 CAMPENHAUSEN Os Pais da Igreja A Vida e a Doutrina dos Primeiros Teoacutelogos Cristatildeos 2005 p 22 apud
SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 67
58 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 32
59 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 16 1
23
Apoacutes este introdutoacuterio exame biograacutefico comeccedilaremos a apresentar o cristatildeo e filoacutesofo
Justino em seu grupo de definiccedilatildeo Patriacutestica ou poderiacuteamos dizer no condicionamento
ministerial de seu exerciacutecio da manutenccedilatildeo e defesa da feacute cristatilde
12 PAIS DA IGREJA
Justino eacute um personagem histoacuterico do cristianismo mundial e possui seu assento no
espaccedilo definido pela teologia Patriacutestica como um PaiPadre da Igreja60 Em sua pesquisa de
ordenamento histoacuterico Santos salienta que ldquoele se insere num momento e num ciacuterculo muito
importante da histoacuteria do cristianismo primitivo naquilo que se convencionou chamar de
Padres da Igrejardquo61 Neste espaccedilo analiacutetico em que surgem terminologias de caraacuteter mais
temaacutetico desenvolvem-se alguns viacutenculos que visam obter uma melhor orientaccedilatildeo teoloacutegica
As ciecircncias intituladas Patriacutestica e Patrologia (denominaccedilatildeo predominante no acircmbito teoloacutegico
Catoacutelico Romano) detecircm as estruturas funcionalidades e linguagens que buscam o
aperfeiccediloamento deste ramo de pesquisa histoacuterica em meio a teologia Nesse espaccedilo torna-se
importante apresentar a sinteacutetica definiccedilatildeo oriunda da Congregaccedilatildeo para a Educaccedilatildeo Catoacutelica
em sua Instruccedilatildeo sobre o Estudo dos Padres da Igreja na Formaccedilatildeo Sacerdotal esta diz ldquoa
Patriacutestica ocupa-se do pensamento teoloacutegico dos Padres [] a Patrologia tem por objeto a vida
e os escritos dos mesmosrdquo62 Notamos que nesse ambiente se caracteriza uma espeacutecie de
sinoniacutemia entre os termos sendo isso o resultado de diversas siacutenteses oriundas do confronto de
algumas posiccedilotildees divergentes ao longo da histoacuteria da elaboraccedilatildeo teoloacutegica ocidental63 poreacutem
a definiccedilatildeo terminoloacutegica conhecida por Histoacuteria da Literatura Cristatilde Antiga utilizada por
Lazzati e Simonetti ndash mesmo que extensa e ainda pouco usada ndash devido a sua qualificaccedilatildeo
linguiacutestica acabou por se estabelecer Padovese resume bem essa proposta de ldquosimbioserdquo ao
60 Em vaacuterias liacutenguas eacute a mesma palavra para o significado de Padre e Pai pater em latim padre em italiano e em
espanhol pegravere em francecircs father em inglecircs Em portuguecircs haacute hoje distinccedilatildeo niacutetida entre Padre e Pai mas o sentido
original da palavra eacute o de Pai (ateacute natildeo muitos anos atraacutes diziacuteamos [na liturgia da ICAR] ldquoPadre nosso que estais
no ceacuteurdquo) Ver PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 17 grifo nosso
61 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 68
62 CONGREGACcedilAtildeO PARA A EDUCACcedilAtildeO CATOacuteLICA Instruccedilatildeo sobre o estudo dos Padres da Igreja na
Formaccedilatildeo Sacerdotal 1989 art 49
63 A Patriacutestica no mundo protestante tornou-se ldquoHistoacuteria dos Dogmasrdquo e tanto no acircmbito catoacutelico como
protestante alguns identificaram a Patrologia com a histoacuteria da literatura cristatilde (Harnack) ou com a ldquohistoacuteria da
literatura eclesiaacutesticardquo (Bardenhewer) ou ainda com a ldquohistoacuteria da literatura cristatilde antigardquo (Lazzati Simonetti)
Ver PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 22
24
sugerir que ldquoambas (Patriacutestica e Patrologia) juntamente com a histoacuteria da literatura cristatilde
antiga trabalham com as mesmas obrasrdquo64
Desta maneira a aacuterea de estudo dos Pais da Igreja tem sido objeto e alvo de diversas
pesquisas na atualidade aleacutem de ter sido um feacutertil campo para inuacutemeras e variadas abordagens
no decorrer dos seacuteculos havendo significativos trabalhos jaacute no Seacuteculo XVII65 Mais
recentemente (Seacuteculo XX)66 houve um reconhecimento do grande valor estrutural desse
segmento para o meio teoloacutegico de forma transconfessional onde acabou por acarretar
expressiva contribuiccedilatildeo em questotildees especialmente dogmaacuteticas Hall baseando-se no
pensamento de Casey desenvolve sua ideia atraveacutes de afirmaccedilotildees relevantes sob a importacircncia
do estudo da PatriacutesticaPatrologia para o ensino ordinaacuterio da teologia (academia) e da Igreja
(catequese)
Primeiro os pais satildeo os ldquomais proacuteximos beneficiaacuterios da tradiccedilatildeo apostoacutelicardquo Em
minhas proacuteprias palavras eles viveram e trabalharam em aproximaccedilatildeo hermenecircutica
com os escritores biacuteblicos especialmente os do novo testamento Segundo os pais
ldquoajudam-nos a entender nossas proacuteprias raiacutezesrdquo na feacute Terceiro muitos pais
escreveram e viveram como pastores Eles escreveram para ajudar as pessoas a
agarrar-se ao ensino de Cristo67
De maneira ampla podemos dizer que haacute algumas variaccedilotildees no meacutetodo e no estilo de
estudar o cenaacuterio patriacutestico em sua estrutura conjuntural Devemos iniciar salientando que o
periacuteodo patriacutestico simplesmente ldquonatildeo eacute definido como um marco cronoloacutegico mas como um
periacuteodo de passagemrdquo68 Deste modo uma delimitaccedilatildeo se constroacutei atraveacutes de uma conclusatildeo de
periacuteodos (estrutura temporal) ndash onde atributos culturais e eclesiaacutesticos se mesclam para gerar
uma definiccedilatildeo conceitual Nessa espeacutecie de ldquorestriccedilatildeo conceitualrdquo tambeacutem se encaixa o
conjunto de criteacuterios adotados no processo de seleccedilatildeo daqueles que podem receber tal tiacutetulo
honoriacutefico de Pai da Igreja mesmo que estes elementos de classificaccedilatildeo (ortodoxia
64 PADOVESE Leacutexicon ndash Dicionaacuterio Teoloacutegico Enciclopeacutedico 2003 p 576 apud SANTOS Identidade Cristatilde
no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 68 grifo nosso
65 DAILLEacute Traicte de lemploy des Saincts Peres pour le iugement des differends qui sont auiourdhui en la
religion 1632
66 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
67 CASEY Sacred Reading The Ancient Art of Lectio Divina 1995 p 105 apud HALL Lendo as Escrituras
com os Pais da Igreja 2003 p 56
68 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 25
25
santificaccedilatildeo reconhecimento eclesiaacutestico antiguidade)69 tenham possuiacutedo variaacuteveis (de meacuterito
e de forma)70 em sua aplicaccedilatildeo durante toda a histoacuteria Ainda nesse processo de formaccedilatildeo
tambeacutem cabe registrar a profunda influecircncia de indicaccedilatildeo geograacutefica ocorrida em todo esse
desenvolvimento onde uma linha divisoacuteria de significativa relevacircncia se apresenta quando faz
a separaccedilatildeo do ldquotemperamento teoloacutegico entre o Oriente e Ocidenterdquo71
Contudo cabe-nos assumir uma forma de classificaccedilatildeo e organizaccedilatildeo na elaboraccedilatildeo
desta pesquisa desta forma por utilizar-se de uma linguagem acessiacutevel e por apresentar maior
incidecircncia literaacuteria em meios natildeo teoloacutegicos utilizaremos das seguintes divisotildees baseadas no
trabalho de Hall descritas como
I Pais Apostoacutelicos (final do Seacuteculo I ateacute meados do II)
II Pais Apologistas ou Ante-Nicenos (Seacuteculo II)
III Pais Polemistas ou Nicenos (final do Seacuteculo II e Seacuteculo III)
IV Pais Cientiacuteficos ou Poacutes-Nicenos (Seacuteculo III ao V)72
O primeiro modo de classificaccedilatildeo iraacute se designar por uma abordagem de caraacuteter mais
funcional no que diz respeito a seus integrantes todos estatildeo relacionados ao periacuteodo
denominado de cristianismo antigoprimitivo recebendo assim o nome de Pais Apostoacutelicos
Foram os herdeiros diretos do chamado ldquodepoacutesito da Feacuterdquo o qual foi estabelecido atraveacutes da
missatildeo dos apoacutestolos de Cristo que detinham a autoridade e a grande responsabilidade de
perpetuar a doutrina apostoacutelica (entenda-se afirmar a continuidade da mensagem una santa e
catoacutelica do cristianismo por meio da manutenccedilatildeo daacute mensagem original) Jaacute os denominados
Pais Apologistas (grupo agrave qual Justino pertence) notabilizaram-se ndash principalmente devido agrave
notaacutevel qualidade de seus escritos ndash por defender a Feacute cristatilde de inuacutemeras accedilotildees repressivas agrave
doutrina e agraves comunidades fenocircmeno que se caracterizou especialmente no decurso do Seacuteculo
II Os Pais Polemistas salientam-se por sua ampla argumentaccedilatildeo no que confere a asseveraccedilatildeo
dos principais ensinos (doutrinasdogmas) do cristianismo protegendo-os das mais variadas
heresias tambeacutem afirmando suas peculiaridades mas acima de tudo pontuando estas instruccedilotildees
como questotildees indispensaacuteveis para a existecircncia da verdadeira Feacute em Cristo Por uacuteltimo os Pais
chamados ldquocientiacuteficosrdquo distinguiram-se por sua ecircnfase na densa aplicaccedilatildeo da Teologia em aacutereas
69 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 11
70 Bogaz Couto e Hansen indicam ainda um quinto criteacuterio na classificaccedilatildeo dos elementos para se ser credenciado
como um integrante do mundo patriacutestico eles o chamam de COLEGIALIDADE E DIAacuteLOGO Este visa analisar
a abrangecircncia do patrimocircnio teoloacutegico deixado pelo autor Ver BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica
caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 28 grifo do autor
71 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
72 HALL Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja 2003 Ver capiacutetulos III-V
26
filosoacuteficas e do conhecimento ldquonaturalrdquo (antropologia sociologia psicologia etc) de seu
tempo Cabe-nos ainda frisar por uma questatildeo teacutecnica que o periacuteodo Patriacutestico normalmente eacute
descrito ateacute figuras do Seacuteculo VIII73 poreacutem nossa abordagem natildeo esmiuccedilara tal fato pelo
mesmo exceder o tema proposto nesta pesquisa
Para terminar nossa lacocircnia abordagem de uma aacuterea tatildeo ampla e rica de conteuacutedo
devemos sustentar a premissa de que uma consistente estrutura para anaacutelise Patriacutestica se daacute
atraveacutes da apropriaccedilatildeo de seu legado intelectual e isso se constroacutei atraveacutes de um genuiacuteno exame
de suas obras Aqui se apresenta a Patrologia como a ciecircncia a ser seguida e exercitada em
sentido literal isso devido a essa ser a organizadora deste sistema Santos em sua pesquisa
contribui neste enfoque
Haacute ainda outra forma muito comum de se estudar os padres da Igreja que eacute a partir de
suas obras e ainda o estudo deles todos sem qualquer divisatildeo atendo-se agraves vezes agrave
cronologia tanto de suas obras quanto de sua existecircncia na linha do tempo agraves vezes
de forma alfabeacutetica Em ambos os casos satildeo estruturados de forma enciclopeacutedica ou
dispostos como um dicionaacuterio de pensadores cristatildeos Assim os padres da Igreja
fazem parte de um campo de estudo maior inserido no que pode ser chamado de
Histoacuteria das ideias ou do pensamento cristatildeo74
Seguindo em uma ordem organograacutefica examinaremos a partir de agora o grupo
Patriacutestico no qual Justino se enquadrou em seu exerciacutecio ministerial devido a suas
caracteriacutesticas filosoacuteficas e teoloacutegicas
121 Pais Apologistas
Verificamos que no decorrer do Seacuteculo II surgiu nas comunidades cristatildes uma iminente
necessidade de combater determinadas acusaccedilotildees aleacutem de procurar dissuadir visotildees distorcidas
sobre o cristianismo75 especialmente as relacionadas a questotildees que adotavam posturas parciais
que simplesmente acusavam a religiatildeo cristatilde de ser um legado para pessoas ldquoignorantes e
fanaacuteticasrdquo76 Tal incitaccedilatildeo jaacute estava ativa em grande parte do Impeacuterio Romano Desta forma a
73 Os estudiosos patriacutesticos definem o fechamento deste periacuteodo no ocidente com Gregoacuterio Magno (ou Isidoro de
Sevilha) no Seacuteculo VII e no Oriente com Joatildeo Damasceno no Seacuteculo VIII Ver BOGAZ COUTO HANSEN
Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 25
74 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 69
75 Ver FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 29-31
76 SIMONETTI In Apologeacutetica Literatura Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 181
27
Igreja ancorada em um ldquonuacutemero notaacutevel de gentios dotados de soacutelida formaccedilatildeo intelectualrdquo77
sendo sua maioria formada por ldquofiloacutesofosrdquo que haviam se convertido ao cristianismo acabaram
postando-se como baluartes desta nova religiatildeo tendo seus escritos (chamados de ldquotradiccedilatildeo
apologeacutetica cristatilderdquo78) como sua principal ldquoarmardquo de defesa estes (escritores e suas obras)
visavam ldquorefutar as calunias e [] expor o absurdo e a incoerecircncia dos ritos e dos mitos
pagatildeosrdquo79 aleacutem de apresentarem suas vidas como testemunhos da transformaccedilatildeo almejada por
esta feacute que defendiam Diante dos recursos aos quais protegiam e frente a busca de
ldquolegitimaccedilatildeordquo do cristianismo como religiatildeo no Impeacuterio estes cristatildeos questionavam de
maneira enfaacutetica as infundadas agressotildees propostas por aqueles que decidiam ldquofechar os seus
olhosrdquo as virtuosas obras geradas pelos seguidores desta Boa Nova Fluck contribui com ecircnfase
na tentativa de legitimaccedilatildeo que estes escritores apologistas procuraram dar a sua pregaccedilatildeo na
busca de toleracircncia para sua mensagem
Os apologistas queriam manifestar diante da opiniatildeo puacuteblica a verdadeira natureza do
Cristianismo Eles tinham a preocupaccedilatildeo de demonstrar a conformidade do
Cristianismo com o ideal helecircnico Proclamavam ndash na maioria dos casos ndash a alianccedila
do Cristianismo e da Filosofia Queriam mais do que somente toleracircncia Mostravam
que os cristatildeos eram os melhores cidadatildeos do Impeacuterio e que o Cristianismo favorecia
a grandeza do Impeacuterio80
Esta postura adotada por homens de elevada cultura acabou por robustecer e superar
uma necessidade existencial que havia surgido na relaccedilatildeo do cristianismo para com mundo
greco-romano isso devido agrave expansatildeo e estabilizaccedilatildeo em sociedades predominantemente
heleniacutesticas Os Pais Apologistas (em sua ampla maioria) inauguraram o que podemos chamar
de informaccedilatildeo ldquoad extrardquo81 ou seja estabelecer uma relaccedilatildeo de comunicaccedilatildeo para fora dos
ldquomurosrdquo da Igreja O que antes era conhecida como a dimensatildeo (alcance e destino para
mensagem) literaacuteria ndash definida como ldquoad intrardquo82 ndash no periacuteodo dos Pais Apostoacutelico agora era
acompanhada de um novo estilo linguiacutestico que abria espaccedilo e trazia em sua armaccedilatildeo tambeacutem
77 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988 p 69
78 ARZANI VENTURINI A Origem da Tradiccedilatildeo Apologeacutetica Cristatilde e Justino Maacutertir 2010 p 2
79 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 73
80 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 31
81 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011
82 FIGUEIREDO Curso de Teologia Patriacutestica I 1983 p 97
28
o ldquoconhecimento das ciecircncias das letras e da filosofiardquo83 Torna-se valiosa nessa abordagem as
consideraccedilotildees gerais de Haumlgglund sobre a importacircncia da accedilatildeo literaacuteria dos Apologistas
Os apologistas ocupam lugar de destaque na histoacuteria do dogma natildeo soacute devido a sua
descriccedilatildeo do cristianismo como a verdadeira filosofia como tambeacutem por sua tentativa
de elucidar ensinamentos teoloacutegicos com o auxiacutelio de terminologia filosoacutefica
contemporacircnea (por exemplo na assim chamada laquocristologia do Logosraquo) O que neles
encontramos por conseguinte eacute a primeira tentativa de definir de maneira loacutegica o
conteuacutedo da feacute cristatilde bem como a primeira conexatildeo entre teologia e ciecircncia entre
cristianismo e filosofia grega84
Acredita-se que o periacuteodo apologeacutetico teve seu iniacutecio no seio da Igreja com a literatura
de um disciacutepulo chamado Quadrato que possivelmente em 124125 dC apresentou ldquodianterdquo
do Imperador Adriano na cidade de Atenas (Greacutecia) uma espeacutecie de tratado que visava enfatizar
que Cristo em seu ministeacuterio terreno havia realizado diversas curas e milagres afirmando que
a ressurreiccedilatildeo de mortos foi algo emblemaacutetico entre esses feitos prodigiosos85 Aristides eacute outro
personagem que merece destaque como precursor desta classe Patriacutestica Euseacutebio se refere a
ele deste modo ldquoMas tambeacutem Aristides homem de feacute entregue a nossa religiatildeo deixou assim
como Codratos uma Apologia em favor da feacute que havia dirigido a Adriano Tambeacutem a obra
deste escritor se conservou ateacute nossos dias em muitos lugaresrdquo86 Nesse escrito o historiador da
Igreja iraacute apresentar uma das proposiccedilotildees recorrentes entre os escritos apologeacuteticos do periacuteodo
o de que somente os cristatildeos satildeo verdadeiramente eacuteticos isso devido principalmente aos seus
haacutebitos de elevada postura moral87 o que buscava demonstrar que eram os uacutenicos que
verdadeiramente conheciam a DeusDivindade88 e deste modo acabavam por serem os
ldquomelhores cidadatildeos do Impeacuteriordquo89 Desta forma seguindo quase que um modelo padratildeo de
abordagem esses Apologistas apelaram aacute razoabilidade dos governantes romanos de sua eacutepoca
exigindo destes natildeo apenas toleracircncia mas acima de tudo justiccedila
83 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 73
84 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 21
85 MORESCHINI NORELLI Manual de Literatura Cristatilde Antiga Grega e Latina 2005
86 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 3 3
87 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
88 MORESCHINI NORELLI Manual de Literatura Cristatilde Antiga Grega e Latina 2005
89 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 28
29
Ainda citamos o trabalho de Xavier que aborda de forma sinteacutetica outras figuras desse
periacuteodo apologeacutetico destacando sua alta produccedilatildeo textual que acabou por ter significativa
relevacircncia na estruturaccedilatildeo e funcionalidade de diversos segmentos do processo de formaccedilatildeo
dogmaacutetico na Igreja O relato agrega teor agrave nossa construccedilatildeo
Taciano disciacutepulo de Justino que compocircs ldquoDiscurso aos gregosrdquo Atenaacutegoras que
escreveu ldquoDefesa dos cristatildeosrdquo e um tratado ldquoSobre a ressurreiccedilatildeo dos mortosrdquo Por
volta do ano 180 o bispo de Antioquia Teoacutefilo escreveu ldquoTrecircs livros a Autoacutelicordquo
tratando da doutrina cristatilde de Deus a interpretaccedilatildeo das Escrituras e a vida cristatilde
refutando as objeccedilotildees dos pagatildeos sobre essas questotildees No seacuteculo terceiro Oriacutegenes
de Alexandria escreveu uma refutaccedilatildeo ldquoContra Celsordquo Todas essas obras foram
escritas em grego sendo que na liacutengua latina destacam-se dois escritos apologeacuteticos
a ldquoApologiardquo de Tertuliano e o ldquoOtaacuteviordquo de Minuacutecio Feacutelix90
Portanto fica registrado na histoacuteria da identidade cristatilde mais que um gecircnero literaacuterio
antes uma postura corajosa de homens de estimado caraacuteter que ldquotocados pelo testemunho dos
cristatildeos e pelo querigma apostoacutelicordquo91 comunicaram uma genuiacutena e autecircntica mensagem de
vida e esperanccedila Tambeacutem devemos afirmar que a ldquotarefa de defender a feacute diante desta classe
de ataques produziu algumas das mais notaacuteveis obras teoloacutegicas do seacuteculo segundordquo92
Provavelmente muitos poderosos abastados intelectuais e outros detentores das benesses que
compunham a aristocracia romana do periacuteodo foram confrontados e alcanccedilados pelo
testemunho destes disciacutepulos que enfatizaram o apelo agrave razatildeo na tentativa de evitar a loucura
humana Nesse ponto Xavier consegue expressar com clareza a provaacutevel motivaccedilatildeo destes
homens ldquoSuas principais intenccedilotildees eram fazer com que o cristianismo fosse visto como um
ideal de vida que podia ser aceito e vivido em conformidade com a cultura greco-romana sem
necessidade de serem os cristatildeos perseguidos mortos ou marginalizadosrdquo93
122 O Apologista Justino
Eacute importantiacutessimo iniciarmos este item com as palavras de Dreher Frangiotti
Haumlgglund e Hamman O primeiro diz ldquoEntre os apologetas cristatildeos que procuraram estabelecer
90 XAXIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 14 grifo do autor
91 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 73
92 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 86
93 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 14
30
um diaacutelogo com os filoacutesofos Justino (110-165) foi o mais importanterdquo94 O segundo
similarmente afirma ldquoJustino eacute certamente o melhor apologista do seacuteculo IIrdquo95 O terceiro daacute
mesma forma garante no uso de um superlativo a importacircncia do Apologista ldquoO mais notaacutevel
dos apologistas foi Justino cognominado laquoo maacutertirraquo cujas duas laquoapologiasraquo datam de meados
do segundo seacuteculordquo96 O quarto usando de adjetivaccedilatildeo similar agrave do anterior enobrece com
insigne descriccedilatildeo a figura do Apologista ldquoDe todos os filoacutesofos cristatildeos do seacuteculo II Justino eacute
o mais ceacutelebre e o maiorrdquo97
Neste espaccedilo faremos uma descriccedilatildeo sinteacutetica apresentando a figura de Justino dentro
de sua classe Patriacutestica tendo como centro de nossa atenccedilatildeo sua produccedilatildeo textual
especialmente de suas duas apologias que satildeo as nossas principais ferramentas de ponderaccedilatildeo
sobre sua atuaccedilatildeo ministerial Nessa composiccedilatildeo podemos dizer que entre os ldquoApologistas
Maioresrdquo98 nenhum ldquoestava mais bem preparado para esse confronto do que Justinordquo99 isso
devido a sua variada formaccedilatildeo filosoacutefica Aproximadamente entre os ldquoanos de 150 e 165
dCrdquo100 Justino se apresentou no cenaacuterio apologeacutetico cristatildeo de forma avultosa mesmo natildeo
sendo um literato de destaque ganhou espaccedilo seja por seu caraacuteter iacutentegro como tambeacutem por
sua postura de retidatildeo haacute doutrina a ponto de seus escritos mostrarem ldquoo calor nunca
desmentido das suas convicccedilotildeesrdquo101 Hamman define bem essa peculiaridade na literatura de
Justino ao dizer que a ldquooriginalidade de Justino natildeo estaacute na sua qualidade literaacuteria mas na
novidade de seu esforccedilo teoloacutegicordquo102
Deste modo Justino conseguiu expressar muito bem aquilo que se tornaria o estandarte
apologeacutetico deste periacuteodo afirmando que o cristianismo ldquoeacute a filosofia segura e proveitosardquo103
levando-nos a conclusatildeo de que em ldquoCristo deu-se portanto a restauraccedilatildeo da filosofiardquo104
Nota-se que Justino estava absolutamente convencido de que havia encontrado o verdadeiro
94 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47 grifo nosso
95 FRANGIOTTI Introduccedilatildeo In I Apologia 1995 p 6 grifo nosso
96 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 21 grifo nosso
97 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 27 grifo nosso
98 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 80
99 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 28
100 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1145
101 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 56
102 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 31
103 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo VIII 1
104 BARRERA A Biacuteblia Judaica e a Biacuteblia Cristatilde introduccedilatildeo a histoacuteria da Biacuteblia 1995 p 663 apud FLUCK
Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 32
31
caminho ldquoe passou a defendecirc-lo de diversas maneiras por meio de seus ensinos em seus
escritos e em sua vida e morte como maacutertirrdquo105 Assim como resultado de sua produccedilatildeo
literaacuteria Justino acabou destacando-se a ponto de se tornar ldquoo principal dos apologistas gregos
do seacuteculo IIrdquo106 como jaacute referido acima vale ainda mencionar o seleto testemunho de Euseacutebio
nessa constituiccedilatildeo este nos sugere que o legado apologeacutetico de Justino eacute consequecircncia de um
elaborado processo do conhecimento ao qual este passou a possuir ele escreve ldquoTambeacutem por
este tempo Justino sincero amante da verdadeira filosofia continuava ainda ocupado em
exercitar-se nas doutrinas dos gregos [] Na mesma obra demonstra que sua conversatildeo da
filosofia grega agrave religiatildeo natildeo se fez sem razatildeo mas com juiacutezordquo107
Contudo ainda nos cabe um raacutepido registro histoacuterico relativo agrave produccedilatildeo literaacuteria de
Justino referente a questatildeo de se apontar qual seria sua habilitaccedilatildeo como um autecircntico
Apologista do Seacuteculo II Obviamente esta capacidade teacutecnica proveacutem daquilo que eacute a parte
material de sua arte no caso de Justino suas obras108 A pesquisa historiograacutefica apresenta ldquo8
obrasrdquo109 creditadas a Justino por Euseacutebio110 fazendo com que nosso autor seja reconhecido
como um escritor de ldquofecundardquo111 atividade literaacuteria no passado entretanto como autecircnticas
chegaram ateacute noacutes apenas trecircs destas diversas obras satildeo elas a I e II Apologia e um relato
argumentativo com um provaacutevel rabino judeu intitulado de Diaacutelogo com Trifatildeo112 Entre as
Apologias a primeira eacute direcionada agrave classe imperial Romana (Antonino Pio e seus filhos
Marco Aureacutelio e Luacutecio Vero) como tambeacutem ao senado Jaacute a segunda eacute motivo de um amplo
debate na esfera da criacutetica textual por natildeo apresentar um relato introdutoacuterio nem um
destinataacuterio de forma objetiva Muitos acreditam ser esta obra um apecircndice da I Apologia Nesta
cena eacute relevante a pesquisa de Santos que cita as bases de Euseacutebio aleacutem de outros trecircs autores
que nos auxiliam de forma eficaz na elucidaccedilatildeo desta questatildeo mesmo que natildeo possam pocircr um
fim a discussatildeo ele diz
105 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 13 grifo nosso
106 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 13
107 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 3 5
108 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
109 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988 p 76
110 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 18 1-6
111 FIGUEIREDO Curso de Teologia Patriacutestica I 1983 p 115
112 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 83 SIMONETTI In Justino
Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1145
32
Destas obras cabem-nos as seguintes consideraccedilotildees quanto agraves duas primeiras a
primeira apologia citada em Euseacutebio corresponde a I Apologia que chegou ateacute noacutes A
segunda apologia natildeo corresponde a II Apologia que temos Primeiro porque natildeo
possui uma introduccedilatildeo e nem um destinataacuterio enquanto que a citada por Euseacutebio
possui um destinataacuterio O segundo ponto que corrobora este ponto de vista eacute a citaccedilatildeo
que Euseacutebio faz da primeira apologia Diz ele ldquoo mesmo autor (Justino) em sua
primeira Apologiardquo e conta uma histoacuteria que consta em nossa II Apologia II 1-20
(EUSEacuteBIO DE CESAREacuteIA Histoacuteria Eclesiaacutestica IV 17) Eacute mais provaacutevel que a dita
II Apologia que chegou ateacute noacutes seja um apecircndice da I Apologia (FRANGIOTTI 1995
MORESCHINI amp NORELLI 2005 p 110)113
Diante de tatildeo curioso e desafiante cenaacuterio eacute valioso buscar compreender o propoacutesito
dos tratados de Justino pois por ldquotraacutes deste esforccedilo descobrimos o testemunho de um homem
de uma conversatildeo de uma opccedilatildeo definitivardquo114 opccedilatildeo que nos oferece a possibilidade de
conhecer o verdadeiro e uacutenico Deus e se necessaacuterio for viver e morrer na defesa deste
Evangelho que nos leva ao verdadeiro conhecimento115
Apoacutes abordar a figura de Justino em sua classe Patriacutestica e salientar resumidamente
seu instrutivo serviccedilo para com o cristianismo seraacute analisada de maneira diminuta mas com
dedicado alinho a dataccedilatildeo e a estrutura literaacuteria da primeira obra apologeacutetica que serve de esteio
para esta pesquisa
13 ANAacuteLISE LITERAacuteRIA DA I APOLOGIA DE JUSTINO
A constituiccedilatildeo textual da primeira obra de Justino apresenta caracteriacutesticas histoacuterico-
literaacuterias muito interessantes como tambeacutem evidecircncia aspectos relevantes na assimilaccedilatildeo do
desenvolvimento do cristianismo dos dois primeiros seacuteculos Desta forma reconhecemos a
necessidade de uma abordagem cientiacutefica ndash mesmo que aqui apresentada de maneira lacocircnica
ndash de algumas aacutereas da anaacutelise criacutetica textual para uma melhor assimilaccedilatildeo de nosso escrito
alicerccedilante Assim um enfoque calculado na dataccedilatildeo na divisatildeo no gecircnero literaacuterio e nas
principais peccedilas quirograacuteficas da I Apologia de Justino nos possibilitaratildeo uma melhor
compreensatildeo dos conteuacutedos e elementos que a mesma visa comunicar A partir de agora nosso
objetivo seraacute examinar estas quatro aacutereas
131 Dataccedilatildeo
113 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 70
114 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 31
115 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
33
Apresenta-se praticamente como ponto paciacutefico na pesquisa histoacuterica-teoloacutegica que a
obra tenha sido escrita em meados do Seacuteculo II de nossa Era sendo reconhecida como a data
mais aceita para esta afirmaccedilatildeo o periacuteodo entre os anos de 150 e 160 dC116 Essa tese encontra
forccedila significativa atraveacutes de quatro argumentos todos de cunho e alccedilada existencial
comunicados na proacutepria obra Inicialmente os destinataacuterios para quem esse escrito apologeacutetico
de Justino se dirigiu garantem um aporte histoacuterico consideraacutevel neste exame o mesmo escreve
ldquoAo imperador Tito Eacutelio Adriano Antonino Pio Ceacutesar Augusto ao seu filho Veriacutessimo filoacutesofo
e a Luacutecio filho natural do Ceacutesar filoacutesofo e filho adotivo de Pio amante do saber ao sacro
Senado e a todo o povo romanordquo117 Por meio desse dado Frangiotti eacute categoacuterico ao afirmar que
eacute ldquofato que estes imperadores reinaram do ano 147 ao ano 161 A Apologia deve ter sido escrita
ao longo destes 15 anosrdquo118
Em segundo outro fator se apresenta determinante na tentativa de se apontar
satisfatoriamente a data desse escrito o ponto em questatildeo se apresenta no capiacutetulo XLVI da
obra novamente o comentaacuterio de Frangiotti eacute valioso por apresentar evidecircncias importantes
Justino menciona que uma das objeccedilotildees contra a doutrina cristatilde era a de ldquodizermos
que Cristo nasceu somente haacute cento e cinquenta anos sob Quirino e ensinou sua
doutrina mais tarde no tempo de Pocircncio Pilatosrdquo Embora se deva tomar o ano cento
e cinquenta como um arredondamento pode-se pensar que a redaccedilatildeo da I Apologia
natildeo se deu antes desta data119
O terceiro elemento a se tornar pontual no texto de Justino eacute sua menccedilatildeo a respeito da
terceira revolta judaica liderada por Simatildeo Bar Koacutekeba em meados do Seacuteculo II A respeito
disto Justino relata com ecircnfase apologeacutetica que ldquoCom efeito na guerra dos judeus agora
terminada Bar Koacutekeba o cabeccedila da rebeliatildeordquo120 estaria aplicando meacutetodos de tortura nos
cristatildeos ao seu redor Santos mostra em sua pesquisa que esta exposiccedilatildeo de Justino pode ser
considerada como um ponto norteador para uma medida qualificada de dataccedilatildeo de sua obra o
116 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988 DROHNER Manual
de Patrologia 2008
117 JUSTINO I Apologia I 1
118 FRANGIOTTI Introduccedilatildeo In I Apologia 1995 p 7
119 FRANGIOTTI Introduccedilatildeo In I Apologia 1995 p 7
120 JUSTINO I Apologia XXXI 6
34
historiador diz ldquoEssa rebeliatildeo ocorreu entre os anos de 132 e 135 dC A expressatildeo lsquoagora
terminadarsquo nos remete a uma data posterior ao final da revoltardquo121
O quarto e uacuteltimo argumento baseia-se no relato de Justino encontrado no capiacutetulo
XXIX nos versos 2 e 3 da I Apologia Neste espaccedilo o Apologista retrata um caso juriacutedico
envolvendo o prefeito de Alexandria denominado Feacutelix que havia indeferido um pedido
exoacutetico proposto por um jovem cristatildeo que desejava castrar-se por motivos asceacuteticos Bases
histoacutericas confiaacuteveis ldquoidentificam o prefeito Feacutelix como Minuacutecio Feacutelix o qual reinou em
Alexandria do ano 148 a 154rdquo122 podendo-se deste modo catalogar outro importante elemento
que corrobora para a dataccedilatildeo da I Apologia
Por fim mesmo que natildeo sejamos especialistas na anaacutelise historiograacutefica nem mesmo
nos seja possiacutevel definir uma data precisa para o escrito examinado ainda assim em vista dos
termos aqui apresentados reconhecemos com a ampla maioria de pesquisadores da aacuterea que
os elementos apresentados trazem recursos suficientes para que atestemos que a I Apologia de
Justino tenha realmente sido escrita por volta da deacutecada de 50 do Seacuteculo II da era cristatilde
132 Divisatildeo Textual
O escrito natildeo segue um padratildeo riacutegido de construccedilatildeo textual pelo contraacuterio digressotildees
satildeo comuns em todas as obras de Justino mesmo que suas apologias sofram menos com
divagaccedilotildees abruptas ou mudanccedilas draacutesticas de rumo nas intenccedilotildees e consideraccedilotildees centrais que
o autor propotildee em suas conjunccedilotildees temaacuteticas Essas variaccedilotildees possivelmente ocorrem devido a
Justino preferir seguir uma proposta de caraacuteter mais catequeacutetico em vez de sua proacutepria
elaboraccedilatildeo conceitual123
Baliza-se de maneira majoritaacuteria na anaacutelise criacutetica a concordacircncia de que a obra se
divide em duas partes principais124 Contudo apresentam-se variaccedilotildees nessa forma de
separaccedilatildeo Nossa opccedilatildeo seraacute por apresentar a estrutura oferecia por Drohner por ser a mais
utilizada por outros autores aleacutem de parecer a que melhor reporta o teor do pensamento
proposto por Justino em sua construccedilatildeo apologeacutetica-doutrinal
121 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 72
122 FRANGIOTTI Introduccedilatildeo In I Apologia 1995 p 7
123 DROHNER Manual de Patrologia 2008
124 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988 DROHNER Manual
de Patrologia 2008
35
Na primeira parte os capiacutetulos I ao XXIX estabelecem uma forte e riacutegida postura de
defesa contra algumas acusaccedilotildees lanccediladas sobre os cristatildeos como a praacutetica do ateiacutesmo por
exemplo Salienta-se neste espaccedilo sua afirmaccedilatildeo de que Jesus Cristo eacute ldquoo Logos e Filho de
Deusrdquo125 que revelou os planos demoniacuteacos que aprisionam a humanidade atraveacutes de praacuteticas
pecaminosas afastando-os do plano de salvaccedilatildeo No entanto boas novas se anunciam a partir
de agora pela revelaccedilatildeo do Logos por meio dos cristatildeos pelo qual todos (homens) poderatildeo
tornar-se tementes a Deus A segunda parte se desenvolve entre os capiacutetulos XXX ao LXVIII
nesta seccedilatildeo questotildees dogmaacuteticas (Encarnaccedilatildeo Divindade Profecias etc) questotildees filosoacuteficas
(revelaccedilatildeo do Logos faacutebulas humanas Platonismo etc) e questotildees sacramentaiseclesiaacutesticas
(Batismo Santa Ceia Liturgia) se aglutinam na formataccedilatildeo de uma ideia para defesa da
identidade e do bem-estar de um ldquopovordquo (conceito que abordaremos mais detalhadamente no II
capiacutetulo deste trabalho)
A partir desse item trataremos do gecircnero literaacuterio da obra algo muito importante na
elaboraccedilatildeo desta pesquisa
133 Gecircnero Literaacuterio
O estilo natildeo eacute novo nem recente e foi muito utilizado na antiguidade126 Podemos
afirmar com seguranccedila que as primeiras referecircncias a esse tipo de literatura de que dispomos
datam do periacuteodo da Filosofia Claacutessica e podem ser encontradas a partir do Seacuteculo IV aC
Provavelmente uma das obras mais conhecidas e renomadas deste tipo eacute a Apologia de Soacutecrates
escrita por seu aluno Platatildeo Nela aquele que possivelmente foi o mais dedicado dentre seus
disciacutepulos procura defender o legado e a imagem de seu mestre por meio da preservaccedilatildeo do seu
pensamento Eacute importante frisar neste contexto a abordagem de forma direta e completa (em
um estilo dialogal-filosoacutefico) do processo (meacutetodo) de julgamento de Soacutecrates oferecida por
Platatildeo a tocircnica do relato parece ganhar a direccedilatildeo de querer conscientizar seus ouvintes da
necessidade de se fazer justiccedila independentemente do caso e das circunstacircncias que estatildeo em
debate Esse estilo acaba por influenciar sua eacutepoca e torna-se o modelo apologeacutetico a ser
seguido nos seacuteculos seguintes127
Contribui ainda para uma melhor assimilaccedilatildeo das intenccedilotildees subjacentes a esse estilo
de linguagem e escrita o pensamento de Malta que ao comentar os diaacutelogos que tratam do
125 DROHNER Manual de Patrologia 2008 p 84
126 MALTA Introduccedilatildeo In Apologia de Soacutecrates 2008
127 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
36
processo contra Soacutecrates (os quais satildeo quatro Ecircutifon Apologia de Soacutecrates Criacuteton e Feacutedon)
acaba por colaborar de maneira expressiva na elaboraccedilatildeo do caraacuteter que estas obras (apologias)
procuravam transmitir aos seus receptores ldquoEntre eles haacute uma clara sequencia dramaacutetica desde
a discussatildeo sobre o ponto central da acusaccedilatildeo (o que eacute piedade) passando pela defesa no
tribunal e a estada na prisatildeo ateacute o momento em que a pena de morte eacute cumpridardquo128
A palavra apologia (grego απολογια) que no portuguecircs eacute definido como um
substantivo feminino129 eacute formada por dois vocaacutebulos gregos O primeiro eacute απο uma partiacutecula
primaacuteria uma preposiccedilatildeo cujo significado baacutesico eacute a ideia ldquode separaccedilatildeo eou de origem do
lugar de onde algo estaacute vem acontece eacute tomadordquo130 O segundo eacute o vocaacutebulo λογος de
significado vasto ndash desenvolvendo inclusive uma estrutura particular junto ao cristianismo131
ndash mas colocado em paralelo com o nosso exame pode ser definido como ldquopalavra proferida
a viva voz que expressa uma concepccedilatildeo ou ideia o que eacute declarado pensamento declaraccedilatildeo
aforismo dito significativo sentenccedila maacuteximardquo132 ldquoproclamaccedilatildeo ensinamento [] doutrina
parte de uma doutrinardquo133 Entretanto deve-se sempre se levar em conta que junto ao ambiente
filosoacutefico-teoloacutegico de Justino ldquoum duplo uso do termo deve ser distinguido um que diz
respeito ao falar e outro que se relaciona com o pensamentordquo134 Neste cenaacuterio ainda se
robustece a ideia de que o termo composto (απολογια) era condutor de um conceito de
soberania instaurado pela ldquosabedoria pessoal e poder em uniatildeo com Deusrdquo135 Ainda focando
128 MALTA Introduccedilatildeo In Apologia de Soacutecrates 2008 p 11
129 Apologia (amiddotpomiddotlomiddotgimiddota) Substantivo feminino Significa 1 Discurso encomiaacutestico 2 [Figurado] Elogio 3
Defesa laudatoacuteria Ver Dicionaacuterio Priberam da Liacutengua Portuguesa Disponiacutevel em
lthttpsdicionariopriberamorgapologiagt Acesso em 28 de set 2018
130 STRONG Dicionaacuterio Biacuteblico Strong 2002 p 1317
131 Ritt sugere-nos que a partir dos registros neotestamentaacuterios houve uma guinada na concepccedilatildeo do Logos como
elemento estrutural e funcional para a realidade histoacuterica do termo junto as culturas e os ambientes intelectuais
que o utilizavam Utilizando-se de um sistema de progressatildeo biacuteblica Ritt chega ao proacutelogo do Evangelho de Joatildeo
onde salienta que ldquoEstas declaraccedilotildees que estatildeo concentradas na encarnaccedilatildeo permitem reconhecer uma origem
cristatilde do hino (proacutelogo do Evangelho de Joatildeo)rdquo onde a autenticidade do sujeito (Logos) como um recurso estaacutevel
e completo para a humanidade se daacute a conhecer nesse evento apoteoacutetico (encarnaccedilatildeo de Cristo) Ver RITT In
λόγος ου ό Diccionario Exegetico del Nuevo Testamento Volumen II 1998 p 78 grifo nosso No original Estos
enunciados que se concentran en la encarnacioacuten permiten reconocer un origen cristiano del himno
132 STRONG Dicionaacuterio Biacuteblico Strong 2002 p 1622
133 RUSCONI Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento 2003 p 288 grifo nosso
134 THAYER A Greek-English lexicon of the New Testament being Grimms Wilkes clavis novi testamenti 1889
p 880 No original a twofold use of the term is to be distinguished one which relates to speaking and one which
relates to thinking
135 THAYER A Greek-English lexicon of the New Testament being Grimms Wilkes clavis novi testamenti 1889
p 882 No original personal wisdom and power in union with god
37
este segundo vocaacutebulo para uma maior amplitude do assunto sobre este termo grego tatildeo
ilustrativo vale-nos citar a definiccedilatildeo de Pereira
Palavra dito revelaccedilatildeo divina resposta dum oraacuteculo maacutexima sentenccedila exemplo
decisatildeo resoluccedilatildeo condiccedilatildeo promessas pretexto argumento ordem menccedilatildeo
notiacutecia que corre conversaccedilatildeo relato mateacuteria de estudo ou de conversaccedilatildeo razatildeo
inteligecircncia senso comum a razatildeo de uma coisa motivo juiacutezo opiniatildeo estima valor
que se daacute a uma coisa justificaccedilatildeo explicaccedilatildeo a razatildeo divina136
Rapidamente atentando aos escritos apologeacuteticos cristatildeos do Seacuteculo II notamos um
ldquoesforccedilo de aproximaccedilatildeordquo137 dos Pais Apologistas (em sua ampla maioria) para a utilizaccedilatildeo da
consagrada forma do diaacutelogo-filosoacutefico (como citado acima) isso devido especialmente ao fato
de essas obras serem direcionadas agrave aristocracia poliacuteticaintelectual de sua eacutepoca incluindo
nesse cenaacuterio opulente os proacuteprios Imperadores de Roma138 Uma importante referecircncia a ser
associada a este contexto estaacute relacionada agrave utilizaccedilatildeo e significado da palavra ldquoapologiardquo
utilizada por Euseacutebio na identificaccedilatildeo da obra de Justino Euseacutebio ndash possivelmente o primeiro
a empregar o termo (apologia) para definir um conjunto de escritos do meio cristatildeo139 ndash utiliza
das seguintes descriccedilotildees para se referir ao nosso autor ldquoEm sua primeira Apologiardquo140 ou ldquoao
escrever sua Apologia dirigida a Antoninordquo141 e ainda ldquoem sua Apologiardquo142 Eacute importante
frisar que Justino em nenhum momento se utiliza do termo ldquoapologiardquo em sua obra143 mas a
define como ldquodiscurso e suacuteplicardquo144 todavia para Euseacutebio (e para a Sagrada Tradiccedilatildeo na qual
este se amparava) Justino indiscutivelmente havia sido um fiel defensor da verdade revelada
de Deus Aleacutem disso neste quadro cabe-nos ainda ressaltar o comentaacuterio de Arzani e Venturini
ao trabalho de Euseacutebio pois ambos buscam definir uma ideia qualitativa e funcional na
utilizaccedilatildeo do termo pelo historiador
136 PEREIRA Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 1998 p 350
137 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 188
138 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988
139 ARZANI VENTURINI A Origem da Tradiccedilatildeo Apologeacutetica Cristatilde e Justino Maacutertir 2010 Para um maior
aprofundamento do tema ver 2 Euseacutebio de Cesareia as apologias e os apologistas p 2-7
140 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica II 13 2 VI 17 1
141 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 3
142 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 11 11
143 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
144 JUSTINO I Apologia I 1
38
Uma anaacutelise mais ampla sobre a constituiccedilatildeo (ou natildeo) dos gecircneros apologeacuteticos
cristatildeos deve ficar para uma outra oportunidade entretanto considerando que eacute
Euseacutebio quem primeiro apresenta uma ideia mesmo que hipoteacutetica do
reconhecimento das formas dos textos de defesa dos cristatildeos ou de suas crenccedilas eacute
preciso considerar como ele emprega o termo apologia Aleacutem de empregar o termo
apologia para se referir aos sete textos anteriormente citados ele tambeacutem o usa no seu
sentido claacutessico como simples ldquodiscurso de defesardquo145
Desta forma podemos concluir que os escritos apologeacuteticos buscavam efeitos
similares tanto no cenaacuterio cristatildeo quanto no pagatildeo Poreacutem no que cabe agrave Igreja vale ressaltar
que o estilo apologeacutetico procurou desconstruir equiacutevocos salientar o cristianismo como religiatildeo
ordeira e beneacutefica ndash entenda-se (baseado em alguns relatos Patriacutesticos) como superior agraves
demais crenccedilas ndash mas acima de tudo sanar as injusticcedilas cometidas contra os cristatildeos Nesse
uacuteltimo ponto a penna dos Apologistas procurava pesar contra a consciecircncia dos governantes
de seu tempo a reflexatildeo de Richard Norris considera bem essa questatildeo ldquoo objetivo de tais
escritos eram em geral persuadir as autoridades de que as frequentes perseguiccedilotildees locais eram
injustas desnecessaacuterias e indignas de governantes esclarecidosrdquo146
A partir deste item visando a qualificaccedilatildeo deste trabalho damos segmento a nosso
exame estrutural agregando a seu corpo um destacado incremento teacutecnico falemos agora dos
manuscritos da I Apologia
134 Manuscritos
A criacutetica textual somada a inuacutemeras e significativas descobertas arqueoloacutegicas tecircm
possibilitado haacute teologia avanccedilos consideraacuteveis em suas pesquisas acerca dos documentos
antigos do cristianismo No que se refere as obras de Justino isso natildeo eacute diferente pois desde o
Seacuteculo XIX a criacutetica textual jaacute possibilitava exames bem estruturados ao meio acadecircmico
Exemplo disto eacute Johann Otto que ao analisar o Codex Claromontanus LXXXII ratificou que
este de maneira inicial ldquonos fornece alguns dos escritos de Justinordquo147 Nesta questatildeo cabe
ressaltar que das obras preservadas de Justino possuiacutemos apenas trecircs manuscritos mesmo que
apenas um seja considerado absolutamente confiaacutevel pela criacutetica suscitando desta forma certa
controveacutersia entre os analistas Quanto a esta pendecircncia citamos parte consideraacutevel da pesquisa
145 ARZANI VENTURINI A Origem da Tradiccedilatildeo Apologeacutetica Cristatilde e Justino Maacutertir 2010 p 3-4
146 NORRIS The Apologists 2004 p 36 apud SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I
Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 74
147 OTTO Prolegocircmenos XXI In S Iustini philosophi et martyris opera quae feruntur omnia Volume 1 Part 1
1847
39
de Santos que baseada em autores renomados da aacuterea daacute o destaque necessaacuterio a essa anaacutelise
quirograacutefica O autor nos agrega relevante contribuiccedilatildeo neste item teacutecnico
Haacute trecircs manuscritos para as obras de Justino o Codex Parisinus Graecus 45055 o
Codex Claromontanus LXXXII e o Codex Ottobonianus Graecus 274 (MINNS amp
PARVIS 2009 p 3) Alguns comentadores preferem atribuir um manuscrito (AUNE
2003 p 257 ALLERT 2002 p 32 POPE 2001 p 7) ou dois manuscritos
(DONALDSON 1866 p 144) Os que defendem a existecircncia de somente um
manuscrito levam em conta que o Codex Parisinus Graecus 450 eacute o uacutenico vaacutelido uma
vez que o Codex Claromontanus LXXXII eacute apenas uma coacutepia deste e o Codex
Ottobonianus Graecus 274 possui apenas trecircs capiacutetulos da I Apologia Aqueles que
consideram como dois manuscritos referem-se aos dois primeiros Por questatildeo de
coerecircncia (pois apesar do Claromontaus ser coacutepia natildeo deixa de ser um manuscrito e
o Ottobonianus mesmo tendo apenas trecircs capiacutetulos tambeacutem natildeo) concordamos com
a afirmaccedilatildeo de Minns e Parvis de que existem trecircs manuscritos148
No entanto eacute fato que o Codex Parisinus Graecus 450 se condiciona como o ldquomelhorrdquo
destes manuscritos existentes Este manuscrito data de 11 de setembro de 1363-1364 possui
467 paacuteginas duplas (ou foacutelios que medem 285 x 215 cm) e atualmente permanece arquivado
na Bibliothegraveque Nationale em Paris149 Infelizmente natildeo haacute informaccedilotildees sobre quem teria sido
o copista apenas sabe-se graccedilas a um registro oficial que ele pertenceu a Guillaume Pellicier
um notaacutevel Bispo Catoacutelico Romano do Seacuteculo XVI que provavelmente o adquiriu em uma de
suas atividades diplomaacuteticas possivelmente entre os anos de 1539 a 1542150
Enfim apoacutes explorarmos ndash mesmo que de maneira sucinta ndash a estrutura textual da obra
central desta dissertaccedilatildeo podemos afirmar que estes documentos histoacutericos nos ldquocomunicamrdquo
e ldquotraduzemrdquo um melhor conhecimento do passado edificando a Igreja e tambeacutem certificando
o meio acadecircmico de forma eficaz (cientificamente) de que homens como Justino lutaram
corajosamente para defender a feacute de seus irmatildeos especialmente das perseguiccedilotildees oficiais
assunto que trataremos a seguir
14 A PERSEGUICcedilAtildeO AOS CRISTAtildeOS
Compreendemos ser ainda importante na construccedilatildeo desta pesquisa enfocarmos
mesmo que de maneira sucinta e setorizada um dos fatores que constituiu uma das
caracteriacutesticas mais vibrantes e significativas da histoacuteria do cristianismo em sua gecircnese como
148 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 74
149 PAUTIGNY In Introduction Justin Apologies 1904 p 10
150 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
40
movimento humano-religioso fato que mobilizou o cenaacuterio social da eacutepoca comprovando a
ldquoexistecircncia de um esquemardquo151 de perseguiccedilatildeo e cerceamento da liberdade de crenccedila e culto dos
cristatildeos isso tanto atraveacutes do agir do poder estatal quanto de setores organizados (especialmente
do meio religioso) da sociedade de entatildeo em sua formaccedilatildeo soacutecia-politica-religiosa de caraacuteter
cultural greco-romana Esta caracteriacutestica coativa acabou por se comprovar tambeacutem atraveacutes do
desenvolvimento de material textual como o que norteia nosso trabalho (I Apologia) acento
que sancionou uma regra funcional dos dias de nosso autor a de acionar a razatildeo humana para
tentar evitar uma insensata postura detrativa entre os homens autodeclarados de civilizados
Desta forma como parte derradeira deste capiacutetulo introdutoacuterio apresentamos duas
divisotildees uma temaacutetica e outra analiacutetica trazendo ambas carateriacutesticas funcionais especiacuteficas
desse sistema de repressatildeo A primeira retrata uma siacutentese deste processo na organizaccedilatildeo
estrutural do Impeacuterio Romano A segunda se orienta por um periacuteodo cronoloacutegico que se
desenvolveu durante o Seacuteculo II especialmente concentrando-se no dececircnio em que se acredita
que Justino tenha escrito sua primeira obra apologeacutetica
141 O Impeacuterio Romano e a Perseguiccedilatildeo ao Cristianismo
Desde o Seacuteculo I a ldquopesquisa histoacutericardquo152 jaacute nos retrata com eficiecircncia fatos que
tiveram influecircncia decisiva do poder humano controlador do mundo de entatildeo (Impeacuterio Romano)
para com a Igreja de Cristo sobre a terra Dessa grande estrutura poliacutetica da antiguidade emergiu
tanto a perseguiccedilatildeo quanto o resultado mais elementar e simboacutelico deste processo que tinha o
cristianismo como alvo o martiacuterio de seus seguidores Poderiacuteamos chamaacute-lo sem o apelo a
nenhum eufemismo de ldquoassassinatordquo de centenas de pessoas
Contudo nesta seacuterie de sucessivos acontecimentos anormais vem a nascer a mais
significativa contribuiccedilatildeo deste intolerante processo governamental a saber a expansatildeo do
cristianismo Hatzenberger desenvolve uma soacutelida ideia a esse respeito quando conjectura sobre
o caraacuteter poliacutetico vigente junto ao Impeacuterio Tendo analisado seus preconceitos limitaccedilotildees e
maliacutecias Hatzenberger tenta explicar a capacidade desse sistema atraveacutes de sua multiplicidade
de gecircnios dando a entender que nesta ampla diversidade o cristianismo encontrou sua
possibilidade de crescer Hatzenberger afirma que podemos ldquodizer que o Impeacuterio Romano era
um tambor de gasolina agrave espera da faiacutesca da feacute cristatilderdquo153
151 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004 p 356
152 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004 p 356
153 HATZENBERGER Histoacuteria da Igreja 2012 p 1
41
Entretanto as perseguiccedilotildees estatais ao cristianismo satildeo um caso histoacuterico delicado e
nada romacircntico pois tornou-se uma dura realidade para muitas comunidades cristatildes na
antiguidade isso devido ao grande desenvolvimento do cristianismo que no decorrer dos seus
primeiros 100 anos suscitou uma consideraacutevel preocupaccedilatildeo ao Impeacuterio Catalogada desde cedo
como uma religiatildeo antagonista e excludente154 pela sua recusa em seguir praacuteticas comuns do
meio social vigente das grandes cidades onde jaacute se encontrava consolidada ndash devido
especialmente as suas posiccedilotildees quanto as questotildees de ordem cuacuteltica (ldquofestas oficiaisrdquo155) como
a adoraccedilatildeo aos ldquodeuses pagatildeos em particular o Imperador a quem negavam o caraacuteter divinordquo156
ndash fazia com que os seguidores desse movimento que inicialmente foi interpretado como uma
seita judaica157 fossem em muitos casos expressivamente acusados de colocarem em risco a
ldquopax deorumrdquo158 devido ao entendimento comum e geral de que o Imperador era o supremo
mantenedor desse estado de satisfaccedilatildeo e gloacuteria conquistados por Roma Outras questotildees
depreciativas eram atribuiacutedas aos cristatildeos antissociabilidade ateiacutesmo canibalismo fanatismo
orgias sexuais entre outras desvirtudes que eram amplamente apresentadas como acusaccedilotildees de
ordem formal e agraves vezes informal (atraveacutes de buchichos fofocas e relatos puacuteblicos natildeo oficiais)
as quais despertavam ldquoreaccedilotildees populares descontroladas de medo de intoleracircncia e de
violecircnciardquo159 contra estes que se colocavam como disciacutepulos de Cristo
Desta forma entre falsas ideias e verdadeiras demandas ndash a recusa ao ldquojuramento e os
ritos implicados no serviccedilo militarrdquo160 eacute outro exemplo da suposta ldquorebeliatildeordquo cristatilde ao Impeacuterio
ndash criou-se um ldquoestadordquo de perigo que mediante uma forte campanha de difamaccedilatildeo passou a
ser considerado como uma ameaccedila a cultura e a forma do governo Romano Certamente
servindo de combustiacutevel para as perseguiccedilotildees pontuais eou sistematizadas161 especialmente
nos Seacuteculos I e II Aleacutem disto junto com a expansatildeo da nova doutrina e feacute cristatildes um novo
entendimento comeccedilou a se estabelecer que o cristianismo se diferenciava do judaiacutesmo162
154 TAacuteCITO Anais XV 44
155 FROumlHLICH Curso Baacutesico de Histoacuteria da Igreja 1987 p 23
156 LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975 p 15
157 LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975
STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004
158 TESTA In Igreja e Impeacuterio Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 969
159 TESTA In Igreja e Impeacuterio Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 976
160 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 84
161 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
162 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
42
Com o fim do ldquoequiacutevoco judaicordquo163 houve a reelaboraccedilatildeo de um esquema que gerou um
reposicionamento de Roma para essa nova perspectiva Aqui a siacutentese de Xavier retrata bem o
que desejamos comunicar sobre esse reposicionamento
O Impeacuterio Romano percebeu que a nova religiatildeo possuiacutea diferenccedilas acentuadas em
relaccedilatildeo ao judaiacutesmo Embora os judeus resistissem agrave cultura e religiatildeo greco-romana
o cristianismo passou a se organizar como religiatildeo crescendo em nuacutemero e em
organizaccedilatildeo sendo formadas igrejas em vaacuterios lugares O evangelho chegou aos
grandes centros da eacutepoca e ateacute os confins da terra devido a pregaccedilatildeo de cristatildeos que
viajavam a negoacutecios missatildeo ou levados pela perseguiccedilatildeo que dispersava os cristatildeos
fazendo com que a feacute se expandisse164
Quanto a questotildees que envolvem esse amplo periacuteodo conflituoso ainda eacute necessaacuterio
apresentarmos dois raacutepidos e sucintos registros O primeiro envolve um conjunto de fatos
constituiacutedos em mais de 250 anos onde podemos registrar periacuteodos que devem ser classificados
como ldquoperseguiccedilatildeo perseguiccedilatildeo geral perseguiccedilatildeo maior e toleracircnciardquo165 para com os cristatildeos
Satildeo muitas e variadas as circunstacircncias e as caracteriacutesticas que formam cada uma destas fases
e fazem com que elementos singulares a cada uma delas (como periacuteodo e regionalidade)
tornem-se fatores decisivos nesta diferenciaccedilatildeo Entretanto natildeo as abordaremos
especificamente por entendermos que o assunto foge de nosso exame central Segundo
compreendemos ser imprescindiacutevel junto a esta abordagem citar a tese amplamente sustentada
pelo meio histoacuterico-teoloacutegico da ldquoexistecircncia de um esquema de dez grandes perseguiccedilotildeesrdquo166
tendo seu primeiro caso ocorrido entre 64-68 dC sob o Imperador Nero desde seu uacuteltimo ato
no periacuteodo dos governos de Diocleciano e Maximiano entre 285-305 dC167 Tertuliano168 e
Euseacutebio fornecem-nos consideraacutevel conteuacutedo sobre aquela que possivelmente tenha sido a
primeira grande onda de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos promovida pelo Impeacuterio Citamos Euseacutebio
163 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 82
164 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 10
165 A ordem dos fatores apresentados natildeo eacute cronoloacutegica e sim alfabeacutetica Ver LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila
da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975 p 11-12
166 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004 p 356
167 As intituladas ldquoDez Perseguiccedilotildeesrdquo ao cristianismo por parte do Impeacuterio Romano satildeo protagonizadas por Nero
(54-68 dC) Domiciano (95-96 dC) Trajano (108 dC) Marco Aureacutelio (162 dC) Cocircmodo (192 dC)
Maximino (235 dC) Deacutecio (250-251 dC) Valeriano (257-260 dC) Aureliano (274 dC) Diocleciano (303-
313 dC) Ver FOXE O Livro dos Maacutertires 2003 p 16-32
168 TERTULIANO Apologia V
43
que ao falar sobre o reinado de Nero (54-68 dC) fomenta uma simbiose de dados histoacutericos
mencionando o proacuteprio Tertuliano
Firmado Nero no poder deu-se a praacuteticas iacutempias e tomou as armas contra a proacutepria
religiatildeo do Deus do universo [] Mas deve-se saber que a tudo o que foi dito sobre
ele faltava acrescentar que foi o primeiro imperador que se mostrou inimigo da
piedade para com Deus Disto faz menccedilatildeo tambeacutem o latino Tertuliano quando diz
ldquoLeiam vossas memoacuterias Nelas encontrareis que Nero foi o primeiro a perseguir esta
doutrina principalmente quando depois de submeter todo o Oriente em Roma era
cruel para com todosrdquo169
Portanto buscando apresentar uma ideia conclusiva a nossa concisa elaboraccedilatildeo sobre
esse tema tatildeo vasto da histoacuteria da Igreja podemos dizer que natildeo restam duacutevidas mediante
inuacutemeros argumentos histoacutericos apresentados por diversas e variadas fontes ser plausiacutevel e ateacute
mesmo luacutecido afirmar que o Impeacuterio Romano foi em diversos momentos um literal
perseguidor acusador juiz e algoz do cristianismo durante um periacuteodo de praticamente dois
seacuteculos e meio Scott por meio de bases historiograacuteficas retrata bem esse processo ajudando-o
a sancionaacute-lo
Repetidas vezes foram publicados editos para exterminar da terra os cristatildeos
Levantaram ateacute monumentos para celebrar e perpetuar os supostos ecircxitos das
perseguiccedilotildees Aqui estatildeo duas preservadas inscriccedilotildees desses monumentos em escritos
da eacutepoca DIOCLECIANO CEacuteSAR AUGUSTO TENDO ADOTADO GALEacuteRIO
NO ORIENTE A SUPERSTICcedilAtildeO DOS CRISTAtildeOS FOI DESTRUIacuteDA EM TODA
A PARTE E PROPAGADA A ADORACcedilAtildeO DOS DEUSES170
A partir de agora examinaremos um conjunto mais restrito desse longo periacuteodo
imperial (54-313 dC)171 de tensotildees entre a Igreja e seus perseguidores pagatildeos especificamente
abordaremos o periacuteodo endossado pelos registros de Justino atraveacutes de seu ministeacuterio
testemunho e vivecircncia na feacute cristatilde
142 A Perseguiccedilatildeo no Periacuteodo da I Apologia
169 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica II 25 1 3 4
170 SCOTT As Catacumbas de Roma 1996 p 84 grifo do autor
171 LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975
44
Durante o Seacuteculo II podemos dizer que um periacuteodo determinado pela irregularidade
ou seja pela ausecircncia de um padratildeo caracterizou o ambiente social da eacutepoca atraveacutes de uma
ldquoperseguiccedilatildeo difusa ora aqui ora ali hoje perseguiccedilatildeo amanhatilde toleracircnciardquo172 Este momento
tambeacutem pode ser realccedilado por outras questotildees pontuais mas sua principal distinccedilatildeo realmente
se define pela esporadicidade dos periacuteodos de repressatildeo estatal o que ocasionou momentos de
consideraacutevel toleracircncia ao cristianismo balizados e sustentados ldquojuridicamenterdquo pela resposta
do Imperador Trajano agrave consulta de Pliacutenio173 (Cocircnsul da Bitiacutenia) por volta do ano 111 dC
Santos sintetiza bem esses dececircnios da relaccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja ldquoA poliacutetica romana agrave
eacutepoca era de tanto quanto possiacutevel natildeo condenar os cristatildeos agrave morte De modo geral desde o
final do Seacuteculo I ateacute o final do II da era cristatilde houve vaacuterios Imperadores com poliacuteticas mais
paciacuteficas em relaccedilatildeo aos cristatildeosrdquo174 Vale tambeacutem ressaltarmos como um elemento
consideraacutevel a tese proposta que no momento ao qual Justino escreveu sua I Apologia Roma
era governada pela dinastia denominada de Nerva-Antonina a qual foi conhecida pela alcunha
dos ldquocinco bons imperadoresrdquo175 definiccedilatildeo que foi proposta por Maquiavel em uma anaacutelise
poliacutetica do ano de 1503 Maquiavel escreveu
Do estudo desta histoacuteria podemos tambeacutem aprender como um bom governo deve ser
fundado pois enquanto todos os imperadores que acederam ao trono por nascimento
exceto Tito foram ruins todos foram bons que acederam por adoccedilatildeo como foi o caso
dos cinco de Nerva ateacute Marco Mas tatildeo logo o impeacuterio caiu novamente nas matildeos dos
herdeiros por nascimento sua ruiacutena recomeccedilou176
Entretanto falaremos especificamente apenas de duas figuras deste periacuteodo chamado
de dinastia Nerva-Antonina (96 a 180 dC) mais precisamente de seus dois uacuteltimos
172 LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975 p 20
173 ROSSI BINATO As Cartas de Pliacutenio o Jovem traduccedilatildeo parcial do Livro X correspondecircncia administrativa
com o Imperador Trajano 2017
174 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 90
175 Relaccedilatildeo dos Imperadores da dinastia Nerva-antonina Nerva (96-98 dC) Trajano (98-117 dC) Adriano (117-
138 dC) Antonino Pio (138-161 dC) Marco Aureacutelio (161-180 dC) Ver SANTOS Identidade Cristatilde no
Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 90
176 MAQUIAVEL Discurso sobre a Primeira Deacutecada de Tito Liacutevio I 10
45
representantes a saber Antonino Pio177 (que sucedeu a Adriano) e seu filho adotivo Marco
Aureacutelio178 que o sucedeu
O Imperador Antonino Pio governou Roma por mais de vinte anos (138 a 161) Ele eacute
o destinataacuterio formal eou principal da I Apologia de Justino Neste aspecto vale muito para
esta pesquisa a anaacutelise referencial deixada por Foxe ldquoAdriano ao morrer no ano 138 dC foi
sucedido por Antonino Pio um dos mais gentis monarcas que jamais reinou e que deteve as
perseguiccedilotildees contra os cristatildeosrdquo179 Santos tambeacutem nos auxilia quando expotildeem o pensamento
de Bunson sobre a administraccedilatildeo de Antonino Pio ldquoQuanto agraves questotildees de poliacutetica externa
procurava sempre resolvecirc-las primeiramente de forma paciacutefica depois administrativamente e
por uacuteltimo com taacuteticas militaresrdquo180 Eacute fato praticamente livre de contestaccedilotildees que em seu
governo natildeo houve perseguiccedilotildees de maior envergadura sendo que as que ocorreram foram
pontuais e sem maiores impactos referendando deste modo a imagem do Imperador como a de
um monarca paciacutefico (para a eacutepoca) pois ateacute mesmo em seu periacuteodo como divus romanus foi
cognominado pelo povo de ldquoPIEDOSO pelo amor que dedicava aos pobresrdquo181
Quanto a Marco Aureacutelio seu sucessor os relatos sobre a sua postura para com o
cristianismo devem no miacutenimo ser apresentados com o adjetivo de obscurus Foxe retrata bem
esta dificuldade ldquoMarco Aureacutelio sucedeu no trono no ano 161 de nosso Senhor era um homem
de natureza mais riacutegida e severa e embora elogiaacutevel no estudo da filosofia e em sua atividade
de governo foi duro e feroz contra os cristatildeos e desencadeou a quarta (grande) perseguiccedilatildeordquo182
Extremamente vaacutelido eacute analisarmos os registros do proacuteprio Imperador os quais nos
demonstram de forma muita clara a incompatibilidade de sua filosofia com a doutrina de Cristo
como se vecirc em uma de suas citaccedilotildees
177 Titus Aurelius Fulvus Boionius Antoninus nasceu em 86 dC em Nimes na Gaacutelia Narbonense no sul da atual
Franccedila Devido agrave sua fidelidade Adriano o adotou em fevereiro de 138 dC para ser o seu sucessor no Impeacuterio o
que ocorreu logo depois no mecircs de julho com a morte de Adriano Ver BUNSON Encyclopedia of the Roman
Empire 2002 p 23-24 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino
Maacutertir 2012 p 95
178 Marcus Aurelius Antoninus nasceu em 121 dC na cidade de Roma Filho de Annius Verus e Domitia Lucilla
Tornou-se Imperador em 161 dC e a seu pedido Lucio Vero (Lucius Aerelius Verus) governou Roma juntamente
com ele Ver BIRLEY Marcus Aurelius A Biography 2001 p 116 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica IV 14
10
179 FOXE O Livro dos Maacutertires 2003 p 18
180 BUNSON Encyclopedia of the Roman Empire 2002 p 24 apud SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II
dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 96
181 MONTEIRO A Feacute e os Maacutertires breves apontamentos sobre as perseguiccedilotildees da Igreja 1940 p 81 grifo do
autor
182 FOXE O Livro dos Maacutertires 2003 p 18 grifo nosso
46
[] alma preparada para uma imediata separaccedilatildeo do corpo seja para extinguir seja
para se dispersar ou sobreviver [] Que essa preparaccedilatildeo poreacutem provenha de um juiacutezo
proacuteprio e natildeo dum simples sectarismo como o dos cristatildeos [] uma preparaccedilatildeo
raciocinada grave e para ser convincente nada teatral183
Alguns detalhes nos chamam muito a atenccedilatildeo no periacuteodo em que Marco Aureacutelio
governou especialmente se nosso estudo partir do ponto de vista de alguns historiadores que
fazem questatildeo de ratificar que esse periacuteodo foi como ldquoum lsquomarcorsquo negro fincado na histoacuteria
eclesiaacutestica assinalando com as sombras de sua tirania a eacutepoca triste de seu governo
nefastordquo184 Euseacutebio nos auxilia nesta anaacutelise de maneira importante pois segue a mesma
concepccedilatildeo de que os atos de Marco Aureacutelio foram excessivamente malignos para com o
cristianismo Buscando ser amplo e detalhista Euseacutebio promove sentimentos profundos em seu
relato quando nos retrata o martiacuterio de Policarpo Bispo de Esmirna ocorrido no reinado de
Marco Aureacutelio
E o prococircnsul disse ldquoTenho feras A elas te lanccedilarei se natildeo mudas tua posiccedilatildeordquo Mas
ele respondeu ldquoChama-as porque para noacutes natildeo eacute possiacutevel mudar de posiccedilatildeo se eacute do
melhor para o pior O bom eacute mudar do mau para o justordquo Insistiu o prococircnsul ldquoComo
natildeo te arrependes farei com que o fogo te dome se desprezas as ferasrdquo Policarpo
disse ldquoAmeaccedilas com um fogo que arde algum tempo mas depois de um pouco se
apaga E ignoras o fogo do juiacutezo futuro e do castigo eterno reservado aos iacutempios
Mas por que tardas Traga o que quiseresrdquo Enquanto dizia isto e muitas outras coisas
mais enchia-se de valor e de alegria e seu rosto transbordava de graccedila ao ponto de
que natildeo somente natildeo caiu em confusatildeo pelas coisas que lhe diziam mas pelo
contraacuterio foi o prococircnsul que ficou fora de si e chamou o arauto para que no meio do
estaacutedio apregoasse trecircs vezes Policarpo confessou que eacute cristatildeo185
Nesse cenaacuterio imperial ainda nos conveacutem apresentar a proacutepria experiecircncia de Justino
como um cristatildeo perseguido No ano de 165 dC o filoacutesofo Justino possivelmente
acompanhado de seis de seus disciacutepulos (todos cristatildeos como ele) eacute apresentado com estes a
um tribunal civil Romano sob a acusaccedilatildeo de serem cristatildeos Este relato estaacute amplamente
amparado por uma fonte secular pagatilde186 que goza de altiacutessima credibilidade Apoacutes ser
183 MARCO AUREacuteLIO Meditaccedilotildees XI 3 grifo nosso
184 MONTEIRO A Feacute e os Maacutertires breves apontamentos sobre as perseguiccedilotildees da Igreja 1940 p 90
185 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 15 23-25
186 As Atas dos Maacutertires eacute a transcriccedilatildeo dos processos verbais escritos pelas autoridades romanas e mantidos nos
arquivos oficiais do Impeacuterio Estes registros coletaram estenograficamente muitos dos atos relacionados aos
processos forenses aos quais os cristatildeos foram submetidos pelos magistrados principalmente nos interrogatoacuterios
puacuteblicos Posteriormente estes registros foram traduzidos para a escrita vulgar e assim as peccedilas foram passadas
para os arquivos judiciais Muitos dos atos foram destruiacutedos (queimados em praccedila puacuteblica) pelo Imperador
47
denunciado pelo ciacutenico Crescente Justino se apresenta diante de Ruacutestico (Prefeito de Roma)
onde o relato do processo forense se estabelece e desenrola
Venha ao tribunal o prefeito Ruacutestico disse a Justino ndash Primeiro acredite nos deuses
e obedeccedila aos imperadores Justino respondeu ndash O irrepreensiacutevel e que natildeo admite
condenaccedilatildeo eacute obedecer aos mandamentos de nosso Salvador Jesus Cristo O prefeito
Ruacutestico disse ndash Que doutrina vocecirc professa Justino respondeu ndash Tentei ouvir sobre
qualquer linhagem de doutrinas mas apenas aderi agraves doutrinas dos cristatildeos que satildeo
as verdadeiras mesmo que natildeo sejam agradaacuteveis para quem segue opiniotildees falsas187
Nessa projeccedilatildeo vemos que o Apologista apresenta natildeo somente sua feacute mas tambeacutem
sua consciecircncia de que os preceitos recebidos por ele mediante o cristianismo solidificavam
sua posiccedilatildeo Mesmo diante de um sistema que os poderia prejudicar e sendo incentivados a
recuar de suas convicccedilotildees por meio de uma aguccedilada ameaccedila de que poderiam ser
ldquoimpiedosamente punidosrdquo188 Justino e seus disciacutepulos passam a concentrar seus esforccedilos
naquilo que esta pesquisa define como um importante argumento para a Verdade que Justino
sustentava Aqui o fenocircmeno do martiacuterio cristatildeo conduzido e explorado pelo Impeacuterio Romano
ganha uma inopinada abrangecircncia pois o supliacutecio desses homens e mulheres registrados como
peccedilas do protocolo governamental acabariam por se tornar nos fatos que solidificaram e
encorajaram a militacircncia desses obreiros da feacute cristatilde Sem duacutevida Justino e seus disciacutepulos
parecem ter caminhado de forma soacutebria para ldquoonde foram decapitados e consumaram o martiacuterio
proclamando a feacute no Salvadorrdquo189 Deste modo diante de apresentaccedilotildees que se alternam entre
descriccedilotildees de caraacuteter romacircntico e fatalista vemos que os Imperadores e seus sistemas de
controle marcaram a histoacuteria natildeo apenas com sangue mas tambeacutem com o relato fidedigno da
convicccedilatildeo que suas viacutetimas sustentavam
Diocleciano (284-305 dC) pois havia notado que esses contos heroicos inflamavam a alma dos cristatildeos dando
testemunho favoraacutevel para que outros tambeacutem viessem a sofrer a pena capital sem constrangimento para com as
suas vidas Ver PRIMEROS CRISTIANOS 2016 Disponiacutevel em
lthttpswwwprimeroscristianoscomarticulosactas-de-los-martiresgt Acesso em 16 de set 2019
187 ACTAS DE LOS MAacuteRTIRES I p 311 grifo nosso No original Venidos ante el tribunal el prefecto Ruacutestico
dijo a Justino mdash En primer lugar cree en los dioses y obedece a los emperadores Justino respondioacute mdash Lo
irreprochable y que no admite condenacioacuten es obedecer a los mandatos de nuestro Salvador Jesucristo El prefecto
Ruacutestico dijo mdash iquestQueacute doctrina profesas Justino respondioacute mdash He procurado tener noticia de todo linaje de
doctrinas pero soacutelo me he adherido a las doctrinas de los cristianos que son las verdaderas por maacutes que no sean
gratas a quienes siguen falsas opiniones
188 ACTAS DE LOS MAacuteRTIRES I p 316 No original sereacuteis inexorablemente castigados
189 ACTAS DE LOS MAacuteRTIRES I p 316 No original salieron al lugar acostumbrado y cortaacutendoles alliacute las
cabezas consumaron su martirio en la confesioacuten de nuestro Salvador
48
Marco Aureacutelio tinha aproximadamente 34 anos quando Justino escreveu sua I
Apologia e cerca de 44 quando Justino sofreu o martiacuterio Mesmo diante de relatos assombrosos
de seu periacuteodo como governante ldquoe apesar de sua visatildeo negativa em relaccedilatildeo aos cristatildeos e dos
cristatildeos para com ele novamente natildeo haacute evidecircncias de qualquer (novo) decreto de perseguiccedilatildeo
aos cristatildeos por parte do Imperadorrdquo190 mesmo que se garanta uma expressiva deflagraccedilatildeo deste
expediente sombrio em seu reinado191 Devemos ainda colocar que um atento pesquisador
necessariamente se impressionaraacute com a latente crueza e dureza deste periacuteodo que esteve sob
o comando dos chamados Imperadores ldquofiloacutesofosrdquo Danieacutelou e Marrou chegam a ser aacutesperos
em sua abordagem entretanto nos parece absolutamente plausiacutevel sua definiccedilatildeo desse periacuteodo
ldquoEacute que a civilizaccedilatildeo greco-romana como tal muito embora sob um verniz humanista guardava
um fundo de crueldade Desconhecem-nos os historiadores racionalistas que pretendem reduzir
as perseguiccedilotildees a problemas socioloacutegicosrdquo192
Contudo as perseguiccedilotildees que marcaram o cristianismo e por consequecircncia geraram o
principal fruto (os martiacuterios) deste violento periacuteodo indiscutivelmente ainda satildeo sementes que
testificam e geram vida em meio a Igreja A realidade da cristandade dos primeiros seacuteculos foi
difiacutecil e desafiadora para sua feacute mas sua Esperanccedila e Amor em Jesus Cristo fez os cristatildeos
superarem ateacute a mais dolorosa realidade fosse no calor de uma fogueira nos dentes de uma
fera ou no supliacutecio de uma cruz Xavier em nosso ponto de vista consegue caracterizar bem o
fervor e feacute destes vencedores ldquoA doenccedila dificuldades e martiacuterio fizeram parte da vida dos
cristatildeos nos primeiros seacuteculos e ao longo da histoacuteria poreacutem a virtude do Evangelho natildeo deixou
de ser pregada de uma forma ou de outra pelo exemplo pela palavra falada ou escritardquo193
Apoacutes esta exposiccedilatildeo nos eacute possiacutevel reconhecer indicadores confiaacuteveis de quem foi
este filoacutesofo cristatildeo do Seacuteculo II chamado Justino de como a histoacuteria eclesiaacutestica o reconhece
e de como a histoacuteria teoloacutegica o depreende Mais ainda eacute possiacutevel compreender por meio de
dados teacutecnicos um de seus escritos mais importantes (I Apologia) Estas paacuteginas lanccedilaram luz
de maneira praacutetica (visando quando onde e por quecirc) sobre o cenaacuterio histoacuterico que envolveu
as perseguiccedilotildees e os martiacuterios dos cristatildeos especialmente no periacuteodo da atuaccedilatildeo apologeacutetica de
190 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 97 grifo
nosso
191 Para uma melhor compreensatildeo deste cenaacuterio hostil no reinado de Marco Aureacutelio ver MONTEIRO A Feacute e os
Maacutertires breves apontamentos sobre as perseguiccedilotildees da Igreja 1940 p 89-108
192 DANIEacuteLOU MARROU Nova histoacuteria da Igreja V I Dos Primoacuterdios a Santo Gregoacuterio Magno 1966 p
109
193 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 11-12
49
Justino Para efeito de conclusatildeo desta seccedilatildeo conveacutem transcrever o registro de Hamman em
formato de siacutentese que fomenta virtuosamente a descriccedilatildeo capitular desenvolvida
Neste homem que viveu haacute dezoito seacuteculos percebemos o eco de nossos anseios de
nossas objeccedilotildees de nossas certezas Descobrimos nele uma abertura de alma uma
possibilidade de acolhimento uma vontade de diaacutelogo que desarmam e seduzem Se
muitas de suas obras estatildeo hoje perdidas as que nos restam fornecem-nos o diaacuterio
iacutentimo desse cristatildeo e satildeo suficientes para nos revelar sua vida desde o seu
nascimento e a sua formaccedilatildeo ateacute o seu martiacuterio194
O proacuteximo capiacutetulo faz uma anaacutelise na qual procuramos mostrar elementos factiacuteveis
de uma nova praacutetica social vigente ndash descrita por Justino ndash em meio ao status quo da sociedade
romana de entatildeo Desta maneira tambeacutem nos cabe frisar que a partir deste ponto se salientaraacute
o iniacutecio da descriccedilatildeo daquilo que para nosso autor era uma das provas estaacuteveis do novo modus
vivendi no qual a Verdade se manifestava de forma irrefutaacutevel
194 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 27
50
2 O NOVO MODUS VIVENDI
Este capiacutetulo faraacute uma anaacutelise realiacutestica a partir da observaccedilatildeo de praacuteticas do contexto
social de Justino maacutertir Com ele iniciamos a perspectiva central proposta para esta pesquisa
aleacutem de apresentarmos de forma introdutoacuteria seu ponto nuclear Algumas marcas de cunho
histoacuterico nos permitem medir aquilo que aproximava ou afastava uma pessoa que confessava
a feacute cristatilde de seu meio sociocultural de suas atividades ordinaacuterias de seus afazeres do dia-a-
dia195 Assim neste espaccedilo apresentamos um teoacuterico conjunto de expressotildees que apontam os
conceitos que afloram do pensamento de Justino quanto agrave ldquomorfogeniardquo de sua feacute e porque natildeo
se dizer de seu grupo o qual eacute definido pelo autor como aqueles ldquoque se chamam irmatildeosrdquo196
A contemporaneidade retrata uma condiccedilatildeo ambiacutegua em comparaccedilatildeo com o Seacuteculo II
naquilo que se trata da transmissatildeo da religiosidade cristatilde ndash especialmente no que se reporta as
estruturas confessionais histoacutericas nos paiacuteses europeus e latino-americanos ndash tendo o processo
atual significativa ambivalecircncia com o padratildeo antigo o qual ainda natildeo havendo passado pelo
processo de enculturaccedilatildeo definia-se fortemente pela conversatildeo de pessoas adultas dado
amparado de forma eficiente por Tertuliano em sua Apologia ldquoos homens se tornam natildeo
nascem cristatildeosrdquo197
Deste modo notamos que a leitura histoacuterica praticamente natildeo abre concessotildees agrave
conversatildeo ao cristianismo na eacutepoca de Justino constituiacutea uma verdadeira transformaccedilatildeo na vida
do convertido implicando em uma real mudanccedila de vida ou seja de haacutebitos que
necessariamente provocava uma ldquoruptura com a cidade e isolava o cristatildeo de seu meio e de sua
famiacutelia se ela permanecesse pagatilderdquo198 Baseados em afirmaccedilotildees como esta eacute que delinearemos
um horizonte que possa definir de forma consideraacutevel a realidade do que seria estar vivendo a
Verdade para Justino mediante uma contraposiccedilatildeo de haacutebitos detectada por meio dessa
transformaccedilatildeo
Diante de tal teor surgem interrogaccedilotildees que nos trazem demandas pontuais
principalmente de caraacuteter especulativo orientadas a responder questotildees que despertam o
imaginaacuterio de nosso contexto atual Por estarem devidamente inseridas no cenaacuterio histoacuterico da
I Apologia estes assuntos caracterizam-se por suas pendecircncias mesmo que uma determinaccedilatildeo
em comum saliente todos os espaccedilos em branco tendo esta demarcaccedilatildeo em si um caraacuteter de
195 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997
196 JUSTINO I Apologia LXV 1
197 TERTULIANO Apologia XVIII 4
198 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 187
51
diferenciaccedilatildeo que evoca uma clara distinccedilatildeo de estados Desta forma seguem alguns modelos
nos quais visamos indagar esta distinccedilatildeo que detectamos em Justino como definia-se um cristatildeo
em meados do Seacuteculo II Quais pessoas natildeo pertenciam a este grupo religioso e quais eram as
limitaccedilotildees que as impediam de tal prerrogativa Que nova praacutetica de feacute eacute esta que descarta as
antigas tradiccedilotildees religiosas De qual maneira isso se tornou um criteacuterio a ponto de estabelecer
diferenciaccedilotildees a niacutevel existencial
21 CRISTIANISMO A NOVA IDENTIDADE
Este espaccedilo tende a abertura de um caminho ao qual entendemos ser fundamental para
o desenvolvimento desta pesquisa isso devido agrave necessidade de apontarmos bases soacutelidas na
construccedilatildeo de nosso conceito mater Desta maneira iniciamos este capiacutetulo essencial em nossa
estruturaccedilatildeo utilizando-nos de uma afirmaccedilatildeo desenvolvida junto agrave pesquisa de Santos e
Gonccedilalves a qual soma valiosamente a nossa tese por contemplar a seguinte definiccedilatildeo ldquoAo
analisarmos a I Apologia podemos verificar que ele pretende revelar quem satildeo os cristatildeos Isto
parece fazer bastante sentido Ao buscar defender o cristianismo parece natural desenvolver um
texto que visa mostrar a identidade do grupordquo199
O cristianismo como religiatildeo vem a se desenvolver (universalmente) a partir de uma
comunidade autoacutectone de seu ldquofundadorrdquo emergindo atraveacutes de um pequeno grupo de
seguidores (Atos dos Apoacutestolos capiacutetulo 2) altamente condicionados agrave sua cultura e tradiccedilatildeo
religiosa200 poreacutem passados aproximadamente 110 anos o movimento cristatildeo chega ateacute os
dias de Justino com uma proporccedilatildeo numeacuterica muito significativa para um periacuteodo de tempo natildeo
tatildeo extenso201 Nesse processo estruturante tambeacutem de modo irrefragaacutevel202 houve um
desenvolvimento de um novo processo conceitual de um novo status de conhecimento ndash ou se
poderia chamar de um autoconhecimento ndash da proacutepria identidade (natildeo eacutetnica) cristatilde Processo
ao qual os chamados seguidores de Cristo apresentavam preceitos de paridade em uma espeacutecie
de similaridade existencial fato que leva o historiador Santos ao afirmar que ldquoa concepccedilatildeo de
meros disciacutepulos passou posteriormente a adquirir a ideia de povordquo203 Santos na verdade
199 SANTOS GONCcedilALVES A Aplicaccedilatildeo do ldquoContextualismo Linguiacutesticordquo e a busca da compreensatildeo da I
Apologia de Justino Maacutertir 2011 p 3
200 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004
201 SCOTT As Catacumbas de Roma 1996
202 KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983
203 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 135
52
reproduz simplesmente um pensamento jaacute consolidado no meio teoloacutegico Harnack no capiacutetulo
sete de sua obra A Missatildeo e Expansatildeo do Cristianismo nos Primeiros Trecircs Seacuteculos204 jaacute
solidifica tal ideia O teoacutelogo alematildeo caracteriza seu pensamento socioteoloacutegico da seguinte
forma
Convencido de que Jesus o mestre e o profeta era tambeacutem o Messias que voltaria em
breve para terminar o seu trabalho as pessoas passaram da consciecircncia de serem seus
disciacutepulos para o seu povo o povo de Deus ὑμεῖς γένος ἐκλεκτόν βασίλειον
ἱεράτευμα ἔθνος ἅγιον λαὸς εἰς περιποίησιν (1 Pe II 9 ldquoVoacutes sois uma raccedila escolhida
um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo para possessatildeordquo) e na medida em
que se sentiam um povo os cristatildeos sabiam que eles eram o verdadeiro Israel pessoas
que ao mesmo tempo representavam o novo e o velho205
Cabe-nos tambeacutem frisar neste aspecto levantado por Harnack que na questatildeo referente
agrave formaccedilatildeo de uma nova identidade social de caraacuteter religiosa este foi um fenocircmeno tanto
perceptiacutevel para eacutepoca de Justino como tambeacutem o ainda eacute em alguns segmentos humanos na
contemporaneidade Esta accedilatildeo associativa organizou-se (e ainda se organiza) de forma
majoritariamente comunitaacuteria a partir de experiecircncias pessoais de seus participantes sendo isto
ocasionado quase que na totalidade dos casos por meio do fenocircmeno conversiacutevel ocorrido no
acircmbito individual Este processo normalmente excludente e sectaacuterio de um determinado extrato
social ndash absolutamente imperativo no periacuteodo histoacuterico analisado poreacutem na atualidade natildeo
mais apresentando necessariamente uma ambiguidade ao estado de crenccedila anterior do
confessando (agente humano) ndash acaba por ser adesivo a outro o que ocasionava o
comprometimento com uma nova forma de comunhatildeo a qual amparada em novas certezas
rechaccedilava com ousadia as referecircncias da antiga crenccedila Em relaccedilatildeo ao cristianismo esse
fenocircmeno foi mais saliente entre as comunidades gentiacutelicas que abandonaram o paganismo206
Mencionamos ainda a definiccedilatildeo de Mol utilizada por Kee por entendermos que ele consegue
esclarecer de maneira objetiva aquilo que nos interessa expressar neste item sendo uma
consequecircncia natural do processo de conversatildeo ao cristianismo em meados de Seacuteculo II Mol
204 No original The Mission and Expansion of Christianity in the First Three Centuries
205 HARNACK The Mission and Expansion of Christianity in the First Three Centuries 2005 p 152 No original
Convinced that Jesus the teacher and the prophet was also the Messiah who was to return ere long to finish off
his work people passed from the consciousness of being his disciples into that of being his people the people of
God ὑμεῖς γένος ἐκλεκτόν βασίλειον ἱεράτευμα ἔθνος ἅγιον λαὸς εἰς περιποίησιν (1 Pet ii 9 ldquoYe are a chosen
race a royal priesthood a holy nation a people for possessionrdquo) and in so far as they felt themselves to be a
people Christians knew they were the true Israel at once the new people and the old
206 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004
53
escreve que o primeiro estaacutegio de um novo convertido neste periacuteodo se caracterizava por aquilo
que ele define como um ldquodistanciamento de anteriores padrotildees de identidaderdquo207
Deste modo seguindo a proposta acima encontramos algumas afirmaccedilotildees que nos
parecem descrever com exatidatildeo a tese (por hipoacutetese cristatilde) que definia a sociedade de entatildeo
como que constituiacuteda por um suposto terceiro grupo de pessoas (holisticamente falando) Aleacutem
dos denominados gentios e judeus (no relato biacuteblico) haveria tambeacutem os cristatildeos Cabe-nos
ressaltar que esse indicador quantitativo variou dentro da construccedilatildeo desta proposiccedilatildeo
indicativa das supostas variaccedilotildees de ldquoraccedilasrdquo pois jaacute nos escritos dos Pais Apologistas esse
nuacutemero chegou a ser descrito em mais de trecircs segmentos (caldeus egiacutepcios gregos judeus e
cristatildeos)208 Assunto que voltaremos a tratar com mais exatidatildeo a seguir Vale-nos tambeacutem citar
que o conceito de estraneidade abordado especialmente em anaacutelises eclesioloacutegicas e
missioloacutegicas do meio Patriacutestico209 diferencia-se em alguns aspectos de nosso assunto
diferenciaccedilatildeo que natildeo seraacute abordada por entendermos que foge de nossa temaacutetica atual
Iniciamos nossa argumentaccedilatildeo apontando que este conceito identitaacuterio de caraacuteter
etnograacutefico jaacute se apresenta com clareza no relato da Escritura Sagrada Vemos o apoacutestolo Paulo
fazendo distinccedilatildeo similar quando opta por desenvolver uma anaacutelise contrastante do cenaacuterio
humano (eacutetnico religioso etc) de seu tempo apresentando-nos uma leitura com trecircs diferentes
grupos humanos ldquoNatildeo vos torneis causa de tropeccedilo nem para judeus nem para gentios nem
tampouco para a igreja de Deusrdquo (1 Coriacutentios 1032) Neste ponto posiccedilotildees exegeacuteticas variadas
podem corroborar para a compreensatildeo e tambeacutem assimilaccedilatildeo da passagem citada referente ao
suposto conceito de iacutendole eacutetnica apontado210 mas o proacuteprio cenaacuterio nos aponta determinados
viacutenculos que nos conduzem a ideia de que ser cristatildeo no suposto periacuteodo oferecia aos fieacuteis a
opiniatildeo de pertencer a um povo diferente211
Neste conjunto eacute necessaacuterio citar o Apologista Aristides que de maneira
inquestionaacutevel se apresenta no cenaacuterio cristatildeo como aquele que daraacute um salto intelectual na
direccedilatildeo do desenvolvimento daquilo que poderiacuteamos definir como a primeira concepccedilatildeo de um
ethnos propriamente cristatildeo212 Aristides ldquofiloacutesofo de Atenas e um dos primeiros defensores do
207 MOL Identity and the Sacred 1977 p 52-53 apud KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica
1983 p 65-66 grifo nosso
208 Ver ARISTIDES Apologia II XIV e XV
209 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
210 METZ In A Primeira Epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006
211 GONZAacuteLEZ 1995
212 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997
54
cristianismordquo213 permitiraacute a transmissatildeo conceitual deste tema apontado nos escritos paulinos
aproximadamente oitenta anos depois de Paulo escrever aos cristatildeos de Corinto Em sua obra
Apologia Aristides concentra esforccedilos em uma elaboraccedilatildeo pragmaacutetica que visa uma
apresentaccedilatildeo de diferentes aspectos teoloacutegicos e morais todos provenientes de haacutebitos e
costumes de outros padrotildees religiosos de entre as etniaspovosnaccedilotildees de sua eacutepoca
Neste exerciacutecio Aristides ldquodescreve os cristatildeos como um povo ou naccedilatildeordquo214 que iraacute
progressivamente e cada vez mais contrastar seus conhecimentos e seu comportamento com os
outros povos com que convivia a saber os babilocircnios os gregos os egiacutepcios e os judeus
Possivelmente Aristides desejava ldquoexprimir a autocompreensatildeo cristatilderdquo215 de seus dias no
entanto provavelmente tambeacutem expressava um conceito jaacute bem estruturado em seu meio
religioso utilizando-se de um escrito apologeacutetico muito diretivo desenvolvido em ldquoforma de
uma etnografia comparativardquo216 Importante eacute o fato de que um entendimento novo de forma
absolutamente objetiva retratava a nova maneira de viver e esta maneira era aplicada
adjetivamente como cristatilde
Este fenocircmeno ocorria devido a este novo conceito ter se estruturado sobre ldquouma
organizaccedilatildeo humana cada vez mais precisa e soacutelida uma sociedade cujos alicerces satildeo
inteiramente novos e um tipo de homem diferente de todos aqueles que o mundo conhecerardquo217
Desta forma acabou por se gerar um entendimento novo sobre uma nova realidade histoacuterica
diferente de todas as demais jaacute existentes algo que na compreensatildeo de seus participantes soacute
poderia ser condicionado por um novo organismo ou seja uma nova ldquoraccedilardquopovonaccedilatildeo
Contudo este fato pode ser tambeacutem comprovado atraveacutes de outros seguimentos uma vez que
os proacuteprios natildeo-cristatildeos parecem fomentar esta ideia de separaccedilatildeo eacutetnica Isso pode ser visto
com realce atraveacutes do relato de outra figura Patriacutestica de destaque o qual torna-se o personagem
central de nosso exame a partir deste ponto
A partir do Seacuteculo II haveraacute inuacutemeras contribuiccedilotildees para a histoacuteria da teologia Em
primeiro lugar na figura de Tertuliano por ser considerado o ldquofundador da tradiccedilatildeo teoloacutegica
ocidentalrdquo218 Entretanto referente ao tema em destaque Tertuliano em sua obra Agraves Naccedilotildees (Ad
nationes) ndash tambeacutem traduzida por Aos Pagatildeos ndash apresenta no capiacutetulo VIII do I livro uma
213 PIERINI A Idade Antiga Curso de histoacuteria da igreja ndash I 1998 p 73
214 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997 p 16
215 PIERINI A Idade Antiga Curso de histoacuteria da igreja ndash I 1998 p 73
216 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997 p 17
217 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 240
218 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 42
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relevante informaccedilatildeo a respeito de nosso assunto pois atraveacutes de uma genuiacutena accedilatildeo apologeacutetica
passa a informar algo que estava sendo apregoado sobre os cristatildeos Ele menciona que alguns
ldquoCertamente dizem que somos a terceira raccedila dos homensrdquo219 Jaacute de iniacutecio torna-se simples
devido ao desenvolvimento do texto conceituar a definiccedilatildeo (ldquoterceira raccedilardquo) citada por
Tertuliano pois de maneira peculiar sua ironia consegue descrever com exatidatildeo sua intenccedilatildeo
e o que ele escreve a seguir acaba por orientar seu entendimento e interesse argumentativo Ele
diz ldquoDe que maneira Uma raccedila com cara de cachorro Ou uma que possui apenas um enorme
peacute Ou algum Antiacutepoda subterracircneordquo220
Obviamente Tertuliano natildeo tinha em mente elaborar uma refutaccedilatildeo que viesse a
discutir questotildees bioloacutegicas ou antropoloacutegicas referentes agraves pessoas que estavam sendo
atingidas por essa pecha de ordem etnorracial Seu estilo quase sarcaacutestico demonstra que na
verdade sua indignaccedilatildeo frente agraves agressotildees lanccediladas aos irmatildeos da feacute que eram protagonizadas
pelas perseguiccedilotildees oferecidas pelos descrentes e das quais ele era uma literal testemunha o
compeliam a reagir em sua defesa ldquoTenham cautela no entanto pois aqueles a quem vocecircs
chamam de terceira raccedila devem obter o primeiro lugar uma vez que natildeo haacute certamente naccedilatildeo
que natildeo seja cristatilderdquo221
Tertuliano ainda em sua fase Apologista222 procura nos apresentar uma descriccedilatildeo
pejorativa (ldquoterceira raccedilardquo) dos pagatildeos como absolutamente preconceituosa e totalmente
intolerante pois esta visa tatildeo somente implementar ldquoacusaccedilotildees contra os cristatildeosrdquo223 buscando
unicamente denigrir sua religiatildeo natildeo possuindo nenhuma ligaccedilatildeo especiacutefica com as relaccedilotildees
eacutetnicas eou nacionais destas pessoas Sobre este prisma o proacuteprio Tertuliano afirma ldquoMas eacute
no sentido de religiatildeo e natildeo de naccedilatildeo que somos tidos como a terceira raccedila Pela ordem os
romanos os judeus e por uacuteltimo os cristatildeosrdquo224 No decorrer do texto225 fica-nos ainda mais
evidente que esta tentativa de uma diferenciaccedilatildeo humana natildeo corresponde a dados bioloacutegicos e
antropoloacutegicos pois visa promover unicamente uma desqualificaccedilatildeo da crenccedila do grupo ao qual
ataca (cristatildeos) independentemente de suas origens eacutetnicas
219 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 1 grifo nosso
220 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 1
221 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 9
222 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
223 LEAL In Tertuliano Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1577
224 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 1 grifo nosso
225 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 9-11
56
Deste modo assimilando os variados dados relacionados nesta construccedilatildeo
fenomenoloacutegica vemos que independentemente do meio (eclesiaacutestico ou secular) e da
temporalidade (periacuteodo biacuteblico ou patriacutestico) o sentido uniforme do conceito de ser cristatildeo
estava incondicionalmente ldquovinculado a um grupo com relaccedilotildees sociais distintas dos
demaisrdquo226 Aqui a reflexatildeo de Santos nos auxilia de forma significativa especialmente visando
o desenvolvimento restante deste capiacutetulo
Relaccedilotildees sociais estas que privilegiam os aspectos espirituais e morais Neste sentido
os cristatildeos podem ser entendidos como um povo particular com uma promessa
profeacutetica especificamente direcionada a eles Povo este que como vimos
anteriormente possui seu conjunto de crenccedilas um estilo de vida proacuteprio seus
siacutembolos sua interpretaccedilatildeo de mundo Tudo isto se traduz pela expressatildeo ldquonova vida
e os nossos ensinamentosrdquo utilizada por Justino (JUSTINO I Apologia III 3)227
Ao finalizarmos este item salientamos nossa intenccedilatildeo na proposta de agregar a esta
pesquisa a ideia de que para o cristianismo inicial como tambeacutem para seu meio social ndash onde
Justino necessariamente se enquadra ndash havia um conceito de identidade definido do que era ser
cristatildeo Cabe-nos agora complementaacute-lo Para isto propomos uma descriccedilatildeo de seu perfil
oposto ateacute mesmo antagocircnico para o periacuteodo ou seja descrevendo aquilo (ou aqueles) que na
visatildeo dos cristatildeos natildeo eram cristatildeos
22 O MUNDO NAtildeO-CRISTAtildeO
Em nossa proposta de pesquisa se faz indispensaacutevel conhecermos a visatildeo do meio
cristatildeo (eclesioloacutegica) a respeito daqueles que eram ao seu entendimento ndash pelo menos de
maneira preliminar ndash antagocircnicos agrave sua realidade existencial Obviamente este trabalho busca
ancorar-se ao pensamento de seu autor central Assim sendo Justino passa a nos ceder as bases
desse processo de incompatibilidade de grupos228 onde podemos sem exageros a partir de
Justino arquitetar um cenaacuterio que nos mostra eficientemente que este conceito evidenciado no
Apologista eacute oriundo da mensagem Apostoacutelica (Paulo) e Patriacutestica (Aristides) anteriores a ele
as quais parecem terem sido bem recebidas e definidas quanto a essa importante questatildeo
226 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 143
227 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 144
grifo nosso
228 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997
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etnograacutefica Percebemos isso com certa clareza quando ele diz que ldquoDeve-se saber que o
restante de todas as raccedilas humanas satildeo chamadas de naccedilotildees pelo Espiacuterito profeacutetico a casta dos
judeus e samaritanos poreacutem chama-se Israel e Casa de Jacoacuterdquo229
Nesta introduccedilatildeo ainda nos eacute possiacutevel descrever um conceito metafiacutesico a partir do
entendimento de Justino que era um filoacutesofo Utilizando-nos da objetivaccedilatildeo da identidade
(ethnos) cristatilde um modelo passa a se estabelecer nesta descriccedilatildeo e este modelo eacute que ldquotorna
uma entidade reconheciacutevelrdquo230 Assim este estado que passa a ser evidentemente concreto e
que estaacute constituiacutedo em uma forma de identificaccedilatildeo passa tambeacutem a possuir o seu oposto
definindo-se por meio de diversos exames tendo a partir disso haacute possibilidade de ser aceito
ou rejeitado por aquilo que lhe eacute diferente
Prosseguindo no desenvolvimento de nosso raciociacutenio comeccedilaremos a descrever
sinteticamente o ponto central a ser analisado nesta pesquisa Entendemos que a reflexatildeo que
recebemos a partir da oacutetica de Justino poder ser definida por meio de sua compreensatildeo do que
eacute a Verdade revelada para a humanidade Deste modo inicialmente nos cabe salientar que o
periacuteodo de tempo logo apoacutes o advento do cristianismo e sua consolidaccedilatildeo (informal para a
eacutepoca) como uma religiatildeo estabelecida em meio ao Impeacuterio Romano trouxe algumas
evidecircncias que caracterizavam e apontavam para a identificaccedilatildeo daqueles que eram seguidores
deste credo e ipso facto passava a distingui-los quase que de forma automaacutetica dos demais
seguidores de outras praacuteticas religiosas tais como o judaiacutesmo e os cultos politeiacutestas os quais
tambeacutem podem ser definidos no cenaacuterio imperial como ldquocultos estataisrdquo231 eou religiatildeo dos
povos gentios
Ainda neste espaccedilo nos eacute necessaacuterio salientar que a atribuiccedilatildeo religiosa como ponto
primaz na questatildeo orientativa dos que natildeo confessavam a feacute cristatilde eacute importante ou ateacute mesmo
necessaacuteria porque no referido periacuteodo natildeo se concebia a ideia de que as massas humanas ndash em
qualquer lugar independentemente de sua etnia ou nacionalidade ndash natildeo aderissem a uma forma
de crenccedila232 O pensamento de Santos qualifica esta ideia de contraste entre crenccedilas
Os cristatildeos precisavam ser diferentes dos judeus e dos demais povos para construiacuterem
uma identidade proacutepria ainda que algo dos dois fizesse parte de sua identidade E
mesmo esse algo teria uma leitura particular dentro do cristianismo Os siacutembolos
229 JUSTINO I Apologia LIII 4
230 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014 p 110
231 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 51
232 KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983
58
ainda que preservados natildeo teriam exatamente os mesmos significados Justino por
vezes ao apontar aquilo que os cristatildeos eram utiliza a comparaccedilatildeo Tal comparaccedilatildeo eacute
feita com base natildeo soacute naquilo que eacute semelhante nos grupos que ele considera natildeo-
cristatildeos mas principalmente nas suas diferenccedilas o que nos revela que no outro haacute
tanto pontos congruentes quanto incongruentes233
Desta forma a partir deste ponto falaremos a respeito dos dois respectivos grupos
humanos (em sentido eacutetnico e nacional) nos quais se estabeleciam a distinccedilatildeo e a divisatildeo
proposta por Justino em sua construccedilatildeo teoloacutegica
221 Os Judeus
Passando objetivamente a leitura da obra de Justino (I Apologia) constatamos com
razoaacutevel clareza a importacircncia dada pelo autor aquilo que corresponde diretamente ao povo
judeu este aspecto acaba por se tornar importantiacutessimo na elaboraccedilatildeo de nosso conceito pois
traz equiliacutebrio agrave orientaccedilatildeo que Justino propotildeem desenvolver como contrastante ao seu estado
de feacute e crenccedila Para Justino o povo eleito por Deus para receber as promessas diretrizes e
preceitos da Primeira Alianccedila acabou por se tornar uma espeacutecie de agente condutor e ateacute
mesmo catalisador de uma forma funcional do cumprimento das profecias descritas como
messiacircnicas234 Justino ao mencionar o Profeta Isaiacuteas e o Livro dos Salmos235 apresenta-nos esta
indicaccedilatildeo dizendo
Quando o Espiacuterito profeacutetico fala na pessoa de Cristo ele se expressa assim ldquoEu
estendi as minhas matildeos a um povo que natildeo crecirc e contradiz aos que andam por um
caminho que natildeo eacute bomrdquo E novamente ldquoEntreguei minhas costas aos accediloites e
minhas faces agraves bofetadas e natildeo afastei o meu rosto da vergonha das cuspidas E o
Senhor se tornou o meu auxiacutelio por isso eu natildeo fui confundido mas transformei o
meu rosto em rocha dura e soube que natildeo seria confundido pois estaacute perto aquele
que me justificardquo E o mesmo quando diz ldquoEles lanccedilaram sorte sobre as minhas
roupas e transpassaram as minhas matildeos e os meus peacutes mas eu adormeci e me
entreguei ao sono e ressuscitei porque o Senhor me protegeurdquo E outra vez quando
diz ldquoCochichavam com os seus laacutebios e balanccedilaram a cabeccedila dizendo Salve-se a si
mesmo Podeis comprovar que tudo isso cumpriu-se atraveacutes dos judeus em Cristordquo236
233 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 144
234 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
235 Acredita-se que os textos biacuteblicos usados por Justino segundo a versatildeo da Biacuteblia Grega (Septuaginta) satildeo Is
652 Is 506-8 Sl 2119 Sl 36 Sl 218-9 Ver FRANGIOTTI In Introduccedilatildeo I Apologia 1995 p 27
236 JUSTINO I Apologia XXXVIII 1-7
59
Nesta passagem da I Apologia onde jaacute nos deparamos com o exegeta Justino237 fica-
nos claro que na opiniatildeo deste os reconhecidos como natildeo-cristatildeos ndash particularmente tratando-
se do povo judeu e de sua religiatildeo ndash natildeo compreenderam o tempo de sua visitaccedilatildeo menos ainda
foram capazes de interpretar com eficiecircncia tudo aquilo que as profecias anunciavam a respeito
de seu Messias Esse processo ganha ainda mais ecircnfase quando o teor aplicado por Justino passa
a ser mediado atraveacutes do contexto entre os capiacutetulos XXXVI a XXXVIII onde o relato parece
sugerir um compecircndio baacutesico com ldquoregras de interpretaccedilatildeordquo238 do Apologista sobre as profecias
messiacircnicas Neste cenaacuterio eacute possiacutevel penetrar mais profundamente na realidade sugerida por
Justino os judeus natildeo obstante sua falta de discernimento tornaram-se por seu endurecimento
os proacuteprios algozes Daquele que veio libertaacute-los
Torna-se necessaacuterio dizer que a exegese aplicada por Justino natildeo se faz sem equiacutevocos
Alguns erros satildeo ateacute mesmo inocentes quando analisados agrave luz de elementos da ciecircncia biacuteblica
atual239 como por exemplo quando cita o texto do Salmo 2119 (segundo a Septuaginta) o
qual eacute amplamente interpretado pelos Evangelhos240 como uma accedilatildeo dos soldados romanos
junto ao relato da crucifixatildeo de Cristo e natildeo como um ato diretamente empregado pelo povo
judeu Entretanto Justino entende que os judeus natildeo apenas assumiram agrave culpa desse ato por
meio de seu embrutecimento mas principalmente por seu endurecimento o qual foi causado
originalmente por sua incredulidade (natildeo-assimilaccedilatildeo) para com a pessoa de Jesus Cristo na
opiniatildeo de Justino241 Deste modo parece natildeo permanecer nenhum constrangimento por parte
do Apologista em apontar aos judeus natildeo como meros colaboradores mas sim como os
grandes culpados pela morte de Cristo
Na verdade Davi rei e profeta que disse isso natildeo sofreu nada disso mas Jesus Cristo
estendeu as suas matildeos quando foi crucificado pelos judeus que o contradiziam e
falavam que ele natildeo era o Messias Com efeito como disse o profeta levaram-no
arrastando e fazendo-o sentar-se numa cadeira de juiz disseram-lhe ldquojulga-nosrdquo242
237 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948
238 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 26
239 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
240 Ver Mateus 2633-38 Marcos 1522-24 Lucas 2333-34 Joatildeo 1923-24
241 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
242 JUSTINO I Apologia XXXV 6
60
Mesmo jaacute tendo sido identificado por noacutes de forma preacutevia cabe-nos ainda citar de
maneira mais precisa as pertinentes consideraccedilotildees que Justino faz referente ao natildeo
reconhecimento da pessoa de Jesus Cristo como o Messias prometido ao povonaccedilatildeo de Israel
por parte dos judeus O Apologista escreve ldquoNatildeo entendendo isso os judeus que satildeo aqueles
que possuem os Livros dos profetas natildeo soacute natildeo reconheceram a Cristo jaacute vindo mas tambeacutem
odeiam a noacutes que dizemos que ele de fato veio e mostramos que como fora profetizado foi
por eles crucificadordquo243
Aleacutem dessa notificaccedilatildeo exortativa referente aquilo que poderiacuteamos definir como uma
leitura do cenaacuterio sociorreligioso judaico (que no presente momento e tambeacutem anteriormente a
ele interagiu conflituosamente com os cristatildeos) devemos tambeacutem reconhecer outro aspecto que
este ambiente social nos aponta por meio da ldquoobservaccedilatildeo de Justino segundo a qual Bar
Kochba244 ameaccedilou judeus messiacircnicos com pesados castigos caso natildeo negassem que Jesus eacute
o Cristordquo245 estabelecendo deste modo haacute opiniatildeo de que os cristatildeos realmente eram um povo
que sofria historicamente ldquohostilidade dos judeusrdquo246 principalmente porque os cristatildeos deram
o devido valor agrave revelaccedilatildeo de Deus247
Por uacuteltimo neste cenaacuterio de nossa anaacutelise concentrada na opiniatildeo de Justino frente ao
status sociorreligioso judaico devemos ainda olhar com bastante atenccedilatildeo para uma passagem
da Escritura Sagrada relacionada a Primeira Alianccedila que nos eacute apresentada enfaticamente por
Justino em sua obra apologeacutetica O texto do capiacutetulo 65 verso 2 do Livro do profeta Isaiacuteas eacute
citado por trecircs vezes na I Apologia248 caracterizando mediante este fato repetitivo uma
significativa elucubraccedilatildeo por parte de Justino a esta porccedilatildeo da Escritura Nosso autor se
distingui ao comentar o Texto Sagrado dizendo ldquoQuando o Espiacuterito profeacutetico fala na pessoa de
Cristo ele se expressa assim lsquoEu estendi as minhas matildeos a um povo que natildeo crecirc e contradiz
aos que andam por um caminho que natildeo eacute bomrsquordquo249
Partamos de um ponto conceitual Na esfera racional de Justino o caso das ldquomatildeos
estarem estendidas a um povo increacutedulo e contestadorrdquo era um fato indubitaacutevel apresentado
atraveacutes de um ar enfaacutetico que apontava agrave suposta culpa que os judeus teriam na rejeiccedilatildeo do
243 JUSTINO I Apologia XXXVI 3
244 JUSTINO I Apologia XXXI 6
245 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004 p 266
246 MONDONI Histoacuteria da Igreja na Antiguidade 2001 p 32
247 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
248 JUSTINO I Apologia XXXV 3 XXXVIII 1 XVIX 3
249 JUSTINO I Apologia XXXVIII 1
61
verdadeiro Ungido de Deus solidificando deste modo de maneira inevitaacutevel sua compreensatildeo
de que os judeus ao natildeo reconhecerem o Messias ldquoperderam o direito hereditaacuterio a promessa
que passou para os cristatildeosrdquo250 Este conceito251 acaba por ficar ainda mais saliente em sua
obra Diaacutelogo com Trifatildeo252 detalhe que natildeo apontaremos aqui devido a nossa opccedilatildeo de
delimitaccedilatildeo textual
Por fim necessitamos condicionar nossa pesquisa a um resultado Entatildeo ratificamos
que em nosso entendimento fica claro que na transmissatildeo da ideia de Justino os judeus foram
rejeitados como naccedilatildeopovoldquoraccedilardquo por sua incredulidade mesmo que estes tenham sido
anteriormente escolhidos como os herdeiros das promessas de Deus De fato Justino afirma
ldquoEntatildeo eles se arrependeratildeo quando de nada mais lhes valeraacuterdquo253 Logo para Justino os judeus
natildeo eram mais a ldquoraccedilardquo eleita porque natildeo eram cristatildeos
Passamos agora ao outro grupo compreendido como natildeo-cristatildeo pelo conceito
etnograacutefico dos seguidores do cristianismo na eacutepoca de Justino os Gentios
222 Os Gentios
De imediato devemos propor um referencial orientativo visando essa construccedilatildeo e
uma afirmaccedilatildeo parece definir de maneira satisfatoacuteria esta questatildeo Igualmente agrave anaacutelise anterior
(para com os judeus) partimos de referenciais de caraacuteter sociorreligioso baseados em nosso
autor central poreacutem com a diferenciaccedilatildeo de que agora falamos de um campo muito mais
abrangente a ser examinado pois os ldquogentiosrdquo254 (segundo o Apoacutestolo Paulo) ldquoos caldeus os
gregos e os egiacutepciosrdquo255 (segundo Aristides) e ldquoos romanosrdquo256 (segundo Tertuliano) formam
esse novo e amplo grupo que tambeacutem se caracteriza religiosamente em contraste tanto com
cristatildeos quanto com os judeus que haviam rejeitado o seu Messias
Todo esse enorme contingente religioso se distinguia por sua diversidade Nesta
multiplicidade surgia uma variedade imensa de divindades uma para cada gosto eou prazer
250 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 76
251 Segundo Insuelas as duas primeiras Apologias satildeo escritas ldquocontrardquo os pagatildeos jaacute o Diaacutelogo com Trifatildeo eacute
escrito ldquocontrardquo os judeus Neles Justino pretende provar que Jesus Cristo eacute o Messias e que a sua religiatildeo eacute a
verdadeira Ver INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 54
252 Ver JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo CVIII 1-3
253 JUSTINO I Apologia LII 9
254 Ver 1 Coriacutentios 1032
255 ARISTIDES Apologia II XIV e XV
256 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 1
62
com as quais estes devotos procuravam cobrir suas necessidades e as exigecircncias de culto em
seus dias257 Esta praacutetica reconhecida como politeiacutesmo envolve a coletividade humana desde
seus primoacuterdios258 No entanto para Justino quem seriam as pessoas que adoravam essa
imensidatildeo de outros deuses
Inicialmente afirmamos que os participantesocupantes desse distinto grupo
indiscutivelmente se diferenciavam dos judeus natildeo apenas por sua religiatildeo mas tambeacutem por
questotildees que podem (e devem) ser descritas como eacutetnicas No caso anterior o judaiacutesmo (ou
podemos chamar de religiatildeo judaica) natildeo se desvinculava (nem atualmente se desvincula) da
etnia de origem semita (judeus) que ocupava massivamente a regiatildeo do moderno estado de
Israel Ateacute os dias de hoje os judeus ndash tambeacutem chamados de ldquoisraelitasrdquo (genericamente) ndash satildeo
definidos regularmente como ldquofieacuteisrdquo da religiatildeo judaica259 Em nosso caso de destaque os
agentes religiosos que formavam as fileiras das religiotildees politeiacutestas eram seres humanos
oriundos das mais variadas sociedades da eacutepoca de diversas culturas mas que assumiam o
chamado culto de origem mitoloacutegica difundido amplamente na cultura de origem greco-
romana260 na qual Justino tambeacutem havia vivido e sido criado261 e que havia se tornado em um
elemento poliacutetico que ldquoos romanos chamavam de pax deorumrdquo262
Estes adoradores de outros e variados deuses usualmente possuem outra designaccedilatildeo
tanto para Justino quanto no relato biacuteblico satildeo os gentios ndash termo geneacuterico que adotaremos a
partir de agora neste item para a identificaccedilatildeo desse grupo devido a sua abrangecircncia e
complexidade A pesquisa de Santos nos auxilia consideravelmente nesta definiccedilatildeo
O termo utilizado na Biacuteblia hebraica para gentio eacute gocircy (גוי) e tanto no texto grego do
Antigo Testamento (Septuaginta) quanto no Novo Testamento temos os termos
ethnos (εθνος) ou hellen (ελλην) Satildeo geralmente traduzidos como naccedilatildeo raccedila
gentes gentios Se estiver no singular podem se referir aos judeus (HARRIS 1998 p
251-252 DOUGLAS 1995 p 662 VINE 2002 p 673) De forma geral quando no
plural eles se referem aos outros povos que natildeo os judeus e no caso mais
especificamente cristatildeo denotam natildeo soacute os natildeo-judeus mas podem se referir agravequeles
gentios que se converteram ao cristianismo ldquoOs quais pela minha vida expuseram as
257 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010
258 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
259 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014
260 SCOTT As Catacumbas de Roma 1996
261 PIERINI A Idade Antiga Curso de histoacuteria da igreja ndash I 1998
262 CORNELL MATTHEWS A Civilizaccedilatildeo Romana 2008 p 94
63
suas cabeccedilas o que natildeo soacute eu lhes agradeccedilo mas tambeacutem todas as igrejas dos gentiosrdquo
(Romanos 164)263
Justino natildeo apenas se utiliza dessa terminologia com desenvoltura mas tambeacutem se
serve de outros termos que designam este grupo de existecircncia gentiacutelica Encontramos citaccedilotildees
como ldquogente de todas as naccedilotildeesrdquo264 ldquogente de todas as raccedilasrdquo265 ldquohomens das naccedilotildeesrdquo266 ou
ldquoos povos das naccedilotildeesrdquo267 Ao analisarmos o contexto textual destas citaccedilotildees de Justino fica
evidente que o Apologista ao descrever estes trechos estaacute incondicionalmente se referindo ao
cumprimento das promessas messiacircnicas aos gentios Desta forma acaba por caracterizar (os
gentios) como os natildeo-judeus que estavam sem Cristo mas que iriam recebecirc-lo pela
proclamaccedilatildeo da mensagem evangeacutelica Drobner sugere que possivelmente Justino acreditava
que uma vez que os democircnios foram silenciados pela proclamaccedilatildeo da Verdade por meio da
mensagem da cruz ldquoos homens agora em todo o mundo se tornariam tementes a Deusrdquo268
Encontramos na I Apologia uma tendecircncia ndash pelo menos de maneira impliacutecita ndash de
apontar em menor nuacutemero elementos negativos eou pejorativos dos gentios e de suas praacuteticas
religiosas politeiacutestas Isso obviamente se comparados com agravequeles apresentados
volumosamente como prejuiacutezos trazidos eou deixados pelos judeus naquilo que se tratava da
revelaccedilatildeo de Deus em Jesus Cristo Tratando-se especificamente dessa questatildeo sociorreligiosa
que envolvia a religiatildeo judaica cabe-nos ressaltar com veemecircncia que em nossas afirmaccedilotildees
natildeo se estaacute buscando implicar de nenhuma maneira ou forma a Justino uma postura
antissemita269 pois sua polecircmica com os judeus ldquonada tem a ver com antissemitismo porque
natildeo se trata da raccedila mas da feacuterdquo270 Deste modo orientando-nos atraveacutes de dados da anaacutelise
historiograacutefica acreditamos que este fenocircmeno se baseou na tentativa de indicar com clareza
atribuiccedilotildees da histoacuteria da revelaccedilatildeo no fato de se contextualizar o relato salviacutefico de Deus para
263 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 147
264 JUSTINO I Apologia XXXII 3
265 JUSTINO I Apologia XXXII 4
266 JUSTINO I Apologia XXXI 7
267 JUSTINO I Apologia XLIX 1
268 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 84
269 Antissemita (anmiddottismiddotsemiddotmimiddotta) anti- + semita Adjetivo de dois gecircneros e substantivo de dois gecircneros Significa
Que ou quem se opotildee aos semitas e particularmente aos judeus Ver Dicionaacuterio Priberam da Liacutengua Portuguesa
Disponiacutevel em lthttpsdicionariopriberamorgantissemitagt Acesso em 17 de jan de 2019
270 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 76
64
a humanidade pois o ldquoproacuteprio texto nos fornece um contexto Mas tambeacutem pelos enunciados
que evidenciam sua forccedila ilocucionaacuteriardquo271
Poreacutem entendemos ainda ser oportuno citar a Justino de forma direta mais uma vez
em nossa elaboraccedilatildeo sobre o conceito de definiccedilatildeo daqueles que natildeo satildeo cristatildeos para ele
Indiscutivelmente os gentios gozavam de uma pequena parcela de toleracircncia por parte de
Justino especialmente diante do testemunho das conversotildees ocorridas junto o mundo greco-
romano das quais ele mesmo era fruto Aleacutem disso em nossa construccedilatildeo conceitual outra vez
fica notoacuterio que nosso autor natildeo procura mascarar em nenhum momento sua dificuldade para
com a religiatildeo judaica272 O texto de Justino transparece isso com muita clareza
Ao contraacuterio (dos judeus) os gentios que nunca tinham ouvido falar dele ateacute que os
apoacutestolos tendo saiacutedo de Jerusaleacutem lhes contaram sua vida e lhes entregaram as
profecias cheios de alegria e de feacute renunciaram aos iacutedolos e se consagraram ao Deus
ingecircnito por meio de Cristo273
Contudo torna-se claro tambeacutem que na concepccedilatildeo de Justino o alcance dessa
conformidade do plano salviacutefico de Deus atraveacutes de Jesus Cristo para com os gentios seria
segundo o posicionamento de feacute desse grupo pois o teor e a objetividade para o
desenvolvimento da I Apologia provam o contraacuterio pois esta obra acabou sendo redigida
condicionalmente na tentativa de aplacar os acircnimos daqueles que perseguiam os cristatildeos de
forma injustificaacutevel sendo evidente no relato de ambas as Apologias de Justino que os
perseguidores eram majoritariamente formados de natildeo-cristatildeos de origem gentiacutelica Essa
evidecircncia conseguimos resgatar no proacuteprio relato do Apologista quando este comenta a
respeito da idolatria dos gentios enfatizando seu politeiacutesmo Nessa passagem sua penna eacute
categoacuterica e imperativa
E aquilo mesmo que voacutes praticais e honrais publicamente voacutes o atribuiacutes a noacutes como
se tiveacutessemos decaiacutedo e a luz divina natildeo nos assistisse Todavia como estamos livres
por natildeo praticar nada disso vossas caluacutenias natildeo nos causam nenhum dano ao
271 SANTOS amp GONCcedilALVES A Aplicaccedilatildeo do ldquoContextualismo Linguiacutesticordquo e a busca da compreensatildeo da I
Apologia de Justino Maacutertir 2011 p 3
272 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
273 JUSTINO I Apologia XLIX 5 grifo nosso
65
contraacuterio danificam aqueles que cometem essas torpezas e ainda levantam falso
testemunho contra noacutes274
Finalizamos assim este item que visou especificar aquilo que se encontra aplicado na
explanaccedilatildeo do Apologista sobre o natildeo ser um cristatildeo Buscamos nesta explanaccedilatildeo uma espeacutecie
de caraacuteter identificativo aleacutem de termos procurado sinalizar para o oposto de cada caso
examinado distinguindo deste modo os grupos religiosos analisados atraveacutes de criteacuterios que
os contrastavam entre si e para com o objeto principal (cristianismo) pois notificamos que para
Justino como tambeacutem para a Igreja em sua eacutepoca judeus e gentios natildeo eram homens de outra
espeacutecie (em sentido bioloacutegico) mas natildeo sendo cristatildeos pertenciam necessariamente a outro
mundo um mundo natildeo-cristatildeo
A seguir trataremos de assuntos mais pontuais os quais podemos denominar de
ldquofactiacuteveisrdquo segundo a leitura de Justino para com a realidade que o cercava Esse conjunto de
fatos era polemizado de maneira constante (por meio de uma tentativa aguda de se diferenciar
proposiccedilotildees) pois possuiacutea uma importacircncia fundamental na definiccedilatildeo exigida para se
estabelecer a oposiccedilatildeo dos ldquomundosrdquo que apontamos
23 PRAXIS FIDEI ADVERSUS INIQUITATEM
E para que se torne evidente para voacutes vamos apresentar-vos a prova de que aquilo
que dizemos por tecirc-lo aprendido de Cristo e dos profetas que os precederam eacute a uacutenica
verdade e a mais antiga do que todos os escritores que existiram Natildeo pedimos que se
aceite a nossa doutrina por coincidir com eles mas porque dizemos a verdade275
A partir deste item apresentamos uma anaacutelise de meios e de casos os quais
entendemos serem absolutamente necessaacuterios para uma resposta realmente qualificada visando
uma conclusatildeo satisfatoacuteria desta pesquisa Neste processo que inicialmente abarcou de maneira
histoacuterica a estruturaccedilatildeo e funcionalidade de um ambiente confessional acabou por se
caracterizar cada vez mais atraveacutes de um distinto cenaacuterio sociorreligioso em seu tempo Nessa
verificaccedilatildeo de costumes do comportamento humano na esfera religiosa percebemos com certa
facilidade o profundo impacto ndash especialmente no acircmbito da eacuteticamoral ndash que o cristianismo
proporcionou ao apresentar-se ldquocomo a revoluccedilatildeo mais radical que a humanidade jaacute tinha
274 JUSTINO I Apologia XXVII 5
275 JUSTINO I Apologia XXIII 1 grifo nosso
66
realizadordquo276 Desta forma organizamos uma detalhada abordagem dessa conjuntura de caraacuteter
social na esfera religiosa a qual vamos descrever a seguir procurando direcionar de maneira
objetiva nossos apontamentos para dentro da soluccedilatildeo de nosso problema jaacute anteriormente
especificado e deste modo comeccedilarmos a indicar uma resposta plausiacutevel para o conceito do
que seria a Verdade redigida e sustentada por Justino
Importante para nossa sequecircncia de trabalho eacute procurarmos estabilizar desde cedo a
compreensatildeo de que esta elaboraccedilatildeo de caraacuteter eacutetico-moral natildeo visa ser pormenorizada tatildeo
pouco exaustiva pois acreditamos que isto nem mesmo seria possiacutevel diante da abrangecircncia a
qual o termo Verdade poderia alcanccedilar em um exame epistemoloacutegico mais aprofundado
Particularmente tratando-se de nosso caso em especial um agravante ainda se coloca isso
devido nossa palavra-chave nem mesmo ser aplicada como um simples substantivo por parte
do autor pois recebe por parte de Justino uma abrangecircncia axiomaacutetica muito singular somente
compreendida em seu contexto mais amplo (realidade sociorreligiosa)
Entretanto partimos da necessidade de nos orientarmos por meio de definiccedilotildees
provenientes das afirmaccedilotildees do proacuteprio Justino Diante da realidade sociorreligiosa ndash tambeacutem
pode-se classificaacute-la como cultural dependendo dos criteacuterios propostos ndash que cercava e
envolvia o Apologista (no periacuteodo de redaccedilatildeo da I Apologia) estava necessariamente instituiacuteda
uma forma de cerceamento agraves suas convicccedilotildees religiosas Sem restriccedilotildees podemos nos utilizar
de uma espeacutecie de pleonasmo ao dizermos que Justino ndash ldquose justificardquo ndash constantemente por
meio de um paralelo dialeacutetico que de maneira exata acaba por condicionar-se como loacutegico
pois o Apologista busca apresentar uma ldquoperfeita lealdade dos seus processosrdquo277 racionais em
toda a sua narrativa As contribuiccedilotildees oriundas da predominante linha filosoacutefica a qual Justino
aderiu em sua jornada na busca pela Verdade manifestam-se de forma niacutetida em sua construccedilatildeo
apofacircntica Esse meacutetodo se clarifica na abordagem de Chauiacute
A dialeacutetica platocircnica eacute um procedimento intelectual e linguiacutestico que parte de alguma
coisa que deve ser separada ou dividida em dois ou duas partes contraacuterias ou opostas
de modo que se conheccedila sua contradiccedilatildeo e se possa determinar qual dos contraacuterios eacute
verdadeiro e qual eacute falso278
276 MONDONI Histoacuteria da Igreja na Antiguidade 2001 p 44
277 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 56
278 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995 p 181
67
Deste modo Justino explanou suas conclusotildees de maneira categoacuterica por meio da
aplicaccedilatildeo de um meacutetodo que visava eliminar contradiccedilotildees essenciais daquilo que estava sendo
examinado279 Aparentemente o Apologista acreditava que algo de caraacuteter indivisiacutevel no
sentido de ser inquestionaacutevel poderia ser alcanccedilado mediante suas confrontaccedilotildees mesmo que
Justino afirmasse ser imprescindiacutevel ter que haver feacute em Jesus Cristo para tais fins elemento
(feacute) que era reconhecidamente ausente em seus opositores algo que no final parece desiquilibrar
a loacutegica da teoria de Justino Neste espaccedilo ainda nos eacute necessaacuterio dizer que nosso autor se
baseava fortemente em indicaccedilotildees de cunho comparativo e histoacuterico (a niacutevel de suas convicccedilotildees
religiosas) para defender suas comparaccedilotildees280 Neste item jaacute detectamos fortemente o ser
ldquofiloacutesofordquo em Justino realidade que abordaremos mais detalhadamente no proacuteximo capiacutetulo
Essa base filosoacutefica que acabamos de citar iraacute orientar o ministeacuterio de Justino no
decorrer de sua construccedilatildeo teoloacutegica e quanto a essa filosofia devemos sem constrangimento
atrelaacute-la agravequilo que acabou por se tornar o estilo literaacuterio preponderante em seus trabalhos
Estes se caracterizaram pela presenccedila de um forte teor (dispositivo) apologeacutetico possibilitando-
nos a partir da anaacutelise historiograacutefica281 afirmar que uma vez que os filoacutesofos (do periacuteodo de
Justino) receberam a feacute em Cristo estes podem defender a Verdade pois passam a possuir a
ldquoconsciecircncia da razatildeo filosoacutefica que nela estaacute contidardquo282
Desta forma seguindo uma postura assumidamente analiacutetica Justino passa a arquitetar
seu plano argumentativo utilizando-se de uma clara confrontaccedilatildeo de fatos em vista de alcanccedilar
o resultado desejado Mesmo sem ser um empirista ndash sistema filosoacutefico totalmente distante
cronologicamente de Justino ndash eacute impossiacutevel natildeo se detectar um apego por parte do Apologista
para com um meacutetodo de exame que venha a conferir com afinco a experiecircncia do uso dos
sentidos humanos como o meio para agrave origem e geraccedilatildeo do conhecimento Com isso mais um
detalhe pertinente segundo a nossa compreensatildeo vem a surgir nesta anaacutelise pois conseguimos
detectar com certa facilidade que Justino vincula os fatos registrados de sua feacute na rotina humana
presente efetivamente em seu contexto o que vem a somar para a caracterizaccedilatildeo de uma postura
que na praacutetica eacute empirista283
279 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
280 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
281 Ver SIMONETTI In Apologeacutetica Literatura Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 185-186
282 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
283 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
68
231 Um Princiacutepio Teologal
Seguindo o que acabamos de apontar apresentaremos uma posiccedilatildeo de ordem factiacutevel
da parte de Justino passando a citar elementos que em nosso entendimento estabelecem as
provas desenvolvidas pelo Apologista em seu relato de defesa dos cristatildeos Retrataremos dois
contextos em que Justino apresenta sua iniciativa de modo contundente na busca de seus
objetivos O primeiro cenaacuterio se desenvolve apoacutes o autor terminar uma ilustre analogia entre
ldquodoutrinas estoicas e cristatildesrdquo284
A primeira prova eacute que quando dizemos tais coisas aos gregos somos os uacutenicos a
serem odiados pelo nome de Cristo e nos tiram a vida sem termos cometido crime
algum como se focircssemos pecadores E tendes alguns aqui e outros ali que cultuam
aacutervores rios ratos gatos crocodilos e uma multidatildeo de animais irracionais O
interessante eacute que nem todos cultuam os mesmos mas uns satildeo honrados num lugar
outros em outro de modo que todos satildeo iacutempios entre si por natildeo ter a mesma religiatildeo
Esta eacute a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo veneramos os mesmos deuses que
voacutes e natildeo oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo colocamos coroas nos
sepulcros nem celebramos sacrifiacutecios sobre eles No entanto sabeis perfeitamente
que os mesmos animais por alguns satildeo considerados deuses por outros feras e por
outras viacutetimas para sacrifiacutecios285
A partir desta descriccedilatildeo passamos definitivamente a exposiccedilatildeo dos fatos que satildeo
contrastantes entre a praacutetica da feacute cristatilde e a ordem dos acontecimentos estabelecida nas
ocorrecircncias do meio secular ao redor da Igreja de Cristo isto porque o centro da coletividade
cristatilde (Assembleia Santa) era o que melhor distinguia exteriormente essa separaccedilatildeo
existencial286 A ecircnfase de Justino aplicada agrave realidade sociorreligiosa de seu tempo nos impotildee
a necessidade de uma adaptaccedilatildeo por meio de um delineamento de ordem temaacutetica isso devido
agrave diversidade de assuntos aos quais poderiacuteamos enfocar nesse exame pois a ldquoformalidade da
religiatildeo (pagatilde) manifestava-se de maneira diversardquo287 nos variados ciacuterculos sociais do mundo
greco-romano
O texto de Justino que estaacute depositado em uma genuiacutena literatura de estilo apologeacutetico
acaba ateacute mesmo por ganhar ares enfaticamente polemistas mesmo que esta definiccedilatildeo literaacuteria
do meio Patriacutestico seraacute apenas regulada sobre um escritor apologista a partir da figura de
284 FRANGIOTTI In Introduccedilatildeo I Apologia 1995 p 8
285 JUSTINO I Apologia XXIV 1-3
286 KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983
287 FUNARI Roma vida puacuteblica e vida privada 1993 p 20 grifo nosso
69
Tertuliano288 Isso porque a objetividade empregada por Justino natildeo visava unicamente
solicitar toleracircncia em relaccedilatildeo agrave feacute cristatilde mas tambeacutem evidenciar de forma categoacuterica direta e
especiacutefica uma superioridade do culto cristatildeo sobre as religiotildees pagatildes289
Deste modo de forma essencial entendemos que para uma melhor compreensatildeo do
contexto sugerido se faz necessaacuterio fracionaacute-lo Poreacutem devido agraves vaacuterias possibilidades de
argumentaccedilatildeo que a porccedilatildeo apresentada nos oferece decidimos concentrar nosso exame em
trecircs toacutepicos orientativos atraveacutes dos quais acreditamos ser possiacutevel desenvolver o escopo que
desejamos estes se condicionam a falta de valores absolutos a praacutetica da idolatria (na
concepccedilatildeo cristatilde) e as variaccedilotildees dos atos cuacutelticos que envolviam tal praacutetica mesmo que ambos
os casos apontados venham a se mesclar no seguimento de nosso relato textual devido sua
estreita relaccedilatildeo ldquosimbioacuteticardquo Os trecircs pontos nos conduzem de forma natural a uma reflexatildeo
historiograacutefica em torno do periacuteodo dos Seacuteculos I e II dC visando deste modo uma maior
clarificaccedilatildeo dos fatos que procuramos distinguir
2311 Praacutetica da Feacute Contra o Politeiacutesmo Relativista
Iniciamos a nossa estruturaccedilatildeo apresentando um registro que descreve esse cenaacuterio
cuacuteltico pagatildeo o qual estaacute disponibilizado no texto da Escritura Sagrada Aproximadamente
100 anos antes290 desse registro de Justino o Apoacutestolo Paulo jaacute censurava enfaticamente a
mesma praacutetica religiosa que natildeo estranhamente estava vigorando na cultura social ateacute os dias
de Justino Quando o Apologista acusa seus oponentes de adorarem uma variedade
(pluralidade) de seres criados (ou a natureza) abre-se um paralelismo com o texto biacuteblico que
diz ldquoInculcando-se por saacutebios tornaram-se loucos e mudaram a gloacuteria do Deus incorruptiacutevel
em semelhanccedila da imagem de homem corruptiacutevel bem como de aves quadruacutepedes e repteisrdquo
(Romanos 122-23)
Justino argumenta sobre este cenaacuterio afirmando que o status de honra a estas diversas
ldquodivindadesrdquo passava por variaccedilotildees ndash ou ateacute mesmo vacilaccedilotildees ndash natildeo possuindo nenhum teor
de algo que poderiacuteamos afirmar como ldquoabsolutordquo Justino fortemente tambeacutem salienta que o
simples fator geograacutefico eacute capaz de destituir este aspecto de adoraccedilatildeo realidades
(contingenciais) que acabam por confrontar-se com o credo cristatildeo que jaacute possui seu conceito
bem estabilizado nos dias Justino Nisto nos auxilia o texto da Didaqueacute (possivelmente
288 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
289 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
290 GREATHOUSE In A Epiacutestola aos Romanos Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006
70
redigido no final do Seacuteculo I291) o qual confessa que ldquoTu Senhor Todo-poderoso criaste todas
as coisas por causa do teu Nomerdquo292 solidificando desde muito cedo o princiacutepio que mais
tarde293 seria absolutamente consolidado no Credo Apostoacutelico que iraacute reproduzir conteuacutedo
idecircntico ao afirmar ldquoCreio em Deus Pai todo-poderoso Criador do ceacuteu e da terrardquo294
Deste modo a nova feacute em curso concebia desde seus primoacuterdios um uacutenico ser todo-
poderoso que natildeo pode nem mesmo estaacute sensiacutevel a sofrer as variantes temporais descritas por
Justino Aleacutem disso o Apologista nos apresenta uma variaccedilatildeo de grau que poderiacuteamos definir
como ldquocaoacuteticardquo para uma postura humana em sua relaccedilatildeo com estes ldquoobjetosrdquo de culto pois
cita como premissa que o mesmo ldquoobjetordquo tem determinada condiccedilatildeo de qualidade superior
para alguns mas torna-se trivial e comum para outros295 algo impossiacutevel de ser adaptado ao
elemento divino do culto cristatildeo
2312 Praacutetica da Feacute Contra a Idolatria
O outro ponto que desejamos destacar se aplica sobre a afirmaccedilatildeo de Justino ao dizer
ldquoEsta eacute a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo veneramos os mesmos deuses que voacutesrdquo296
A enfaacutetica argumentaccedilatildeo de Justino salienta a natildeo participaccedilatildeo dos cristatildeos nas atividades
religiosas dos ciacuterculos sociais aos quais pertenciam Estas atividades que eram implementadas
pelo mito popular297 e pelas classes poliacuteticas controladoras298 acabavam por definir-se como
os ritos religiosos ldquooficiaisrdquo ndash aceitos permitidos e em alguns casos tolerados pelas
autoridades ndash no Impeacuterio Romano299 O culto aos diversos deuses e ao imperador romano
caracterizam bem esta diversidade mitoloacutegica300 Assim passamos para um fato literaacuterio que
em nosso entendimento fomenta bem essa ideia estruturada na realidade humana que
desejamos retratar O escrito a seguir de autoria de Pliacutenio o Velho produzido possivelmente
291 STORNIOLO BALANCIN In Introduccedilatildeo DIDAQUEacute O catecismo dos primeiros cristatildeos para as
comunidades de hoje 2010 p 3
292 DIDAQUEacute X 3
293 SCHAFF The creeds of Christendom with a history and critical notes 1966
294 CREDO APOSTOacuteLICO 1ordm artigo (da criaccedilatildeo)
295 Ver GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 89-90
296 JUSTINO I Apologia XXIV 2
297 Ver KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983 p 91-97
298 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
299 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988
300 FUNARI Roma vida puacuteblica e vida privada 1993
71
em torno do ano 77 da era cristatilde301 nos expotildee por meio de um registro de tipo naturalista a
seguinte observaccedilatildeo quanto algumas praacuteticas ritualiacutesticas comuns ao cenaacuterio sociorreligioso de
entatildeo Pliacutenio assim escreve
Sacrificar animais sem oraccedilotildees natildeo funciona aparentemente nem produz a correta
relaccedilatildeo ritual com os deuses As foacutermulas variam uma para conseguir um bom
agouro uma segunda para evitar o mau agouro e uma terceira para cultuar as
divindades [] Ao usarmos as preces costumeiras nesse ritual admitimos a eficaacutecia
dessas foacutermulas comprovadas pela experiecircncia de 830 anos302
Cabe-nos dizer que Pliacutenio estava simplesmente retratando de maneira descritiva os
processos de ordem religiosa no meio social que estava inserido poreacutem o contexto claramente
nos sugere que Pliacutenio tambeacutem buscava salientar a ldquoimportacircncia do respeito agraves formalidades na
religiatildeo do Estadordquo303 Natildeo podemos esquecer que Pliacutenio como oficial e administrador romano
esteve inserido em diversas regiotildees do Impeacuterio304 o que nos possibilita afirmar que o registro
estaacute baseado em um amplo e avultado conteuacutedo experiencial e que portanto seu relato estaacute
condicionado a ser classificado como um ldquocaso geneacutericordquo de praacuteticas cuacutelticas das regiotildees
influenciadas pela cultura greco-romana
2313 Praacutetica da Feacute Contra o Ateiacutesmo
Uma praacutetica que era corrente nos tempos de Justino e jaacute antes dele era o de definir os
cristatildeos ldquocomo culpados do crime de ateiacutesmordquo305 A natildeo-aderecircncia dos cristatildeos a essas praacuteticas
religiosas pagatildes eram vistas e entendidas por alguns (elite social)306 como atos de
irracionalidade mas principalmente eram interpretadas pelos pagatildeos (de forma geral) como
301 BEARD SPQR uma histoacuteria da Roma Antiga 2017
302 PLIacuteNIO Histoacuteria Natural XXVIII 10-12 No original Sacrificar animales sin oraciones no funciona
aparentemente ni produce la correcta relacioacuten ritual con los dioses Las foacutermulas variacutean una para conseguir un
buen aguumlero una segunda para evitar el mal aguumlero y una tercera para cultuar a las divinidades [] Al usar las
oraciones acostumbradas en ese ritual admitimos la eficacia de esas foacutermulas comprobadas por la experiencia de
830 antildeos
303 FUNARI Roma vida puacuteblica e vida privada 1993 p 17 grifo nosso
304 BEARD SPQR uma histoacuteria da Roma Antiga 2017
305 IRVIN SUNQUIST Histoacuteria do Movimento Cristatildeo Mundial Volume I Do cristianismo primitivo a 1453
2004 p 100
306 IRVIN SUNQUIST Histoacuteria do Movimento Cristatildeo Mundial Volume I Do cristianismo primitivo a 1453
2004
72
accedilotildees que manifestavam uma evidente incredulidade307 ndash ou seja uma atitude de profundo
desrespeito ndash por parte dos cristatildeos agravequilo que era considerado como divino De ordem jaacute muito
habitual eram as acusaccedilotildees deste tipo junto agrave cultura greco-romana pois jaacute na antiguidade
algumas figuras de destaque como Soacutecrates foram alvos desse tipo de defraudaccedilatildeo
considerado de ordem moral para o periacuteodo
Voltemos ao caso de Soacutecrates pois este foi julgado aproximadamente 550 anos
antes308 de Justino escrever sua I Apologia vindo a receber por parte da parte de seus algozes
acusaccedilotildees de mesma ordem as quais os cristatildeos agora similarmente sofriam tal como Soacutecrates
que ldquodescobriu o embuste dos democircnios e os convidou (demais seres humanos) a procurar o
verdadeiro Deus por isso ele teve de morrer como maacutertirrdquo309 Justino cita-nos o fato dizendo
Quando Soacutecrates com raciociacutenio verdadeiro e investigando as coisas tentou
esclarecer tudo isso e afastar os homens dos democircnios estes conseguiram por meio
de homens que se comprazem na maldade que ele tambeacutem fosse executado como
ateu e iacutempio alegando que ele estava introduzindo novos democircnios Tentam fazer o
mesmo contra noacutes310
Entendemos que ainda se faz importante somar a estrutura dessa pesquisa o relato
redigido por Platatildeo referente ao processo de defesa e julgamento de seu mestre Nesse registro
apologeacutetico encontramos o diaacutelogo entre Soacutecrates e Ecircutrifron311 que comprova o fato juriacutedico
ocorrido na Greacutecia Antiga do qual citamos atraveacutes de Justino
Ecircutrifron ndash O que eu gostaria Soacutecrates mas receio que aconteccedila o contraacuterio Pois me
parece que ele simplesmente comeccedila por prejudicar a cidade pela lareira312 ao
tencionar fazer mal a vocecirc Mas me diga ele diz que vocecirc corrompe os jovens fazendo
o quecirc
307 Ver GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 84-86
308 Ver MALTA In Introduccedilatildeo Apologia de Soacutecrates 2008 p 11
309 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 85 grifo nosso
310 JUSTINO I Apologia V 3 grifo nosso
311 Natildeo temos outras informaccedilotildees sobre Ecircutifron ndash um adivinho prognosticador conforme subtiacutetulo da obra ndash
aleacutem das que encontramos em Platatildeo Mas seu nome tinha um significado claro para os gregos ldquoo de espiacuterito
direto ou ortodoxordquo Ver MALTA In Notas Apologia de Soacutecrates 2008 p 25
312 A lareira (ou Heacutestia) representava enquanto fogo sagrado da cidade e de cada casa o princiacutepio da estabilidade
Com essa fala Ecircutifron deixa clara sua admiraccedilatildeo por Soacutecrates Ver MALTA In Notas Apologia de Soacutecrates
2008 p 27
73
Soacutecrates ndash Coisas estranhas admiraacutevel homem para se ouvir assim Pois diz que sou
fazedor de deuses e que por isso mesmo ndash por fazer novos deuses e natildeo crer nos
antigos ndash me denunciou conforme diz313
Ainda referente ao assunto ndash cristatildeos definidos como ateus e iacutempios pelos pagatildeos ndash
vale-nos destacar o ponto de vista de um historiador Santos contribui muito em nosso exame
que visa apontar fatos contrastante por meio de fenocircmenos de intoleracircncia religiosa ocorridos
no passado Santos afirma que as acusaccedilotildees de ateiacutesmo por parte dos pagatildeos tiveram uma
importante contribuiccedilatildeo junto agrave construccedilatildeo de uma ldquoidentidaderdquo cristatilde durante o periacuteodo do
Seacuteculo II314 Tratando-se pontualmente do que acabamos de mencionar Santos novamente
contribui favoravelmente a nossa construccedilatildeo quando diz
Justino continua explicando que como acusaram Soacutecrates de ateiacutesmo assim satildeo
acusados os cristatildeos por natildeo adorarem os deuses de Roma Em seguida ele apresenta
uma pequena profissatildeo de feacute com o objetivo de esclarecer que os cristatildeos natildeo satildeo
ateus pois ldquocultuamos e adoramosrdquo o Deus verdadeiriacutessimo o seu Filho os seus
exeacutercitos de anjos e o Espiacuterito profeacutetico (JUSTINO I Apologia VI 1 2) Vaacuterios
exemplos desta estrutura do desenvolvimento podem ser observados no decorrer da I
Apologia315
A variaccedilatildeo entre o caso de Soacutecrates e a realidade de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos reforccedila
as atribuiccedilotildees de Justino quanto a postura que este buscava assumir e automaticamente
diferenciar Quando aponta de maneira clara para o estabelecimento de um distanciamento
ldquosegurordquo entre as partes que na concepccedilatildeo do Apologista apresentam uma clara distinccedilatildeo de
culto No entanto Justino natildeo deixa de assumir a significativa importacircncia que as ldquoestruturasrdquo
de feacute representam como objeto para a estabilidade humana no sentido de gerar nessa
coletividade uma espeacutecie de harmonia que pode ser definida com o um termo moderno como
ldquoseguranccedila socialrdquo mas claro isso somente se faz possiacutevel devido agrave Justino assumir ser um
crente ndash afastando assim todas as acusaccedilotildees de ateiacutesmo ndash mas natildeo um idoacutelatra exercendo deste
modo (novamente por meio de sua tradicional ferramenta apologeacutetica) um consideraacutevel
apontamento para as diferenccedilas entre estes dois (ou mais) estados de crenccedila e culto Walde
313 PLATAtildeO Ecircutrifon (Sobre a piedade) 2
314 Ver SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2010 Item
12 A apropriaccedilatildeo do estilo grego nos escritos e pregaccedilotildees p 31-38
315 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2010 p 108
grifo nosso
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salienta bem esse enfoque comparativo que acabou por constituir uma espeacutecie de meacutetodo que
foi aplicado por Justino em sua verificaccedilatildeo entre as diferenccedilas que encontrou Desta forma
Walde resume seu entendimento
Parte do problema era uma maacute interpretaccedilatildeo da crenccedila cristatilde Por natildeo renderem culto
aos deuses gregos e romanos os cristatildeos eram chamados ateus Justino perguntou
como eles podiam ser ateus jaacute que eles rendiam culto ldquoao Deus verdadeirordquo Os
cristatildeos rendem culto ao Pai Filho e Espiacuterito Santo ele disse e ldquolhes datildeo homenagens
com razatildeo e verdaderdquo Justino tambeacutem apontou a inconsistecircncia dos governantes
romanos Alguns de seus proacuteprios filoacutesofos ensinaram que natildeo havia nenhum deus
mas eles natildeo os perseguiram soacute por terem o nome de filoacutesofos316
Aleacutem desses destaques de caraacuteter mais historiograacuteficos adquirimos atraveacutes do texto
biacuteblico o relato Apostoacutelico que certamente abarca os fatores que compotildeem a posiccedilatildeo de Justino
Este testemunho Sagrado retrata com esmero o que o autor de Atos dos Apoacutestolos buscava
comunicar ao seu status quo pois o discurso de Paulo em Atenas torna-se esclarecedor para o
fim de testificar o estado e o tipo da feacute que os cristatildeos confessavam Vemos nisso proposta uma
relocaccedilatildeo do ser humano em direccedilatildeo a nova concepccedilatildeo de se ser a geraccedilatildeo de Deus ndash atraveacutes
da nova criaccedilatildeo ndash pois os procedimentos dos cultos pagatildeos contrariavam os princiacutepios
fundamentais deste Deus absoluto uacutenico e consequentemente a isso verdadeiro na visatildeo de
Justino sendo absolutamente ldquotolice pensar que a divindade ndash lsquoo divinorsquo ou lsquodivinalrsquo ndash seria
semelhante agraves imagens de ouro ou de prata feitas pelos homensrdquo317 O Texto Sagrado
indiscutivelmente apresenta o caminho e o fundamento pelo qual Justino alcanccedilou e sustentava
suas convicccedilotildees
O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe sendo ele Senhor do ceacuteu e da terra
natildeo habita em santuaacuterios feitos por matildeos humanas Nem eacute servido por matildeos humanas
como se de alguma coisa precisasse pois ele mesmo eacute quem a todos daacute vida
respiraccedilatildeo e tudo mais [] Sendo pois geraccedilatildeo de Deus natildeo devemos pensar que
a divindade eacute semelhante ao ouro agrave prata ou agrave pedra trabalhados pela arte e
imaginaccedilatildeo do homem (Atos dos Apoacutestolos 17242529)
Apoacutes discorrermos sobre o meacuterito da questatildeo dos disciacutepulos de Jesus Cristo serem ou
natildeo ateus e tambeacutem de abordarmos com uma finalidade dissertativa algumas caracteriacutesticas de
316 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 3 grifo nosso
317 EARLE In Livro dos Atos dos Apoacutestolos Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006 p 343
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ordem cultual do meio pagatildeo seguiremos explorando algumas citaccedilotildees de Justino que se
apresentam de forma diversificada em sua tentativa de enfatizar um latente antagonismo entre
os grupos religiosos de seu tempo
232 Um Princiacutepio Determinista
Os capiacutetulos XXV e XXVI da I Apologia nos apresentam inuacutemeras variaccedilotildees desses
haacutebitos religiosos todos sentenciados por nosso autor como nefastos porque Justino sempre
buscava afirmar como ponto inicial de sua argumentaccedilatildeo a premissa de que seu grupo (cristatildeos)
se diferencia dos demais por natildeo possuir as mesmas praacuteticas Essas praacuteticas pagatildes de culto no
entendimento de Justino fossem exercidas de maneira ordinaacuteria ou extraordinaacuteria por seus
seguidores no final incontestavelmente seriam condenadas pois se manifestariam como obras
demoniacuteacas Isso ocorria porque alguns ldquodemocircnios levaram certos homensrdquo318 a praticaacute-las
para prejuiacutezo dos cristatildeos sendo estes por fim injustamente acusados de praacuteticas danosas
Euseacutebio ao comentar sobre o ministeacuterio de Justino retrataraacute este contexto de forma
simposiasta
Isto eacute demonstrado por Justino que se distinguiu em nossa doutrina natildeo muito tempo
depois dos apoacutestolos e de quem exporemos oportunamente o que seja conveniente
Em sua primeira Apologia dirigida a Antonino em favor de nossa feacute escreve como
segue ldquoE depois da ascensatildeo do Senhor ao ceacuteu os democircnios levaram alguns homens
a dizer que eram deuses e estes natildeo somente natildeo foram perseguidos por voacutes mas ateacute
foram considerados dignos de honrasrdquo319
Nos capiacutetulos XXIV-XXVI Justino nos retrata de maneira sintetizada diversas
caracteriacutesticas da religiatildeo gentiacutelica de sua eacutepoca Ateacute aqui natildeo encontramos nada de novo ou
ateacute mesmo excepcional neste tipo de relato mas o que nos chama a atenccedilatildeo neste
enquadramento analiacutetico sobre o qual estamos ponderando eacute a proporccedilatildeo temaacutetica que o
assunto ganha referente agrave sua futura fundamentaccedilatildeo literaacuteria Cabe-nos aqui atestar que Justino
se utiliza de trecircs elementos indicativos naquilo que procura apresentar como casos evidentes da
perseguiccedilatildeo social para com aqueles que se denominavam cristatildeos Justino atraveacutes de uma
espeacutecie de ldquolista numeradardquo320 notoriamente sinaliza uma sequecircncia de fases as quais
318 JUSTINO I Apologia XXVI 1
319 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica II 13 2-3
320 Justino se utiliza dos termos gregos Πρωτον (Em primeiro lugar) no cap XXIV Δεύτερον (Em segundo lugar)
no cap XXV Τρίτον (Em terceiro lugar) no cap XXVI Sendo os vocaacutebulos empregados pelo autor na segunda
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Frangiotti chama de ldquoProvasrdquo321 utilizadas pelo Apologista sendo que estes fatos em
perspectiva geral se apresentavam de maneira tenebrosa na visatildeo de Justino pois em sua
anaacutelise sustentavam-se sobre argumentos fraacutegeis duvidosos e absolutamente injustos
principalmente pelo fato dessas acusaccedilotildees possuiacuterem um caraacuteter preconceituoso fazendo
somente dos cristatildeos por princiacutepio legal as viacutetimas dessas regras estabelecidas
Neste breve conjunto propositivo encontramos um cenaacuterio real que passa a se
caracterizar por meio de uma descriccedilatildeo de fatos pujantes que ascendem ao nosso olhar atraveacutes
de uma linguagem conceitual Justino amparado por analogias literais passa mediante sua
construccedilatildeo da defesa da moral cristatilde322 a utilizar-se de accedilotildees dialeacuteticas as quais levam as
praacuteticas dos cultos pagatildeos a serem apontadas por Justino (especialmente no capiacutetulo XXV) e
tambeacutem examinadas de uma maneira imperativa mesmo que visando uma definiccedilatildeo satisfatoacuteria
para o entendimento de seus leitores Essa praacutetica literaacuteria eacute algo normalmente detectado junto
ao trabalho de um pensador com caracteriacutesticas platocircnicas pois estes ldquodisciacutepulosrdquo de Platatildeo
atraveacutes de uma confrontaccedilatildeo de imagens contraditoacuterias visavam chegar a ideias idecircnticas e
assim uniformizar o pensamento humano323
Entretanto esta conformidade natildeo era possiacutevel na anaacutelise de Justino pois os fatos
(praacuteticas pagatildes) natildeo possuiacuteam a ldquoidentidaderdquo necessaacuteria para o Apologista muito pelo
contraacuterio eram absolutamente antagocircnicos e inquestionavelmente se definiam como espuacuterios
aos olhos dos cristatildeos quando ponderados diante da doutrina cristatilde estabelecida pela
transmissatildeo e edificaccedilatildeo Apostoacutelica Deste modo a separaccedilatildeo essencial proposta pelo
Apologista torna-se ainda mais clara se confrontada com o comentaacuterio de Euseacutebio ao capiacutetulo
XXVI da I Apologia O Historiador constroacutei uma consideraacutevel argumentaccedilatildeo sobre uma figura
humana denominado Menandro o qual sendo participante de atos miacutesticos recebeu de Euseacutebio
o cognome de ldquoMagordquo
Tambeacutem Justino ao mencionar Simatildeo pela mesma razatildeo acrescenta uma relaccedilatildeo
sobre este outro dizendo ldquoSabemos tambeacutem que um certo Menandro tambeacutem
samaritano oriundo da aldeia chamada Caparatea depois de ser disciacutepulo de Simatildeo e
estando tambeacutem possuiacutedo por democircnios apareceu em Antioquia e com sua arte
maacutegica seduziu a muitos E convenceu seus seguidores de que natildeo morreriam Hoje
declinaccedilatildeo do acusativo permitem em sua traduccedilatildeo o emprego tanto da preposiccedilatildeo ldquoemrdquo quanto do substantivo
ldquolugarrdquo condicionando desta forma uma indicaccedilatildeo de relaccedilatildeo e loacutegica em sua estrutura organizacional Ver
PAUTIGNY In Notes Apologies XXVI 1 XXV 1 XXVI 1
321 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 21
322 JUSTINO I Apologia XXV 1-3
323 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
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restam alguns de sua seita que continuam a professaacute-lordquo Era sem duacutevida obra da
influecircncia diaboacutelica lanccedilar matildeo de tais feiticeiros revestidos do nome de cristatildeos para
esforccedilar-se em caluniar o grande misteacuterio de piedade acusando de magia e destruir
por meio deles os dogmas da Igreja sobre a imortalidade da alma e a ressurreiccedilatildeo dos
mortos Mas aqueles que os reconhecem como salvadores chegaram abaixo da
verdadeira esperanccedila324
Neste comentaacuterio histoacuterico notamos com clareza a relaccedilatildeo de contribuiccedilatildeo que
Euseacutebio visa estender ao confronto apologeacutetico pelo qual Justino havia passado Desta maneira
acaba por nos manifestar seu condicionamento a um fato que em sua concepccedilatildeo parece-nos
claramente a expressatildeo de um princiacutepio pelo qual faz emergir um compromisso ndash algo que nos
soa como uma necessidade moral ndash que possui um caraacuteter imperioso Euseacutebio nos relata sem
restriccedilotildees que as accedilotildees maleacutevolas praticadas pelo meio sociorreligioso pagatildeo do periacuteodo de
Justino tinham claramente o objetivo de ldquocaluniar o grande misteacuterio de piedade [] e destruir
por meio deles os dogmas da Igrejardquo325 constituindo deste modo a noccedilatildeo histoacuterica de que os
valores da feacute cristatilde eram a expressatildeo perfeita da Verdade tanto para Justino quanto para a Igreja
(representada historicamente no relato de Euseacutebio) Tratando-se quanto agrave Igreja nesta questatildeo
pontualmente Justino entendia que em seu curso natural a Igreja vivenciava naturalmente essa
relaccedilatildeo dialeacutetica fazendo com que as difamaccedilotildees consequentes da falsa religiatildeo manifestassem
que a Igreja era (e estava) Santa mesmo que sob o ataque e a tentativa de manipulaccedilatildeo dos
seres demoniacuteacos326
Sem entrarmos diretamente no meacuterito teoloacutegico destas afirmaccedilotildees mas buscando nos
direcionarmos para aquilo que nos cabe como exame pretendido neste trabalho ressaltamos
que o comportamento daqueles que buscavam defender a feacute cristatilde nos parece visar de forma
clara o estabelecimento de um padratildeo entre causa e efeito em suas anaacutelises O efeito do
procedimento daqueles que assumiram esta postura hereacutetica em relaccedilatildeo agrave feacute cristatilde eacute assim
definido por Euseacutebio ldquoMas aqueles que os reconhecem como salvadores chegaram abaixo da
verdadeira esperanccedilardquo327 Aqui encontramos um destaque consideraacutevel para esta pesquisa pois
podemos sustentar que Euseacutebio baseia sua argumentaccedilatildeo de maneira evidente na
intelectualidade de Justino Logo devemos novamente afirmar de maneira expressiva que tanto
para Justino quanto para Euseacutebio havia uma definiccedilatildeo consistente do que seria a Verdade como
324 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica III 26 3-4
325 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica III 26 4
326 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997
327 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica III 26 4 grifo nosso
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tambeacutem onde ela necessariamente estava eou se encontrava Aqui tambeacutem se caracterizava
um processo de objeccedilatildeo a Verdade sendo os registros historiograacutefico um peso consideraacutevel na
comprovaccedilatildeo deste caso
233 Um Princiacutepio de Pureza
Seguindo no tratado de Justino jaacute nos dirigindo ao segundo cenaacuterio de nossa anaacutelise
para este item apresentamos mais um relato de alccedilada histoacuterica que eacute proposto por nosso autor
Como nos temas anteriores este tambeacutem envolve primordialmente questotildees de foro social
poreacutem agora apontando precisamente para outras realidades do ambiente sociorreligioso que
envolvia a realidade de Justino Sendo assim a partir deste ponto iremos considerar o capiacutetulo
XXVII da I Apologia onde encontramos uma postura determinante por parte do Apologista
quanto a questotildees de ordem para com agrave conduta sexual humana Neste caso especiacutefico podemos
ateacute mesmo falar de um padratildeo de comportamento a ser adotado em detrimento de outro328
Tambeacutem devemos afirmar sem constrangimento que para Justino fazer figurar esta
exposiccedilatildeo era algo vaacutelido e ateacute mesmo fundamental para suas intenccedilotildees apologeacuteticas pois tudo
nos indica que ele natildeo apenas queria sinalizar uma conduta mas tambeacutem solidificaacute-la por meio
de um ordenamento ldquoA pureza da vida cristatilderdquo329 Entendemos que para uma melhor
compreensatildeo dessa questatildeo em especiacutefico se faz necessaacuterio uma leitura completa do registro
apologeacutetico de Justino quanto ao assunto Deste modo segue na integra o capiacutetulo XXVII da I
Apologia
Noacutes por outro lado a fim de natildeo cometer pecado ou impiedade professamos a
doutrina de que expor os receacutem-nascidos eacute obra de perversos Primeiro porque vemos
que quase todos vatildeo acabar na dissoluccedilatildeo natildeo soacute as meninas mas tambeacutem os
meninos Do mesmo modo como se conta que os antigos mantinham rebanhos de bois
cabras ovelhas ou cavalos de pasto assim se reuacutenem agora rebanhos de crianccedilas com
a uacutenica finalidade de usar torpemente delas e toda uma multidatildeo tanto de mulheres
como de androacuteginos e pervertidos estaacute preparada em cada proviacutencia para semelhante
abominaccedilatildeo Para isso recolheis taxas contribuiccedilotildees e tributos ao passo que o vosso
dever seria o de arrancaacute-las pela raiz do vosso impeacuterio Quando se abusa de tais seres
aleacutem de tratar de uma uniatildeo proacutepria de pessoas sem Deus iacutempia e torpe natildeo faltaraacute
quem se una conforme a circunstacircncia com um filho um parente ou um irmatildeo Haacute
tambeacutem aqueles que prostituem seus proacuteprios filhos e mulheres outros mutilam-se
publicamente para a torpeza e referem esses misteacuterios agrave matildee dos deuses Finalmente
em todos aqueles que considerais como deuses a serpente se pinta como siacutembolo e
grande misteacuterio E aquilo mesmo que voacutes praticais e honrais publicamente voacutes o
atribuiacutes a noacutes como se tiveacutessemos decaiacutedo e a luz divina natildeo nos assistisse Todavia
328 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997
329 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 22
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como estamos livres por natildeo praticar nada disso vossas caluacutenias natildeo nos causam
nenhum dano ao contraacuterio danificam aqueles que cometem essas torpezas e ainda
levantam falso testemunho contra noacutes330
O conteuacutedo exposto no capiacutetulo XXVII nos retrata uma condiccedilatildeo muito conflituosa
para os cristatildeos Graccedilas agrave sua praxis fidei eles chegaram a ser considerados ldquoinimigos do estado
e ateusrdquo331 A Igreja em sua fase primitiva teve em seu ldquoexerciacutecio de feacuterdquo a acusaccedilatildeo de se
envolver amplamente com a imoralidade de seu meio cultural332 No entanto a situaccedilatildeo que
Justino enfrentava em seus dias natildeo era mais proveniente de uma solene admoestaccedilatildeo
Apostoacutelica Pelo contraacuterio agora os cristatildeos passaram a ser vitimados por efeitos de um estado
opressor No passado estes pecados haviam afligido a Igreja de Cristo a ponto de suas praacuteticas
lituacutergicas serem ldquoconfundidasrdquo com as muitas facetas do rito religioso natildeo-cristatildeo vigente em
sua eacutepoca algo que Justino se interpocircs de forma vertiginosa Sem termos a intenccedilatildeo de produzir
necessariamente um apanhado histoacuterico-cultural (entenda-se de se comentar detalhadamente o
capiacutetulo citado) procuraremos a partir deste ponto estabelecer agrave saliecircncia que entendemos
haver entre as praacuteticas descritas no capiacutetulo XXVII pois a descriccedilatildeo elementar de Justino nos
leva a uma singular oposiccedilatildeo de valores e preceitos considerados por ele como fundamentais
A cultura greco-romana alicerccedilada e solidificada nas entranhas do Impeacuterio nos
demonstra uma coletividade de fatos os quais eram considerados inoacutespitos ao ldquoideaacuteriordquo cristatildeo
que se encontrava estruturado no rigor das comunidades do Seacuteculo II333 Obviamente alguns
desvios de conduta por parte dos fieacuteis ocorriam em meio agraves ldquoassembleiasrdquo cristatildes ateacute mesmo
com certa normalidade especialmente nos grandes centros urbanos334 Entretanto a proteccedilatildeo
da disciplina eclesiaacutestica ndash principalmente mediante a accedilatildeo Episcopal e dos rigores penitenciais
ndash conseguia estabelecer um ldquocontrolerdquo por meio da manutenccedilatildeo da autecircntica doutrina de
Cristo335
Neste cenaacuterio as diversas praacuteticas religiosas pagatildes atreladas ao sistema social de entatildeo
ndash as quais envolviam de maneira ampla e robusta a vida cotidiana dos suacuteditos de Roma em
330 JUSTINO I Apologia XXVII 1-5
331 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4
332 Ver 1 Coriacutentios 5
333 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997
334 KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983
335 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
80
suas mais variadas atuaccedilotildees familiar civil militar etc336 ndash apontavam de forma depreciativa
para o puacuteblico cristatildeo O cristianismo nesse momento cada vez mais inserido na realidade
social do Impeacuterio trazia o ldquofermento de um ideal superiorrdquo337 elaborado tanto no niacutevel
intelectual de seus praticantes quanto tambeacutem no de seus defraudadores Isso fazia com que a
feacute cristatilde acabasse por se distinguir de forma evidente dos diversos haacutebitos e costumes
considerados ordinaacuterios do sistema religioso natildeo-cristatildeo que estava sendo analisado e
apologeticamente combatido por Justino
Os cristatildeos eram acusados falsamente de cometerem torpezas sexuais em seus
encontros cultuais sendo que os cristatildeos nem de perto praticavam fornicaccedilatildeo adulteacuterio
mutilaccedilatildeo entre outros atos repugnantes338 que eram comuns na ldquoliturgiardquo cuacuteltica pagatilde Neste
cenaacuterio para Justino a pior consequecircncia ainda era a de que o Impeacuterio tolerava tais atos sem
nenhuma forma ativa de puniccedilatildeo a estes pois caso um respectivo modo de culto viesse a trazer
benefiacutecios poliacuteticos ao Impeacuterio o mesmo era tolerado sem se levar em conta sua origem ou
meacutetodos de celebraccedilatildeo por mais esdruacutexulos que fossem 339
Seguindo ainda nesta temaacutetica a I Apologia nos permite afirmar que a celeuma de
origem pagatilde que procurava acusar os cristatildeos de realizarem orgias canibalismo pedofilia e
diversos outros atos de torpeza em suas celebraccedilotildees natildeo passava de um plano difamatoacuterio que
infelizmente conseguiu se estabelecer em meio a uma realidade sociorreligiosa com
caracteriacutesticas muito preconceituosas pois mesmo sendo sincretista em sua essecircncia340 tal
sociedade natildeo soube ou natildeo quis reconhecer esse tipo de crenccedila religiosa341 Poreacutem cabe-nos
336 CARCOPINO Jeacuterocircme Roma no Apogeu do Impeacuterio Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990
337 LEBRETON Jules ZEILLER Jacques Storia della Chiesa della origini ai nostri giorni V II Dalla fine
dell II Secolo alla pace Costantiniana (313) 1972 p 619 No original fermento drsquoun ideale superiore
338 Ver DANIEacuteLOU Jean MARROU Henri Nova histoacuteria da Igreja V I Dos Primoacuterdios a Santo Gregoacuterio
Magno Petroacutepolis Vozes 1966 p 105-109
339 Algumas formas rituais de culto eram tatildeo bizarras que solapam mais do que qualquer outra coisa o estereoacutetipo
moderno dos romanos como convencionais e serenos Exemplo disso na festa da Lupercaacutelia em fevereiro homens
jovens corriam nus pela cidade accediloitando qualquer mulher que encontrassem pela frente (trata-se da mesma festa
recriada na cena de abertura da peccedila Juacutelio Ceacutesar de Shakespeare) Ver BEARD SPQR uma histoacuteria da Roma
Antiga 2017 p 104
340 AYMARD AUBOYER Roma e Seu Impeacuterio Volume V As Civilizaccedilotildees da Unidade Romana (Fim) A Aacutesia
Oriental do Iniacutecio da Era Cristatilde ao Final do Seacuteculo II 1994 p 64-65 CORNELL Tim MATTHEWS John
Frederick A Civilizaccedilatildeo Romana Barcelona Folio 2008 p 97
341 Neste aspecto em particular o meio teoloacutegico diverge de posiccedilatildeo possivelmente devido a inclinaccedilatildeo do
pesquisador em ponderar aspectos filosoacuteficos eou ideoloacutegicos tanto do passado quanto do presente para a eacutepoca
(Seacuteculo II) em anaacutelise Por exemplo Meeks entende que as caracteriacutesticas da moralidade estabelecida entre os
cristatildeos jaacute possuiacuteam forte ascendecircncia em meio a setores da sociedade Romana em contraposiccedilatildeo Daniel-Rops
atesta que a moralidade de origem cristatilde constituiacuteda atraveacutes dos Seacuteculos I ao IV natildeo encontra antecedentes agrave altura
que possam ser considerados como paralelos realmente orientativos haacute esta Ver MEEKS As Origens da
Moralidade Cristatilde 1997 p 9-24 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 240-242
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ressaltar que Justino em seus tratados apologeacuteticos procurou incansavelmente defender seu
grupo como ldquoseres transformadosrdquo que abandonaram as praacuteticas repugnantes e agora satildeo
portadores (possuidores) de uma alta qualificaccedilatildeo moral Quanto a esse aspecto Walde afirma
Justino tambeacutem deu ecircnfase agrave casta conduta dos cristatildeos em resposta a acusaccedilotildees de
conduta imoral durante o culto Para mostrar como isso natildeo era verdade ele contou a
histoacuteria de um homem que foi perguntado por um cirurgiatildeo que o queria fazecirc-lo de
eunuco para provar que os cristatildeos natildeo praticam promiscuidade O pedido foi negado
porque o homem escolheu ficar solteiro e seguir seus companheiros cristatildeos342
Apoacutes utilizarmos desse exemplo de teor absolutamente imperativo ndash por sua estrutura
excecircntrica ateacute mesmo junto a um nicho de caraacuteter sociorreligioso considerado peculiar em
suas caracteriacutesticas Entendemos que ainda se faz necessaacuterio apresentar junto a essa discussatildeo
uma abordagem que compreenda a realidade que procuramos descrever Encontramos esse
complemento junto ao trabalho de Walde Este por meio de uma entrada que nos indica agrave leitura
de alguns fatos apresenta-nos uma das teacutecnicas utilizadas por Justino em sua construccedilatildeo
literaacuteria Walde reconhece que o Apologista ao mencionar a situaccedilatildeo religiosa de seu cotidiano
aborda de forma contundente o desgaste entre os praticantes da nova feacute (cristatildeos) e os
adoradores do ldquopanteatildeordquo (natildeo-cristatildeos) Os exemplos descritos por Walde satildeo similares aos
usados por Justino e esta similaridade nos leva novamente a concentrarmos nosso foco agrave uma
accedilatildeo comparativa de estados opostos entre si ou seja dialeacuteticos Sendo assim torna-se notoacuterio
desde o iniacutecio do trabalho de Walde a aplicaccedilatildeo de uma metodologia comparativa e a
diferenciaccedilatildeo de casos tornando-se uma espeacutecie de ldquoconclusatildeordquo definitiva para esse processo
Uma das taacuteticas apologeacuteticas de Justino era contrastar o que os cristatildeos eram
falsamente acusados e castigados com que os romanos faziam com impunidade Por
exemplo os cristatildeos eram acusados de matar crianccedilas em seus cultos e comecirc-las
depois Justino lembrava que os adoradores de Saturno se entregavam a matar e beber
sangue e outros pagatildeos que jogavam sangue de homens e animais em seus iacutedolos Os
cristatildeos eram acusados de imoralidade sexual mas eram seus criacuteticos Justino dizia
quem imitavam ldquoJuacutepiter e os outros deuses na sodomia e relaccedilotildees pecadoras com
mulheres343
342 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4
343 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4 grifo nosso
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Ao analisarmos o texto de Walde percebemos que este utiliza-se do verbo ldquocontrastarrdquo
em sentido intransitivo para salientar com bastante preponderacircncia uma forma calculada de
oposiccedilatildeo e apresentar uma literal contrariedade de estados em essecircncia Logo conseguimos
notar a diferenccedila entre estes Eacute impressionante aos nossos olhos a relaccedilatildeo que Walde estabelece
em seu trabalho sobre o termo Verdade (mesmo que indiretamente) sendo este vocaacutebulo
utilizado como habilitador de uma caracteriacutestica de cunho existencial que passa a ser
manifestada pelos cristatildeos Novamente citamos este teoacutelogo em nossa busca de clarificar ainda
mais essa base indicativa que para noacutes eacute entendida como uma evidecircncia concreta nesta
construccedilatildeo conceitual Walde diz ldquoEm primeiro lugar disse Justino os cristatildeos demonstravam
sua honestidade por natildeo mentir quando em julgamento Por serem pessoas da verdade eles
confessariam sua feacute ateacute a morte Eles amavam a verdade mais que a vidardquo344
Portanto Walde tem razatildeo em afirmar que a atitude ldquode viver segundo a verdade era
um exemplo de mudanccedila provocado nas vidas das pessoas seguindo sua conversatildeordquo345 Desta
forma compreendemos por meio de uma avaliaccedilatildeo baseada em medidas factiacuteveis que haacute
possibilidade de se ser cristatildeo na concepccedilatildeo de Justino ndash como tambeacutem na de Tertuliano
Euseacutebio Walde e outros ndash passava por um proceder de vida que designava com eloquecircncia
atributos de diferenciaccedilatildeo no contexto social ativo da cultura a qual esta pessoa estava inserida
Esta separaccedilatildeo de maneira simples e evidente se condicionava no testemunho de vida dos fieacuteis
na esfera puacuteblica Cabe-nos ainda neste contexto colocarmos a frase de Falls citada por Walde
este diz ldquoesta mudanccedila chegou a ser conhecida como lsquoa triunfal canccedilatildeo dos apologistasrsquordquo346
Encerramos aqui nosso desenvolvimento deste ponto distintivo referente agravequilo que
poderiacuteamos denominar de ldquodialeacutetica de Justinordquo Para isso utilizamos de um texto da I
Apologia no qual Justino enfatiza esta mudanccedila essencial entre as vidas humanas que
caracterizamos como cristatildeos e natildeo-cristatildeos Em seguida classificamos agrave realidade cristatilde
como algo superior atraveacutes do meacutetodo de comparaccedilatildeo que tanto utilizamos nesta seccedilatildeo
confrontando os opostos em uma relaccedilatildeo que atesta suas diferenccedilas as quais satildeo consideradas
por Justino como irreconciliaacuteveis
Antes noacutes nos compraziacuteamos na dissoluccedilatildeo agora abraccedilamos apenas a temperanccedila
antes nos entregaacutevamos agraves artes maacutegicas agora nos consagramos ao Deus bom e
ingecircnito antes amaacutevamos acima de tudo o dinheiro e as rendas de nossos bens
344 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4 grifo nosso
345 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4 grifo nosso
346 FALLS The Fathers of the Church 1948 apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4
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agora colocamos em comum o que possuiacutemos e disso damos uma parte para todo
aquele que estaacute necessitado antes noacutes nos odiaacutevamos e nos mataacutevamos mutuamente
e natildeo compartilhaacutevamos o lar com aqueles que natildeo pertenciam agrave nossa raccedila pela
diferenccedila de costumes agora depois da apariccedilatildeo de Cristo vivemos todos juntos
rezamos por nossos inimigos e tratamos de persuadir os que nos aborrecem
injustamente a fim de que vivendo conforme os belos conselhos de Cristo tenham
boas esperanccedilas de alcanccedilar conosco os mesmos bens que esperamos de Deus
soberano de todas as coisas347
O objetivo deste capiacutetulo foi apresentar de modo sinteacutetico o conceito acerca dos
cristatildeos no periacuteodo do Seacuteculo II dC Tambeacutem arguimos com clareza sobre a tentativa de
clarificarmos a situaccedilatildeo daqueles que natildeo eram pertencentes a este grupo os quais procuramos
mediante a aplicaccedilatildeo de uma distinccedilatildeo elementar defini-los com o termo de natildeo-cristatildeos
poreacutem acima de tudo buscamos apresentar por meio de sinais constitutivos e fatos
historiograacuteficos348 quais eram os predicativos que formulavam esta definiccedilatildeo ou melhor
dizendo quais eram os qualificadores que definiam aqueles que eram seguidores da Verdade
na concepccedilatildeo de Justino e outros349
No proacuteximo capiacutetulo buscaremos vislumbrar o filoacutesofo Justino Apresentaremos um
conciso relato de sua histoacuteria na filosofia procurando abordar de maneira satisfatoacuteria quais
foram suas principais influecircncias dentro desse segmento Trabalharemos de forma especial na
tentativa de apontar qual foi a sua definiccedilatildeo sobre o uso da razatildeo para os planos salviacuteficos de
Deus para a humanidade sendo este em nosso entendimento mais um dos fatores determinantes
para a complementaridade de nosso exame sobre a definiccedilatildeo da Verdade junto a I Apologia de
Justino o Maacutertir
347 JUSTINO I Apologia XIV 2-3
348 DANIEacuteLOU MARROU Nova histoacuteria da Igreja V I Dos Primoacuterdios a Santo Gregoacuterio Magno 1966
349 Danieacutelou e Marrou definem agrave Euseacutebio e Lactacircncio como apologistas de Constantino dando a entender que
uma poliacutetica de reeducaccedilatildeo na esfera sociorreligiosa do Impeacuterio Romano se desenvolveu mediante uma nova
abordagem dos fatos do passado no caso em especifico (I Apologia de Justino e seu cenaacuterio social) os imperadores
do passado deixaram de ser ldquoendeusadosrdquo passando a serem reconhecidos como tiranos e deacutespotas aos quais o
processo de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos tornou-se em um de seus principais atos de ignomiacutenia Ver DANIEacuteLOU
MARROU Nova histoacuteria da Igreja V I Dos Primoacuterdios a Santo Gregoacuterio Magno 1966 p 106
84
3 A VERDADE REVELADA Agrave RAZAtildeO A FILOSOFIA E SEU CONTEXTO NA
PERSPECTIVA DE JUSTINO MAacuteRTIR
No princiacutepio ele criou o gecircnero humano racional capaz de escolher a verdade e
praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus
pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade Se algueacutem natildeo
crecirc que Deus se preocupe com essas coisas ou teraacute que confessar com sofismas que
natildeo existe ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como
uma pedra350
Partindo do capiacutetulo XXVIII da obra base de Justino para este trabalho eacute que
desenvolvemos o capiacutetulo III desta pesquisa no qual apresentamos um cenaacuterio diferenciado
sobre a figura humana de nosso autor O cristatildeo Justino o qual podemos registrar de forma
variaacutevel mediante seu ldquomeacutetierrdquo amplo estaacute classificado entre os Pais Apologistas elencado
como um seleto articulador da importante cidade de Roma catalogado como um dos mais
significativos maacutertires do Seacuteculo II mas tambeacutem estaacute sem nenhuma sombra para duacutevidas
definido nos compecircndios histoacutericos como um expressivo filoacutesofo do meio cristatildeo
Este aspecto pontual referente a intelectualidade de Justino por jaacute ter sido
consideravelmente explorado natildeo eacute mais uma novidade no meio acadecircmico351 no entanto esta
questatildeo ainda pode ser desenvolvida e ateacute mesmo arquitetada para fins que visam estabelecer
pontos de conexatildeo entre temas diversos os quais incluem o tema e agrave objetividade central
propostos para esta pesquisa
Podemos constatar por meio da anaacutelise do desenvolvimento da expressatildeo intelectual
de um filoacutesofo ou de uma escolalinha filosoacutefica uma ampla polissemia locucional e ateacute mesmo
perceber casos opostos quando ocorrem no estabelecimento de algumas propriedades termos
diferentes que evoluiacuteram para uma mesma fonologia construindo desta maneira tambeacutem casos
de homoniacutemia dentro da manifestaccedilatildeo filosoacutefica352 Deste modo torna-se possiacutevel ndash e ateacute
mesmo necessaacuterio ndash direcionar o caraacuteter conceitual contido em algumas expressotildees filosoacuteficas
quando estas satildeo analisadas visando estabelecer uma direccedilatildeo que busque esclarecer
determinado contexto ou cenaacuterio Assim por este meio podemos salientar que assaz entre noacutes
350 JUSTINO I Apologia XXVIII 3-4a grifo nosso
351 Ver HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 27-32
352 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
85
fortes indiacutecios que Justino desenvolveu uma postura robustamente teoloacutegica mediante ter
formado sua tese atraveacutes da ldquodiversidade filosoacuteficardquo da qual era apreciador353
No caso de nosso trabalho em especiacutefico notamos a necessidade da integraccedilatildeo de
indicadores que nos orientem agrave amplitude da filosofia de Justino em nossa busca da definiccedilatildeo
da que era agrave Verdade para este Apologista Esta amplitude natildeo visa se desviar de modelos
tradicionais nem propriamente somar a eles mas antes disso entendemos ser necessaacuterio
rejeitar a ideia de que trabalhamos com um conceito formado precariamente sem um
fundamento soacutelido o qual poderiacuteamos considerar como um mero estereoacutetipo sem originalidade
Ao contraacuterio este modelo encontrado em Justino natildeo se baseia em preconceitos mas sim num
corpo intelectual de ldquotalento respeitaacutevel ampla leitura e memoacuteria enormerdquo354 algo que eacute notoacuterio
na literatura de Justino e exposto ateacute entatildeo com uma consideraacutevel parcela de originalidade355
Neste exposto algumas interrogaccedilotildees nos surgem especialmente quando tentamos
descrever (definir) o filoacutesofo Justino e sua contribuiccedilatildeo Aqui esboccedilamos alguns destes
questionamentos Quem era Justino o filoacutesofo Quais foram as principais influecircncias que
Justino recebeu na filosofia Qual resultado se percebe na teologia do autor devido a esta
influecircncia Por fim existe um condicionante (entenda-se uma caracteriacutestica inata) no ser
humano que explique tal interesse de Justino em expressar seu conceito
31 INTRODUCcedilAtildeO AO CAPIacuteTULO XXVIII
O capiacutetulo XXVIII da I Apologia eacute de grande importacircncia para esta pesquisa
inaugurando por assim dizer um significativo espaccedilo de reflexatildeo na busca de alcanccedilarmos o
desfecho que almejamos Num breve conjunto de argumentos os quais se concentram sobre
um rigor metodologicamente dedutivo o capiacutetulo XXVIII nos eacute apresentado pelo Apologista
de modo perspiacutecuo onde a clareza de suas proposiccedilotildees salientam seus objetivos os quais
formulam-se mediante as propriedades de caraacuteter racionalista que ele apresenta Aqui notamos
uma aguccedilada aplicaccedilatildeo por parte do autor agravequilo que podemos chamar de uma postura
construtiva para com a estrutura inteligiacutevel do ser criado agrave imagem e semelhanccedila de Deus
353 WALDE 2000
354 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 715
apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 1
355 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948
86
Seguindo a argumentaccedilatildeo de Frangiotti podemos afirmar baseados nesse espaccedilo (cap XXVIII)
que Justino entendia que ldquoO homem eacute racional e livrerdquo356
Neste capiacutetulo (XXVIII) Justino desenvolve uma condensada e pragmaacutetica
abordagem envolvendo os quatro versiacuteculos que o compotildee Diante disso em momento algum
nossa argumentaccedilatildeo visa exaurir as diversas possibilidades contextuais ndash seja num campo
hermeneuticamente literal anaacutelogo ou metafoacuterico ndash do trabalho do Apologista mas apenas
organizaacute-lo de maneira ativa por meio de sua divisatildeo (versos) a um quadrante que possibilite
o interesse deste exame o qual se constroacutei na tentativa de aproximarmos as interpretaccedilotildees da
definiccedilatildeo de Verdade que detectamos em Justino de nosso interesse teoloacutegico
Neste item em especiacutefico (31) que visa uma abordagem introdutoacuteria desenvolvemos
em especial uma aproximaccedilatildeo entre os dois primeiros versiacuteculos do capiacutetulo onde priorizamos
apresentar sua estruturaccedilatildeo visando desta forma o aperfeiccediloamento destes pontos para
estabelecermos uma sentenccedila axiomaacutetica a qual eacute esboccedilada pelo autor no terceiro versiacuteculo do
relato Quanto ao primeiro versiacuteculo
Entre noacutes o priacutencipe dos maus democircnios se chama serpente satanaacutes diabo ou
caluniador como podeis ver caso desejardes averiguar isso atraveacutes de nossas
Escrituras Ele e todo o seu exeacutercito juntamente com os homens que o seguem seraacute
enviado ao fogo para ser castigado pela eternidade sem fim coisa que foi de antematildeo
anunciada por Cristo357
A primeira impressatildeo para um leitor moderno dessa descriccedilatildeo eacute de surpresa ou ateacute
mesmo de espanto poreacutem o verso devidamente encaixado no relato que o antecede o explica
e ateacute mesmo o suaviza As palavras de Justino satildeo absolutamente biacuteblicas e estatildeo enquadradas
em um absoluto arcabouccedilo escrituriacutestico Honestamente devemos salientar que nada lhe falta
como meacutetodo para que possamos empregar o tiacutetulo de ldquoortodoxordquo em seu embasamento
teoloacutegico358 Pois seus termos empregados tais como o ldquopriacutenciperdquo359 a chamada ldquoserpenterdquo360
aleacutem das demais terminologias como ldquosatanaacutesrdquo361 ldquodiabordquo eou ldquocaluniadorrdquo362 apresentam-se
356 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 22
357 JUSTINO I Apologia XXVIII 1
358 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948
359 Ver Joatildeo 1231 1430
360 Ver Gecircnesis 31 2 Coriacutentios 113 Apocalipse 129
361 Ver Mateus 410 Atos dos Apoacutestolos 2618
362 Ver Mateus 411 Atos dos Apoacutestolos 1310
87
neste cenaacuterio apologeacutetico como evidecircncias elementares extraiacutedas da Escritura Sagrada e
aplicadas em uma construccedilatildeo dialeacutetica sendo estas ainda vinculadas por Justino como uma
sentenccedila arbitral agravequeles que estatildeo sendo expostos e julgados pelo Apologista ndash caracteriacutestica
literaacuteria que notamos ser amplamente utilizada por Justino na afirmaccedilatildeo de suas convicccedilotildees363
Aqui fomenta-se uma configuraccedilatildeo de ordem proacutepria a qual apresenta Justino como
um filoacutesofo que pode ser definido como pertencente a um grupo que adota uma postura mais
claacutessica de linha platocircnica ndash algo que seraacute mais bem desenvolvido a seguir ndash onde atributos
que caracterizem causa e efeito que partindo de um suposto ldquomundo sensiacutevelrdquo364 passam a
somar caracteriacutesticas evidentes em sua construccedilatildeo textual sendo o teacutermino do capiacutetulo XXVII
uma expliacutecita manifestaccedilatildeo de fatos que atestam essa correlaccedilatildeo tatildeo dura mas tambeacutem
necessaacuteria no processo de evidenciaccedilatildeo proposto por Justino
Mas eacute preponderante para natildeo se dizer essencial que a loacutegica do Apologista se baseia
em artifiacutecios nucleares pois quem diz ldquocaso desejardes averiguar isso atraveacutes de nossas
Escriturasrdquo365 carrega consigo uma tonalidade de patentes e natildeo de meras suposiccedilotildees porque
a Verdade como elemento distinguiacutevel e diferencial eacute criteacuterio identificaacutevel na leitura de Justino
junto agravequilo que o mesmo salienta como sua (no caso do texto ldquonossardquo) ldquoEscriturardquo366 ou seja
sua preeminecircncia espiritual o que na descriccedilatildeo do Apologista deve ser entendida como uma
real vantagem distintiva sendo uma latente superioridade existencial para os homens que a
possuem Este ponto de prevalecircncia seraacute melhor abordado no uacuteltimo capiacutetulo desta pesquisa
Uma importante observaccedilatildeo ainda nos cabe fazer na parte final do primeiro verso
Antes mesmo de ocorrer os eventos conciliares de Niceacuteia eou Constantinopla a ecumenicidade
do Credo parece jaacute se caracterizar em uma forma de universalidade e um confessar da missatildeo
apostoacutelica jaacute anteriormente registrada no compecircndio biacuteblico se faz reverberar no ideaacuterio de
Justino Iniciamos nossa leitura do testemunho Apostoacutelico junto agrave estrutura biacuteblica O apoacutestolo
Judas escreveu ldquoele tem guardado sob trevas em algemas eternas para o juiacutezo do grande Dia
[] satildeo postas para exemplo do fogo eterno sofrendo puniccedilatildeordquo (Judas 6b7b) Nesta passagem
encontramos bases que se conformam ao relato de Justino que enfatiza que o proacuteprio Cristo as
havia anunciado367 Prosseguindo vemos que o Credo redigido anos depois iraacute afirmar o mesmo
363 DROBNER Manual de Patrologia 2008
364 SEVERINO A Filosofia Antiga 1984 p 84
365 JUSTINO I Apologia XXVIII 1
366 JUSTINO I Apologia XXVIII 1
367 Ver Joatildeo 1248
88
quando diz ldquoe viraacute novamente em gloacuteria a julgar os vivos e os mortosrdquo368 Natildeo nos resta duacutevidas
que a missatildeo apostoacutelica gerou a doutrina e consolidou o Credo369 mas passagens de ordem
Patriacutestica como esta salientam que o mesmo (Credo) tambeacutem balizou sua eficiecircncia atraveacutes da
ecircnfase da atuaccedilatildeo de homens que pela feacute natildeo sucumbiram agraves dificuldades370 pelo contraacuterio
salientaram com seu testemunho que estas propriedades de ordem atemporal miacutestica e
existencial foram e ainda eram a proacutepria forma da Verdade em meio aos homens
Quanto ao segundo verso eacute necessaacuterio algumas observaccedilotildees iniciais especialmente
em relaccedilatildeo ao ldquoteorrdquo teoloacutegico que Justino desenvolve nesta pequena porccedilatildeo a qual apresenta
dificuldades interpretativas consideraacuteveis junto ao acircmbito dogmaacutetico ndash independentemente da
estrutura confessional que a examine ndash sugerindo-nos desta forma apresentarmos uma sucinta
argumentaccedilatildeo antes de abordaacute-lo Entendemos que esse procedimento se faz necessaacuterio para
que natildeo aja em nossa construccedilatildeo conceitual-programaacutetica (caps XXIII-XXX) um ponto natildeo
devidamente abordado
Variados debates podem surgir a partir da ecircnfase destacada por Justino (verso 2 do
cap XXVIII) porque afirmaccedilotildees desta espeacutecie fomentam diversos tipos de interesses de ordem
miacutestica no caso em questatildeo (texto de Justino) podem inclusive alavancar questotildees
soterioloacutegicas por exemplo Algumas anaacutelises ldquomodernasrdquo371 se esforccedilam atualmente em
descrever a figura de Justino como ocupante empregador defensor ou ateacute mesmo praticante
de uma ou outra escola teoloacutegica do cenaacuterio cristatildeo atual Entretanto optamos por natildeo abranger
este e outros contextos nesta pesquisa por entendermos que estes assuntos e temas natildeo se
envolvem diretamente com o ponto central de nosso trabalho Aleacutem de reconhecermos outra
dificuldade que nos parece ser muito significativa neste tipo de situaccedilatildeo a de se incorrer no
grave risco de se cometer um anacronismo textual histoacuterico e teoloacutegico372 e desta forma
sugerir um teoacuterico dilema teoloacutegico que para Justino e seus contemporacircneos possivelmente
natildeo era nem sequer um problema doutrinal
Passando agora efetivamente ao texto este diz ldquoNa verdade a paciecircncia que Deus
mostra em natildeo fazecirc-lo imediatamente tem como causa o seu amor pelo gecircnero humano pois
ele prevecirc que alguns se salvaratildeo pela penitecircncia entre os quais alguns que talvez ainda natildeo
368 CREDO NICENO-CONSTANTINOPOLITANO 7ordm Artigo
369 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
370 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
371 Ver SANTOS Justino o Maacutertir ndash Calvinista ou Arminiano 2014 Disponivel em
httpswwwgospelprimecombrjustino-martir-calvinista-arminiano
372 VIRKLER Hermenecircutica Avanccedilada Princiacutepios e Processos de Interpretaccedilatildeo Biacuteblica 2001
89
tenham nascidordquo373 Iniciamos esta parte de um ponto elementar da teologia de Justino374 ao
qual abordaremos mais detalhadamente a frente contudo compreendemos que sua aplicaccedilatildeo
neste item natildeo eacute apenas orientativa mas tambeacutem qualitativa para o restante da argumentaccedilatildeo
Um fato muito criativo do pensamento filosoacutefico de Justino se apresenta quando o
Apologista passa a enfatizar a existecircncia do Logos como o Cristo revelado Isto para Justino eacute
uma asserccedilatildeo de valores pontuais em uma escala ascendente que com facilidade se encontram
e se envolvem em sistemas transcendentais Wachholz elucida a abrangecircncia do termo Logos
dizendo o seguinte
O termo Logos (grego) quer dizer ldquopalavrardquo e tambeacutem ldquorazatildeordquo Segundo os gregos
nossa mente consegue compreender por que participa de alguma maneira do Logos
ou razatildeo universal Justino assume este discurso afirmando que em Jesus Cristo esse
Logos que se fez carne Jesus eacute fonte de todo o conhecimento375
Torna-se necessaacuterio entendermos a notoriedade que Justino aplica agrave onipotecircncia
onisciecircncia e preexistecircncia de Cristo em sua atuaccedilatildeo salviacutefica a partir deste ponto questotildees
(atributos divinos) as quais devemos considerar como absolutamente factiacuteveis no entendimento
do Apologista pois satildeo atributos da Escritura Sagrada ou seja satildeo consideradas evidecircncias
inquestionaacuteveis da vontade Divina (ativa e passiva) na leitura de Justino Poreacutem o ponto de
repouso deste exame se concentra na primeira parte do texto onde novamente Justino enfatiza
sua clarificaccedilatildeo de um estado de conformidade entre ideias e objetos (Verdade)
Mesmo o pensamento de Justino estando alavancado a uma espeacutecie de meacuterito para a
salvaccedilatildeo eacute evidente que sua afirmaccedilatildeo a soberania de Deus ndash a quem adjetiva como
ldquopacienciosordquo ndash caracteriza que esta benesse estaacute intimamente unida ao contexto temaacutetico que
podemos definir como amor de Deus O relato Apostoacutelico a Igreja em Corinto jaacute registrava a
seguinte afirmaccedilatildeo ldquoPorque todas as coisas existem por amor de voacutesrdquo (2 Coriacutentios 415a)
Carver diraacute sobre essa passagem que ldquoA expressatildeo tudo isso eacute por amor de voacutes explica o
acreacutescimo de convosco no versiacuteculo anterior O sofrimento de Paulo eacute um chamado ou uma
daacutediva que ele compartilha com toda a igrejardquo376 Da mesma forma notamos que Justino sofria
373 JUSTINO I Apologia XXVIII 2 grifo nosso
374 DROBNER Manual de Patrologia 2008
375 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 60
376 CARVER In A Segunda Epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006 p 427
90
por este grupo chamado a viver a Verdade o qual neste quadro eacute pintado como a resistecircncia
que manifesta esse amor imerecido e incondicional
Na descriccedilatildeo o Apologista nos parece transparecer com certa naturalidade seu intuito
em tentar provar algo como tambeacutem busca possivelmente sanar um erro (o do porquecirc este
juiacutezo de Deus ainda natildeo se manifestou) No entanto esse cenaacuterio eacute aplicado como uma forma
de ldquotranscriccedilotildeesrdquo que satildeo provenientes das afirmaccedilotildees e revelaccedilotildees inquestionaacuteveis para a
percepccedilatildeo de Justino por estarem devidamente relacionadas aos misteacuterios do Evangelho ao
qual ele servia Inclusive Justino claramente submetia sua razatildeo aos enigmas que a feacute em Cristo
natildeo lhe elucidava satisfatoriamente mas tambeacutem natildeo abalava sua convicccedilatildeo nesta feacute que ldquonatildeo
soacute eacute boa e santa em si mesma mas acima de tudo eacute a uacutenica religiatildeo verdadeirardquo377 Por fim
apontamos neste contexto (verso 2) aquilo que com clareza descreve esta certeza teoloacutegica
ancorada no Apologista que de forma contumaz declara que ldquoNa verdaderdquo378 algo se revelava
e condensava-se nos coraccedilotildees daqueles que o recebiam
Apoacutes descrevermos de maneira introdutoacuteria parte de nossa periacutecope base passamos a
uma abordagem sinteacutetica de uma faceta importantiacutessima de nosso autor para a construccedilatildeo do
restante desta pesquisa Comeccedilamos de imediato a elaborar uma descriccedilatildeo do filoacutesofo Justino
apresentando um resumo de sua jornada no mundo da ldquosabedoriardquo helecircnica descrevendo quais
foram suas principais influecircncias neste meio e quais desiacutegnios esta ascendecircncia deixou em sua
teologia
32 O FILOacuteSOFO JUSTINO
Os acontecimentos relacionados agrave vida de Justino nos direcionam ndash podemos ateacute
mesmo dizer que incontestavelmente nos norteiam ndash para um mesmo ponto de convergecircncia
independentemente da aacuterea ou fase que procuremos abordar sobre esta Desde cedo ateacute o fim
de sua jornada ministerial Justino nos apresentaraacute influecircncias significativas do meio intelectual
ao qual havia pertencido desde sua juventude e ao qual nunca abandonou pelo contraacuterio fez
deste seguimento o ponto principal de irradiaccedilatildeo de sua teologia379 tornando-o necessariamente
uma peccedila-chave para agrave compreensatildeo de suas obras
Este ponto de equiliacutebrio na vida de Justino se daacute principalmente no fato de este ser
um filoacutesofo ao qual podemos catalogar como claacutessico em sua formaccedilatildeo (de origem helecircnica)
377 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 47
378 JUSTINO I Apologia XXVIII 2 grifo nosso
379 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
91
natildeo necessariamente por enquadrar-se ldquono modo de pensar e exprimir os pensamentos que
surgiu especificamente com os gregosrdquo380 mas especialmente na virtude apresentada por sua
filosofia que desde cedo natildeo se pautou por um caraacuteter meramente especulativo sem um fim
praacutetico em si mesma mas sim notabiliza-se pela ldquobusca da sabedoria e da verdaderdquo381 como
estados beneacuteficos disponiacuteveis para serem procurados conhecidos e vivenciados por todos os
homens
O primeiro historiador da Igreja nos comprova tal fato assinalando o claacutessico teor
filosoacutefico existente no Apologista os termos de Euseacutebio muito nos dizem a respeito do
ministeacuterio de Justino
Tambeacutem por este tempo Justino sincero amante da verdadeira filosofia continuava
ainda ocupado em exercitar-se nas doutrinas dos gregos [] Mas sobretudo foi nesta
eacutepoca que floresceu Justino Com estofo de filoacutesofo era embaixador da palavra de
Deus e lutava pela feacute com seus escritos382
A doutrina cristatilde encontrada em Justino ndash sua compreensatildeo ativa sobre o que era o
cristianismo como agrave religiatildeo salviacutefica do verdadeiro e uacutenico Deus aos homens ndash foi recebida
e necessariamente desenvolvida por ele atraveacutes de um filtro ou podemos ateacute mesmo dizer por
uma forma de catalisador Este ensino constituiacutea-se de diversas mateacuterias filosoacuteficas nas quais
a diversidade conceitual e estiliacutestica das muitas escolas sapienciais da eacutepoca foram agregadas
ao experimento (de caraacuteter circunspecto) do Apologista383 Notamos deste modo em muitos
aspectos em particular que Justino foi exercitado a uma postura pragmaacutetica de seu tempo a
qual necessariamente o contingenciou a algumas demandas de sua ordem puacuteblica provenientes
de seu status sociorreligioso Neste aspecto a abordagem de Wachholz nos atualiza e ilumina
sobre este cenaacuterio ele diz
A cultura claacutessica pagatilde incluiacutea obra e pensamento de Platatildeo Aristoacuteteles e dos estoicos
que eram muito admirados Rejeitar tais pensamentos era assumir posiccedilatildeo de
ignoracircncia Para os cristatildeos por outro lado aceitar toda esta carga de cultura poderia
tambeacutem significar concessatildeo ao paganismo e comeccedilo de uma nova idolatria Diante
380 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995 p 21
381 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 278
382 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 3 11 8
383 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
92
desta alternativa somente havia dois caminhos possiacuteveis oposiccedilatildeo radical entre feacute
cristatilde e cultura pagatilde ou postura natildeo tatildeo negativa em relaccedilatildeo agrave cultura pagatilde384
A histoacuteria nos testifica que Justino de maneira evidente foi um baluarte em sua postura
de proclamador e representante da feacute cristatilde mais ainda portou-se de maneira excepcional
(como testificam seus procedimentos) no exerciacutecio de sua crenccedila fosse isso relacionado ao seu
foro iacutentimo (Igreja) ou no puacuteblico (social)
Desta forma eacute interessante e necessaacuterio reconhecer que Justino se apresentaraacute como
uma espeacutecie de precursor entre aqueles que eram oriundos da filosofia e que ldquohabitavamrdquo
especialmente em meio agrave cultura helecircnica385 contudo natildeo era o uacutenico Assim estes (filoacutesofos
convertidos ao cristianismo) passando agora a praticar os novos haacutebitos e costumes (modus
vivendi) recebidos do cristianismo natildeo abandonaram de forma absoluta suas praacuteticas cotidianas
do passado ndash ou poderiacuteamos tambeacutem chamaacute-las de ordinaacuterias ndash as quais eram vivenciadas
dentro de um sistema pedagoacutegico da filosofia por assim dizer Isso ocorreu simplesmente
porque tais accedilotildees natildeo requeriam tal censura devido a sua natildeo contrariedade com a Doctrina
Sanctorum que orientava os cristatildeos386 Obviamente tais disposiccedilotildees eram amplamente revistas
e reformuladas com um vieacutes cristatildeo embora mantendo uma estrutura didaacutetica proacutepria e ateacute
mesmo peculiar387 pois na praacutetica estes novos mestres cristatildeos agora ensinavam ldquoexatamente
como os filoacutesofos mas em conformidade com Cristordquo388
Vale-nos ressaltar ainda que essa postura de adaptaccedilatildeo dos convertidos do paganismo
para o cristianismo se desencadeou em muitos segmentos da realidade social do periacuteodo389
especialmente naqueles que se identificavam com as ciecircncias da eacutepoca Indiscutivelmente
nisto Justino se destacou pois seus ldquoconhecimentos filosoacuteficos eram muito profundosrdquo390
Neste ponto novamente recorremos a um registro de Wachholz que nos descreve com clareza
este processo de identificaccedilatildeo na figura de Justino
384 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 58
385 Alguns pesquisadores apresentam Aristides de Atenas como o primeiro filoacutesofo (Grego) propriamente
convertido ao cristianismo a escrever uma obra apologeacutetica Entretanto faltam evidecircncias mais robustas para
sustentar tal afirmaccedilatildeo Ver INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p
50-51
386 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
387 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991
388 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
389 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997
390 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47
93
Por outro lado houve tambeacutem aqueles que defenderam uma postura ldquoconciliatoacuteriardquo
entre feacute cristatilde e cultura pagatilde Justino (110-165) foi um destes representantes que natildeo
deixou de ser filoacutesofo mas passou a dedicar-se em fazer ldquofilosofia cristatilderdquo abrindo
caminho para que o cristianismo pudesse reclamar tambeacutem para si a cultura claacutessica
apesar de ser cultura pagatilde391
Sendo o registro histoacuterico uma peccedila fundamental na elaboraccedilatildeo e construccedilatildeo
conceitual desta pesquisa entendemos ser emblemaacutetico trazer-se agrave tona alguns registros de
pesquisadores que atestam entre si acometimentos similares isso se daacute quando mencionam
pontos que caracterizam a figura de Justino como um distinto representante da Filosofia
mediante sua penetraccedilatildeo investigaccedilatildeo e conclusatildeo dos fatos algo que era ndash como se viu
anteriormente ndash relevante na busca de respostas junto ao meio sociorreligioso ao qual estava
inserido
Deste modo dando seguimento ao nosso intento de esclarecer historicamente um
pouco mais a respeito deste personagem cristatildeo oriundo da filosofia grega392 eacute que registramos
o seu desenvolvimento a parti das palavras de Walde ldquoJustino continuou usando a capa que o
identificava como filoacutesofo e ensinou estudantes em Eacutefeso e depois em Romardquo393 O relato ainda
se estende sobre a pesquisa de Walde poreacutem agora registrando o pensamento de Schaff este
diz ldquoEle havia adquirido cultura claacutessica e filosoacutefica consideraacutevel antes de sua conversatildeo e
entatildeo a fez ficar subordinada a defesa da feacuterdquo394 Ainda sobre esta esteira agregamos outras duas
elaboraccedilotildees A primeira estaacute no trabalho de Xavier que se baseia no pensamento de Fluck E
somado a ela encaixamos a siacutentese de Wachholz sobre Justino Ambos convencionam ideias
similares quando retratam o Apologista e por consequecircncia acabam por se moverem
metodologicamente na mesma direccedilatildeo
Em sua caminhada cristatilde ensinou estudantes em Eacutefeso e chegou a Roma em 150 dC
onde fundou uma escola filosoacutefica debatendo com natildeo-cristatildeos tanto pagatildeos quanto
judeus ou hereges em defesa do cristianismo Para Justino o cristianismo era a
391 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 59
392 Eacute importante que se diga que a Filosofia (a qual no acircmbito do conceito moderno eacute entendida como uma ciecircncia
da aacuterea de estudos Humanos) permaneceu completamente associada a consciecircncia de Justino durante todo o
periacuteodo de sua atuaccedilatildeo teoloacutegica Partindo-se do fato de que a vida de Justino se encerrou no martiacuterio podemos
concluir que de sua conversatildeo ateacute sua morte nunca houve um ldquoJustinordquo que tambeacutem natildeo fosse um filoacutesofo Ver
HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29-30
393 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 1
394 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 715
apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 1
94
ldquoverdadeira filosofiardquo sendo que os cristatildeos eram ldquoos autecircnticos herdeiros da
civilizaccedilatildeo greco-romanardquo395
Tornou-se cristatildeo aos 25 anos de idade apoacutes ter estudado filosofia o que o levou a
fazer uma siacutentese entre teologia e filosofia afirmando que a feacute cristatilde eacute a forma plena
de toda a filosofia Em sua escola em Roma ensinava entatildeo a ldquoverdadeira filosofiardquo
Boa parte de seu labor consistia em descobrir e explicar as relaccedilotildees entre o
cristianismo e a sabedoria claacutessica396
Finalizando esta seacuterie de registros cabe-nos ainda citar algumas relevantes
argumentaccedilotildees A primeira condicionada por Gonzaacutelez nos traz uma definiccedilatildeo da histoacuteria de
Justino em questotildees junto a filosofia ele diz ldquoAo se converter ao cristianismo Justino natildeo
deixou de ser filoacutesofo mas dedicou-se a fazer filosofia cristatilde e boa parte dessa filosofia
consistia em descobrir e explicar as relaccedilotildees entre o cristianismo e a sabedoria claacutessicardquo397 A
segunda elaborada por Daniel-Rops diz ldquoFoi uma fase importante para a histoacuteria do
pensamento cristatildeo que com Justino passou a ser tomado a seacuteriordquo398 Esta ecircnfase somada ao
primeiro apontamento nos afirma uma importante contribuiccedilatildeo para o meio Patriacutestico pois
trabalha com paracircmetros qualitativos referentes agrave relevacircncia da figura de Justino como
articulador filosoacutefico e sucessivamente no meio teoloacutegico como um exegeta399 nos levando a
considerar deste modo que a formaccedilatildeo dogmaacutetica em seu sentido histoacuterico passa
necessariamente por afirmaccedilotildees como esta
Portanto eacute impossiacutevel caracterizar Justino como um pensador e teoacutelogo fora da
filosofia claacutessica pois o personagem que veio a fundar escolas filosoacuteficas cristatildes (primeiro em
Eacutefeso e depois em Roma)400 deve ser compreendido como um autecircntico ldquoamante da sabedoriardquo
Neste quesito distintivo no caso de Justino em especial um agravante modal deve aqui ser
aplicado sendo que esta caracteriacutestica de caraacuteter peculiar eacute o proacuteprio processo de conversaccedilatildeo
ao cristianismo que em seu entendimento ldquoo transformou em um verdadeiro filoacutesofordquo401 arauto
395 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2009 p 32 apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da
Feacute Cristatilde 2014 p 15 grifo nosso
396 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 59 grifo nosso
397 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 91
398 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
399 Ver HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 31-32
400 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
401 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 28
95
da verdadeira sabedoria ndash peccedila final a qual Justino possivelmente exigiria como um
complemento fundamental na elaboraccedilatildeo dessa descriccedilatildeo
Dando seguimento agrave nossa construccedilatildeo ainda nos eacute necessaacuterio examinar duas questotildees
relevantes junto a postura filosoacutefica de nosso autor A primeira estaacute relacionada aos seus
pressupostos na Filosofia como aacuterea de estudo propriamente na qual o estoicismo e o
platonismo se destacam no cenaacuterio em seguida naquilo que possivelmente se tornou a principal
elaboraccedilatildeo teoloacutegica deixada como teoria por Justino a sua concepccedilatildeo do Logos Eterno
321 Estoicismo e Platonismo em Justino
Quando pesquisamos a respeito de quais seriam as principais influecircncias da filosofia
grega que poderiacuteamos encontrar em Justino logo nos saltam aos olhos duas linhas majoritaacuterias
do pensamento histoacuterico filosoacutefico e que tiveram fundamental importacircncia na formaccedilatildeo
intelectual deste Pai da Igreja Desta forma torna-se indispensaacutevel falar do estoicismo e do
meacutedio platonismo402 como elementos filosoacuteficos na vida de Justino pois a anaacutelise dessas
escolas sapienciais junto agrave construccedilatildeo de nosso objetivo de pesquisa apresenta-se como
fundamental para a compreensatildeo do cristianismo apresentado por Justino403
Nossa intenccedilatildeo nesta construccedilatildeo natildeo eacute haacute de se estabelecer um relato minucioso sobre
os aportes princiacutepios e valores filosoacuteficos de Zenon de Ciacutecio (fundador do estoicismo) nem
mesmo dos seguidores ideoloacutegicos do legado de Platatildeo os quais sustentavam no presente
periacuteodo a fase denominada de meacutedio platonismo Pelo contraacuterio visamos apenas retratar de
maneira sinteacutetica a influecircncia dessas escolas no pensamento apologeacutetico do Seacuteculo II tendo a
pessoa de Justino como alvo central e em alguns momentos ateacute mesmo exclusivo neste exame
O advento do Seacuteculo II trouxe consigo um contato mais amplo e consequentemente
tambeacutem mais vantajoso das correntes filosoacuteficas gregas para com o ocidente de uma maneira
em geral Influenciada especialmente pela administraccedilatildeo e organizaccedilatildeo do Impeacuterio Romano agrave
discussatildeo sobre a importacircncia e a manutenccedilatildeo dessas identidades intelectuais (escolas
filosoacuteficas) tornou-se muito ativa especialmente para o meio aristocraacutetico de entatildeo404 Sendo
402 O meacutedio platonismo teve seu iniacutecio no Seacuteculo I aC com Antioco de Ascalona e vai ateacute aproximadamente o
Seacuteculo II dC Entre os seus principais representantes encontram-se os nomes de Filo de Alexandria Apuleio e do
bioacutegrafo Plutarco Este recorte temporal eacute um dos pontos que justifica a nossa opccedilatildeo pelo uso do termo meacutedio
platonismo uma vez que coincide com o periacuteodo de Justino Ver EMILSSON Neo-Platonism 1999 p 358
AUDI The Cambridge Dictionary of Philosophy 1999 p 567 apud SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II
dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 123
403 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
404 CARCOPINO Roma no Apogeu do Impeacuterio 1990
96
o cristianismo cada vez mais presente na estrutura sociorreligiosa do Impeacuterio natildeo demorou
para se considerar ldquotambeacutem os leitores natildeo-cristatildeosrdquo405 como parte do exame teoloacutegico dos
Pais No entanto os mestres e principais arautos dessas claacutessicas estruturas filosoacuteficas eram
pagatildeos em seu modo de vida espiritual o que ocasionou ndash quase automaticamente ndash uma
investidura por parte dos Pais (remodelaccedilatildeo cristatilde) das concepccedilotildees filosoacuteficas de alguns
autores claacutessicos do paganismo Como consequecircncia desse processo o periacuteodo dos Pais
Apologistas se confirma e se engrandece de maneira significativa na histoacuteria cristatilde devido ao
seu importante conteuacutedo teoloacutegico406 desenvolvido a partir dessa adaptaccedilatildeoremodelaccedilatildeo
Voltando precisamente para a pessoa de Justino vemos a partir da pesquisa de Walde
ndash o qual soma seu pensamento a Falls ndash o estabelecimento de uma expressiva comunicaccedilatildeo
entre Justino e as escolas filosoacuteficas apresentadas Walde escreve ldquoComo jovem adulto
mostrou interesse por filosofia e estudou primeiramente estoicismo e platonismo Justino
buscava a Deus que eacute a meta da filosofia de Platatildeo diziardquo407 Este retrato dos fatos nos
demonstra com clareza que o diaacutelogo do Apologista com as referidas escolas filosoacuteficas
norteou sua formaccedilatildeo intelectual de forma significativa
A primeira experiecircncia de fato com a filosofia grega e a qual podemos afirmar ter
deixado marcas consideraacuteveis na vida de Justino foi com a escola estoica Em sua busca da
autecircntica sabedoria Justino comeccedilou a frequentar as aulas de um mestre estoico408
provavelmente ainda em sua cidade natal Se tratando de sua experiecircncia com o estoicismo em
particular o Apologista nos oferece um relato autobiograacutefico no qual informa detalhes
interessantes referentes a sua jornada pela Verdade ldquoEu mesmo no iniacutecio desejando tambeacutem
reunir-me com algum deles (mestres filoacutesofos) coloquei-me nas matildeos de um estoico e passei
bastante tempo com elerdquo409
O interessante nessa narraccedilatildeo eacute que o expressivo contato de Justino com o estoicismo
natildeo surtiu nele o beneacutefico resultado que Justino parecia esperar Efetivamente Justino afirma
em seu Diaacutelogo com Trifatildeo ldquoTodavia percebi que nada me adiantava para o conhecimento de
Deus pois nem sequer ele sabia nada nem dizia que esse conhecimento era necessaacuterio Entatildeo
405 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 140
406 Ver DROBNER Manual de Patrologia 2008 p76-80
407 FALLS The Fathers of the Church 1948 p 151 apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p
1
408 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
409 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 3a grifo nosso
97
separei dele e dirigi-me a outrordquo410 Kelly inclusive salienta mediante a auto narraccedilatildeo de
Justino que parece ter havido um esforccedilo da parte deste em se apropriar ndash ou melhor se
aprofundar ndash das maacuteximas da doutrina estoica Isso devido especialmente ao seu ldquoelevado
padratildeo moral ainda que um tanto impessoalrdquo411 mas com um forte apelo agrave posturas e posiccedilotildees
que estabeleciam um padratildeo moralmente bom para seus praticantes preceitos que eram de
alguma maneira dogmatizados pela doutrina estoica na tentativa de se alcanccedilar ldquouma norma
para os humanos seguiremrdquo412 Dessa forma os praticantes de tal sistema chegavam aquilo que
poderiacuteamos (forccedilosamente) definir como o verdadeiro conhecimento do ldquoSerrdquo e da ldquoEsferardquo
divina pois a ldquovida moral eacute vista como assimilaccedilatildeo a Deus e como imitaccedilatildeo de Deusrdquo413
Contudo apoacutes um periacuteodo de deferecircncia a doutrina estoica ldquopareceu-lhe rudimentar e de uma
metafisica falazrdquo414 aleacutem do sistema natildeo conseguir ldquoesclarececirc-lo a respeito de Deusrdquo415 ou
seja o estoicismo natildeo pode oferecer as condiccedilotildees necessaacuterias para suprir os vaacutecuos e demandas
existecircncias de Justino
Entretanto o estoicismo como doutrina filosoacutefica teve uma significativa relevacircncia na
formaccedilatildeo de Justino como tambeacutem na construccedilatildeo teoloacutegica dos demais Pais Apologistas Na
anaacutelise desse cenaacuterio houve ateacute mesmo quem afirmasse que caso natildeo houvesse o encontro
entre o Poacutertico416 e a Igreja natildeo teria existido uma linguagem inteligiacutevel por parte da doutrina
cristatilde para alguns ambientes gentiacutelicos ou seja o ldquocristianismo seria incompreensiacutevelrdquo417 para
alguns segmentos que formavam o quadro sociorreligioso agrave eacutepoca Teses como essa levantam
questotildees pertinentes No caso em exame parece-nos que tal afirmaccedilatildeo havia se desenvolvido
como um marco referencial junto agrave Era Patriacutestica citada explicando tambeacutem deste modo o que
permitiu que esse conceito teoloacutegico-filosoacutefico viesse a se construir Neste processo as relaccedilotildees
de conformidade entre cristianismo e estoicismo foram absolutamente decisivas sendo o campo
410 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 3b
411 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 13
412 ALGRA In Teologia estoacuteica Os Estoacuteicos 2006 p 189
413 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 132
414 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 278
415 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 52
416 Poacutertico Ornado (ou Pintado) grego Stoagrave Poikiacutele Local na cidade de Atenas onde o filoacutesofo grego Zenon
(fundador do estoicismo) ensinava a seus disciacutepulos Ver SEDLEY In A Escola de Zenon a Aacuterio Diacutedimo Os
Estoacuteicos 2006 p 7-13
417 POHLENZ La Stoa storia di un movimento spirituale 1967 p 397 apud PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia
Patriacutestica 1999 p 131
98
moral junto agrave formaccedilatildeo dogmaacutetica cristatilde ndash poderiacuteamos ateacute mesmo chamaacute-lo de eacutetico ndash decisivo
nessa correlaccedilatildeo (modelagem) de valores
Entre os fatos desse paralelismo ideoloacutegico vemos o otimismo religioso expressado
pelo estoicismo que encontrou de forma geral na consciecircncia dos Pais (ateacute o Seacuteculo III) uma
beneacutevola e favoraacutevel proximidade com a Divindade onipotente e onipresente a qual os
Apologistas reconheciam especialmente na figura de Deus Pai e em sua traduccedilatildeo do Ser
absoluto cenaacuterio que agora expressava-se inclusive na manifestaccedilatildeo Deste (Deus) em uma
relaccedilatildeo de perfeita imanecircncia com seus eleitos Minuacutecio Feacutelix (Apologista do final do Seacuteculo
II) retrata com clareza esse conceito gerado no meio Apologista fruto da relaccedilatildeo destes com os
ditames estoicos ldquonatildeo soacute estaacute perto de noacutes como tambeacutem dentro de noacutes [] natildeo soacute vivemos
sob seu olhar como tambeacutem em seu seiordquo418
Neste contexto ainda vale-nos identificar uma caracteriacutestica peculiar da relaccedilatildeo de
Justino com o estoicismo Trata-se das interpretaccedilotildees escrituriacutesticas desenvolvidas por meio de
meacutetodos alegoacutericos Essa metodologia jaacute estava em uso no meio cristatildeo e jaacute antes era
amplamente ldquodifundida tambeacutem entre os filoacutesofos gregos sobretudo os estoicos com o objetivo
de fazer enquadrarem-se as tradicionais faacutebulas mitoloacutegicas com as suas ideiasrdquo419 Justino se
torna ldquoceacutelebrerdquo no meio Patriacutestico tambeacutem por sua exegese atestando isso quando passa a
unificar textos referentes a economia da Antiga e Nova Alianccedilas fazendo uso em muitos
momentos da teacutecnica citada
Desta forma mormente veremos na construccedilatildeo teoloacutegica de Justino que se encontram
traccedilos desse sistema da filosofia grega que se fizeram notoacuterios em seu registro apologeacutetico
Santos ao citar Staniforth retrata com precisatildeo essa inspiraccedilatildeo e sua contribuiccedilatildeo junto ao
trabalho do Apologista Aleacutem disto consegue descrever com clareza e harmonia agrave postura de
Justino referente sua interpretaccedilatildeo das bases substanciais do estoicismo Santos assim registra
essa relaccedilatildeo
Segundo Staniforth os elementos que predominavam no cristianismo antes de seu
contato com o estoicismo eram os morais e espirituais jaacute os intelectuais eram
subordinados a estes Ele acrescenta poreacutem que ldquoquando a mensagem se espalhou
para aleacutem dos confins da Palestina e as suas implicaccedilotildees foram assimiladas pelos
pensadores de outras terras fez-se sentir a necessidade de concepccedilotildees mais exatas da
verdaderdquo (STANIFORTH 2002 p 20) [] Entre outras coisas citadas por Staniforth
estatildeo ainda a noccedilatildeo de unidade divina a ideia de que os homens satildeo filhos de Deus
e participam da sua natureza e procuram fazer sempre o bem (STANIFORTH 2002
418 MINUacuteCIO FEacuteLIX Otaacutevio 32-33
419 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1146
99
p 22) Justino traz uma argumentaccedilatildeo inversa Segundo ele os imitadores satildeo os
demais povos ldquonatildeo somos noacutes que professamos opiniotildees iguais aos outros e sim
todos por imitaccedilatildeo repetem as nossas doutrinas (JUSTINO I Apologia LX 10)rdquo420
Sendo jaacute anteriormente caracterizado por meio do relato da vida de Justino a elementar
decepccedilatildeo de Justino pelo estoicismo como doutrina a ser seguida levou-o a uma nova fase na
sua busca do ldquoideal da sabedoria perfeitardquo421 Assim seu intento redirecionou-se para outras
esferas da filosofia grega passando por algumas experiecircncias variadas por meio de suas
relaccedilotildees com outras escolas sistemas e mestres Neste cenaacuterio naquilo que possuiacutemos relatos
confiaacuteveis Justino chegou a conviver com ldquoum peripateacutetico e um pitagoacutericordquo422 sempre
buscando alcanccedilar seu intento maacuteximo como amante do saber
Por fim a escola platocircnica tornou-se sua uacuteltima instacircncia de apelo nessa busca intensa
pelo saber supremo que inclusive ele imagina ter alcanccedilado ldquona filosofia (meacutedio) platocircnicardquo423
fazendo desse caso em especiacutefico (platonismo) o encontro ldquomais positivordquo424 Neste ponto
compreendemos que o desenvolvimento do pensamento teoloacutegico que encontramos
futuramente estabelecido em Justino eacute o que o constituiu categoricamente como um filoacutesofo
cristatildeo e foi principalmente detalhado pela influecircncia desta corrente filosoacutefica (platonismo)
mais do que por sua experiecircncia com os demais sistemas O ponto de vista de Xavier colabora
com nossa anaacutelise transmitindo a mesma ideia
A procura incansaacutevel pela verdade levou Justino a se tornar um distinto filoacutesofo do
pensamento grego adotando principalmente a filosofia de Platatildeo que para ele tinha
muita semelhanccedila com os ensinamentos judaicos no que diz respeito agrave Palavra de
Deus (Logos Verbo)425
Eacute portanto necessaacuterio fazer ainda que rapidamente algumas consideraccedilotildees geneacutericas
referentes agrave influecircncia desse importante sistema filosoacutefico (platonismo) no contexto
sociorreligioso ao qual Justino estava inserido O chamado meacutedio platonismo teve singular
420 STANIFORTH In Introduccedilatildeo Meditaccedilotildees 2002 apud SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma
Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 119 122
421 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 25
422 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 27
423 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 83
424 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 119
425 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 15
100
influecircncia junto ao meio teoloacutegico cristatildeo em meados do Seacuteculo II Sua importacircncia em
questotildees como a metafiacutesica por exemplo ldquodeterminou profundamente a compreensatildeo
teoloacutegicardquo426 dos Pais Apologistas Ainda neste cenaacuterio eacute necessaacuterio afirmar que na eacutepoca o
pensamento de Platatildeo estruturado pela manutenccedilatildeo de seus seguidores (meacutedio platonismo)
plasmou-se quase que na totalidade dos seguimentos ditos intelectuais do periacuteodo ocasionando
um expliacutecito e permanente ldquodesenvolvimento do saber filosoacutefico e portanto da cultura
ocidentalrdquo427 a qual teve sua formaccedilatildeo por meio da mecanicidade da Filosofia propriamente
reconhecida como cristatilde em sua formaccedilatildeo
Voltando especificamente para nosso autor retratamos com certa facilidade ndash por se
considerar a questatildeo como um ponto paciacutefico referente agrave figura de Justino ndash sua ampla e notoacuteria
relaccedilatildeo com os ensinamentos baseados na doutrina de Platatildeo Insuelas nos diz que Justino
possivelmente procurou o sistema platocircnico porque este ldquogozava naquele tempo de grande
reputaccedilatildeo e era seguido por homem de valorrdquo428 Fato eacute que Justino progrediu de maneira
consideravelmente raacutepida na doutrina pois ldquoesperava que na filosofia de Platatildeordquo429 veria
imediatamente a Deus questatildeo (enxergar agrave Divindade) que nos indica uma praacutetica
contemplativa que provavelmente levou o jovem filoacutesofo a peregrinar isoladamente ateacute a praia
onde em algum momento ocorreu sua conversatildeo ao cristianismo Utilizamos ainda a ecircnfase
dada por Daniel-Rops a este caso o qual salienta que nesse acesso para a doutrina platocircnica
Justino deu o ldquopasso decisivo levando-o a ver que o uacutenico fim verdadeiro da filosofia era o
conhecimento de Deusrdquo430
Outra descriccedilatildeo que se soma a esta tese nasce das palavras do proacuteprio Justino na sua
I Apologia Estas construccedilotildees do Apologista ganham eficaacutecia e nitidez quando retratadas por
Euseacutebio em seu relato histoacuterico Elas apresentam um Justino intreacutepido e resoluto movendo-se
na eficaacutecia daquilo que encontrou em sua jornada tornando-se desta maneira em um ldquosincero
amante da verdadeira filosofiardquo431 Quanto ao platonismo descrito pelo autor em sua
experiecircncia Euseacutebio escreve
426 SANTOS Platonismo e cristianismo Irreconciabilidade Radical ou Elementos Comuns 2003 p 335
427 SEVERINO A Filosofia Antiga 1984 p 81
428 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 52
429 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
430 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 278
431 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 3 grifo nosso
101
Na mesma obra demonstra que sua conversatildeo da filosofia grega agrave religiatildeo natildeo se fez
sem razatildeo mas com juiacutezo escreve o seguinte ldquoporque tambeacutem eu mesmo que me
comprazia nos ensinamentos de Platatildeo ao ouvir as caluacutenias contra os cristatildeos e vecirc-
los irem intreacutepidos para a morte e para tudo que eacute terriacutevel comecei a pensar que natildeo
era possiacutevel que aqueles homens vivessem na maldade e no amor aos prazeresrdquo432
Seguindo no mesmo contexto vemos que Justino no capiacutetulo II de seu Diaacutelogo com
Trifatildeo agrega agrave sua biografia um relato exponencial no qual nos descreve um encontro com um
filoacutesofo platocircnico na cidade de Flaacutevia Neaacutepolis Justino como vimos acima foi procurar este
mestre a fim de conferenciarem sobre temas de relevacircncia para o Apologista Assim havendo
ldquoaprendido bastante do platonismordquo433 Justino envolto de uma acentuada euforia ateacute mesmo
presumiu (erroneamente) haver obtido um distinto conhecimento de superior e incomparaacutevel
qualidade todavia por fim salientou uma conclusatildeo ambiacutegua e de aspecto desfalecente sobre
esta experiecircncia quando se referiu as coisas que em determinado momento lhe pareciam
absolutamente certas e vivazes Ele nos afirma foi ldquotornado saacutebio num aacutetimo e minha estupidez
fazia-me esperar que de um momento para outro contemplaria o proacuteprio Deusrdquo434
No entanto cabe-nos apontar que mesmo diante desta pessimista afirmaccedilatildeo por parte
de Justino o platonismo de sua eacutepoca ldquotinha grande forccedila teiacutestardquo435 aleacutem de apresentar um
ldquoalto tocircnus moralrdquo436 expressatildeo que posteriormente em seu desenvolvimento teoloacutegico passou
a comprovar o cristianismo como o conjunto doutrinal por excelecircncia Sendo essa conclusatildeo
obtida na consequecircncia do emprego de sua metodologia dialeacutetica como teoria do conhecimento
ndash fato (dialeacutetica platocircnica) que jaacute abordamos anteriormente
No que se refere ao raciociacutenio de Justino que encontramos especificamente baseado
no ideaacuterio platocircnico notamos com certa facilidade que este conjunto de ideias o levou a
desenvolver em seus tratados (I e II Apologias e Diaacutelogo com Trifatildeo) algumas referecircncias que
se atestam como elementos de comparaccedilatildeo entre a filosofia grega e a feacute cristatilde Neste periacuteodo
(Seacuteculo II) o meio filosoacutefico grego jaacute registrava haacute algum tempo a noccedilatildeo de um Ser ou Estado
supremo437 ldquoque estaacute acima de todos os seres e do qual todos derivam sua existecircnciardquo438
432 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 5
433 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 119
434 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6
435 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
436 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
437 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994
438 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 16
102
Sabemos baseados em amplas evidecircncias textuais que a vida aleacutem da morte fiacutesica jaacute era
ensinada ou ateacute mesmo garantida por Soacutecrates439 No pensamento de Platatildeo esta teoria eacute
estruturada filosoficamente como uma realidade diferente mas igualmente atemporal a qual
existe aleacutem eou fora deste mundo440
Em Platatildeo detectamos um referencial que nos salienta sobre a expressividade agrave sua
ldquoexposiccedilatildeo da separaccedilatildeo e diferenccedila entre o mundo sensiacutevel (sentidos) e o mundo inteligiacutevel
(intelecto)rdquo441 fazendo com que a percepccedilatildeo humana seja uma espeacutecie de imagem da
realidade442 mas natildeo necessariamente a realidade em si Deste modo Platatildeo automaticamente
condicionava seus leitoresouvintes a compreender que aquilo que estava oculto (natildeo visiacutevel)
deveria pelo encontro com a pura razatildeo voltar ao seu estado inicial ou seja o Uno mesmo
que Platatildeo natildeo considerasse a ldquoForma do Bem ou o Um como Deus no sentido comum da
palavrardquo443 A tese do retorno ao Uno eacute uma performance originalmente desenvolvida na fase
denominada de meacutedio platonismo444
Justino nos demonstra com clareza sua relativa conformidade com essa ideia que de
uma maneira orientativa procurava dar coesatildeo e expressividade agrave realidade perceptiacutevel do
homem em encontrar o que era verdadeiro definido como o ldquonatildeo-escondidordquo445 para o espiacuterito
humano Poreacutem tambeacutem nos apresenta de forma incondicional uma clara distinccedilatildeo substancial
a este conceito segundo o qual ldquoo centro da esperanccedila cristatilde natildeo eacute a imortalidade da alma mas
a ressurreiccedilatildeo do corpordquo446 Corroborando a esta proposiccedilatildeo encontramos a posiccedilatildeo de
Wachholz que organiza o referido cenaacuterio em uma descriccedilatildeo cronoloacutegica embasada no
desenvolvimento do pensamento (dogma) cristatildeo do periacuteodo
Assim por exemplo percebia que tambeacutem Soacutecrates e Platatildeo afirmavam que existia
vida aleacutem da morte fiacutesica Platatildeo afirmava que este mundo natildeo esgota toda a realidade
mas que existe outro mundo de realidades eternas Neste sentido Justino concorda
439 A discussatildeo sobre a imortalidade da alma ndash a uacuteltima de que Soacutecrates participa no dia de sua morte ndash eacute narrada
na obra intitulada Feacutedon de Platatildeo Ver MALTA In Nota 103 Apologia de Soacutecrates 2008 p 97
440 SEVERINO A Filosofia Antiga 1984
441 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994 p 189 grifo nosso
442 Um exemplo claacutessico dessa ideia se encontra no Livro VII de sua obra intitulada A Repuacuteblica em uma alegoria
conhecida como o Mito da Caverna Ver PLATAtildeO A Repuacuteblica VII 514a-541b
443 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 12
444 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
445 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994 p 197
446 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 16
103
pois afirma que o centro da esperanccedila cristatilde natildeo estaacute na imortalidade da alma mas na
ressurreiccedilatildeo do corpo447
Amparado nesse conceito filosoacutefico Justino passa a desdobrar sua concepccedilatildeo sobre a
ideia do estado de um ldquomundo inteligiacutevelrdquo que passa a ser compreendido como a uacutenica
condiccedilatildeo pela qual as coisas satildeo eternas imutaacuteveis e incorruptiacuteveis constituindo deste modo
sua posiccedilatildeo sobre o que seria o proacuteprio ldquomundo de Deusrdquo possiacutevel de ser alcanccedilado Na visatildeo
platocircnica este mundo ideal soacute pode ser alcanccedilado pelo intelecto humano quando este eacute elevado
a seu patamar maacuteximo sendo isso possiacutevel somente por meio do auxiacutelio da filosofia Para
Justino essa filosofia soacute pode ser o cristianismo pois este foi revelado como a uacutenica Verdade
oferecida aos homens
Desta forma para Justino soacute mediante o cristianismo a concepccedilatildeo platocircnica de
alcanccedilar o mundo real torna-se possiacutevel No final da apresentaccedilatildeo de sua jornada entre as
escolas filosoacuteficas Justino nos relata que aquilo que fez com que ele se decidisse pela escola
platocircnica ndash entendendo que esta seria a melhor alternativa para desenvolver sua mente (razatildeo)
na tentativa de receber a verdadeira sapiecircncia ndash fosse agrave profunda admiraccedilatildeo inicial que ele
encontrou em alguns pontos que distinguiam a doutrina das demais ldquoprincipalmente com a
consideraccedilatildeo do incorpoacutereordquo448 mas tambeacutem pela referente ldquocontemplaccedilatildeo das ideiasrdquo449 as
quais ele afirma ldquodava asas agrave minha inteligecircnciardquo450
Nesta jornada de conhecimento Justino salienta que compreendia e admirava o
objetivo desse ensino que se demonstrava estaacutevel e possuiacutea intenccedilotildees muito nobres para agrave
natureza humana a ponto de afirmar que ldquoCom efeito esta eacute a meta da filosofia de Platatildeordquo451
Jaacute como cristatildeo Justino esclarece para o judeu Trifatildeo que ldquoVemos e estamos convencidos de
que por meio do nome de Jesus Cristo crucificado as pessoas se afastam da idolatria e de toda
iniquidade para aproximar-se de Deusrdquo452 ou seja somente um caminho leva definitivamente
a verdadeira filosofia e este caminho natildeo eacute a filosofia de Platatildeo
Apoacutes este raacutepido mas importante embasamento sobre a formaccedilatildeo filosoacutefica de nosso
autor ainda eacute necessaacuteria uma descriccedilatildeo final sobre os elementos filosoacuteficos estruturantes
447 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 59-60
448 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6a
449 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6a
450 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6a
451 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6b
452 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo XI 4
104
encontrados em Justino Entre estes insumos um se destaca consideravelmente como fruto da
ampla influecircncia deixada pelo predomiacutenio de suas bases filosoacuteficas (estoicismo e platonismo)
Desta forma o Logos em Justino seraacute o ponto central de anaacutelise a seguir
322 O Logos em Justino
Este ponto eacute fundamental para nossa descriccedilatildeo do pensamento de Justino como um Pai
Apologista Mesmo que nos falte uma sistematizaccedilatildeo sobre o tema Logos tanto em Justino
como tambeacutem nos demais representantes de sua Era Patriacutestica453 o Logos eacute um conteuacutedo
teoloacutegico fundamental para a histoacuteria do cristianismo e natildeo aparece com suficiente clareza em
nenhum outro escritor cristatildeo anterior a Justino que acaba por se evidenciar neste assunto de
forma muito significativa
Jaacute no Seacuteculo I a doutrina referente agrave PalavraVerbo divino era conhecida pelo
judaiacutesmo em sua forma posterior devido agrave grande influecircncia do filoacutesofo judeu Filo de
Alexandria O estoicismo como doutrina filosoacutefica tambeacutem foi muito atuante na elaboraccedilatildeo
do termo Logos como um conceito paralelo entre uma plena imanecircncia e uma total expressatildeo
do que eacute superior eou eterno454 O Evangelho de Joatildeo em seu proacutelogo (Joatildeo 11-5) nos oferece
o termo de forma sublime mesmo que o Logos em Joatildeo pareccedila ter sido influenciado por
Heraacuteclito455 Quanto agrave Patriacutestica em sua fase inicial (Pais Apostoacutelicos) Inaacutecio Bispo de
Antioquia parece ser a melhor opccedilatildeo de uma leitura consistente sobre a ideia de a Palavra
Divina preexistente ter sido anunciada antecipadamente aos homens das geraccedilotildees passadas
ldquoInspiraram-se (os profetas) em Sua graccedila a fim de que os increacutedulos se convencessem
plenamente que haacute um soacute Deus a manifestar-se por Jesus Cristo Seu Filho Sua palavra saiacuteda
do silecircncio que em tudo agradou Aquele que O enviourdquo456
Poreacutem vale-nos novamente frisar que aqui como em outras partes desta pesquisa natildeo
procuraremos ser exaustivos muito menos conclusivos especialmente tratando-se de uma
anaacutelise que possui uma conjuntura tatildeo extensa mas de maneira sucinta desenvolveremos uma
siacutentese que visa ser orientativa nesta definiccedilatildeo sobre o legado teoloacutegico do Apologista Justino
A relaccedilatildeo de Justino com esta temaacutetica filosoacutefica (Logos) foi ampla e profunda Eacute
possiacutevel condicionarmos jaacute a partir de Justino uma realidade conclusiva para o tema naquilo
453 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
454 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
455 TORRES A retoacuterica joanina do Logos 2016
456 INAacuteCIO Epiacutestola aos Magneacutesios VIII 2 grifo nosso
105
que ele se refere a revelaccedilatildeo cristatilde esta conclusatildeo estaacute na ldquoconcepccedilatildeo justiacutenica do Logos como
entidade divina intermediaacuteria entre Deus e o mundordquo457 Isso gerou uma nova perspectiva a
qual Justino com certa originalidade conceitual passa a definir o Logos como um agente que
jaacute orientava a humanidade antes mesmo de Sua encarnaccedilatildeo desejando por meio da ldquoIgreja com
a sua accedilatildeo missionaacuteriardquo458 tornar participantes todos os homens que por meio da feacute em Cristo
poderatildeo gozar da esperanccedila do cumprimento profeacutetico do segundo advento do Salvador
Em seu trabalho apologeacutetico Justino estabeleceu uma conjunccedilatildeo entre proposiccedilotildees
separadas mas que se demonstraram de uma mesma espeacutecie Esse ato invariaacutevel conectou de
maneira significativa o Logos459 da filosofia grega ndash aqui expresso em uma de suas definiccedilotildees
temporais do meio filosoacutefico sendo apresentado como o ldquoPrinciacutepio platocircnico mediador entre o
mundo sensiacutevel e o inteligiacutevelrdquo460 ndash com o Logos do Evangelho de Joatildeo ou poderiacuteamos dizer
da interpretaccedilatildeo feita pelo meio apologeacutetico cristatildeo do Seacuteculo II Tratando ainda um pouco mais
sobre o cenaacuterio histoacuterico envolvendo a realidade conceitual sobre o Logos Walde nos indica
este princiacutepio conectivo quando cita Schaff em um exame sobre esta teoria Vemos em sua
descriccedilatildeo que o historiador
Philip Schaff descreve o pensamento desta maneira O Logos eacute a razatildeo preacute-existente
absoluta pessoal e Cristo eacute a encarnaccedilatildeo dele o Logos encarnado Qualquer coisa
racional eacute cristatilde e qualquer coisa cristatilde eacute racional Os Logos dotaram a todos os
homens da razatildeo e liberdade que natildeo estavam perdidos desde a queda Ele espalhou
sementes da verdade antes de sua encarnaccedilatildeo natildeo soacute entre os judeus mas tambeacutem
entre os gregos e baacuterbaros sobretudo entre os filoacutesofos e poetas que satildeo os profetas
pagatildeos Os que viveram razoavelmente e virtuosamente em obediecircncia a esta luz
preparatoacuteria foram de fato cristatildeos ainda que natildeo no nome ao contraacuterio os que
viveram irracionalmente eram inimigos de Cristo Soacutecrates foi um cristatildeo assim como
Abraatildeo ainda que ele natildeo o conheceu461
457 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1147
458 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1148
459 O conceito de Logos derivado da filosofia contemporacircnea especialmente do estoicismo com sua doutrina da
razatildeo universal foi usado pelos Apologistas para explicar como Cristo se relacionava com Deus Pai Algo do
Logos diziam encontra-se em todos os homens Ver HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 23
460 Logos (grego loacutegograves) Substantivo masculino de dois nuacutemeros Significa 1 Palavra 2 Discurso 3 Linguagem
4 Estudo 5 Teoria Significado em aacutereas proacuteprias 1 Filosofia Razatildeo ou princiacutepio da inteligibilidade 2
Filosofia Princiacutepio platocircnico mediador entre o mundo sensiacutevel e o inteligiacutevel 3 Filosofia Forccedila divina ou
criadora que eacute organizadora do mundo 1 Teologia Cristo ou o Verbo de Deus segunda pessoa da Trindade Ver
Dicionaacuterio Priberam da Liacutengua Portuguesa ltDisponiacutevel em httpsdicionariopriberamorglogosgt Acesso em
27 de fev 2019
461 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 723
apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
106
Esta ideia por assim dizer protagonizou aquilo que possivelmente foi o primeiro
encontro consistente entre filosofia e teologia na Era atual (dC) O conjunto deste exerciacutecio
que vemos pouco tempo depois jaacute constituiacutedo na escola de Alexandria (aproximadamente 50
anos) sob a preeminecircncia de Clemente (Bispo de Alexandria)462 continuou a evoluir no
decorrer dos seacuteculos e encontrou seu aacutepice no movimento Escolaacutestico da Idade Meacutedia463
Contudo parece-nos que a funccedilatildeo do Logos propriamente empregado dentro da realidade
teoloacutegica cristatilde originalmente foi de alguma maneira semeada por Justino
Ainda sobre esta praacutetica hermenecircutica de se assemelhar a teorema dos filoacutesofos gregos
com a revelaccedilatildeo biacuteblica (ou Patriacutestica) notamos com facilidade a apresentaccedilatildeo de certas
evidecircncias que nos levam ao ldquoberccedilordquo da obra do Apologista Definitivamente Justino parece
agregar conceitos em seu relato que claramente evidenciam isto pois ldquoa principal contribuiccedilatildeo
dos apologistas (sendo Justino expoente no contexto) foi sua tentativa de correlacionar o
cristianismo com a erudiccedilatildeo grega tentativa que encontrou sua expressatildeo mais marcante na
teoria do Logos e sua aplicaccedilatildeo agrave cristologia (mateacuteria determinante em Justino)rdquo464
A teoria cristatilde sobre o Logos tem caraacuteter preceituador e exerceu impacto relevante na
histoacuteria dogmaacutetica cristatilde pois de maneira imperiosa tornou acessiacutevel a sua realidade intelectual
tanto intra quanto extra muros transmitindo a ideia de que ldquoeste Verbo este Logos que assim
iluminou progressivamente a mente humana eacute o proacuteprio Cristo tal como se revelou em Jesus
por meio do qual o pensamento e a vida encontraram o seu significadordquo465 Nesta mesma linha
Wachholz apresenta um paralelo forte desta soma de posiccedilotildees
Justino assume este discurso afirmando que em Jesus Cristo esse Logos que se fez
carne Jesus eacute fonte de todo o conhecimento Por outro lado Justino tambeacutem pode
afirmar que os pagatildeos tambeacutem puderam conhecer o Logos embora parcialmente
(inclusive Soacutecrates e Platatildeo) Os cristatildeos por sua vez conhecem o Logos tal qual ele
eacute por causa da encarnaccedilatildeo do mesmo em Cristo466
Devemos ainda agregar a influecircncia estoica ndash a qual neste ponto de forma mais direta
inspirou intelectualmente a Justino ndash agrave preponderacircncia junto a apresentaccedilatildeo do Logos como o
462 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
463 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
464 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 24 grifo nosso
465 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
466 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 59
107
princiacutepio elementar (material e imaterial) de todas as coisas existentes nos escritos de Justino
O estoicismo mais que o platonismo conseguia de modo mais teacutecnico467 e com maior rigor no
periacuteodo definir tanto a convicccedilatildeo teoloacutegica de Justino468 como de todo o segmento Apologista
cristatildeo Dreher consegue frisar tal relaccedilatildeo e consequecircncia desta realidade ldquoLogos eacute para os
estoicos a Razatildeo Universal que tudo penetra e tudo comanda que tudo ordena Tambeacutem Justino
viu no Logos a Razatildeo Universal mas que se teria revelado no cristianismo de maneira mais
perfeitardquo469
Outro importante apontamento que merece destaque estaacute na ideia de criaccedilatildeo e
manutenccedilatildeo operado pelos Logos Aqui enfatiza-se que tudo estava ordenado pela Palavra que
era e foi criadora sustentadora e orientativa mais ainda tudo provinha desta mesma Palavra
que possuiacutea e estava (mantinha-se) em uma realidade imanente e preexistente a tudo Simonetti
afirma que ldquofunda-se sobre a conspecccedilatildeo de Cristo como Logos divino e nessa condiccedilatildeo
princiacutepio de racionalidade universal cujas sementes (spermata) entram em toda a criaccedilatildeo e
habilitam o homem a conhecer Deus como criador organizador e regente do mundordquo470 Disso
tudo podemos afirmar que Justino e seus contemporacircneos de fides et toga entendiam que ldquotoda
a verdade estaacute no Logos [] Logo toda a verdade deve ser relacionada ao Logosrdquo471
Cabe-nos nesse conjunto apontar que na exposiccedilatildeo intelectual de Justino referente ao
Logos este natildeo desenvolve com clareza aquilo que seria a presenccedila da Palavra nos outros
homens Em seus registros vemos em alguns momentos que essa relaccedilatildeo de habitaccedilatildeo do Logos
(entendido como incipiente) no ser humano eacute descrita como um processo de semeadura (o
Logos sendo semeado)472 jaacute em outras passagens a analogia se constroacutei atraveacutes de uma imagem
467 Os Apologista do Seacuteculo II empregavam textos do Antigo Testamento como o Salmo 336 (ldquoOs ceus por sua
palavra [isto eacute pela Palavra do Senhor] se fizeramrdquo) onde natildeo hesitavam em misturaacute-los com a distinccedilatildeo teacutecnica
que os estoacuteicos faziam entre ldquopalavra imanenterdquo (grego logos endiathetos) e a ldquopalavra pronunciada ou expressardquo
(grego logos prophorikos) Esta distinccedilatildeo empregada pelos Apologistas visava diferenciar o duplo fato da
unicidade preacute-temporal de Cristo Seu estado preexistente com o Pai Sua manifestaccedilatildeo no tempo e no espaccedilo
Ver KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 71
468 Nessa construccedilatildeo teoacuterica que em determinados momentos parece procurar indiacutecios sustentaacuteveis sobre qual
seria o sistema filosoacutefico de maior influecircncia na formaccedilatildeo do conceito de Logos em Justino ganha destaque o
apontamento de Simone o qual utilizando-se de um caraacuteter sucinto e soacutebrio parece definir com normatividade
esta relaccedilatildeo e seu desenvolvimento ldquoseu conceito estaacute mais proacuteximo do meacutedio platonismo do que do estoicismo
isto eacute a terminologia eacute estoica mas o pensamento subjacente eacute platocircnicordquo Ver SIMONE In JUSTINO filoacutesofo
e maacutertir Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 798
469 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47
470 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1148
471 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 27 grifo nosso
472 Ver JUSTINO I Apologia XXXII 8 JUSTINO II Apologia VIII 1
108
de ldquoocupaccedilatildeordquo (posse) tanto plena473 quanto parcial474 em sua abrangecircncia475 O proacuteprio Justino
em sua II Apologia nos conduz a uma afirmaccedilatildeo de caraacuteter muito pertinente na tentativa de
explicar o porquecirc da accedilatildeo e necessidade da Palavra se manifestar aos homens Nessa afirmaccedilatildeo
ele regula o cristianismo como algo superior aos demais ensinos que procuravam ensinar sobre
a realidade do Logos como sendo um elemento orientativo Justino escreve sobre isso e afirma
que ldquoPortanto a nossa religiatildeo mostra-se mais sublime do que todo o ensinamento humano
pela simples razatildeo de que possuiacutemos o Verbo inteiro que eacute Cristo manifestado por noacutes
tornando-se corpo razatildeo e almardquo476
Justino nessa abordagem acaba por gerar em seu contexto uma evidenciaccedilatildeo
cristoloacutegica de importacircncia iacutempar pois salienta que a ldquodiferenccedila entre Cristo e os Homens
comuns encontra-se natildeo em alguma disparidade essencial de constituiccedilatildeo mas no fato de que
enquanto o Logos opera neles de forma fragmentada (kata meros) ou como uma semente em
Cristo Ele opera como um todordquo477 ou seja no Verbo que encarnou temos a plenitude da
manifestaccedilatildeo do Logos divino sendo este aquele mesmo que os filoacutesofos gregos anteriormente
jaacute haviam esquematizado478 poreacutem de maneira imperfeita
Prosseguindo em nossa construccedilatildeo algo que fica evidente neste exame eacute que mais que
esboccedilar uma ldquoexplicaccedilatildeo intelectualmente satisfatoacuteriardquo479 para o Logos Justino procura ser
expressivo mas natildeo necessariamente um sistemaacutetico deixando-nos carecentes de uma loacutegica
argumentativa mais robusta nesta questatildeo
Nesse aspecto encontramos orientaccedilatildeo junto a obras como a de Santos que
especificamente em nosso objetivo de pesquisa aparece provavelmente como uma das mais
qualificadas definiccedilotildees sobre agrave visatildeo de Justino e sua ressignificaccedilatildeo sobre o assunto Logos de
que disponibilizamos Partindo de dados extraiacutedos da anaacutelise sociorreligiosa do Seacuteculo II e a
473 Ver JUSTINO I Apologia XLVI 3
474 Ver JUSTINO II Apologia X 2 XIII 3
475 Deve-se distinguir entre o ldquoVerbo inteirordquo ingecircnito inefaacutevel o proacuteprio Cristo e o ldquoVerbo seminalrdquo que habita
nos homens especialmente nos saacutebios Ver FRANGIOTTI In Nota c II Apologia 1995 p 74
476 JUSTINO II Apologia X 1
477 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 108
478 Para Simone Justino se ampara claramente em uma tese oriunda do meacutedio platonismo quando procura
estabilizar sua ideia sobre haacute preexistecircncia antiguidade e universalidade do Logos Nesta inferecircncia o Apologista
baseia-se na ideia do meacutedio platonismo de que a transformaccedilatildeo do demiurgo miacutetico de Platatildeo visto como uma
forma de mente transcendente (PLATAcircO Timeu-Criacutetias 28c) se associa plenamente haacute figura do Deus Pai e
Criador do Cosmos trazida pela revelaccedilatildeo (sublime) do cristianismo Sendo deste modo o Logos apresentado
como ldquonascidogeradocriadordquo a partir do proacuteprio Deus Ver SIMONE In JUSTINO filoacutesofo e maacutertir
Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 799 LOPES In Nota 67 Timeu-Criacutetias 2011 p 95
479 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 71
109
estes somando algumas porccedilotildees da II Apologia de Justino Santos estabelece uma soacutelida
conexatildeo entre o Logos e o cristianismo Nesse conjunto de dados Santos consegue incorporar
a sua descriccedilatildeo uma das evidecircncias fundamentais que apontavam diretamente na diferenciaccedilatildeo
do extrato social agrave eacutepoca denominado cristatildeo Essa conjectura aplica-se assim se por um lado
o Logos eacute eterno foi anunciado anteriormente pelos profetas esteve manifesto na mente
(brilhante) dos filoacutesofos Logo isso o define como cristatildeo Conclusatildeo o Logos eacute Cristo Nossa
deduccedilatildeo eacute fraacutegil (em sentido teacutecnico) nem visa ser emblemaacutetica No entanto define e salienta
o pensamento de Justino que como veremos abaixo Santos ratifica se utilizando de raciociacutenio
similar por entender que Justino demonstra com clareza a concepccedilatildeo cristatilde daquele periacuteodo
sobre o Logos
O Logos total eacute aquele que soacute os cristatildeos possuem Por isso o cristianismo eacute a religiatildeo
por excelecircncia acima de toda filosofia e de qualquer matriz de pensamento humano
Justino declara que o cristianismo ldquomostra-se mais sublime do que todo o ensinamento
humano pela simples razatildeo de que possuiacutemos o Verbo por inteiro que eacute Cristo
manifestado por noacutes tornando-se corpo razatildeo e almardquo (JUSTINO II Apologia X 1)
O Logos eacute o Deus visiacutevel que manifesta o Deus invisiacutevel Os cristatildeos satildeo aqueles que
manifestam o Logos divino pois o possuem de forma integral O que eles manifestam
do Logos eacute o seu amor pela humanidade que eacute a razatildeo maacutexima de sua encarnaccedilatildeo
Entatildeo os cristatildeos revelam ao mundo que ldquoEle se tornou homem para partilhar de
nossos sofrimentos e curaacute-losrdquo (JUSTINO II Apologia XIII 4) O Logos serve para
explicar a semelhanccedila do comportamento moral dos cristatildeos com os ensinamentos dos
filoacutesofos principalmente os platocircnicos e estoicos (JUSTINO II Apologia XIII 2) e
ao mesmo tempo classifica os cristatildeos como superiores a eles (JUSTINO II Apologia
X 1)480
Para concluir a exposiccedilatildeo acerca de Justino dentro da filosofia grega podemos afirmar
sem nenhuma duacutevida que o Apologista eacute um verdadeiro filoacutesofo que entre outras coisas
compreendeu e praticou a vivacidade da revelaccedilatildeo do Logos divino entre os homens sempre
salientando que ldquotoda a verdade deve ser relacionada ao Logosrdquo481 Assim neste processo
conduzido por Justino podemos afirmar que revelou-se ldquoa grande ideia (Logos) marcada com
o selo do gecircnio (Justino) que vai fazer desembocar na verdade cristatilde o platonismo o filonismo
e toda a expectativa das geraccedilotildees humanasrdquo482
A partir disto prosseguiremos falando a respeito do capiacutetulo XXVIII de nossa obra
referencial Poreacutem a partir de agora abordaremos precisamente uma de suas principais
480 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 47
481 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 29
482 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
110
caracteriacutesticas Essa peculiaridade que possivelmente se mostra como a mais elaborada entre
as proposiccedilotildees por noacutes jaacute apresentadas realccedila e enobrece nossa busca pelos melhores
argumentos para a definiccedilatildeo do termo Verdade retratado na I Apologia Assim uma
interrogaccedilatildeo elementar em nossa construccedilatildeo comeccedila a ser diretamente respondida
33 RAZAtildeO DEUS SE PREOCUPA COM ESSAS COISAS
No princiacutepio ele criou o gecircnero humano racional capaz de escolher a verdade e
praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus
pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade Se algueacutem natildeo
crecirc que Deus se preocupe com essas coisas ou teraacute que confessar com sofismas que
natildeo existe ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como
uma pedra Virtude e vicio seriam puros nomes e os homens considerariam as coisas
como boas ou maacutes unicamente por sua opiniatildeo o que eacute a maior impiedade e
iniquidade483
O uacuteltimo item deste capiacutetulo visa possibilitar uma clara visatildeo bem como garantir a
genuiacutena adesatildeo ndash questatildeo que entendemos natildeo apenas como necessaacuteria mas sim como
fundamental para a compreensatildeo deste conceito ndash agrave perspectiva de Justino quanto ao que ele
sentenciou como algo determinante em sua proposta apologeacutetica Este modelo de conduta
adotado por Justino natildeo apenas relacionado pontualmente neste caso (I Apologia) caracteriza
com vigor desde o iniacutecio sua orientaccedilatildeo intelectual Aleacutem disso Justino passou a afirmar com
esta evidenciaccedilatildeo de casos toda sua ordem teoloacutegica baseada em sua anaacutelise racional como
tambeacutem agrave explicava ou no miacutenimo agrave definia mediante a maneira que estas relaccedilotildees se
posicionavam
Walde ao analisar aquilo que poderiacuteamos chamar do ldquocampo de anaacutelise racionalrdquo de
Justino ndash ao qual este estabelecia e limitava a sua reflexatildeo ndash sustenta que o pensamento da
Apologista parte de um ponto fixo de uma base depositada profundamente num conceito de
sua racionalizaccedilatildeo Segundo Walde para Justino ldquoQualquer coisa racional eacute cristatilde e qualquer
coisa cristatilde eacute racional Os Logos dotaram a todos os homens da razatildeo e liberdade que natildeo
estavam perdidos desde a quedardquo484
Apoacutes esta citaccedilatildeo faz-se novamente necessaacuterio afirmar que esta pesquisa natildeo almeja
diretamente um debate soterioloacutegico nem sequer visa agregar conceitos ndash de nenhuma espeacutecie
ndash ao termo ldquoLivre Arbiacutetriordquo que empregado indiretamente por Walde possa sugerir debates
483 JUSTINO I Apologia XXVIII 3-4 grifo nosso)
484 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
111
teoloacutegicos nessa esfera Contudo salientamos que a ideia transmitida por Justino no capiacutetulo
XXVIII pode ser empregada com determinada liberdade nesta discussatildeo soterioloacutegica pois a
tomada do Livre Arbiacutetrio como atributo caracteriza uma abrangecircncia muito significativa
especialmente quando Justino afirma que o homem racional eacute ldquocapaz de escolher a verdade e
praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus pois todos
foram criados racionais e capazes de contemplar a verdaderdquo485
Entretanto agregar este ldquoescolherrdquo para fins soterioloacutegicos na tentativa de se
apresentar alguma possibilidade (em forma ou modo) de participaccedilatildeo humana no ato salviacutefico
de Deus em Cristo buscando dar o sentido de que o convencimento salviacutefico natildeo eacute uma
exclusividade da accedilatildeo Divina parece-nos ser um literal descaso com o texto uma vez que se
agrega a Justino algo que ele simplesmente natildeo estava tentando comunicar
Dando seguimento ao nosso assunto mencionamos que o principal criteacuterio que
procuramos definir nesta exposiccedilatildeo estaacute relacionado a importacircncia delegada por Justino agrave razatildeo
humana Eacute imprescindiacutevel nesta construccedilatildeo salientarmos que este recurso humano
(razatildeoracionalidade) era compreendido por Justino (e tambeacutem dos demais Apologistas do
periacuteodo) como uma das principais (se natildeo haacute principal) daacutedivas de Deus ao ser humano486 e
natildeo apenas isso mas este ldquopresenterdquo (uma espeacutecie de ldquodomrdquo praacutetico) possuiacutea tambeacutem uma
accedilatildeo determinante na existecircncia humana para com as coisas celestiais tanto no presente
(cotidiano) como para o futuro (escatoloacutegico) do ser criado
Inicialmente detectamos em Justino a importacircncia por ele atribuiacuteda agrave racionalidade
no homem quando passa a afirmar que ldquoNo princiacutepio ele criou o gecircnero humano racional
capaz de escolher a verdade e praticar o bemrdquo487 Desta forma na concepccedilatildeo do Apologista a
Verdade era comunicada ndash ou ateacute mesmo sentenciada ndash ao ser humano por meio de sua
condiccedilatildeo inata (existente e natildeo adquirida) ou seja seu estado racional Aqui cabe-nos ainda
ressaltar que para Justino o homem para receber a revelaccedilatildeo da feacute em Cristo e mediante isso
agregar a si as benesses eou becircnccedilatildeos desta relaccedilatildeo se fazia necessaacuterio uma transmissatildeo desse
conhecimento ao entendimento humano e isso se dava pelo uso da razatildeo
Walde novamente soma a nossa pesquisa ao conceituar que ldquoDeus simplesmente natildeo
era conhecido por meio da razatildeo abstratardquo488 Assim podemos afirmar que Justino compreendia
485 JUSTINO I Apologia XXVIII 3 grifo nosso
486 DROBNER Manual de Patrologia 2008
487 JUSTINO I Apologia XXVIII 3 grifo nosso
488 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
112
(fortemente influenciado por uma tendecircncia apologista) que a Verdade naturalmente emergia
ao intelecto humano pela razatildeo apoacutes a conversatildeo do homem a Cristo Isso se condicionava
porque era o proacuteprio fruto da accedilatildeo regeneradora do Evangelho no ser humano que agora era
capaz de compreender o processo de separaccedilatildeo entre o joio e o trigo caso contraacuterio os ldquohomens
considerariam as coisas como boas ou maacutes unicamente por sua opiniatildeo o que eacute a maior
impiedade e iniquidaderdquo489
Neste contexto vemos um contraste interessante se formar Pois o Apologista nos
conduz a um quadro extremo no qual apresenta a opiniatildeo humana versus a Verdade Neste
ponto importa mencionarmos Fluck que afirma que Justino ldquoConsiderava que os adversaacuterios
do cristianismo insultavam a razatildeo e a moralrdquo490 Pode ateacute mesmo ser loacutegico poreacutem para nossa
pesquisa eacute imperativo e necessaacuterio salientar que para Justino natildeo havia duacutevidas acerca da
superioridade da Verdade quando revelada (especialmente no Logos) em oposiccedilatildeo agrave razatildeo
humana (caracterizada principalmente pela razatildeo oriunda da filosofia grega) Neste aspecto
Walde eacute categoacuterico e nos apresenta alguns paracircmetros dessa distinccedilatildeo empregada por Justino
Devo notar aqui que esta ecircnfase na razatildeo natildeo deve nos fazer pensar que a feacute natildeo
significava nada para Justino Ele se refere muitas vezes agrave feacute em suas apologias Ele
fala de noacutes sendo transformados ldquopor feacute atraveacutes do sangue e da morte de Cristordquo Ele
inclusive se refere a Abraatildeo que ldquofoi justificado e abenccediloado por Deus devido a sua
feacute nelerdquo No entanto o assunto de conhecimento eacute central aqui porque Justino deu
mais peso em crer nos ensinos de Cristo que crer no proacuteprio Cristo491
Em vista disso natildeo haacute duacutevidas de que a capacidade para decidir para escolher para
tonificar juiacutezos para agregar ou natildeo inferecircncias ou ateacute mesmo para se possuir um meacutetodo de
postura loacutegica passava claramente pela apropriaccedilatildeo da Verdade por meio da razatildeo humana na
concepccedilatildeo de Justino Sendo possiacutevel a partir de entatildeo formar-se no homem (exclusivamente
na experiencia cristatilde ndash com o verdadeiro Logos) os acordos morais para constituiccedilatildeo dos
pensamentos ou das ideias necessaacuterias para a vida humana
Por conseguinte somente aqueles que agregavam a si esta ldquorazatildeordquo (o Logos) poderiam
usufruir de um verdadeiro discernimento e juiacutezo que era proveniente Daquele que se tornou
489 JUSTINO I Apologia XXVIII 4
490 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2009 p 32 apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da
Feacute Cristatilde 2014 p 15
491 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
113
ldquocorpo razatildeo e almardquo492 Diante disso clarificasse a ideia e torna-se vigente o conceito de que
para Justino o Logos eacute o ldquoDeus visiacutevel que manifesta o Deus invisiacutevel Os cristatildeos satildeo aqueles
que manifestam o Logos divino pois O possuem de forma integralrdquo493 Neste ponto em questatildeo
Schaff nos ajuda na compreensatildeo desta distinccedilatildeo
O cristianismo conteacutem a racionalidade necessaacuteria para ser aceito e compreendido pela
filosofia grega Dessa maneira defendendo o cristianismo Justino defendeu a feacute
cristatilde referindo-se agrave feacute em Cristo como forma de justificaccedilatildeo e transformaccedilatildeo sendo
essa feacute totalmente racional494
Este comportamento da feacute compreendida eou assimilada pela razatildeo mostrou-se mais
como uma forma de pensamento do que de conduta naquele momento da histoacuteria495 Isso levou
a classe Apologista do periacuteodo de Justino (praticamente toda helenista em sua origem eou base
cultural) a considerar este procedimento justo e legiacutetimo em sua ordem o que tambeacutem de
maneira muito razoaacutevel possibilitou que este entendimento fosse aceito e vivido496 de forma
significativa em determinados nichos da referida realidade sociorreligiosa
Neste quesito em particular notamos com clareza que o procedimento adotado por
Justino para defender a feacute cristatilde se utilizou de admiraacuteveis recursos filosoacuteficos (racionais)
Justino ldquoSoube juntar admiravelmente os princiacutepios da razatildeo com os dogmas da feacuterdquo497 para
comunicar-se com uma classe distinta intelectualmente de modo especial com aqueles
(Imperadores Senadores outros) aos quais as obras foram dirigidas (a I e II Apologias e o
Diaacutelogo com Trifatildeo no caso de Justino especificamente) A legitimidade da proposta de Justino
(apresentar a feacute cristatilde como um fato racional a ser implantado e assimilado pelos ouvintes)
permite algumas consideraccedilotildees Walde argumenta nesta direccedilatildeo quando diz
Era importante mostrar a racionalidade da feacute e o Logos era o locus da razatildeo nas altas
escolas de filosofia grega [] Isso garantiu a racionalidade do cristianismo
492 JUSTINO II Apologia X 1
493 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 47
494 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 723
apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 21
495 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
496 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
497 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 52
114
identificando a Jesus como o Logos indicando Sua antiguidade que era importante
para a mentalidade grega em estabelecer uma crenccedila498
A partir deste ponto fomentaremos a atribuiccedilatildeo enfaacutetica do capiacutetulo XXVIII da I
Apologia onde Justino afirma com veemecircncia e certo rigor que ldquoSe algueacutem natildeo crecirc que Deus
se preocupe com essas coisasrdquo499 este (ou estes) passa por um consideraacutevel descompasso de
ordem moral Esta afirmaccedilatildeo eacute muito relevante no conjunto em que estaacute aplicada pois denota
de maneira singular toda a estrutura da mensagem do Apologista
Referente a esse caso nos eacute possiacutevel afirmar balizados em toda a descriccedilatildeo
empreendida do sistema de loacutegica adotado por Justino ndash sob clara influecircncia da escola
platocircnica500 ndash que para o Apologista os natildeo-cristatildeos (praticantes ou natildeo dos valores atribuiacutedos
a razatildeo) natildeo conseguiam ponderar com a autecircntica ldquorazatildeo universalrdquo a mesma que era e estava
implantada no ser humano de maneira inata e agora se fazia conhecer porque manifestava-se
nas vidas (consciecircncias regeneradas) dos cristatildeos501
A concepccedilatildeo sobre uma ordenaccedilatildeo coacutesmica universal vista na filosofia estoica502
comeccedila no contexto teoloacutegico de Justino a ser denominada de Logos Spermatikoacutes503 Conceito
que de forma ampla e sistemaacutetica passa a ser usado pelo autor ndash e consequentemente pelo meio
cristatildeo ndash em sua II Apologia na qual Justino ldquoatribui a Cristo a expressatildeo lsquoLogos Spermatikoacutesrsquo
(verbo seminal ou semente da razatildeo) significando que dEle procedem todas as coisasrdquo504
Assim quando os homens natildeo aceitam a distinccedilatildeo que a Verdade oferece para tudo que a ela eacute
estranho prova-se que eles (homens) necessariamente agem sem estar em seu juiacutezo pleno
completo perfeito ou seja natildeo satildeo dirigidos nem governados pelo verdadeiro Logos Nisso se
498 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
499 JUSTINO I Apologia XXVIII 4
500 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
501 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
502 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
503 Fluck explica que o que se entendia na filosofia como ldquorazatildeo universalrdquo imanente em todas as coisas foi
relacionado a ldquosemente racionalrdquo que estaacute presente em todo ser humano (Logos Spermatikoacutes ou semente do
Logos) Ver FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2009 p 33 apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em
Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 17 Jaacute Haumlgglund diz que a razatildeo como um embriatildeo encontra-se implantada dentro
deles (Loacutegos Spermatikoacutes) Mas os apologistas em contraste com os estoicos natildeo diziam ser ela uma espeacutecie de
razatildeo universal concebida panteisticamente Em vez disso identificavam o Logos com Cristo Ver HAumlGGLUND
Histoacuteria da Teologia 1999 p 23
504 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 20
115
conclui que estes homens estatildeo corrompidos na ldquosua opiniatildeo o que eacute a maior impiedade e
iniquidaderdquo505
Logo podemos deduzir um final especiacutefico ao pensamento de Justino nesta periacutecope
Entendemos que o paralelo entre feacute e razatildeo eacute um excelente instrumento indicativo orientador
e balizador na tentativa de afirmaccedilatildeo de sua doutrina e de refutaccedilatildeo do erro sendo que o
constituidor dessa anaacutelise deficiente da realidade (o erro de natildeo se utilizar corretamente da
razatildeo) se estabelecia em um conjunto temaacutetico muito amplo e complexo (crenccedilas instituiccedilotildees
poliacutetica etc) o qual decidimos chamar de realidade ou meio sociorreligioso
Sabemos que aplicar o relato de Justino a anaacutelises contemporacircneas pode causar um
aprisionamento indevido de um pensamento nobre e puro mas eacute inquestionaacutevel o uso de meios
e ferramentas que mostram com clareza ndash em uma orquestraccedilatildeo quase impecaacutevel ndash os incriacuteveis
subsiacutedios racionais que Justino possui para julgar o cenaacuterio de seus conflitos Dreher nesta
esteira enfatiza que para Justino em ldquoCristo toda a filosofia chega agrave perfeiccedilatildeo Por isso os
cristatildeos satildeo os verdadeiros seres racionaisrdquo506
Portanto deduzimos a partir de tantas evidecircncias que na compreensatildeo de Justino a
Verdade tambeacutem se encontra no seu oposto pois sempre que o homem natildeo usar da razatildeo para
assumir viver e praticar a Verdade ldquoou teraacute que confessar com sofismas que natildeo existe (a
Verdade) ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como uma
pedrardquo507
Na abordagem deste capiacutetulo trabalhamos a construccedilatildeo da imagem de Justino Maacutertir
como um filoacutesofo inserido e atuante no mundo greco-romano do Seacuteculo II dC ou como citado
anteriormente da filosofia na vida do cristatildeo Justino Procuramos por meio deste exame fazer
uma clara e suficiente descriccedilatildeo do corpo base desta anaacutelise que partiu e se concentrou no
capiacutetulo XXVIII da I Apologia Em seguida passamos a um exame da vida do autor em meio
agrave filosofia de sua eacutepoca e descrevemos as principais influecircncias filosoacuteficas na formaccedilatildeo do
Apologista Aleacutem disso abordamos o efeito desta construccedilatildeo que possivelmente se tornou um
dos maiores (se natildeo o principal) legados deixado pelo autor Por uacuteltimo buscamos estabelecer
um comentaacuterio soacutebrio sobre a tese de Justino a respeito da realidade da razatildeo regenerada como
o agente arbitral na vida humana como a ldquoforccedilardquo condutora para se conhecer agrave Verdade
505 JUSTINO I Apologia XXVIII 4
506 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47 grifo nosso
507 JUSTINO I Apologia XXVIII 4 grifo nosso
116
No proacuteximo capiacutetulo trataremos do que em nossa opiniatildeo eacute o ponto epiteacutetico deste
relato apologeacutetico de Justino Mesmo diante de muitas circunstacircncias que em sua eacutepoca afligiam
consideravelmente a cristandade Justino nos apresenta uma ldquochave mestrardquo que no seu
entendimento nos prova que o cristianismo eacute a religiatildeo mais antiga e deste modo a uacutenica que
revela genuinamente a Verdade
117
4 A VERDADE REVELADA POR FATOS PROFEacuteTICOS SEGUNDO JUSTINO
Poderiam nos objetar ldquoQue inconveniente haacute em que esse que noacutes chamamos Cristo
seja um homem que vem de outros homens e que por arte maacutegica fez os prodiacutegios
que dizemos e por isso pareceu ser filho de Deusrdquo Apresentaremos pois a
demonstraccedilatildeo natildeo dando feacute agravequeles que nos contam os fatos mas crendo por
necessidade naqueles que os profetizaram antes de acontecer da forma que os vemos
cumpridos ou que estatildeo se cumprindo diante dos nossos olhos tal como foram
profetizados demonstraccedilatildeo que acreditamos que pareceraacute a voacutes mesmos a mais forte
e a mais verdadeira508
Iniciamos a seccedilatildeo final desta dissertaccedilatildeo partindo novamente da principal delimitaccedilatildeo
textual empregada a esta pesquisa Neste espaccedilo nossa anaacutelise se concentraraacute no capiacutetulo XXX
da I Apologia onde encontramos uma enfaacutetica afirmaccedilatildeo apresentada acerca da leitura das
profecias do Antigo Testamento e da interpretaccedilatildeo que Justino fez delas
Quando examinamos a trajetoacuteria de Justino na feacute cristatilde nos deparamos com
comentaacuterios situacionais que visam fixar conjuntos referenciais sobre as coisas consideradas
reais as quais nos possibilitem identificar com clareza as situaccedilotildees existentes no cenaacuterio
analisado Uma dessas afirmaccedilotildees seria a de que ldquoSeguindo sua inspiraccedilatildeo (de Justino) logo
houve outros cristatildeos que se dedicaram a construir pontes entre sua feacute e a cultura da
antiguidaderdquo509 Asserccedilotildees como esta mostram um caminho amplo e sistecircmico de um projeto
de construccedilatildeo que visa estabelecer novos paradigmas neste caso especiacutefico para a cristandade
da eacutepoca
Este processo natildeo eacute formado simplesmente por elementos de coesatildeo mas tambeacutem por
muitas medidas de desconexatildeo Em alguns momentos o projeto evangeliacutestico de Justino eacute
desenvolvido majoritariamente por meios apologeacuteticos e foi amplamente caracterizado por
visar um processo de desconstruccedilatildeo dos valores vigentes de seu meio sociorreligioso algo que
jaacute atestamos anteriormente relacionando o processo dialeacutetico de Justino a outros fatores
Seguindo esse processo este capiacutetulo nasce da necessidade de apresentarmos uma
resposta satisfatoacuteria para algo que surge na parte final da porccedilatildeo selecionada como base
(capiacutetulos XXIII a XXX da I Apologia) de nossa busca de soluccedilotildees para o objetivo central desta
pesquisa Neste contexto um ponto epiteacutetico surge e se move em meio agraves palavras de Justino
sendo enfaticamente referido ao cumprimento profeacutetico do Antigo Testamento Esse caso
508 JUSTINO I Apologia XXX 1 grifo nosso
509 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 92 grifo nosso
118
interpretativo do Apologista natildeo ocorre apenas no capiacutetulo XXX mas tambeacutem em outras
passagens da I Apologia510 as quais condicionaratildeo o alvo final de nossa anaacutelise
Entretanto se haacute um epiacuteteto significa que haacute um cliacutemax neste conjunto que requer ser
exposto e acima de tudo abordado Deste modo surgem algumas indagaccedilotildees sobre este ponto
alto levantado e abordado por Justino Essa busca nos leva a perguntar como estava a
consciecircncia sobre a realidade messiacircnica no Seacuteculo II em meio aos cristatildeos O que eram e o
que significavam as profecias consideradas messiacircnicas do Antigo Testamento para Justino
Elas se realizaram na visatildeo do autor O que ele visava comunicar para seus leitores atraveacutes
delas Havia nelas um ponto alto uma maacutexima a ser revelada Por uacuteltimo havia como a
Verdade ser revelada eou representada por meio do cumprimento dessas profecias
41 O MESSIANISMO ATEacute OS DIAS DE JUSTINO
O messianismo como movimento teoloacutegico tem uma longiacutenqua e variada histoacuteria em
sua estruturaccedilatildeo e desenvolvimento Diversos cenaacuterios humanos desde as antigas dinastias do
Impeacuterio Egiacutepcio passando por quase todo crescente feacutertil chegando ateacute a antiga realeza
Mesopotacircmica descreviam traccedilos de similaridade que apresentavam um ser protagonista em
seu ambiente poliacutetico e religioso (caso essa diferenciaccedilatildeo possa existir para a eacutepoca) o qual
passa a caber como uma entidade superior gerada manifestada sustentada e dirigida
Divinamente
A pesquisa moderna nos tem surpreendido de maneira constante ao apresentar
elementos encontrados nas civilizaccedilotildees antigas os quais se referem agrave ideia sobre a existecircncia
de uma figura messiacircnica de presenccedila soberana potencial salviacutefico e valor moral ilibado O
Egito como um grande Impeacuterio na antiguidade jaacute nos expotildee uma diversidade de personagens
exoacuteticos (que envolviam essencialmente a figura do ImperadorFaraoacute) que deveriam de
maneira fundamental exercer uma ordem religiosa poliacutetica e moral Cabe-nos ressaltar de iniacutecio
que ldquolonge de produzir qualquer coisa parecida com a figura de um lsquoMessiasrsquordquo511 como no
judaiacutesmo as crenccedilas religiosas no antigo Egito salientavam que esse agente mantenedor da
ordem coacutesmica ndash com accedilatildeo visiacutevel no tempo presente ndash faria por meio de sua sucessatildeo
(dinastia) a manutenccedilatildeo desses elementos cariacutessimos para o bem geral e deste modo
510 Ver JUSTINO I Apologia XXXIII 1 XXXVI 6 XLIV 3 XLVIII 1 LI 6 LII 1 4
511 BAINES In A realeza egiacutepcia antiga formas oficiais retoacuterica contexto Rei e Messias em Israel e no Antigo
Oriente Proacuteximo dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 52
119
possibilitaria a passagem para o mundo futuro de qualidade superior por ser santificado pela
ldquopassagem do deus-Sol pelo aleacutemrdquo512
Quanto agrave regiatildeo da Mesopotacircmia os povos de origem Sumeacuteria Babilocircnica e Assiacuteria
demonstram similar afinidade quando buscam exteriorizar o modelo de realeza ideal a ser
desempenhado pelo respectivo soberano em atividade Nestes povos nos chama a atenccedilatildeo que
a linhagem deste personagem era considerada uma inquestionaacutevel instituiccedilatildeo Divina sendo
ldquodesignado pelo pai (Rei predecessor) como o priacutencipe herdeirordquo513 Tal nomeaccedilatildeo era ldquofeita
com a aprovaccedilatildeo dos deusesrdquo514 algo que tambeacutem ocorre de forma similar na aprovaccedilatildeo de
Davi e sua linhagem como monarquia perpeacutetua515 Quanto aos Mesopotacircmicos ainda eacute
necessaacuterio mencionar a respeito de suas ldquoinscriccedilotildees reacutegiasrdquo516 que apresentavam a solene
tradiccedilatildeo ao povo tambeacutem traziam consigo a responsabilidade de descrever o ethos do Soberano
como algueacutem que fora designado e iluminado divinamente para o cargoposiccedilatildeo Essa
contestaccedilatildeo explica por que ldquoNesse sentido a antiga Mesopotacircmia era verdadeiramente
messiacircnicardquo517
No Antigo Testamento variadas e amplas satildeo as alternativas que se apresentam na
construccedilatildeo de uma possiacutevel linha de pesquisa sobre o tema Elas perpassam todo o texto biacuteblico
do Pentateuco aos Profetas Menores ganhando destaque junto aos Livros Histoacuterico que ldquonos
permitem conhecer todas as luzes e sombras da esperanccedila messiacircnicardquo518 aleacutem de tambeacutem
encontrar uma ecircnfase diretiva nos Profetas Maiores (Isaiacuteas e Ezequiel por exemplo) Contudo
eacute nos escritos Poeacuteticos e Sapienciais que encontra-se o repouso pleno dessa mensagem de
esperanccedila e o Livro dos Salmos ganha significativa relevacircncia junto ao cenaacuterio Hamilton nos
enfatiza que a ldquoliteratura de Salmos considera de modo todo especial o mashicircah como agente
512 BAINES In A realeza egiacutepcia antiga formas oficiais retoacuterica contexto Rei e Messias em Israel e no Antigo
Oriente Proacuteximo dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 53
513 CAZELLES Il Messia della Bibbia Cristologia dellrsquoAntico Testamento 1993 p 43 grifo nosso No Original
Designato dal padre come principe ereditario
514 CAZELLES Il Messia della Bibbia Cristologia dellrsquoAntico Testamento 1993 p 43 No original fatta con
lapprovazione degli dei
515 LAMBERT In A realeza na antiga Mesopotacircmia Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 53
516 LAMBERT In A realeza na antiga Mesopotacircmia Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 73
517 LAMBERT In A realeza na antiga Mesopotacircmia Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 73
518 SICRE De Davi ao Messias textos baacutesicos da esperanccedila messiacircnica 2000 p 103
120
de Deus ou seu vice regente (como em Sl 22)rdquo519 Esta perspectiva ndash recebida mediante os
escritos considerados profeacuteticos sobre a figura ldquosalviacuteficardquo para Israel ndash fica clara quando
salienta a trajetoacuteria do Ungido ao fazer seu percurso de caraacuteter libertador e restaurativo Este
anuacutencio salviacutefico conecta-se automaticamente de forma simples ao proacuteximo passo desta missatildeo
libertadora520 a qual consideraraacute as profecias como realizadas em definitivo
Ao examinarmos alguns dos conceitos fundamentais da hermenecircutica messiacircnica no
Novo Testamento vemos que a expectativa sobre o restabelecimento de um reino Daviacutedico
sobre a terra (amplamente difundido na concepccedilatildeo religiosa do judaiacutesmo tardio) faz com que a
Nova Alianccedila estabelecida na concepccedilatildeo dos cristatildeos atraveacutes do advento do Ungido ganhe
contornos bem definidos no sentido de enxergar na figura de Jesus Cristo o cumprimento
absoluto das promessas messiacircnicas
Dos Evangelhos ao Apocalipse de Joatildeo o messianismo que antes representava
majoritariamente um princiacutepio de restauraccedilatildeo poliacutetica e espiritual para diversos movimentos
judaicos passou a ganhar nova e emblemaacutetica posiccedilatildeo pois tudo ndash em maior ou menor
proporccedilatildeo dependendo do autor biacuteblico ndash foi constituiacutedo pela forte convicccedilatildeo do elemento
messiacircnico (como um ente) relacionado agrave ldquopresenccedila terrena passada de Jesus o Messias
(prometido a Israel)rdquo521 vinculando Este agrave realidade dos fatos presentes e dos eventos futuros
(escatoloacutegicos) aguardados pelos cristatildeos Importante tambeacutem citarmos que para a formaccedilatildeo
dogmaacutetica no Seacuteculo I os relatos histoacutericos do cristianismo (Atos dos Apoacutestolos) tiveram
fundamental importacircncia nesta construccedilatildeo teoloacutegica pois viriam ldquopara confirmar tanto a
historicidade do personagem quanto sua consideraccedilatildeo popular do Messiasrdquo522
Tratando-se do periacuteodo poacutes-apostoacutelico ateacute os dias de Justino ndash ponto que se torna o
delimitador desse item ndash vemos que uma pujante cristalizaccedilatildeo sobre o conceito messiacircnico se
estruturava sem maiores dificuldades O relato escrituriacutestico somado agrave forte conscientizaccedilatildeo
sobre a existecircncia de um futuro reinado messiacircnico sobre a terra ratificava de forma decisiva
519 HAMILTON In 1255c maumlshicircah Ungido aquele que eacute ungido Dicionaacuterio Internacional de Teologia do
Antigo Testamento 1998 p 885 grifo do autor
520 Cabe-nos registrar que o periacuteodo entre 340 aC a 30 dC eacute riquiacutessimo no que se trata de documentaccedilatildeo
envolvendo o tema messiacircnico em Israel Os escritos de Qumran satildeo proacutedigos em registros que tratam sobre a
expectativaesperanccedila messiacircnica para o periacuteodo que antecede e inaugura o Novo Testamento Ver BROOKE In
Realeza e messianismo nos manuscritos do Mar Morto Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 451-472 SICRE De Davi ao Messias textos
baacutesicos da esperanccedila messiacircnica 2000 p 334-351
521 ROWLAND In Cristo no Novo Testamento Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 510 grifo nosso
522 MIRALLES El Mesiacuteas en tiempos del NT 2006 p 40 No original a confirmar tanto la historicidad el
personaje como su consideracioacuten popular de Mesiacuteas
121
a mentalidade cristatilde no periacuteodo a ponto de podermos afirmar que ldquotornou-se caracteriacutestica da
escatologia cristatilde primitiva por exemplo Justino Dial 113 139 Tertuliano Adv Marcionem
3 24 Irineu Adv Haer 5 33 3-4rdquo523 entre outros Pais ateacute final do Seacuteculo II o estabelecimento
do entendimento de que o pleno cumprimento das profecias messiacircnicas estava em Jesus Cristo
tanto nos fatos jaacute realizados quanto nos ainda por se cumprirem524 Este caso em especiacutefico
tambeacutem nos atesta que os Pais Apologistas foram aqueles que produziram os ldquoprimeiros ensaios
de teologia cientiacutefica que apareceram na Igrejardquo525 mostrando deste modo quatildeo notaacutevel foi
sua influecircncia Esta tendecircncia hermenecircutica messiacircnica na Patriacutestica perdurou ateacute o advento da
escola alexandrina no iniacutecio do Seacuteculo III526
Deste modo de maneira incontestaacutevel podemos afirmar que o messianismo como
temaacutetica teoloacutegica tornou-se uma das contribuiccedilotildees mais importantes da histoacuteria da
religiosidade monoteiacutesta a niacutevel mundial tendo como seus baluartes intelectuais o cristianismo
(de forma maciccedila) e algumas correntes do judaiacutesmo Este ideaacuterio teoloacutegico ndash que se concentra
em um ou dois agentes527 de superaccedilatildeo da realidade sociorreligiosa ndash iniciou-se provavelmente
como algo inserido profundamente em ditames de teor poliacutetico passando posteriormente a ser
um princiacutepio orientativo para determinados seguimentos religiosos e acabou por se definir em
uma expectativaesperanccedila de caraacuteter excepcionalmente escatoloacutegico
Salientamos que a partir do desenvolvimento da ldquoideologiardquo messiacircnica houve uma
abrupta ruptura entre as suas duas principais correntes de aclamaccedilatildeo especialmente devido a
singularidade identitaacuteria do protagonista algo de imensa relevacircncia para ambos os lados Este
fato requerido e inegociaacutevel em sua espeacutecie tornou-se o ldquoatestadordquo do cumprimento profeacutetico
das exigecircncias teoloacutegicas que distinguiam especialmente a ldquoliteratura cristatilde primitivardquo528
Obviamente sabemos que estas ldquobalizasrdquo envolvem a pessoa de Jesus morador histoacuterico da
cidade de Nazareacute como sendo o autecircntico Ungido (MessiasCristo) prometido a Israel
Os passos a seguir nos conduziratildeo de maneira especiacutefica novamente ao pensamento
de Justino Sua compreensatildeo do escopo profeacutetico messiacircnico do Antigo Testamento torna-se a
523 ROWLAND In Cristo no Novo Testamento Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 493 grifo do autor
524 Aqui nos referimos a tese moderna do ldquojaacute e o ainda natildeordquo desenvolvida por Oscar Cullmann Ver
CULLMANN Salvation in History 1967
525 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 49
526 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
527 Ver SICRE De Davi ao Messias textos baacutesicos da esperanccedila messiacircnica 2000 p 342-343
528 ROWLAND In Cristo no Novo Testamento Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 492
122
partir de agora nosso alvo e objeto de anaacutelise Esse conjunto de fatos que exteriorizou a
revelaccedilatildeo Divina antes do advento do cristianismo como religiatildeo acabou por condicionar-se
entre outras coisas em um dos casos mais pertinentes da doutrina cristatilde em toda a sua histoacuteria
O Logos Palavra Verbo que encarnou na concepccedilatildeo cristatilde foi entendimento claramente como
o Messias prometido a Israel o qual toda a tradiccedilatildeo religiosa judaica (por seacuteculos) ainda
esperava poreacutem Justino junto aos seus (cristatildeos) jaacute o havia reconhecido e recebido como
Deus
42 AS PROFECIAS MESSIAcircNICAS NA VISAtildeO DE JUSTINO
Toda abordagem de Justino nesta temaacutetica possui um elevado grau de reconhecimento
especialmente devido agrave sua posiccedilatildeo Patriacutestica pois em Justino nos eacute possiacutevel afirmar que este
foi ldquoum dos primeiros autores cristatildeos a formular a exegese da presenccedila do Verbo-Messias na
Lei e nos profetasrdquo529 Esse reconhecimento se destaca por meio de um forte aparato
metodoloacutegico no qual a estruturaccedilatildeo escrituriacutestica do Apologista ganha ecircnfase Xavier salienta-
nos esta orientaccedilatildeo definindo-a como um proacutedigo ldquoponto cardealrdquo na temaacutetica do autor ldquosua
obra como um todo contribuiacute para explicar a feacute cristatilde baseada nas Escrituras como a fonte
suprema de autoridade cujas profecias podem ser compreendidas somente pela Graccedila de
Deusrdquo530
Ao analisarmos a I Apologia fica-nos evidente a relaccedilatildeo que Justino faz de forma
automaacutetica ou seja como uma consequecircncia procedimental do papel das Escrituras Sagradas
referente a manifestaccedilatildeo de Cristo como pessoa humana e como ministro das coisas celestiais
Aleacutem disso Justino contempla (reconhece) nas profecias toda a revelaccedilatildeo que Deus visou
apresentar aos Homens atraveacutes do Logos encarnado em Cristo Notamos que este
condicionamento oferecido por Justino acaba por se tornar desde cedo em sua anaacutelise profeacutetica
(do Antigo Testamento) algo absolutamente imperativo e imparcial para com o
desenvolvimento de sua perspectiva messiacircnica Na visatildeo do Apologista tudo o que eacute
legalmente oferecido e constituiacutedo em Cristo ldquorepousa nas profecias veterotestamentaacuterias e no
que ele chama de lsquomemoacuteriasrsquo dos apoacutestolos ou seja os evangelhos (JUSTINO I Apologia
LXVI 3)rdquo531
529 SIMONE In JUSTINO filoacutesofo e maacutertir Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 799
530 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 21
531 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 114
123
Neste contexto cabe-nos ressaltar esta importante fundamentaccedilatildeo do Texto Sagrado
como tambeacutem da Tradiccedilatildeo Apostoacutelica encontrada em Justino Estes alicerces da feacute cristatilde
significam e tem para Justino a funccedilatildeo de ldquobuacutessolardquo teoloacutegica a qual neste caso
especificamente sempre estaacute estabilizada na direccedilatildeo do ldquonorterdquo profeacutetico o qual sem exageros
podemos chamar de uma espeacutecie de ldquonorte messiacircnicordquo Isso porque sua interpretaccedilatildeo
(exegese) nasce de uma hermenecircutica claramente messiacircnica algo que notamos sempre de
forma niacutetida quando o Apologista aponta para a direccedilatildeo de tentar migrar agrave atenccedilatildeo ndash ou
poderiacuteamos dizer moldar o entendimento ndash de seus ouvintes para estes fatos (profecias
messiacircnicas) que possuiacuteam um teor incontestaacutevel na oacutetica do Apologista Indiscutivelmente
para Justino a ldquoprofecia eacute a prova maacuteximardquo532 eacute ldquoo ponto mais forte em relaccedilatildeo agrave veracidade
do cristianismordquo533
Algumas das passagens da I Apologia contribuem decisivamente para este conceito
Por exemplo quando Justino afirma ldquoDisso proveacutem nossa firmeza em aceitar seus
ensinamentos pois se manifesta realizado tudo quanto ele predisse que aconteceria Eis a obra
de Deus dizer as coisas antes que aconteccedilam e depois mostrar o acontecido tal qual ele foi
preditordquo534 Logo adiante no mesmo contexto o Apologista robustece ainda mais seu
raciociacutenio seguindo em uma de suas mais peculiares abordagens Justino claramente natildeo visa
um posicionamento maiecircutico535 nem busca uma manifestaccedilatildeo sofista para com o puacuteblico-alvo
de sua I Apologia Assim ele reafirma com zelo a determinaccedilatildeo de seu ideaacuterio de feacute
ldquoPoderiacuteamos terminar aqui o nosso discurso sem acrescentar mais nada considerando que
pedimos coisas justas e verdadeirasrdquo536
Neste trecho transparece-nos a ideia de que Justino reconhecia nas profecias algo de
elementar e misterioso que natildeo podia ser ocultado Para o Apologista estaacute expliacutecito que aquilo
que esta projeccedilatildeo Divina ndash de essecircncia clara devida e orientada segundo a obra do Espiacuterito
Santo ndash visava expressar ao conhecimento humano era o conteuacutedo filosoacutefico salviacutefico do Logos
que ldquoilumina toda alma de boa vontaderdquo537 fazendo com que as profecias da Antiga Alianccedila
532 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 23
533 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 114
534 JUSTINO I Apologia XII 10 grifo nosso
535 Maiecircutica (maimiddotecircumiddottimiddotca) grego maieutikeacute ciecircncia ou arte do parto Substantivo feminino Significa Uma das
formas pedagoacutegicas do processo socraacutetico a qual consiste em multiplicar as perguntas a fim de obter por induccedilatildeo
dos casos particulares e concretos um conceito geral do objeto em estudo Ver Dicionaacuterio Priberam da Liacutengua
Portuguesa Disponiacutevel em lthttpsdicionariopriberamorgmaiecircuticagt Acesso em 12 de mar 2019
536 JUSTINO I Apologia XII 11 grifo nosso
537 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 31
124
evidentemente conseguissem comunicar seu caraacuteter e estado superior o qual por ter-se
concretizado na manifestaccedilatildeo do Evangelho de Cristo atestava o cumprimento das Boas Novas
do Logos que os profetas (e tambeacutem os filoacutesofos538) haviam recebido no passado como um
sinal visiacutevel de que agrave Palavra Incriada visitaria plenamente aos homens Neste aspecto
podemos celebrar juntamente com Justino sua tentativa ordenada ndash e consequentemente loacutegica
ndash de aprumar a religiatildeo cristatilde neste cenaacuterio profeacutetico Sobre esta praacutetica Santos comenta o
seguinte
Em seu texto Justino parece revelar-nos que as profecias foram o que mais o
convenceram quanto agrave ldquoverdaderdquo do evangelho Se sua busca era encontrar Deus
(JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6) no cristianismo ele o encontrou a partir da
veracidade das profecias Elas eram a confirmaccedilatildeo de que o cristianismo era a
verdade que ele tanto procurava539
Quando se lecirc a I Apologia percebe-se que o contato de Justino com o Antigo
Testamento foi muito significativo algo que possivelmente foi ocasionado e fomentado por sua
relaccedilatildeo de proximidade na infacircncia e juventude com o ambiente judeu na cidade de Flaacutevia
Neaacutepolis mesmo que sua obra natildeo nos indique um ldquoconhecimento aprofundado do
judaiacutesmordquo540 do periacuteodo por parte de Justino
Contudo uma ordenaccedilatildeo de caraacuteter sadia ndash no sentido interpretativo ndash nos parece ter
surgido desde cedo na relaccedilatildeo analiacutetica de Justino para com as profecias veterotestamentaacuterios
Pode-se afirmar que os profetas e suas profecias lhe despertaram muito a consciecircncia e
provocaram grande reflexatildeo em Justino Dois outros aspectos chamam bastante a atenccedilatildeo
porque descrevem com consistecircncia a posiccedilatildeo hermenecircutica de Justino O primeiro estaacute
relacionado a sua defesa da ideia de que o Antigo Testamento retrata tipologicamente a Nova
Alianccedila O segundo eacute o conjunto messiacircnico desenvolvido na I Apologia541 algo que veremos
mais detalhadamente a seguir Voltando ao primeiro ponto a pesquisa de Xavier nos auxilia
significativamente pois consegue sintetizaacute-lo de forma ampla e coerente
538 Ver JUSTINO I Apologia XLIV 1-13
539 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 114
grifo nosso
540 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 83
541 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
125
No tratado ldquoContra Maacutercionrdquo refuta os ensinos deste que instigavam a crer em outro
deus maior do que o criador proferindo blasfecircmias e negando que o criador do
universo seja o Pai de Cristo Embora Marciatildeo fosse considerado cristatildeo ensinava
que o Antigo Testamento natildeo devia ser seguido pelos cristatildeos por ser muito diferente
dos ensinos de Cristo Os judeus por sua vez tambeacutem diziam que os cristatildeos
interpretavam mal o Antigo Testamento vendo nele a preparaccedilatildeo para a vinda de
Jesus Essas discussotildees propiciaram Justino a escrever ldquoDiaacutelogo com Trifatildeordquo onde
ele argumenta com o judeu Trifatildeo acerca da relaccedilatildeo entre a feacute cristatilde e o Antigo
Testamento utilizando-se de tipologias visando demonstrar como se interpreta o
Antigo Testamento afirmando que ldquo[] o Antigo Testamento aponta para Jesus
principalmente de dois modos mediante suas palavras profeacuteticas e mediante atos e
accedilotildees que satildeo lsquofigurasrsquo ou lsquotiposrsquo que tambeacutem apontam para Jesusrdquo A interpretaccedilatildeo
tipoloacutegica de Justino baseia-se nos proacuteprios fatos histoacutericos em particular nos fatos
da vida de Jesus542
Nesta posiccedilatildeo do exame cabe-nos recordar e ressaltar o caraacuteter fortemente
empiacuterico543 que se apresenta novamente no relato de nosso autor Este se sustenta de maneira
consideraacutevel pois eacute utilizado como um criteacuterio comprobatoacuterio da metodologia apologeacutetica de
Justino Como jaacute vimos anteriormente Justino natildeo era um empirista segundo o rigor que o
termo exige a partir do Seacuteculo XVII Entretanto o Apologista parece conduzir a concepccedilatildeo do
real a uma inevitaacutevel relaccedilatildeo entre teoria e praacutetica especialmente no caso do Logos profetizado
que se manifestou em Cristo Assim torna-se inevitaacutevel reconhecer que para Justino a Verdade
se manifestou no reconhecimento da experiecircncia do homem para com agrave profecia Divina
Algo que tambeacutem nos chama bastante atenccedilatildeo nesta cena eacute que este suposto meacutetodo
empirista que poderiacuteamos chamar de claacutessico544 parece ser mais atrelado agraves teorias aristoteacutelicas
do que platocircnicas545 devido agrave grande valorizaccedilatildeo do meacutetodo indutivo Desta forma vemos no
capiacutetulo XXX da I Apologista um conjunto que visa apontar elementos de teor comprobatoacuterio
Nesta porccedilatildeo encontramos a partir da visatildeo do Apologista a seguinte conceituaccedilatildeo
Apresentaremos pois a demonstraccedilatildeo natildeo dando feacute agravequeles que nos contam os fatos
mas crendo por necessidade naqueles que os profetizaram antes de acontecer da
forma que os vemos cumpridos ou que estatildeo se cumprindo diante dos nossos olhos
tal como foram profetizados demonstraccedilatildeo que acreditamos que pareceraacute a voacutes
mesmos a mais forte e a mais verdadeira546
542 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 19
543 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
544 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994
545 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
546 JUSTINO I Apologia XXX 1 grifo nosso
126
Algo de importacircncia singular em toda esta exposiccedilatildeo eacute o estabelecimento da ideia
como tambeacutem a percepccedilatildeo de um estado ativo de consciecircncia em Justino Para ele as profecias
veterotestamentaacuterias tecircm sua origem (entenda-se inspiraccedilatildeo) na terceira pessoa da Trindade547
O Espiacuterito Santo que Justino chama de ldquoEspiacuterito profeacuteticordquo548 aparece em seus registros como
Aquele que atua de forma proclamadora sendo o agente inspirador e formador no espiacuterito dos
profetas da Palavra a ser promulgada trazendo ao conhecimento de todos por meio desses
servos os eventos divinos que futuramente se revelariam Aqui vale-nos registrar que o
princiacutepio de pressaacutegio como algo que foi ajuizado para se revelar num tempo futuro possuiacutea
fundamental importacircncia nesta conceituaccedilatildeo Para Justino era imprescindiacutevel em sua
construccedilatildeo apologeacutetica salientar que as profecias foram registradas efetivamente antes de seu
cumprimento ou seja antes de terem se tornado fatos reais549
Neste contexto cabe-nos examinar duas passagens da I Apologia que promovem esta
ideia Sem desejarmos abordar de maneira direta qualquer outra ecircnfase teoloacutegica nestas
passagens ndash por exemplo aplicaccedilotildees escatoloacutegicas e outras ndash iremos apenas nos focar naquilo
que entendemos ser o grau de concordacircncia substancial oferecido e exigido por ambas as
porccedilotildees dentro de nossa temaacutetica A anaacutelise profeacutetica (interpretaccedilatildeo) do Apologista se
desenvolve desta forma
Entre os judeus houve profetas de Deus atraveacutes dos quais o Espiacuterito profeacutetico
anunciou antecipadamente os acontecimentos futuros e os reis que segundo os
tempos se sucederam entre os judeus apropriando-se de tais profecias guardaram-nas
cuidadosamente tal como foram ditas e tal como os proacuteprios profetas as consignaram
em seus livros escritos em sua proacutepria liacutengua hebraica [] E de novo o mesmo
profeta Isaiacuteas inspirado pelo Espiacuterito profeacutetico disse [hellip]rdquo550
De forma emblemaacutetica vemos na apresentaccedilatildeo de Justino relacionada ao proacuteprio
Cristo Logos Messias o ponto elementar e essencial para a interpretaccedilatildeo da revelaccedilatildeo profeacutetica
do Antigo Testamento uma vez que o conhecimento transcendental relacionado agrave pessoa de
547 Justino coordena com certa razoabilidade em seus escritos a descriccedilatildeo das Trecircs Pessoas Divinas utilizando-se
especialmente para isso de foacutermulas obtidas dos ritos de batismo e eucaristia Suas referecircncias ao Espiacuterito Santo
aparecem com normalidade em suas obras embora Justino natildeo seja absolutamente claro acerca da relaccedilatildeo entre as
funccedilotildees do Espiacuterito e as do Logos em algumas passagens Entretanto eacute niacutetido que o Apologista considerava que
estes (Pai Logos e Espiacuterito) eram realmente pessoas distintas Ver JUSTINO I Apologia LXI 3-12 KELLY
Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 75
548 JUSTINO I Apologia VI 2
549 JUSTINO I Apologia XII 9-10
550 JUSTINO I Apologia XXXI 1 XXXV 3a grifo nosso
127
Jesus manifestava a sua proacutepria natureza ministerial ou seja revelava o Messias prometido a
Israel Em um contexto que aborda sobre Moiseacutes e as profecias messiacircnicas Justino eacute
categoacuterico em afirmar ldquoateacute agrave apariccedilatildeo de Jesus Cristo nosso Mestre e interprete das profecias
desconhecidas tal como foi de antematildeo dito pelo Espiacuterito Santo profeacutetico por meio de Moiseacutes
que natildeo faltaria priacutencipe dos judeus ateacute aquele para o qual estaacute reservada a realezardquo551
Nesta mesma abordagem torna-se importante fazer uma observaccedilatildeo quanto agrave
excepcional erudiccedilatildeo apresentada por Justino O Apologista fomenta uma impecaacutevel exegese
de caracteriacutestica e ordenamento dogmaacutetico algo que explica as peculiaridades do autor e seu
meio intelectual (Patriacutestico)552 distinccedilatildeo que tambeacutem pode ser detectada em sua apresentaccedilatildeo
de caraacuteter expositivo dos textos biacuteblicos utilizados553 Santos contribui decisivamente na
construccedilatildeo deste realce
Mas ele mesmo se mostra um exiacutemio exegeta ao enumerar e manusear as profecias
tanto do Antigo Testamento quanto as do Novo Testamento Justino as interpreta as
explica as esclarece revela a que se referem com uma forte argumentaccedilatildeo Haacute
algumas incoerecircncias em suas interpretaccedilotildees poreacutem estas satildeo frutos das boas
intenccedilotildees em demonstrar o quanto as profecias comprovam a superioridade da feacute dos
cristatildeos554
Notamos portanto que Justino representa mais do que uma ideia destacadamente ele
representa a continuidade de uma fiel relaccedilatildeo entre a profecia aplicada no passado e a
orquestraccedilatildeo de seu estabelecimento no presente555 Este presente que agora estaacute sob o efeito
daacute ldquotransformaccedilatildeo completa do conceito da filosofiardquo556 passa a ser entendido como um estado
contiacutenuo que invade e preenche o futuro com sua proclamaccedilatildeo por ser fidedignamente um
retrato do dogma cristoloacutegico557 ecircnfase que acaba por cristalizar-se a ponto de ser possiacutevel se
afirmar que ldquoJustino foi o primeiro verdadeiro teoacutelogo a formular uma teologia da histoacuteria
551 JUSTINO I Apologia XXXII 2b
552 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
553 HALL Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja 2003
554 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 114-
115
555 HALL Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja 2003
556 Para Boehner e Gilson agrave filosofia grega como ciecircncia entendida a eacutepoca passa para os cristatildeos o controle
histoacuterico de seus atos a partir da Era dos Pais Apologista sendo Justino o elemento decisivo para que ocorresse
esse fenocircmeno cultural Ver BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 28
557 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
128
cristocecircntricardquo558 Deste modo finalizamos este item com o pensamento de Walde Neste
vemos com clareza que no conceito de Justino a figura humana de Jesus Cristo era literalmente
a manifestaccedilatildeo do que poderia ser considerado ldquoprofecias cumpridasrdquo559
Adicionado a esta leitura apresentamos a partir de agora o exame de um dos elementos
teoloacutegicos mais caros ao cristianismo Este singelo criteacuterio nos conduziraacute ao cliacutemax daquilo que
Justino visava comunicar por meio do processo de revelaccedilatildeo contido nas profecias do Antigo
Testamento Deste modo iniciamos a parte final desta pesquisa O item seguinte iraacute
complementar o atual e finalizar este capiacutetulo com uma anaacutelise sobre o cumprimento profeacutetico
da Primeira Alianccedila sendo esse processo o grande resultado que para Justino equivale agrave
apropriaccedilatildeo da Verdade como uma definiccedilatildeo real sobre a vida e os acontecimentos humanos
pois para Justino isso prova de maneira definitiva que a Verdade estaacute com o cristianismo Essa
evidecircncia indubitaacutevel para o Apologista eacute a encarnaccedilatildeo de Cristo
43 A ENCARNACcedilAtildeO DO LOGOS APOGEU DA REVELACcedilAtildeO
Iniciamos este item citando a Walde que eacute emblemaacutetico ao se utilizar do pensamento
de Schaff quando procura introduzir em sua pesquisa um conjunto de mediadas loacutegicas que
parecem visar o estabelecimento de uma proposta a teologia de Justino Walde buscando de
maneira clara estabelecer um rigor de orientaccedilatildeo para causas que ele considera balizares
apresenta-nos mediante um meacutetodo a priori560 seu entendimento de que para Justino haacute uma
consequecircncia ndash dando-nos a impressatildeo de que este evento eacute o grau maacuteximo possiacutevel para o
caso ndash causal para aquilo que a humanidade testificou sobre a accedilatildeo salviacutefica de Deus Deste
modo Walde conjectura sobre a ideia de Schaff e nos afirma que ldquolsquoo cristianismo eacute a alta
razatildeorsquo para Justino lsquoO Logos eacute a razatildeo preacute-existente absoluta pessoal e Cristo eacute a encarnaccedilatildeo
dele o Logos encarnadorsquordquo561
Eacute oportuno aqui apresentarmos um resumo de alguns pontos essenciais jaacute
desenvolvidos em nossa pesquisa principalmente na questatildeo que envolve o conceito do Logos
em Justino poreacutem agora focado no dogma da encarnaccedilatildeo de Jesus Cristo
558 SIMONE In JUSTINO filoacutesofo e maacutertir Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 799
559 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
560 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
561 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 723
apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5 grifo nosso
129
Desta maneira optamos por comeccedilar esta reapresentaccedilatildeo de uma forma mais geneacuterica
onde a explanaccedilatildeo de Dreher contribui de maneira significativa Ele escreve ldquoO cristianismo
segundo Justino natildeo soacute eacute a mais antiga como tambeacutem a religiatildeo mais natural e praacuteticardquo562
Trata-se de uma harmoniosa relaccedilatildeo entre estado e forma ou talvez entre causa e efeito O
cristianismo como corpo (uma coletividade organizada) passa a ser o efeito seleto de uma
substacircncia (Logos) que eacute perfeita e sublime na concepccedilatildeo de Justino563 O mesmo sentido
conseguimos captar em Dreher que apresenta a seguinte definiccedilatildeo a respeito do ideaacuterio
apologeacutetico do Seacuteculo II
Toda a histoacuteria em uacuteltima anaacutelise se desenrola em direccedilatildeo ao cristianismo Homens
como Heraacuteclito e Soacutecrates foram inspirados pelo Logos divino bem como os
precursores do cristianismo Abraatildeo Elias e outros profetas Judeus Em Cristo toda a
filosofia chega agrave perfeiccedilatildeo564
Novamente algo bem condensado nos aparece junto aos comentaacuterios feitos a respeito
do Logos especialmente no que se refere aquilo ou aqueles que envolviam o ambiente
sociorreligioso de Justino ndash lugar de sua conceituaccedilatildeo por excelecircncia O cenaacuterio cultural
descrito conduz (de maneira linear) o tema a uma nova anaacutelise temporal devido ao forte teor
teoloacutegico que possuiacutea Esta mensagem reorientada (o Logos que tornou-se Homem) por Justino
afirmava que tudo o que um dia foi profetizado por um povo estrangeiro ndash considerado de
cultura ldquoestranha e inferiorrdquo a realidade do mundo greco-romano ndash a partir de agora os conduzia
a Verdade e isso de forma antroacutepica por meio de uma ideia um tanto quanto exoacutetica (absurda)
para esse meio cultural Esse novo conceito afirma que um ser excelso (divino) tinha se tornado
um ser humano ou seja que ele havia encarnado
Na mesma linha de Dreher Wachholz se pronuncia de forma muito similar ele
escreve ldquoPara Justino o cristianismo eacute a religiatildeo mais antiga pois foi preparada pelo Logos
como se evidecircncia nos profetas e no pensamento grego Em Cristo a filosofia chega agrave plenitude
Mais do que isso toda a histoacuteria se desenvolve na direccedilatildeo do cristianismordquo565 Desta maneira
a transmissatildeo dessa ideia acaba por ganhar um teor imperativo em sua implicaccedilatildeo pois nesse
ponto (encarnaccedilatildeo do Logos) a leitura que compreendemos ter havido por parte de Justino
562 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47
563 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991
564 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47 grifo nosso
565 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 61 grifo nosso
130
referente agrave Primeira Alianccedila comeccedila a apresentar de maneira elaborada seu ente e
consequentemente a este sua essecircncia Seu ente eacute Jesus Cristo (o Homem) sua essecircncia eacute
Logos566
Deste modo manifesta-se algo profundo na construccedilatildeo e postura de Justino quando
ele passa a atribuir (mesmo que de forma implicitamente) agrave encarnaccedilatildeo de Cristo toda a
eficiecircncia necessaacuteria para o pleno cumprimento das profecias do passado Notamos que na
opiniatildeo do Apologista as questotildees referentes a libertaccedilatildeo do homem de sua ignoracircncia e das
accedilotildees demoniacuteacas que o escravizam ndash assunto que eacute amplamente tratado na I Apologia567 ndash
acabam por exercer relevante importacircncia no cenaacuterio humano de forma geral porque estas
mazelas espirituais dominam e vituperam o ser humano aprisionando-o por meio de sofismas
e de falsos exames da verdadeira realidade histoacuterica Esse ponto eacute realmente relevante quando
tratamos sobre o pensamento de Justino pois ele entendia de maneira praacutetica568 que os
democircnios possuiacuteam uma missatildeo ordinaacuteria de ldquoreduzir os homens a escravos e assistentes
seusrdquo569
A ligaccedilatildeo entre a feacute cristatilde e a filosofia grega natildeo se faz sem conflitos570 e natildeo eacute uma
questatildeo de menor impacto no periacuteodo do Seacuteculo II No que cabe a delimitaccedilatildeo deste estudo o
comentaacuterio de Gonzaacutelez a respeito do Tratado de Taciano571 retrata esse conflito de visotildees que
cercava o avanccedilo do Evangelho em meio a cultura helecircnica do periacuteodo Este registro traz
importante contribuiccedilatildeo ao nosso raciociacutenio Gonzaacutelez diz
Tudo o que a haacute de valioso entre os gregos ndash prossegue Taciano ndash eles o tomaram dos
baacuterbaros Assim por exemplo a astronomia aprenderam dos babilocircnios a geometria
dos egiacutepcios e a escrita dos feniacutecios E o mesmo pode se dizer acerca da filosofia e da
religiatildeo pois os escritos de Moiseacutes satildeo muito mais antigos que os de Platatildeo e ateacute mais
antigos que os de Homero Se Homero e Platatildeo realmente eram pessoas cultas
segundo os proacuteprios gregos dizem era de se supor que conhecessem os escritos de
Moiseacutes Portanto qualquer coincidecircncia entre a cultura supostamente grega e a
religiatildeo dos ldquobaacuterbarosrdquo hebreus e cristatildeos deve-se a que os gregos aprenderam sua
sabedoria dos baacuterbaros Mas em todo caso o certo eacute que os gregos ao lerem a
566 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991
567 JUSTINO I Apologia V 1-4 IX 1 X 6
568 JUSTINO I Apologia XIV 1
569 SIMONE In JUSTINO filoacutesofo e maacutertir Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 799
570 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
571 O escrito chama-se de Discurso aos Gregos composto por Taciano o mais famoso entre os disciacutepulos de
Justino Esta obra reconhecidamente representa um ataque frontal contra tudo que os gregos consideravam
valioso em seu exerciacutecio da racionalidade especialmente naquilo que constituiacutea as bases de sua metafisica O
escrito de caraacuteter apologeacutetico tambeacutem se salienta pela defesa dos chamados ldquobaacuterbarosrdquo isto eacute dos cristatildeos Ver
GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 89
131
sabedoria dos ldquobaacuterbarosrdquo natildeo a entenderam e portanto adulteraram a verdade que os
hebreus conheciam Portanto a suposta sabedoria grega natildeo eacute senatildeo um paacutelido reflexo
e uma caricatura da verdade que Moiseacutes conheceu e que os cristatildeos agora pregam572
Um fator nesta conjuntura que apresenta caracteriacutesticas agudas estaacute na apropriaccedilatildeo de
que agrave ldquosabedoriardquo (como sendo o grande fundo de conhecimento) proveniente da filosofia e
toda ou qualquer outra forma de conhecimento humano considerado como elevado para a
concepccedilatildeo da eacutepoca usava de bases ontoloacutegicas em sua refutaccedilatildeo dos elementos vitais
apresentados pela feacute cristatilde que estava em pleno estabelecimento e curso de seu exerciacutecio
naquele ambiente gentiacutelico573
O ministeacuterio a morte e especialmente a ressurreiccedilatildeo de Cristo574 causavam natildeo apenas
estranheza mas tambeacutem incocircmodo a classe intelectual dominante O testemunho de Paulo nos
apresenta uma fraccedilatildeo dessa realidade cultural O Apoacutestolo desenvolve uma definiccedilatildeo
figurativa mas nada ilusoacuteria desta realidade e de sua reaccedilatildeo para com a nova mensagem que
surgia Ele escreve ldquoPorque tanto os judeus pedem sinais como os gregos buscam sabedoria
mas noacutes pregamos a Cristo crucificado escacircndalo para os judeus loucura para os gentiosrdquo (1
Co 122-23) Neste contexto Paulo afirma que os ldquogregos insistiam em explicaccedilotildees racionais e
buscavam sistemas especulativosrdquo575 Um procedimento de harmonizaccedilatildeo que facilmente
condicionava a si exigecircncias de que ldquoDeus se revelasse em harmonia com as suas ideias em
particularrdquo576
Portanto atraveacutes dos relatos registrados acima podemos afirmar que uma espeacutecie de
ldquomonopoacutelio do saberrdquo procurava se manter vigorosamente ativo Este cenaacuterio histoacuterico foi o
mesmo em que Justino teve que apresentar sua mensagem apologeacutetica afirmando que Aquele
ao qual representava simbolizava a plena afirmaccedilatildeo de uma loacutegica da ordenaccedilatildeo Divina entre
os homens Isso se concretiza em suas obras especialmente na I Apologia quando afirma ndash de
uma forma praticamente sistemaacutetica ndash que as profecias do Antigo Testamento se cumpriram na
encarnaccedilatildeo do Logos A obra de Gonzaacutelez nos auxilia na compreensatildeo desta loacutegica orientada e
proposta por Justino
572 TACIANO Discurso Contra os Gregos apud GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 89
573 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 88
574 Ver Atos dos Apoacutestolos 1718-32
575 METZ In A Primeira Epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006 p 253 grifo do
autor
576 METZ In A Primeira Epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006 p 254
132
Segundo os filoacutesofos gregos tudo o que nossa mente consegue compreender o faz
porquecirc de algum modo participa do ldquologosrdquo ou razatildeo universal Por exemplo se
podemos compreender que dois e dois satildeo quatro isso se deve ao fato de que tanto
em nossa mente como no universo existe um ldquologosrdquo uma razatildeo ou ordem segundo
o qual dois e dois satildeo quatro Ora o que os cristatildeos creem eacute que em Jesus Cristo esse
logos ndash e esta eacute a palavra que aparece no proacutelogo do Quarto Evangelho ndash se fez carne
O que Joatildeo 114 nos diz eacute que a razatildeo fundamental do universo o verbo ou palavra
(logos) de Deus se fez carne em Jesus Cristo577
Nesse ambiente tatildeo carregado de ordenamentos filosoacuteficos e por conseguinte tambeacutem
teoloacutegicos nasce uma interrogaccedilatildeo de acentuada relevacircncia ldquoMas por que esta interpretaccedilatildeo
sobre Jesus deve ser acreditadardquo578 Como premissa seria interessante (ou necessaacuterio)
providenciar uma soluccedilatildeo para esta demanda partindo do que podemos encontrar no proacuteprio
autor (Justino)
Assim o Apologista comeccedila a nos responder este ponto que poderia ser interpretada
como repetitiva eou ateacute mesmo ldquotrivialrdquo para com o contexto filosoacutefico e teoloacutegico moderno
Contudo esta questatildeo parece ter sido solucionada de forma amplamente criativa e inovadora
para com aquele contexto sociorreligioso Justino responde essa pergunta de caraacuteter entranhaacutevel
ndash figadal para alguns ouvintes espirituosa para outros ndash dizendo ldquoos homens poderiam
considerar incriacutevel e impossiacutevel de acontecer Deus o indicou antecipadamente por meio do
Espiacuterito profeacutetico para que quando acontecesse natildeo lhe fosse negada a feacute e sim justamente
por ter sido predito fosse acreditadordquo579
Entretanto cabe-nos realocar Walde nesta construccedilatildeo conceitual (a pergunta acima eacute
de sua autoria) Ele nos propotildee duas razoaacuteveis respostas na tentativa de concretizar sua ideia
tendo como base o que pode ser considerado um resultado ordenado na tentativa de tornar a
mensagem de Justino plausiacutevel A primeira baseia-se direta e integralmente em uma citaccedilatildeo da
I Apologia Walde vecirc com consideraacutevel eficiecircncia nas palavras de Justino580 uma opccedilatildeo
admissiacutevel para emoldurar essa questatildeo Importante tambeacutem eacute entendermos que no contexto
daquela eacutepoca (e igualmente na atualidade) em questotildees que envolviam a aplicaccedilatildeo de algumas
proposiccedilotildees natildeo bastava ser diretivo era necessaacuterio ser consequente Desta forma o autor
inicia a resposta agrave sua pergunta citando o Apologista581
577 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 92 grifo nosso
578 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
579 JUSTINO I Apologia XXXIII 2
580 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
581 Ver JUSTINO I Apologia XXXI 7-8
133
Nos livros dos profetas jaacute encontramos anunciado que Jesus nosso Cristo deveria vir
nascido de uma virgem que ele chegaria agrave idade adulta curaria toda doenccedila toda
fraqueza e ressuscitaria dos mortos que seria invejado desconhecido e crucificado
que morreria ressuscitaria e subiria aos ceacuteus que ele eacute e se chama Filho de Deus que
ele enviaria alguns para proclamar essas coisas a todo o gecircnero humano e seriam os
homens das naccedilotildees aqueles que mais creriam nelerdquo E essas profecias foram feitas
umas cinco outras trecircs outras dois mil e outras mil e oitocentos anos antes que ele
aparecesse no mundo Com efeito eacute sabido que os profetas se sucederam uns aos
outros de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo582
A segunda resposta de Walde se orienta atraveacutes de uma questatildeo cultural que tambeacutem
possui uma importante relevacircncia neste cenaacuterio ldquoNatildeo soacute foi o cumprimento da profecia notaacutevel
em si mesmo mas tambeacutem foi significante que tais profecias foram feitas muito antes dos
filoacutesofos gregos pois diferente de hoje a antiguidade era importante para a mentalidade grega
em estabelecer uma crenccedilardquo583 Cabe-nos registrar que nesse enlace a pesquisa biacuteblica teoloacutegica
poderia apontar datas posteriores (ao periacuteodo da Filosofia Claacutessica) para a promulgaccedilatildeo dessas
Palavras Profeacuteticas (Messiacircnicas) aleacutem de debater se os ldquotextos satildeo autecircnticosrdquo584 no entanto
lembramos que nosso alvo em anaacutelise estaacute centrado na pessoa de Justino o qual sem nenhuma
duacutevida eacute um dos pioneiros da interpretaccedilatildeo de caraacuteter expositivo e natildeo cientiacutefico meacutetodo (por
assim chamar) reconhecidamente usual no periacuteodo Patriacutestico ateacute o Seacuteculo V585 Deste modo
para Justino natildeo havia duacutevidas as profecias satildeo anteriores aos filoacutesofos
Na busca de um resultado mais qualificado para esta pesquisa entendemos que uma
anaacutelise mais pormenorizada da I Apologia ainda se faz necessaacuteria em pelo menos um quesito
O cenaacuterio no qual a I Apologia foi escrita expunha necessidades claras de se apresentar
evidecircncias fortes na tentativa de se estabelecer o status necessaacuterio as provas que visavam
atestar o cumprimento das profecias messiacircnicas na existecircncia futura (encarnaccedilatildeo) de Cristo
Nunca podemos esquecer que para Justino de forma primordial o cristianismo se estabelecia
em um esquema com propriedades ldquomorfoloacutegicasrdquo pois este era mais que um sistema ndash como
configurado em escolas filosoacuteficas ndash ele era essencialmente ldquouma pessoa o Verbo encarnado
e crucificado em Jesus que lhe revelou o misteacuterio de Deusrdquo586 Para Justino questotildees factiacuteveis
parecem ser importantes ou ateacute mesmo fundamentais no programa que ele visava representar
582 JUSTINO I Apologia XXXI 7-8
583 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
584 ROumlSEL Panorama do Antigo Testamento histoacuteria contexto e teologiacutea 2009 p 95
585 HALL Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja 2003
586 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 152 grifo nosso
134
de forma minuciosa Sendo assim vemos em sua construccedilatildeo apologeacutetica um claro objetivo de
desenvolvimento daquilo que ele desejava provar por meio de suas palavras
Eacute portanto necessaacuterio apresentar detalhadamente as citaccedilotildees que salientam a
encarnaccedilatildeo de Cristo na visatildeo de Justino O esquema abaixo baseia-se nas obras de Frangiotti587
e Santos588 os quais retratam em seus trabalhos esta conexatildeo exegeacutetica existente em Justino
Neste esquema conseguimos visualizar com significativa clareza (de maneira ateacute mesmo
didaacutetica) a notaacutevel relaccedilatildeo dos textos da I Apologia com os textos do Antigo Testamento que
para Justino antecipam a encarnaccedilatildeo de Cristo Segundo a obra do Apologista a realizaccedilatildeo das
Palavras preditas pelos profetas de Israel constitui a conexatildeo com o Logos tornado carne e
concretiza um dos pontos elementares da accedilatildeo de Deus em meio aos homens Partindo da I
Apologia em paralelo com a Primeira Alianccedila vemos
I Apologia Antigo Testamento
Moiseacutes que foi o primeiro dos profetas
disse literalmente ldquoNatildeo faltaraacute priacutencipe
de Judaacute nem chefe saiacutedo de seus
muacutesculos ateacute que venha aquele a quem
estaacute reservado Ele seraacute a esperanccedila das
naccedilotildees amarrando seu jumentinho agrave
vinha e lavando sua roupa no sangue da
uvardquo (JUSTINO I Apologia XXXII 1)
ldquoNatildeo faltaraacute priacutencipe de Judaacute nem mesmo um
chefe de suas entranhas ateacute que venha aquilo
que estaacute guardado para ele ele eacute a expectativa
dos povos Ele amarraraacute seu jumentinho agrave
vinha e o filhote do seu jumento ao ramo ele
lavaraacute sua veste em vinho e o seu manto no
sangue das uvasrdquo589 Gecircnesis 4910-11
E Isaiacuteas outro profeta diz a mesma coisa
com outras palavras ldquoLevantar-se-aacute uma
estrela de Jacoacute e uma flor subiraacute da raiz
de Isaiacute e as naccedilotildees esperaram sobre o seu
braccedilordquo (JUSTINO I Apologia XXXII
12a)
ldquoLevantar-se-aacute um broto da raiz de Jesseacute e um
renovo subiraacute desta raiz [] Naquele dia
haveraacute a raiz de Jesseacute que se levanta para
587 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 24-26
588 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 115-
117
589 No original ldquoοὐκ ἐκλείψει ἄρχων ἐξ Ιουδα καὶ ἡγούμενος ἐκ τῶν μηρῶν αὐτοῦ ἕως ἂν ἔλθῃ τὰ ἀποκείμενα αὐτῷ
καὶ αὐτὸς προσδοκία ἐθνῶν δεσμεύων πρὸς ἄμπελον τὸν πῶλον αὐτοῦ καὶ τῇ ἕλικι τὸν πῶλον τῆς ὄνου αὐτοῦ πλυνεῖ
ἐν οἴνῳ τὴν στολὴν αὐτοῦ καὶ ἐν αἵματι σταφυλῆς τὴν περιβολὴν αὐτοῦrdquo
135
governar as naccedilotildees nele esperaratildeo as naccedilotildees
e seu repouso seraacute gloriosordquo590 Isaiacuteas 11110
Escutai agora como foi literalmente
profetizado por Isaiacuteas que Cristo seria
concebido por uma virgem Ele diz o
seguinte ldquoEis que uma virgem conceberaacute
e daraacute agrave luz um filho e lhe poratildeo o nome
Deus conoscordquo (JUSTINO I Apologia
XXXIII 1)
ldquoPor causa disto o proacuteprio Senhor vos daraacute
um sinal eis que a virgem conceberaacute e daraacute agrave
luz um filho e tu lhe daraacutes o nome de
Emanuelrdquo591 Isaiacuteas 714
Escutai agora como Miqueacuteias outro
profeta predisse o lugar da terra em que
ele nasceria Assim diz ldquoE tu Beleacutem terra
de Judaacute de modo algum eacutes a menor entre
os priacutencipes de Judaacute pois de ti sairaacute o
chefe que apascentaraacute o meu povordquo
(JUSTINO I Apologia XXXIV 1)
ldquoE tu Beleacutem casa de Efrata eacutes insignificante
em tua existecircncia entre os milhares de Judaacute
poreacutem em teu meio se levantaraacute aquele que
seraacute governante em Israel Tambeacutem as
origens dele satildeo desde o princiacutepio desde os
tempos eternosrdquo592 Miqueacuteias 51
Tambeacutem foi predito que Cristo depois de
nascer viveria oculto aos outros homens
ateacute agrave idade adulta Escutai o que foi dito
antecipadamente a esse respeito Eacute o
seguinte ldquoUm menino nasceu um
pequenino nos foi dado cujo impeacuterio estaacute
sobre os ombrosrdquo ( JUSTINO I Apologia
XXXV 1-2a)
ldquoPorque um menino vos nasceu e um filho vos
foi dado o qual recebeu o governo sobre os
seus ombros E ele seraacute chamado de
Mensageiro do Magniacutefico Conselho pois eu
trarei paz sobre os priacutencipes e sauacutede para
elerdquo593 Isaiacuteas 95
590 No original ldquoκαὶ ἐξελεύσεται ῥάβδος ἐκ τῆς ῥίζης Ιεσσαι καὶ ἄνθος ἐκ τῆς ῥίζης ἀναβήσεται [] καὶ ἔσται ἐν
τῇ ἡμέρᾳ ἐκείνῃ ἡ ῥίζα τοῦ Ιεσσαι καὶ ὁ ἀνιστάμενος ἄρχειν ἐθνῶν ἐπrsquo αὐτῷ ἔθνη ἐλπιοῦσιν καὶ ἔσται ἡ ἀνάπαυσις
αὐτοῦ τιμήrdquo
591 No original ldquoδιὰ τοῦτο δώσει κύριος αὐτὸς ὑμῖν σημεῖον ἰδοὺ ἡ παρθένος ἐν γαστρὶ ἕξει καὶ τέξεται υἱόν καὶ
καλέσεις τὸ ὄνομα αὐτοῦ Εμμανουηλrdquo
592 No original ldquoκαὶ σύ Βηθλεεμ οἶκος τοῦ Εφραθα ὀλιγοστὸς εἶ τοῦ εἶναι ἐν χιλιάσιν Ιουδα ἐκ σοῦ μοι ἐξελεύσεται
τοῦ εἶναι εἰς ἄρχοντα ἐν τῷ Ισραηλ καὶ αἱ ἔξοδοι αὐτοῦ ἀπrsquo ἀρχῆς ἐξ ἡμερῶν αἰῶνοςrdquo
593 No original ldquoὅτι παιδίον ἐγεννήθη ἡμῖν υἱὸς καὶ ἐδόθη ἡμῖν οὗ ἡ ἀρχὴ ἐγενήθη ἐπὶ τοῦ ὤμου αὐτοῦ καὶ καλεῖται
τὸ ὄνομα αὐτοῦ μεγάλης βουλῆς ἄγγελος ἐγὼ γὰρ ἄξω εἰρήνην ἐπὶ τοὺς ἄρχοντας εἰρήνην καὶ ὑγίειαν αὐτῷrdquo
136
E outra vez por meio de outro profeta diz
com outras palavras ldquoEles transpassaram
meus peacutes e minhas matildeos e lanccedilaram sorte
sobre a minha roupardquo (JUSTINO I
Apologia XXXV 5)
ldquoPois muitos catildees me cercaram a assembleia
dos perversos me rodeia traspassaram as
minhas matildeos e os meus peacutes [] Repartiram
entre si as minhas vestes e sobre o meu traje
lanccedilaram sortesrdquo594 Salmos 211719
Citamos tambeacutem a profecia de outro
profeta Sofonias595 que literalmente
profetizou que ele montaria sobre um
jumentinho e desse modo entraria em
Jerusaleacutem Satildeo estas as suas palavras
ldquoAlegra-te muito filha de Siatildeo daacute gritos
filha de Jerusaleacutem Eis que o teu rei vem a
ti manso montado sobre um jumento
sobre um jumentinho filho de um animal
de jugordquo (JUSTINO I Apologia XXXV
10-11)
ldquoRegozija-te muito Filha de Siatildeo proclama
Filha de Jerusaleacutem Eis que o teu rei vem a ti
ele eacute justo e salvador Ele eacute humilde e estaacute
montado sobre um jumentinho um asno
novordquo596 Zacarias 99
Em suma podemos afirmar que em Justino encontra-se uma salutar e liacutempida
cristologia messiacircnica baseada consistentemente no Antigo Testamento597 De maneira
objetiva a descriccedilatildeo que conseguimos desenvolver a partir do texto de Justino nos aponta para
uma consistente elaboraccedilatildeo no qual alguns detalhes de caraacuteter terminante (irrevogaacuteveis)
quanto a funccedilatildeo de serem utilizados como conceitos primazes ndash na tentativa de estabelecer
princiacutepios e valores fundantes ndash se evidenciam por parte e a partir dos apontamentos de caraacuteter
particular que Justino faz agrave pessoa de Jesus Cristo (especialmente na I Apologia) Sem exageros
eacute possiacutevel agregarmos a esta organizaccedilatildeo textual a intenccedilatildeo de apresentar uma proposta de
constituiccedilatildeo messiacircnica segundo um modelo cristoloacutegico em desenvolvimento o qual seguia
594 No original ldquoὅτι ἐκύκλωσάν με κύνες πολλοί συναγωγὴ πονηρευομένων περιέσχον με ὤρυξαν χεῖράς μου καὶ
πόδας [] διεμερίσαντο τὰ ἱμάτιά μου ἑαυτοῖς καὶ ἐπὶ τὸν ἱματισμόν μου ἔβαλον κλῆρονrdquo
595 O Profeta aqui mencionado deveria ser Zacarias e natildeo Sofonias O equiacutevoco possivelmente natildeo eacute do tradutor
mas sim de Justino No texto grego temos σοφονιανSofonian
596 No original ldquoχαῖρε σφόδρα θύγατερ Σιων κήρυσσε θύγατερ Ιερουσαλημ ἰδοὺ ὁ βασιλεύς σου ἔρχεταί σοι δίκαιος
καὶ σῴζων αὐτός πραῢς καὶ ἐπιβεβηκὼς ἐπὶ ὑποζύγιον καὶ πῶλον νέονrdquo
597 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
137
de perto a ortodoxia da eacutepoca que jaacute estava sofrendo inuacutemeros ataques de acircmbito interno e
externo598
Natildeo haacute consenso de que Justino tenha inaugurado esse meacutetodo exegeacutetico599 mas sem
duacutevida eacute um dos que melhor conseguiu contribuir para o desenvolvimento desta temaacutetica na
histoacuteria da teologia dogmaacutetica600 Neste contexto em particular o Apologista passou a ser visto
como um claro orientador eou catalisador dos pressupostos existentes na filosofia grega Ele eacute
o primeiro a conceber o Logos como uma evidecircncia viaacutevel para uma siacutentese teoacuterica
possibilitando deste modo seu envolvimento no cristianismo Essa participaccedilatildeo intelectual
indiscutivelmente se destaca em sua autenticidade autoral a ponto de podermos dizer que
Justino foi o responsaacutevel por lanccedilar ldquoos fundamentos de um humanismo cristatildeordquo601
Este estudo evidenciou o apreccedilo e o temor de Justino pelas Sagradas Escrituras Sua
abordagem leitura e registro das profecias veterotestamentaacuterias constituem um quadro de
profunda responsabilidade e sobriedade por parte do Apologista especialmente naquilo que se
refere agrave descriccedilatildeo e aplicaccedilatildeo de seu conceito sobre o que seria a Verdade sempre focando esse
fim como um resultado da revelaccedilatildeo escrituriacutestica Nesse ponto em especiacutefico a ponderaccedilatildeo de
Xavier nos oferece generosa lucidez ldquosua obra como um todo contribui para explicar a feacute cristatilde
baseada nas Escrituras como a fonte suprema de autoridade cujas profecias podem ser
compreendidas somente pela Graccedila de Deusrdquo602
Por uacuteltimo ainda devemos adotar uma postura clara e objetiva junto a este processo
que em si traz elementos fortemente interpretativos Assim salientamos que na concepccedilatildeo de
Justino era fundamental que o procedimento exegeacutetico de um cristatildeo sempre orientasse seus
leitoresouvintesmeditantes a conhecer e descobrir agrave Verdade O acontecimento que expressava
de forma incondicional que a revelaccedilatildeo Divina se realizou concretiza-se de maneira simples
nos elementos (profecias) que provam que o Logos encarnou603 Estes relatos profeacuteticos
apresentavam as condiccedilotildees ideais tornando-se assim em fatos irrefutaacuteveis para aqueles que
598 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
599 Para Daniel-Rops Justino utiliza-se do meacutetodo de interpretaccedilatildeo jaacute encontrado em Fiacutelon de Alexandria Nesse
processo partia-se do sentido concreto e histoacuterico do relato (biacuteblico) passando a seguir a busca de se obter
(alcanccedilardescobrir) uma explicaccedilatildeo de espeacutecie simboacutelica existente (implicitamente) nos Textos Sagrados Deste
modo essa ldquodescobertardquo de caraacuteter esoteacuterico tornava-se o objetivo uacuteltimo (principal) a ser alcanccedilado nesse meacutetodo
interpretativo Contudo faltam evidecircncias mais concretas sobre essa relaccedilatildeo e influecircncia autoral sobre Justino
Ver DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 280
600 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
601 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 30
602 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 21
603 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000
138
nisso criam fazendo com que cristatildeos de todas as classes e niacuteveis viessem a abraccedilar essa ideia
(como conceito) passando a compreender o cristianismo como um valor permanente do
ldquoespiacuterito humano a que a Encarnaccedilatildeo deu o seu verdadeiro sentido e o seu alcancerdquo604 Neste
contexto de impressionante singularidade a citaccedilatildeo de Santos nos permite encerrar com
excepcional qualidade esse item apresentado ldquoTodos os detalhes da histoacuteria de Jesus jaacute estavam
preditos nos profetas do Antigo Testamento Essa eacute a maior prova da superioridade da religiatildeo
cristatilde Por isso na concepccedilatildeo de Justino tudo o que eles (os cristatildeos) dizem eacute a verdaderdquo605
604 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279 grifo nosso
605 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 117
grifo nosso
139
CONCLUSAtildeO
A presente dissertaccedilatildeo procurou explanar a respeito de uma concepccedilatildeo que se destaca
por sua ordem moral e por seus paracircmetros dogmaacuteticos apresentando-se como uma chancela
na descriccedilatildeo apologeacutetica de Justino Maacutertir Este ponto de valor axiomaacutetico revelado pelo
Apologista torna-se de maneira evidente em uma espeacutecie de mediador de sua mensagem
permeando-se em toda a extensatildeo de um de seus mais conhecidos tratados literaacuterios Assim
reconhecemos que a I Apologia de Justino estaacute repleta de uma empolgante apresentaccedilatildeo do
termo Verdade sendo este substantivo normalmente utilizado pelo autor para uma distinccedilatildeo de
caraacuteter qualitativo sobre a representaccedilatildeo de um novo conjunto humano da realidade
sociorreligiosa do Seacuteculo II
Para Justino evidenciar a Verdade era tambeacutem ldquosetorizaacute-lardquo de alguma maneira dentro
da realidade humana Necessariamente essa postura adotada pelo Apologista acabou por se
definir por meio de sua leitura ativa sobre o estado e as praacuteticas de um grupo do qual ele mesmo
pertencia e do qual se estabeleciam as bases para sua dialeacutetica Logo falar sobre a Verdade
para Justino era falar dos recursos conceituais e praacuteticos vivenciados pelos cristatildeos de seu
tempo
Importa-nos nesta conclusatildeo ressaltar que Justino visava necessariamente qualificar o
ldquoobjetordquo junto a ldquoideiardquo que possuiacutea e defendia e como um bom filoacutesofo procurou obter
explicaccedilotildees satisfatoacuterias que salientassem sua posse daquilo que realmente era verdadeiro Na
esteira desta ideia o pensamento contemporacircneo balizado em argumentos considerados
ldquoortodoxosrdquo ndash mesmo tendo se passado quase vinte seacuteculos ndash ainda redunda com forccedila pois
consegue conceber que se estar na Verdade eacute para o espiacuterito humano possibilitar que as coisas
recebam agrave devida e real importacircncia que elas possuem na realidade
A partir disso na consciecircncia do Apologista tudo o que era produzido pela feacute cristatilde ndash
sendo ela assumida como um meio constitutivo de vida e praacutetica ndash possibilitava o
desenvolvimento de um senso de valor inesgotaacutevel sobre aquilo que se pode minimamente
relacionar como sendo o real o lugar onde a Verdade se ldquohospedardquo sendo que esta existecircncia
estaacute soberanamente ligada a uma realidade superiortranscendente ou seja esse real eacute Deus
Logo estar na Verdade seraacute sempre reconhecer a soberana realidade de Deus Esta
realidade percebida de forma geral pela noccedilatildeo de se possuir a Verdade eacute a realidade de Deus
manifestada pois aquilo que os cristatildeos vivem eacute a realidade de Deus entre noacutes Assim a
Verdade seraacute confessar a infinita majestade e santidade divinas por meio do legado de Deus
140
orquestrado pelos cristatildeos Nesta linha por meio dos princiacutepios metodoloacutegicos de Justino
consegue-se sintetizar com eficaacutecia e transparecircncia os resultados aos quais o Apologista
chegou como tambeacutem compreende-se melhor sua finalidade apologeacutetica que aponta com
clareza para uma identificaccedilatildeo que conforma a ideia (Verdade) ao objeto (Jesus Cristo) o dito
(novo Modus Vivendi) ao feito (Praxis Fidei) o anunciado (Profecias Messiacircnicas) ao ocorrido
(Encarnaccedilatildeo) em seu sentido absoluto
O problema que esta pesquisa levantou objetivamente foi qual o sentido do vocaacutebulo
ldquoVerdaderdquo empreendido de forma maximal por Justino na sua primeira obra apologeacutetica A
partir disto quatro capiacutetulos foram desenvolvidos na busca de se estabelecer um caminho
central e loacutegico para a soluccedilatildeo dessa questatildeo
O primeiro capiacutetulo fez uma breve apresentaccedilatildeo de Justino sua vida seu ministeacuterio
sua obra e seu contexto histoacuterico De maneira objetiva apresentamos um resumo biograacutefico da
pessoa de Justino em seu meio social e histoacuterico Procurou-se tambeacutem apresentar traccedilos
importantes para a compreensatildeo do cenaacuterio que elaborou nossa argumentaccedilatildeo central onde o
Pai Apologista Justino foi apresentado e a obra base desta pesquisa foi examinada de modo
literaacuterio dentro da necessidade requerida ndash relaccedilatildeo na qual ainda se agregou a perspectiva
cultural de Justino e por consequecircncia esta nos conduziu a uma abordagem sobre sua formaccedilatildeo
filosoacutefica
Mesmo natildeo sendo um dos pontos de sustentaacuteculo para a estrutura desta pesquisa em
nossa opiniatildeo o fator mais importante deste primeiro capiacutetulo certamente eacute o fenocircmeno do
martiacuterio entre os cristatildeos Fora do acircmbito teoloacutegico este traacutegico processo poderia ser
interpretado de forma estranha quando apresentado como um elemento determinante e ateacute
mesmo uacutetil enquanto via para que os natildeo-cristatildeos viessem a se converter e assim conhecerem a
Verdade Desta forma compreendemos que o processo de martiacuterio dos cristatildeos como um fato
histoacuterico foi influente na concepccedilatildeo e fundamental na constituiccedilatildeo do desenvolvimento do
ideaacuterio de Justino O Apologista por meio de sua obra nos oferece a niacutetida impressatildeo de ser um
habilidoso comentador da revelaccedilatildeo escrituriacutestica tambeacutem um autecircntico conhecedor da vida
espiritual mas acima de tudo demonstra ser um irredutiacutevel defensor da crenccedila que possuiacutea
selando sua obra ministeacuterio e vida com o proacuteprio sangue derramado O martiacuterio cristatildeo foi eacute e
continuaraacute sendo um dos casos mais misterioso e emblemaacutetico da histoacuteria da civilizaccedilatildeo
humana
O segundo capiacutetulo falou sobre o novo modus vivendi orquestrado pelos cristatildeos onde
se pode de maneira sinteacutetica observar as praacuteticas do contexto social de Justino apresentando e
clarificando o que eram os haacutebitos cristatildeos em contraste com o cotidiano da cultura greco-
141
romana Nesse processo estabeleceu-se uma descriccedilatildeo de cunho analiacutetico que procurou seguir
uma loacutegica encontrada em Justino o qual pocircs em praacutetica nossa leitura sobre o meacutetodo dialeacutetico
e empiacuterico do Apologista O capiacutetulo apresenta ldquoa nova identidaderdquo surgida junto ao cenaacuterio
sociorreligioso da eacutepoca o cristianismo Aleacutem disto definir aqueles que natildeo compunham esse
grupo de feacute ndash os Judeus e os Gentios ndash tornou-se tambeacutem uma tarefa necessaacuteria Por isso foi
indispensaacutevel apresentar os criteacuterios que para Justino demonstravam a ordem sistemaacutetica de um
grupo que se distinguia e separava dos demais Para Justino tratava-se da praxis fidei Adversus
Iniquitatem ldquoa praacutetica da feacute contra a iniquidaderdquo um realce com tonalidades absolutamente
opostas que apresentava um claro e inevitaacutevel ambiente de separaccedilatildeo entre os grupos
Deste modo esta segunda divisatildeo da pesquisa nos conduziu a uma inserccedilatildeo de postura
paradoxal para com alguns haacutebitos e assuntos humanos que no periacuteodo ocupavam tanto o
acircmbito privado quanto puacuteblico Assim algumas provas factiacuteveis passaram a ser descritas como
sentenccedilas de um novo modus vivendi ndash proposto por Justino ndash na conjuntura sociorreligiosa do
Seacuteculo II fato altamente desafiador o qual definimos em sentenccedilas classificadas como
teologais deterministas e puristas de acordo com suas consequecircncias praacuteticas Aqui salientou-
se o iniacutecio das distinccedilotildees que descreviam a certeza de haver um estado manifesto e claro do
que era a Verdade para Justino
O terceiro capiacutetulo retratou a filosofia em Justino tratando a respeito de sua influecircncia
e seu legado nesse seguimento O desenvolvimento desse capiacutetulo partiu de um formal apelo
desenvolvido pelo proacuteprio Apologista no capiacutetulo XXVIII da I Apologia para o uso da razatildeo
como um elemento determinante para o reconhecimento da Verdade oriunda da revelaccedilatildeo
Divina Um exame introdutoacuterio sobre o capiacutetulo XXVIII abriu o caminho para o entendimento
do que eacute filosofia para Justino A partir disto explicitou-se o filoacutesofo Justino evidenciando
suas principais influecircncias filosoacuteficas oriundas do estoicismo e do meacutedio platonismo aleacutem de
apresentar um sinteacutetico esboccedilo do autecircntico conceito de Logos encontrado em nosso autor
filoacutesofo-teoacutelogo
Todavia o aacutepice desta seccedilatildeo encontra-se em seu uacuteltimo item onde se justificou o que
Justino almejava com a citaccedilatildeo ldquoSe algueacutem natildeo crecirc que Deus se preocupe com essas coisas
(uso da razatildeo)rdquo606 O Apologista realccedila de uma forma quase ldquopalpaacutevelrdquo sua compreensatildeo de
como se concebia naturalmente a feacute em Jesus Cristo Partindo do fato de que a razatildeo eacute um
recurso exclusivamente humano Justino entendia que apenas nisso estavam condicionadas
todas as possibilidades reais do autecircntico Logos ser recebido e concebido pelos homens o que
606 JUSTINO I Apologia XXVIII 4 grifo nosso
142
os levava a verdadeira filosofia e os afastava decisivamente dos equiacutevocos e enganos praticados
pelos democircnios
O quarto e derradeiro capiacutetulo deste estudo salienta o que Justino considera o ponto
alto da revelaccedilatildeo por ele recebida o cumprimento das profecias messiacircnicas e as consequecircncias
para compreender o que Justino considera como sendo a Verdade
Iniciamos com uma sinteacutetica poreacutem objetiva descriccedilatildeo dos elementos socioculturais
de acircmbito religioso que desde a Antiguidade ateacute os dias de Justino formaram e identificaram a
figura de um Messias na cultura judaica Em seguida analisamos a revelaccedilatildeo das profecias
messiacircnicas do Antigo Testamento na visatildeo de Justino referentes a pessoa de Jesus Cristo
Finalizamos este capiacutetulo ratificando o conceito que definimos como principal para
Justino em sua descriccedilatildeo apologeacutetica o qual apresentava a Verdade ao mundo O modo e o
sentido que o Apologista procurava dar agrave concepccedilatildeo central de sua feacute passava necessariamente
pela identificaccedilatildeo entre o Logos dos filoacutesofos com o personagem messiacircnico preconizado pelos
profetas do Antigo Testamento Vimos que esse ser que havia sido reconhecido pelos filoacutesofos
como o Logos tambeacutem havia sido profetizado pelos servos de Deus A providecircncia Divina
levou a humanidade ao ponto alto desta histoacuteria quando o Logos profetizado se encarnado
Logo as profecias se cumpriram Assim concluiacutemos que este cenaacuterio e seus casos tornaram-se
para Justino um elemento real que evidenciava de maneira inquestionaacutevel o que era a Verdade
em sentido absoluto
Por fim eacute oportuno registrar a pertinente e categoacuterica postura do Apologista em aceitar
o cristianismo como ldquoa verdadeira razatildeordquo607 Justino compreendeu que a feacute cristatilde tinha em si
alguns pontos de caraacuteter deliberativo e proposital que consequentemente se estabeleciam nas
vidas que se estruturavam sobre esses preceitos utilizando-os de forma resolutiva Aqui cabe
ressaltar que para uma correta anaacutelise de Justino como autor eacute necessaacuterio se utilizar de medidas
efetivas que amparem o uso da razatildeo para os fins que o Apologista entendia serem ordenados
por Deus Nisso salienta-se a compreensatildeo jaacute atestada no ideaacuterio de Justino de natildeo haver
acepccedilatildeo do recurso da razatildeo a nenhum homem pois todos aqueles que foram criados agrave imagem
e semelhanccedila de Deus podiam ser instruiacutedos desse modo desde as mentes mais simples as mais
capacitadas
Importa-nos ainda registrar que outros aspectos de relevacircncia para esta pesquisa
poderiam ter sido tratados visando um maior aprofundamento desta temaacutetica e suas possiacuteveis
variaccedilotildees De forma praacutetica podemos citar as seguintes observaccedilotildees propor uma maior ecircnfase
607 JUSTINO I Apologia XLIII 6b
143
na questatildeo do martiacuterio cristatildeo como elemento habilitador na construccedilatildeo do conceito da Verdade
como princiacutepio moral e dogmaacutetico uma mais detalhada descriccedilatildeo do conceito Logos tanto para
a cultura helecircnica quanto para os cristatildeos do Seacuteculo II abordar sobre o conceito elaborado por
Justino de Jesus Cristo ser o mestre dos cristatildeos608 referindo-se ao Messias como o condutor
pleno de toda verdadeira revelaccedilatildeo Divina em detrimento aos mitos criados pelo helenismo
oferecer uma pormenorizada anaacutelise sobre a forccedila ilocucionaacuteria desses atos e discursos
apologeacuteticos Aleacutem disso outros pontos significativos poderiam ter sido abordados na tentativa
de se construir de forma mais completa esse importantiacutessimo cenaacuterio do cristianismo histoacuterico
Contudo essa ampliaccedilatildeo possivelmente ultrapassaria os limites propostos desta pesquisa
provavelmente poluindo sua intenccedilatildeo central
A abordagem desta dissertaccedilatildeo demonstrou que na I Apologia Justino revela e retrata
a sua concepccedilatildeo do que eacute ser cristatildeo e viver na Verdade O Apologista transparece de forma
intensa sua postura em transmitir essa maacutexima que natildeo era simplesmente verossiacutemil em seu
entendimento Eacute fato que essa demonstraccedilatildeo tambeacutem visava proteger e resgatar seu povo de
um cenaacuterio hostil salientando por meio de sua postura uma clara separaccedilatildeo de valores e
preceitos
Vimos que as vicissitudes do tempo natildeo seriam capazes de alterar o objeto e as coisas
que caracterizavam sua posiccedilatildeo que estava plenamente balizada e sustentada por meio de sua
dialeacutetica Isso nos impressiona porque para quem procura entender este testemunho sobre a
Verdade os livros de Justino nunca envelhecem aleacutem disso quase vinte seacuteculos depois os
textos desse notaacutevel cristatildeo ainda reverberam o som do eco causado por nossos vazios que
precisam ser preenchidos pelos conceitos princiacutepios e valores que natildeo pertence a este mundo
Por essa razatildeo ldquodialogarrdquo com Justino na atualidade eacute algo importantiacutessimo e ateacute mesmo
fundamental
Em resumo para Justino a uacutenica via para possuir a Verdade era ser cristatildeo o que
equivale a crer e professar sobre Aquele que prometido pelos antigos profetas de Israel e
percebido pelos antigos filoacutesofos gregos veio em carne para apresentar agrave razatildeo humana os
meios de como se proceder ldquoafirmando a Verdaderdquo609
608 Ver JUSTINO I Apologia XIII 3 XIX 6 XXI 1-6
609 JUSTINO I Apologia XLIII 2a grifo nosso
144
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AGRADECIMENTOS
A minha amada Esposa uma luz constante em
minha vida Nela tudo sempre se renova sem
ela pouco restaria
Aos meus queridos filhos Pedro e Maria os
maiores presentes que Deus me deu Cristo
formado em voacutes eacute a maior heranccedila que pretendo
deixar
A minha amada Matildee que foi fundamental para
a realizaccedilatildeo desse sonho Seu amor foi constate
em todo tempo sua coragem sempre me
inspirou e seu legado me enche de orgulho
A meu Tio Ademir que eacute um exemplo vivo do
caraacuteter de Cristo sendo presente nessa
caminhada como um pai que acompanha seu
filho Essa conquista tambeacutem pertence a vocecirc
Ao Prof Caacutessio mestre por vocaccedilatildeo modelo de
excelecircncia para a docecircncia Sua orientaccedilatildeo foi
excepcional sua honestidade intelectual eacute
admiraacutevel Sua postura se tornou um exemplo a
ser seguido por esse teoacutelogo
Aos meus colegas Alexandre Dorcelina
Fernando Filipe Rodrigo e Samuel por tudo o
que compartilhamos e vivemos nesse tempo
jamais os esquecerei
Ao Pai ao Filho ao Espiacuterito Santo de quem eacute
o reino o poder e a gloacuteria de geraccedilatildeo em
geraccedilatildeo pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutem
ldquoEu lhes tenho dado a tua palavra e o mundo
os odiou porque eles natildeo satildeo do mundo como
tambeacutem eu natildeo sou Natildeo peccedilo que os tires do
mundo e sim que os guardes do mal Eles natildeo
satildeo do mundo como tambeacutem eu natildeo sou
Santifica-os na verdade a tua palavra eacute a
verdaderdquo
Joatildeo 1714-17
RESUMO
Esta dissertaccedilatildeo apresenta uma pesquisa bibliograacutefica direcionada a estabelecer a
identificaccedilatildeo moral e dogmaacutetica do termo Verdade exposto de forma predicativa na obra
intitulada I Apologia de Justino Maacutertir Acredita-se que na formaccedilatildeo e constituiccedilatildeo histoacuterica
do cristianismo alguns autores como Justino de Roma ajudaram a criar e fomentar os
paracircmetros necessaacuterios para se estabelecer uma ldquoidentidade cristatilderdquo durante os dois primeiros
seacuteculos da era atual A partir de novos valores e preceitos ordenou-se de maneira pragmaacutetica
uma tentativa de reconhecer e distinguir o fato de ser cristatildeo em meio ao contexto
sociorreligioso do mundo greco-romano De maneira expliacutecita e impliacutecita ndash e agraves vezes de forma
paradoxal ndash Justino categoricamente identifica o que era ser um seguidor de Cristo em sua I
Apologia aleacutem de apresentar o que poderia ser considerado como a Verdade de forma
categoacuterica e ateacute mesmo tangiacutevel nesse processo A partir desse ideaacuterio de feacute a dissertaccedilatildeo
discute questotildees pertinentes sobre o autor a obra base e outras caracteriacutesticas de seu contexto
histoacuterico Foram investigadas as relaccedilotildees entre a cultura helecircnica e o novo modus vivendi
naquele ambiente e nele a identidade filosoacutefica de Justino Por fim apresentou-se um quadro
clarificador sobre os elementos que satildeo considerados evidecircncias inquestionaacuteveis para Justino
do que eacute a Verdade revelada em meio aos homens Desenvolveu-se deste modo uma provaacutevel
definiccedilatildeo da Verdade segundo a concepccedilatildeo de Justino Maacutertir a partir de sua I Apologia
Palavras-chave Justino Maacutertir I Apologia Verdade
ABSTRACT
This dissertation presents a bibliographical research directed to establish the moral and
dogmatic identification of the term Truth exposed in a predicative way in the work entitled I
Apology of Justin Martyr It is believed that in the formation and historical constitution of
Christianity some authors like Justin of Rome helped to create and foster the parameters
necessary to establish a Christian identity during the first two centuries of the present era
From new values and precepts an attempt to recognize and distinguish the fact of being
Christian amidst the socioreligious context of the Greco-Roman world was pragmatically
ordered Explicitly and implicitly - and sometimes in a paradoxical way - Justin categorically
identifies what it was like to be a follower of Christ in his Apology in addition to presenting
what could be categorically and even tangibly Truth in that process From this idea of faith the
dissertation discusses pertinent questions about the author the base work and other
characteristics of its historical context The relations between the Hellenic culture and the new
modus vivendi in that environment were investigated and in it the philosophical identity of
Justin Finally a clarifying picture was presented on the elements that are considered
unquestionable evidences for Justino of what is the Truth revealed among men In this way a
probable definition of the Truth according to the conception of Justin Martyr from his I
Apologia was developed
Keywords Justin Martyr I Apologia Truth
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
1 Pe ndash Primeira Epiacutestola de Pedro
1 Pet ndash The First Epistle of Peter
aC ndash Antes de Cristo
Adv Haer ndash Adversus Haereses
Adv Marcionem ndash Adversus Marcionem
Cap ndash Capiacutetulo
Caps ndash Capiacutetulos
dC ndash Depois de Cristo
Dial ndash Diaacutelogo com Trifatildeo
Gn ndash Livro de Gecircnesis
ICAR ndash Igreja Catoacutelica Apostoacutelica Romana
Jo ndash Evangelho de Joatildeo
Js ndash Livro de Josueacute
Sl ndash Livro dos Salmos
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 11
1 JUSTINO MAacuteRTIR VIDA E OBRA NO CONTEXTO HISTOacuteRICO DO SEacuteCULO II
17
11 JUSTINO DE ROMA 17
12 PAIS DA IGREJA 23
121 Pais Apologistas 26
122 O Apologista Justino 29
13 ANAacuteLISE LITERAacuteRIA DA I APOLOGIA DE JUSTINO 32
131 Dataccedilatildeo 32
132 Divisatildeo Textual 34
133 Gecircnero Literaacuterio 35
134 Manuscritos 38
14 A PERSEGUICcedilAtildeO AOS CRISTAtildeOS 39
141 O Impeacuterio Romano e a Perseguiccedilatildeo ao Cristianismo 40
142 A Perseguiccedilatildeo no Periacuteodo da I Apologia 43
2 O NOVO MODUS VIVENDI 50
21 CRISTIANISMO A NOVA IDENTIDADE 51
22 O MUNDO NAtildeO-CRISTAtildeO 56
221 Os Judeus 58
222 Os Gentios 61
23 PRAXIS FIDEI ADVERSUS INIQUITATEM 65
231 Um Princiacutepio Teologal 68
2311 Praacutetica da Feacute Contra o Politeiacutesmo Relativista 69
2312 Praacutetica da Feacute Contra a Idolatria 70
2313 Praacutetica da Feacute Contra o Ateiacutesmo 71
232 Um Princiacutepio Determinista 75
233 Um Princiacutepio de Pureza 78
3 A VERDADE REVELADA Agrave RAZAtildeO A FILOSOFIA E SEU CONTEXTO NA
PERSPECTIVA DE JUSTINO MAacuteRTIR 84
31 INTRODUCcedilAtildeO AO CAPIacuteTULO XXVIII 85
32 O FILOacuteSOFO JUSTINO 90
321 Estoicismo e Platonismo em Justino 95
322 O Logos em Justino 104
33 RAZAtildeO DEUS SE PREOCUPA COM ESSAS COISAS 110
4 A VERDADE REVELADA POR FATOS PROFEacuteTICOS SEGUNDO JUSTINO 117
41 O MESSIANISMO ATEacute OS DIAS DE JUSTINO 118
42 AS PROFECIAS MESSIAcircNICAS NA VISAtildeO DE JUSTINO 122
43 A ENCARNACcedilAtildeO DO LOGOS APOGEU DA REVELACcedilAtildeO 128
CONCLUSAtildeO 139
REFEREcircNCIAS 144
OBRAS CONSULTADAS 151
11
INTRODUCcedilAtildeO
O assunto desta pesquisa dissertativa vem a ser um exame sobre uma proposta
desenvolvida a partir da obra intitulada I Apologia de Justino Maacutertir tambeacutem conhecido junto
ao meio eclesiaacutestico e acadecircmico como Justino de Roma Reconhecido de forma unacircnime como
um dos ldquomais ceacutelebres apologistas do seacuteculo IIrdquo1 Justino pertence agrave segunda era Patriacutestica
conhecida tradicionalmente pela definiccedilatildeo Pais Apologistas Nessa abordagem visamos
caracterizar a ideia de Justino a partir de sua definiccedilatildeo da palavra Verdade apresentada de
forma axiomaacutetica por diversas vezes em seu primeiro tratado apologeacutetico
Acredita-se que no processo de formaccedilatildeo desenvolvimento e consolidaccedilatildeo do
cristianismo como religiatildeo alguns valores de sentido absoluto (poderiacuteamos dizer dogmaacuteticos)
foram provedores e promovedores de um esquema de reconhecimento2 por meio de fortes
ascendentes (voltados para sua origem) de caracterizaccedilatildeo Esses valores amparados por sinais
e siacutembolos ndash alguns que receberam literal evidecircncia informativa ndash projetaram uma eficiente
identificaccedilatildeo cristatilde conseguindo externar a partir de preceitos e praacuteticas ordenadas um real
estado de enobrecimento3 e assim distinguiram o ser cristatildeo dos demais4
Aleacutem disso em toda a histoacuteria conhecida o homem sempre buscou descobrir quais
eram os reais elementos que promovem e garantem a certeza do bem (conquista felicidade
realizaccedilatildeo etc)5 e da verdade junto aos seres e as coisas com quem convive e se relaciona6
Nesse processo de desenvolvimento passando por todo percurso da histoacuteria humana nos
deparamos com as sequelas de um estado de consciecircncia que estaacute eacutetica eou moralmente
corrompido enfatizado em nosso em caso em especiacutefico pelo incocircmodo que o ser humano
passa quando exposto as consequecircncias e dilemas apresentados pelas ldquofacesrdquo da Verdade
Nesta mesma perspectiva reconhecemos que as ldquotestemunhas da verdade sempre
irritaram os ceacuteticos e os espertosrdquo7 Nessa missatildeo de testificar a Verdade os Apologistas
cristatildeos do Seacuteculo II acabaram por se distinguir mediante contribuiccedilotildees pertinentes para esse
1 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 51
2 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
3 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
4 SCOTT As Catacumbas de Roma 1996
5 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia Dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994
6 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
7 DANIEacuteLOU O Escacircndalo da Verdade1963 p 11
12
processo construtivo tornando-se diferenciais em seu tempo e espaccedilo de atuaccedilatildeo8 Justino
nesse mesmo seguimento acaba ganhando destaque atraveacutes de seus tratados que descrevem a
vida cotidiana dos cristatildeos do periacuteodo sendo-nos possiacutevel afirmar que no que se refere ao
conceito de Verdade (como predicativo) Justino parece estar ldquomais proacuteximo de noacutes do que
muitos pensadores modernosrdquo9
Uma especificidade que devemos apontar como elemento introdutoacuterio neste processo
refere-se ao entendimento de Justino para com o vocaacutebulo Verdade Neste quesito um
imperativo surge pois de forma inquestionaacutevel mediante o registro do Apologista conseguimos
considerar o que ele compreendia sobre o termo verdade em sua dimensatildeo epistemoloacutegica O
vocaacutebulo grego αλήθεια10 que comumente se traduz por verdade em portuguecircs eacute amplamente
utilizado por Justino em sua I Apologia sempre visando dar sentido e precisatildeo (absoluta) para
aquilo que o Apologista procurava identificar como algo literalmente manifesto mas que
dependia de ser apontado como agrave realidade presente e necessaacuteria para os Homens
Este conceito gramatical que Justino carrega sobre o termo Verdade jaacute estaacute presente
nos filoacutesofos11 e seu significado incorpora algo que define bem sua temaacutetica apologeacutetica
Justino compreendia que a realidade necessitava ser deslumbrada pois a verdade estaacute
subentendida a um ldquoestado preacutevio que viemos a descobrir a colocar de manifesto
estabelecendo o que a coisa eacuterdquo12 Deste modo Justino mediante sua metodologia dialeacutetica e
empiacuterica procurava salientar sua posse da Verdade por meio de um ldquosentido de certezardquo que
envolvia e incorporava a comprovaccedilatildeo de seus resultados Estes efeitos eram obtidos no
afastamento de dados distorcidos e encobertos sobre a realidade isso porque uma vez aplicado
tal desvelamento percebia-se como as coisas eram13 fazendo com que a Verdade fosse
colocada diante de seus expectadores
8 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
9 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 152
10 Rusconi ao apresentar este vocaacutebulo aborda inicialmente sobre sua composiccedilatildeo composta onde salienta que a
existecircncia da letra ldquoαrdquo no iniacutecio da palavra eacute uma partiacutecula negativa que estaacute somada ao termo ldquoλαθλήθrdquo que
significa ldquoestar escondidordquo Assim no caso em especiacutefico quase sempre a composiccedilatildeo visa expressar uma
realidade que estaacute ldquoescondida obscura eou esquecidardquo Deste modo a construccedilatildeo gramatical do termo propotildee
que a consequecircncia da autenticidade (verdade) dos fatos eacute o efeito causado pelo desvelamento destes casos Sendo
assim passa-se a conhecer a verdade a partir do momento que se remove as coisas que a ocultam Rusconi ainda
indica que o termo procurava apresentar a realidade como sendo a condiccedilatildeo objetiva das coisas visiacuteveis e
recordaacuteveis ao Homem o que atestava esse desvelamento do que estava oculto Ver RUSCONI Dicionaacuterio do
Grego do Novo Testamento 2003 p 32
11 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
12 HEGENBERG Significado e Conhecimento 1975 p 12
13 HEGENBERG Significado e Conhecimento 1975 p 15
13
A base dessa compreensatildeo sobre o vocaacutebulo verdade eacute utilizada amplamente por
Justino em sua I Apologia sempre visando dar sentido e precisatildeo absoluta para aquilo que o
Apologista procurava identificar como algo literalmente manifesto mas que dependia de ser
apontado como a realidade presente e necessaacuteria para os homens
Neste compasso eacute que esta dissertaccedilatildeo procura examinar como Justino interpretava
um de seus mais usados e emblemaacuteticos termos Este exerciacutecio nos conduz agrave questatildeo principal
que visamos responder nesta pesquisa sendo possiacutevel deste modo argumentarmos sobre este
ponto fundamental atraveacutes da seguinte interrogaccedilatildeo qual o sentido do vocaacutebulo ldquoVerdaderdquo
empreendido de forma maximal por Justino na sua primeira obra apologeacutetica
Sendo assim a realizaccedilatildeo desta pesquisa se deu atraveacutes de um exame bibliograacutefico
com literatura do tipo teoloacutegica filosoacutefica histoacuterica entre outras aacutereas relacionadas ao seu tema
base Cabe-nos salientar que esta dissertaccedilatildeo procura se apresentar como um agregado
intelectual em liacutengua portuguesa14 para sua aacuterea teoloacutegica especiacutefica
(PatriacutesticaPatrologiaHistoacuteria do Dogma) como tambeacutem para as demais aacutereas Humanas que
da mesma forma possam colher frutos num acircmbito interdisciplinar O estudo aqui proposto
baseia-se nos capiacutetulos XXIII-XXX da I Apologia de Justino Maacutertir tornando-se este nosso
principal ponto de delimitaccedilatildeo textual na busca de se compreender o conceito de Verdade para
Justino
Tratando-se dos termos Pai(s) ou Padre(s) ndash convencionalmente utilizados de forma
padratildeo e geneacuterica na titulaccedilatildeo das figuras de destaque na aacuterea Patriacutestica ndash optamos pelo
vocaacutebulo Pai como elemento descritivo a ser utilizado nesta pesquisa Isso devido a duas
questotildees orientativas A primeira busca priorizar a originalidade da liacutengua vernacular desta
dissertaccedilatildeo (portuguecircs) Jaacute a segunda procura seguir uma postura de acircmbito ecumecircnico visto
que o termo Pai se adapta melhor agrave compreensatildeo confessional cristatilde fora da realidade teoloacutegica
da Igreja Catoacutelica Apostoacutelica Romana natildeo trazendo nenhum prejuiacutezo cognitivo aos leitores
desta uacuteltima Instituiccedilatildeo
As citaccedilotildees da I Apologia de Justino foram extraiacutedas de versotildees em liacutengua portuguesa
e grega Em portuguecircs a I Apologia eacute traduzida e editada por Ivo Storniolo e Euclides M
Balancin e comentada por Roque Frangiotti para a coleccedilatildeo Patriacutestica da editora Paulus Jaacute o
texto em seu idioma original estaacute presente em duas publicaccedilotildees a primeira estaacute na coletacircnea
Patrologiae Cursus Completus Series Graeca Volume 6 editado por Jacques Paul Migne e a
14 A falta de trabalhos sobre o pensamento de Justino Maacutertir em liacutengua portuguesa no cenaacuterio nacional (Brasil) eacute
uma evidente deficiecircncia acadecircmica ateacute o momento Ver SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma
Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 12
14
segunda estaacute na coletacircnea Apologies (contendo a I e a II Apologias) traduzida e comentada por
Louis Pautigny A traduccedilatildeo e transliteraccedilatildeo do original grego quando se fez necessaacuterio satildeo de
nossa autoria15
Duas satildeo as traduccedilotildees da Biacuteblia Sagrada em liacutengua portuguesa utilizadas nesta
dissertaccedilatildeo A primeira que eacute aplicada de forma padratildeo em todo corpo textual desta pesquisa
eacute a traduzida em portuguecircs por Joatildeo Ferreira de Almeida 2ordf ediccedilatildeo Revista e Atualizada no
Brasil da Sociedade Biacuteblica do Brasil de 1993 A segunda traduccedilatildeo que eacute utilizada
exclusivamente no quadro comparativo entre os textos da I Apologia de Justino e os textos
escrituriacutesticos do Antigo Testamento localizado no IV capiacutetulo eacute de nossa inteira autoria16
Quanto ao texto grego utiliza-se o Novo Testamento Grego tradicionalmente conhecido por
Textus Receptus 15501894 (que significa texto recebido) de domiacutenio puacuteblico poreacutem editado
e produzido eletronicamente pela Sociedade Biacuteblica do Brasil em 2007 Quanto ao Antigo
Testamento emprega-se a versatildeo grega conhecida como Septuaginta de 190317 de domiacutenio
puacuteblico editada e produzida eletronicamente pela Sociedade Biacuteblica do Brasil em 2007
Esta pesquisa se desenvolve textualmente em quatro capiacutetulos O primeiro capiacutetulo
discute quatro pontos principais O primeiro eacute uma sucinta abordagem biograacutefica da figura
humana de Justino diante dos fatos existentes em seu contexto O segundo apresenta o perfil
histoacuterico e intelectual especialmente na classe Patriacutestica em que estaacute inserido O terceiro ponto
faz uma anaacutelise literaacuteria da I Apologia sua dataccedilatildeo sua divisatildeo textual seu gecircnero literaacuterio e
os manuscritos que se dispotildeem da obra Por uacuteltimo se aborda por meio de uma breve exposiccedilatildeo
histoacuterica o ponto-chave que em meados do Seacuteculo II motivou Justino a redigir esta obra o
fenocircmeno do martiacuterio cristatildeo eacute analisado como sendo a forccedila motriz que conduziu a pena de
Justino neste tratado
O segundo capiacutetulo estaacute dividido em trecircs pontos O primeiro descreve quem eram os
cristatildeos como grupo apresentando algumas de suas particularidades mas visa especialmente
construir algo que se pode explicar como uma definiccedilatildeo ldquoidentitaacuteriardquo destes homens e mulheres
que se haviam tornado mais um segmento do contexto sociorreligioso do Seacuteculo II O segundo
15 As obras de referecircncia utilizadas para tal exerciacutecio de traduccedilatildeo foram Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-
Grego de Isidoro Pereira Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento de Carlo Rusconi Dicionaacuterio Biacuteblico Strong
de James Strong e A Greek-English lexicon of the New Testament being Grimms Wilkes clavis novi testamenti
de Joseph Thayer
16 Esta opccedilatildeo se daacute devido ao fato de natildeo existir em liacutengua portuguesa uma traduccedilatildeo que represente ou se
assemelhe de maneira teacutecnica ao original grego da Septuaginta
17 Os editores empregam correlatamente o termo ldquosem acentuaccedilatildeordquo junto a titulaccedilatildeo desta versatildeo O emprego
ocorre devido ao texto grego natildeo apresentar acentos
15
que daacute seguimento ao ponto anterior visa apresentar um melhor desenvolvimento dos objetivos
deste trabalho deste modo eacute imprescindiacutevel se apresenta um esboccedilo do que para Justino se
caracteriza como os setores da sociedade opostos ao cristianismo nesta relaccedilatildeo duas ldquoclassesrdquo
surgem judeus e gentios Por fim o terceiro ponto aborda o exame principal desta etapa Aqui
se descreve uma potencial relaccedilatildeo entre fatores que por regra se diferenciam essencialmente
sendo esta diferenciaccedilatildeo estabelecida necessariamente por uma nova postura espiritual eou
religiosa Novas variantes surgem de forma definitiva no cenaacuterio sociorreligioso da eacutepoca
confrontando seu status quo o que leva Justino a reagir criando automaticamente uma accedilatildeo
dialeacutetica que envolve conceitos teologais providenciais eacuteticos e morais aleacutem de gerar outras
variaccedilotildees que estabelecem o passo futuro a ser dado por Justino visando um desdobramento
que estabeleccedila sua confissatildeo de feacute Neste cenaacuterio eacute possiacutevel propor uma definiccedilatildeo do que seja
a Verdade para Justino
Tambeacutem o terceiro capiacutetulo tem sua estrutura dividida em trecircs pontos bases O
primeiro aborda o capiacutetulo XXVIII da I Apologia o qual seraacute analisado de forma introdutoacuteria
levando desta maneira ao desenvolvimento do restante da proposta aleacutem de dar fundamento agrave
construccedilatildeo do argumento central que estaacute ancorado no pensamento do Apologista O segundo
ponto do capiacutetulo concentra-se na descriccedilatildeo da filosofia como a principal ldquociecircnciardquo e a base
intelectual na formaccedilatildeo de Justino Neste espaccedilo se vecirc de forma sumarizada o filoacutesofo Justino
aqui tambeacutem se mencionam as principais influecircncias filosoacuteficas na formaccedilatildeo deste Pai da Igreja
onde o estoicismo e o platonismo satildeo salientados Aleacutem disso eacute discutida tambeacutem o conceito
de Logos questatildeo filosoacutefica-teoloacutegica que acabou por se tornar em uma de suas principais
contribuiccedilotildees para a histoacuteria do dogma cristatildeo18 Finalmente o terceiro ponto concentra
esforccedilos no desenvolvimento de uma peculiar abordagem de Justino quanto ao uso e o fim que
a racionalidade humana exerce no seu conjunto de relaccedilotildees Este ambiente formado de coisas
temporais e atemporais caracteriza de maneira clara e oacutebvia para Justino uma postura sistecircmica
como modelo para as atitudes humanas que concentram em si a resposta que define a Verdade
para este Apologista
O quarto e derradeiro capiacutetulo se compotildeem de trecircs pontos elementares Inicia-se por
uma abordagem que procura desenvolver uma raacutepida relaccedilatildeo histoacuterica do conceito messiacircnico
em algumas culturas direcionando seu foco final para a eacutepoca de Justino O segundo item
descreve com certo grau de peculiaridade a definiccedilatildeo do que eram e consequentemente o que
representavam as profecias messiacircnicas do Antigo Testamento para Justino aleacutem de visar
18 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
16
comunicaacute-las de maneira correta acima de tudo a quem ele as apresentou como tipo alvo e
revelaccedilatildeo maacutexima19 Por fim o terceiro ponto expotildee por meio do auxiacutelio de fontes que para
Justino havia um evidente qualificador em sua definiccedilatildeo do cumprimento profeacutetico da Antiga
Alianccedila Este fator se concentra em um axioma que se tornou visiacutevel sendo bem definido pelo
autor do Quarto Evangelho ldquoo Verbo se fez carne e habitou entre noacutes cheio de graccedila e de
verdade e vimos a sua gloacuteria gloacuteria como do unigecircnito do Pairdquo (Joatildeo 114)
Em resumo o primeiro capiacutetulo estaacute centrado no contexto da figura histoacuterica de
Justino O segundo em aspectos significativos sobre a contraposiccedilatildeo de ideias e haacutebitos O
terceiro na obtenccedilatildeo da inteligibilidade do Apologista em resistecircncia a uma previsatildeo
meramente sensiacutevel do agregado vivencial ou funcional de sua realidade O quarto na
afirmaccedilatildeo de um apogeu que sustentado em evidecircncias irrefutaacuteveis para Justino se estabelece
como uma sentenccedila irrevogaacutevel
Este apanhado nos convida a uma reflexatildeo para conhecer e a uma busca para
comprovar o que seria a Verdade na visatildeo de Justino de Roma Daniel-Rops foi mais um dos
tantos que foram conquistados pelas nuances do legado apologeacutetico de Justino e como
consequecircncia deste encontro encoraja seus leitores a aceitarem este desafio
Como os seus problemas satildeo semelhantes aos nossos Como bate seu coraccedilatildeo num
ritmo que conhecemos tatildeo bem Neste filoacutesofo de dezoito seacuteculos ressoa aos nossos
ouvidos uma espeacutecie de Pascal neste dialeacutetico emeacuterito encontra-se uma vontade de
acolhimento e uma abertura de alma que os cristatildeos de hoje podem tomar por
modelo20
19 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991
20 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 277
17
1 JUSTINO MAacuteRTIR VIDA E OBRA NO CONTEXTO HISTOacuteRICO DO SEacuteCULO II
Ao imperador Tito Eacutelio Adriano Antonino Pio Ceacutesar Augusto ao seu filho Veriacutessimo
filoacutesofo e a Luacutecio filho natural do Ceacutesar filoacutesofo e filho adotivo de Pio amante do
saber ao sacro Senado e a todo o povo romano Em prol dos homens de qualquer raccedila
que satildeo injustamente odiados e caluniados eu Justino um deles filho de Prisco que
o foi de Baacutequio natural de Flaacutevia Neaacutepolis na Siacuteria Palestina compus este discurso e
esta suacuteplica21
Para conhecermos melhor a Justino o cognominado Maacutertir da ainda jovem Igreja de
Cristo ndash como tambeacutem ilustre residente da comunidade romana do Seacuteculo II ndash devemos nos
aproximar de suas obras Especialmente nas conhecidas I Apologia e Diaacutelogo com Trifatildeo nos
deparamos com um pequeno poreacutem significativo acesso a informaccedilotildees que fundamenta um
consideraacutevel entendimento histoacuterico desta figura tatildeo destacada daquele periacuteodo22
A partir desta anaacutelise histoacuterica buscaremos desenvolver uma construccedilatildeo por meio de
fatores que entendemos serem essenciais para o progresso do restante desta pesquisa no qual
assuntos de teor elementar procuraratildeo ser respondidos Entre estes podemos identificar alguns
como Quem foi esse homem chamado Justino o qual o testemunho cristatildeo antigo afirma ter
sido morador da cidade de Roma e martirizado por sua feacute A qual classe da sociedade romana
de sua eacutepoca ele pertenceu A qual grupo da ldquointelectualidaderdquo cristatilde ele somou Como e
quando escreveu suas obras em especial a I Apologia Como este escrito encomiaacutestico de
defesa nasce Quem eou o quecirc (fatores diversosplurais) o incentivaram a escrevecirc-la de forma
proposital
11 JUSTINO DE ROMA
Torna-se necessaacuterio desde o iniacutecio salientar que se possui atualmente informaccedilotildees bem
detalhadas de quem teria sido Justino ndash o qual foi cunhado por Tertuliano como ldquofiloacutesofo e
maacutertirrdquo23 ndash morador da capital do Impeacuterio Romano isso tudo devido especialmente agraves claras
ldquoreferecircncias autobiograacuteficas de suas proacuteprias obras a um relato sobre seu martiacuterio e a notiacutecias
encontradas na Histoacuteria eclesiaacutestica de Euseacutebio e em Epifacircniordquo24 Uma gama consideraacutevel de
21 JUSTINO I Apologia I 1
22 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011
23 TERTULIANO Contra os Valentinianos V 1
24 DROHNER Manual de Patrologia 2008 p 82-83
18
estudiosos concorda que Justino tenha nascido por volta do ano 100 da era cristatilde25 isso devido
agrave referecircncia textual apresentada pelo proacuteprio Apologista ldquoeu Justino um deles filho de Prisco
que o foi de Baacutequio natural de Flaacutevia Neaacutepolis na Siacuteria Palestinardquo26 Neste contexto contribui
o trabalho de Xavier que afirma acreditar ldquoque ele (Justino) nasceu depois do ano 100 dC em
Flavia Neaacutepolis (atual Naplusa) na Siacuteria-Palestina ou Samaria a Siqueacutem dos tempos biacuteblicos
(Palestina)rdquo27 Nota-se atraveacutes do auto relato de Justino que este nasceu em pleno ldquocoraccedilatildeo da
Galileiardquo28 em uma cidade remodelada (modernizada) para sua eacutepoca agrave cultura romana ou seja
pagatilde Logo sua famiacutelia provavelmente tambeacutem era pagatilde possivelmente seus pais ldquoeram
colonos abastadosrdquo29 e de origem latina ou grega sendo a primeira opccedilatildeo de preferecircncia por
Hamman que afirma serem de caracteriacutestica latina a qualidade de caraacuteter o gosto por dados
histoacutericos e a natildeo apreciaccedilatildeo de argumentaccedilotildees pomposas e prolixas encontradas em Justino30
Vale tambeacutem citar que a etimologia dos nomes do seu pai (Prisco) e do seu avocirc (Baacutequio)
colabora para uma origem natildeo judaicaisraelita mesmo tendo nascido na regiatildeo da Samaria
local no qual possivelmente tenha crescido e sido educado31
Os proacuteximos relatos biograacuteficos apresentados por nosso autor jaacute se estabeleceram no
decorrer de sua jornada em direccedilatildeo ao alvo que buscava atingir eacute quando em seu escrito
intitulado de Diaacutelogo com Trifatildeo Justino se apresentaraacute como um apaixonado apreciador da
filosofia e do absoluto que a razatildeo deveria perscrutar Em um escrito estiliacutestico e repleto de
artifiacutecios literaacuterios Justino cita seu passado em meio aos estoicos peripateacuteticos pitagoacutericos e
platocircnicos32 observando desde cedo que o objetivo de seu caminho nestes grupos que
ldquocultuavamrdquo o bem-estar do viver humano era o de descobrir a verdade como um estado livre
de contingecircncias Hamman endossa esse processo de peregrinaccedilatildeo filosoacutefica na vida do autor
25 FRANGIOTTI In Introduccedilatildeo I Apologia 1995 p 5 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da
tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 81
26 JUSTINO I Apologia I 1
27 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 14 grifo nosso
28 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
29 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
30 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
31 Flaacutevia Neaacutepolis foi fundada em 72 de nossa era por Vespasiano sobre a antiga Siqueacutem A cidade existe hoje
sob o nome de Naplusa Natildeo se deve esquecer a importacircncia deste siacutetio geograacutefico para a histoacuteria religiosa de
judeus e cristatildeos Foi em Siqueacutem que Deus apareceu a Abraatildeo e este lhe dedicou um altar (cf Gn 126-7) Ali se
conservava a memoacuteria de um ldquopoccedilo de Jacoacuterdquo junto ao qual Jesus dialogou com a samaritana (cf Jo 45-6) Foi em
Siqueacutem que Josueacute reuniu a grande assembleia das tribos para ratificar a alianccedila entre Deus e seu povo (cf Js 24)
Ver FRANGIOTTI In Introduccedilatildeo I Apologia 1995 p 5
32 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 3-6
19
O proacuteprio Justino conta-nos no Diaacutelogo com Trifatildeo o longo itineraacuterio de sua busca
[] Sucessivamente em Naplusa frequentou as aulas de um estoico depois de um
disciacutepulo de Aristoacuteteles que logo abandonou trocando-o por um platocircnico Com
candura esperava que a filosofia de Platatildeo lhe permitisse ldquover imediatamente a
Deusrdquo33
Entretanto Justino diante de diversas circunstacircncias e ainda acometido de inuacutemeras
inquietaccedilotildees decorridas das mesmas perguntas que o afligiam em sua busca pela verdade passa
a relatar seu impressionante encontro com o Evangelho de Cristo em seu Diaacutelogo com um judeu
chamado Trifatildeo34 Justino que aparentemente parece ter sido encorajado apoacutes ser ensinado por
um mestre da escola platocircnica passa a viver por meio de haacutebitos mais austeros e se retira a um
lugar isolado onde segundo ele mesmo procuraria encontrar ldquoo proacuteprio Deusrdquo35 Poreacutem em
meio a esta experiecircncia de isolamento ndash possivelmente ocorrida na regiatildeo da Aacutesia Menor36 ndash
Justino se depara com um anciatildeo que seraacute o arauto da mais significativa filosofia que conheceu
Hamman daacute ecircnfase a esse evento ldquoRetirando-se agrave solidatildeo Justino passeava pela areia a beira-
mar para meditar sobre a visatildeo de Deus sem conseguir apaziguar sua inquietaccedilatildeo quando
encontrou um anciatildeo misterioso que dissipou suas ilusotildeesrdquo37
Nesse Diaacutelogo nos deparamos com uma seacuterie de interrogaccedilotildees vindas da parte do
Anciatildeo judeu dirigidas a pessoa de Justino assuntos sobre Deus (divindade) sobre o saber
humano (filosofia) sobre a felicidade e a disposiccedilatildeo da alma (psique) satildeo algumas das questotildees
apresentadas ao ldquointelectordquo do filoacutesofo Justino No que tudo indica parecer um processo
baseado na maiecircutica socraacutetica o Anciatildeo leva nosso autor a inuacutemeras duacutevidas e consegue
estabelecer contradiccedilotildees naquela que parecia ser a melhor via (meacutedio platonismo) para o
entendimento da verdade conhecida por Justino ateacute entatildeo38 Diante das argumentaccedilotildees
apresentadas pelo Anciatildeo e sentindo-se vencido por elas Justino reconhece a sua limitaccedilatildeo e
pergunta ldquoEntatildeo a quem vamos tomar como mestre ou de quem poderemos tirar algum
proveito se nem mesmo nestes (filoacutesofos) se encontra a verdaderdquo39
33 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
34 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo III 1-VIII 2
35 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6-III 1
36 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010
37 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
38 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II
dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
39 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo VII 1 grifo nosso
20
O decorrer do caso nos eacute apresentado com entusiasmo pelo autor o Anciatildeo eacute retratado
como algueacutem que natildeo hesita em afirmar ao sedento Justino que os profetas da antiga alianccedila
foram aqueles que manifestaramproclamaram a Verdade antes de todos os outros homens40
pois a resposta ao apelo do espiacuterito de Justino jaacute encontrava razatildeo e sentido na revelaccedilatildeo
anteriormente profetizada (Antigo Testamento) Estes fatos (profecias) tinham total relevacircncia
pois eram ldquomais antigos do que todos estes considerados filoacutesofos homens bem-aventurados
justos e amigos de Deusrdquo41 Neste ponto soma-se de forma significativa a descriccedilatildeo de Walde
desenvolvida junto ao texto de Justino sobre a sua conversatildeo
Justino foi introduzido na feacute diretamente por um velho homem que o envolveu numa
discussatildeo sobre problemas filosoacuteficos e entatildeo lhe falou sobre Jesus Ele falou a Justino
sobre os profetas que vieram antes dos filoacutesofos ele disse e que falou ldquocomo
confiaacutevel testemunha da verdaderdquo Eles profetizaram a vinda de Cristo e suas
profecias se cumpriram em Jesus Justino disse depois que ldquomeu espiacuterito foi
imediatamente posto no fogo e uma afeiccedilatildeo pelos profetas e para aqueles que satildeo
amigos de Cristo tomaram conta de mim enquanto ponderava nestas palavras
descobri que a sua era a uacutenica filosofia segura e uacutetil [] eacute meu desejo que todos
tivessem os mesmos sentimentos que eu e nunca desprezassem as palavras do
Salvadorrdquo42
Apoacutes este evento notabilizador na histoacuteria de Justino um evento que atesta a
conversaccedilatildeo do filoacutesofo a nova religiatildeo que se apresentava a cada dia com maior forccedila em meio
ao mundo heleniacutestico nasce um ministeacuterio que iraacute se caracterizar por uma profunda e inegaacutevel
entrega a causa que o conquistou Chegando agrave cidade de Eacutefeso Justino se deparou com irmatildeos
que se diziam disciacutepulos do apoacutestolo Joatildeo os quais por meio de uma intensa relaccedilatildeo lhe
mostraram o novo e relevante aspecto da nova filosofia que agora havia decidido seguir
passando a entender que o cristianismo deve ser ldquoum cristianismo de atos e natildeo soacute de
palavrasrdquo43
Poreacutem o maior entendimento que o Apologista obteve foi o de encontrar a Verdade a
qual buscava incessantemente unindo este axioma (Verdade) com o Logos revelado pelas
Escrituras contexto que definiu como a uacutenica ldquofilosofia segura e proveitosardquo44 para a vida a
40 DROHNER Manual de Patrologia 2008
41 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo VII 1
42 WALDE Defensor da Igreja 2000 p 1
43 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 32 apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da
Feacute Cristatilde 2014 p 15
44 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo VIII 1
21
qual eacute a fonte do saber primordial que manteve-se inalterada poreacutem tendo assumido ldquonovas
formas e expressotildees diferentesrdquo atraveacutes dos seacuteculos45 Este esteio da intelectualidade de Justino
foi tatildeo decisivo para a histoacuteria do cristianismo que segundo Hamman passou a apresentar
(temporariamente) uma satisfatoacuteria ldquoconclusatildeo para todas as verdades parciais [] Instante
inesqueciacutevel que assinala uma data na histoacuteria cristatilde em que se encontram a alma platocircnica e
a alma cristatilde A Igreja acolhia Justino e Platatildeordquo46
Aleacutem disto Justino guardou caracteriacutesticas daquilo que reconhecia ser saudaacutevel de seu
passado como amigo da sabedoria vestindo-se com ldquomanto de filoacutesofo como sinal do pregador
cristatildeo itineranterdquo47 Desta forma Justino procurou caracterizar-se entre os seus
contemporacircneos como algueacutem que representava a Verdade que havia encontrado Ateacute onde se
tem notiacutecias jamais foi ordenado assim como a maioria dos Pais de sua classe Patriacutestica
(Apologistas)48 No entanto ele iniciou em Roma possivelmente a pedido do Bispo Higino49
ldquoagrave maneira das escolas de filosofia uma escola de iniciaccedilatildeo agrave religiatildeo cristatilderdquo50 na qual formou
disciacutepulos recebendo tambeacutem por esta iniciativa a possiacutevel desaprovaccedilatildeo da ldquoclasserdquo
intelectual de sua eacutepoca pois tudo indica que natildeo cobrava nenhuma compensaccedilatildeo ndash entenda-se
salaacuteriopagamento ndash de seus alunos51 Este periacuteodo ministerial de Justino na ldquocapital do mundordquo
teve tamanha repercussatildeo na histoacuteria da Igreja a ponto de Euseacutebio fazer questatildeo de reproduzir
algumas particularidades desse filoacutesofo cristatildeo deixando-nos assim uma robusta base
historiograacutefica de Justino o primeiro historiador da Igreja afirma que ldquofloresceu Justino Com
estofo de filoacutesofo era embaixador da palavra de Deus e lutava pela feacute com seus escritosrdquo52
Decorrido um periacuteodo de confrontaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas ndash especialmente no
acircmbito da eacuteticamoral ndash e de crescentes atritos com as esferas aristocraacuteticas da sociedade
romana Justino foi acusado de ser cristatildeo53 Tudo indica que a denuacutencia partiu de um filoacutesofo
45 FIGUEIREDO Curso de Teologia Patriacutestica I 1983 p 115
46 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
47 DROHNER Manual de Patrologia 2008 p 83
48 RIVAS San Justino en el proceso de separaciacuteon entre Judaiacutesmo y Cristianismo 2018
49 Acredita-se que devido ao crescimento de alguns movimentos gnoacutesticos (Marcionismo Valentianismo etc)
junto a capital do Impeacuterio o Bispo Higino (Nono Papa) solicitou a presenccedila de Justino na tentativa de se introduzir
uma formaccedilatildeo filosoacutefico-cultural cristatilde em Roma no empenho de se responder adequadamente mediante a
verdadeira doutrina de Cristo a estes representantes heterodoxos Ver FEacuteLIX Las filosofiacuteas en la teologiacutea de
Justino Maacutertir 2014 p 438
50 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1145
51 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010
52 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 10 8
53 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014
22
ciacutenico54 de caraacuteter duvidoso chamado Crescente O proacuteprio Justino registra em sua segunda
Apologia o pressentimento de que entregaria sua vida em prol da causa do Evangelho que o
libertou da ignoracircncia e o salvou da morte eterna Ele escreve ldquoEu mesmo espero ser viacutetima
das ciladas de algum desses democircnios aludidos e ser cravado no cepo ou pelo menos das ciladas
de Crescente esse amigo da desordem e da ostentaccedilatildeordquo55 Deste modo Justino e provavelmente
seis de seus disciacutepulos foram conduzidos diante do Prefeito de Roma chamado Juacutenio Ruacutestico56
Apoacutes ser julgado e condenado agrave morte ldquoSua sentenccedila foi a decapitaccedilatildeo que ocorreu por volta
do ano 165 dCrdquo57 Hamman ainda enobrece a posiccedilatildeo de Justino salientando que o Apologista
tinha a compreensatildeo de que diante de seus algozes natildeo se tratava ldquomais de convencer senatildeo de
confessarrdquo58 Assim mesmo nesse cenaacuterio de violecircncia a identidade e histoacuteria do filoacutesofo que
quando jovem peregrinava atraacutes das respostas do absoluto acaba por transformar-se por meio
de um ato de feacute o entatildeo filoacutesofo cristatildeo chamado Justino e morador da cidade de Roma passa
agora a ser tambeacutem o Maacutertir da Igreja de Cristo
Finalizamos este item com a descriccedilatildeo de Euseacutebio que com realce e temor retrata os
fatos finais da histoacuteria da vida de Justino
Por este mesmo tempo Justino mencionado haacute pouco depois de dedicar aos
supracitados imperadores seu segundo livro em defesa de nossas doutrinas foi
adornado com o sagrado martiacuterio O responsaacutevel pela conspiraccedilatildeo foi o filoacutesofo
Crescente - homem que se esforccedilava em levar uma vida e uma conduta bem adequadas
ao cognome de ciacutenico - pois Justino o havia repreendido muitas vezes em presenccedila
de seus ouvintes Justino com seu martiacuterio acabou cingindo o precircmio da vitoacuteria da
verdade da qual era embaixador59
54 O cinismo origina-se nas escolas filosoacuteficas da Greacutecia antiga que reivindicam uma linhagem socraacutetica Chamar
os ciacutenicos de ldquoescolardquo no entanto imediatamente levanta uma dificuldade para um grupo natildeo convencional e anti-
teoacuterico Seus principais interesses satildeo eacuteticos mas eles concebem a eacutetica mais como um modo de viver do que
como uma doutrina que precisa de explicaccedilatildeo Como tal askēsis ndash uma palavra grega que significa um tipo de
treinamento do eu ou da praacutetica ndash eacute fundamental Os ciacutenicos assim como os estoacuteicos que os seguiram caracterizam
o modo de vida ciacutenico como um ldquoatalho para a virtuderdquo (ver Dioacutegenes Laeacutercio Vidas de Filoacutesofos Eminentes)
Livro 6 Capiacutetulo 104 e Livro 7 Capiacutetulo 122) Embora muitas vezes sugiram que descobriram o caminho mais
raacutepido e talvez o mais certo para a vida virtuosa eles reconhecem a dificuldade desse caminho Ver PIERING
Julie In Cynics Internet Encyclopedia of Philosophy Texto completo em
lthttpswwwieputmeducynicsSSH3aigt
55 JUSTINO II Apologia VIII 9 1
56 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010
57 CAMPENHAUSEN Os Pais da Igreja A Vida e a Doutrina dos Primeiros Teoacutelogos Cristatildeos 2005 p 22 apud
SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 67
58 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 32
59 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 16 1
23
Apoacutes este introdutoacuterio exame biograacutefico comeccedilaremos a apresentar o cristatildeo e filoacutesofo
Justino em seu grupo de definiccedilatildeo Patriacutestica ou poderiacuteamos dizer no condicionamento
ministerial de seu exerciacutecio da manutenccedilatildeo e defesa da feacute cristatilde
12 PAIS DA IGREJA
Justino eacute um personagem histoacuterico do cristianismo mundial e possui seu assento no
espaccedilo definido pela teologia Patriacutestica como um PaiPadre da Igreja60 Em sua pesquisa de
ordenamento histoacuterico Santos salienta que ldquoele se insere num momento e num ciacuterculo muito
importante da histoacuteria do cristianismo primitivo naquilo que se convencionou chamar de
Padres da Igrejardquo61 Neste espaccedilo analiacutetico em que surgem terminologias de caraacuteter mais
temaacutetico desenvolvem-se alguns viacutenculos que visam obter uma melhor orientaccedilatildeo teoloacutegica
As ciecircncias intituladas Patriacutestica e Patrologia (denominaccedilatildeo predominante no acircmbito teoloacutegico
Catoacutelico Romano) detecircm as estruturas funcionalidades e linguagens que buscam o
aperfeiccediloamento deste ramo de pesquisa histoacuterica em meio a teologia Nesse espaccedilo torna-se
importante apresentar a sinteacutetica definiccedilatildeo oriunda da Congregaccedilatildeo para a Educaccedilatildeo Catoacutelica
em sua Instruccedilatildeo sobre o Estudo dos Padres da Igreja na Formaccedilatildeo Sacerdotal esta diz ldquoa
Patriacutestica ocupa-se do pensamento teoloacutegico dos Padres [] a Patrologia tem por objeto a vida
e os escritos dos mesmosrdquo62 Notamos que nesse ambiente se caracteriza uma espeacutecie de
sinoniacutemia entre os termos sendo isso o resultado de diversas siacutenteses oriundas do confronto de
algumas posiccedilotildees divergentes ao longo da histoacuteria da elaboraccedilatildeo teoloacutegica ocidental63 poreacutem
a definiccedilatildeo terminoloacutegica conhecida por Histoacuteria da Literatura Cristatilde Antiga utilizada por
Lazzati e Simonetti ndash mesmo que extensa e ainda pouco usada ndash devido a sua qualificaccedilatildeo
linguiacutestica acabou por se estabelecer Padovese resume bem essa proposta de ldquosimbioserdquo ao
60 Em vaacuterias liacutenguas eacute a mesma palavra para o significado de Padre e Pai pater em latim padre em italiano e em
espanhol pegravere em francecircs father em inglecircs Em portuguecircs haacute hoje distinccedilatildeo niacutetida entre Padre e Pai mas o sentido
original da palavra eacute o de Pai (ateacute natildeo muitos anos atraacutes diziacuteamos [na liturgia da ICAR] ldquoPadre nosso que estais
no ceacuteurdquo) Ver PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 17 grifo nosso
61 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 68
62 CONGREGACcedilAtildeO PARA A EDUCACcedilAtildeO CATOacuteLICA Instruccedilatildeo sobre o estudo dos Padres da Igreja na
Formaccedilatildeo Sacerdotal 1989 art 49
63 A Patriacutestica no mundo protestante tornou-se ldquoHistoacuteria dos Dogmasrdquo e tanto no acircmbito catoacutelico como
protestante alguns identificaram a Patrologia com a histoacuteria da literatura cristatilde (Harnack) ou com a ldquohistoacuteria da
literatura eclesiaacutesticardquo (Bardenhewer) ou ainda com a ldquohistoacuteria da literatura cristatilde antigardquo (Lazzati Simonetti)
Ver PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 22
24
sugerir que ldquoambas (Patriacutestica e Patrologia) juntamente com a histoacuteria da literatura cristatilde
antiga trabalham com as mesmas obrasrdquo64
Desta maneira a aacuterea de estudo dos Pais da Igreja tem sido objeto e alvo de diversas
pesquisas na atualidade aleacutem de ter sido um feacutertil campo para inuacutemeras e variadas abordagens
no decorrer dos seacuteculos havendo significativos trabalhos jaacute no Seacuteculo XVII65 Mais
recentemente (Seacuteculo XX)66 houve um reconhecimento do grande valor estrutural desse
segmento para o meio teoloacutegico de forma transconfessional onde acabou por acarretar
expressiva contribuiccedilatildeo em questotildees especialmente dogmaacuteticas Hall baseando-se no
pensamento de Casey desenvolve sua ideia atraveacutes de afirmaccedilotildees relevantes sob a importacircncia
do estudo da PatriacutesticaPatrologia para o ensino ordinaacuterio da teologia (academia) e da Igreja
(catequese)
Primeiro os pais satildeo os ldquomais proacuteximos beneficiaacuterios da tradiccedilatildeo apostoacutelicardquo Em
minhas proacuteprias palavras eles viveram e trabalharam em aproximaccedilatildeo hermenecircutica
com os escritores biacuteblicos especialmente os do novo testamento Segundo os pais
ldquoajudam-nos a entender nossas proacuteprias raiacutezesrdquo na feacute Terceiro muitos pais
escreveram e viveram como pastores Eles escreveram para ajudar as pessoas a
agarrar-se ao ensino de Cristo67
De maneira ampla podemos dizer que haacute algumas variaccedilotildees no meacutetodo e no estilo de
estudar o cenaacuterio patriacutestico em sua estrutura conjuntural Devemos iniciar salientando que o
periacuteodo patriacutestico simplesmente ldquonatildeo eacute definido como um marco cronoloacutegico mas como um
periacuteodo de passagemrdquo68 Deste modo uma delimitaccedilatildeo se constroacutei atraveacutes de uma conclusatildeo de
periacuteodos (estrutura temporal) ndash onde atributos culturais e eclesiaacutesticos se mesclam para gerar
uma definiccedilatildeo conceitual Nessa espeacutecie de ldquorestriccedilatildeo conceitualrdquo tambeacutem se encaixa o
conjunto de criteacuterios adotados no processo de seleccedilatildeo daqueles que podem receber tal tiacutetulo
honoriacutefico de Pai da Igreja mesmo que estes elementos de classificaccedilatildeo (ortodoxia
64 PADOVESE Leacutexicon ndash Dicionaacuterio Teoloacutegico Enciclopeacutedico 2003 p 576 apud SANTOS Identidade Cristatilde
no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 68 grifo nosso
65 DAILLEacute Traicte de lemploy des Saincts Peres pour le iugement des differends qui sont auiourdhui en la
religion 1632
66 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
67 CASEY Sacred Reading The Ancient Art of Lectio Divina 1995 p 105 apud HALL Lendo as Escrituras
com os Pais da Igreja 2003 p 56
68 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 25
25
santificaccedilatildeo reconhecimento eclesiaacutestico antiguidade)69 tenham possuiacutedo variaacuteveis (de meacuterito
e de forma)70 em sua aplicaccedilatildeo durante toda a histoacuteria Ainda nesse processo de formaccedilatildeo
tambeacutem cabe registrar a profunda influecircncia de indicaccedilatildeo geograacutefica ocorrida em todo esse
desenvolvimento onde uma linha divisoacuteria de significativa relevacircncia se apresenta quando faz
a separaccedilatildeo do ldquotemperamento teoloacutegico entre o Oriente e Ocidenterdquo71
Contudo cabe-nos assumir uma forma de classificaccedilatildeo e organizaccedilatildeo na elaboraccedilatildeo
desta pesquisa desta forma por utilizar-se de uma linguagem acessiacutevel e por apresentar maior
incidecircncia literaacuteria em meios natildeo teoloacutegicos utilizaremos das seguintes divisotildees baseadas no
trabalho de Hall descritas como
I Pais Apostoacutelicos (final do Seacuteculo I ateacute meados do II)
II Pais Apologistas ou Ante-Nicenos (Seacuteculo II)
III Pais Polemistas ou Nicenos (final do Seacuteculo II e Seacuteculo III)
IV Pais Cientiacuteficos ou Poacutes-Nicenos (Seacuteculo III ao V)72
O primeiro modo de classificaccedilatildeo iraacute se designar por uma abordagem de caraacuteter mais
funcional no que diz respeito a seus integrantes todos estatildeo relacionados ao periacuteodo
denominado de cristianismo antigoprimitivo recebendo assim o nome de Pais Apostoacutelicos
Foram os herdeiros diretos do chamado ldquodepoacutesito da Feacuterdquo o qual foi estabelecido atraveacutes da
missatildeo dos apoacutestolos de Cristo que detinham a autoridade e a grande responsabilidade de
perpetuar a doutrina apostoacutelica (entenda-se afirmar a continuidade da mensagem una santa e
catoacutelica do cristianismo por meio da manutenccedilatildeo daacute mensagem original) Jaacute os denominados
Pais Apologistas (grupo agrave qual Justino pertence) notabilizaram-se ndash principalmente devido agrave
notaacutevel qualidade de seus escritos ndash por defender a Feacute cristatilde de inuacutemeras accedilotildees repressivas agrave
doutrina e agraves comunidades fenocircmeno que se caracterizou especialmente no decurso do Seacuteculo
II Os Pais Polemistas salientam-se por sua ampla argumentaccedilatildeo no que confere a asseveraccedilatildeo
dos principais ensinos (doutrinasdogmas) do cristianismo protegendo-os das mais variadas
heresias tambeacutem afirmando suas peculiaridades mas acima de tudo pontuando estas instruccedilotildees
como questotildees indispensaacuteveis para a existecircncia da verdadeira Feacute em Cristo Por uacuteltimo os Pais
chamados ldquocientiacuteficosrdquo distinguiram-se por sua ecircnfase na densa aplicaccedilatildeo da Teologia em aacutereas
69 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 11
70 Bogaz Couto e Hansen indicam ainda um quinto criteacuterio na classificaccedilatildeo dos elementos para se ser credenciado
como um integrante do mundo patriacutestico eles o chamam de COLEGIALIDADE E DIAacuteLOGO Este visa analisar
a abrangecircncia do patrimocircnio teoloacutegico deixado pelo autor Ver BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica
caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 28 grifo do autor
71 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
72 HALL Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja 2003 Ver capiacutetulos III-V
26
filosoacuteficas e do conhecimento ldquonaturalrdquo (antropologia sociologia psicologia etc) de seu
tempo Cabe-nos ainda frisar por uma questatildeo teacutecnica que o periacuteodo Patriacutestico normalmente eacute
descrito ateacute figuras do Seacuteculo VIII73 poreacutem nossa abordagem natildeo esmiuccedilara tal fato pelo
mesmo exceder o tema proposto nesta pesquisa
Para terminar nossa lacocircnia abordagem de uma aacuterea tatildeo ampla e rica de conteuacutedo
devemos sustentar a premissa de que uma consistente estrutura para anaacutelise Patriacutestica se daacute
atraveacutes da apropriaccedilatildeo de seu legado intelectual e isso se constroacutei atraveacutes de um genuiacuteno exame
de suas obras Aqui se apresenta a Patrologia como a ciecircncia a ser seguida e exercitada em
sentido literal isso devido a essa ser a organizadora deste sistema Santos em sua pesquisa
contribui neste enfoque
Haacute ainda outra forma muito comum de se estudar os padres da Igreja que eacute a partir de
suas obras e ainda o estudo deles todos sem qualquer divisatildeo atendo-se agraves vezes agrave
cronologia tanto de suas obras quanto de sua existecircncia na linha do tempo agraves vezes
de forma alfabeacutetica Em ambos os casos satildeo estruturados de forma enciclopeacutedica ou
dispostos como um dicionaacuterio de pensadores cristatildeos Assim os padres da Igreja
fazem parte de um campo de estudo maior inserido no que pode ser chamado de
Histoacuteria das ideias ou do pensamento cristatildeo74
Seguindo em uma ordem organograacutefica examinaremos a partir de agora o grupo
Patriacutestico no qual Justino se enquadrou em seu exerciacutecio ministerial devido a suas
caracteriacutesticas filosoacuteficas e teoloacutegicas
121 Pais Apologistas
Verificamos que no decorrer do Seacuteculo II surgiu nas comunidades cristatildes uma iminente
necessidade de combater determinadas acusaccedilotildees aleacutem de procurar dissuadir visotildees distorcidas
sobre o cristianismo75 especialmente as relacionadas a questotildees que adotavam posturas parciais
que simplesmente acusavam a religiatildeo cristatilde de ser um legado para pessoas ldquoignorantes e
fanaacuteticasrdquo76 Tal incitaccedilatildeo jaacute estava ativa em grande parte do Impeacuterio Romano Desta forma a
73 Os estudiosos patriacutesticos definem o fechamento deste periacuteodo no ocidente com Gregoacuterio Magno (ou Isidoro de
Sevilha) no Seacuteculo VII e no Oriente com Joatildeo Damasceno no Seacuteculo VIII Ver BOGAZ COUTO HANSEN
Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 25
74 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 69
75 Ver FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 29-31
76 SIMONETTI In Apologeacutetica Literatura Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 181
27
Igreja ancorada em um ldquonuacutemero notaacutevel de gentios dotados de soacutelida formaccedilatildeo intelectualrdquo77
sendo sua maioria formada por ldquofiloacutesofosrdquo que haviam se convertido ao cristianismo acabaram
postando-se como baluartes desta nova religiatildeo tendo seus escritos (chamados de ldquotradiccedilatildeo
apologeacutetica cristatilderdquo78) como sua principal ldquoarmardquo de defesa estes (escritores e suas obras)
visavam ldquorefutar as calunias e [] expor o absurdo e a incoerecircncia dos ritos e dos mitos
pagatildeosrdquo79 aleacutem de apresentarem suas vidas como testemunhos da transformaccedilatildeo almejada por
esta feacute que defendiam Diante dos recursos aos quais protegiam e frente a busca de
ldquolegitimaccedilatildeordquo do cristianismo como religiatildeo no Impeacuterio estes cristatildeos questionavam de
maneira enfaacutetica as infundadas agressotildees propostas por aqueles que decidiam ldquofechar os seus
olhosrdquo as virtuosas obras geradas pelos seguidores desta Boa Nova Fluck contribui com ecircnfase
na tentativa de legitimaccedilatildeo que estes escritores apologistas procuraram dar a sua pregaccedilatildeo na
busca de toleracircncia para sua mensagem
Os apologistas queriam manifestar diante da opiniatildeo puacuteblica a verdadeira natureza do
Cristianismo Eles tinham a preocupaccedilatildeo de demonstrar a conformidade do
Cristianismo com o ideal helecircnico Proclamavam ndash na maioria dos casos ndash a alianccedila
do Cristianismo e da Filosofia Queriam mais do que somente toleracircncia Mostravam
que os cristatildeos eram os melhores cidadatildeos do Impeacuterio e que o Cristianismo favorecia
a grandeza do Impeacuterio80
Esta postura adotada por homens de elevada cultura acabou por robustecer e superar
uma necessidade existencial que havia surgido na relaccedilatildeo do cristianismo para com mundo
greco-romano isso devido agrave expansatildeo e estabilizaccedilatildeo em sociedades predominantemente
heleniacutesticas Os Pais Apologistas (em sua ampla maioria) inauguraram o que podemos chamar
de informaccedilatildeo ldquoad extrardquo81 ou seja estabelecer uma relaccedilatildeo de comunicaccedilatildeo para fora dos
ldquomurosrdquo da Igreja O que antes era conhecida como a dimensatildeo (alcance e destino para
mensagem) literaacuteria ndash definida como ldquoad intrardquo82 ndash no periacuteodo dos Pais Apostoacutelico agora era
acompanhada de um novo estilo linguiacutestico que abria espaccedilo e trazia em sua armaccedilatildeo tambeacutem
77 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988 p 69
78 ARZANI VENTURINI A Origem da Tradiccedilatildeo Apologeacutetica Cristatilde e Justino Maacutertir 2010 p 2
79 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 73
80 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 31
81 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011
82 FIGUEIREDO Curso de Teologia Patriacutestica I 1983 p 97
28
o ldquoconhecimento das ciecircncias das letras e da filosofiardquo83 Torna-se valiosa nessa abordagem as
consideraccedilotildees gerais de Haumlgglund sobre a importacircncia da accedilatildeo literaacuteria dos Apologistas
Os apologistas ocupam lugar de destaque na histoacuteria do dogma natildeo soacute devido a sua
descriccedilatildeo do cristianismo como a verdadeira filosofia como tambeacutem por sua tentativa
de elucidar ensinamentos teoloacutegicos com o auxiacutelio de terminologia filosoacutefica
contemporacircnea (por exemplo na assim chamada laquocristologia do Logosraquo) O que neles
encontramos por conseguinte eacute a primeira tentativa de definir de maneira loacutegica o
conteuacutedo da feacute cristatilde bem como a primeira conexatildeo entre teologia e ciecircncia entre
cristianismo e filosofia grega84
Acredita-se que o periacuteodo apologeacutetico teve seu iniacutecio no seio da Igreja com a literatura
de um disciacutepulo chamado Quadrato que possivelmente em 124125 dC apresentou ldquodianterdquo
do Imperador Adriano na cidade de Atenas (Greacutecia) uma espeacutecie de tratado que visava enfatizar
que Cristo em seu ministeacuterio terreno havia realizado diversas curas e milagres afirmando que
a ressurreiccedilatildeo de mortos foi algo emblemaacutetico entre esses feitos prodigiosos85 Aristides eacute outro
personagem que merece destaque como precursor desta classe Patriacutestica Euseacutebio se refere a
ele deste modo ldquoMas tambeacutem Aristides homem de feacute entregue a nossa religiatildeo deixou assim
como Codratos uma Apologia em favor da feacute que havia dirigido a Adriano Tambeacutem a obra
deste escritor se conservou ateacute nossos dias em muitos lugaresrdquo86 Nesse escrito o historiador da
Igreja iraacute apresentar uma das proposiccedilotildees recorrentes entre os escritos apologeacuteticos do periacuteodo
o de que somente os cristatildeos satildeo verdadeiramente eacuteticos isso devido principalmente aos seus
haacutebitos de elevada postura moral87 o que buscava demonstrar que eram os uacutenicos que
verdadeiramente conheciam a DeusDivindade88 e deste modo acabavam por serem os
ldquomelhores cidadatildeos do Impeacuteriordquo89 Desta forma seguindo quase que um modelo padratildeo de
abordagem esses Apologistas apelaram aacute razoabilidade dos governantes romanos de sua eacutepoca
exigindo destes natildeo apenas toleracircncia mas acima de tudo justiccedila
83 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 73
84 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 21
85 MORESCHINI NORELLI Manual de Literatura Cristatilde Antiga Grega e Latina 2005
86 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 3 3
87 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
88 MORESCHINI NORELLI Manual de Literatura Cristatilde Antiga Grega e Latina 2005
89 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 28
29
Ainda citamos o trabalho de Xavier que aborda de forma sinteacutetica outras figuras desse
periacuteodo apologeacutetico destacando sua alta produccedilatildeo textual que acabou por ter significativa
relevacircncia na estruturaccedilatildeo e funcionalidade de diversos segmentos do processo de formaccedilatildeo
dogmaacutetico na Igreja O relato agrega teor agrave nossa construccedilatildeo
Taciano disciacutepulo de Justino que compocircs ldquoDiscurso aos gregosrdquo Atenaacutegoras que
escreveu ldquoDefesa dos cristatildeosrdquo e um tratado ldquoSobre a ressurreiccedilatildeo dos mortosrdquo Por
volta do ano 180 o bispo de Antioquia Teoacutefilo escreveu ldquoTrecircs livros a Autoacutelicordquo
tratando da doutrina cristatilde de Deus a interpretaccedilatildeo das Escrituras e a vida cristatilde
refutando as objeccedilotildees dos pagatildeos sobre essas questotildees No seacuteculo terceiro Oriacutegenes
de Alexandria escreveu uma refutaccedilatildeo ldquoContra Celsordquo Todas essas obras foram
escritas em grego sendo que na liacutengua latina destacam-se dois escritos apologeacuteticos
a ldquoApologiardquo de Tertuliano e o ldquoOtaacuteviordquo de Minuacutecio Feacutelix90
Portanto fica registrado na histoacuteria da identidade cristatilde mais que um gecircnero literaacuterio
antes uma postura corajosa de homens de estimado caraacuteter que ldquotocados pelo testemunho dos
cristatildeos e pelo querigma apostoacutelicordquo91 comunicaram uma genuiacutena e autecircntica mensagem de
vida e esperanccedila Tambeacutem devemos afirmar que a ldquotarefa de defender a feacute diante desta classe
de ataques produziu algumas das mais notaacuteveis obras teoloacutegicas do seacuteculo segundordquo92
Provavelmente muitos poderosos abastados intelectuais e outros detentores das benesses que
compunham a aristocracia romana do periacuteodo foram confrontados e alcanccedilados pelo
testemunho destes disciacutepulos que enfatizaram o apelo agrave razatildeo na tentativa de evitar a loucura
humana Nesse ponto Xavier consegue expressar com clareza a provaacutevel motivaccedilatildeo destes
homens ldquoSuas principais intenccedilotildees eram fazer com que o cristianismo fosse visto como um
ideal de vida que podia ser aceito e vivido em conformidade com a cultura greco-romana sem
necessidade de serem os cristatildeos perseguidos mortos ou marginalizadosrdquo93
122 O Apologista Justino
Eacute importantiacutessimo iniciarmos este item com as palavras de Dreher Frangiotti
Haumlgglund e Hamman O primeiro diz ldquoEntre os apologetas cristatildeos que procuraram estabelecer
90 XAXIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 14 grifo do autor
91 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 73
92 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 86
93 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 14
30
um diaacutelogo com os filoacutesofos Justino (110-165) foi o mais importanterdquo94 O segundo
similarmente afirma ldquoJustino eacute certamente o melhor apologista do seacuteculo IIrdquo95 O terceiro daacute
mesma forma garante no uso de um superlativo a importacircncia do Apologista ldquoO mais notaacutevel
dos apologistas foi Justino cognominado laquoo maacutertirraquo cujas duas laquoapologiasraquo datam de meados
do segundo seacuteculordquo96 O quarto usando de adjetivaccedilatildeo similar agrave do anterior enobrece com
insigne descriccedilatildeo a figura do Apologista ldquoDe todos os filoacutesofos cristatildeos do seacuteculo II Justino eacute
o mais ceacutelebre e o maiorrdquo97
Neste espaccedilo faremos uma descriccedilatildeo sinteacutetica apresentando a figura de Justino dentro
de sua classe Patriacutestica tendo como centro de nossa atenccedilatildeo sua produccedilatildeo textual
especialmente de suas duas apologias que satildeo as nossas principais ferramentas de ponderaccedilatildeo
sobre sua atuaccedilatildeo ministerial Nessa composiccedilatildeo podemos dizer que entre os ldquoApologistas
Maioresrdquo98 nenhum ldquoestava mais bem preparado para esse confronto do que Justinordquo99 isso
devido a sua variada formaccedilatildeo filosoacutefica Aproximadamente entre os ldquoanos de 150 e 165
dCrdquo100 Justino se apresentou no cenaacuterio apologeacutetico cristatildeo de forma avultosa mesmo natildeo
sendo um literato de destaque ganhou espaccedilo seja por seu caraacuteter iacutentegro como tambeacutem por
sua postura de retidatildeo haacute doutrina a ponto de seus escritos mostrarem ldquoo calor nunca
desmentido das suas convicccedilotildeesrdquo101 Hamman define bem essa peculiaridade na literatura de
Justino ao dizer que a ldquooriginalidade de Justino natildeo estaacute na sua qualidade literaacuteria mas na
novidade de seu esforccedilo teoloacutegicordquo102
Deste modo Justino conseguiu expressar muito bem aquilo que se tornaria o estandarte
apologeacutetico deste periacuteodo afirmando que o cristianismo ldquoeacute a filosofia segura e proveitosardquo103
levando-nos a conclusatildeo de que em ldquoCristo deu-se portanto a restauraccedilatildeo da filosofiardquo104
Nota-se que Justino estava absolutamente convencido de que havia encontrado o verdadeiro
94 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47 grifo nosso
95 FRANGIOTTI Introduccedilatildeo In I Apologia 1995 p 6 grifo nosso
96 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 21 grifo nosso
97 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 27 grifo nosso
98 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 80
99 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 28
100 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1145
101 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 56
102 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 31
103 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo VIII 1
104 BARRERA A Biacuteblia Judaica e a Biacuteblia Cristatilde introduccedilatildeo a histoacuteria da Biacuteblia 1995 p 663 apud FLUCK
Teologia dos Pais da Igreja 2012 p 32
31
caminho ldquoe passou a defendecirc-lo de diversas maneiras por meio de seus ensinos em seus
escritos e em sua vida e morte como maacutertirrdquo105 Assim como resultado de sua produccedilatildeo
literaacuteria Justino acabou destacando-se a ponto de se tornar ldquoo principal dos apologistas gregos
do seacuteculo IIrdquo106 como jaacute referido acima vale ainda mencionar o seleto testemunho de Euseacutebio
nessa constituiccedilatildeo este nos sugere que o legado apologeacutetico de Justino eacute consequecircncia de um
elaborado processo do conhecimento ao qual este passou a possuir ele escreve ldquoTambeacutem por
este tempo Justino sincero amante da verdadeira filosofia continuava ainda ocupado em
exercitar-se nas doutrinas dos gregos [] Na mesma obra demonstra que sua conversatildeo da
filosofia grega agrave religiatildeo natildeo se fez sem razatildeo mas com juiacutezordquo107
Contudo ainda nos cabe um raacutepido registro histoacuterico relativo agrave produccedilatildeo literaacuteria de
Justino referente a questatildeo de se apontar qual seria sua habilitaccedilatildeo como um autecircntico
Apologista do Seacuteculo II Obviamente esta capacidade teacutecnica proveacutem daquilo que eacute a parte
material de sua arte no caso de Justino suas obras108 A pesquisa historiograacutefica apresenta ldquo8
obrasrdquo109 creditadas a Justino por Euseacutebio110 fazendo com que nosso autor seja reconhecido
como um escritor de ldquofecundardquo111 atividade literaacuteria no passado entretanto como autecircnticas
chegaram ateacute noacutes apenas trecircs destas diversas obras satildeo elas a I e II Apologia e um relato
argumentativo com um provaacutevel rabino judeu intitulado de Diaacutelogo com Trifatildeo112 Entre as
Apologias a primeira eacute direcionada agrave classe imperial Romana (Antonino Pio e seus filhos
Marco Aureacutelio e Luacutecio Vero) como tambeacutem ao senado Jaacute a segunda eacute motivo de um amplo
debate na esfera da criacutetica textual por natildeo apresentar um relato introdutoacuterio nem um
destinataacuterio de forma objetiva Muitos acreditam ser esta obra um apecircndice da I Apologia Nesta
cena eacute relevante a pesquisa de Santos que cita as bases de Euseacutebio aleacutem de outros trecircs autores
que nos auxiliam de forma eficaz na elucidaccedilatildeo desta questatildeo mesmo que natildeo possam pocircr um
fim a discussatildeo ele diz
105 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 13 grifo nosso
106 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 13
107 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 3 5
108 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
109 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988 p 76
110 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 18 1-6
111 FIGUEIREDO Curso de Teologia Patriacutestica I 1983 p 115
112 BOGAZ COUTO HANSEN Patriacutestica caminhos da tradiccedilatildeo Cristatilde 2011 p 83 SIMONETTI In Justino
Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1145
32
Destas obras cabem-nos as seguintes consideraccedilotildees quanto agraves duas primeiras a
primeira apologia citada em Euseacutebio corresponde a I Apologia que chegou ateacute noacutes A
segunda apologia natildeo corresponde a II Apologia que temos Primeiro porque natildeo
possui uma introduccedilatildeo e nem um destinataacuterio enquanto que a citada por Euseacutebio
possui um destinataacuterio O segundo ponto que corrobora este ponto de vista eacute a citaccedilatildeo
que Euseacutebio faz da primeira apologia Diz ele ldquoo mesmo autor (Justino) em sua
primeira Apologiardquo e conta uma histoacuteria que consta em nossa II Apologia II 1-20
(EUSEacuteBIO DE CESAREacuteIA Histoacuteria Eclesiaacutestica IV 17) Eacute mais provaacutevel que a dita
II Apologia que chegou ateacute noacutes seja um apecircndice da I Apologia (FRANGIOTTI 1995
MORESCHINI amp NORELLI 2005 p 110)113
Diante de tatildeo curioso e desafiante cenaacuterio eacute valioso buscar compreender o propoacutesito
dos tratados de Justino pois por ldquotraacutes deste esforccedilo descobrimos o testemunho de um homem
de uma conversatildeo de uma opccedilatildeo definitivardquo114 opccedilatildeo que nos oferece a possibilidade de
conhecer o verdadeiro e uacutenico Deus e se necessaacuterio for viver e morrer na defesa deste
Evangelho que nos leva ao verdadeiro conhecimento115
Apoacutes abordar a figura de Justino em sua classe Patriacutestica e salientar resumidamente
seu instrutivo serviccedilo para com o cristianismo seraacute analisada de maneira diminuta mas com
dedicado alinho a dataccedilatildeo e a estrutura literaacuteria da primeira obra apologeacutetica que serve de esteio
para esta pesquisa
13 ANAacuteLISE LITERAacuteRIA DA I APOLOGIA DE JUSTINO
A constituiccedilatildeo textual da primeira obra de Justino apresenta caracteriacutesticas histoacuterico-
literaacuterias muito interessantes como tambeacutem evidecircncia aspectos relevantes na assimilaccedilatildeo do
desenvolvimento do cristianismo dos dois primeiros seacuteculos Desta forma reconhecemos a
necessidade de uma abordagem cientiacutefica ndash mesmo que aqui apresentada de maneira lacocircnica
ndash de algumas aacutereas da anaacutelise criacutetica textual para uma melhor assimilaccedilatildeo de nosso escrito
alicerccedilante Assim um enfoque calculado na dataccedilatildeo na divisatildeo no gecircnero literaacuterio e nas
principais peccedilas quirograacuteficas da I Apologia de Justino nos possibilitaratildeo uma melhor
compreensatildeo dos conteuacutedos e elementos que a mesma visa comunicar A partir de agora nosso
objetivo seraacute examinar estas quatro aacutereas
131 Dataccedilatildeo
113 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 70
114 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 31
115 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
33
Apresenta-se praticamente como ponto paciacutefico na pesquisa histoacuterica-teoloacutegica que a
obra tenha sido escrita em meados do Seacuteculo II de nossa Era sendo reconhecida como a data
mais aceita para esta afirmaccedilatildeo o periacuteodo entre os anos de 150 e 160 dC116 Essa tese encontra
forccedila significativa atraveacutes de quatro argumentos todos de cunho e alccedilada existencial
comunicados na proacutepria obra Inicialmente os destinataacuterios para quem esse escrito apologeacutetico
de Justino se dirigiu garantem um aporte histoacuterico consideraacutevel neste exame o mesmo escreve
ldquoAo imperador Tito Eacutelio Adriano Antonino Pio Ceacutesar Augusto ao seu filho Veriacutessimo filoacutesofo
e a Luacutecio filho natural do Ceacutesar filoacutesofo e filho adotivo de Pio amante do saber ao sacro
Senado e a todo o povo romanordquo117 Por meio desse dado Frangiotti eacute categoacuterico ao afirmar que
eacute ldquofato que estes imperadores reinaram do ano 147 ao ano 161 A Apologia deve ter sido escrita
ao longo destes 15 anosrdquo118
Em segundo outro fator se apresenta determinante na tentativa de se apontar
satisfatoriamente a data desse escrito o ponto em questatildeo se apresenta no capiacutetulo XLVI da
obra novamente o comentaacuterio de Frangiotti eacute valioso por apresentar evidecircncias importantes
Justino menciona que uma das objeccedilotildees contra a doutrina cristatilde era a de ldquodizermos
que Cristo nasceu somente haacute cento e cinquenta anos sob Quirino e ensinou sua
doutrina mais tarde no tempo de Pocircncio Pilatosrdquo Embora se deva tomar o ano cento
e cinquenta como um arredondamento pode-se pensar que a redaccedilatildeo da I Apologia
natildeo se deu antes desta data119
O terceiro elemento a se tornar pontual no texto de Justino eacute sua menccedilatildeo a respeito da
terceira revolta judaica liderada por Simatildeo Bar Koacutekeba em meados do Seacuteculo II A respeito
disto Justino relata com ecircnfase apologeacutetica que ldquoCom efeito na guerra dos judeus agora
terminada Bar Koacutekeba o cabeccedila da rebeliatildeordquo120 estaria aplicando meacutetodos de tortura nos
cristatildeos ao seu redor Santos mostra em sua pesquisa que esta exposiccedilatildeo de Justino pode ser
considerada como um ponto norteador para uma medida qualificada de dataccedilatildeo de sua obra o
116 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988 DROHNER Manual
de Patrologia 2008
117 JUSTINO I Apologia I 1
118 FRANGIOTTI Introduccedilatildeo In I Apologia 1995 p 7
119 FRANGIOTTI Introduccedilatildeo In I Apologia 1995 p 7
120 JUSTINO I Apologia XXXI 6
34
historiador diz ldquoEssa rebeliatildeo ocorreu entre os anos de 132 e 135 dC A expressatildeo lsquoagora
terminadarsquo nos remete a uma data posterior ao final da revoltardquo121
O quarto e uacuteltimo argumento baseia-se no relato de Justino encontrado no capiacutetulo
XXIX nos versos 2 e 3 da I Apologia Neste espaccedilo o Apologista retrata um caso juriacutedico
envolvendo o prefeito de Alexandria denominado Feacutelix que havia indeferido um pedido
exoacutetico proposto por um jovem cristatildeo que desejava castrar-se por motivos asceacuteticos Bases
histoacutericas confiaacuteveis ldquoidentificam o prefeito Feacutelix como Minuacutecio Feacutelix o qual reinou em
Alexandria do ano 148 a 154rdquo122 podendo-se deste modo catalogar outro importante elemento
que corrobora para a dataccedilatildeo da I Apologia
Por fim mesmo que natildeo sejamos especialistas na anaacutelise historiograacutefica nem mesmo
nos seja possiacutevel definir uma data precisa para o escrito examinado ainda assim em vista dos
termos aqui apresentados reconhecemos com a ampla maioria de pesquisadores da aacuterea que
os elementos apresentados trazem recursos suficientes para que atestemos que a I Apologia de
Justino tenha realmente sido escrita por volta da deacutecada de 50 do Seacuteculo II da era cristatilde
132 Divisatildeo Textual
O escrito natildeo segue um padratildeo riacutegido de construccedilatildeo textual pelo contraacuterio digressotildees
satildeo comuns em todas as obras de Justino mesmo que suas apologias sofram menos com
divagaccedilotildees abruptas ou mudanccedilas draacutesticas de rumo nas intenccedilotildees e consideraccedilotildees centrais que
o autor propotildee em suas conjunccedilotildees temaacuteticas Essas variaccedilotildees possivelmente ocorrem devido a
Justino preferir seguir uma proposta de caraacuteter mais catequeacutetico em vez de sua proacutepria
elaboraccedilatildeo conceitual123
Baliza-se de maneira majoritaacuteria na anaacutelise criacutetica a concordacircncia de que a obra se
divide em duas partes principais124 Contudo apresentam-se variaccedilotildees nessa forma de
separaccedilatildeo Nossa opccedilatildeo seraacute por apresentar a estrutura oferecia por Drohner por ser a mais
utilizada por outros autores aleacutem de parecer a que melhor reporta o teor do pensamento
proposto por Justino em sua construccedilatildeo apologeacutetica-doutrinal
121 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 72
122 FRANGIOTTI Introduccedilatildeo In I Apologia 1995 p 7
123 DROHNER Manual de Patrologia 2008
124 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988 DROHNER Manual
de Patrologia 2008
35
Na primeira parte os capiacutetulos I ao XXIX estabelecem uma forte e riacutegida postura de
defesa contra algumas acusaccedilotildees lanccediladas sobre os cristatildeos como a praacutetica do ateiacutesmo por
exemplo Salienta-se neste espaccedilo sua afirmaccedilatildeo de que Jesus Cristo eacute ldquoo Logos e Filho de
Deusrdquo125 que revelou os planos demoniacuteacos que aprisionam a humanidade atraveacutes de praacuteticas
pecaminosas afastando-os do plano de salvaccedilatildeo No entanto boas novas se anunciam a partir
de agora pela revelaccedilatildeo do Logos por meio dos cristatildeos pelo qual todos (homens) poderatildeo
tornar-se tementes a Deus A segunda parte se desenvolve entre os capiacutetulos XXX ao LXVIII
nesta seccedilatildeo questotildees dogmaacuteticas (Encarnaccedilatildeo Divindade Profecias etc) questotildees filosoacuteficas
(revelaccedilatildeo do Logos faacutebulas humanas Platonismo etc) e questotildees sacramentaiseclesiaacutesticas
(Batismo Santa Ceia Liturgia) se aglutinam na formataccedilatildeo de uma ideia para defesa da
identidade e do bem-estar de um ldquopovordquo (conceito que abordaremos mais detalhadamente no II
capiacutetulo deste trabalho)
A partir desse item trataremos do gecircnero literaacuterio da obra algo muito importante na
elaboraccedilatildeo desta pesquisa
133 Gecircnero Literaacuterio
O estilo natildeo eacute novo nem recente e foi muito utilizado na antiguidade126 Podemos
afirmar com seguranccedila que as primeiras referecircncias a esse tipo de literatura de que dispomos
datam do periacuteodo da Filosofia Claacutessica e podem ser encontradas a partir do Seacuteculo IV aC
Provavelmente uma das obras mais conhecidas e renomadas deste tipo eacute a Apologia de Soacutecrates
escrita por seu aluno Platatildeo Nela aquele que possivelmente foi o mais dedicado dentre seus
disciacutepulos procura defender o legado e a imagem de seu mestre por meio da preservaccedilatildeo do seu
pensamento Eacute importante frisar neste contexto a abordagem de forma direta e completa (em
um estilo dialogal-filosoacutefico) do processo (meacutetodo) de julgamento de Soacutecrates oferecida por
Platatildeo a tocircnica do relato parece ganhar a direccedilatildeo de querer conscientizar seus ouvintes da
necessidade de se fazer justiccedila independentemente do caso e das circunstacircncias que estatildeo em
debate Esse estilo acaba por influenciar sua eacutepoca e torna-se o modelo apologeacutetico a ser
seguido nos seacuteculos seguintes127
Contribui ainda para uma melhor assimilaccedilatildeo das intenccedilotildees subjacentes a esse estilo
de linguagem e escrita o pensamento de Malta que ao comentar os diaacutelogos que tratam do
125 DROHNER Manual de Patrologia 2008 p 84
126 MALTA Introduccedilatildeo In Apologia de Soacutecrates 2008
127 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
36
processo contra Soacutecrates (os quais satildeo quatro Ecircutifon Apologia de Soacutecrates Criacuteton e Feacutedon)
acaba por colaborar de maneira expressiva na elaboraccedilatildeo do caraacuteter que estas obras (apologias)
procuravam transmitir aos seus receptores ldquoEntre eles haacute uma clara sequencia dramaacutetica desde
a discussatildeo sobre o ponto central da acusaccedilatildeo (o que eacute piedade) passando pela defesa no
tribunal e a estada na prisatildeo ateacute o momento em que a pena de morte eacute cumpridardquo128
A palavra apologia (grego απολογια) que no portuguecircs eacute definido como um
substantivo feminino129 eacute formada por dois vocaacutebulos gregos O primeiro eacute απο uma partiacutecula
primaacuteria uma preposiccedilatildeo cujo significado baacutesico eacute a ideia ldquode separaccedilatildeo eou de origem do
lugar de onde algo estaacute vem acontece eacute tomadordquo130 O segundo eacute o vocaacutebulo λογος de
significado vasto ndash desenvolvendo inclusive uma estrutura particular junto ao cristianismo131
ndash mas colocado em paralelo com o nosso exame pode ser definido como ldquopalavra proferida
a viva voz que expressa uma concepccedilatildeo ou ideia o que eacute declarado pensamento declaraccedilatildeo
aforismo dito significativo sentenccedila maacuteximardquo132 ldquoproclamaccedilatildeo ensinamento [] doutrina
parte de uma doutrinardquo133 Entretanto deve-se sempre se levar em conta que junto ao ambiente
filosoacutefico-teoloacutegico de Justino ldquoum duplo uso do termo deve ser distinguido um que diz
respeito ao falar e outro que se relaciona com o pensamentordquo134 Neste cenaacuterio ainda se
robustece a ideia de que o termo composto (απολογια) era condutor de um conceito de
soberania instaurado pela ldquosabedoria pessoal e poder em uniatildeo com Deusrdquo135 Ainda focando
128 MALTA Introduccedilatildeo In Apologia de Soacutecrates 2008 p 11
129 Apologia (amiddotpomiddotlomiddotgimiddota) Substantivo feminino Significa 1 Discurso encomiaacutestico 2 [Figurado] Elogio 3
Defesa laudatoacuteria Ver Dicionaacuterio Priberam da Liacutengua Portuguesa Disponiacutevel em
lthttpsdicionariopriberamorgapologiagt Acesso em 28 de set 2018
130 STRONG Dicionaacuterio Biacuteblico Strong 2002 p 1317
131 Ritt sugere-nos que a partir dos registros neotestamentaacuterios houve uma guinada na concepccedilatildeo do Logos como
elemento estrutural e funcional para a realidade histoacuterica do termo junto as culturas e os ambientes intelectuais
que o utilizavam Utilizando-se de um sistema de progressatildeo biacuteblica Ritt chega ao proacutelogo do Evangelho de Joatildeo
onde salienta que ldquoEstas declaraccedilotildees que estatildeo concentradas na encarnaccedilatildeo permitem reconhecer uma origem
cristatilde do hino (proacutelogo do Evangelho de Joatildeo)rdquo onde a autenticidade do sujeito (Logos) como um recurso estaacutevel
e completo para a humanidade se daacute a conhecer nesse evento apoteoacutetico (encarnaccedilatildeo de Cristo) Ver RITT In
λόγος ου ό Diccionario Exegetico del Nuevo Testamento Volumen II 1998 p 78 grifo nosso No original Estos
enunciados que se concentran en la encarnacioacuten permiten reconocer un origen cristiano del himno
132 STRONG Dicionaacuterio Biacuteblico Strong 2002 p 1622
133 RUSCONI Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento 2003 p 288 grifo nosso
134 THAYER A Greek-English lexicon of the New Testament being Grimms Wilkes clavis novi testamenti 1889
p 880 No original a twofold use of the term is to be distinguished one which relates to speaking and one which
relates to thinking
135 THAYER A Greek-English lexicon of the New Testament being Grimms Wilkes clavis novi testamenti 1889
p 882 No original personal wisdom and power in union with god
37
este segundo vocaacutebulo para uma maior amplitude do assunto sobre este termo grego tatildeo
ilustrativo vale-nos citar a definiccedilatildeo de Pereira
Palavra dito revelaccedilatildeo divina resposta dum oraacuteculo maacutexima sentenccedila exemplo
decisatildeo resoluccedilatildeo condiccedilatildeo promessas pretexto argumento ordem menccedilatildeo
notiacutecia que corre conversaccedilatildeo relato mateacuteria de estudo ou de conversaccedilatildeo razatildeo
inteligecircncia senso comum a razatildeo de uma coisa motivo juiacutezo opiniatildeo estima valor
que se daacute a uma coisa justificaccedilatildeo explicaccedilatildeo a razatildeo divina136
Rapidamente atentando aos escritos apologeacuteticos cristatildeos do Seacuteculo II notamos um
ldquoesforccedilo de aproximaccedilatildeordquo137 dos Pais Apologistas (em sua ampla maioria) para a utilizaccedilatildeo da
consagrada forma do diaacutelogo-filosoacutefico (como citado acima) isso devido especialmente ao fato
de essas obras serem direcionadas agrave aristocracia poliacuteticaintelectual de sua eacutepoca incluindo
nesse cenaacuterio opulente os proacuteprios Imperadores de Roma138 Uma importante referecircncia a ser
associada a este contexto estaacute relacionada agrave utilizaccedilatildeo e significado da palavra ldquoapologiardquo
utilizada por Euseacutebio na identificaccedilatildeo da obra de Justino Euseacutebio ndash possivelmente o primeiro
a empregar o termo (apologia) para definir um conjunto de escritos do meio cristatildeo139 ndash utiliza
das seguintes descriccedilotildees para se referir ao nosso autor ldquoEm sua primeira Apologiardquo140 ou ldquoao
escrever sua Apologia dirigida a Antoninordquo141 e ainda ldquoem sua Apologiardquo142 Eacute importante
frisar que Justino em nenhum momento se utiliza do termo ldquoapologiardquo em sua obra143 mas a
define como ldquodiscurso e suacuteplicardquo144 todavia para Euseacutebio (e para a Sagrada Tradiccedilatildeo na qual
este se amparava) Justino indiscutivelmente havia sido um fiel defensor da verdade revelada
de Deus Aleacutem disso neste quadro cabe-nos ainda ressaltar o comentaacuterio de Arzani e Venturini
ao trabalho de Euseacutebio pois ambos buscam definir uma ideia qualitativa e funcional na
utilizaccedilatildeo do termo pelo historiador
136 PEREIRA Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 1998 p 350
137 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 188
138 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988
139 ARZANI VENTURINI A Origem da Tradiccedilatildeo Apologeacutetica Cristatilde e Justino Maacutertir 2010 Para um maior
aprofundamento do tema ver 2 Euseacutebio de Cesareia as apologias e os apologistas p 2-7
140 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica II 13 2 VI 17 1
141 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 3
142 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 11 11
143 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
144 JUSTINO I Apologia I 1
38
Uma anaacutelise mais ampla sobre a constituiccedilatildeo (ou natildeo) dos gecircneros apologeacuteticos
cristatildeos deve ficar para uma outra oportunidade entretanto considerando que eacute
Euseacutebio quem primeiro apresenta uma ideia mesmo que hipoteacutetica do
reconhecimento das formas dos textos de defesa dos cristatildeos ou de suas crenccedilas eacute
preciso considerar como ele emprega o termo apologia Aleacutem de empregar o termo
apologia para se referir aos sete textos anteriormente citados ele tambeacutem o usa no seu
sentido claacutessico como simples ldquodiscurso de defesardquo145
Desta forma podemos concluir que os escritos apologeacuteticos buscavam efeitos
similares tanto no cenaacuterio cristatildeo quanto no pagatildeo Poreacutem no que cabe agrave Igreja vale ressaltar
que o estilo apologeacutetico procurou desconstruir equiacutevocos salientar o cristianismo como religiatildeo
ordeira e beneacutefica ndash entenda-se (baseado em alguns relatos Patriacutesticos) como superior agraves
demais crenccedilas ndash mas acima de tudo sanar as injusticcedilas cometidas contra os cristatildeos Nesse
uacuteltimo ponto a penna dos Apologistas procurava pesar contra a consciecircncia dos governantes
de seu tempo a reflexatildeo de Richard Norris considera bem essa questatildeo ldquoo objetivo de tais
escritos eram em geral persuadir as autoridades de que as frequentes perseguiccedilotildees locais eram
injustas desnecessaacuterias e indignas de governantes esclarecidosrdquo146
A partir deste item visando a qualificaccedilatildeo deste trabalho damos segmento a nosso
exame estrutural agregando a seu corpo um destacado incremento teacutecnico falemos agora dos
manuscritos da I Apologia
134 Manuscritos
A criacutetica textual somada a inuacutemeras e significativas descobertas arqueoloacutegicas tecircm
possibilitado haacute teologia avanccedilos consideraacuteveis em suas pesquisas acerca dos documentos
antigos do cristianismo No que se refere as obras de Justino isso natildeo eacute diferente pois desde o
Seacuteculo XIX a criacutetica textual jaacute possibilitava exames bem estruturados ao meio acadecircmico
Exemplo disto eacute Johann Otto que ao analisar o Codex Claromontanus LXXXII ratificou que
este de maneira inicial ldquonos fornece alguns dos escritos de Justinordquo147 Nesta questatildeo cabe
ressaltar que das obras preservadas de Justino possuiacutemos apenas trecircs manuscritos mesmo que
apenas um seja considerado absolutamente confiaacutevel pela criacutetica suscitando desta forma certa
controveacutersia entre os analistas Quanto a esta pendecircncia citamos parte consideraacutevel da pesquisa
145 ARZANI VENTURINI A Origem da Tradiccedilatildeo Apologeacutetica Cristatilde e Justino Maacutertir 2010 p 3-4
146 NORRIS The Apologists 2004 p 36 apud SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I
Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 74
147 OTTO Prolegocircmenos XXI In S Iustini philosophi et martyris opera quae feruntur omnia Volume 1 Part 1
1847
39
de Santos que baseada em autores renomados da aacuterea daacute o destaque necessaacuterio a essa anaacutelise
quirograacutefica O autor nos agrega relevante contribuiccedilatildeo neste item teacutecnico
Haacute trecircs manuscritos para as obras de Justino o Codex Parisinus Graecus 45055 o
Codex Claromontanus LXXXII e o Codex Ottobonianus Graecus 274 (MINNS amp
PARVIS 2009 p 3) Alguns comentadores preferem atribuir um manuscrito (AUNE
2003 p 257 ALLERT 2002 p 32 POPE 2001 p 7) ou dois manuscritos
(DONALDSON 1866 p 144) Os que defendem a existecircncia de somente um
manuscrito levam em conta que o Codex Parisinus Graecus 450 eacute o uacutenico vaacutelido uma
vez que o Codex Claromontanus LXXXII eacute apenas uma coacutepia deste e o Codex
Ottobonianus Graecus 274 possui apenas trecircs capiacutetulos da I Apologia Aqueles que
consideram como dois manuscritos referem-se aos dois primeiros Por questatildeo de
coerecircncia (pois apesar do Claromontaus ser coacutepia natildeo deixa de ser um manuscrito e
o Ottobonianus mesmo tendo apenas trecircs capiacutetulos tambeacutem natildeo) concordamos com
a afirmaccedilatildeo de Minns e Parvis de que existem trecircs manuscritos148
No entanto eacute fato que o Codex Parisinus Graecus 450 se condiciona como o ldquomelhorrdquo
destes manuscritos existentes Este manuscrito data de 11 de setembro de 1363-1364 possui
467 paacuteginas duplas (ou foacutelios que medem 285 x 215 cm) e atualmente permanece arquivado
na Bibliothegraveque Nationale em Paris149 Infelizmente natildeo haacute informaccedilotildees sobre quem teria sido
o copista apenas sabe-se graccedilas a um registro oficial que ele pertenceu a Guillaume Pellicier
um notaacutevel Bispo Catoacutelico Romano do Seacuteculo XVI que provavelmente o adquiriu em uma de
suas atividades diplomaacuteticas possivelmente entre os anos de 1539 a 1542150
Enfim apoacutes explorarmos ndash mesmo que de maneira sucinta ndash a estrutura textual da obra
central desta dissertaccedilatildeo podemos afirmar que estes documentos histoacutericos nos ldquocomunicamrdquo
e ldquotraduzemrdquo um melhor conhecimento do passado edificando a Igreja e tambeacutem certificando
o meio acadecircmico de forma eficaz (cientificamente) de que homens como Justino lutaram
corajosamente para defender a feacute de seus irmatildeos especialmente das perseguiccedilotildees oficiais
assunto que trataremos a seguir
14 A PERSEGUICcedilAtildeO AOS CRISTAtildeOS
Compreendemos ser ainda importante na construccedilatildeo desta pesquisa enfocarmos
mesmo que de maneira sucinta e setorizada um dos fatores que constituiu uma das
caracteriacutesticas mais vibrantes e significativas da histoacuteria do cristianismo em sua gecircnese como
148 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 74
149 PAUTIGNY In Introduction Justin Apologies 1904 p 10
150 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
40
movimento humano-religioso fato que mobilizou o cenaacuterio social da eacutepoca comprovando a
ldquoexistecircncia de um esquemardquo151 de perseguiccedilatildeo e cerceamento da liberdade de crenccedila e culto dos
cristatildeos isso tanto atraveacutes do agir do poder estatal quanto de setores organizados (especialmente
do meio religioso) da sociedade de entatildeo em sua formaccedilatildeo soacutecia-politica-religiosa de caraacuteter
cultural greco-romana Esta caracteriacutestica coativa acabou por se comprovar tambeacutem atraveacutes do
desenvolvimento de material textual como o que norteia nosso trabalho (I Apologia) acento
que sancionou uma regra funcional dos dias de nosso autor a de acionar a razatildeo humana para
tentar evitar uma insensata postura detrativa entre os homens autodeclarados de civilizados
Desta forma como parte derradeira deste capiacutetulo introdutoacuterio apresentamos duas
divisotildees uma temaacutetica e outra analiacutetica trazendo ambas carateriacutesticas funcionais especiacuteficas
desse sistema de repressatildeo A primeira retrata uma siacutentese deste processo na organizaccedilatildeo
estrutural do Impeacuterio Romano A segunda se orienta por um periacuteodo cronoloacutegico que se
desenvolveu durante o Seacuteculo II especialmente concentrando-se no dececircnio em que se acredita
que Justino tenha escrito sua primeira obra apologeacutetica
141 O Impeacuterio Romano e a Perseguiccedilatildeo ao Cristianismo
Desde o Seacuteculo I a ldquopesquisa histoacutericardquo152 jaacute nos retrata com eficiecircncia fatos que
tiveram influecircncia decisiva do poder humano controlador do mundo de entatildeo (Impeacuterio Romano)
para com a Igreja de Cristo sobre a terra Dessa grande estrutura poliacutetica da antiguidade emergiu
tanto a perseguiccedilatildeo quanto o resultado mais elementar e simboacutelico deste processo que tinha o
cristianismo como alvo o martiacuterio de seus seguidores Poderiacuteamos chamaacute-lo sem o apelo a
nenhum eufemismo de ldquoassassinatordquo de centenas de pessoas
Contudo nesta seacuterie de sucessivos acontecimentos anormais vem a nascer a mais
significativa contribuiccedilatildeo deste intolerante processo governamental a saber a expansatildeo do
cristianismo Hatzenberger desenvolve uma soacutelida ideia a esse respeito quando conjectura sobre
o caraacuteter poliacutetico vigente junto ao Impeacuterio Tendo analisado seus preconceitos limitaccedilotildees e
maliacutecias Hatzenberger tenta explicar a capacidade desse sistema atraveacutes de sua multiplicidade
de gecircnios dando a entender que nesta ampla diversidade o cristianismo encontrou sua
possibilidade de crescer Hatzenberger afirma que podemos ldquodizer que o Impeacuterio Romano era
um tambor de gasolina agrave espera da faiacutesca da feacute cristatilderdquo153
151 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004 p 356
152 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004 p 356
153 HATZENBERGER Histoacuteria da Igreja 2012 p 1
41
Entretanto as perseguiccedilotildees estatais ao cristianismo satildeo um caso histoacuterico delicado e
nada romacircntico pois tornou-se uma dura realidade para muitas comunidades cristatildes na
antiguidade isso devido ao grande desenvolvimento do cristianismo que no decorrer dos seus
primeiros 100 anos suscitou uma consideraacutevel preocupaccedilatildeo ao Impeacuterio Catalogada desde cedo
como uma religiatildeo antagonista e excludente154 pela sua recusa em seguir praacuteticas comuns do
meio social vigente das grandes cidades onde jaacute se encontrava consolidada ndash devido
especialmente as suas posiccedilotildees quanto as questotildees de ordem cuacuteltica (ldquofestas oficiaisrdquo155) como
a adoraccedilatildeo aos ldquodeuses pagatildeos em particular o Imperador a quem negavam o caraacuteter divinordquo156
ndash fazia com que os seguidores desse movimento que inicialmente foi interpretado como uma
seita judaica157 fossem em muitos casos expressivamente acusados de colocarem em risco a
ldquopax deorumrdquo158 devido ao entendimento comum e geral de que o Imperador era o supremo
mantenedor desse estado de satisfaccedilatildeo e gloacuteria conquistados por Roma Outras questotildees
depreciativas eram atribuiacutedas aos cristatildeos antissociabilidade ateiacutesmo canibalismo fanatismo
orgias sexuais entre outras desvirtudes que eram amplamente apresentadas como acusaccedilotildees de
ordem formal e agraves vezes informal (atraveacutes de buchichos fofocas e relatos puacuteblicos natildeo oficiais)
as quais despertavam ldquoreaccedilotildees populares descontroladas de medo de intoleracircncia e de
violecircnciardquo159 contra estes que se colocavam como disciacutepulos de Cristo
Desta forma entre falsas ideias e verdadeiras demandas ndash a recusa ao ldquojuramento e os
ritos implicados no serviccedilo militarrdquo160 eacute outro exemplo da suposta ldquorebeliatildeordquo cristatilde ao Impeacuterio
ndash criou-se um ldquoestadordquo de perigo que mediante uma forte campanha de difamaccedilatildeo passou a
ser considerado como uma ameaccedila a cultura e a forma do governo Romano Certamente
servindo de combustiacutevel para as perseguiccedilotildees pontuais eou sistematizadas161 especialmente
nos Seacuteculos I e II Aleacutem disto junto com a expansatildeo da nova doutrina e feacute cristatildes um novo
entendimento comeccedilou a se estabelecer que o cristianismo se diferenciava do judaiacutesmo162
154 TAacuteCITO Anais XV 44
155 FROumlHLICH Curso Baacutesico de Histoacuteria da Igreja 1987 p 23
156 LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975 p 15
157 LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975
STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004
158 TESTA In Igreja e Impeacuterio Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 969
159 TESTA In Igreja e Impeacuterio Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 976
160 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 84
161 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
162 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
42
Com o fim do ldquoequiacutevoco judaicordquo163 houve a reelaboraccedilatildeo de um esquema que gerou um
reposicionamento de Roma para essa nova perspectiva Aqui a siacutentese de Xavier retrata bem o
que desejamos comunicar sobre esse reposicionamento
O Impeacuterio Romano percebeu que a nova religiatildeo possuiacutea diferenccedilas acentuadas em
relaccedilatildeo ao judaiacutesmo Embora os judeus resistissem agrave cultura e religiatildeo greco-romana
o cristianismo passou a se organizar como religiatildeo crescendo em nuacutemero e em
organizaccedilatildeo sendo formadas igrejas em vaacuterios lugares O evangelho chegou aos
grandes centros da eacutepoca e ateacute os confins da terra devido a pregaccedilatildeo de cristatildeos que
viajavam a negoacutecios missatildeo ou levados pela perseguiccedilatildeo que dispersava os cristatildeos
fazendo com que a feacute se expandisse164
Quanto a questotildees que envolvem esse amplo periacuteodo conflituoso ainda eacute necessaacuterio
apresentarmos dois raacutepidos e sucintos registros O primeiro envolve um conjunto de fatos
constituiacutedos em mais de 250 anos onde podemos registrar periacuteodos que devem ser classificados
como ldquoperseguiccedilatildeo perseguiccedilatildeo geral perseguiccedilatildeo maior e toleracircnciardquo165 para com os cristatildeos
Satildeo muitas e variadas as circunstacircncias e as caracteriacutesticas que formam cada uma destas fases
e fazem com que elementos singulares a cada uma delas (como periacuteodo e regionalidade)
tornem-se fatores decisivos nesta diferenciaccedilatildeo Entretanto natildeo as abordaremos
especificamente por entendermos que o assunto foge de nosso exame central Segundo
compreendemos ser imprescindiacutevel junto a esta abordagem citar a tese amplamente sustentada
pelo meio histoacuterico-teoloacutegico da ldquoexistecircncia de um esquema de dez grandes perseguiccedilotildeesrdquo166
tendo seu primeiro caso ocorrido entre 64-68 dC sob o Imperador Nero desde seu uacuteltimo ato
no periacuteodo dos governos de Diocleciano e Maximiano entre 285-305 dC167 Tertuliano168 e
Euseacutebio fornecem-nos consideraacutevel conteuacutedo sobre aquela que possivelmente tenha sido a
primeira grande onda de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos promovida pelo Impeacuterio Citamos Euseacutebio
163 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 82
164 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 10
165 A ordem dos fatores apresentados natildeo eacute cronoloacutegica e sim alfabeacutetica Ver LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila
da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975 p 11-12
166 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004 p 356
167 As intituladas ldquoDez Perseguiccedilotildeesrdquo ao cristianismo por parte do Impeacuterio Romano satildeo protagonizadas por Nero
(54-68 dC) Domiciano (95-96 dC) Trajano (108 dC) Marco Aureacutelio (162 dC) Cocircmodo (192 dC)
Maximino (235 dC) Deacutecio (250-251 dC) Valeriano (257-260 dC) Aureliano (274 dC) Diocleciano (303-
313 dC) Ver FOXE O Livro dos Maacutertires 2003 p 16-32
168 TERTULIANO Apologia V
43
que ao falar sobre o reinado de Nero (54-68 dC) fomenta uma simbiose de dados histoacutericos
mencionando o proacuteprio Tertuliano
Firmado Nero no poder deu-se a praacuteticas iacutempias e tomou as armas contra a proacutepria
religiatildeo do Deus do universo [] Mas deve-se saber que a tudo o que foi dito sobre
ele faltava acrescentar que foi o primeiro imperador que se mostrou inimigo da
piedade para com Deus Disto faz menccedilatildeo tambeacutem o latino Tertuliano quando diz
ldquoLeiam vossas memoacuterias Nelas encontrareis que Nero foi o primeiro a perseguir esta
doutrina principalmente quando depois de submeter todo o Oriente em Roma era
cruel para com todosrdquo169
Portanto buscando apresentar uma ideia conclusiva a nossa concisa elaboraccedilatildeo sobre
esse tema tatildeo vasto da histoacuteria da Igreja podemos dizer que natildeo restam duacutevidas mediante
inuacutemeros argumentos histoacutericos apresentados por diversas e variadas fontes ser plausiacutevel e ateacute
mesmo luacutecido afirmar que o Impeacuterio Romano foi em diversos momentos um literal
perseguidor acusador juiz e algoz do cristianismo durante um periacuteodo de praticamente dois
seacuteculos e meio Scott por meio de bases historiograacuteficas retrata bem esse processo ajudando-o
a sancionaacute-lo
Repetidas vezes foram publicados editos para exterminar da terra os cristatildeos
Levantaram ateacute monumentos para celebrar e perpetuar os supostos ecircxitos das
perseguiccedilotildees Aqui estatildeo duas preservadas inscriccedilotildees desses monumentos em escritos
da eacutepoca DIOCLECIANO CEacuteSAR AUGUSTO TENDO ADOTADO GALEacuteRIO
NO ORIENTE A SUPERSTICcedilAtildeO DOS CRISTAtildeOS FOI DESTRUIacuteDA EM TODA
A PARTE E PROPAGADA A ADORACcedilAtildeO DOS DEUSES170
A partir de agora examinaremos um conjunto mais restrito desse longo periacuteodo
imperial (54-313 dC)171 de tensotildees entre a Igreja e seus perseguidores pagatildeos especificamente
abordaremos o periacuteodo endossado pelos registros de Justino atraveacutes de seu ministeacuterio
testemunho e vivecircncia na feacute cristatilde
142 A Perseguiccedilatildeo no Periacuteodo da I Apologia
169 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica II 25 1 3 4
170 SCOTT As Catacumbas de Roma 1996 p 84 grifo do autor
171 LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975
44
Durante o Seacuteculo II podemos dizer que um periacuteodo determinado pela irregularidade
ou seja pela ausecircncia de um padratildeo caracterizou o ambiente social da eacutepoca atraveacutes de uma
ldquoperseguiccedilatildeo difusa ora aqui ora ali hoje perseguiccedilatildeo amanhatilde toleracircnciardquo172 Este momento
tambeacutem pode ser realccedilado por outras questotildees pontuais mas sua principal distinccedilatildeo realmente
se define pela esporadicidade dos periacuteodos de repressatildeo estatal o que ocasionou momentos de
consideraacutevel toleracircncia ao cristianismo balizados e sustentados ldquojuridicamenterdquo pela resposta
do Imperador Trajano agrave consulta de Pliacutenio173 (Cocircnsul da Bitiacutenia) por volta do ano 111 dC
Santos sintetiza bem esses dececircnios da relaccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja ldquoA poliacutetica romana agrave
eacutepoca era de tanto quanto possiacutevel natildeo condenar os cristatildeos agrave morte De modo geral desde o
final do Seacuteculo I ateacute o final do II da era cristatilde houve vaacuterios Imperadores com poliacuteticas mais
paciacuteficas em relaccedilatildeo aos cristatildeosrdquo174 Vale tambeacutem ressaltarmos como um elemento
consideraacutevel a tese proposta que no momento ao qual Justino escreveu sua I Apologia Roma
era governada pela dinastia denominada de Nerva-Antonina a qual foi conhecida pela alcunha
dos ldquocinco bons imperadoresrdquo175 definiccedilatildeo que foi proposta por Maquiavel em uma anaacutelise
poliacutetica do ano de 1503 Maquiavel escreveu
Do estudo desta histoacuteria podemos tambeacutem aprender como um bom governo deve ser
fundado pois enquanto todos os imperadores que acederam ao trono por nascimento
exceto Tito foram ruins todos foram bons que acederam por adoccedilatildeo como foi o caso
dos cinco de Nerva ateacute Marco Mas tatildeo logo o impeacuterio caiu novamente nas matildeos dos
herdeiros por nascimento sua ruiacutena recomeccedilou176
Entretanto falaremos especificamente apenas de duas figuras deste periacuteodo chamado
de dinastia Nerva-Antonina (96 a 180 dC) mais precisamente de seus dois uacuteltimos
172 LESBAUPIN A Bem-Aventuranccedila da Perseguiccedilatildeo ndash A vida dos cristatildeos no Impeacuterio Romano 1975 p 20
173 ROSSI BINATO As Cartas de Pliacutenio o Jovem traduccedilatildeo parcial do Livro X correspondecircncia administrativa
com o Imperador Trajano 2017
174 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 90
175 Relaccedilatildeo dos Imperadores da dinastia Nerva-antonina Nerva (96-98 dC) Trajano (98-117 dC) Adriano (117-
138 dC) Antonino Pio (138-161 dC) Marco Aureacutelio (161-180 dC) Ver SANTOS Identidade Cristatilde no
Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 90
176 MAQUIAVEL Discurso sobre a Primeira Deacutecada de Tito Liacutevio I 10
45
representantes a saber Antonino Pio177 (que sucedeu a Adriano) e seu filho adotivo Marco
Aureacutelio178 que o sucedeu
O Imperador Antonino Pio governou Roma por mais de vinte anos (138 a 161) Ele eacute
o destinataacuterio formal eou principal da I Apologia de Justino Neste aspecto vale muito para
esta pesquisa a anaacutelise referencial deixada por Foxe ldquoAdriano ao morrer no ano 138 dC foi
sucedido por Antonino Pio um dos mais gentis monarcas que jamais reinou e que deteve as
perseguiccedilotildees contra os cristatildeosrdquo179 Santos tambeacutem nos auxilia quando expotildeem o pensamento
de Bunson sobre a administraccedilatildeo de Antonino Pio ldquoQuanto agraves questotildees de poliacutetica externa
procurava sempre resolvecirc-las primeiramente de forma paciacutefica depois administrativamente e
por uacuteltimo com taacuteticas militaresrdquo180 Eacute fato praticamente livre de contestaccedilotildees que em seu
governo natildeo houve perseguiccedilotildees de maior envergadura sendo que as que ocorreram foram
pontuais e sem maiores impactos referendando deste modo a imagem do Imperador como a de
um monarca paciacutefico (para a eacutepoca) pois ateacute mesmo em seu periacuteodo como divus romanus foi
cognominado pelo povo de ldquoPIEDOSO pelo amor que dedicava aos pobresrdquo181
Quanto a Marco Aureacutelio seu sucessor os relatos sobre a sua postura para com o
cristianismo devem no miacutenimo ser apresentados com o adjetivo de obscurus Foxe retrata bem
esta dificuldade ldquoMarco Aureacutelio sucedeu no trono no ano 161 de nosso Senhor era um homem
de natureza mais riacutegida e severa e embora elogiaacutevel no estudo da filosofia e em sua atividade
de governo foi duro e feroz contra os cristatildeos e desencadeou a quarta (grande) perseguiccedilatildeordquo182
Extremamente vaacutelido eacute analisarmos os registros do proacuteprio Imperador os quais nos
demonstram de forma muita clara a incompatibilidade de sua filosofia com a doutrina de Cristo
como se vecirc em uma de suas citaccedilotildees
177 Titus Aurelius Fulvus Boionius Antoninus nasceu em 86 dC em Nimes na Gaacutelia Narbonense no sul da atual
Franccedila Devido agrave sua fidelidade Adriano o adotou em fevereiro de 138 dC para ser o seu sucessor no Impeacuterio o
que ocorreu logo depois no mecircs de julho com a morte de Adriano Ver BUNSON Encyclopedia of the Roman
Empire 2002 p 23-24 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino
Maacutertir 2012 p 95
178 Marcus Aurelius Antoninus nasceu em 121 dC na cidade de Roma Filho de Annius Verus e Domitia Lucilla
Tornou-se Imperador em 161 dC e a seu pedido Lucio Vero (Lucius Aerelius Verus) governou Roma juntamente
com ele Ver BIRLEY Marcus Aurelius A Biography 2001 p 116 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica IV 14
10
179 FOXE O Livro dos Maacutertires 2003 p 18
180 BUNSON Encyclopedia of the Roman Empire 2002 p 24 apud SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II
dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 96
181 MONTEIRO A Feacute e os Maacutertires breves apontamentos sobre as perseguiccedilotildees da Igreja 1940 p 81 grifo do
autor
182 FOXE O Livro dos Maacutertires 2003 p 18 grifo nosso
46
[] alma preparada para uma imediata separaccedilatildeo do corpo seja para extinguir seja
para se dispersar ou sobreviver [] Que essa preparaccedilatildeo poreacutem provenha de um juiacutezo
proacuteprio e natildeo dum simples sectarismo como o dos cristatildeos [] uma preparaccedilatildeo
raciocinada grave e para ser convincente nada teatral183
Alguns detalhes nos chamam muito a atenccedilatildeo no periacuteodo em que Marco Aureacutelio
governou especialmente se nosso estudo partir do ponto de vista de alguns historiadores que
fazem questatildeo de ratificar que esse periacuteodo foi como ldquoum lsquomarcorsquo negro fincado na histoacuteria
eclesiaacutestica assinalando com as sombras de sua tirania a eacutepoca triste de seu governo
nefastordquo184 Euseacutebio nos auxilia nesta anaacutelise de maneira importante pois segue a mesma
concepccedilatildeo de que os atos de Marco Aureacutelio foram excessivamente malignos para com o
cristianismo Buscando ser amplo e detalhista Euseacutebio promove sentimentos profundos em seu
relato quando nos retrata o martiacuterio de Policarpo Bispo de Esmirna ocorrido no reinado de
Marco Aureacutelio
E o prococircnsul disse ldquoTenho feras A elas te lanccedilarei se natildeo mudas tua posiccedilatildeordquo Mas
ele respondeu ldquoChama-as porque para noacutes natildeo eacute possiacutevel mudar de posiccedilatildeo se eacute do
melhor para o pior O bom eacute mudar do mau para o justordquo Insistiu o prococircnsul ldquoComo
natildeo te arrependes farei com que o fogo te dome se desprezas as ferasrdquo Policarpo
disse ldquoAmeaccedilas com um fogo que arde algum tempo mas depois de um pouco se
apaga E ignoras o fogo do juiacutezo futuro e do castigo eterno reservado aos iacutempios
Mas por que tardas Traga o que quiseresrdquo Enquanto dizia isto e muitas outras coisas
mais enchia-se de valor e de alegria e seu rosto transbordava de graccedila ao ponto de
que natildeo somente natildeo caiu em confusatildeo pelas coisas que lhe diziam mas pelo
contraacuterio foi o prococircnsul que ficou fora de si e chamou o arauto para que no meio do
estaacutedio apregoasse trecircs vezes Policarpo confessou que eacute cristatildeo185
Nesse cenaacuterio imperial ainda nos conveacutem apresentar a proacutepria experiecircncia de Justino
como um cristatildeo perseguido No ano de 165 dC o filoacutesofo Justino possivelmente
acompanhado de seis de seus disciacutepulos (todos cristatildeos como ele) eacute apresentado com estes a
um tribunal civil Romano sob a acusaccedilatildeo de serem cristatildeos Este relato estaacute amplamente
amparado por uma fonte secular pagatilde186 que goza de altiacutessima credibilidade Apoacutes ser
183 MARCO AUREacuteLIO Meditaccedilotildees XI 3 grifo nosso
184 MONTEIRO A Feacute e os Maacutertires breves apontamentos sobre as perseguiccedilotildees da Igreja 1940 p 90
185 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 15 23-25
186 As Atas dos Maacutertires eacute a transcriccedilatildeo dos processos verbais escritos pelas autoridades romanas e mantidos nos
arquivos oficiais do Impeacuterio Estes registros coletaram estenograficamente muitos dos atos relacionados aos
processos forenses aos quais os cristatildeos foram submetidos pelos magistrados principalmente nos interrogatoacuterios
puacuteblicos Posteriormente estes registros foram traduzidos para a escrita vulgar e assim as peccedilas foram passadas
para os arquivos judiciais Muitos dos atos foram destruiacutedos (queimados em praccedila puacuteblica) pelo Imperador
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denunciado pelo ciacutenico Crescente Justino se apresenta diante de Ruacutestico (Prefeito de Roma)
onde o relato do processo forense se estabelece e desenrola
Venha ao tribunal o prefeito Ruacutestico disse a Justino ndash Primeiro acredite nos deuses
e obedeccedila aos imperadores Justino respondeu ndash O irrepreensiacutevel e que natildeo admite
condenaccedilatildeo eacute obedecer aos mandamentos de nosso Salvador Jesus Cristo O prefeito
Ruacutestico disse ndash Que doutrina vocecirc professa Justino respondeu ndash Tentei ouvir sobre
qualquer linhagem de doutrinas mas apenas aderi agraves doutrinas dos cristatildeos que satildeo
as verdadeiras mesmo que natildeo sejam agradaacuteveis para quem segue opiniotildees falsas187
Nessa projeccedilatildeo vemos que o Apologista apresenta natildeo somente sua feacute mas tambeacutem
sua consciecircncia de que os preceitos recebidos por ele mediante o cristianismo solidificavam
sua posiccedilatildeo Mesmo diante de um sistema que os poderia prejudicar e sendo incentivados a
recuar de suas convicccedilotildees por meio de uma aguccedilada ameaccedila de que poderiam ser
ldquoimpiedosamente punidosrdquo188 Justino e seus disciacutepulos passam a concentrar seus esforccedilos
naquilo que esta pesquisa define como um importante argumento para a Verdade que Justino
sustentava Aqui o fenocircmeno do martiacuterio cristatildeo conduzido e explorado pelo Impeacuterio Romano
ganha uma inopinada abrangecircncia pois o supliacutecio desses homens e mulheres registrados como
peccedilas do protocolo governamental acabariam por se tornar nos fatos que solidificaram e
encorajaram a militacircncia desses obreiros da feacute cristatilde Sem duacutevida Justino e seus disciacutepulos
parecem ter caminhado de forma soacutebria para ldquoonde foram decapitados e consumaram o martiacuterio
proclamando a feacute no Salvadorrdquo189 Deste modo diante de apresentaccedilotildees que se alternam entre
descriccedilotildees de caraacuteter romacircntico e fatalista vemos que os Imperadores e seus sistemas de
controle marcaram a histoacuteria natildeo apenas com sangue mas tambeacutem com o relato fidedigno da
convicccedilatildeo que suas viacutetimas sustentavam
Diocleciano (284-305 dC) pois havia notado que esses contos heroicos inflamavam a alma dos cristatildeos dando
testemunho favoraacutevel para que outros tambeacutem viessem a sofrer a pena capital sem constrangimento para com as
suas vidas Ver PRIMEROS CRISTIANOS 2016 Disponiacutevel em
lthttpswwwprimeroscristianoscomarticulosactas-de-los-martiresgt Acesso em 16 de set 2019
187 ACTAS DE LOS MAacuteRTIRES I p 311 grifo nosso No original Venidos ante el tribunal el prefecto Ruacutestico
dijo a Justino mdash En primer lugar cree en los dioses y obedece a los emperadores Justino respondioacute mdash Lo
irreprochable y que no admite condenacioacuten es obedecer a los mandatos de nuestro Salvador Jesucristo El prefecto
Ruacutestico dijo mdash iquestQueacute doctrina profesas Justino respondioacute mdash He procurado tener noticia de todo linaje de
doctrinas pero soacutelo me he adherido a las doctrinas de los cristianos que son las verdaderas por maacutes que no sean
gratas a quienes siguen falsas opiniones
188 ACTAS DE LOS MAacuteRTIRES I p 316 No original sereacuteis inexorablemente castigados
189 ACTAS DE LOS MAacuteRTIRES I p 316 No original salieron al lugar acostumbrado y cortaacutendoles alliacute las
cabezas consumaron su martirio en la confesioacuten de nuestro Salvador
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Marco Aureacutelio tinha aproximadamente 34 anos quando Justino escreveu sua I
Apologia e cerca de 44 quando Justino sofreu o martiacuterio Mesmo diante de relatos assombrosos
de seu periacuteodo como governante ldquoe apesar de sua visatildeo negativa em relaccedilatildeo aos cristatildeos e dos
cristatildeos para com ele novamente natildeo haacute evidecircncias de qualquer (novo) decreto de perseguiccedilatildeo
aos cristatildeos por parte do Imperadorrdquo190 mesmo que se garanta uma expressiva deflagraccedilatildeo deste
expediente sombrio em seu reinado191 Devemos ainda colocar que um atento pesquisador
necessariamente se impressionaraacute com a latente crueza e dureza deste periacuteodo que esteve sob
o comando dos chamados Imperadores ldquofiloacutesofosrdquo Danieacutelou e Marrou chegam a ser aacutesperos
em sua abordagem entretanto nos parece absolutamente plausiacutevel sua definiccedilatildeo desse periacuteodo
ldquoEacute que a civilizaccedilatildeo greco-romana como tal muito embora sob um verniz humanista guardava
um fundo de crueldade Desconhecem-nos os historiadores racionalistas que pretendem reduzir
as perseguiccedilotildees a problemas socioloacutegicosrdquo192
Contudo as perseguiccedilotildees que marcaram o cristianismo e por consequecircncia geraram o
principal fruto (os martiacuterios) deste violento periacuteodo indiscutivelmente ainda satildeo sementes que
testificam e geram vida em meio a Igreja A realidade da cristandade dos primeiros seacuteculos foi
difiacutecil e desafiadora para sua feacute mas sua Esperanccedila e Amor em Jesus Cristo fez os cristatildeos
superarem ateacute a mais dolorosa realidade fosse no calor de uma fogueira nos dentes de uma
fera ou no supliacutecio de uma cruz Xavier em nosso ponto de vista consegue caracterizar bem o
fervor e feacute destes vencedores ldquoA doenccedila dificuldades e martiacuterio fizeram parte da vida dos
cristatildeos nos primeiros seacuteculos e ao longo da histoacuteria poreacutem a virtude do Evangelho natildeo deixou
de ser pregada de uma forma ou de outra pelo exemplo pela palavra falada ou escritardquo193
Apoacutes esta exposiccedilatildeo nos eacute possiacutevel reconhecer indicadores confiaacuteveis de quem foi
este filoacutesofo cristatildeo do Seacuteculo II chamado Justino de como a histoacuteria eclesiaacutestica o reconhece
e de como a histoacuteria teoloacutegica o depreende Mais ainda eacute possiacutevel compreender por meio de
dados teacutecnicos um de seus escritos mais importantes (I Apologia) Estas paacuteginas lanccedilaram luz
de maneira praacutetica (visando quando onde e por quecirc) sobre o cenaacuterio histoacuterico que envolveu
as perseguiccedilotildees e os martiacuterios dos cristatildeos especialmente no periacuteodo da atuaccedilatildeo apologeacutetica de
190 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 97 grifo
nosso
191 Para uma melhor compreensatildeo deste cenaacuterio hostil no reinado de Marco Aureacutelio ver MONTEIRO A Feacute e os
Maacutertires breves apontamentos sobre as perseguiccedilotildees da Igreja 1940 p 89-108
192 DANIEacuteLOU MARROU Nova histoacuteria da Igreja V I Dos Primoacuterdios a Santo Gregoacuterio Magno 1966 p
109
193 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 11-12
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Justino Para efeito de conclusatildeo desta seccedilatildeo conveacutem transcrever o registro de Hamman em
formato de siacutentese que fomenta virtuosamente a descriccedilatildeo capitular desenvolvida
Neste homem que viveu haacute dezoito seacuteculos percebemos o eco de nossos anseios de
nossas objeccedilotildees de nossas certezas Descobrimos nele uma abertura de alma uma
possibilidade de acolhimento uma vontade de diaacutelogo que desarmam e seduzem Se
muitas de suas obras estatildeo hoje perdidas as que nos restam fornecem-nos o diaacuterio
iacutentimo desse cristatildeo e satildeo suficientes para nos revelar sua vida desde o seu
nascimento e a sua formaccedilatildeo ateacute o seu martiacuterio194
O proacuteximo capiacutetulo faz uma anaacutelise na qual procuramos mostrar elementos factiacuteveis
de uma nova praacutetica social vigente ndash descrita por Justino ndash em meio ao status quo da sociedade
romana de entatildeo Desta maneira tambeacutem nos cabe frisar que a partir deste ponto se salientaraacute
o iniacutecio da descriccedilatildeo daquilo que para nosso autor era uma das provas estaacuteveis do novo modus
vivendi no qual a Verdade se manifestava de forma irrefutaacutevel
194 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 27
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2 O NOVO MODUS VIVENDI
Este capiacutetulo faraacute uma anaacutelise realiacutestica a partir da observaccedilatildeo de praacuteticas do contexto
social de Justino maacutertir Com ele iniciamos a perspectiva central proposta para esta pesquisa
aleacutem de apresentarmos de forma introdutoacuteria seu ponto nuclear Algumas marcas de cunho
histoacuterico nos permitem medir aquilo que aproximava ou afastava uma pessoa que confessava
a feacute cristatilde de seu meio sociocultural de suas atividades ordinaacuterias de seus afazeres do dia-a-
dia195 Assim neste espaccedilo apresentamos um teoacuterico conjunto de expressotildees que apontam os
conceitos que afloram do pensamento de Justino quanto agrave ldquomorfogeniardquo de sua feacute e porque natildeo
se dizer de seu grupo o qual eacute definido pelo autor como aqueles ldquoque se chamam irmatildeosrdquo196
A contemporaneidade retrata uma condiccedilatildeo ambiacutegua em comparaccedilatildeo com o Seacuteculo II
naquilo que se trata da transmissatildeo da religiosidade cristatilde ndash especialmente no que se reporta as
estruturas confessionais histoacutericas nos paiacuteses europeus e latino-americanos ndash tendo o processo
atual significativa ambivalecircncia com o padratildeo antigo o qual ainda natildeo havendo passado pelo
processo de enculturaccedilatildeo definia-se fortemente pela conversatildeo de pessoas adultas dado
amparado de forma eficiente por Tertuliano em sua Apologia ldquoos homens se tornam natildeo
nascem cristatildeosrdquo197
Deste modo notamos que a leitura histoacuterica praticamente natildeo abre concessotildees agrave
conversatildeo ao cristianismo na eacutepoca de Justino constituiacutea uma verdadeira transformaccedilatildeo na vida
do convertido implicando em uma real mudanccedila de vida ou seja de haacutebitos que
necessariamente provocava uma ldquoruptura com a cidade e isolava o cristatildeo de seu meio e de sua
famiacutelia se ela permanecesse pagatilderdquo198 Baseados em afirmaccedilotildees como esta eacute que delinearemos
um horizonte que possa definir de forma consideraacutevel a realidade do que seria estar vivendo a
Verdade para Justino mediante uma contraposiccedilatildeo de haacutebitos detectada por meio dessa
transformaccedilatildeo
Diante de tal teor surgem interrogaccedilotildees que nos trazem demandas pontuais
principalmente de caraacuteter especulativo orientadas a responder questotildees que despertam o
imaginaacuterio de nosso contexto atual Por estarem devidamente inseridas no cenaacuterio histoacuterico da
I Apologia estes assuntos caracterizam-se por suas pendecircncias mesmo que uma determinaccedilatildeo
em comum saliente todos os espaccedilos em branco tendo esta demarcaccedilatildeo em si um caraacuteter de
195 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997
196 JUSTINO I Apologia LXV 1
197 TERTULIANO Apologia XVIII 4
198 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 187
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diferenciaccedilatildeo que evoca uma clara distinccedilatildeo de estados Desta forma seguem alguns modelos
nos quais visamos indagar esta distinccedilatildeo que detectamos em Justino como definia-se um cristatildeo
em meados do Seacuteculo II Quais pessoas natildeo pertenciam a este grupo religioso e quais eram as
limitaccedilotildees que as impediam de tal prerrogativa Que nova praacutetica de feacute eacute esta que descarta as
antigas tradiccedilotildees religiosas De qual maneira isso se tornou um criteacuterio a ponto de estabelecer
diferenciaccedilotildees a niacutevel existencial
21 CRISTIANISMO A NOVA IDENTIDADE
Este espaccedilo tende a abertura de um caminho ao qual entendemos ser fundamental para
o desenvolvimento desta pesquisa isso devido agrave necessidade de apontarmos bases soacutelidas na
construccedilatildeo de nosso conceito mater Desta maneira iniciamos este capiacutetulo essencial em nossa
estruturaccedilatildeo utilizando-nos de uma afirmaccedilatildeo desenvolvida junto agrave pesquisa de Santos e
Gonccedilalves a qual soma valiosamente a nossa tese por contemplar a seguinte definiccedilatildeo ldquoAo
analisarmos a I Apologia podemos verificar que ele pretende revelar quem satildeo os cristatildeos Isto
parece fazer bastante sentido Ao buscar defender o cristianismo parece natural desenvolver um
texto que visa mostrar a identidade do grupordquo199
O cristianismo como religiatildeo vem a se desenvolver (universalmente) a partir de uma
comunidade autoacutectone de seu ldquofundadorrdquo emergindo atraveacutes de um pequeno grupo de
seguidores (Atos dos Apoacutestolos capiacutetulo 2) altamente condicionados agrave sua cultura e tradiccedilatildeo
religiosa200 poreacutem passados aproximadamente 110 anos o movimento cristatildeo chega ateacute os
dias de Justino com uma proporccedilatildeo numeacuterica muito significativa para um periacuteodo de tempo natildeo
tatildeo extenso201 Nesse processo estruturante tambeacutem de modo irrefragaacutevel202 houve um
desenvolvimento de um novo processo conceitual de um novo status de conhecimento ndash ou se
poderia chamar de um autoconhecimento ndash da proacutepria identidade (natildeo eacutetnica) cristatilde Processo
ao qual os chamados seguidores de Cristo apresentavam preceitos de paridade em uma espeacutecie
de similaridade existencial fato que leva o historiador Santos ao afirmar que ldquoa concepccedilatildeo de
meros disciacutepulos passou posteriormente a adquirir a ideia de povordquo203 Santos na verdade
199 SANTOS GONCcedilALVES A Aplicaccedilatildeo do ldquoContextualismo Linguiacutesticordquo e a busca da compreensatildeo da I
Apologia de Justino Maacutertir 2011 p 3
200 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004
201 SCOTT As Catacumbas de Roma 1996
202 KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983
203 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 135
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reproduz simplesmente um pensamento jaacute consolidado no meio teoloacutegico Harnack no capiacutetulo
sete de sua obra A Missatildeo e Expansatildeo do Cristianismo nos Primeiros Trecircs Seacuteculos204 jaacute
solidifica tal ideia O teoacutelogo alematildeo caracteriza seu pensamento socioteoloacutegico da seguinte
forma
Convencido de que Jesus o mestre e o profeta era tambeacutem o Messias que voltaria em
breve para terminar o seu trabalho as pessoas passaram da consciecircncia de serem seus
disciacutepulos para o seu povo o povo de Deus ὑμεῖς γένος ἐκλεκτόν βασίλειον
ἱεράτευμα ἔθνος ἅγιον λαὸς εἰς περιποίησιν (1 Pe II 9 ldquoVoacutes sois uma raccedila escolhida
um sacerdoacutecio real uma naccedilatildeo santa um povo para possessatildeordquo) e na medida em
que se sentiam um povo os cristatildeos sabiam que eles eram o verdadeiro Israel pessoas
que ao mesmo tempo representavam o novo e o velho205
Cabe-nos tambeacutem frisar neste aspecto levantado por Harnack que na questatildeo referente
agrave formaccedilatildeo de uma nova identidade social de caraacuteter religiosa este foi um fenocircmeno tanto
perceptiacutevel para eacutepoca de Justino como tambeacutem o ainda eacute em alguns segmentos humanos na
contemporaneidade Esta accedilatildeo associativa organizou-se (e ainda se organiza) de forma
majoritariamente comunitaacuteria a partir de experiecircncias pessoais de seus participantes sendo isto
ocasionado quase que na totalidade dos casos por meio do fenocircmeno conversiacutevel ocorrido no
acircmbito individual Este processo normalmente excludente e sectaacuterio de um determinado extrato
social ndash absolutamente imperativo no periacuteodo histoacuterico analisado poreacutem na atualidade natildeo
mais apresentando necessariamente uma ambiguidade ao estado de crenccedila anterior do
confessando (agente humano) ndash acaba por ser adesivo a outro o que ocasionava o
comprometimento com uma nova forma de comunhatildeo a qual amparada em novas certezas
rechaccedilava com ousadia as referecircncias da antiga crenccedila Em relaccedilatildeo ao cristianismo esse
fenocircmeno foi mais saliente entre as comunidades gentiacutelicas que abandonaram o paganismo206
Mencionamos ainda a definiccedilatildeo de Mol utilizada por Kee por entendermos que ele consegue
esclarecer de maneira objetiva aquilo que nos interessa expressar neste item sendo uma
consequecircncia natural do processo de conversatildeo ao cristianismo em meados de Seacuteculo II Mol
204 No original The Mission and Expansion of Christianity in the First Three Centuries
205 HARNACK The Mission and Expansion of Christianity in the First Three Centuries 2005 p 152 No original
Convinced that Jesus the teacher and the prophet was also the Messiah who was to return ere long to finish off
his work people passed from the consciousness of being his disciples into that of being his people the people of
God ὑμεῖς γένος ἐκλεκτόν βασίλειον ἱεράτευμα ἔθνος ἅγιον λαὸς εἰς περιποίησιν (1 Pet ii 9 ldquoYe are a chosen
race a royal priesthood a holy nation a people for possessionrdquo) and in so far as they felt themselves to be a
people Christians knew they were the true Israel at once the new people and the old
206 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004
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escreve que o primeiro estaacutegio de um novo convertido neste periacuteodo se caracterizava por aquilo
que ele define como um ldquodistanciamento de anteriores padrotildees de identidaderdquo207
Deste modo seguindo a proposta acima encontramos algumas afirmaccedilotildees que nos
parecem descrever com exatidatildeo a tese (por hipoacutetese cristatilde) que definia a sociedade de entatildeo
como que constituiacuteda por um suposto terceiro grupo de pessoas (holisticamente falando) Aleacutem
dos denominados gentios e judeus (no relato biacuteblico) haveria tambeacutem os cristatildeos Cabe-nos
ressaltar que esse indicador quantitativo variou dentro da construccedilatildeo desta proposiccedilatildeo
indicativa das supostas variaccedilotildees de ldquoraccedilasrdquo pois jaacute nos escritos dos Pais Apologistas esse
nuacutemero chegou a ser descrito em mais de trecircs segmentos (caldeus egiacutepcios gregos judeus e
cristatildeos)208 Assunto que voltaremos a tratar com mais exatidatildeo a seguir Vale-nos tambeacutem citar
que o conceito de estraneidade abordado especialmente em anaacutelises eclesioloacutegicas e
missioloacutegicas do meio Patriacutestico209 diferencia-se em alguns aspectos de nosso assunto
diferenciaccedilatildeo que natildeo seraacute abordada por entendermos que foge de nossa temaacutetica atual
Iniciamos nossa argumentaccedilatildeo apontando que este conceito identitaacuterio de caraacuteter
etnograacutefico jaacute se apresenta com clareza no relato da Escritura Sagrada Vemos o apoacutestolo Paulo
fazendo distinccedilatildeo similar quando opta por desenvolver uma anaacutelise contrastante do cenaacuterio
humano (eacutetnico religioso etc) de seu tempo apresentando-nos uma leitura com trecircs diferentes
grupos humanos ldquoNatildeo vos torneis causa de tropeccedilo nem para judeus nem para gentios nem
tampouco para a igreja de Deusrdquo (1 Coriacutentios 1032) Neste ponto posiccedilotildees exegeacuteticas variadas
podem corroborar para a compreensatildeo e tambeacutem assimilaccedilatildeo da passagem citada referente ao
suposto conceito de iacutendole eacutetnica apontado210 mas o proacuteprio cenaacuterio nos aponta determinados
viacutenculos que nos conduzem a ideia de que ser cristatildeo no suposto periacuteodo oferecia aos fieacuteis a
opiniatildeo de pertencer a um povo diferente211
Neste conjunto eacute necessaacuterio citar o Apologista Aristides que de maneira
inquestionaacutevel se apresenta no cenaacuterio cristatildeo como aquele que daraacute um salto intelectual na
direccedilatildeo do desenvolvimento daquilo que poderiacuteamos definir como a primeira concepccedilatildeo de um
ethnos propriamente cristatildeo212 Aristides ldquofiloacutesofo de Atenas e um dos primeiros defensores do
207 MOL Identity and the Sacred 1977 p 52-53 apud KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica
1983 p 65-66 grifo nosso
208 Ver ARISTIDES Apologia II XIV e XV
209 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
210 METZ In A Primeira Epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006
211 GONZAacuteLEZ 1995
212 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997
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cristianismordquo213 permitiraacute a transmissatildeo conceitual deste tema apontado nos escritos paulinos
aproximadamente oitenta anos depois de Paulo escrever aos cristatildeos de Corinto Em sua obra
Apologia Aristides concentra esforccedilos em uma elaboraccedilatildeo pragmaacutetica que visa uma
apresentaccedilatildeo de diferentes aspectos teoloacutegicos e morais todos provenientes de haacutebitos e
costumes de outros padrotildees religiosos de entre as etniaspovosnaccedilotildees de sua eacutepoca
Neste exerciacutecio Aristides ldquodescreve os cristatildeos como um povo ou naccedilatildeordquo214 que iraacute
progressivamente e cada vez mais contrastar seus conhecimentos e seu comportamento com os
outros povos com que convivia a saber os babilocircnios os gregos os egiacutepcios e os judeus
Possivelmente Aristides desejava ldquoexprimir a autocompreensatildeo cristatilderdquo215 de seus dias no
entanto provavelmente tambeacutem expressava um conceito jaacute bem estruturado em seu meio
religioso utilizando-se de um escrito apologeacutetico muito diretivo desenvolvido em ldquoforma de
uma etnografia comparativardquo216 Importante eacute o fato de que um entendimento novo de forma
absolutamente objetiva retratava a nova maneira de viver e esta maneira era aplicada
adjetivamente como cristatilde
Este fenocircmeno ocorria devido a este novo conceito ter se estruturado sobre ldquouma
organizaccedilatildeo humana cada vez mais precisa e soacutelida uma sociedade cujos alicerces satildeo
inteiramente novos e um tipo de homem diferente de todos aqueles que o mundo conhecerardquo217
Desta forma acabou por se gerar um entendimento novo sobre uma nova realidade histoacuterica
diferente de todas as demais jaacute existentes algo que na compreensatildeo de seus participantes soacute
poderia ser condicionado por um novo organismo ou seja uma nova ldquoraccedilardquopovonaccedilatildeo
Contudo este fato pode ser tambeacutem comprovado atraveacutes de outros seguimentos uma vez que
os proacuteprios natildeo-cristatildeos parecem fomentar esta ideia de separaccedilatildeo eacutetnica Isso pode ser visto
com realce atraveacutes do relato de outra figura Patriacutestica de destaque o qual torna-se o personagem
central de nosso exame a partir deste ponto
A partir do Seacuteculo II haveraacute inuacutemeras contribuiccedilotildees para a histoacuteria da teologia Em
primeiro lugar na figura de Tertuliano por ser considerado o ldquofundador da tradiccedilatildeo teoloacutegica
ocidentalrdquo218 Entretanto referente ao tema em destaque Tertuliano em sua obra Agraves Naccedilotildees (Ad
nationes) ndash tambeacutem traduzida por Aos Pagatildeos ndash apresenta no capiacutetulo VIII do I livro uma
213 PIERINI A Idade Antiga Curso de histoacuteria da igreja ndash I 1998 p 73
214 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997 p 16
215 PIERINI A Idade Antiga Curso de histoacuteria da igreja ndash I 1998 p 73
216 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997 p 17
217 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 240
218 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 42
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relevante informaccedilatildeo a respeito de nosso assunto pois atraveacutes de uma genuiacutena accedilatildeo apologeacutetica
passa a informar algo que estava sendo apregoado sobre os cristatildeos Ele menciona que alguns
ldquoCertamente dizem que somos a terceira raccedila dos homensrdquo219 Jaacute de iniacutecio torna-se simples
devido ao desenvolvimento do texto conceituar a definiccedilatildeo (ldquoterceira raccedilardquo) citada por
Tertuliano pois de maneira peculiar sua ironia consegue descrever com exatidatildeo sua intenccedilatildeo
e o que ele escreve a seguir acaba por orientar seu entendimento e interesse argumentativo Ele
diz ldquoDe que maneira Uma raccedila com cara de cachorro Ou uma que possui apenas um enorme
peacute Ou algum Antiacutepoda subterracircneordquo220
Obviamente Tertuliano natildeo tinha em mente elaborar uma refutaccedilatildeo que viesse a
discutir questotildees bioloacutegicas ou antropoloacutegicas referentes agraves pessoas que estavam sendo
atingidas por essa pecha de ordem etnorracial Seu estilo quase sarcaacutestico demonstra que na
verdade sua indignaccedilatildeo frente agraves agressotildees lanccediladas aos irmatildeos da feacute que eram protagonizadas
pelas perseguiccedilotildees oferecidas pelos descrentes e das quais ele era uma literal testemunha o
compeliam a reagir em sua defesa ldquoTenham cautela no entanto pois aqueles a quem vocecircs
chamam de terceira raccedila devem obter o primeiro lugar uma vez que natildeo haacute certamente naccedilatildeo
que natildeo seja cristatilderdquo221
Tertuliano ainda em sua fase Apologista222 procura nos apresentar uma descriccedilatildeo
pejorativa (ldquoterceira raccedilardquo) dos pagatildeos como absolutamente preconceituosa e totalmente
intolerante pois esta visa tatildeo somente implementar ldquoacusaccedilotildees contra os cristatildeosrdquo223 buscando
unicamente denigrir sua religiatildeo natildeo possuindo nenhuma ligaccedilatildeo especiacutefica com as relaccedilotildees
eacutetnicas eou nacionais destas pessoas Sobre este prisma o proacuteprio Tertuliano afirma ldquoMas eacute
no sentido de religiatildeo e natildeo de naccedilatildeo que somos tidos como a terceira raccedila Pela ordem os
romanos os judeus e por uacuteltimo os cristatildeosrdquo224 No decorrer do texto225 fica-nos ainda mais
evidente que esta tentativa de uma diferenciaccedilatildeo humana natildeo corresponde a dados bioloacutegicos e
antropoloacutegicos pois visa promover unicamente uma desqualificaccedilatildeo da crenccedila do grupo ao qual
ataca (cristatildeos) independentemente de suas origens eacutetnicas
219 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 1 grifo nosso
220 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 1
221 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 9
222 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
223 LEAL In Tertuliano Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1577
224 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 1 grifo nosso
225 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 9-11
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Deste modo assimilando os variados dados relacionados nesta construccedilatildeo
fenomenoloacutegica vemos que independentemente do meio (eclesiaacutestico ou secular) e da
temporalidade (periacuteodo biacuteblico ou patriacutestico) o sentido uniforme do conceito de ser cristatildeo
estava incondicionalmente ldquovinculado a um grupo com relaccedilotildees sociais distintas dos
demaisrdquo226 Aqui a reflexatildeo de Santos nos auxilia de forma significativa especialmente visando
o desenvolvimento restante deste capiacutetulo
Relaccedilotildees sociais estas que privilegiam os aspectos espirituais e morais Neste sentido
os cristatildeos podem ser entendidos como um povo particular com uma promessa
profeacutetica especificamente direcionada a eles Povo este que como vimos
anteriormente possui seu conjunto de crenccedilas um estilo de vida proacuteprio seus
siacutembolos sua interpretaccedilatildeo de mundo Tudo isto se traduz pela expressatildeo ldquonova vida
e os nossos ensinamentosrdquo utilizada por Justino (JUSTINO I Apologia III 3)227
Ao finalizarmos este item salientamos nossa intenccedilatildeo na proposta de agregar a esta
pesquisa a ideia de que para o cristianismo inicial como tambeacutem para seu meio social ndash onde
Justino necessariamente se enquadra ndash havia um conceito de identidade definido do que era ser
cristatildeo Cabe-nos agora complementaacute-lo Para isto propomos uma descriccedilatildeo de seu perfil
oposto ateacute mesmo antagocircnico para o periacuteodo ou seja descrevendo aquilo (ou aqueles) que na
visatildeo dos cristatildeos natildeo eram cristatildeos
22 O MUNDO NAtildeO-CRISTAtildeO
Em nossa proposta de pesquisa se faz indispensaacutevel conhecermos a visatildeo do meio
cristatildeo (eclesioloacutegica) a respeito daqueles que eram ao seu entendimento ndash pelo menos de
maneira preliminar ndash antagocircnicos agrave sua realidade existencial Obviamente este trabalho busca
ancorar-se ao pensamento de seu autor central Assim sendo Justino passa a nos ceder as bases
desse processo de incompatibilidade de grupos228 onde podemos sem exageros a partir de
Justino arquitetar um cenaacuterio que nos mostra eficientemente que este conceito evidenciado no
Apologista eacute oriundo da mensagem Apostoacutelica (Paulo) e Patriacutestica (Aristides) anteriores a ele
as quais parecem terem sido bem recebidas e definidas quanto a essa importante questatildeo
226 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 143
227 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 144
grifo nosso
228 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997
57
etnograacutefica Percebemos isso com certa clareza quando ele diz que ldquoDeve-se saber que o
restante de todas as raccedilas humanas satildeo chamadas de naccedilotildees pelo Espiacuterito profeacutetico a casta dos
judeus e samaritanos poreacutem chama-se Israel e Casa de Jacoacuterdquo229
Nesta introduccedilatildeo ainda nos eacute possiacutevel descrever um conceito metafiacutesico a partir do
entendimento de Justino que era um filoacutesofo Utilizando-nos da objetivaccedilatildeo da identidade
(ethnos) cristatilde um modelo passa a se estabelecer nesta descriccedilatildeo e este modelo eacute que ldquotorna
uma entidade reconheciacutevelrdquo230 Assim este estado que passa a ser evidentemente concreto e
que estaacute constituiacutedo em uma forma de identificaccedilatildeo passa tambeacutem a possuir o seu oposto
definindo-se por meio de diversos exames tendo a partir disso haacute possibilidade de ser aceito
ou rejeitado por aquilo que lhe eacute diferente
Prosseguindo no desenvolvimento de nosso raciociacutenio comeccedilaremos a descrever
sinteticamente o ponto central a ser analisado nesta pesquisa Entendemos que a reflexatildeo que
recebemos a partir da oacutetica de Justino poder ser definida por meio de sua compreensatildeo do que
eacute a Verdade revelada para a humanidade Deste modo inicialmente nos cabe salientar que o
periacuteodo de tempo logo apoacutes o advento do cristianismo e sua consolidaccedilatildeo (informal para a
eacutepoca) como uma religiatildeo estabelecida em meio ao Impeacuterio Romano trouxe algumas
evidecircncias que caracterizavam e apontavam para a identificaccedilatildeo daqueles que eram seguidores
deste credo e ipso facto passava a distingui-los quase que de forma automaacutetica dos demais
seguidores de outras praacuteticas religiosas tais como o judaiacutesmo e os cultos politeiacutestas os quais
tambeacutem podem ser definidos no cenaacuterio imperial como ldquocultos estataisrdquo231 eou religiatildeo dos
povos gentios
Ainda neste espaccedilo nos eacute necessaacuterio salientar que a atribuiccedilatildeo religiosa como ponto
primaz na questatildeo orientativa dos que natildeo confessavam a feacute cristatilde eacute importante ou ateacute mesmo
necessaacuteria porque no referido periacuteodo natildeo se concebia a ideia de que as massas humanas ndash em
qualquer lugar independentemente de sua etnia ou nacionalidade ndash natildeo aderissem a uma forma
de crenccedila232 O pensamento de Santos qualifica esta ideia de contraste entre crenccedilas
Os cristatildeos precisavam ser diferentes dos judeus e dos demais povos para construiacuterem
uma identidade proacutepria ainda que algo dos dois fizesse parte de sua identidade E
mesmo esse algo teria uma leitura particular dentro do cristianismo Os siacutembolos
229 JUSTINO I Apologia LIII 4
230 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014 p 110
231 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 51
232 KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983
58
ainda que preservados natildeo teriam exatamente os mesmos significados Justino por
vezes ao apontar aquilo que os cristatildeos eram utiliza a comparaccedilatildeo Tal comparaccedilatildeo eacute
feita com base natildeo soacute naquilo que eacute semelhante nos grupos que ele considera natildeo-
cristatildeos mas principalmente nas suas diferenccedilas o que nos revela que no outro haacute
tanto pontos congruentes quanto incongruentes233
Desta forma a partir deste ponto falaremos a respeito dos dois respectivos grupos
humanos (em sentido eacutetnico e nacional) nos quais se estabeleciam a distinccedilatildeo e a divisatildeo
proposta por Justino em sua construccedilatildeo teoloacutegica
221 Os Judeus
Passando objetivamente a leitura da obra de Justino (I Apologia) constatamos com
razoaacutevel clareza a importacircncia dada pelo autor aquilo que corresponde diretamente ao povo
judeu este aspecto acaba por se tornar importantiacutessimo na elaboraccedilatildeo de nosso conceito pois
traz equiliacutebrio agrave orientaccedilatildeo que Justino propotildeem desenvolver como contrastante ao seu estado
de feacute e crenccedila Para Justino o povo eleito por Deus para receber as promessas diretrizes e
preceitos da Primeira Alianccedila acabou por se tornar uma espeacutecie de agente condutor e ateacute
mesmo catalisador de uma forma funcional do cumprimento das profecias descritas como
messiacircnicas234 Justino ao mencionar o Profeta Isaiacuteas e o Livro dos Salmos235 apresenta-nos esta
indicaccedilatildeo dizendo
Quando o Espiacuterito profeacutetico fala na pessoa de Cristo ele se expressa assim ldquoEu
estendi as minhas matildeos a um povo que natildeo crecirc e contradiz aos que andam por um
caminho que natildeo eacute bomrdquo E novamente ldquoEntreguei minhas costas aos accediloites e
minhas faces agraves bofetadas e natildeo afastei o meu rosto da vergonha das cuspidas E o
Senhor se tornou o meu auxiacutelio por isso eu natildeo fui confundido mas transformei o
meu rosto em rocha dura e soube que natildeo seria confundido pois estaacute perto aquele
que me justificardquo E o mesmo quando diz ldquoEles lanccedilaram sorte sobre as minhas
roupas e transpassaram as minhas matildeos e os meus peacutes mas eu adormeci e me
entreguei ao sono e ressuscitei porque o Senhor me protegeurdquo E outra vez quando
diz ldquoCochichavam com os seus laacutebios e balanccedilaram a cabeccedila dizendo Salve-se a si
mesmo Podeis comprovar que tudo isso cumpriu-se atraveacutes dos judeus em Cristordquo236
233 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 144
234 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
235 Acredita-se que os textos biacuteblicos usados por Justino segundo a versatildeo da Biacuteblia Grega (Septuaginta) satildeo Is
652 Is 506-8 Sl 2119 Sl 36 Sl 218-9 Ver FRANGIOTTI In Introduccedilatildeo I Apologia 1995 p 27
236 JUSTINO I Apologia XXXVIII 1-7
59
Nesta passagem da I Apologia onde jaacute nos deparamos com o exegeta Justino237 fica-
nos claro que na opiniatildeo deste os reconhecidos como natildeo-cristatildeos ndash particularmente tratando-
se do povo judeu e de sua religiatildeo ndash natildeo compreenderam o tempo de sua visitaccedilatildeo menos ainda
foram capazes de interpretar com eficiecircncia tudo aquilo que as profecias anunciavam a respeito
de seu Messias Esse processo ganha ainda mais ecircnfase quando o teor aplicado por Justino passa
a ser mediado atraveacutes do contexto entre os capiacutetulos XXXVI a XXXVIII onde o relato parece
sugerir um compecircndio baacutesico com ldquoregras de interpretaccedilatildeordquo238 do Apologista sobre as profecias
messiacircnicas Neste cenaacuterio eacute possiacutevel penetrar mais profundamente na realidade sugerida por
Justino os judeus natildeo obstante sua falta de discernimento tornaram-se por seu endurecimento
os proacuteprios algozes Daquele que veio libertaacute-los
Torna-se necessaacuterio dizer que a exegese aplicada por Justino natildeo se faz sem equiacutevocos
Alguns erros satildeo ateacute mesmo inocentes quando analisados agrave luz de elementos da ciecircncia biacuteblica
atual239 como por exemplo quando cita o texto do Salmo 2119 (segundo a Septuaginta) o
qual eacute amplamente interpretado pelos Evangelhos240 como uma accedilatildeo dos soldados romanos
junto ao relato da crucifixatildeo de Cristo e natildeo como um ato diretamente empregado pelo povo
judeu Entretanto Justino entende que os judeus natildeo apenas assumiram agrave culpa desse ato por
meio de seu embrutecimento mas principalmente por seu endurecimento o qual foi causado
originalmente por sua incredulidade (natildeo-assimilaccedilatildeo) para com a pessoa de Jesus Cristo na
opiniatildeo de Justino241 Deste modo parece natildeo permanecer nenhum constrangimento por parte
do Apologista em apontar aos judeus natildeo como meros colaboradores mas sim como os
grandes culpados pela morte de Cristo
Na verdade Davi rei e profeta que disse isso natildeo sofreu nada disso mas Jesus Cristo
estendeu as suas matildeos quando foi crucificado pelos judeus que o contradiziam e
falavam que ele natildeo era o Messias Com efeito como disse o profeta levaram-no
arrastando e fazendo-o sentar-se numa cadeira de juiz disseram-lhe ldquojulga-nosrdquo242
237 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948
238 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 26
239 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
240 Ver Mateus 2633-38 Marcos 1522-24 Lucas 2333-34 Joatildeo 1923-24
241 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
242 JUSTINO I Apologia XXXV 6
60
Mesmo jaacute tendo sido identificado por noacutes de forma preacutevia cabe-nos ainda citar de
maneira mais precisa as pertinentes consideraccedilotildees que Justino faz referente ao natildeo
reconhecimento da pessoa de Jesus Cristo como o Messias prometido ao povonaccedilatildeo de Israel
por parte dos judeus O Apologista escreve ldquoNatildeo entendendo isso os judeus que satildeo aqueles
que possuem os Livros dos profetas natildeo soacute natildeo reconheceram a Cristo jaacute vindo mas tambeacutem
odeiam a noacutes que dizemos que ele de fato veio e mostramos que como fora profetizado foi
por eles crucificadordquo243
Aleacutem dessa notificaccedilatildeo exortativa referente aquilo que poderiacuteamos definir como uma
leitura do cenaacuterio sociorreligioso judaico (que no presente momento e tambeacutem anteriormente a
ele interagiu conflituosamente com os cristatildeos) devemos tambeacutem reconhecer outro aspecto que
este ambiente social nos aponta por meio da ldquoobservaccedilatildeo de Justino segundo a qual Bar
Kochba244 ameaccedilou judeus messiacircnicos com pesados castigos caso natildeo negassem que Jesus eacute
o Cristordquo245 estabelecendo deste modo haacute opiniatildeo de que os cristatildeos realmente eram um povo
que sofria historicamente ldquohostilidade dos judeusrdquo246 principalmente porque os cristatildeos deram
o devido valor agrave revelaccedilatildeo de Deus247
Por uacuteltimo neste cenaacuterio de nossa anaacutelise concentrada na opiniatildeo de Justino frente ao
status sociorreligioso judaico devemos ainda olhar com bastante atenccedilatildeo para uma passagem
da Escritura Sagrada relacionada a Primeira Alianccedila que nos eacute apresentada enfaticamente por
Justino em sua obra apologeacutetica O texto do capiacutetulo 65 verso 2 do Livro do profeta Isaiacuteas eacute
citado por trecircs vezes na I Apologia248 caracterizando mediante este fato repetitivo uma
significativa elucubraccedilatildeo por parte de Justino a esta porccedilatildeo da Escritura Nosso autor se
distingui ao comentar o Texto Sagrado dizendo ldquoQuando o Espiacuterito profeacutetico fala na pessoa de
Cristo ele se expressa assim lsquoEu estendi as minhas matildeos a um povo que natildeo crecirc e contradiz
aos que andam por um caminho que natildeo eacute bomrsquordquo249
Partamos de um ponto conceitual Na esfera racional de Justino o caso das ldquomatildeos
estarem estendidas a um povo increacutedulo e contestadorrdquo era um fato indubitaacutevel apresentado
atraveacutes de um ar enfaacutetico que apontava agrave suposta culpa que os judeus teriam na rejeiccedilatildeo do
243 JUSTINO I Apologia XXXVI 3
244 JUSTINO I Apologia XXXI 6
245 STEGEMANN E STEGEMANN W Histoacuteria Social do Protocristianismo 2004 p 266
246 MONDONI Histoacuteria da Igreja na Antiguidade 2001 p 32
247 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
248 JUSTINO I Apologia XXXV 3 XXXVIII 1 XVIX 3
249 JUSTINO I Apologia XXXVIII 1
61
verdadeiro Ungido de Deus solidificando deste modo de maneira inevitaacutevel sua compreensatildeo
de que os judeus ao natildeo reconhecerem o Messias ldquoperderam o direito hereditaacuterio a promessa
que passou para os cristatildeosrdquo250 Este conceito251 acaba por ficar ainda mais saliente em sua
obra Diaacutelogo com Trifatildeo252 detalhe que natildeo apontaremos aqui devido a nossa opccedilatildeo de
delimitaccedilatildeo textual
Por fim necessitamos condicionar nossa pesquisa a um resultado Entatildeo ratificamos
que em nosso entendimento fica claro que na transmissatildeo da ideia de Justino os judeus foram
rejeitados como naccedilatildeopovoldquoraccedilardquo por sua incredulidade mesmo que estes tenham sido
anteriormente escolhidos como os herdeiros das promessas de Deus De fato Justino afirma
ldquoEntatildeo eles se arrependeratildeo quando de nada mais lhes valeraacuterdquo253 Logo para Justino os judeus
natildeo eram mais a ldquoraccedilardquo eleita porque natildeo eram cristatildeos
Passamos agora ao outro grupo compreendido como natildeo-cristatildeo pelo conceito
etnograacutefico dos seguidores do cristianismo na eacutepoca de Justino os Gentios
222 Os Gentios
De imediato devemos propor um referencial orientativo visando essa construccedilatildeo e
uma afirmaccedilatildeo parece definir de maneira satisfatoacuteria esta questatildeo Igualmente agrave anaacutelise anterior
(para com os judeus) partimos de referenciais de caraacuteter sociorreligioso baseados em nosso
autor central poreacutem com a diferenciaccedilatildeo de que agora falamos de um campo muito mais
abrangente a ser examinado pois os ldquogentiosrdquo254 (segundo o Apoacutestolo Paulo) ldquoos caldeus os
gregos e os egiacutepciosrdquo255 (segundo Aristides) e ldquoos romanosrdquo256 (segundo Tertuliano) formam
esse novo e amplo grupo que tambeacutem se caracteriza religiosamente em contraste tanto com
cristatildeos quanto com os judeus que haviam rejeitado o seu Messias
Todo esse enorme contingente religioso se distinguia por sua diversidade Nesta
multiplicidade surgia uma variedade imensa de divindades uma para cada gosto eou prazer
250 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 76
251 Segundo Insuelas as duas primeiras Apologias satildeo escritas ldquocontrardquo os pagatildeos jaacute o Diaacutelogo com Trifatildeo eacute
escrito ldquocontrardquo os judeus Neles Justino pretende provar que Jesus Cristo eacute o Messias e que a sua religiatildeo eacute a
verdadeira Ver INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 54
252 Ver JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo CVIII 1-3
253 JUSTINO I Apologia LII 9
254 Ver 1 Coriacutentios 1032
255 ARISTIDES Apologia II XIV e XV
256 TERTULIANO Agraves Naccedilotildees I 8 1
62
com as quais estes devotos procuravam cobrir suas necessidades e as exigecircncias de culto em
seus dias257 Esta praacutetica reconhecida como politeiacutesmo envolve a coletividade humana desde
seus primoacuterdios258 No entanto para Justino quem seriam as pessoas que adoravam essa
imensidatildeo de outros deuses
Inicialmente afirmamos que os participantesocupantes desse distinto grupo
indiscutivelmente se diferenciavam dos judeus natildeo apenas por sua religiatildeo mas tambeacutem por
questotildees que podem (e devem) ser descritas como eacutetnicas No caso anterior o judaiacutesmo (ou
podemos chamar de religiatildeo judaica) natildeo se desvinculava (nem atualmente se desvincula) da
etnia de origem semita (judeus) que ocupava massivamente a regiatildeo do moderno estado de
Israel Ateacute os dias de hoje os judeus ndash tambeacutem chamados de ldquoisraelitasrdquo (genericamente) ndash satildeo
definidos regularmente como ldquofieacuteisrdquo da religiatildeo judaica259 Em nosso caso de destaque os
agentes religiosos que formavam as fileiras das religiotildees politeiacutestas eram seres humanos
oriundos das mais variadas sociedades da eacutepoca de diversas culturas mas que assumiam o
chamado culto de origem mitoloacutegica difundido amplamente na cultura de origem greco-
romana260 na qual Justino tambeacutem havia vivido e sido criado261 e que havia se tornado em um
elemento poliacutetico que ldquoos romanos chamavam de pax deorumrdquo262
Estes adoradores de outros e variados deuses usualmente possuem outra designaccedilatildeo
tanto para Justino quanto no relato biacuteblico satildeo os gentios ndash termo geneacuterico que adotaremos a
partir de agora neste item para a identificaccedilatildeo desse grupo devido a sua abrangecircncia e
complexidade A pesquisa de Santos nos auxilia consideravelmente nesta definiccedilatildeo
O termo utilizado na Biacuteblia hebraica para gentio eacute gocircy (גוי) e tanto no texto grego do
Antigo Testamento (Septuaginta) quanto no Novo Testamento temos os termos
ethnos (εθνος) ou hellen (ελλην) Satildeo geralmente traduzidos como naccedilatildeo raccedila
gentes gentios Se estiver no singular podem se referir aos judeus (HARRIS 1998 p
251-252 DOUGLAS 1995 p 662 VINE 2002 p 673) De forma geral quando no
plural eles se referem aos outros povos que natildeo os judeus e no caso mais
especificamente cristatildeo denotam natildeo soacute os natildeo-judeus mas podem se referir agravequeles
gentios que se converteram ao cristianismo ldquoOs quais pela minha vida expuseram as
257 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010
258 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
259 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014
260 SCOTT As Catacumbas de Roma 1996
261 PIERINI A Idade Antiga Curso de histoacuteria da igreja ndash I 1998
262 CORNELL MATTHEWS A Civilizaccedilatildeo Romana 2008 p 94
63
suas cabeccedilas o que natildeo soacute eu lhes agradeccedilo mas tambeacutem todas as igrejas dos gentiosrdquo
(Romanos 164)263
Justino natildeo apenas se utiliza dessa terminologia com desenvoltura mas tambeacutem se
serve de outros termos que designam este grupo de existecircncia gentiacutelica Encontramos citaccedilotildees
como ldquogente de todas as naccedilotildeesrdquo264 ldquogente de todas as raccedilasrdquo265 ldquohomens das naccedilotildeesrdquo266 ou
ldquoos povos das naccedilotildeesrdquo267 Ao analisarmos o contexto textual destas citaccedilotildees de Justino fica
evidente que o Apologista ao descrever estes trechos estaacute incondicionalmente se referindo ao
cumprimento das promessas messiacircnicas aos gentios Desta forma acaba por caracterizar (os
gentios) como os natildeo-judeus que estavam sem Cristo mas que iriam recebecirc-lo pela
proclamaccedilatildeo da mensagem evangeacutelica Drobner sugere que possivelmente Justino acreditava
que uma vez que os democircnios foram silenciados pela proclamaccedilatildeo da Verdade por meio da
mensagem da cruz ldquoos homens agora em todo o mundo se tornariam tementes a Deusrdquo268
Encontramos na I Apologia uma tendecircncia ndash pelo menos de maneira impliacutecita ndash de
apontar em menor nuacutemero elementos negativos eou pejorativos dos gentios e de suas praacuteticas
religiosas politeiacutestas Isso obviamente se comparados com agravequeles apresentados
volumosamente como prejuiacutezos trazidos eou deixados pelos judeus naquilo que se tratava da
revelaccedilatildeo de Deus em Jesus Cristo Tratando-se especificamente dessa questatildeo sociorreligiosa
que envolvia a religiatildeo judaica cabe-nos ressaltar com veemecircncia que em nossas afirmaccedilotildees
natildeo se estaacute buscando implicar de nenhuma maneira ou forma a Justino uma postura
antissemita269 pois sua polecircmica com os judeus ldquonada tem a ver com antissemitismo porque
natildeo se trata da raccedila mas da feacuterdquo270 Deste modo orientando-nos atraveacutes de dados da anaacutelise
historiograacutefica acreditamos que este fenocircmeno se baseou na tentativa de indicar com clareza
atribuiccedilotildees da histoacuteria da revelaccedilatildeo no fato de se contextualizar o relato salviacutefico de Deus para
263 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 147
264 JUSTINO I Apologia XXXII 3
265 JUSTINO I Apologia XXXII 4
266 JUSTINO I Apologia XXXI 7
267 JUSTINO I Apologia XLIX 1
268 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 84
269 Antissemita (anmiddottismiddotsemiddotmimiddotta) anti- + semita Adjetivo de dois gecircneros e substantivo de dois gecircneros Significa
Que ou quem se opotildee aos semitas e particularmente aos judeus Ver Dicionaacuterio Priberam da Liacutengua Portuguesa
Disponiacutevel em lthttpsdicionariopriberamorgantissemitagt Acesso em 17 de jan de 2019
270 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 76
64
a humanidade pois o ldquoproacuteprio texto nos fornece um contexto Mas tambeacutem pelos enunciados
que evidenciam sua forccedila ilocucionaacuteriardquo271
Poreacutem entendemos ainda ser oportuno citar a Justino de forma direta mais uma vez
em nossa elaboraccedilatildeo sobre o conceito de definiccedilatildeo daqueles que natildeo satildeo cristatildeos para ele
Indiscutivelmente os gentios gozavam de uma pequena parcela de toleracircncia por parte de
Justino especialmente diante do testemunho das conversotildees ocorridas junto o mundo greco-
romano das quais ele mesmo era fruto Aleacutem disso em nossa construccedilatildeo conceitual outra vez
fica notoacuterio que nosso autor natildeo procura mascarar em nenhum momento sua dificuldade para
com a religiatildeo judaica272 O texto de Justino transparece isso com muita clareza
Ao contraacuterio (dos judeus) os gentios que nunca tinham ouvido falar dele ateacute que os
apoacutestolos tendo saiacutedo de Jerusaleacutem lhes contaram sua vida e lhes entregaram as
profecias cheios de alegria e de feacute renunciaram aos iacutedolos e se consagraram ao Deus
ingecircnito por meio de Cristo273
Contudo torna-se claro tambeacutem que na concepccedilatildeo de Justino o alcance dessa
conformidade do plano salviacutefico de Deus atraveacutes de Jesus Cristo para com os gentios seria
segundo o posicionamento de feacute desse grupo pois o teor e a objetividade para o
desenvolvimento da I Apologia provam o contraacuterio pois esta obra acabou sendo redigida
condicionalmente na tentativa de aplacar os acircnimos daqueles que perseguiam os cristatildeos de
forma injustificaacutevel sendo evidente no relato de ambas as Apologias de Justino que os
perseguidores eram majoritariamente formados de natildeo-cristatildeos de origem gentiacutelica Essa
evidecircncia conseguimos resgatar no proacuteprio relato do Apologista quando este comenta a
respeito da idolatria dos gentios enfatizando seu politeiacutesmo Nessa passagem sua penna eacute
categoacuterica e imperativa
E aquilo mesmo que voacutes praticais e honrais publicamente voacutes o atribuiacutes a noacutes como
se tiveacutessemos decaiacutedo e a luz divina natildeo nos assistisse Todavia como estamos livres
por natildeo praticar nada disso vossas caluacutenias natildeo nos causam nenhum dano ao
271 SANTOS amp GONCcedilALVES A Aplicaccedilatildeo do ldquoContextualismo Linguiacutesticordquo e a busca da compreensatildeo da I
Apologia de Justino Maacutertir 2011 p 3
272 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
273 JUSTINO I Apologia XLIX 5 grifo nosso
65
contraacuterio danificam aqueles que cometem essas torpezas e ainda levantam falso
testemunho contra noacutes274
Finalizamos assim este item que visou especificar aquilo que se encontra aplicado na
explanaccedilatildeo do Apologista sobre o natildeo ser um cristatildeo Buscamos nesta explanaccedilatildeo uma espeacutecie
de caraacuteter identificativo aleacutem de termos procurado sinalizar para o oposto de cada caso
examinado distinguindo deste modo os grupos religiosos analisados atraveacutes de criteacuterios que
os contrastavam entre si e para com o objeto principal (cristianismo) pois notificamos que para
Justino como tambeacutem para a Igreja em sua eacutepoca judeus e gentios natildeo eram homens de outra
espeacutecie (em sentido bioloacutegico) mas natildeo sendo cristatildeos pertenciam necessariamente a outro
mundo um mundo natildeo-cristatildeo
A seguir trataremos de assuntos mais pontuais os quais podemos denominar de
ldquofactiacuteveisrdquo segundo a leitura de Justino para com a realidade que o cercava Esse conjunto de
fatos era polemizado de maneira constante (por meio de uma tentativa aguda de se diferenciar
proposiccedilotildees) pois possuiacutea uma importacircncia fundamental na definiccedilatildeo exigida para se
estabelecer a oposiccedilatildeo dos ldquomundosrdquo que apontamos
23 PRAXIS FIDEI ADVERSUS INIQUITATEM
E para que se torne evidente para voacutes vamos apresentar-vos a prova de que aquilo
que dizemos por tecirc-lo aprendido de Cristo e dos profetas que os precederam eacute a uacutenica
verdade e a mais antiga do que todos os escritores que existiram Natildeo pedimos que se
aceite a nossa doutrina por coincidir com eles mas porque dizemos a verdade275
A partir deste item apresentamos uma anaacutelise de meios e de casos os quais
entendemos serem absolutamente necessaacuterios para uma resposta realmente qualificada visando
uma conclusatildeo satisfatoacuteria desta pesquisa Neste processo que inicialmente abarcou de maneira
histoacuterica a estruturaccedilatildeo e funcionalidade de um ambiente confessional acabou por se
caracterizar cada vez mais atraveacutes de um distinto cenaacuterio sociorreligioso em seu tempo Nessa
verificaccedilatildeo de costumes do comportamento humano na esfera religiosa percebemos com certa
facilidade o profundo impacto ndash especialmente no acircmbito da eacuteticamoral ndash que o cristianismo
proporcionou ao apresentar-se ldquocomo a revoluccedilatildeo mais radical que a humanidade jaacute tinha
274 JUSTINO I Apologia XXVII 5
275 JUSTINO I Apologia XXIII 1 grifo nosso
66
realizadordquo276 Desta forma organizamos uma detalhada abordagem dessa conjuntura de caraacuteter
social na esfera religiosa a qual vamos descrever a seguir procurando direcionar de maneira
objetiva nossos apontamentos para dentro da soluccedilatildeo de nosso problema jaacute anteriormente
especificado e deste modo comeccedilarmos a indicar uma resposta plausiacutevel para o conceito do
que seria a Verdade redigida e sustentada por Justino
Importante para nossa sequecircncia de trabalho eacute procurarmos estabilizar desde cedo a
compreensatildeo de que esta elaboraccedilatildeo de caraacuteter eacutetico-moral natildeo visa ser pormenorizada tatildeo
pouco exaustiva pois acreditamos que isto nem mesmo seria possiacutevel diante da abrangecircncia a
qual o termo Verdade poderia alcanccedilar em um exame epistemoloacutegico mais aprofundado
Particularmente tratando-se de nosso caso em especial um agravante ainda se coloca isso
devido nossa palavra-chave nem mesmo ser aplicada como um simples substantivo por parte
do autor pois recebe por parte de Justino uma abrangecircncia axiomaacutetica muito singular somente
compreendida em seu contexto mais amplo (realidade sociorreligiosa)
Entretanto partimos da necessidade de nos orientarmos por meio de definiccedilotildees
provenientes das afirmaccedilotildees do proacuteprio Justino Diante da realidade sociorreligiosa ndash tambeacutem
pode-se classificaacute-la como cultural dependendo dos criteacuterios propostos ndash que cercava e
envolvia o Apologista (no periacuteodo de redaccedilatildeo da I Apologia) estava necessariamente instituiacuteda
uma forma de cerceamento agraves suas convicccedilotildees religiosas Sem restriccedilotildees podemos nos utilizar
de uma espeacutecie de pleonasmo ao dizermos que Justino ndash ldquose justificardquo ndash constantemente por
meio de um paralelo dialeacutetico que de maneira exata acaba por condicionar-se como loacutegico
pois o Apologista busca apresentar uma ldquoperfeita lealdade dos seus processosrdquo277 racionais em
toda a sua narrativa As contribuiccedilotildees oriundas da predominante linha filosoacutefica a qual Justino
aderiu em sua jornada na busca pela Verdade manifestam-se de forma niacutetida em sua construccedilatildeo
apofacircntica Esse meacutetodo se clarifica na abordagem de Chauiacute
A dialeacutetica platocircnica eacute um procedimento intelectual e linguiacutestico que parte de alguma
coisa que deve ser separada ou dividida em dois ou duas partes contraacuterias ou opostas
de modo que se conheccedila sua contradiccedilatildeo e se possa determinar qual dos contraacuterios eacute
verdadeiro e qual eacute falso278
276 MONDONI Histoacuteria da Igreja na Antiguidade 2001 p 44
277 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 56
278 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995 p 181
67
Deste modo Justino explanou suas conclusotildees de maneira categoacuterica por meio da
aplicaccedilatildeo de um meacutetodo que visava eliminar contradiccedilotildees essenciais daquilo que estava sendo
examinado279 Aparentemente o Apologista acreditava que algo de caraacuteter indivisiacutevel no
sentido de ser inquestionaacutevel poderia ser alcanccedilado mediante suas confrontaccedilotildees mesmo que
Justino afirmasse ser imprescindiacutevel ter que haver feacute em Jesus Cristo para tais fins elemento
(feacute) que era reconhecidamente ausente em seus opositores algo que no final parece desiquilibrar
a loacutegica da teoria de Justino Neste espaccedilo ainda nos eacute necessaacuterio dizer que nosso autor se
baseava fortemente em indicaccedilotildees de cunho comparativo e histoacuterico (a niacutevel de suas convicccedilotildees
religiosas) para defender suas comparaccedilotildees280 Neste item jaacute detectamos fortemente o ser
ldquofiloacutesofordquo em Justino realidade que abordaremos mais detalhadamente no proacuteximo capiacutetulo
Essa base filosoacutefica que acabamos de citar iraacute orientar o ministeacuterio de Justino no
decorrer de sua construccedilatildeo teoloacutegica e quanto a essa filosofia devemos sem constrangimento
atrelaacute-la agravequilo que acabou por se tornar o estilo literaacuterio preponderante em seus trabalhos
Estes se caracterizaram pela presenccedila de um forte teor (dispositivo) apologeacutetico possibilitando-
nos a partir da anaacutelise historiograacutefica281 afirmar que uma vez que os filoacutesofos (do periacuteodo de
Justino) receberam a feacute em Cristo estes podem defender a Verdade pois passam a possuir a
ldquoconsciecircncia da razatildeo filosoacutefica que nela estaacute contidardquo282
Desta forma seguindo uma postura assumidamente analiacutetica Justino passa a arquitetar
seu plano argumentativo utilizando-se de uma clara confrontaccedilatildeo de fatos em vista de alcanccedilar
o resultado desejado Mesmo sem ser um empirista ndash sistema filosoacutefico totalmente distante
cronologicamente de Justino ndash eacute impossiacutevel natildeo se detectar um apego por parte do Apologista
para com um meacutetodo de exame que venha a conferir com afinco a experiecircncia do uso dos
sentidos humanos como o meio para agrave origem e geraccedilatildeo do conhecimento Com isso mais um
detalhe pertinente segundo a nossa compreensatildeo vem a surgir nesta anaacutelise pois conseguimos
detectar com certa facilidade que Justino vincula os fatos registrados de sua feacute na rotina humana
presente efetivamente em seu contexto o que vem a somar para a caracterizaccedilatildeo de uma postura
que na praacutetica eacute empirista283
279 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
280 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
281 Ver SIMONETTI In Apologeacutetica Literatura Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 185-186
282 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
283 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
68
231 Um Princiacutepio Teologal
Seguindo o que acabamos de apontar apresentaremos uma posiccedilatildeo de ordem factiacutevel
da parte de Justino passando a citar elementos que em nosso entendimento estabelecem as
provas desenvolvidas pelo Apologista em seu relato de defesa dos cristatildeos Retrataremos dois
contextos em que Justino apresenta sua iniciativa de modo contundente na busca de seus
objetivos O primeiro cenaacuterio se desenvolve apoacutes o autor terminar uma ilustre analogia entre
ldquodoutrinas estoicas e cristatildesrdquo284
A primeira prova eacute que quando dizemos tais coisas aos gregos somos os uacutenicos a
serem odiados pelo nome de Cristo e nos tiram a vida sem termos cometido crime
algum como se focircssemos pecadores E tendes alguns aqui e outros ali que cultuam
aacutervores rios ratos gatos crocodilos e uma multidatildeo de animais irracionais O
interessante eacute que nem todos cultuam os mesmos mas uns satildeo honrados num lugar
outros em outro de modo que todos satildeo iacutempios entre si por natildeo ter a mesma religiatildeo
Esta eacute a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo veneramos os mesmos deuses que
voacutes e natildeo oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo colocamos coroas nos
sepulcros nem celebramos sacrifiacutecios sobre eles No entanto sabeis perfeitamente
que os mesmos animais por alguns satildeo considerados deuses por outros feras e por
outras viacutetimas para sacrifiacutecios285
A partir desta descriccedilatildeo passamos definitivamente a exposiccedilatildeo dos fatos que satildeo
contrastantes entre a praacutetica da feacute cristatilde e a ordem dos acontecimentos estabelecida nas
ocorrecircncias do meio secular ao redor da Igreja de Cristo isto porque o centro da coletividade
cristatilde (Assembleia Santa) era o que melhor distinguia exteriormente essa separaccedilatildeo
existencial286 A ecircnfase de Justino aplicada agrave realidade sociorreligiosa de seu tempo nos impotildee
a necessidade de uma adaptaccedilatildeo por meio de um delineamento de ordem temaacutetica isso devido
agrave diversidade de assuntos aos quais poderiacuteamos enfocar nesse exame pois a ldquoformalidade da
religiatildeo (pagatilde) manifestava-se de maneira diversardquo287 nos variados ciacuterculos sociais do mundo
greco-romano
O texto de Justino que estaacute depositado em uma genuiacutena literatura de estilo apologeacutetico
acaba ateacute mesmo por ganhar ares enfaticamente polemistas mesmo que esta definiccedilatildeo literaacuteria
do meio Patriacutestico seraacute apenas regulada sobre um escritor apologista a partir da figura de
284 FRANGIOTTI In Introduccedilatildeo I Apologia 1995 p 8
285 JUSTINO I Apologia XXIV 1-3
286 KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983
287 FUNARI Roma vida puacuteblica e vida privada 1993 p 20 grifo nosso
69
Tertuliano288 Isso porque a objetividade empregada por Justino natildeo visava unicamente
solicitar toleracircncia em relaccedilatildeo agrave feacute cristatilde mas tambeacutem evidenciar de forma categoacuterica direta e
especiacutefica uma superioridade do culto cristatildeo sobre as religiotildees pagatildes289
Deste modo de forma essencial entendemos que para uma melhor compreensatildeo do
contexto sugerido se faz necessaacuterio fracionaacute-lo Poreacutem devido agraves vaacuterias possibilidades de
argumentaccedilatildeo que a porccedilatildeo apresentada nos oferece decidimos concentrar nosso exame em
trecircs toacutepicos orientativos atraveacutes dos quais acreditamos ser possiacutevel desenvolver o escopo que
desejamos estes se condicionam a falta de valores absolutos a praacutetica da idolatria (na
concepccedilatildeo cristatilde) e as variaccedilotildees dos atos cuacutelticos que envolviam tal praacutetica mesmo que ambos
os casos apontados venham a se mesclar no seguimento de nosso relato textual devido sua
estreita relaccedilatildeo ldquosimbioacuteticardquo Os trecircs pontos nos conduzem de forma natural a uma reflexatildeo
historiograacutefica em torno do periacuteodo dos Seacuteculos I e II dC visando deste modo uma maior
clarificaccedilatildeo dos fatos que procuramos distinguir
2311 Praacutetica da Feacute Contra o Politeiacutesmo Relativista
Iniciamos a nossa estruturaccedilatildeo apresentando um registro que descreve esse cenaacuterio
cuacuteltico pagatildeo o qual estaacute disponibilizado no texto da Escritura Sagrada Aproximadamente
100 anos antes290 desse registro de Justino o Apoacutestolo Paulo jaacute censurava enfaticamente a
mesma praacutetica religiosa que natildeo estranhamente estava vigorando na cultura social ateacute os dias
de Justino Quando o Apologista acusa seus oponentes de adorarem uma variedade
(pluralidade) de seres criados (ou a natureza) abre-se um paralelismo com o texto biacuteblico que
diz ldquoInculcando-se por saacutebios tornaram-se loucos e mudaram a gloacuteria do Deus incorruptiacutevel
em semelhanccedila da imagem de homem corruptiacutevel bem como de aves quadruacutepedes e repteisrdquo
(Romanos 122-23)
Justino argumenta sobre este cenaacuterio afirmando que o status de honra a estas diversas
ldquodivindadesrdquo passava por variaccedilotildees ndash ou ateacute mesmo vacilaccedilotildees ndash natildeo possuindo nenhum teor
de algo que poderiacuteamos afirmar como ldquoabsolutordquo Justino fortemente tambeacutem salienta que o
simples fator geograacutefico eacute capaz de destituir este aspecto de adoraccedilatildeo realidades
(contingenciais) que acabam por confrontar-se com o credo cristatildeo que jaacute possui seu conceito
bem estabilizado nos dias Justino Nisto nos auxilia o texto da Didaqueacute (possivelmente
288 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
289 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
290 GREATHOUSE In A Epiacutestola aos Romanos Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006
70
redigido no final do Seacuteculo I291) o qual confessa que ldquoTu Senhor Todo-poderoso criaste todas
as coisas por causa do teu Nomerdquo292 solidificando desde muito cedo o princiacutepio que mais
tarde293 seria absolutamente consolidado no Credo Apostoacutelico que iraacute reproduzir conteuacutedo
idecircntico ao afirmar ldquoCreio em Deus Pai todo-poderoso Criador do ceacuteu e da terrardquo294
Deste modo a nova feacute em curso concebia desde seus primoacuterdios um uacutenico ser todo-
poderoso que natildeo pode nem mesmo estaacute sensiacutevel a sofrer as variantes temporais descritas por
Justino Aleacutem disso o Apologista nos apresenta uma variaccedilatildeo de grau que poderiacuteamos definir
como ldquocaoacuteticardquo para uma postura humana em sua relaccedilatildeo com estes ldquoobjetosrdquo de culto pois
cita como premissa que o mesmo ldquoobjetordquo tem determinada condiccedilatildeo de qualidade superior
para alguns mas torna-se trivial e comum para outros295 algo impossiacutevel de ser adaptado ao
elemento divino do culto cristatildeo
2312 Praacutetica da Feacute Contra a Idolatria
O outro ponto que desejamos destacar se aplica sobre a afirmaccedilatildeo de Justino ao dizer
ldquoEsta eacute a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo veneramos os mesmos deuses que voacutesrdquo296
A enfaacutetica argumentaccedilatildeo de Justino salienta a natildeo participaccedilatildeo dos cristatildeos nas atividades
religiosas dos ciacuterculos sociais aos quais pertenciam Estas atividades que eram implementadas
pelo mito popular297 e pelas classes poliacuteticas controladoras298 acabavam por definir-se como
os ritos religiosos ldquooficiaisrdquo ndash aceitos permitidos e em alguns casos tolerados pelas
autoridades ndash no Impeacuterio Romano299 O culto aos diversos deuses e ao imperador romano
caracterizam bem esta diversidade mitoloacutegica300 Assim passamos para um fato literaacuterio que
em nosso entendimento fomenta bem essa ideia estruturada na realidade humana que
desejamos retratar O escrito a seguir de autoria de Pliacutenio o Velho produzido possivelmente
291 STORNIOLO BALANCIN In Introduccedilatildeo DIDAQUEacute O catecismo dos primeiros cristatildeos para as
comunidades de hoje 2010 p 3
292 DIDAQUEacute X 3
293 SCHAFF The creeds of Christendom with a history and critical notes 1966
294 CREDO APOSTOacuteLICO 1ordm artigo (da criaccedilatildeo)
295 Ver GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 89-90
296 JUSTINO I Apologia XXIV 2
297 Ver KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983 p 91-97
298 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
299 ALTANER STUIBER Patrologia Vida Obras e Doutrina dos Padres da Igreja 1988
300 FUNARI Roma vida puacuteblica e vida privada 1993
71
em torno do ano 77 da era cristatilde301 nos expotildee por meio de um registro de tipo naturalista a
seguinte observaccedilatildeo quanto algumas praacuteticas ritualiacutesticas comuns ao cenaacuterio sociorreligioso de
entatildeo Pliacutenio assim escreve
Sacrificar animais sem oraccedilotildees natildeo funciona aparentemente nem produz a correta
relaccedilatildeo ritual com os deuses As foacutermulas variam uma para conseguir um bom
agouro uma segunda para evitar o mau agouro e uma terceira para cultuar as
divindades [] Ao usarmos as preces costumeiras nesse ritual admitimos a eficaacutecia
dessas foacutermulas comprovadas pela experiecircncia de 830 anos302
Cabe-nos dizer que Pliacutenio estava simplesmente retratando de maneira descritiva os
processos de ordem religiosa no meio social que estava inserido poreacutem o contexto claramente
nos sugere que Pliacutenio tambeacutem buscava salientar a ldquoimportacircncia do respeito agraves formalidades na
religiatildeo do Estadordquo303 Natildeo podemos esquecer que Pliacutenio como oficial e administrador romano
esteve inserido em diversas regiotildees do Impeacuterio304 o que nos possibilita afirmar que o registro
estaacute baseado em um amplo e avultado conteuacutedo experiencial e que portanto seu relato estaacute
condicionado a ser classificado como um ldquocaso geneacutericordquo de praacuteticas cuacutelticas das regiotildees
influenciadas pela cultura greco-romana
2313 Praacutetica da Feacute Contra o Ateiacutesmo
Uma praacutetica que era corrente nos tempos de Justino e jaacute antes dele era o de definir os
cristatildeos ldquocomo culpados do crime de ateiacutesmordquo305 A natildeo-aderecircncia dos cristatildeos a essas praacuteticas
religiosas pagatildes eram vistas e entendidas por alguns (elite social)306 como atos de
irracionalidade mas principalmente eram interpretadas pelos pagatildeos (de forma geral) como
301 BEARD SPQR uma histoacuteria da Roma Antiga 2017
302 PLIacuteNIO Histoacuteria Natural XXVIII 10-12 No original Sacrificar animales sin oraciones no funciona
aparentemente ni produce la correcta relacioacuten ritual con los dioses Las foacutermulas variacutean una para conseguir un
buen aguumlero una segunda para evitar el mal aguumlero y una tercera para cultuar a las divinidades [] Al usar las
oraciones acostumbradas en ese ritual admitimos la eficacia de esas foacutermulas comprobadas por la experiencia de
830 antildeos
303 FUNARI Roma vida puacuteblica e vida privada 1993 p 17 grifo nosso
304 BEARD SPQR uma histoacuteria da Roma Antiga 2017
305 IRVIN SUNQUIST Histoacuteria do Movimento Cristatildeo Mundial Volume I Do cristianismo primitivo a 1453
2004 p 100
306 IRVIN SUNQUIST Histoacuteria do Movimento Cristatildeo Mundial Volume I Do cristianismo primitivo a 1453
2004
72
accedilotildees que manifestavam uma evidente incredulidade307 ndash ou seja uma atitude de profundo
desrespeito ndash por parte dos cristatildeos agravequilo que era considerado como divino De ordem jaacute muito
habitual eram as acusaccedilotildees deste tipo junto agrave cultura greco-romana pois jaacute na antiguidade
algumas figuras de destaque como Soacutecrates foram alvos desse tipo de defraudaccedilatildeo
considerado de ordem moral para o periacuteodo
Voltemos ao caso de Soacutecrates pois este foi julgado aproximadamente 550 anos
antes308 de Justino escrever sua I Apologia vindo a receber por parte da parte de seus algozes
acusaccedilotildees de mesma ordem as quais os cristatildeos agora similarmente sofriam tal como Soacutecrates
que ldquodescobriu o embuste dos democircnios e os convidou (demais seres humanos) a procurar o
verdadeiro Deus por isso ele teve de morrer como maacutertirrdquo309 Justino cita-nos o fato dizendo
Quando Soacutecrates com raciociacutenio verdadeiro e investigando as coisas tentou
esclarecer tudo isso e afastar os homens dos democircnios estes conseguiram por meio
de homens que se comprazem na maldade que ele tambeacutem fosse executado como
ateu e iacutempio alegando que ele estava introduzindo novos democircnios Tentam fazer o
mesmo contra noacutes310
Entendemos que ainda se faz importante somar a estrutura dessa pesquisa o relato
redigido por Platatildeo referente ao processo de defesa e julgamento de seu mestre Nesse registro
apologeacutetico encontramos o diaacutelogo entre Soacutecrates e Ecircutrifron311 que comprova o fato juriacutedico
ocorrido na Greacutecia Antiga do qual citamos atraveacutes de Justino
Ecircutrifron ndash O que eu gostaria Soacutecrates mas receio que aconteccedila o contraacuterio Pois me
parece que ele simplesmente comeccedila por prejudicar a cidade pela lareira312 ao
tencionar fazer mal a vocecirc Mas me diga ele diz que vocecirc corrompe os jovens fazendo
o quecirc
307 Ver GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 84-86
308 Ver MALTA In Introduccedilatildeo Apologia de Soacutecrates 2008 p 11
309 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 85 grifo nosso
310 JUSTINO I Apologia V 3 grifo nosso
311 Natildeo temos outras informaccedilotildees sobre Ecircutifron ndash um adivinho prognosticador conforme subtiacutetulo da obra ndash
aleacutem das que encontramos em Platatildeo Mas seu nome tinha um significado claro para os gregos ldquoo de espiacuterito
direto ou ortodoxordquo Ver MALTA In Notas Apologia de Soacutecrates 2008 p 25
312 A lareira (ou Heacutestia) representava enquanto fogo sagrado da cidade e de cada casa o princiacutepio da estabilidade
Com essa fala Ecircutifron deixa clara sua admiraccedilatildeo por Soacutecrates Ver MALTA In Notas Apologia de Soacutecrates
2008 p 27
73
Soacutecrates ndash Coisas estranhas admiraacutevel homem para se ouvir assim Pois diz que sou
fazedor de deuses e que por isso mesmo ndash por fazer novos deuses e natildeo crer nos
antigos ndash me denunciou conforme diz313
Ainda referente ao assunto ndash cristatildeos definidos como ateus e iacutempios pelos pagatildeos ndash
vale-nos destacar o ponto de vista de um historiador Santos contribui muito em nosso exame
que visa apontar fatos contrastante por meio de fenocircmenos de intoleracircncia religiosa ocorridos
no passado Santos afirma que as acusaccedilotildees de ateiacutesmo por parte dos pagatildeos tiveram uma
importante contribuiccedilatildeo junto agrave construccedilatildeo de uma ldquoidentidaderdquo cristatilde durante o periacuteodo do
Seacuteculo II314 Tratando-se pontualmente do que acabamos de mencionar Santos novamente
contribui favoravelmente a nossa construccedilatildeo quando diz
Justino continua explicando que como acusaram Soacutecrates de ateiacutesmo assim satildeo
acusados os cristatildeos por natildeo adorarem os deuses de Roma Em seguida ele apresenta
uma pequena profissatildeo de feacute com o objetivo de esclarecer que os cristatildeos natildeo satildeo
ateus pois ldquocultuamos e adoramosrdquo o Deus verdadeiriacutessimo o seu Filho os seus
exeacutercitos de anjos e o Espiacuterito profeacutetico (JUSTINO I Apologia VI 1 2) Vaacuterios
exemplos desta estrutura do desenvolvimento podem ser observados no decorrer da I
Apologia315
A variaccedilatildeo entre o caso de Soacutecrates e a realidade de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos reforccedila
as atribuiccedilotildees de Justino quanto a postura que este buscava assumir e automaticamente
diferenciar Quando aponta de maneira clara para o estabelecimento de um distanciamento
ldquosegurordquo entre as partes que na concepccedilatildeo do Apologista apresentam uma clara distinccedilatildeo de
culto No entanto Justino natildeo deixa de assumir a significativa importacircncia que as ldquoestruturasrdquo
de feacute representam como objeto para a estabilidade humana no sentido de gerar nessa
coletividade uma espeacutecie de harmonia que pode ser definida com o um termo moderno como
ldquoseguranccedila socialrdquo mas claro isso somente se faz possiacutevel devido agrave Justino assumir ser um
crente ndash afastando assim todas as acusaccedilotildees de ateiacutesmo ndash mas natildeo um idoacutelatra exercendo deste
modo (novamente por meio de sua tradicional ferramenta apologeacutetica) um consideraacutevel
apontamento para as diferenccedilas entre estes dois (ou mais) estados de crenccedila e culto Walde
313 PLATAtildeO Ecircutrifon (Sobre a piedade) 2
314 Ver SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2010 Item
12 A apropriaccedilatildeo do estilo grego nos escritos e pregaccedilotildees p 31-38
315 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2010 p 108
grifo nosso
74
salienta bem esse enfoque comparativo que acabou por constituir uma espeacutecie de meacutetodo que
foi aplicado por Justino em sua verificaccedilatildeo entre as diferenccedilas que encontrou Desta forma
Walde resume seu entendimento
Parte do problema era uma maacute interpretaccedilatildeo da crenccedila cristatilde Por natildeo renderem culto
aos deuses gregos e romanos os cristatildeos eram chamados ateus Justino perguntou
como eles podiam ser ateus jaacute que eles rendiam culto ldquoao Deus verdadeirordquo Os
cristatildeos rendem culto ao Pai Filho e Espiacuterito Santo ele disse e ldquolhes datildeo homenagens
com razatildeo e verdaderdquo Justino tambeacutem apontou a inconsistecircncia dos governantes
romanos Alguns de seus proacuteprios filoacutesofos ensinaram que natildeo havia nenhum deus
mas eles natildeo os perseguiram soacute por terem o nome de filoacutesofos316
Aleacutem desses destaques de caraacuteter mais historiograacuteficos adquirimos atraveacutes do texto
biacuteblico o relato Apostoacutelico que certamente abarca os fatores que compotildeem a posiccedilatildeo de Justino
Este testemunho Sagrado retrata com esmero o que o autor de Atos dos Apoacutestolos buscava
comunicar ao seu status quo pois o discurso de Paulo em Atenas torna-se esclarecedor para o
fim de testificar o estado e o tipo da feacute que os cristatildeos confessavam Vemos nisso proposta uma
relocaccedilatildeo do ser humano em direccedilatildeo a nova concepccedilatildeo de se ser a geraccedilatildeo de Deus ndash atraveacutes
da nova criaccedilatildeo ndash pois os procedimentos dos cultos pagatildeos contrariavam os princiacutepios
fundamentais deste Deus absoluto uacutenico e consequentemente a isso verdadeiro na visatildeo de
Justino sendo absolutamente ldquotolice pensar que a divindade ndash lsquoo divinorsquo ou lsquodivinalrsquo ndash seria
semelhante agraves imagens de ouro ou de prata feitas pelos homensrdquo317 O Texto Sagrado
indiscutivelmente apresenta o caminho e o fundamento pelo qual Justino alcanccedilou e sustentava
suas convicccedilotildees
O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe sendo ele Senhor do ceacuteu e da terra
natildeo habita em santuaacuterios feitos por matildeos humanas Nem eacute servido por matildeos humanas
como se de alguma coisa precisasse pois ele mesmo eacute quem a todos daacute vida
respiraccedilatildeo e tudo mais [] Sendo pois geraccedilatildeo de Deus natildeo devemos pensar que
a divindade eacute semelhante ao ouro agrave prata ou agrave pedra trabalhados pela arte e
imaginaccedilatildeo do homem (Atos dos Apoacutestolos 17242529)
Apoacutes discorrermos sobre o meacuterito da questatildeo dos disciacutepulos de Jesus Cristo serem ou
natildeo ateus e tambeacutem de abordarmos com uma finalidade dissertativa algumas caracteriacutesticas de
316 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 3 grifo nosso
317 EARLE In Livro dos Atos dos Apoacutestolos Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006 p 343
75
ordem cultual do meio pagatildeo seguiremos explorando algumas citaccedilotildees de Justino que se
apresentam de forma diversificada em sua tentativa de enfatizar um latente antagonismo entre
os grupos religiosos de seu tempo
232 Um Princiacutepio Determinista
Os capiacutetulos XXV e XXVI da I Apologia nos apresentam inuacutemeras variaccedilotildees desses
haacutebitos religiosos todos sentenciados por nosso autor como nefastos porque Justino sempre
buscava afirmar como ponto inicial de sua argumentaccedilatildeo a premissa de que seu grupo (cristatildeos)
se diferencia dos demais por natildeo possuir as mesmas praacuteticas Essas praacuteticas pagatildes de culto no
entendimento de Justino fossem exercidas de maneira ordinaacuteria ou extraordinaacuteria por seus
seguidores no final incontestavelmente seriam condenadas pois se manifestariam como obras
demoniacuteacas Isso ocorria porque alguns ldquodemocircnios levaram certos homensrdquo318 a praticaacute-las
para prejuiacutezo dos cristatildeos sendo estes por fim injustamente acusados de praacuteticas danosas
Euseacutebio ao comentar sobre o ministeacuterio de Justino retrataraacute este contexto de forma
simposiasta
Isto eacute demonstrado por Justino que se distinguiu em nossa doutrina natildeo muito tempo
depois dos apoacutestolos e de quem exporemos oportunamente o que seja conveniente
Em sua primeira Apologia dirigida a Antonino em favor de nossa feacute escreve como
segue ldquoE depois da ascensatildeo do Senhor ao ceacuteu os democircnios levaram alguns homens
a dizer que eram deuses e estes natildeo somente natildeo foram perseguidos por voacutes mas ateacute
foram considerados dignos de honrasrdquo319
Nos capiacutetulos XXIV-XXVI Justino nos retrata de maneira sintetizada diversas
caracteriacutesticas da religiatildeo gentiacutelica de sua eacutepoca Ateacute aqui natildeo encontramos nada de novo ou
ateacute mesmo excepcional neste tipo de relato mas o que nos chama a atenccedilatildeo neste
enquadramento analiacutetico sobre o qual estamos ponderando eacute a proporccedilatildeo temaacutetica que o
assunto ganha referente agrave sua futura fundamentaccedilatildeo literaacuteria Cabe-nos aqui atestar que Justino
se utiliza de trecircs elementos indicativos naquilo que procura apresentar como casos evidentes da
perseguiccedilatildeo social para com aqueles que se denominavam cristatildeos Justino atraveacutes de uma
espeacutecie de ldquolista numeradardquo320 notoriamente sinaliza uma sequecircncia de fases as quais
318 JUSTINO I Apologia XXVI 1
319 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica II 13 2-3
320 Justino se utiliza dos termos gregos Πρωτον (Em primeiro lugar) no cap XXIV Δεύτερον (Em segundo lugar)
no cap XXV Τρίτον (Em terceiro lugar) no cap XXVI Sendo os vocaacutebulos empregados pelo autor na segunda
76
Frangiotti chama de ldquoProvasrdquo321 utilizadas pelo Apologista sendo que estes fatos em
perspectiva geral se apresentavam de maneira tenebrosa na visatildeo de Justino pois em sua
anaacutelise sustentavam-se sobre argumentos fraacutegeis duvidosos e absolutamente injustos
principalmente pelo fato dessas acusaccedilotildees possuiacuterem um caraacuteter preconceituoso fazendo
somente dos cristatildeos por princiacutepio legal as viacutetimas dessas regras estabelecidas
Neste breve conjunto propositivo encontramos um cenaacuterio real que passa a se
caracterizar por meio de uma descriccedilatildeo de fatos pujantes que ascendem ao nosso olhar atraveacutes
de uma linguagem conceitual Justino amparado por analogias literais passa mediante sua
construccedilatildeo da defesa da moral cristatilde322 a utilizar-se de accedilotildees dialeacuteticas as quais levam as
praacuteticas dos cultos pagatildeos a serem apontadas por Justino (especialmente no capiacutetulo XXV) e
tambeacutem examinadas de uma maneira imperativa mesmo que visando uma definiccedilatildeo satisfatoacuteria
para o entendimento de seus leitores Essa praacutetica literaacuteria eacute algo normalmente detectado junto
ao trabalho de um pensador com caracteriacutesticas platocircnicas pois estes ldquodisciacutepulosrdquo de Platatildeo
atraveacutes de uma confrontaccedilatildeo de imagens contraditoacuterias visavam chegar a ideias idecircnticas e
assim uniformizar o pensamento humano323
Entretanto esta conformidade natildeo era possiacutevel na anaacutelise de Justino pois os fatos
(praacuteticas pagatildes) natildeo possuiacuteam a ldquoidentidaderdquo necessaacuteria para o Apologista muito pelo
contraacuterio eram absolutamente antagocircnicos e inquestionavelmente se definiam como espuacuterios
aos olhos dos cristatildeos quando ponderados diante da doutrina cristatilde estabelecida pela
transmissatildeo e edificaccedilatildeo Apostoacutelica Deste modo a separaccedilatildeo essencial proposta pelo
Apologista torna-se ainda mais clara se confrontada com o comentaacuterio de Euseacutebio ao capiacutetulo
XXVI da I Apologia O Historiador constroacutei uma consideraacutevel argumentaccedilatildeo sobre uma figura
humana denominado Menandro o qual sendo participante de atos miacutesticos recebeu de Euseacutebio
o cognome de ldquoMagordquo
Tambeacutem Justino ao mencionar Simatildeo pela mesma razatildeo acrescenta uma relaccedilatildeo
sobre este outro dizendo ldquoSabemos tambeacutem que um certo Menandro tambeacutem
samaritano oriundo da aldeia chamada Caparatea depois de ser disciacutepulo de Simatildeo e
estando tambeacutem possuiacutedo por democircnios apareceu em Antioquia e com sua arte
maacutegica seduziu a muitos E convenceu seus seguidores de que natildeo morreriam Hoje
declinaccedilatildeo do acusativo permitem em sua traduccedilatildeo o emprego tanto da preposiccedilatildeo ldquoemrdquo quanto do substantivo
ldquolugarrdquo condicionando desta forma uma indicaccedilatildeo de relaccedilatildeo e loacutegica em sua estrutura organizacional Ver
PAUTIGNY In Notes Apologies XXVI 1 XXV 1 XXVI 1
321 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 21
322 JUSTINO I Apologia XXV 1-3
323 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
77
restam alguns de sua seita que continuam a professaacute-lordquo Era sem duacutevida obra da
influecircncia diaboacutelica lanccedilar matildeo de tais feiticeiros revestidos do nome de cristatildeos para
esforccedilar-se em caluniar o grande misteacuterio de piedade acusando de magia e destruir
por meio deles os dogmas da Igreja sobre a imortalidade da alma e a ressurreiccedilatildeo dos
mortos Mas aqueles que os reconhecem como salvadores chegaram abaixo da
verdadeira esperanccedila324
Neste comentaacuterio histoacuterico notamos com clareza a relaccedilatildeo de contribuiccedilatildeo que
Euseacutebio visa estender ao confronto apologeacutetico pelo qual Justino havia passado Desta maneira
acaba por nos manifestar seu condicionamento a um fato que em sua concepccedilatildeo parece-nos
claramente a expressatildeo de um princiacutepio pelo qual faz emergir um compromisso ndash algo que nos
soa como uma necessidade moral ndash que possui um caraacuteter imperioso Euseacutebio nos relata sem
restriccedilotildees que as accedilotildees maleacutevolas praticadas pelo meio sociorreligioso pagatildeo do periacuteodo de
Justino tinham claramente o objetivo de ldquocaluniar o grande misteacuterio de piedade [] e destruir
por meio deles os dogmas da Igrejardquo325 constituindo deste modo a noccedilatildeo histoacuterica de que os
valores da feacute cristatilde eram a expressatildeo perfeita da Verdade tanto para Justino quanto para a Igreja
(representada historicamente no relato de Euseacutebio) Tratando-se quanto agrave Igreja nesta questatildeo
pontualmente Justino entendia que em seu curso natural a Igreja vivenciava naturalmente essa
relaccedilatildeo dialeacutetica fazendo com que as difamaccedilotildees consequentes da falsa religiatildeo manifestassem
que a Igreja era (e estava) Santa mesmo que sob o ataque e a tentativa de manipulaccedilatildeo dos
seres demoniacuteacos326
Sem entrarmos diretamente no meacuterito teoloacutegico destas afirmaccedilotildees mas buscando nos
direcionarmos para aquilo que nos cabe como exame pretendido neste trabalho ressaltamos
que o comportamento daqueles que buscavam defender a feacute cristatilde nos parece visar de forma
clara o estabelecimento de um padratildeo entre causa e efeito em suas anaacutelises O efeito do
procedimento daqueles que assumiram esta postura hereacutetica em relaccedilatildeo agrave feacute cristatilde eacute assim
definido por Euseacutebio ldquoMas aqueles que os reconhecem como salvadores chegaram abaixo da
verdadeira esperanccedilardquo327 Aqui encontramos um destaque consideraacutevel para esta pesquisa pois
podemos sustentar que Euseacutebio baseia sua argumentaccedilatildeo de maneira evidente na
intelectualidade de Justino Logo devemos novamente afirmar de maneira expressiva que tanto
para Justino quanto para Euseacutebio havia uma definiccedilatildeo consistente do que seria a Verdade como
324 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica III 26 3-4
325 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica III 26 4
326 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997
327 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica III 26 4 grifo nosso
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tambeacutem onde ela necessariamente estava eou se encontrava Aqui tambeacutem se caracterizava
um processo de objeccedilatildeo a Verdade sendo os registros historiograacutefico um peso consideraacutevel na
comprovaccedilatildeo deste caso
233 Um Princiacutepio de Pureza
Seguindo no tratado de Justino jaacute nos dirigindo ao segundo cenaacuterio de nossa anaacutelise
para este item apresentamos mais um relato de alccedilada histoacuterica que eacute proposto por nosso autor
Como nos temas anteriores este tambeacutem envolve primordialmente questotildees de foro social
poreacutem agora apontando precisamente para outras realidades do ambiente sociorreligioso que
envolvia a realidade de Justino Sendo assim a partir deste ponto iremos considerar o capiacutetulo
XXVII da I Apologia onde encontramos uma postura determinante por parte do Apologista
quanto a questotildees de ordem para com agrave conduta sexual humana Neste caso especiacutefico podemos
ateacute mesmo falar de um padratildeo de comportamento a ser adotado em detrimento de outro328
Tambeacutem devemos afirmar sem constrangimento que para Justino fazer figurar esta
exposiccedilatildeo era algo vaacutelido e ateacute mesmo fundamental para suas intenccedilotildees apologeacuteticas pois tudo
nos indica que ele natildeo apenas queria sinalizar uma conduta mas tambeacutem solidificaacute-la por meio
de um ordenamento ldquoA pureza da vida cristatilderdquo329 Entendemos que para uma melhor
compreensatildeo dessa questatildeo em especiacutefico se faz necessaacuterio uma leitura completa do registro
apologeacutetico de Justino quanto ao assunto Deste modo segue na integra o capiacutetulo XXVII da I
Apologia
Noacutes por outro lado a fim de natildeo cometer pecado ou impiedade professamos a
doutrina de que expor os receacutem-nascidos eacute obra de perversos Primeiro porque vemos
que quase todos vatildeo acabar na dissoluccedilatildeo natildeo soacute as meninas mas tambeacutem os
meninos Do mesmo modo como se conta que os antigos mantinham rebanhos de bois
cabras ovelhas ou cavalos de pasto assim se reuacutenem agora rebanhos de crianccedilas com
a uacutenica finalidade de usar torpemente delas e toda uma multidatildeo tanto de mulheres
como de androacuteginos e pervertidos estaacute preparada em cada proviacutencia para semelhante
abominaccedilatildeo Para isso recolheis taxas contribuiccedilotildees e tributos ao passo que o vosso
dever seria o de arrancaacute-las pela raiz do vosso impeacuterio Quando se abusa de tais seres
aleacutem de tratar de uma uniatildeo proacutepria de pessoas sem Deus iacutempia e torpe natildeo faltaraacute
quem se una conforme a circunstacircncia com um filho um parente ou um irmatildeo Haacute
tambeacutem aqueles que prostituem seus proacuteprios filhos e mulheres outros mutilam-se
publicamente para a torpeza e referem esses misteacuterios agrave matildee dos deuses Finalmente
em todos aqueles que considerais como deuses a serpente se pinta como siacutembolo e
grande misteacuterio E aquilo mesmo que voacutes praticais e honrais publicamente voacutes o
atribuiacutes a noacutes como se tiveacutessemos decaiacutedo e a luz divina natildeo nos assistisse Todavia
328 MEEKS As Origens da Moralidade Cristatilde 1997
329 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 22
79
como estamos livres por natildeo praticar nada disso vossas caluacutenias natildeo nos causam
nenhum dano ao contraacuterio danificam aqueles que cometem essas torpezas e ainda
levantam falso testemunho contra noacutes330
O conteuacutedo exposto no capiacutetulo XXVII nos retrata uma condiccedilatildeo muito conflituosa
para os cristatildeos Graccedilas agrave sua praxis fidei eles chegaram a ser considerados ldquoinimigos do estado
e ateusrdquo331 A Igreja em sua fase primitiva teve em seu ldquoexerciacutecio de feacuterdquo a acusaccedilatildeo de se
envolver amplamente com a imoralidade de seu meio cultural332 No entanto a situaccedilatildeo que
Justino enfrentava em seus dias natildeo era mais proveniente de uma solene admoestaccedilatildeo
Apostoacutelica Pelo contraacuterio agora os cristatildeos passaram a ser vitimados por efeitos de um estado
opressor No passado estes pecados haviam afligido a Igreja de Cristo a ponto de suas praacuteticas
lituacutergicas serem ldquoconfundidasrdquo com as muitas facetas do rito religioso natildeo-cristatildeo vigente em
sua eacutepoca algo que Justino se interpocircs de forma vertiginosa Sem termos a intenccedilatildeo de produzir
necessariamente um apanhado histoacuterico-cultural (entenda-se de se comentar detalhadamente o
capiacutetulo citado) procuraremos a partir deste ponto estabelecer agrave saliecircncia que entendemos
haver entre as praacuteticas descritas no capiacutetulo XXVII pois a descriccedilatildeo elementar de Justino nos
leva a uma singular oposiccedilatildeo de valores e preceitos considerados por ele como fundamentais
A cultura greco-romana alicerccedilada e solidificada nas entranhas do Impeacuterio nos
demonstra uma coletividade de fatos os quais eram considerados inoacutespitos ao ldquoideaacuteriordquo cristatildeo
que se encontrava estruturado no rigor das comunidades do Seacuteculo II333 Obviamente alguns
desvios de conduta por parte dos fieacuteis ocorriam em meio agraves ldquoassembleiasrdquo cristatildes ateacute mesmo
com certa normalidade especialmente nos grandes centros urbanos334 Entretanto a proteccedilatildeo
da disciplina eclesiaacutestica ndash principalmente mediante a accedilatildeo Episcopal e dos rigores penitenciais
ndash conseguia estabelecer um ldquocontrolerdquo por meio da manutenccedilatildeo da autecircntica doutrina de
Cristo335
Neste cenaacuterio as diversas praacuteticas religiosas pagatildes atreladas ao sistema social de entatildeo
ndash as quais envolviam de maneira ampla e robusta a vida cotidiana dos suacuteditos de Roma em
330 JUSTINO I Apologia XXVII 1-5
331 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4
332 Ver 1 Coriacutentios 5
333 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997
334 KEE As Origens Cristatildes em Perspectiva Socioloacutegica 1983
335 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
80
suas mais variadas atuaccedilotildees familiar civil militar etc336 ndash apontavam de forma depreciativa
para o puacuteblico cristatildeo O cristianismo nesse momento cada vez mais inserido na realidade
social do Impeacuterio trazia o ldquofermento de um ideal superiorrdquo337 elaborado tanto no niacutevel
intelectual de seus praticantes quanto tambeacutem no de seus defraudadores Isso fazia com que a
feacute cristatilde acabasse por se distinguir de forma evidente dos diversos haacutebitos e costumes
considerados ordinaacuterios do sistema religioso natildeo-cristatildeo que estava sendo analisado e
apologeticamente combatido por Justino
Os cristatildeos eram acusados falsamente de cometerem torpezas sexuais em seus
encontros cultuais sendo que os cristatildeos nem de perto praticavam fornicaccedilatildeo adulteacuterio
mutilaccedilatildeo entre outros atos repugnantes338 que eram comuns na ldquoliturgiardquo cuacuteltica pagatilde Neste
cenaacuterio para Justino a pior consequecircncia ainda era a de que o Impeacuterio tolerava tais atos sem
nenhuma forma ativa de puniccedilatildeo a estes pois caso um respectivo modo de culto viesse a trazer
benefiacutecios poliacuteticos ao Impeacuterio o mesmo era tolerado sem se levar em conta sua origem ou
meacutetodos de celebraccedilatildeo por mais esdruacutexulos que fossem 339
Seguindo ainda nesta temaacutetica a I Apologia nos permite afirmar que a celeuma de
origem pagatilde que procurava acusar os cristatildeos de realizarem orgias canibalismo pedofilia e
diversos outros atos de torpeza em suas celebraccedilotildees natildeo passava de um plano difamatoacuterio que
infelizmente conseguiu se estabelecer em meio a uma realidade sociorreligiosa com
caracteriacutesticas muito preconceituosas pois mesmo sendo sincretista em sua essecircncia340 tal
sociedade natildeo soube ou natildeo quis reconhecer esse tipo de crenccedila religiosa341 Poreacutem cabe-nos
336 CARCOPINO Jeacuterocircme Roma no Apogeu do Impeacuterio Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990
337 LEBRETON Jules ZEILLER Jacques Storia della Chiesa della origini ai nostri giorni V II Dalla fine
dell II Secolo alla pace Costantiniana (313) 1972 p 619 No original fermento drsquoun ideale superiore
338 Ver DANIEacuteLOU Jean MARROU Henri Nova histoacuteria da Igreja V I Dos Primoacuterdios a Santo Gregoacuterio
Magno Petroacutepolis Vozes 1966 p 105-109
339 Algumas formas rituais de culto eram tatildeo bizarras que solapam mais do que qualquer outra coisa o estereoacutetipo
moderno dos romanos como convencionais e serenos Exemplo disso na festa da Lupercaacutelia em fevereiro homens
jovens corriam nus pela cidade accediloitando qualquer mulher que encontrassem pela frente (trata-se da mesma festa
recriada na cena de abertura da peccedila Juacutelio Ceacutesar de Shakespeare) Ver BEARD SPQR uma histoacuteria da Roma
Antiga 2017 p 104
340 AYMARD AUBOYER Roma e Seu Impeacuterio Volume V As Civilizaccedilotildees da Unidade Romana (Fim) A Aacutesia
Oriental do Iniacutecio da Era Cristatilde ao Final do Seacuteculo II 1994 p 64-65 CORNELL Tim MATTHEWS John
Frederick A Civilizaccedilatildeo Romana Barcelona Folio 2008 p 97
341 Neste aspecto em particular o meio teoloacutegico diverge de posiccedilatildeo possivelmente devido a inclinaccedilatildeo do
pesquisador em ponderar aspectos filosoacuteficos eou ideoloacutegicos tanto do passado quanto do presente para a eacutepoca
(Seacuteculo II) em anaacutelise Por exemplo Meeks entende que as caracteriacutesticas da moralidade estabelecida entre os
cristatildeos jaacute possuiacuteam forte ascendecircncia em meio a setores da sociedade Romana em contraposiccedilatildeo Daniel-Rops
atesta que a moralidade de origem cristatilde constituiacuteda atraveacutes dos Seacuteculos I ao IV natildeo encontra antecedentes agrave altura
que possam ser considerados como paralelos realmente orientativos haacute esta Ver MEEKS As Origens da
Moralidade Cristatilde 1997 p 9-24 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 240-242
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ressaltar que Justino em seus tratados apologeacuteticos procurou incansavelmente defender seu
grupo como ldquoseres transformadosrdquo que abandonaram as praacuteticas repugnantes e agora satildeo
portadores (possuidores) de uma alta qualificaccedilatildeo moral Quanto a esse aspecto Walde afirma
Justino tambeacutem deu ecircnfase agrave casta conduta dos cristatildeos em resposta a acusaccedilotildees de
conduta imoral durante o culto Para mostrar como isso natildeo era verdade ele contou a
histoacuteria de um homem que foi perguntado por um cirurgiatildeo que o queria fazecirc-lo de
eunuco para provar que os cristatildeos natildeo praticam promiscuidade O pedido foi negado
porque o homem escolheu ficar solteiro e seguir seus companheiros cristatildeos342
Apoacutes utilizarmos desse exemplo de teor absolutamente imperativo ndash por sua estrutura
excecircntrica ateacute mesmo junto a um nicho de caraacuteter sociorreligioso considerado peculiar em
suas caracteriacutesticas Entendemos que ainda se faz necessaacuterio apresentar junto a essa discussatildeo
uma abordagem que compreenda a realidade que procuramos descrever Encontramos esse
complemento junto ao trabalho de Walde Este por meio de uma entrada que nos indica agrave leitura
de alguns fatos apresenta-nos uma das teacutecnicas utilizadas por Justino em sua construccedilatildeo
literaacuteria Walde reconhece que o Apologista ao mencionar a situaccedilatildeo religiosa de seu cotidiano
aborda de forma contundente o desgaste entre os praticantes da nova feacute (cristatildeos) e os
adoradores do ldquopanteatildeordquo (natildeo-cristatildeos) Os exemplos descritos por Walde satildeo similares aos
usados por Justino e esta similaridade nos leva novamente a concentrarmos nosso foco agrave uma
accedilatildeo comparativa de estados opostos entre si ou seja dialeacuteticos Sendo assim torna-se notoacuterio
desde o iniacutecio do trabalho de Walde a aplicaccedilatildeo de uma metodologia comparativa e a
diferenciaccedilatildeo de casos tornando-se uma espeacutecie de ldquoconclusatildeordquo definitiva para esse processo
Uma das taacuteticas apologeacuteticas de Justino era contrastar o que os cristatildeos eram
falsamente acusados e castigados com que os romanos faziam com impunidade Por
exemplo os cristatildeos eram acusados de matar crianccedilas em seus cultos e comecirc-las
depois Justino lembrava que os adoradores de Saturno se entregavam a matar e beber
sangue e outros pagatildeos que jogavam sangue de homens e animais em seus iacutedolos Os
cristatildeos eram acusados de imoralidade sexual mas eram seus criacuteticos Justino dizia
quem imitavam ldquoJuacutepiter e os outros deuses na sodomia e relaccedilotildees pecadoras com
mulheres343
342 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4
343 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4 grifo nosso
82
Ao analisarmos o texto de Walde percebemos que este utiliza-se do verbo ldquocontrastarrdquo
em sentido intransitivo para salientar com bastante preponderacircncia uma forma calculada de
oposiccedilatildeo e apresentar uma literal contrariedade de estados em essecircncia Logo conseguimos
notar a diferenccedila entre estes Eacute impressionante aos nossos olhos a relaccedilatildeo que Walde estabelece
em seu trabalho sobre o termo Verdade (mesmo que indiretamente) sendo este vocaacutebulo
utilizado como habilitador de uma caracteriacutestica de cunho existencial que passa a ser
manifestada pelos cristatildeos Novamente citamos este teoacutelogo em nossa busca de clarificar ainda
mais essa base indicativa que para noacutes eacute entendida como uma evidecircncia concreta nesta
construccedilatildeo conceitual Walde diz ldquoEm primeiro lugar disse Justino os cristatildeos demonstravam
sua honestidade por natildeo mentir quando em julgamento Por serem pessoas da verdade eles
confessariam sua feacute ateacute a morte Eles amavam a verdade mais que a vidardquo344
Portanto Walde tem razatildeo em afirmar que a atitude ldquode viver segundo a verdade era
um exemplo de mudanccedila provocado nas vidas das pessoas seguindo sua conversatildeordquo345 Desta
forma compreendemos por meio de uma avaliaccedilatildeo baseada em medidas factiacuteveis que haacute
possibilidade de se ser cristatildeo na concepccedilatildeo de Justino ndash como tambeacutem na de Tertuliano
Euseacutebio Walde e outros ndash passava por um proceder de vida que designava com eloquecircncia
atributos de diferenciaccedilatildeo no contexto social ativo da cultura a qual esta pessoa estava inserida
Esta separaccedilatildeo de maneira simples e evidente se condicionava no testemunho de vida dos fieacuteis
na esfera puacuteblica Cabe-nos ainda neste contexto colocarmos a frase de Falls citada por Walde
este diz ldquoesta mudanccedila chegou a ser conhecida como lsquoa triunfal canccedilatildeo dos apologistasrsquordquo346
Encerramos aqui nosso desenvolvimento deste ponto distintivo referente agravequilo que
poderiacuteamos denominar de ldquodialeacutetica de Justinordquo Para isso utilizamos de um texto da I
Apologia no qual Justino enfatiza esta mudanccedila essencial entre as vidas humanas que
caracterizamos como cristatildeos e natildeo-cristatildeos Em seguida classificamos agrave realidade cristatilde
como algo superior atraveacutes do meacutetodo de comparaccedilatildeo que tanto utilizamos nesta seccedilatildeo
confrontando os opostos em uma relaccedilatildeo que atesta suas diferenccedilas as quais satildeo consideradas
por Justino como irreconciliaacuteveis
Antes noacutes nos compraziacuteamos na dissoluccedilatildeo agora abraccedilamos apenas a temperanccedila
antes nos entregaacutevamos agraves artes maacutegicas agora nos consagramos ao Deus bom e
ingecircnito antes amaacutevamos acima de tudo o dinheiro e as rendas de nossos bens
344 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4 grifo nosso
345 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4 grifo nosso
346 FALLS The Fathers of the Church 1948 apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 4
83
agora colocamos em comum o que possuiacutemos e disso damos uma parte para todo
aquele que estaacute necessitado antes noacutes nos odiaacutevamos e nos mataacutevamos mutuamente
e natildeo compartilhaacutevamos o lar com aqueles que natildeo pertenciam agrave nossa raccedila pela
diferenccedila de costumes agora depois da apariccedilatildeo de Cristo vivemos todos juntos
rezamos por nossos inimigos e tratamos de persuadir os que nos aborrecem
injustamente a fim de que vivendo conforme os belos conselhos de Cristo tenham
boas esperanccedilas de alcanccedilar conosco os mesmos bens que esperamos de Deus
soberano de todas as coisas347
O objetivo deste capiacutetulo foi apresentar de modo sinteacutetico o conceito acerca dos
cristatildeos no periacuteodo do Seacuteculo II dC Tambeacutem arguimos com clareza sobre a tentativa de
clarificarmos a situaccedilatildeo daqueles que natildeo eram pertencentes a este grupo os quais procuramos
mediante a aplicaccedilatildeo de uma distinccedilatildeo elementar defini-los com o termo de natildeo-cristatildeos
poreacutem acima de tudo buscamos apresentar por meio de sinais constitutivos e fatos
historiograacuteficos348 quais eram os predicativos que formulavam esta definiccedilatildeo ou melhor
dizendo quais eram os qualificadores que definiam aqueles que eram seguidores da Verdade
na concepccedilatildeo de Justino e outros349
No proacuteximo capiacutetulo buscaremos vislumbrar o filoacutesofo Justino Apresentaremos um
conciso relato de sua histoacuteria na filosofia procurando abordar de maneira satisfatoacuteria quais
foram suas principais influecircncias dentro desse segmento Trabalharemos de forma especial na
tentativa de apontar qual foi a sua definiccedilatildeo sobre o uso da razatildeo para os planos salviacuteficos de
Deus para a humanidade sendo este em nosso entendimento mais um dos fatores determinantes
para a complementaridade de nosso exame sobre a definiccedilatildeo da Verdade junto a I Apologia de
Justino o Maacutertir
347 JUSTINO I Apologia XIV 2-3
348 DANIEacuteLOU MARROU Nova histoacuteria da Igreja V I Dos Primoacuterdios a Santo Gregoacuterio Magno 1966
349 Danieacutelou e Marrou definem agrave Euseacutebio e Lactacircncio como apologistas de Constantino dando a entender que
uma poliacutetica de reeducaccedilatildeo na esfera sociorreligiosa do Impeacuterio Romano se desenvolveu mediante uma nova
abordagem dos fatos do passado no caso em especifico (I Apologia de Justino e seu cenaacuterio social) os imperadores
do passado deixaram de ser ldquoendeusadosrdquo passando a serem reconhecidos como tiranos e deacutespotas aos quais o
processo de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos tornou-se em um de seus principais atos de ignomiacutenia Ver DANIEacuteLOU
MARROU Nova histoacuteria da Igreja V I Dos Primoacuterdios a Santo Gregoacuterio Magno 1966 p 106
84
3 A VERDADE REVELADA Agrave RAZAtildeO A FILOSOFIA E SEU CONTEXTO NA
PERSPECTIVA DE JUSTINO MAacuteRTIR
No princiacutepio ele criou o gecircnero humano racional capaz de escolher a verdade e
praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus
pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade Se algueacutem natildeo
crecirc que Deus se preocupe com essas coisas ou teraacute que confessar com sofismas que
natildeo existe ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como
uma pedra350
Partindo do capiacutetulo XXVIII da obra base de Justino para este trabalho eacute que
desenvolvemos o capiacutetulo III desta pesquisa no qual apresentamos um cenaacuterio diferenciado
sobre a figura humana de nosso autor O cristatildeo Justino o qual podemos registrar de forma
variaacutevel mediante seu ldquomeacutetierrdquo amplo estaacute classificado entre os Pais Apologistas elencado
como um seleto articulador da importante cidade de Roma catalogado como um dos mais
significativos maacutertires do Seacuteculo II mas tambeacutem estaacute sem nenhuma sombra para duacutevidas
definido nos compecircndios histoacutericos como um expressivo filoacutesofo do meio cristatildeo
Este aspecto pontual referente a intelectualidade de Justino por jaacute ter sido
consideravelmente explorado natildeo eacute mais uma novidade no meio acadecircmico351 no entanto esta
questatildeo ainda pode ser desenvolvida e ateacute mesmo arquitetada para fins que visam estabelecer
pontos de conexatildeo entre temas diversos os quais incluem o tema e agrave objetividade central
propostos para esta pesquisa
Podemos constatar por meio da anaacutelise do desenvolvimento da expressatildeo intelectual
de um filoacutesofo ou de uma escolalinha filosoacutefica uma ampla polissemia locucional e ateacute mesmo
perceber casos opostos quando ocorrem no estabelecimento de algumas propriedades termos
diferentes que evoluiacuteram para uma mesma fonologia construindo desta maneira tambeacutem casos
de homoniacutemia dentro da manifestaccedilatildeo filosoacutefica352 Deste modo torna-se possiacutevel ndash e ateacute
mesmo necessaacuterio ndash direcionar o caraacuteter conceitual contido em algumas expressotildees filosoacuteficas
quando estas satildeo analisadas visando estabelecer uma direccedilatildeo que busque esclarecer
determinado contexto ou cenaacuterio Assim por este meio podemos salientar que assaz entre noacutes
350 JUSTINO I Apologia XXVIII 3-4a grifo nosso
351 Ver HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 27-32
352 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
85
fortes indiacutecios que Justino desenvolveu uma postura robustamente teoloacutegica mediante ter
formado sua tese atraveacutes da ldquodiversidade filosoacuteficardquo da qual era apreciador353
No caso de nosso trabalho em especiacutefico notamos a necessidade da integraccedilatildeo de
indicadores que nos orientem agrave amplitude da filosofia de Justino em nossa busca da definiccedilatildeo
da que era agrave Verdade para este Apologista Esta amplitude natildeo visa se desviar de modelos
tradicionais nem propriamente somar a eles mas antes disso entendemos ser necessaacuterio
rejeitar a ideia de que trabalhamos com um conceito formado precariamente sem um
fundamento soacutelido o qual poderiacuteamos considerar como um mero estereoacutetipo sem originalidade
Ao contraacuterio este modelo encontrado em Justino natildeo se baseia em preconceitos mas sim num
corpo intelectual de ldquotalento respeitaacutevel ampla leitura e memoacuteria enormerdquo354 algo que eacute notoacuterio
na literatura de Justino e exposto ateacute entatildeo com uma consideraacutevel parcela de originalidade355
Neste exposto algumas interrogaccedilotildees nos surgem especialmente quando tentamos
descrever (definir) o filoacutesofo Justino e sua contribuiccedilatildeo Aqui esboccedilamos alguns destes
questionamentos Quem era Justino o filoacutesofo Quais foram as principais influecircncias que
Justino recebeu na filosofia Qual resultado se percebe na teologia do autor devido a esta
influecircncia Por fim existe um condicionante (entenda-se uma caracteriacutestica inata) no ser
humano que explique tal interesse de Justino em expressar seu conceito
31 INTRODUCcedilAtildeO AO CAPIacuteTULO XXVIII
O capiacutetulo XXVIII da I Apologia eacute de grande importacircncia para esta pesquisa
inaugurando por assim dizer um significativo espaccedilo de reflexatildeo na busca de alcanccedilarmos o
desfecho que almejamos Num breve conjunto de argumentos os quais se concentram sobre
um rigor metodologicamente dedutivo o capiacutetulo XXVIII nos eacute apresentado pelo Apologista
de modo perspiacutecuo onde a clareza de suas proposiccedilotildees salientam seus objetivos os quais
formulam-se mediante as propriedades de caraacuteter racionalista que ele apresenta Aqui notamos
uma aguccedilada aplicaccedilatildeo por parte do autor agravequilo que podemos chamar de uma postura
construtiva para com a estrutura inteligiacutevel do ser criado agrave imagem e semelhanccedila de Deus
353 WALDE 2000
354 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 715
apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 1
355 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948
86
Seguindo a argumentaccedilatildeo de Frangiotti podemos afirmar baseados nesse espaccedilo (cap XXVIII)
que Justino entendia que ldquoO homem eacute racional e livrerdquo356
Neste capiacutetulo (XXVIII) Justino desenvolve uma condensada e pragmaacutetica
abordagem envolvendo os quatro versiacuteculos que o compotildee Diante disso em momento algum
nossa argumentaccedilatildeo visa exaurir as diversas possibilidades contextuais ndash seja num campo
hermeneuticamente literal anaacutelogo ou metafoacuterico ndash do trabalho do Apologista mas apenas
organizaacute-lo de maneira ativa por meio de sua divisatildeo (versos) a um quadrante que possibilite
o interesse deste exame o qual se constroacutei na tentativa de aproximarmos as interpretaccedilotildees da
definiccedilatildeo de Verdade que detectamos em Justino de nosso interesse teoloacutegico
Neste item em especiacutefico (31) que visa uma abordagem introdutoacuteria desenvolvemos
em especial uma aproximaccedilatildeo entre os dois primeiros versiacuteculos do capiacutetulo onde priorizamos
apresentar sua estruturaccedilatildeo visando desta forma o aperfeiccediloamento destes pontos para
estabelecermos uma sentenccedila axiomaacutetica a qual eacute esboccedilada pelo autor no terceiro versiacuteculo do
relato Quanto ao primeiro versiacuteculo
Entre noacutes o priacutencipe dos maus democircnios se chama serpente satanaacutes diabo ou
caluniador como podeis ver caso desejardes averiguar isso atraveacutes de nossas
Escrituras Ele e todo o seu exeacutercito juntamente com os homens que o seguem seraacute
enviado ao fogo para ser castigado pela eternidade sem fim coisa que foi de antematildeo
anunciada por Cristo357
A primeira impressatildeo para um leitor moderno dessa descriccedilatildeo eacute de surpresa ou ateacute
mesmo de espanto poreacutem o verso devidamente encaixado no relato que o antecede o explica
e ateacute mesmo o suaviza As palavras de Justino satildeo absolutamente biacuteblicas e estatildeo enquadradas
em um absoluto arcabouccedilo escrituriacutestico Honestamente devemos salientar que nada lhe falta
como meacutetodo para que possamos empregar o tiacutetulo de ldquoortodoxordquo em seu embasamento
teoloacutegico358 Pois seus termos empregados tais como o ldquopriacutenciperdquo359 a chamada ldquoserpenterdquo360
aleacutem das demais terminologias como ldquosatanaacutesrdquo361 ldquodiabordquo eou ldquocaluniadorrdquo362 apresentam-se
356 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 22
357 JUSTINO I Apologia XXVIII 1
358 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948
359 Ver Joatildeo 1231 1430
360 Ver Gecircnesis 31 2 Coriacutentios 113 Apocalipse 129
361 Ver Mateus 410 Atos dos Apoacutestolos 2618
362 Ver Mateus 411 Atos dos Apoacutestolos 1310
87
neste cenaacuterio apologeacutetico como evidecircncias elementares extraiacutedas da Escritura Sagrada e
aplicadas em uma construccedilatildeo dialeacutetica sendo estas ainda vinculadas por Justino como uma
sentenccedila arbitral agravequeles que estatildeo sendo expostos e julgados pelo Apologista ndash caracteriacutestica
literaacuteria que notamos ser amplamente utilizada por Justino na afirmaccedilatildeo de suas convicccedilotildees363
Aqui fomenta-se uma configuraccedilatildeo de ordem proacutepria a qual apresenta Justino como
um filoacutesofo que pode ser definido como pertencente a um grupo que adota uma postura mais
claacutessica de linha platocircnica ndash algo que seraacute mais bem desenvolvido a seguir ndash onde atributos
que caracterizem causa e efeito que partindo de um suposto ldquomundo sensiacutevelrdquo364 passam a
somar caracteriacutesticas evidentes em sua construccedilatildeo textual sendo o teacutermino do capiacutetulo XXVII
uma expliacutecita manifestaccedilatildeo de fatos que atestam essa correlaccedilatildeo tatildeo dura mas tambeacutem
necessaacuteria no processo de evidenciaccedilatildeo proposto por Justino
Mas eacute preponderante para natildeo se dizer essencial que a loacutegica do Apologista se baseia
em artifiacutecios nucleares pois quem diz ldquocaso desejardes averiguar isso atraveacutes de nossas
Escriturasrdquo365 carrega consigo uma tonalidade de patentes e natildeo de meras suposiccedilotildees porque
a Verdade como elemento distinguiacutevel e diferencial eacute criteacuterio identificaacutevel na leitura de Justino
junto agravequilo que o mesmo salienta como sua (no caso do texto ldquonossardquo) ldquoEscriturardquo366 ou seja
sua preeminecircncia espiritual o que na descriccedilatildeo do Apologista deve ser entendida como uma
real vantagem distintiva sendo uma latente superioridade existencial para os homens que a
possuem Este ponto de prevalecircncia seraacute melhor abordado no uacuteltimo capiacutetulo desta pesquisa
Uma importante observaccedilatildeo ainda nos cabe fazer na parte final do primeiro verso
Antes mesmo de ocorrer os eventos conciliares de Niceacuteia eou Constantinopla a ecumenicidade
do Credo parece jaacute se caracterizar em uma forma de universalidade e um confessar da missatildeo
apostoacutelica jaacute anteriormente registrada no compecircndio biacuteblico se faz reverberar no ideaacuterio de
Justino Iniciamos nossa leitura do testemunho Apostoacutelico junto agrave estrutura biacuteblica O apoacutestolo
Judas escreveu ldquoele tem guardado sob trevas em algemas eternas para o juiacutezo do grande Dia
[] satildeo postas para exemplo do fogo eterno sofrendo puniccedilatildeordquo (Judas 6b7b) Nesta passagem
encontramos bases que se conformam ao relato de Justino que enfatiza que o proacuteprio Cristo as
havia anunciado367 Prosseguindo vemos que o Credo redigido anos depois iraacute afirmar o mesmo
363 DROBNER Manual de Patrologia 2008
364 SEVERINO A Filosofia Antiga 1984 p 84
365 JUSTINO I Apologia XXVIII 1
366 JUSTINO I Apologia XXVIII 1
367 Ver Joatildeo 1248
88
quando diz ldquoe viraacute novamente em gloacuteria a julgar os vivos e os mortosrdquo368 Natildeo nos resta duacutevidas
que a missatildeo apostoacutelica gerou a doutrina e consolidou o Credo369 mas passagens de ordem
Patriacutestica como esta salientam que o mesmo (Credo) tambeacutem balizou sua eficiecircncia atraveacutes da
ecircnfase da atuaccedilatildeo de homens que pela feacute natildeo sucumbiram agraves dificuldades370 pelo contraacuterio
salientaram com seu testemunho que estas propriedades de ordem atemporal miacutestica e
existencial foram e ainda eram a proacutepria forma da Verdade em meio aos homens
Quanto ao segundo verso eacute necessaacuterio algumas observaccedilotildees iniciais especialmente
em relaccedilatildeo ao ldquoteorrdquo teoloacutegico que Justino desenvolve nesta pequena porccedilatildeo a qual apresenta
dificuldades interpretativas consideraacuteveis junto ao acircmbito dogmaacutetico ndash independentemente da
estrutura confessional que a examine ndash sugerindo-nos desta forma apresentarmos uma sucinta
argumentaccedilatildeo antes de abordaacute-lo Entendemos que esse procedimento se faz necessaacuterio para
que natildeo aja em nossa construccedilatildeo conceitual-programaacutetica (caps XXIII-XXX) um ponto natildeo
devidamente abordado
Variados debates podem surgir a partir da ecircnfase destacada por Justino (verso 2 do
cap XXVIII) porque afirmaccedilotildees desta espeacutecie fomentam diversos tipos de interesses de ordem
miacutestica no caso em questatildeo (texto de Justino) podem inclusive alavancar questotildees
soterioloacutegicas por exemplo Algumas anaacutelises ldquomodernasrdquo371 se esforccedilam atualmente em
descrever a figura de Justino como ocupante empregador defensor ou ateacute mesmo praticante
de uma ou outra escola teoloacutegica do cenaacuterio cristatildeo atual Entretanto optamos por natildeo abranger
este e outros contextos nesta pesquisa por entendermos que estes assuntos e temas natildeo se
envolvem diretamente com o ponto central de nosso trabalho Aleacutem de reconhecermos outra
dificuldade que nos parece ser muito significativa neste tipo de situaccedilatildeo a de se incorrer no
grave risco de se cometer um anacronismo textual histoacuterico e teoloacutegico372 e desta forma
sugerir um teoacuterico dilema teoloacutegico que para Justino e seus contemporacircneos possivelmente
natildeo era nem sequer um problema doutrinal
Passando agora efetivamente ao texto este diz ldquoNa verdade a paciecircncia que Deus
mostra em natildeo fazecirc-lo imediatamente tem como causa o seu amor pelo gecircnero humano pois
ele prevecirc que alguns se salvaratildeo pela penitecircncia entre os quais alguns que talvez ainda natildeo
368 CREDO NICENO-CONSTANTINOPOLITANO 7ordm Artigo
369 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
370 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
371 Ver SANTOS Justino o Maacutertir ndash Calvinista ou Arminiano 2014 Disponivel em
httpswwwgospelprimecombrjustino-martir-calvinista-arminiano
372 VIRKLER Hermenecircutica Avanccedilada Princiacutepios e Processos de Interpretaccedilatildeo Biacuteblica 2001
89
tenham nascidordquo373 Iniciamos esta parte de um ponto elementar da teologia de Justino374 ao
qual abordaremos mais detalhadamente a frente contudo compreendemos que sua aplicaccedilatildeo
neste item natildeo eacute apenas orientativa mas tambeacutem qualitativa para o restante da argumentaccedilatildeo
Um fato muito criativo do pensamento filosoacutefico de Justino se apresenta quando o
Apologista passa a enfatizar a existecircncia do Logos como o Cristo revelado Isto para Justino eacute
uma asserccedilatildeo de valores pontuais em uma escala ascendente que com facilidade se encontram
e se envolvem em sistemas transcendentais Wachholz elucida a abrangecircncia do termo Logos
dizendo o seguinte
O termo Logos (grego) quer dizer ldquopalavrardquo e tambeacutem ldquorazatildeordquo Segundo os gregos
nossa mente consegue compreender por que participa de alguma maneira do Logos
ou razatildeo universal Justino assume este discurso afirmando que em Jesus Cristo esse
Logos que se fez carne Jesus eacute fonte de todo o conhecimento375
Torna-se necessaacuterio entendermos a notoriedade que Justino aplica agrave onipotecircncia
onisciecircncia e preexistecircncia de Cristo em sua atuaccedilatildeo salviacutefica a partir deste ponto questotildees
(atributos divinos) as quais devemos considerar como absolutamente factiacuteveis no entendimento
do Apologista pois satildeo atributos da Escritura Sagrada ou seja satildeo consideradas evidecircncias
inquestionaacuteveis da vontade Divina (ativa e passiva) na leitura de Justino Poreacutem o ponto de
repouso deste exame se concentra na primeira parte do texto onde novamente Justino enfatiza
sua clarificaccedilatildeo de um estado de conformidade entre ideias e objetos (Verdade)
Mesmo o pensamento de Justino estando alavancado a uma espeacutecie de meacuterito para a
salvaccedilatildeo eacute evidente que sua afirmaccedilatildeo a soberania de Deus ndash a quem adjetiva como
ldquopacienciosordquo ndash caracteriza que esta benesse estaacute intimamente unida ao contexto temaacutetico que
podemos definir como amor de Deus O relato Apostoacutelico a Igreja em Corinto jaacute registrava a
seguinte afirmaccedilatildeo ldquoPorque todas as coisas existem por amor de voacutesrdquo (2 Coriacutentios 415a)
Carver diraacute sobre essa passagem que ldquoA expressatildeo tudo isso eacute por amor de voacutes explica o
acreacutescimo de convosco no versiacuteculo anterior O sofrimento de Paulo eacute um chamado ou uma
daacutediva que ele compartilha com toda a igrejardquo376 Da mesma forma notamos que Justino sofria
373 JUSTINO I Apologia XXVIII 2 grifo nosso
374 DROBNER Manual de Patrologia 2008
375 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 60
376 CARVER In A Segunda Epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006 p 427
90
por este grupo chamado a viver a Verdade o qual neste quadro eacute pintado como a resistecircncia
que manifesta esse amor imerecido e incondicional
Na descriccedilatildeo o Apologista nos parece transparecer com certa naturalidade seu intuito
em tentar provar algo como tambeacutem busca possivelmente sanar um erro (o do porquecirc este
juiacutezo de Deus ainda natildeo se manifestou) No entanto esse cenaacuterio eacute aplicado como uma forma
de ldquotranscriccedilotildeesrdquo que satildeo provenientes das afirmaccedilotildees e revelaccedilotildees inquestionaacuteveis para a
percepccedilatildeo de Justino por estarem devidamente relacionadas aos misteacuterios do Evangelho ao
qual ele servia Inclusive Justino claramente submetia sua razatildeo aos enigmas que a feacute em Cristo
natildeo lhe elucidava satisfatoriamente mas tambeacutem natildeo abalava sua convicccedilatildeo nesta feacute que ldquonatildeo
soacute eacute boa e santa em si mesma mas acima de tudo eacute a uacutenica religiatildeo verdadeirardquo377 Por fim
apontamos neste contexto (verso 2) aquilo que com clareza descreve esta certeza teoloacutegica
ancorada no Apologista que de forma contumaz declara que ldquoNa verdaderdquo378 algo se revelava
e condensava-se nos coraccedilotildees daqueles que o recebiam
Apoacutes descrevermos de maneira introdutoacuteria parte de nossa periacutecope base passamos a
uma abordagem sinteacutetica de uma faceta importantiacutessima de nosso autor para a construccedilatildeo do
restante desta pesquisa Comeccedilamos de imediato a elaborar uma descriccedilatildeo do filoacutesofo Justino
apresentando um resumo de sua jornada no mundo da ldquosabedoriardquo helecircnica descrevendo quais
foram suas principais influecircncias neste meio e quais desiacutegnios esta ascendecircncia deixou em sua
teologia
32 O FILOacuteSOFO JUSTINO
Os acontecimentos relacionados agrave vida de Justino nos direcionam ndash podemos ateacute
mesmo dizer que incontestavelmente nos norteiam ndash para um mesmo ponto de convergecircncia
independentemente da aacuterea ou fase que procuremos abordar sobre esta Desde cedo ateacute o fim
de sua jornada ministerial Justino nos apresentaraacute influecircncias significativas do meio intelectual
ao qual havia pertencido desde sua juventude e ao qual nunca abandonou pelo contraacuterio fez
deste seguimento o ponto principal de irradiaccedilatildeo de sua teologia379 tornando-o necessariamente
uma peccedila-chave para agrave compreensatildeo de suas obras
Este ponto de equiliacutebrio na vida de Justino se daacute principalmente no fato de este ser
um filoacutesofo ao qual podemos catalogar como claacutessico em sua formaccedilatildeo (de origem helecircnica)
377 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 47
378 JUSTINO I Apologia XXVIII 2 grifo nosso
379 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
91
natildeo necessariamente por enquadrar-se ldquono modo de pensar e exprimir os pensamentos que
surgiu especificamente com os gregosrdquo380 mas especialmente na virtude apresentada por sua
filosofia que desde cedo natildeo se pautou por um caraacuteter meramente especulativo sem um fim
praacutetico em si mesma mas sim notabiliza-se pela ldquobusca da sabedoria e da verdaderdquo381 como
estados beneacuteficos disponiacuteveis para serem procurados conhecidos e vivenciados por todos os
homens
O primeiro historiador da Igreja nos comprova tal fato assinalando o claacutessico teor
filosoacutefico existente no Apologista os termos de Euseacutebio muito nos dizem a respeito do
ministeacuterio de Justino
Tambeacutem por este tempo Justino sincero amante da verdadeira filosofia continuava
ainda ocupado em exercitar-se nas doutrinas dos gregos [] Mas sobretudo foi nesta
eacutepoca que floresceu Justino Com estofo de filoacutesofo era embaixador da palavra de
Deus e lutava pela feacute com seus escritos382
A doutrina cristatilde encontrada em Justino ndash sua compreensatildeo ativa sobre o que era o
cristianismo como agrave religiatildeo salviacutefica do verdadeiro e uacutenico Deus aos homens ndash foi recebida
e necessariamente desenvolvida por ele atraveacutes de um filtro ou podemos ateacute mesmo dizer por
uma forma de catalisador Este ensino constituiacutea-se de diversas mateacuterias filosoacuteficas nas quais
a diversidade conceitual e estiliacutestica das muitas escolas sapienciais da eacutepoca foram agregadas
ao experimento (de caraacuteter circunspecto) do Apologista383 Notamos deste modo em muitos
aspectos em particular que Justino foi exercitado a uma postura pragmaacutetica de seu tempo a
qual necessariamente o contingenciou a algumas demandas de sua ordem puacuteblica provenientes
de seu status sociorreligioso Neste aspecto a abordagem de Wachholz nos atualiza e ilumina
sobre este cenaacuterio ele diz
A cultura claacutessica pagatilde incluiacutea obra e pensamento de Platatildeo Aristoacuteteles e dos estoicos
que eram muito admirados Rejeitar tais pensamentos era assumir posiccedilatildeo de
ignoracircncia Para os cristatildeos por outro lado aceitar toda esta carga de cultura poderia
tambeacutem significar concessatildeo ao paganismo e comeccedilo de uma nova idolatria Diante
380 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995 p 21
381 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 278
382 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 3 11 8
383 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
92
desta alternativa somente havia dois caminhos possiacuteveis oposiccedilatildeo radical entre feacute
cristatilde e cultura pagatilde ou postura natildeo tatildeo negativa em relaccedilatildeo agrave cultura pagatilde384
A histoacuteria nos testifica que Justino de maneira evidente foi um baluarte em sua postura
de proclamador e representante da feacute cristatilde mais ainda portou-se de maneira excepcional
(como testificam seus procedimentos) no exerciacutecio de sua crenccedila fosse isso relacionado ao seu
foro iacutentimo (Igreja) ou no puacuteblico (social)
Desta forma eacute interessante e necessaacuterio reconhecer que Justino se apresentaraacute como
uma espeacutecie de precursor entre aqueles que eram oriundos da filosofia e que ldquohabitavamrdquo
especialmente em meio agrave cultura helecircnica385 contudo natildeo era o uacutenico Assim estes (filoacutesofos
convertidos ao cristianismo) passando agora a praticar os novos haacutebitos e costumes (modus
vivendi) recebidos do cristianismo natildeo abandonaram de forma absoluta suas praacuteticas cotidianas
do passado ndash ou poderiacuteamos tambeacutem chamaacute-las de ordinaacuterias ndash as quais eram vivenciadas
dentro de um sistema pedagoacutegico da filosofia por assim dizer Isso ocorreu simplesmente
porque tais accedilotildees natildeo requeriam tal censura devido a sua natildeo contrariedade com a Doctrina
Sanctorum que orientava os cristatildeos386 Obviamente tais disposiccedilotildees eram amplamente revistas
e reformuladas com um vieacutes cristatildeo embora mantendo uma estrutura didaacutetica proacutepria e ateacute
mesmo peculiar387 pois na praacutetica estes novos mestres cristatildeos agora ensinavam ldquoexatamente
como os filoacutesofos mas em conformidade com Cristordquo388
Vale-nos ressaltar ainda que essa postura de adaptaccedilatildeo dos convertidos do paganismo
para o cristianismo se desencadeou em muitos segmentos da realidade social do periacuteodo389
especialmente naqueles que se identificavam com as ciecircncias da eacutepoca Indiscutivelmente
nisto Justino se destacou pois seus ldquoconhecimentos filosoacuteficos eram muito profundosrdquo390
Neste ponto novamente recorremos a um registro de Wachholz que nos descreve com clareza
este processo de identificaccedilatildeo na figura de Justino
384 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 58
385 Alguns pesquisadores apresentam Aristides de Atenas como o primeiro filoacutesofo (Grego) propriamente
convertido ao cristianismo a escrever uma obra apologeacutetica Entretanto faltam evidecircncias mais robustas para
sustentar tal afirmaccedilatildeo Ver INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p
50-51
386 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
387 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991
388 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
389 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997
390 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47
93
Por outro lado houve tambeacutem aqueles que defenderam uma postura ldquoconciliatoacuteriardquo
entre feacute cristatilde e cultura pagatilde Justino (110-165) foi um destes representantes que natildeo
deixou de ser filoacutesofo mas passou a dedicar-se em fazer ldquofilosofia cristatilderdquo abrindo
caminho para que o cristianismo pudesse reclamar tambeacutem para si a cultura claacutessica
apesar de ser cultura pagatilde391
Sendo o registro histoacuterico uma peccedila fundamental na elaboraccedilatildeo e construccedilatildeo
conceitual desta pesquisa entendemos ser emblemaacutetico trazer-se agrave tona alguns registros de
pesquisadores que atestam entre si acometimentos similares isso se daacute quando mencionam
pontos que caracterizam a figura de Justino como um distinto representante da Filosofia
mediante sua penetraccedilatildeo investigaccedilatildeo e conclusatildeo dos fatos algo que era ndash como se viu
anteriormente ndash relevante na busca de respostas junto ao meio sociorreligioso ao qual estava
inserido
Deste modo dando seguimento ao nosso intento de esclarecer historicamente um
pouco mais a respeito deste personagem cristatildeo oriundo da filosofia grega392 eacute que registramos
o seu desenvolvimento a parti das palavras de Walde ldquoJustino continuou usando a capa que o
identificava como filoacutesofo e ensinou estudantes em Eacutefeso e depois em Romardquo393 O relato ainda
se estende sobre a pesquisa de Walde poreacutem agora registrando o pensamento de Schaff este
diz ldquoEle havia adquirido cultura claacutessica e filosoacutefica consideraacutevel antes de sua conversatildeo e
entatildeo a fez ficar subordinada a defesa da feacuterdquo394 Ainda sobre esta esteira agregamos outras duas
elaboraccedilotildees A primeira estaacute no trabalho de Xavier que se baseia no pensamento de Fluck E
somado a ela encaixamos a siacutentese de Wachholz sobre Justino Ambos convencionam ideias
similares quando retratam o Apologista e por consequecircncia acabam por se moverem
metodologicamente na mesma direccedilatildeo
Em sua caminhada cristatilde ensinou estudantes em Eacutefeso e chegou a Roma em 150 dC
onde fundou uma escola filosoacutefica debatendo com natildeo-cristatildeos tanto pagatildeos quanto
judeus ou hereges em defesa do cristianismo Para Justino o cristianismo era a
391 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 59
392 Eacute importante que se diga que a Filosofia (a qual no acircmbito do conceito moderno eacute entendida como uma ciecircncia
da aacuterea de estudos Humanos) permaneceu completamente associada a consciecircncia de Justino durante todo o
periacuteodo de sua atuaccedilatildeo teoloacutegica Partindo-se do fato de que a vida de Justino se encerrou no martiacuterio podemos
concluir que de sua conversatildeo ateacute sua morte nunca houve um ldquoJustinordquo que tambeacutem natildeo fosse um filoacutesofo Ver
HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29-30
393 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 1
394 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 715
apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 1
94
ldquoverdadeira filosofiardquo sendo que os cristatildeos eram ldquoos autecircnticos herdeiros da
civilizaccedilatildeo greco-romanardquo395
Tornou-se cristatildeo aos 25 anos de idade apoacutes ter estudado filosofia o que o levou a
fazer uma siacutentese entre teologia e filosofia afirmando que a feacute cristatilde eacute a forma plena
de toda a filosofia Em sua escola em Roma ensinava entatildeo a ldquoverdadeira filosofiardquo
Boa parte de seu labor consistia em descobrir e explicar as relaccedilotildees entre o
cristianismo e a sabedoria claacutessica396
Finalizando esta seacuterie de registros cabe-nos ainda citar algumas relevantes
argumentaccedilotildees A primeira condicionada por Gonzaacutelez nos traz uma definiccedilatildeo da histoacuteria de
Justino em questotildees junto a filosofia ele diz ldquoAo se converter ao cristianismo Justino natildeo
deixou de ser filoacutesofo mas dedicou-se a fazer filosofia cristatilde e boa parte dessa filosofia
consistia em descobrir e explicar as relaccedilotildees entre o cristianismo e a sabedoria claacutessicardquo397 A
segunda elaborada por Daniel-Rops diz ldquoFoi uma fase importante para a histoacuteria do
pensamento cristatildeo que com Justino passou a ser tomado a seacuteriordquo398 Esta ecircnfase somada ao
primeiro apontamento nos afirma uma importante contribuiccedilatildeo para o meio Patriacutestico pois
trabalha com paracircmetros qualitativos referentes agrave relevacircncia da figura de Justino como
articulador filosoacutefico e sucessivamente no meio teoloacutegico como um exegeta399 nos levando a
considerar deste modo que a formaccedilatildeo dogmaacutetica em seu sentido histoacuterico passa
necessariamente por afirmaccedilotildees como esta
Portanto eacute impossiacutevel caracterizar Justino como um pensador e teoacutelogo fora da
filosofia claacutessica pois o personagem que veio a fundar escolas filosoacuteficas cristatildes (primeiro em
Eacutefeso e depois em Roma)400 deve ser compreendido como um autecircntico ldquoamante da sabedoriardquo
Neste quesito distintivo no caso de Justino em especial um agravante modal deve aqui ser
aplicado sendo que esta caracteriacutestica de caraacuteter peculiar eacute o proacuteprio processo de conversaccedilatildeo
ao cristianismo que em seu entendimento ldquoo transformou em um verdadeiro filoacutesofordquo401 arauto
395 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2009 p 32 apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da
Feacute Cristatilde 2014 p 15 grifo nosso
396 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 59 grifo nosso
397 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 91
398 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
399 Ver HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 31-32
400 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
401 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 28
95
da verdadeira sabedoria ndash peccedila final a qual Justino possivelmente exigiria como um
complemento fundamental na elaboraccedilatildeo dessa descriccedilatildeo
Dando seguimento agrave nossa construccedilatildeo ainda nos eacute necessaacuterio examinar duas questotildees
relevantes junto a postura filosoacutefica de nosso autor A primeira estaacute relacionada aos seus
pressupostos na Filosofia como aacuterea de estudo propriamente na qual o estoicismo e o
platonismo se destacam no cenaacuterio em seguida naquilo que possivelmente se tornou a principal
elaboraccedilatildeo teoloacutegica deixada como teoria por Justino a sua concepccedilatildeo do Logos Eterno
321 Estoicismo e Platonismo em Justino
Quando pesquisamos a respeito de quais seriam as principais influecircncias da filosofia
grega que poderiacuteamos encontrar em Justino logo nos saltam aos olhos duas linhas majoritaacuterias
do pensamento histoacuterico filosoacutefico e que tiveram fundamental importacircncia na formaccedilatildeo
intelectual deste Pai da Igreja Desta forma torna-se indispensaacutevel falar do estoicismo e do
meacutedio platonismo402 como elementos filosoacuteficos na vida de Justino pois a anaacutelise dessas
escolas sapienciais junto agrave construccedilatildeo de nosso objetivo de pesquisa apresenta-se como
fundamental para a compreensatildeo do cristianismo apresentado por Justino403
Nossa intenccedilatildeo nesta construccedilatildeo natildeo eacute haacute de se estabelecer um relato minucioso sobre
os aportes princiacutepios e valores filosoacuteficos de Zenon de Ciacutecio (fundador do estoicismo) nem
mesmo dos seguidores ideoloacutegicos do legado de Platatildeo os quais sustentavam no presente
periacuteodo a fase denominada de meacutedio platonismo Pelo contraacuterio visamos apenas retratar de
maneira sinteacutetica a influecircncia dessas escolas no pensamento apologeacutetico do Seacuteculo II tendo a
pessoa de Justino como alvo central e em alguns momentos ateacute mesmo exclusivo neste exame
O advento do Seacuteculo II trouxe consigo um contato mais amplo e consequentemente
tambeacutem mais vantajoso das correntes filosoacuteficas gregas para com o ocidente de uma maneira
em geral Influenciada especialmente pela administraccedilatildeo e organizaccedilatildeo do Impeacuterio Romano agrave
discussatildeo sobre a importacircncia e a manutenccedilatildeo dessas identidades intelectuais (escolas
filosoacuteficas) tornou-se muito ativa especialmente para o meio aristocraacutetico de entatildeo404 Sendo
402 O meacutedio platonismo teve seu iniacutecio no Seacuteculo I aC com Antioco de Ascalona e vai ateacute aproximadamente o
Seacuteculo II dC Entre os seus principais representantes encontram-se os nomes de Filo de Alexandria Apuleio e do
bioacutegrafo Plutarco Este recorte temporal eacute um dos pontos que justifica a nossa opccedilatildeo pelo uso do termo meacutedio
platonismo uma vez que coincide com o periacuteodo de Justino Ver EMILSSON Neo-Platonism 1999 p 358
AUDI The Cambridge Dictionary of Philosophy 1999 p 567 apud SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II
dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 123
403 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
404 CARCOPINO Roma no Apogeu do Impeacuterio 1990
96
o cristianismo cada vez mais presente na estrutura sociorreligiosa do Impeacuterio natildeo demorou
para se considerar ldquotambeacutem os leitores natildeo-cristatildeosrdquo405 como parte do exame teoloacutegico dos
Pais No entanto os mestres e principais arautos dessas claacutessicas estruturas filosoacuteficas eram
pagatildeos em seu modo de vida espiritual o que ocasionou ndash quase automaticamente ndash uma
investidura por parte dos Pais (remodelaccedilatildeo cristatilde) das concepccedilotildees filosoacuteficas de alguns
autores claacutessicos do paganismo Como consequecircncia desse processo o periacuteodo dos Pais
Apologistas se confirma e se engrandece de maneira significativa na histoacuteria cristatilde devido ao
seu importante conteuacutedo teoloacutegico406 desenvolvido a partir dessa adaptaccedilatildeoremodelaccedilatildeo
Voltando precisamente para a pessoa de Justino vemos a partir da pesquisa de Walde
ndash o qual soma seu pensamento a Falls ndash o estabelecimento de uma expressiva comunicaccedilatildeo
entre Justino e as escolas filosoacuteficas apresentadas Walde escreve ldquoComo jovem adulto
mostrou interesse por filosofia e estudou primeiramente estoicismo e platonismo Justino
buscava a Deus que eacute a meta da filosofia de Platatildeo diziardquo407 Este retrato dos fatos nos
demonstra com clareza que o diaacutelogo do Apologista com as referidas escolas filosoacuteficas
norteou sua formaccedilatildeo intelectual de forma significativa
A primeira experiecircncia de fato com a filosofia grega e a qual podemos afirmar ter
deixado marcas consideraacuteveis na vida de Justino foi com a escola estoica Em sua busca da
autecircntica sabedoria Justino comeccedilou a frequentar as aulas de um mestre estoico408
provavelmente ainda em sua cidade natal Se tratando de sua experiecircncia com o estoicismo em
particular o Apologista nos oferece um relato autobiograacutefico no qual informa detalhes
interessantes referentes a sua jornada pela Verdade ldquoEu mesmo no iniacutecio desejando tambeacutem
reunir-me com algum deles (mestres filoacutesofos) coloquei-me nas matildeos de um estoico e passei
bastante tempo com elerdquo409
O interessante nessa narraccedilatildeo eacute que o expressivo contato de Justino com o estoicismo
natildeo surtiu nele o beneacutefico resultado que Justino parecia esperar Efetivamente Justino afirma
em seu Diaacutelogo com Trifatildeo ldquoTodavia percebi que nada me adiantava para o conhecimento de
Deus pois nem sequer ele sabia nada nem dizia que esse conhecimento era necessaacuterio Entatildeo
405 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 140
406 Ver DROBNER Manual de Patrologia 2008 p76-80
407 FALLS The Fathers of the Church 1948 p 151 apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p
1
408 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
409 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 3a grifo nosso
97
separei dele e dirigi-me a outrordquo410 Kelly inclusive salienta mediante a auto narraccedilatildeo de
Justino que parece ter havido um esforccedilo da parte deste em se apropriar ndash ou melhor se
aprofundar ndash das maacuteximas da doutrina estoica Isso devido especialmente ao seu ldquoelevado
padratildeo moral ainda que um tanto impessoalrdquo411 mas com um forte apelo agrave posturas e posiccedilotildees
que estabeleciam um padratildeo moralmente bom para seus praticantes preceitos que eram de
alguma maneira dogmatizados pela doutrina estoica na tentativa de se alcanccedilar ldquouma norma
para os humanos seguiremrdquo412 Dessa forma os praticantes de tal sistema chegavam aquilo que
poderiacuteamos (forccedilosamente) definir como o verdadeiro conhecimento do ldquoSerrdquo e da ldquoEsferardquo
divina pois a ldquovida moral eacute vista como assimilaccedilatildeo a Deus e como imitaccedilatildeo de Deusrdquo413
Contudo apoacutes um periacuteodo de deferecircncia a doutrina estoica ldquopareceu-lhe rudimentar e de uma
metafisica falazrdquo414 aleacutem do sistema natildeo conseguir ldquoesclarececirc-lo a respeito de Deusrdquo415 ou
seja o estoicismo natildeo pode oferecer as condiccedilotildees necessaacuterias para suprir os vaacutecuos e demandas
existecircncias de Justino
Entretanto o estoicismo como doutrina filosoacutefica teve uma significativa relevacircncia na
formaccedilatildeo de Justino como tambeacutem na construccedilatildeo teoloacutegica dos demais Pais Apologistas Na
anaacutelise desse cenaacuterio houve ateacute mesmo quem afirmasse que caso natildeo houvesse o encontro
entre o Poacutertico416 e a Igreja natildeo teria existido uma linguagem inteligiacutevel por parte da doutrina
cristatilde para alguns ambientes gentiacutelicos ou seja o ldquocristianismo seria incompreensiacutevelrdquo417 para
alguns segmentos que formavam o quadro sociorreligioso agrave eacutepoca Teses como essa levantam
questotildees pertinentes No caso em exame parece-nos que tal afirmaccedilatildeo havia se desenvolvido
como um marco referencial junto agrave Era Patriacutestica citada explicando tambeacutem deste modo o que
permitiu que esse conceito teoloacutegico-filosoacutefico viesse a se construir Neste processo as relaccedilotildees
de conformidade entre cristianismo e estoicismo foram absolutamente decisivas sendo o campo
410 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 3b
411 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 13
412 ALGRA In Teologia estoacuteica Os Estoacuteicos 2006 p 189
413 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999 p 132
414 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 278
415 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 52
416 Poacutertico Ornado (ou Pintado) grego Stoagrave Poikiacutele Local na cidade de Atenas onde o filoacutesofo grego Zenon
(fundador do estoicismo) ensinava a seus disciacutepulos Ver SEDLEY In A Escola de Zenon a Aacuterio Diacutedimo Os
Estoacuteicos 2006 p 7-13
417 POHLENZ La Stoa storia di un movimento spirituale 1967 p 397 apud PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia
Patriacutestica 1999 p 131
98
moral junto agrave formaccedilatildeo dogmaacutetica cristatilde ndash poderiacuteamos ateacute mesmo chamaacute-lo de eacutetico ndash decisivo
nessa correlaccedilatildeo (modelagem) de valores
Entre os fatos desse paralelismo ideoloacutegico vemos o otimismo religioso expressado
pelo estoicismo que encontrou de forma geral na consciecircncia dos Pais (ateacute o Seacuteculo III) uma
beneacutevola e favoraacutevel proximidade com a Divindade onipotente e onipresente a qual os
Apologistas reconheciam especialmente na figura de Deus Pai e em sua traduccedilatildeo do Ser
absoluto cenaacuterio que agora expressava-se inclusive na manifestaccedilatildeo Deste (Deus) em uma
relaccedilatildeo de perfeita imanecircncia com seus eleitos Minuacutecio Feacutelix (Apologista do final do Seacuteculo
II) retrata com clareza esse conceito gerado no meio Apologista fruto da relaccedilatildeo destes com os
ditames estoicos ldquonatildeo soacute estaacute perto de noacutes como tambeacutem dentro de noacutes [] natildeo soacute vivemos
sob seu olhar como tambeacutem em seu seiordquo418
Neste contexto ainda vale-nos identificar uma caracteriacutestica peculiar da relaccedilatildeo de
Justino com o estoicismo Trata-se das interpretaccedilotildees escrituriacutesticas desenvolvidas por meio de
meacutetodos alegoacutericos Essa metodologia jaacute estava em uso no meio cristatildeo e jaacute antes era
amplamente ldquodifundida tambeacutem entre os filoacutesofos gregos sobretudo os estoicos com o objetivo
de fazer enquadrarem-se as tradicionais faacutebulas mitoloacutegicas com as suas ideiasrdquo419 Justino se
torna ldquoceacutelebrerdquo no meio Patriacutestico tambeacutem por sua exegese atestando isso quando passa a
unificar textos referentes a economia da Antiga e Nova Alianccedilas fazendo uso em muitos
momentos da teacutecnica citada
Desta forma mormente veremos na construccedilatildeo teoloacutegica de Justino que se encontram
traccedilos desse sistema da filosofia grega que se fizeram notoacuterios em seu registro apologeacutetico
Santos ao citar Staniforth retrata com precisatildeo essa inspiraccedilatildeo e sua contribuiccedilatildeo junto ao
trabalho do Apologista Aleacutem disto consegue descrever com clareza e harmonia agrave postura de
Justino referente sua interpretaccedilatildeo das bases substanciais do estoicismo Santos assim registra
essa relaccedilatildeo
Segundo Staniforth os elementos que predominavam no cristianismo antes de seu
contato com o estoicismo eram os morais e espirituais jaacute os intelectuais eram
subordinados a estes Ele acrescenta poreacutem que ldquoquando a mensagem se espalhou
para aleacutem dos confins da Palestina e as suas implicaccedilotildees foram assimiladas pelos
pensadores de outras terras fez-se sentir a necessidade de concepccedilotildees mais exatas da
verdaderdquo (STANIFORTH 2002 p 20) [] Entre outras coisas citadas por Staniforth
estatildeo ainda a noccedilatildeo de unidade divina a ideia de que os homens satildeo filhos de Deus
e participam da sua natureza e procuram fazer sempre o bem (STANIFORTH 2002
418 MINUacuteCIO FEacuteLIX Otaacutevio 32-33
419 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1146
99
p 22) Justino traz uma argumentaccedilatildeo inversa Segundo ele os imitadores satildeo os
demais povos ldquonatildeo somos noacutes que professamos opiniotildees iguais aos outros e sim
todos por imitaccedilatildeo repetem as nossas doutrinas (JUSTINO I Apologia LX 10)rdquo420
Sendo jaacute anteriormente caracterizado por meio do relato da vida de Justino a elementar
decepccedilatildeo de Justino pelo estoicismo como doutrina a ser seguida levou-o a uma nova fase na
sua busca do ldquoideal da sabedoria perfeitardquo421 Assim seu intento redirecionou-se para outras
esferas da filosofia grega passando por algumas experiecircncias variadas por meio de suas
relaccedilotildees com outras escolas sistemas e mestres Neste cenaacuterio naquilo que possuiacutemos relatos
confiaacuteveis Justino chegou a conviver com ldquoum peripateacutetico e um pitagoacutericordquo422 sempre
buscando alcanccedilar seu intento maacuteximo como amante do saber
Por fim a escola platocircnica tornou-se sua uacuteltima instacircncia de apelo nessa busca intensa
pelo saber supremo que inclusive ele imagina ter alcanccedilado ldquona filosofia (meacutedio) platocircnicardquo423
fazendo desse caso em especiacutefico (platonismo) o encontro ldquomais positivordquo424 Neste ponto
compreendemos que o desenvolvimento do pensamento teoloacutegico que encontramos
futuramente estabelecido em Justino eacute o que o constituiu categoricamente como um filoacutesofo
cristatildeo e foi principalmente detalhado pela influecircncia desta corrente filosoacutefica (platonismo)
mais do que por sua experiecircncia com os demais sistemas O ponto de vista de Xavier colabora
com nossa anaacutelise transmitindo a mesma ideia
A procura incansaacutevel pela verdade levou Justino a se tornar um distinto filoacutesofo do
pensamento grego adotando principalmente a filosofia de Platatildeo que para ele tinha
muita semelhanccedila com os ensinamentos judaicos no que diz respeito agrave Palavra de
Deus (Logos Verbo)425
Eacute portanto necessaacuterio fazer ainda que rapidamente algumas consideraccedilotildees geneacutericas
referentes agrave influecircncia desse importante sistema filosoacutefico (platonismo) no contexto
sociorreligioso ao qual Justino estava inserido O chamado meacutedio platonismo teve singular
420 STANIFORTH In Introduccedilatildeo Meditaccedilotildees 2002 apud SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma
Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 119 122
421 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 25
422 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 27
423 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 83
424 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 119
425 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 15
100
influecircncia junto ao meio teoloacutegico cristatildeo em meados do Seacuteculo II Sua importacircncia em
questotildees como a metafiacutesica por exemplo ldquodeterminou profundamente a compreensatildeo
teoloacutegicardquo426 dos Pais Apologistas Ainda neste cenaacuterio eacute necessaacuterio afirmar que na eacutepoca o
pensamento de Platatildeo estruturado pela manutenccedilatildeo de seus seguidores (meacutedio platonismo)
plasmou-se quase que na totalidade dos seguimentos ditos intelectuais do periacuteodo ocasionando
um expliacutecito e permanente ldquodesenvolvimento do saber filosoacutefico e portanto da cultura
ocidentalrdquo427 a qual teve sua formaccedilatildeo por meio da mecanicidade da Filosofia propriamente
reconhecida como cristatilde em sua formaccedilatildeo
Voltando especificamente para nosso autor retratamos com certa facilidade ndash por se
considerar a questatildeo como um ponto paciacutefico referente agrave figura de Justino ndash sua ampla e notoacuteria
relaccedilatildeo com os ensinamentos baseados na doutrina de Platatildeo Insuelas nos diz que Justino
possivelmente procurou o sistema platocircnico porque este ldquogozava naquele tempo de grande
reputaccedilatildeo e era seguido por homem de valorrdquo428 Fato eacute que Justino progrediu de maneira
consideravelmente raacutepida na doutrina pois ldquoesperava que na filosofia de Platatildeordquo429 veria
imediatamente a Deus questatildeo (enxergar agrave Divindade) que nos indica uma praacutetica
contemplativa que provavelmente levou o jovem filoacutesofo a peregrinar isoladamente ateacute a praia
onde em algum momento ocorreu sua conversatildeo ao cristianismo Utilizamos ainda a ecircnfase
dada por Daniel-Rops a este caso o qual salienta que nesse acesso para a doutrina platocircnica
Justino deu o ldquopasso decisivo levando-o a ver que o uacutenico fim verdadeiro da filosofia era o
conhecimento de Deusrdquo430
Outra descriccedilatildeo que se soma a esta tese nasce das palavras do proacuteprio Justino na sua
I Apologia Estas construccedilotildees do Apologista ganham eficaacutecia e nitidez quando retratadas por
Euseacutebio em seu relato histoacuterico Elas apresentam um Justino intreacutepido e resoluto movendo-se
na eficaacutecia daquilo que encontrou em sua jornada tornando-se desta maneira em um ldquosincero
amante da verdadeira filosofiardquo431 Quanto ao platonismo descrito pelo autor em sua
experiecircncia Euseacutebio escreve
426 SANTOS Platonismo e cristianismo Irreconciabilidade Radical ou Elementos Comuns 2003 p 335
427 SEVERINO A Filosofia Antiga 1984 p 81
428 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 52
429 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 29
430 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 278
431 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 3 grifo nosso
101
Na mesma obra demonstra que sua conversatildeo da filosofia grega agrave religiatildeo natildeo se fez
sem razatildeo mas com juiacutezo escreve o seguinte ldquoporque tambeacutem eu mesmo que me
comprazia nos ensinamentos de Platatildeo ao ouvir as caluacutenias contra os cristatildeos e vecirc-
los irem intreacutepidos para a morte e para tudo que eacute terriacutevel comecei a pensar que natildeo
era possiacutevel que aqueles homens vivessem na maldade e no amor aos prazeresrdquo432
Seguindo no mesmo contexto vemos que Justino no capiacutetulo II de seu Diaacutelogo com
Trifatildeo agrega agrave sua biografia um relato exponencial no qual nos descreve um encontro com um
filoacutesofo platocircnico na cidade de Flaacutevia Neaacutepolis Justino como vimos acima foi procurar este
mestre a fim de conferenciarem sobre temas de relevacircncia para o Apologista Assim havendo
ldquoaprendido bastante do platonismordquo433 Justino envolto de uma acentuada euforia ateacute mesmo
presumiu (erroneamente) haver obtido um distinto conhecimento de superior e incomparaacutevel
qualidade todavia por fim salientou uma conclusatildeo ambiacutegua e de aspecto desfalecente sobre
esta experiecircncia quando se referiu as coisas que em determinado momento lhe pareciam
absolutamente certas e vivazes Ele nos afirma foi ldquotornado saacutebio num aacutetimo e minha estupidez
fazia-me esperar que de um momento para outro contemplaria o proacuteprio Deusrdquo434
No entanto cabe-nos apontar que mesmo diante desta pessimista afirmaccedilatildeo por parte
de Justino o platonismo de sua eacutepoca ldquotinha grande forccedila teiacutestardquo435 aleacutem de apresentar um
ldquoalto tocircnus moralrdquo436 expressatildeo que posteriormente em seu desenvolvimento teoloacutegico passou
a comprovar o cristianismo como o conjunto doutrinal por excelecircncia Sendo essa conclusatildeo
obtida na consequecircncia do emprego de sua metodologia dialeacutetica como teoria do conhecimento
ndash fato (dialeacutetica platocircnica) que jaacute abordamos anteriormente
No que se refere ao raciociacutenio de Justino que encontramos especificamente baseado
no ideaacuterio platocircnico notamos com certa facilidade que este conjunto de ideias o levou a
desenvolver em seus tratados (I e II Apologias e Diaacutelogo com Trifatildeo) algumas referecircncias que
se atestam como elementos de comparaccedilatildeo entre a filosofia grega e a feacute cristatilde Neste periacuteodo
(Seacuteculo II) o meio filosoacutefico grego jaacute registrava haacute algum tempo a noccedilatildeo de um Ser ou Estado
supremo437 ldquoque estaacute acima de todos os seres e do qual todos derivam sua existecircnciardquo438
432 EUSEacuteBIO Histoacuteria Eclesiaacutestica VI 8 5
433 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 119
434 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6
435 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
436 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
437 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994
438 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 16
102
Sabemos baseados em amplas evidecircncias textuais que a vida aleacutem da morte fiacutesica jaacute era
ensinada ou ateacute mesmo garantida por Soacutecrates439 No pensamento de Platatildeo esta teoria eacute
estruturada filosoficamente como uma realidade diferente mas igualmente atemporal a qual
existe aleacutem eou fora deste mundo440
Em Platatildeo detectamos um referencial que nos salienta sobre a expressividade agrave sua
ldquoexposiccedilatildeo da separaccedilatildeo e diferenccedila entre o mundo sensiacutevel (sentidos) e o mundo inteligiacutevel
(intelecto)rdquo441 fazendo com que a percepccedilatildeo humana seja uma espeacutecie de imagem da
realidade442 mas natildeo necessariamente a realidade em si Deste modo Platatildeo automaticamente
condicionava seus leitoresouvintes a compreender que aquilo que estava oculto (natildeo visiacutevel)
deveria pelo encontro com a pura razatildeo voltar ao seu estado inicial ou seja o Uno mesmo
que Platatildeo natildeo considerasse a ldquoForma do Bem ou o Um como Deus no sentido comum da
palavrardquo443 A tese do retorno ao Uno eacute uma performance originalmente desenvolvida na fase
denominada de meacutedio platonismo444
Justino nos demonstra com clareza sua relativa conformidade com essa ideia que de
uma maneira orientativa procurava dar coesatildeo e expressividade agrave realidade perceptiacutevel do
homem em encontrar o que era verdadeiro definido como o ldquonatildeo-escondidordquo445 para o espiacuterito
humano Poreacutem tambeacutem nos apresenta de forma incondicional uma clara distinccedilatildeo substancial
a este conceito segundo o qual ldquoo centro da esperanccedila cristatilde natildeo eacute a imortalidade da alma mas
a ressurreiccedilatildeo do corpordquo446 Corroborando a esta proposiccedilatildeo encontramos a posiccedilatildeo de
Wachholz que organiza o referido cenaacuterio em uma descriccedilatildeo cronoloacutegica embasada no
desenvolvimento do pensamento (dogma) cristatildeo do periacuteodo
Assim por exemplo percebia que tambeacutem Soacutecrates e Platatildeo afirmavam que existia
vida aleacutem da morte fiacutesica Platatildeo afirmava que este mundo natildeo esgota toda a realidade
mas que existe outro mundo de realidades eternas Neste sentido Justino concorda
439 A discussatildeo sobre a imortalidade da alma ndash a uacuteltima de que Soacutecrates participa no dia de sua morte ndash eacute narrada
na obra intitulada Feacutedon de Platatildeo Ver MALTA In Nota 103 Apologia de Soacutecrates 2008 p 97
440 SEVERINO A Filosofia Antiga 1984
441 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994 p 189 grifo nosso
442 Um exemplo claacutessico dessa ideia se encontra no Livro VII de sua obra intitulada A Repuacuteblica em uma alegoria
conhecida como o Mito da Caverna Ver PLATAtildeO A Repuacuteblica VII 514a-541b
443 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 12
444 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
445 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994 p 197
446 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 16
103
pois afirma que o centro da esperanccedila cristatilde natildeo estaacute na imortalidade da alma mas na
ressurreiccedilatildeo do corpo447
Amparado nesse conceito filosoacutefico Justino passa a desdobrar sua concepccedilatildeo sobre a
ideia do estado de um ldquomundo inteligiacutevelrdquo que passa a ser compreendido como a uacutenica
condiccedilatildeo pela qual as coisas satildeo eternas imutaacuteveis e incorruptiacuteveis constituindo deste modo
sua posiccedilatildeo sobre o que seria o proacuteprio ldquomundo de Deusrdquo possiacutevel de ser alcanccedilado Na visatildeo
platocircnica este mundo ideal soacute pode ser alcanccedilado pelo intelecto humano quando este eacute elevado
a seu patamar maacuteximo sendo isso possiacutevel somente por meio do auxiacutelio da filosofia Para
Justino essa filosofia soacute pode ser o cristianismo pois este foi revelado como a uacutenica Verdade
oferecida aos homens
Desta forma para Justino soacute mediante o cristianismo a concepccedilatildeo platocircnica de
alcanccedilar o mundo real torna-se possiacutevel No final da apresentaccedilatildeo de sua jornada entre as
escolas filosoacuteficas Justino nos relata que aquilo que fez com que ele se decidisse pela escola
platocircnica ndash entendendo que esta seria a melhor alternativa para desenvolver sua mente (razatildeo)
na tentativa de receber a verdadeira sapiecircncia ndash fosse agrave profunda admiraccedilatildeo inicial que ele
encontrou em alguns pontos que distinguiam a doutrina das demais ldquoprincipalmente com a
consideraccedilatildeo do incorpoacutereordquo448 mas tambeacutem pela referente ldquocontemplaccedilatildeo das ideiasrdquo449 as
quais ele afirma ldquodava asas agrave minha inteligecircnciardquo450
Nesta jornada de conhecimento Justino salienta que compreendia e admirava o
objetivo desse ensino que se demonstrava estaacutevel e possuiacutea intenccedilotildees muito nobres para agrave
natureza humana a ponto de afirmar que ldquoCom efeito esta eacute a meta da filosofia de Platatildeordquo451
Jaacute como cristatildeo Justino esclarece para o judeu Trifatildeo que ldquoVemos e estamos convencidos de
que por meio do nome de Jesus Cristo crucificado as pessoas se afastam da idolatria e de toda
iniquidade para aproximar-se de Deusrdquo452 ou seja somente um caminho leva definitivamente
a verdadeira filosofia e este caminho natildeo eacute a filosofia de Platatildeo
Apoacutes este raacutepido mas importante embasamento sobre a formaccedilatildeo filosoacutefica de nosso
autor ainda eacute necessaacuteria uma descriccedilatildeo final sobre os elementos filosoacuteficos estruturantes
447 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 59-60
448 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6a
449 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6a
450 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6a
451 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6b
452 JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo XI 4
104
encontrados em Justino Entre estes insumos um se destaca consideravelmente como fruto da
ampla influecircncia deixada pelo predomiacutenio de suas bases filosoacuteficas (estoicismo e platonismo)
Desta forma o Logos em Justino seraacute o ponto central de anaacutelise a seguir
322 O Logos em Justino
Este ponto eacute fundamental para nossa descriccedilatildeo do pensamento de Justino como um Pai
Apologista Mesmo que nos falte uma sistematizaccedilatildeo sobre o tema Logos tanto em Justino
como tambeacutem nos demais representantes de sua Era Patriacutestica453 o Logos eacute um conteuacutedo
teoloacutegico fundamental para a histoacuteria do cristianismo e natildeo aparece com suficiente clareza em
nenhum outro escritor cristatildeo anterior a Justino que acaba por se evidenciar neste assunto de
forma muito significativa
Jaacute no Seacuteculo I a doutrina referente agrave PalavraVerbo divino era conhecida pelo
judaiacutesmo em sua forma posterior devido agrave grande influecircncia do filoacutesofo judeu Filo de
Alexandria O estoicismo como doutrina filosoacutefica tambeacutem foi muito atuante na elaboraccedilatildeo
do termo Logos como um conceito paralelo entre uma plena imanecircncia e uma total expressatildeo
do que eacute superior eou eterno454 O Evangelho de Joatildeo em seu proacutelogo (Joatildeo 11-5) nos oferece
o termo de forma sublime mesmo que o Logos em Joatildeo pareccedila ter sido influenciado por
Heraacuteclito455 Quanto agrave Patriacutestica em sua fase inicial (Pais Apostoacutelicos) Inaacutecio Bispo de
Antioquia parece ser a melhor opccedilatildeo de uma leitura consistente sobre a ideia de a Palavra
Divina preexistente ter sido anunciada antecipadamente aos homens das geraccedilotildees passadas
ldquoInspiraram-se (os profetas) em Sua graccedila a fim de que os increacutedulos se convencessem
plenamente que haacute um soacute Deus a manifestar-se por Jesus Cristo Seu Filho Sua palavra saiacuteda
do silecircncio que em tudo agradou Aquele que O enviourdquo456
Poreacutem vale-nos novamente frisar que aqui como em outras partes desta pesquisa natildeo
procuraremos ser exaustivos muito menos conclusivos especialmente tratando-se de uma
anaacutelise que possui uma conjuntura tatildeo extensa mas de maneira sucinta desenvolveremos uma
siacutentese que visa ser orientativa nesta definiccedilatildeo sobre o legado teoloacutegico do Apologista Justino
A relaccedilatildeo de Justino com esta temaacutetica filosoacutefica (Logos) foi ampla e profunda Eacute
possiacutevel condicionarmos jaacute a partir de Justino uma realidade conclusiva para o tema naquilo
453 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
454 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
455 TORRES A retoacuterica joanina do Logos 2016
456 INAacuteCIO Epiacutestola aos Magneacutesios VIII 2 grifo nosso
105
que ele se refere a revelaccedilatildeo cristatilde esta conclusatildeo estaacute na ldquoconcepccedilatildeo justiacutenica do Logos como
entidade divina intermediaacuteria entre Deus e o mundordquo457 Isso gerou uma nova perspectiva a
qual Justino com certa originalidade conceitual passa a definir o Logos como um agente que
jaacute orientava a humanidade antes mesmo de Sua encarnaccedilatildeo desejando por meio da ldquoIgreja com
a sua accedilatildeo missionaacuteriardquo458 tornar participantes todos os homens que por meio da feacute em Cristo
poderatildeo gozar da esperanccedila do cumprimento profeacutetico do segundo advento do Salvador
Em seu trabalho apologeacutetico Justino estabeleceu uma conjunccedilatildeo entre proposiccedilotildees
separadas mas que se demonstraram de uma mesma espeacutecie Esse ato invariaacutevel conectou de
maneira significativa o Logos459 da filosofia grega ndash aqui expresso em uma de suas definiccedilotildees
temporais do meio filosoacutefico sendo apresentado como o ldquoPrinciacutepio platocircnico mediador entre o
mundo sensiacutevel e o inteligiacutevelrdquo460 ndash com o Logos do Evangelho de Joatildeo ou poderiacuteamos dizer
da interpretaccedilatildeo feita pelo meio apologeacutetico cristatildeo do Seacuteculo II Tratando ainda um pouco mais
sobre o cenaacuterio histoacuterico envolvendo a realidade conceitual sobre o Logos Walde nos indica
este princiacutepio conectivo quando cita Schaff em um exame sobre esta teoria Vemos em sua
descriccedilatildeo que o historiador
Philip Schaff descreve o pensamento desta maneira O Logos eacute a razatildeo preacute-existente
absoluta pessoal e Cristo eacute a encarnaccedilatildeo dele o Logos encarnado Qualquer coisa
racional eacute cristatilde e qualquer coisa cristatilde eacute racional Os Logos dotaram a todos os
homens da razatildeo e liberdade que natildeo estavam perdidos desde a queda Ele espalhou
sementes da verdade antes de sua encarnaccedilatildeo natildeo soacute entre os judeus mas tambeacutem
entre os gregos e baacuterbaros sobretudo entre os filoacutesofos e poetas que satildeo os profetas
pagatildeos Os que viveram razoavelmente e virtuosamente em obediecircncia a esta luz
preparatoacuteria foram de fato cristatildeos ainda que natildeo no nome ao contraacuterio os que
viveram irracionalmente eram inimigos de Cristo Soacutecrates foi um cristatildeo assim como
Abraatildeo ainda que ele natildeo o conheceu461
457 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1147
458 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1148
459 O conceito de Logos derivado da filosofia contemporacircnea especialmente do estoicismo com sua doutrina da
razatildeo universal foi usado pelos Apologistas para explicar como Cristo se relacionava com Deus Pai Algo do
Logos diziam encontra-se em todos os homens Ver HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 23
460 Logos (grego loacutegograves) Substantivo masculino de dois nuacutemeros Significa 1 Palavra 2 Discurso 3 Linguagem
4 Estudo 5 Teoria Significado em aacutereas proacuteprias 1 Filosofia Razatildeo ou princiacutepio da inteligibilidade 2
Filosofia Princiacutepio platocircnico mediador entre o mundo sensiacutevel e o inteligiacutevel 3 Filosofia Forccedila divina ou
criadora que eacute organizadora do mundo 1 Teologia Cristo ou o Verbo de Deus segunda pessoa da Trindade Ver
Dicionaacuterio Priberam da Liacutengua Portuguesa ltDisponiacutevel em httpsdicionariopriberamorglogosgt Acesso em
27 de fev 2019
461 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 723
apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
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Esta ideia por assim dizer protagonizou aquilo que possivelmente foi o primeiro
encontro consistente entre filosofia e teologia na Era atual (dC) O conjunto deste exerciacutecio
que vemos pouco tempo depois jaacute constituiacutedo na escola de Alexandria (aproximadamente 50
anos) sob a preeminecircncia de Clemente (Bispo de Alexandria)462 continuou a evoluir no
decorrer dos seacuteculos e encontrou seu aacutepice no movimento Escolaacutestico da Idade Meacutedia463
Contudo parece-nos que a funccedilatildeo do Logos propriamente empregado dentro da realidade
teoloacutegica cristatilde originalmente foi de alguma maneira semeada por Justino
Ainda sobre esta praacutetica hermenecircutica de se assemelhar a teorema dos filoacutesofos gregos
com a revelaccedilatildeo biacuteblica (ou Patriacutestica) notamos com facilidade a apresentaccedilatildeo de certas
evidecircncias que nos levam ao ldquoberccedilordquo da obra do Apologista Definitivamente Justino parece
agregar conceitos em seu relato que claramente evidenciam isto pois ldquoa principal contribuiccedilatildeo
dos apologistas (sendo Justino expoente no contexto) foi sua tentativa de correlacionar o
cristianismo com a erudiccedilatildeo grega tentativa que encontrou sua expressatildeo mais marcante na
teoria do Logos e sua aplicaccedilatildeo agrave cristologia (mateacuteria determinante em Justino)rdquo464
A teoria cristatilde sobre o Logos tem caraacuteter preceituador e exerceu impacto relevante na
histoacuteria dogmaacutetica cristatilde pois de maneira imperiosa tornou acessiacutevel a sua realidade intelectual
tanto intra quanto extra muros transmitindo a ideia de que ldquoeste Verbo este Logos que assim
iluminou progressivamente a mente humana eacute o proacuteprio Cristo tal como se revelou em Jesus
por meio do qual o pensamento e a vida encontraram o seu significadordquo465 Nesta mesma linha
Wachholz apresenta um paralelo forte desta soma de posiccedilotildees
Justino assume este discurso afirmando que em Jesus Cristo esse Logos que se fez
carne Jesus eacute fonte de todo o conhecimento Por outro lado Justino tambeacutem pode
afirmar que os pagatildeos tambeacutem puderam conhecer o Logos embora parcialmente
(inclusive Soacutecrates e Platatildeo) Os cristatildeos por sua vez conhecem o Logos tal qual ele
eacute por causa da encarnaccedilatildeo do mesmo em Cristo466
Devemos ainda agregar a influecircncia estoica ndash a qual neste ponto de forma mais direta
inspirou intelectualmente a Justino ndash agrave preponderacircncia junto a apresentaccedilatildeo do Logos como o
462 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
463 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995
464 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999 p 24 grifo nosso
465 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
466 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 59
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princiacutepio elementar (material e imaterial) de todas as coisas existentes nos escritos de Justino
O estoicismo mais que o platonismo conseguia de modo mais teacutecnico467 e com maior rigor no
periacuteodo definir tanto a convicccedilatildeo teoloacutegica de Justino468 como de todo o segmento Apologista
cristatildeo Dreher consegue frisar tal relaccedilatildeo e consequecircncia desta realidade ldquoLogos eacute para os
estoicos a Razatildeo Universal que tudo penetra e tudo comanda que tudo ordena Tambeacutem Justino
viu no Logos a Razatildeo Universal mas que se teria revelado no cristianismo de maneira mais
perfeitardquo469
Outro importante apontamento que merece destaque estaacute na ideia de criaccedilatildeo e
manutenccedilatildeo operado pelos Logos Aqui enfatiza-se que tudo estava ordenado pela Palavra que
era e foi criadora sustentadora e orientativa mais ainda tudo provinha desta mesma Palavra
que possuiacutea e estava (mantinha-se) em uma realidade imanente e preexistente a tudo Simonetti
afirma que ldquofunda-se sobre a conspecccedilatildeo de Cristo como Logos divino e nessa condiccedilatildeo
princiacutepio de racionalidade universal cujas sementes (spermata) entram em toda a criaccedilatildeo e
habilitam o homem a conhecer Deus como criador organizador e regente do mundordquo470 Disso
tudo podemos afirmar que Justino e seus contemporacircneos de fides et toga entendiam que ldquotoda
a verdade estaacute no Logos [] Logo toda a verdade deve ser relacionada ao Logosrdquo471
Cabe-nos nesse conjunto apontar que na exposiccedilatildeo intelectual de Justino referente ao
Logos este natildeo desenvolve com clareza aquilo que seria a presenccedila da Palavra nos outros
homens Em seus registros vemos em alguns momentos que essa relaccedilatildeo de habitaccedilatildeo do Logos
(entendido como incipiente) no ser humano eacute descrita como um processo de semeadura (o
Logos sendo semeado)472 jaacute em outras passagens a analogia se constroacutei atraveacutes de uma imagem
467 Os Apologista do Seacuteculo II empregavam textos do Antigo Testamento como o Salmo 336 (ldquoOs ceus por sua
palavra [isto eacute pela Palavra do Senhor] se fizeramrdquo) onde natildeo hesitavam em misturaacute-los com a distinccedilatildeo teacutecnica
que os estoacuteicos faziam entre ldquopalavra imanenterdquo (grego logos endiathetos) e a ldquopalavra pronunciada ou expressardquo
(grego logos prophorikos) Esta distinccedilatildeo empregada pelos Apologistas visava diferenciar o duplo fato da
unicidade preacute-temporal de Cristo Seu estado preexistente com o Pai Sua manifestaccedilatildeo no tempo e no espaccedilo
Ver KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 71
468 Nessa construccedilatildeo teoacuterica que em determinados momentos parece procurar indiacutecios sustentaacuteveis sobre qual
seria o sistema filosoacutefico de maior influecircncia na formaccedilatildeo do conceito de Logos em Justino ganha destaque o
apontamento de Simone o qual utilizando-se de um caraacuteter sucinto e soacutebrio parece definir com normatividade
esta relaccedilatildeo e seu desenvolvimento ldquoseu conceito estaacute mais proacuteximo do meacutedio platonismo do que do estoicismo
isto eacute a terminologia eacute estoica mas o pensamento subjacente eacute platocircnicordquo Ver SIMONE In JUSTINO filoacutesofo
e maacutertir Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 798
469 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47
470 SIMONETTI In Justino Dicionaacuterio de Literatura Patriacutestica 2010 p 1148
471 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 27 grifo nosso
472 Ver JUSTINO I Apologia XXXII 8 JUSTINO II Apologia VIII 1
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de ldquoocupaccedilatildeordquo (posse) tanto plena473 quanto parcial474 em sua abrangecircncia475 O proacuteprio Justino
em sua II Apologia nos conduz a uma afirmaccedilatildeo de caraacuteter muito pertinente na tentativa de
explicar o porquecirc da accedilatildeo e necessidade da Palavra se manifestar aos homens Nessa afirmaccedilatildeo
ele regula o cristianismo como algo superior aos demais ensinos que procuravam ensinar sobre
a realidade do Logos como sendo um elemento orientativo Justino escreve sobre isso e afirma
que ldquoPortanto a nossa religiatildeo mostra-se mais sublime do que todo o ensinamento humano
pela simples razatildeo de que possuiacutemos o Verbo inteiro que eacute Cristo manifestado por noacutes
tornando-se corpo razatildeo e almardquo476
Justino nessa abordagem acaba por gerar em seu contexto uma evidenciaccedilatildeo
cristoloacutegica de importacircncia iacutempar pois salienta que a ldquodiferenccedila entre Cristo e os Homens
comuns encontra-se natildeo em alguma disparidade essencial de constituiccedilatildeo mas no fato de que
enquanto o Logos opera neles de forma fragmentada (kata meros) ou como uma semente em
Cristo Ele opera como um todordquo477 ou seja no Verbo que encarnou temos a plenitude da
manifestaccedilatildeo do Logos divino sendo este aquele mesmo que os filoacutesofos gregos anteriormente
jaacute haviam esquematizado478 poreacutem de maneira imperfeita
Prosseguindo em nossa construccedilatildeo algo que fica evidente neste exame eacute que mais que
esboccedilar uma ldquoexplicaccedilatildeo intelectualmente satisfatoacuteriardquo479 para o Logos Justino procura ser
expressivo mas natildeo necessariamente um sistemaacutetico deixando-nos carecentes de uma loacutegica
argumentativa mais robusta nesta questatildeo
Nesse aspecto encontramos orientaccedilatildeo junto a obras como a de Santos que
especificamente em nosso objetivo de pesquisa aparece provavelmente como uma das mais
qualificadas definiccedilotildees sobre agrave visatildeo de Justino e sua ressignificaccedilatildeo sobre o assunto Logos de
que disponibilizamos Partindo de dados extraiacutedos da anaacutelise sociorreligiosa do Seacuteculo II e a
473 Ver JUSTINO I Apologia XLVI 3
474 Ver JUSTINO II Apologia X 2 XIII 3
475 Deve-se distinguir entre o ldquoVerbo inteirordquo ingecircnito inefaacutevel o proacuteprio Cristo e o ldquoVerbo seminalrdquo que habita
nos homens especialmente nos saacutebios Ver FRANGIOTTI In Nota c II Apologia 1995 p 74
476 JUSTINO II Apologia X 1
477 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 108
478 Para Simone Justino se ampara claramente em uma tese oriunda do meacutedio platonismo quando procura
estabilizar sua ideia sobre haacute preexistecircncia antiguidade e universalidade do Logos Nesta inferecircncia o Apologista
baseia-se na ideia do meacutedio platonismo de que a transformaccedilatildeo do demiurgo miacutetico de Platatildeo visto como uma
forma de mente transcendente (PLATAcircO Timeu-Criacutetias 28c) se associa plenamente haacute figura do Deus Pai e
Criador do Cosmos trazida pela revelaccedilatildeo (sublime) do cristianismo Sendo deste modo o Logos apresentado
como ldquonascidogeradocriadordquo a partir do proacuteprio Deus Ver SIMONE In JUSTINO filoacutesofo e maacutertir
Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 799 LOPES In Nota 67 Timeu-Criacutetias 2011 p 95
479 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 71
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estes somando algumas porccedilotildees da II Apologia de Justino Santos estabelece uma soacutelida
conexatildeo entre o Logos e o cristianismo Nesse conjunto de dados Santos consegue incorporar
a sua descriccedilatildeo uma das evidecircncias fundamentais que apontavam diretamente na diferenciaccedilatildeo
do extrato social agrave eacutepoca denominado cristatildeo Essa conjectura aplica-se assim se por um lado
o Logos eacute eterno foi anunciado anteriormente pelos profetas esteve manifesto na mente
(brilhante) dos filoacutesofos Logo isso o define como cristatildeo Conclusatildeo o Logos eacute Cristo Nossa
deduccedilatildeo eacute fraacutegil (em sentido teacutecnico) nem visa ser emblemaacutetica No entanto define e salienta
o pensamento de Justino que como veremos abaixo Santos ratifica se utilizando de raciociacutenio
similar por entender que Justino demonstra com clareza a concepccedilatildeo cristatilde daquele periacuteodo
sobre o Logos
O Logos total eacute aquele que soacute os cristatildeos possuem Por isso o cristianismo eacute a religiatildeo
por excelecircncia acima de toda filosofia e de qualquer matriz de pensamento humano
Justino declara que o cristianismo ldquomostra-se mais sublime do que todo o ensinamento
humano pela simples razatildeo de que possuiacutemos o Verbo por inteiro que eacute Cristo
manifestado por noacutes tornando-se corpo razatildeo e almardquo (JUSTINO II Apologia X 1)
O Logos eacute o Deus visiacutevel que manifesta o Deus invisiacutevel Os cristatildeos satildeo aqueles que
manifestam o Logos divino pois o possuem de forma integral O que eles manifestam
do Logos eacute o seu amor pela humanidade que eacute a razatildeo maacutexima de sua encarnaccedilatildeo
Entatildeo os cristatildeos revelam ao mundo que ldquoEle se tornou homem para partilhar de
nossos sofrimentos e curaacute-losrdquo (JUSTINO II Apologia XIII 4) O Logos serve para
explicar a semelhanccedila do comportamento moral dos cristatildeos com os ensinamentos dos
filoacutesofos principalmente os platocircnicos e estoicos (JUSTINO II Apologia XIII 2) e
ao mesmo tempo classifica os cristatildeos como superiores a eles (JUSTINO II Apologia
X 1)480
Para concluir a exposiccedilatildeo acerca de Justino dentro da filosofia grega podemos afirmar
sem nenhuma duacutevida que o Apologista eacute um verdadeiro filoacutesofo que entre outras coisas
compreendeu e praticou a vivacidade da revelaccedilatildeo do Logos divino entre os homens sempre
salientando que ldquotoda a verdade deve ser relacionada ao Logosrdquo481 Assim neste processo
conduzido por Justino podemos afirmar que revelou-se ldquoa grande ideia (Logos) marcada com
o selo do gecircnio (Justino) que vai fazer desembocar na verdade cristatilde o platonismo o filonismo
e toda a expectativa das geraccedilotildees humanasrdquo482
A partir disto prosseguiremos falando a respeito do capiacutetulo XXVIII de nossa obra
referencial Poreacutem a partir de agora abordaremos precisamente uma de suas principais
480 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 47
481 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 29
482 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279
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caracteriacutesticas Essa peculiaridade que possivelmente se mostra como a mais elaborada entre
as proposiccedilotildees por noacutes jaacute apresentadas realccedila e enobrece nossa busca pelos melhores
argumentos para a definiccedilatildeo do termo Verdade retratado na I Apologia Assim uma
interrogaccedilatildeo elementar em nossa construccedilatildeo comeccedila a ser diretamente respondida
33 RAZAtildeO DEUS SE PREOCUPA COM ESSAS COISAS
No princiacutepio ele criou o gecircnero humano racional capaz de escolher a verdade e
praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus
pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade Se algueacutem natildeo
crecirc que Deus se preocupe com essas coisas ou teraacute que confessar com sofismas que
natildeo existe ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como
uma pedra Virtude e vicio seriam puros nomes e os homens considerariam as coisas
como boas ou maacutes unicamente por sua opiniatildeo o que eacute a maior impiedade e
iniquidade483
O uacuteltimo item deste capiacutetulo visa possibilitar uma clara visatildeo bem como garantir a
genuiacutena adesatildeo ndash questatildeo que entendemos natildeo apenas como necessaacuteria mas sim como
fundamental para a compreensatildeo deste conceito ndash agrave perspectiva de Justino quanto ao que ele
sentenciou como algo determinante em sua proposta apologeacutetica Este modelo de conduta
adotado por Justino natildeo apenas relacionado pontualmente neste caso (I Apologia) caracteriza
com vigor desde o iniacutecio sua orientaccedilatildeo intelectual Aleacutem disso Justino passou a afirmar com
esta evidenciaccedilatildeo de casos toda sua ordem teoloacutegica baseada em sua anaacutelise racional como
tambeacutem agrave explicava ou no miacutenimo agrave definia mediante a maneira que estas relaccedilotildees se
posicionavam
Walde ao analisar aquilo que poderiacuteamos chamar do ldquocampo de anaacutelise racionalrdquo de
Justino ndash ao qual este estabelecia e limitava a sua reflexatildeo ndash sustenta que o pensamento da
Apologista parte de um ponto fixo de uma base depositada profundamente num conceito de
sua racionalizaccedilatildeo Segundo Walde para Justino ldquoQualquer coisa racional eacute cristatilde e qualquer
coisa cristatilde eacute racional Os Logos dotaram a todos os homens da razatildeo e liberdade que natildeo
estavam perdidos desde a quedardquo484
Apoacutes esta citaccedilatildeo faz-se novamente necessaacuterio afirmar que esta pesquisa natildeo almeja
diretamente um debate soterioloacutegico nem sequer visa agregar conceitos ndash de nenhuma espeacutecie
ndash ao termo ldquoLivre Arbiacutetriordquo que empregado indiretamente por Walde possa sugerir debates
483 JUSTINO I Apologia XXVIII 3-4 grifo nosso)
484 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
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teoloacutegicos nessa esfera Contudo salientamos que a ideia transmitida por Justino no capiacutetulo
XXVIII pode ser empregada com determinada liberdade nesta discussatildeo soterioloacutegica pois a
tomada do Livre Arbiacutetrio como atributo caracteriza uma abrangecircncia muito significativa
especialmente quando Justino afirma que o homem racional eacute ldquocapaz de escolher a verdade e
praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus pois todos
foram criados racionais e capazes de contemplar a verdaderdquo485
Entretanto agregar este ldquoescolherrdquo para fins soterioloacutegicos na tentativa de se
apresentar alguma possibilidade (em forma ou modo) de participaccedilatildeo humana no ato salviacutefico
de Deus em Cristo buscando dar o sentido de que o convencimento salviacutefico natildeo eacute uma
exclusividade da accedilatildeo Divina parece-nos ser um literal descaso com o texto uma vez que se
agrega a Justino algo que ele simplesmente natildeo estava tentando comunicar
Dando seguimento ao nosso assunto mencionamos que o principal criteacuterio que
procuramos definir nesta exposiccedilatildeo estaacute relacionado a importacircncia delegada por Justino agrave razatildeo
humana Eacute imprescindiacutevel nesta construccedilatildeo salientarmos que este recurso humano
(razatildeoracionalidade) era compreendido por Justino (e tambeacutem dos demais Apologistas do
periacuteodo) como uma das principais (se natildeo haacute principal) daacutedivas de Deus ao ser humano486 e
natildeo apenas isso mas este ldquopresenterdquo (uma espeacutecie de ldquodomrdquo praacutetico) possuiacutea tambeacutem uma
accedilatildeo determinante na existecircncia humana para com as coisas celestiais tanto no presente
(cotidiano) como para o futuro (escatoloacutegico) do ser criado
Inicialmente detectamos em Justino a importacircncia por ele atribuiacuteda agrave racionalidade
no homem quando passa a afirmar que ldquoNo princiacutepio ele criou o gecircnero humano racional
capaz de escolher a verdade e praticar o bemrdquo487 Desta forma na concepccedilatildeo do Apologista a
Verdade era comunicada ndash ou ateacute mesmo sentenciada ndash ao ser humano por meio de sua
condiccedilatildeo inata (existente e natildeo adquirida) ou seja seu estado racional Aqui cabe-nos ainda
ressaltar que para Justino o homem para receber a revelaccedilatildeo da feacute em Cristo e mediante isso
agregar a si as benesses eou becircnccedilatildeos desta relaccedilatildeo se fazia necessaacuterio uma transmissatildeo desse
conhecimento ao entendimento humano e isso se dava pelo uso da razatildeo
Walde novamente soma a nossa pesquisa ao conceituar que ldquoDeus simplesmente natildeo
era conhecido por meio da razatildeo abstratardquo488 Assim podemos afirmar que Justino compreendia
485 JUSTINO I Apologia XXVIII 3 grifo nosso
486 DROBNER Manual de Patrologia 2008
487 JUSTINO I Apologia XXVIII 3 grifo nosso
488 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 2
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(fortemente influenciado por uma tendecircncia apologista) que a Verdade naturalmente emergia
ao intelecto humano pela razatildeo apoacutes a conversatildeo do homem a Cristo Isso se condicionava
porque era o proacuteprio fruto da accedilatildeo regeneradora do Evangelho no ser humano que agora era
capaz de compreender o processo de separaccedilatildeo entre o joio e o trigo caso contraacuterio os ldquohomens
considerariam as coisas como boas ou maacutes unicamente por sua opiniatildeo o que eacute a maior
impiedade e iniquidaderdquo489
Neste contexto vemos um contraste interessante se formar Pois o Apologista nos
conduz a um quadro extremo no qual apresenta a opiniatildeo humana versus a Verdade Neste
ponto importa mencionarmos Fluck que afirma que Justino ldquoConsiderava que os adversaacuterios
do cristianismo insultavam a razatildeo e a moralrdquo490 Pode ateacute mesmo ser loacutegico poreacutem para nossa
pesquisa eacute imperativo e necessaacuterio salientar que para Justino natildeo havia duacutevidas acerca da
superioridade da Verdade quando revelada (especialmente no Logos) em oposiccedilatildeo agrave razatildeo
humana (caracterizada principalmente pela razatildeo oriunda da filosofia grega) Neste aspecto
Walde eacute categoacuterico e nos apresenta alguns paracircmetros dessa distinccedilatildeo empregada por Justino
Devo notar aqui que esta ecircnfase na razatildeo natildeo deve nos fazer pensar que a feacute natildeo
significava nada para Justino Ele se refere muitas vezes agrave feacute em suas apologias Ele
fala de noacutes sendo transformados ldquopor feacute atraveacutes do sangue e da morte de Cristordquo Ele
inclusive se refere a Abraatildeo que ldquofoi justificado e abenccediloado por Deus devido a sua
feacute nelerdquo No entanto o assunto de conhecimento eacute central aqui porque Justino deu
mais peso em crer nos ensinos de Cristo que crer no proacuteprio Cristo491
Em vista disso natildeo haacute duacutevidas de que a capacidade para decidir para escolher para
tonificar juiacutezos para agregar ou natildeo inferecircncias ou ateacute mesmo para se possuir um meacutetodo de
postura loacutegica passava claramente pela apropriaccedilatildeo da Verdade por meio da razatildeo humana na
concepccedilatildeo de Justino Sendo possiacutevel a partir de entatildeo formar-se no homem (exclusivamente
na experiencia cristatilde ndash com o verdadeiro Logos) os acordos morais para constituiccedilatildeo dos
pensamentos ou das ideias necessaacuterias para a vida humana
Por conseguinte somente aqueles que agregavam a si esta ldquorazatildeordquo (o Logos) poderiam
usufruir de um verdadeiro discernimento e juiacutezo que era proveniente Daquele que se tornou
489 JUSTINO I Apologia XXVIII 4
490 FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2009 p 32 apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da
Feacute Cristatilde 2014 p 15
491 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
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ldquocorpo razatildeo e almardquo492 Diante disso clarificasse a ideia e torna-se vigente o conceito de que
para Justino o Logos eacute o ldquoDeus visiacutevel que manifesta o Deus invisiacutevel Os cristatildeos satildeo aqueles
que manifestam o Logos divino pois O possuem de forma integralrdquo493 Neste ponto em questatildeo
Schaff nos ajuda na compreensatildeo desta distinccedilatildeo
O cristianismo conteacutem a racionalidade necessaacuteria para ser aceito e compreendido pela
filosofia grega Dessa maneira defendendo o cristianismo Justino defendeu a feacute
cristatilde referindo-se agrave feacute em Cristo como forma de justificaccedilatildeo e transformaccedilatildeo sendo
essa feacute totalmente racional494
Este comportamento da feacute compreendida eou assimilada pela razatildeo mostrou-se mais
como uma forma de pensamento do que de conduta naquele momento da histoacuteria495 Isso levou
a classe Apologista do periacuteodo de Justino (praticamente toda helenista em sua origem eou base
cultural) a considerar este procedimento justo e legiacutetimo em sua ordem o que tambeacutem de
maneira muito razoaacutevel possibilitou que este entendimento fosse aceito e vivido496 de forma
significativa em determinados nichos da referida realidade sociorreligiosa
Neste quesito em particular notamos com clareza que o procedimento adotado por
Justino para defender a feacute cristatilde se utilizou de admiraacuteveis recursos filosoacuteficos (racionais)
Justino ldquoSoube juntar admiravelmente os princiacutepios da razatildeo com os dogmas da feacuterdquo497 para
comunicar-se com uma classe distinta intelectualmente de modo especial com aqueles
(Imperadores Senadores outros) aos quais as obras foram dirigidas (a I e II Apologias e o
Diaacutelogo com Trifatildeo no caso de Justino especificamente) A legitimidade da proposta de Justino
(apresentar a feacute cristatilde como um fato racional a ser implantado e assimilado pelos ouvintes)
permite algumas consideraccedilotildees Walde argumenta nesta direccedilatildeo quando diz
Era importante mostrar a racionalidade da feacute e o Logos era o locus da razatildeo nas altas
escolas de filosofia grega [] Isso garantiu a racionalidade do cristianismo
492 JUSTINO II Apologia X 1
493 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 47
494 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 723
apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 21
495 HAumlGGLUND Histoacuteria da Teologia 1999
496 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988
497 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 52
114
identificando a Jesus como o Logos indicando Sua antiguidade que era importante
para a mentalidade grega em estabelecer uma crenccedila498
A partir deste ponto fomentaremos a atribuiccedilatildeo enfaacutetica do capiacutetulo XXVIII da I
Apologia onde Justino afirma com veemecircncia e certo rigor que ldquoSe algueacutem natildeo crecirc que Deus
se preocupe com essas coisasrdquo499 este (ou estes) passa por um consideraacutevel descompasso de
ordem moral Esta afirmaccedilatildeo eacute muito relevante no conjunto em que estaacute aplicada pois denota
de maneira singular toda a estrutura da mensagem do Apologista
Referente a esse caso nos eacute possiacutevel afirmar balizados em toda a descriccedilatildeo
empreendida do sistema de loacutegica adotado por Justino ndash sob clara influecircncia da escola
platocircnica500 ndash que para o Apologista os natildeo-cristatildeos (praticantes ou natildeo dos valores atribuiacutedos
a razatildeo) natildeo conseguiam ponderar com a autecircntica ldquorazatildeo universalrdquo a mesma que era e estava
implantada no ser humano de maneira inata e agora se fazia conhecer porque manifestava-se
nas vidas (consciecircncias regeneradas) dos cristatildeos501
A concepccedilatildeo sobre uma ordenaccedilatildeo coacutesmica universal vista na filosofia estoica502
comeccedila no contexto teoloacutegico de Justino a ser denominada de Logos Spermatikoacutes503 Conceito
que de forma ampla e sistemaacutetica passa a ser usado pelo autor ndash e consequentemente pelo meio
cristatildeo ndash em sua II Apologia na qual Justino ldquoatribui a Cristo a expressatildeo lsquoLogos Spermatikoacutesrsquo
(verbo seminal ou semente da razatildeo) significando que dEle procedem todas as coisasrdquo504
Assim quando os homens natildeo aceitam a distinccedilatildeo que a Verdade oferece para tudo que a ela eacute
estranho prova-se que eles (homens) necessariamente agem sem estar em seu juiacutezo pleno
completo perfeito ou seja natildeo satildeo dirigidos nem governados pelo verdadeiro Logos Nisso se
498 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
499 JUSTINO I Apologia XXVIII 4
500 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
501 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
502 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
503 Fluck explica que o que se entendia na filosofia como ldquorazatildeo universalrdquo imanente em todas as coisas foi
relacionado a ldquosemente racionalrdquo que estaacute presente em todo ser humano (Logos Spermatikoacutes ou semente do
Logos) Ver FLUCK Teologia dos Pais da Igreja 2009 p 33 apud XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em
Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 17 Jaacute Haumlgglund diz que a razatildeo como um embriatildeo encontra-se implantada dentro
deles (Loacutegos Spermatikoacutes) Mas os apologistas em contraste com os estoicos natildeo diziam ser ela uma espeacutecie de
razatildeo universal concebida panteisticamente Em vez disso identificavam o Logos com Cristo Ver HAumlGGLUND
Histoacuteria da Teologia 1999 p 23
504 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 20
115
conclui que estes homens estatildeo corrompidos na ldquosua opiniatildeo o que eacute a maior impiedade e
iniquidaderdquo505
Logo podemos deduzir um final especiacutefico ao pensamento de Justino nesta periacutecope
Entendemos que o paralelo entre feacute e razatildeo eacute um excelente instrumento indicativo orientador
e balizador na tentativa de afirmaccedilatildeo de sua doutrina e de refutaccedilatildeo do erro sendo que o
constituidor dessa anaacutelise deficiente da realidade (o erro de natildeo se utilizar corretamente da
razatildeo) se estabelecia em um conjunto temaacutetico muito amplo e complexo (crenccedilas instituiccedilotildees
poliacutetica etc) o qual decidimos chamar de realidade ou meio sociorreligioso
Sabemos que aplicar o relato de Justino a anaacutelises contemporacircneas pode causar um
aprisionamento indevido de um pensamento nobre e puro mas eacute inquestionaacutevel o uso de meios
e ferramentas que mostram com clareza ndash em uma orquestraccedilatildeo quase impecaacutevel ndash os incriacuteveis
subsiacutedios racionais que Justino possui para julgar o cenaacuterio de seus conflitos Dreher nesta
esteira enfatiza que para Justino em ldquoCristo toda a filosofia chega agrave perfeiccedilatildeo Por isso os
cristatildeos satildeo os verdadeiros seres racionaisrdquo506
Portanto deduzimos a partir de tantas evidecircncias que na compreensatildeo de Justino a
Verdade tambeacutem se encontra no seu oposto pois sempre que o homem natildeo usar da razatildeo para
assumir viver e praticar a Verdade ldquoou teraacute que confessar com sofismas que natildeo existe (a
Verdade) ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como uma
pedrardquo507
Na abordagem deste capiacutetulo trabalhamos a construccedilatildeo da imagem de Justino Maacutertir
como um filoacutesofo inserido e atuante no mundo greco-romano do Seacuteculo II dC ou como citado
anteriormente da filosofia na vida do cristatildeo Justino Procuramos por meio deste exame fazer
uma clara e suficiente descriccedilatildeo do corpo base desta anaacutelise que partiu e se concentrou no
capiacutetulo XXVIII da I Apologia Em seguida passamos a um exame da vida do autor em meio
agrave filosofia de sua eacutepoca e descrevemos as principais influecircncias filosoacuteficas na formaccedilatildeo do
Apologista Aleacutem disso abordamos o efeito desta construccedilatildeo que possivelmente se tornou um
dos maiores (se natildeo o principal) legados deixado pelo autor Por uacuteltimo buscamos estabelecer
um comentaacuterio soacutebrio sobre a tese de Justino a respeito da realidade da razatildeo regenerada como
o agente arbitral na vida humana como a ldquoforccedilardquo condutora para se conhecer agrave Verdade
505 JUSTINO I Apologia XXVIII 4
506 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47 grifo nosso
507 JUSTINO I Apologia XXVIII 4 grifo nosso
116
No proacuteximo capiacutetulo trataremos do que em nossa opiniatildeo eacute o ponto epiteacutetico deste
relato apologeacutetico de Justino Mesmo diante de muitas circunstacircncias que em sua eacutepoca afligiam
consideravelmente a cristandade Justino nos apresenta uma ldquochave mestrardquo que no seu
entendimento nos prova que o cristianismo eacute a religiatildeo mais antiga e deste modo a uacutenica que
revela genuinamente a Verdade
117
4 A VERDADE REVELADA POR FATOS PROFEacuteTICOS SEGUNDO JUSTINO
Poderiam nos objetar ldquoQue inconveniente haacute em que esse que noacutes chamamos Cristo
seja um homem que vem de outros homens e que por arte maacutegica fez os prodiacutegios
que dizemos e por isso pareceu ser filho de Deusrdquo Apresentaremos pois a
demonstraccedilatildeo natildeo dando feacute agravequeles que nos contam os fatos mas crendo por
necessidade naqueles que os profetizaram antes de acontecer da forma que os vemos
cumpridos ou que estatildeo se cumprindo diante dos nossos olhos tal como foram
profetizados demonstraccedilatildeo que acreditamos que pareceraacute a voacutes mesmos a mais forte
e a mais verdadeira508
Iniciamos a seccedilatildeo final desta dissertaccedilatildeo partindo novamente da principal delimitaccedilatildeo
textual empregada a esta pesquisa Neste espaccedilo nossa anaacutelise se concentraraacute no capiacutetulo XXX
da I Apologia onde encontramos uma enfaacutetica afirmaccedilatildeo apresentada acerca da leitura das
profecias do Antigo Testamento e da interpretaccedilatildeo que Justino fez delas
Quando examinamos a trajetoacuteria de Justino na feacute cristatilde nos deparamos com
comentaacuterios situacionais que visam fixar conjuntos referenciais sobre as coisas consideradas
reais as quais nos possibilitem identificar com clareza as situaccedilotildees existentes no cenaacuterio
analisado Uma dessas afirmaccedilotildees seria a de que ldquoSeguindo sua inspiraccedilatildeo (de Justino) logo
houve outros cristatildeos que se dedicaram a construir pontes entre sua feacute e a cultura da
antiguidaderdquo509 Asserccedilotildees como esta mostram um caminho amplo e sistecircmico de um projeto
de construccedilatildeo que visa estabelecer novos paradigmas neste caso especiacutefico para a cristandade
da eacutepoca
Este processo natildeo eacute formado simplesmente por elementos de coesatildeo mas tambeacutem por
muitas medidas de desconexatildeo Em alguns momentos o projeto evangeliacutestico de Justino eacute
desenvolvido majoritariamente por meios apologeacuteticos e foi amplamente caracterizado por
visar um processo de desconstruccedilatildeo dos valores vigentes de seu meio sociorreligioso algo que
jaacute atestamos anteriormente relacionando o processo dialeacutetico de Justino a outros fatores
Seguindo esse processo este capiacutetulo nasce da necessidade de apresentarmos uma
resposta satisfatoacuteria para algo que surge na parte final da porccedilatildeo selecionada como base
(capiacutetulos XXIII a XXX da I Apologia) de nossa busca de soluccedilotildees para o objetivo central desta
pesquisa Neste contexto um ponto epiteacutetico surge e se move em meio agraves palavras de Justino
sendo enfaticamente referido ao cumprimento profeacutetico do Antigo Testamento Esse caso
508 JUSTINO I Apologia XXX 1 grifo nosso
509 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 92 grifo nosso
118
interpretativo do Apologista natildeo ocorre apenas no capiacutetulo XXX mas tambeacutem em outras
passagens da I Apologia510 as quais condicionaratildeo o alvo final de nossa anaacutelise
Entretanto se haacute um epiacuteteto significa que haacute um cliacutemax neste conjunto que requer ser
exposto e acima de tudo abordado Deste modo surgem algumas indagaccedilotildees sobre este ponto
alto levantado e abordado por Justino Essa busca nos leva a perguntar como estava a
consciecircncia sobre a realidade messiacircnica no Seacuteculo II em meio aos cristatildeos O que eram e o
que significavam as profecias consideradas messiacircnicas do Antigo Testamento para Justino
Elas se realizaram na visatildeo do autor O que ele visava comunicar para seus leitores atraveacutes
delas Havia nelas um ponto alto uma maacutexima a ser revelada Por uacuteltimo havia como a
Verdade ser revelada eou representada por meio do cumprimento dessas profecias
41 O MESSIANISMO ATEacute OS DIAS DE JUSTINO
O messianismo como movimento teoloacutegico tem uma longiacutenqua e variada histoacuteria em
sua estruturaccedilatildeo e desenvolvimento Diversos cenaacuterios humanos desde as antigas dinastias do
Impeacuterio Egiacutepcio passando por quase todo crescente feacutertil chegando ateacute a antiga realeza
Mesopotacircmica descreviam traccedilos de similaridade que apresentavam um ser protagonista em
seu ambiente poliacutetico e religioso (caso essa diferenciaccedilatildeo possa existir para a eacutepoca) o qual
passa a caber como uma entidade superior gerada manifestada sustentada e dirigida
Divinamente
A pesquisa moderna nos tem surpreendido de maneira constante ao apresentar
elementos encontrados nas civilizaccedilotildees antigas os quais se referem agrave ideia sobre a existecircncia
de uma figura messiacircnica de presenccedila soberana potencial salviacutefico e valor moral ilibado O
Egito como um grande Impeacuterio na antiguidade jaacute nos expotildee uma diversidade de personagens
exoacuteticos (que envolviam essencialmente a figura do ImperadorFaraoacute) que deveriam de
maneira fundamental exercer uma ordem religiosa poliacutetica e moral Cabe-nos ressaltar de iniacutecio
que ldquolonge de produzir qualquer coisa parecida com a figura de um lsquoMessiasrsquordquo511 como no
judaiacutesmo as crenccedilas religiosas no antigo Egito salientavam que esse agente mantenedor da
ordem coacutesmica ndash com accedilatildeo visiacutevel no tempo presente ndash faria por meio de sua sucessatildeo
(dinastia) a manutenccedilatildeo desses elementos cariacutessimos para o bem geral e deste modo
510 Ver JUSTINO I Apologia XXXIII 1 XXXVI 6 XLIV 3 XLVIII 1 LI 6 LII 1 4
511 BAINES In A realeza egiacutepcia antiga formas oficiais retoacuterica contexto Rei e Messias em Israel e no Antigo
Oriente Proacuteximo dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 52
119
possibilitaria a passagem para o mundo futuro de qualidade superior por ser santificado pela
ldquopassagem do deus-Sol pelo aleacutemrdquo512
Quanto agrave regiatildeo da Mesopotacircmia os povos de origem Sumeacuteria Babilocircnica e Assiacuteria
demonstram similar afinidade quando buscam exteriorizar o modelo de realeza ideal a ser
desempenhado pelo respectivo soberano em atividade Nestes povos nos chama a atenccedilatildeo que
a linhagem deste personagem era considerada uma inquestionaacutevel instituiccedilatildeo Divina sendo
ldquodesignado pelo pai (Rei predecessor) como o priacutencipe herdeirordquo513 Tal nomeaccedilatildeo era ldquofeita
com a aprovaccedilatildeo dos deusesrdquo514 algo que tambeacutem ocorre de forma similar na aprovaccedilatildeo de
Davi e sua linhagem como monarquia perpeacutetua515 Quanto aos Mesopotacircmicos ainda eacute
necessaacuterio mencionar a respeito de suas ldquoinscriccedilotildees reacutegiasrdquo516 que apresentavam a solene
tradiccedilatildeo ao povo tambeacutem traziam consigo a responsabilidade de descrever o ethos do Soberano
como algueacutem que fora designado e iluminado divinamente para o cargoposiccedilatildeo Essa
contestaccedilatildeo explica por que ldquoNesse sentido a antiga Mesopotacircmia era verdadeiramente
messiacircnicardquo517
No Antigo Testamento variadas e amplas satildeo as alternativas que se apresentam na
construccedilatildeo de uma possiacutevel linha de pesquisa sobre o tema Elas perpassam todo o texto biacuteblico
do Pentateuco aos Profetas Menores ganhando destaque junto aos Livros Histoacuterico que ldquonos
permitem conhecer todas as luzes e sombras da esperanccedila messiacircnicardquo518 aleacutem de tambeacutem
encontrar uma ecircnfase diretiva nos Profetas Maiores (Isaiacuteas e Ezequiel por exemplo) Contudo
eacute nos escritos Poeacuteticos e Sapienciais que encontra-se o repouso pleno dessa mensagem de
esperanccedila e o Livro dos Salmos ganha significativa relevacircncia junto ao cenaacuterio Hamilton nos
enfatiza que a ldquoliteratura de Salmos considera de modo todo especial o mashicircah como agente
512 BAINES In A realeza egiacutepcia antiga formas oficiais retoacuterica contexto Rei e Messias em Israel e no Antigo
Oriente Proacuteximo dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 53
513 CAZELLES Il Messia della Bibbia Cristologia dellrsquoAntico Testamento 1993 p 43 grifo nosso No Original
Designato dal padre come principe ereditario
514 CAZELLES Il Messia della Bibbia Cristologia dellrsquoAntico Testamento 1993 p 43 No original fatta con
lapprovazione degli dei
515 LAMBERT In A realeza na antiga Mesopotacircmia Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 53
516 LAMBERT In A realeza na antiga Mesopotacircmia Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 73
517 LAMBERT In A realeza na antiga Mesopotacircmia Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 73
518 SICRE De Davi ao Messias textos baacutesicos da esperanccedila messiacircnica 2000 p 103
120
de Deus ou seu vice regente (como em Sl 22)rdquo519 Esta perspectiva ndash recebida mediante os
escritos considerados profeacuteticos sobre a figura ldquosalviacuteficardquo para Israel ndash fica clara quando
salienta a trajetoacuteria do Ungido ao fazer seu percurso de caraacuteter libertador e restaurativo Este
anuacutencio salviacutefico conecta-se automaticamente de forma simples ao proacuteximo passo desta missatildeo
libertadora520 a qual consideraraacute as profecias como realizadas em definitivo
Ao examinarmos alguns dos conceitos fundamentais da hermenecircutica messiacircnica no
Novo Testamento vemos que a expectativa sobre o restabelecimento de um reino Daviacutedico
sobre a terra (amplamente difundido na concepccedilatildeo religiosa do judaiacutesmo tardio) faz com que a
Nova Alianccedila estabelecida na concepccedilatildeo dos cristatildeos atraveacutes do advento do Ungido ganhe
contornos bem definidos no sentido de enxergar na figura de Jesus Cristo o cumprimento
absoluto das promessas messiacircnicas
Dos Evangelhos ao Apocalipse de Joatildeo o messianismo que antes representava
majoritariamente um princiacutepio de restauraccedilatildeo poliacutetica e espiritual para diversos movimentos
judaicos passou a ganhar nova e emblemaacutetica posiccedilatildeo pois tudo ndash em maior ou menor
proporccedilatildeo dependendo do autor biacuteblico ndash foi constituiacutedo pela forte convicccedilatildeo do elemento
messiacircnico (como um ente) relacionado agrave ldquopresenccedila terrena passada de Jesus o Messias
(prometido a Israel)rdquo521 vinculando Este agrave realidade dos fatos presentes e dos eventos futuros
(escatoloacutegicos) aguardados pelos cristatildeos Importante tambeacutem citarmos que para a formaccedilatildeo
dogmaacutetica no Seacuteculo I os relatos histoacutericos do cristianismo (Atos dos Apoacutestolos) tiveram
fundamental importacircncia nesta construccedilatildeo teoloacutegica pois viriam ldquopara confirmar tanto a
historicidade do personagem quanto sua consideraccedilatildeo popular do Messiasrdquo522
Tratando-se do periacuteodo poacutes-apostoacutelico ateacute os dias de Justino ndash ponto que se torna o
delimitador desse item ndash vemos que uma pujante cristalizaccedilatildeo sobre o conceito messiacircnico se
estruturava sem maiores dificuldades O relato escrituriacutestico somado agrave forte conscientizaccedilatildeo
sobre a existecircncia de um futuro reinado messiacircnico sobre a terra ratificava de forma decisiva
519 HAMILTON In 1255c maumlshicircah Ungido aquele que eacute ungido Dicionaacuterio Internacional de Teologia do
Antigo Testamento 1998 p 885 grifo do autor
520 Cabe-nos registrar que o periacuteodo entre 340 aC a 30 dC eacute riquiacutessimo no que se trata de documentaccedilatildeo
envolvendo o tema messiacircnico em Israel Os escritos de Qumran satildeo proacutedigos em registros que tratam sobre a
expectativaesperanccedila messiacircnica para o periacuteodo que antecede e inaugura o Novo Testamento Ver BROOKE In
Realeza e messianismo nos manuscritos do Mar Morto Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 451-472 SICRE De Davi ao Messias textos
baacutesicos da esperanccedila messiacircnica 2000 p 334-351
521 ROWLAND In Cristo no Novo Testamento Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 510 grifo nosso
522 MIRALLES El Mesiacuteas en tiempos del NT 2006 p 40 No original a confirmar tanto la historicidad el
personaje como su consideracioacuten popular de Mesiacuteas
121
a mentalidade cristatilde no periacuteodo a ponto de podermos afirmar que ldquotornou-se caracteriacutestica da
escatologia cristatilde primitiva por exemplo Justino Dial 113 139 Tertuliano Adv Marcionem
3 24 Irineu Adv Haer 5 33 3-4rdquo523 entre outros Pais ateacute final do Seacuteculo II o estabelecimento
do entendimento de que o pleno cumprimento das profecias messiacircnicas estava em Jesus Cristo
tanto nos fatos jaacute realizados quanto nos ainda por se cumprirem524 Este caso em especiacutefico
tambeacutem nos atesta que os Pais Apologistas foram aqueles que produziram os ldquoprimeiros ensaios
de teologia cientiacutefica que apareceram na Igrejardquo525 mostrando deste modo quatildeo notaacutevel foi
sua influecircncia Esta tendecircncia hermenecircutica messiacircnica na Patriacutestica perdurou ateacute o advento da
escola alexandrina no iniacutecio do Seacuteculo III526
Deste modo de maneira incontestaacutevel podemos afirmar que o messianismo como
temaacutetica teoloacutegica tornou-se uma das contribuiccedilotildees mais importantes da histoacuteria da
religiosidade monoteiacutesta a niacutevel mundial tendo como seus baluartes intelectuais o cristianismo
(de forma maciccedila) e algumas correntes do judaiacutesmo Este ideaacuterio teoloacutegico ndash que se concentra
em um ou dois agentes527 de superaccedilatildeo da realidade sociorreligiosa ndash iniciou-se provavelmente
como algo inserido profundamente em ditames de teor poliacutetico passando posteriormente a ser
um princiacutepio orientativo para determinados seguimentos religiosos e acabou por se definir em
uma expectativaesperanccedila de caraacuteter excepcionalmente escatoloacutegico
Salientamos que a partir do desenvolvimento da ldquoideologiardquo messiacircnica houve uma
abrupta ruptura entre as suas duas principais correntes de aclamaccedilatildeo especialmente devido a
singularidade identitaacuteria do protagonista algo de imensa relevacircncia para ambos os lados Este
fato requerido e inegociaacutevel em sua espeacutecie tornou-se o ldquoatestadordquo do cumprimento profeacutetico
das exigecircncias teoloacutegicas que distinguiam especialmente a ldquoliteratura cristatilde primitivardquo528
Obviamente sabemos que estas ldquobalizasrdquo envolvem a pessoa de Jesus morador histoacuterico da
cidade de Nazareacute como sendo o autecircntico Ungido (MessiasCristo) prometido a Israel
Os passos a seguir nos conduziratildeo de maneira especiacutefica novamente ao pensamento
de Justino Sua compreensatildeo do escopo profeacutetico messiacircnico do Antigo Testamento torna-se a
523 ROWLAND In Cristo no Novo Testamento Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 493 grifo do autor
524 Aqui nos referimos a tese moderna do ldquojaacute e o ainda natildeordquo desenvolvida por Oscar Cullmann Ver
CULLMANN Salvation in History 1967
525 INSUELAS Curso de Patrologia histoacuteria da literatura antiga da Igreja 1948 p 49
526 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
527 Ver SICRE De Davi ao Messias textos baacutesicos da esperanccedila messiacircnica 2000 p 342-343
528 ROWLAND In Cristo no Novo Testamento Rei e Messias em Israel e no Antigo Oriente Proacuteximo
dissertaccedilotildees do seminaacuterio veterotestamentaacuterio de Oxford 2005 p 492
122
partir de agora nosso alvo e objeto de anaacutelise Esse conjunto de fatos que exteriorizou a
revelaccedilatildeo Divina antes do advento do cristianismo como religiatildeo acabou por condicionar-se
entre outras coisas em um dos casos mais pertinentes da doutrina cristatilde em toda a sua histoacuteria
O Logos Palavra Verbo que encarnou na concepccedilatildeo cristatilde foi entendimento claramente como
o Messias prometido a Israel o qual toda a tradiccedilatildeo religiosa judaica (por seacuteculos) ainda
esperava poreacutem Justino junto aos seus (cristatildeos) jaacute o havia reconhecido e recebido como
Deus
42 AS PROFECIAS MESSIAcircNICAS NA VISAtildeO DE JUSTINO
Toda abordagem de Justino nesta temaacutetica possui um elevado grau de reconhecimento
especialmente devido agrave sua posiccedilatildeo Patriacutestica pois em Justino nos eacute possiacutevel afirmar que este
foi ldquoum dos primeiros autores cristatildeos a formular a exegese da presenccedila do Verbo-Messias na
Lei e nos profetasrdquo529 Esse reconhecimento se destaca por meio de um forte aparato
metodoloacutegico no qual a estruturaccedilatildeo escrituriacutestica do Apologista ganha ecircnfase Xavier salienta-
nos esta orientaccedilatildeo definindo-a como um proacutedigo ldquoponto cardealrdquo na temaacutetica do autor ldquosua
obra como um todo contribuiacute para explicar a feacute cristatilde baseada nas Escrituras como a fonte
suprema de autoridade cujas profecias podem ser compreendidas somente pela Graccedila de
Deusrdquo530
Ao analisarmos a I Apologia fica-nos evidente a relaccedilatildeo que Justino faz de forma
automaacutetica ou seja como uma consequecircncia procedimental do papel das Escrituras Sagradas
referente a manifestaccedilatildeo de Cristo como pessoa humana e como ministro das coisas celestiais
Aleacutem disso Justino contempla (reconhece) nas profecias toda a revelaccedilatildeo que Deus visou
apresentar aos Homens atraveacutes do Logos encarnado em Cristo Notamos que este
condicionamento oferecido por Justino acaba por se tornar desde cedo em sua anaacutelise profeacutetica
(do Antigo Testamento) algo absolutamente imperativo e imparcial para com o
desenvolvimento de sua perspectiva messiacircnica Na visatildeo do Apologista tudo o que eacute
legalmente oferecido e constituiacutedo em Cristo ldquorepousa nas profecias veterotestamentaacuterias e no
que ele chama de lsquomemoacuteriasrsquo dos apoacutestolos ou seja os evangelhos (JUSTINO I Apologia
LXVI 3)rdquo531
529 SIMONE In JUSTINO filoacutesofo e maacutertir Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 799
530 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 21
531 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 114
123
Neste contexto cabe-nos ressaltar esta importante fundamentaccedilatildeo do Texto Sagrado
como tambeacutem da Tradiccedilatildeo Apostoacutelica encontrada em Justino Estes alicerces da feacute cristatilde
significam e tem para Justino a funccedilatildeo de ldquobuacutessolardquo teoloacutegica a qual neste caso
especificamente sempre estaacute estabilizada na direccedilatildeo do ldquonorterdquo profeacutetico o qual sem exageros
podemos chamar de uma espeacutecie de ldquonorte messiacircnicordquo Isso porque sua interpretaccedilatildeo
(exegese) nasce de uma hermenecircutica claramente messiacircnica algo que notamos sempre de
forma niacutetida quando o Apologista aponta para a direccedilatildeo de tentar migrar agrave atenccedilatildeo ndash ou
poderiacuteamos dizer moldar o entendimento ndash de seus ouvintes para estes fatos (profecias
messiacircnicas) que possuiacuteam um teor incontestaacutevel na oacutetica do Apologista Indiscutivelmente
para Justino a ldquoprofecia eacute a prova maacuteximardquo532 eacute ldquoo ponto mais forte em relaccedilatildeo agrave veracidade
do cristianismordquo533
Algumas das passagens da I Apologia contribuem decisivamente para este conceito
Por exemplo quando Justino afirma ldquoDisso proveacutem nossa firmeza em aceitar seus
ensinamentos pois se manifesta realizado tudo quanto ele predisse que aconteceria Eis a obra
de Deus dizer as coisas antes que aconteccedilam e depois mostrar o acontecido tal qual ele foi
preditordquo534 Logo adiante no mesmo contexto o Apologista robustece ainda mais seu
raciociacutenio seguindo em uma de suas mais peculiares abordagens Justino claramente natildeo visa
um posicionamento maiecircutico535 nem busca uma manifestaccedilatildeo sofista para com o puacuteblico-alvo
de sua I Apologia Assim ele reafirma com zelo a determinaccedilatildeo de seu ideaacuterio de feacute
ldquoPoderiacuteamos terminar aqui o nosso discurso sem acrescentar mais nada considerando que
pedimos coisas justas e verdadeirasrdquo536
Neste trecho transparece-nos a ideia de que Justino reconhecia nas profecias algo de
elementar e misterioso que natildeo podia ser ocultado Para o Apologista estaacute expliacutecito que aquilo
que esta projeccedilatildeo Divina ndash de essecircncia clara devida e orientada segundo a obra do Espiacuterito
Santo ndash visava expressar ao conhecimento humano era o conteuacutedo filosoacutefico salviacutefico do Logos
que ldquoilumina toda alma de boa vontaderdquo537 fazendo com que as profecias da Antiga Alianccedila
532 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 23
533 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 114
534 JUSTINO I Apologia XII 10 grifo nosso
535 Maiecircutica (maimiddotecircumiddottimiddotca) grego maieutikeacute ciecircncia ou arte do parto Substantivo feminino Significa Uma das
formas pedagoacutegicas do processo socraacutetico a qual consiste em multiplicar as perguntas a fim de obter por induccedilatildeo
dos casos particulares e concretos um conceito geral do objeto em estudo Ver Dicionaacuterio Priberam da Liacutengua
Portuguesa Disponiacutevel em lthttpsdicionariopriberamorgmaiecircuticagt Acesso em 12 de mar 2019
536 JUSTINO I Apologia XII 11 grifo nosso
537 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985 p 31
124
evidentemente conseguissem comunicar seu caraacuteter e estado superior o qual por ter-se
concretizado na manifestaccedilatildeo do Evangelho de Cristo atestava o cumprimento das Boas Novas
do Logos que os profetas (e tambeacutem os filoacutesofos538) haviam recebido no passado como um
sinal visiacutevel de que agrave Palavra Incriada visitaria plenamente aos homens Neste aspecto
podemos celebrar juntamente com Justino sua tentativa ordenada ndash e consequentemente loacutegica
ndash de aprumar a religiatildeo cristatilde neste cenaacuterio profeacutetico Sobre esta praacutetica Santos comenta o
seguinte
Em seu texto Justino parece revelar-nos que as profecias foram o que mais o
convenceram quanto agrave ldquoverdaderdquo do evangelho Se sua busca era encontrar Deus
(JUSTINO Diaacutelogo com Trifatildeo II 6) no cristianismo ele o encontrou a partir da
veracidade das profecias Elas eram a confirmaccedilatildeo de que o cristianismo era a
verdade que ele tanto procurava539
Quando se lecirc a I Apologia percebe-se que o contato de Justino com o Antigo
Testamento foi muito significativo algo que possivelmente foi ocasionado e fomentado por sua
relaccedilatildeo de proximidade na infacircncia e juventude com o ambiente judeu na cidade de Flaacutevia
Neaacutepolis mesmo que sua obra natildeo nos indique um ldquoconhecimento aprofundado do
judaiacutesmordquo540 do periacuteodo por parte de Justino
Contudo uma ordenaccedilatildeo de caraacuteter sadia ndash no sentido interpretativo ndash nos parece ter
surgido desde cedo na relaccedilatildeo analiacutetica de Justino para com as profecias veterotestamentaacuterios
Pode-se afirmar que os profetas e suas profecias lhe despertaram muito a consciecircncia e
provocaram grande reflexatildeo em Justino Dois outros aspectos chamam bastante a atenccedilatildeo
porque descrevem com consistecircncia a posiccedilatildeo hermenecircutica de Justino O primeiro estaacute
relacionado a sua defesa da ideia de que o Antigo Testamento retrata tipologicamente a Nova
Alianccedila O segundo eacute o conjunto messiacircnico desenvolvido na I Apologia541 algo que veremos
mais detalhadamente a seguir Voltando ao primeiro ponto a pesquisa de Xavier nos auxilia
significativamente pois consegue sintetizaacute-lo de forma ampla e coerente
538 Ver JUSTINO I Apologia XLIV 1-13
539 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 114
grifo nosso
540 DROBNER Manual de Patrologia 2008 p 83
541 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012
125
No tratado ldquoContra Maacutercionrdquo refuta os ensinos deste que instigavam a crer em outro
deus maior do que o criador proferindo blasfecircmias e negando que o criador do
universo seja o Pai de Cristo Embora Marciatildeo fosse considerado cristatildeo ensinava
que o Antigo Testamento natildeo devia ser seguido pelos cristatildeos por ser muito diferente
dos ensinos de Cristo Os judeus por sua vez tambeacutem diziam que os cristatildeos
interpretavam mal o Antigo Testamento vendo nele a preparaccedilatildeo para a vinda de
Jesus Essas discussotildees propiciaram Justino a escrever ldquoDiaacutelogo com Trifatildeordquo onde
ele argumenta com o judeu Trifatildeo acerca da relaccedilatildeo entre a feacute cristatilde e o Antigo
Testamento utilizando-se de tipologias visando demonstrar como se interpreta o
Antigo Testamento afirmando que ldquo[] o Antigo Testamento aponta para Jesus
principalmente de dois modos mediante suas palavras profeacuteticas e mediante atos e
accedilotildees que satildeo lsquofigurasrsquo ou lsquotiposrsquo que tambeacutem apontam para Jesusrdquo A interpretaccedilatildeo
tipoloacutegica de Justino baseia-se nos proacuteprios fatos histoacutericos em particular nos fatos
da vida de Jesus542
Nesta posiccedilatildeo do exame cabe-nos recordar e ressaltar o caraacuteter fortemente
empiacuterico543 que se apresenta novamente no relato de nosso autor Este se sustenta de maneira
consideraacutevel pois eacute utilizado como um criteacuterio comprobatoacuterio da metodologia apologeacutetica de
Justino Como jaacute vimos anteriormente Justino natildeo era um empirista segundo o rigor que o
termo exige a partir do Seacuteculo XVII Entretanto o Apologista parece conduzir a concepccedilatildeo do
real a uma inevitaacutevel relaccedilatildeo entre teoria e praacutetica especialmente no caso do Logos profetizado
que se manifestou em Cristo Assim torna-se inevitaacutevel reconhecer que para Justino a Verdade
se manifestou no reconhecimento da experiecircncia do homem para com agrave profecia Divina
Algo que tambeacutem nos chama bastante atenccedilatildeo nesta cena eacute que este suposto meacutetodo
empirista que poderiacuteamos chamar de claacutessico544 parece ser mais atrelado agraves teorias aristoteacutelicas
do que platocircnicas545 devido agrave grande valorizaccedilatildeo do meacutetodo indutivo Desta forma vemos no
capiacutetulo XXX da I Apologista um conjunto que visa apontar elementos de teor comprobatoacuterio
Nesta porccedilatildeo encontramos a partir da visatildeo do Apologista a seguinte conceituaccedilatildeo
Apresentaremos pois a demonstraccedilatildeo natildeo dando feacute agravequeles que nos contam os fatos
mas crendo por necessidade naqueles que os profetizaram antes de acontecer da
forma que os vemos cumpridos ou que estatildeo se cumprindo diante dos nossos olhos
tal como foram profetizados demonstraccedilatildeo que acreditamos que pareceraacute a voacutes
mesmos a mais forte e a mais verdadeira546
542 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 19
543 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
544 CHAUIacute Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia dos Preacute-Socraacuteticos a Aristoacuteteles V I 1994
545 CHAUIacute Convite agrave Filosofia 1995
546 JUSTINO I Apologia XXX 1 grifo nosso
126
Algo de importacircncia singular em toda esta exposiccedilatildeo eacute o estabelecimento da ideia
como tambeacutem a percepccedilatildeo de um estado ativo de consciecircncia em Justino Para ele as profecias
veterotestamentaacuterias tecircm sua origem (entenda-se inspiraccedilatildeo) na terceira pessoa da Trindade547
O Espiacuterito Santo que Justino chama de ldquoEspiacuterito profeacuteticordquo548 aparece em seus registros como
Aquele que atua de forma proclamadora sendo o agente inspirador e formador no espiacuterito dos
profetas da Palavra a ser promulgada trazendo ao conhecimento de todos por meio desses
servos os eventos divinos que futuramente se revelariam Aqui vale-nos registrar que o
princiacutepio de pressaacutegio como algo que foi ajuizado para se revelar num tempo futuro possuiacutea
fundamental importacircncia nesta conceituaccedilatildeo Para Justino era imprescindiacutevel em sua
construccedilatildeo apologeacutetica salientar que as profecias foram registradas efetivamente antes de seu
cumprimento ou seja antes de terem se tornado fatos reais549
Neste contexto cabe-nos examinar duas passagens da I Apologia que promovem esta
ideia Sem desejarmos abordar de maneira direta qualquer outra ecircnfase teoloacutegica nestas
passagens ndash por exemplo aplicaccedilotildees escatoloacutegicas e outras ndash iremos apenas nos focar naquilo
que entendemos ser o grau de concordacircncia substancial oferecido e exigido por ambas as
porccedilotildees dentro de nossa temaacutetica A anaacutelise profeacutetica (interpretaccedilatildeo) do Apologista se
desenvolve desta forma
Entre os judeus houve profetas de Deus atraveacutes dos quais o Espiacuterito profeacutetico
anunciou antecipadamente os acontecimentos futuros e os reis que segundo os
tempos se sucederam entre os judeus apropriando-se de tais profecias guardaram-nas
cuidadosamente tal como foram ditas e tal como os proacuteprios profetas as consignaram
em seus livros escritos em sua proacutepria liacutengua hebraica [] E de novo o mesmo
profeta Isaiacuteas inspirado pelo Espiacuterito profeacutetico disse [hellip]rdquo550
De forma emblemaacutetica vemos na apresentaccedilatildeo de Justino relacionada ao proacuteprio
Cristo Logos Messias o ponto elementar e essencial para a interpretaccedilatildeo da revelaccedilatildeo profeacutetica
do Antigo Testamento uma vez que o conhecimento transcendental relacionado agrave pessoa de
547 Justino coordena com certa razoabilidade em seus escritos a descriccedilatildeo das Trecircs Pessoas Divinas utilizando-se
especialmente para isso de foacutermulas obtidas dos ritos de batismo e eucaristia Suas referecircncias ao Espiacuterito Santo
aparecem com normalidade em suas obras embora Justino natildeo seja absolutamente claro acerca da relaccedilatildeo entre as
funccedilotildees do Espiacuterito e as do Logos em algumas passagens Entretanto eacute niacutetido que o Apologista considerava que
estes (Pai Logos e Espiacuterito) eram realmente pessoas distintas Ver JUSTINO I Apologia LXI 3-12 KELLY
Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994 p 75
548 JUSTINO I Apologia VI 2
549 JUSTINO I Apologia XII 9-10
550 JUSTINO I Apologia XXXI 1 XXXV 3a grifo nosso
127
Jesus manifestava a sua proacutepria natureza ministerial ou seja revelava o Messias prometido a
Israel Em um contexto que aborda sobre Moiseacutes e as profecias messiacircnicas Justino eacute
categoacuterico em afirmar ldquoateacute agrave apariccedilatildeo de Jesus Cristo nosso Mestre e interprete das profecias
desconhecidas tal como foi de antematildeo dito pelo Espiacuterito Santo profeacutetico por meio de Moiseacutes
que natildeo faltaria priacutencipe dos judeus ateacute aquele para o qual estaacute reservada a realezardquo551
Nesta mesma abordagem torna-se importante fazer uma observaccedilatildeo quanto agrave
excepcional erudiccedilatildeo apresentada por Justino O Apologista fomenta uma impecaacutevel exegese
de caracteriacutestica e ordenamento dogmaacutetico algo que explica as peculiaridades do autor e seu
meio intelectual (Patriacutestico)552 distinccedilatildeo que tambeacutem pode ser detectada em sua apresentaccedilatildeo
de caraacuteter expositivo dos textos biacuteblicos utilizados553 Santos contribui decisivamente na
construccedilatildeo deste realce
Mas ele mesmo se mostra um exiacutemio exegeta ao enumerar e manusear as profecias
tanto do Antigo Testamento quanto as do Novo Testamento Justino as interpreta as
explica as esclarece revela a que se referem com uma forte argumentaccedilatildeo Haacute
algumas incoerecircncias em suas interpretaccedilotildees poreacutem estas satildeo frutos das boas
intenccedilotildees em demonstrar o quanto as profecias comprovam a superioridade da feacute dos
cristatildeos554
Notamos portanto que Justino representa mais do que uma ideia destacadamente ele
representa a continuidade de uma fiel relaccedilatildeo entre a profecia aplicada no passado e a
orquestraccedilatildeo de seu estabelecimento no presente555 Este presente que agora estaacute sob o efeito
daacute ldquotransformaccedilatildeo completa do conceito da filosofiardquo556 passa a ser entendido como um estado
contiacutenuo que invade e preenche o futuro com sua proclamaccedilatildeo por ser fidedignamente um
retrato do dogma cristoloacutegico557 ecircnfase que acaba por cristalizar-se a ponto de ser possiacutevel se
afirmar que ldquoJustino foi o primeiro verdadeiro teoacutelogo a formular uma teologia da histoacuteria
551 JUSTINO I Apologia XXXII 2b
552 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
553 HALL Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja 2003
554 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 114-
115
555 HALL Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja 2003
556 Para Boehner e Gilson agrave filosofia grega como ciecircncia entendida a eacutepoca passa para os cristatildeos o controle
histoacuterico de seus atos a partir da Era dos Pais Apologista sendo Justino o elemento decisivo para que ocorresse
esse fenocircmeno cultural Ver BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 28
557 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
128
cristocecircntricardquo558 Deste modo finalizamos este item com o pensamento de Walde Neste
vemos com clareza que no conceito de Justino a figura humana de Jesus Cristo era literalmente
a manifestaccedilatildeo do que poderia ser considerado ldquoprofecias cumpridasrdquo559
Adicionado a esta leitura apresentamos a partir de agora o exame de um dos elementos
teoloacutegicos mais caros ao cristianismo Este singelo criteacuterio nos conduziraacute ao cliacutemax daquilo que
Justino visava comunicar por meio do processo de revelaccedilatildeo contido nas profecias do Antigo
Testamento Deste modo iniciamos a parte final desta pesquisa O item seguinte iraacute
complementar o atual e finalizar este capiacutetulo com uma anaacutelise sobre o cumprimento profeacutetico
da Primeira Alianccedila sendo esse processo o grande resultado que para Justino equivale agrave
apropriaccedilatildeo da Verdade como uma definiccedilatildeo real sobre a vida e os acontecimentos humanos
pois para Justino isso prova de maneira definitiva que a Verdade estaacute com o cristianismo Essa
evidecircncia indubitaacutevel para o Apologista eacute a encarnaccedilatildeo de Cristo
43 A ENCARNACcedilAtildeO DO LOGOS APOGEU DA REVELACcedilAtildeO
Iniciamos este item citando a Walde que eacute emblemaacutetico ao se utilizar do pensamento
de Schaff quando procura introduzir em sua pesquisa um conjunto de mediadas loacutegicas que
parecem visar o estabelecimento de uma proposta a teologia de Justino Walde buscando de
maneira clara estabelecer um rigor de orientaccedilatildeo para causas que ele considera balizares
apresenta-nos mediante um meacutetodo a priori560 seu entendimento de que para Justino haacute uma
consequecircncia ndash dando-nos a impressatildeo de que este evento eacute o grau maacuteximo possiacutevel para o
caso ndash causal para aquilo que a humanidade testificou sobre a accedilatildeo salviacutefica de Deus Deste
modo Walde conjectura sobre a ideia de Schaff e nos afirma que ldquolsquoo cristianismo eacute a alta
razatildeorsquo para Justino lsquoO Logos eacute a razatildeo preacute-existente absoluta pessoal e Cristo eacute a encarnaccedilatildeo
dele o Logos encarnadorsquordquo561
Eacute oportuno aqui apresentarmos um resumo de alguns pontos essenciais jaacute
desenvolvidos em nossa pesquisa principalmente na questatildeo que envolve o conceito do Logos
em Justino poreacutem agora focado no dogma da encarnaccedilatildeo de Jesus Cristo
558 SIMONE In JUSTINO filoacutesofo e maacutertir Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 799
559 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
560 KLEINMAN Tudo o que vocecirc Precisa Saber Sobre Filosofia 2014
561 SCHAFF Ante-Nicene Christianity AD 100-325 v II In History of the Christian Church 1910 p 723
apud WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5 grifo nosso
129
Desta maneira optamos por comeccedilar esta reapresentaccedilatildeo de uma forma mais geneacuterica
onde a explanaccedilatildeo de Dreher contribui de maneira significativa Ele escreve ldquoO cristianismo
segundo Justino natildeo soacute eacute a mais antiga como tambeacutem a religiatildeo mais natural e praacuteticardquo562
Trata-se de uma harmoniosa relaccedilatildeo entre estado e forma ou talvez entre causa e efeito O
cristianismo como corpo (uma coletividade organizada) passa a ser o efeito seleto de uma
substacircncia (Logos) que eacute perfeita e sublime na concepccedilatildeo de Justino563 O mesmo sentido
conseguimos captar em Dreher que apresenta a seguinte definiccedilatildeo a respeito do ideaacuterio
apologeacutetico do Seacuteculo II
Toda a histoacuteria em uacuteltima anaacutelise se desenrola em direccedilatildeo ao cristianismo Homens
como Heraacuteclito e Soacutecrates foram inspirados pelo Logos divino bem como os
precursores do cristianismo Abraatildeo Elias e outros profetas Judeus Em Cristo toda a
filosofia chega agrave perfeiccedilatildeo564
Novamente algo bem condensado nos aparece junto aos comentaacuterios feitos a respeito
do Logos especialmente no que se refere aquilo ou aqueles que envolviam o ambiente
sociorreligioso de Justino ndash lugar de sua conceituaccedilatildeo por excelecircncia O cenaacuterio cultural
descrito conduz (de maneira linear) o tema a uma nova anaacutelise temporal devido ao forte teor
teoloacutegico que possuiacutea Esta mensagem reorientada (o Logos que tornou-se Homem) por Justino
afirmava que tudo o que um dia foi profetizado por um povo estrangeiro ndash considerado de
cultura ldquoestranha e inferiorrdquo a realidade do mundo greco-romano ndash a partir de agora os conduzia
a Verdade e isso de forma antroacutepica por meio de uma ideia um tanto quanto exoacutetica (absurda)
para esse meio cultural Esse novo conceito afirma que um ser excelso (divino) tinha se tornado
um ser humano ou seja que ele havia encarnado
Na mesma linha de Dreher Wachholz se pronuncia de forma muito similar ele
escreve ldquoPara Justino o cristianismo eacute a religiatildeo mais antiga pois foi preparada pelo Logos
como se evidecircncia nos profetas e no pensamento grego Em Cristo a filosofia chega agrave plenitude
Mais do que isso toda a histoacuteria se desenvolve na direccedilatildeo do cristianismordquo565 Desta maneira
a transmissatildeo dessa ideia acaba por ganhar um teor imperativo em sua implicaccedilatildeo pois nesse
ponto (encarnaccedilatildeo do Logos) a leitura que compreendemos ter havido por parte de Justino
562 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47
563 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991
564 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993 p 47 grifo nosso
565 WACHHOLZ Histoacuteria da Igreja Antiga e Medieval 2010 p 61 grifo nosso
130
referente agrave Primeira Alianccedila comeccedila a apresentar de maneira elaborada seu ente e
consequentemente a este sua essecircncia Seu ente eacute Jesus Cristo (o Homem) sua essecircncia eacute
Logos566
Deste modo manifesta-se algo profundo na construccedilatildeo e postura de Justino quando
ele passa a atribuir (mesmo que de forma implicitamente) agrave encarnaccedilatildeo de Cristo toda a
eficiecircncia necessaacuteria para o pleno cumprimento das profecias do passado Notamos que na
opiniatildeo do Apologista as questotildees referentes a libertaccedilatildeo do homem de sua ignoracircncia e das
accedilotildees demoniacuteacas que o escravizam ndash assunto que eacute amplamente tratado na I Apologia567 ndash
acabam por exercer relevante importacircncia no cenaacuterio humano de forma geral porque estas
mazelas espirituais dominam e vituperam o ser humano aprisionando-o por meio de sofismas
e de falsos exames da verdadeira realidade histoacuterica Esse ponto eacute realmente relevante quando
tratamos sobre o pensamento de Justino pois ele entendia de maneira praacutetica568 que os
democircnios possuiacuteam uma missatildeo ordinaacuteria de ldquoreduzir os homens a escravos e assistentes
seusrdquo569
A ligaccedilatildeo entre a feacute cristatilde e a filosofia grega natildeo se faz sem conflitos570 e natildeo eacute uma
questatildeo de menor impacto no periacuteodo do Seacuteculo II No que cabe a delimitaccedilatildeo deste estudo o
comentaacuterio de Gonzaacutelez a respeito do Tratado de Taciano571 retrata esse conflito de visotildees que
cercava o avanccedilo do Evangelho em meio a cultura helecircnica do periacuteodo Este registro traz
importante contribuiccedilatildeo ao nosso raciociacutenio Gonzaacutelez diz
Tudo o que a haacute de valioso entre os gregos ndash prossegue Taciano ndash eles o tomaram dos
baacuterbaros Assim por exemplo a astronomia aprenderam dos babilocircnios a geometria
dos egiacutepcios e a escrita dos feniacutecios E o mesmo pode se dizer acerca da filosofia e da
religiatildeo pois os escritos de Moiseacutes satildeo muito mais antigos que os de Platatildeo e ateacute mais
antigos que os de Homero Se Homero e Platatildeo realmente eram pessoas cultas
segundo os proacuteprios gregos dizem era de se supor que conhecessem os escritos de
Moiseacutes Portanto qualquer coincidecircncia entre a cultura supostamente grega e a
religiatildeo dos ldquobaacuterbarosrdquo hebreus e cristatildeos deve-se a que os gregos aprenderam sua
sabedoria dos baacuterbaros Mas em todo caso o certo eacute que os gregos ao lerem a
566 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991
567 JUSTINO I Apologia V 1-4 IX 1 X 6
568 JUSTINO I Apologia XIV 1
569 SIMONE In JUSTINO filoacutesofo e maacutertir Dicionaacuterio Patriacutestico e de Antiguidades Cristatildes 2002 p 799
570 PADOVESE Introduccedilatildeo agrave Teologia Patriacutestica 1999
571 O escrito chama-se de Discurso aos Gregos composto por Taciano o mais famoso entre os disciacutepulos de
Justino Esta obra reconhecidamente representa um ataque frontal contra tudo que os gregos consideravam
valioso em seu exerciacutecio da racionalidade especialmente naquilo que constituiacutea as bases de sua metafisica O
escrito de caraacuteter apologeacutetico tambeacutem se salienta pela defesa dos chamados ldquobaacuterbarosrdquo isto eacute dos cristatildeos Ver
GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 89
131
sabedoria dos ldquobaacuterbarosrdquo natildeo a entenderam e portanto adulteraram a verdade que os
hebreus conheciam Portanto a suposta sabedoria grega natildeo eacute senatildeo um paacutelido reflexo
e uma caricatura da verdade que Moiseacutes conheceu e que os cristatildeos agora pregam572
Um fator nesta conjuntura que apresenta caracteriacutesticas agudas estaacute na apropriaccedilatildeo de
que agrave ldquosabedoriardquo (como sendo o grande fundo de conhecimento) proveniente da filosofia e
toda ou qualquer outra forma de conhecimento humano considerado como elevado para a
concepccedilatildeo da eacutepoca usava de bases ontoloacutegicas em sua refutaccedilatildeo dos elementos vitais
apresentados pela feacute cristatilde que estava em pleno estabelecimento e curso de seu exerciacutecio
naquele ambiente gentiacutelico573
O ministeacuterio a morte e especialmente a ressurreiccedilatildeo de Cristo574 causavam natildeo apenas
estranheza mas tambeacutem incocircmodo a classe intelectual dominante O testemunho de Paulo nos
apresenta uma fraccedilatildeo dessa realidade cultural O Apoacutestolo desenvolve uma definiccedilatildeo
figurativa mas nada ilusoacuteria desta realidade e de sua reaccedilatildeo para com a nova mensagem que
surgia Ele escreve ldquoPorque tanto os judeus pedem sinais como os gregos buscam sabedoria
mas noacutes pregamos a Cristo crucificado escacircndalo para os judeus loucura para os gentiosrdquo (1
Co 122-23) Neste contexto Paulo afirma que os ldquogregos insistiam em explicaccedilotildees racionais e
buscavam sistemas especulativosrdquo575 Um procedimento de harmonizaccedilatildeo que facilmente
condicionava a si exigecircncias de que ldquoDeus se revelasse em harmonia com as suas ideias em
particularrdquo576
Portanto atraveacutes dos relatos registrados acima podemos afirmar que uma espeacutecie de
ldquomonopoacutelio do saberrdquo procurava se manter vigorosamente ativo Este cenaacuterio histoacuterico foi o
mesmo em que Justino teve que apresentar sua mensagem apologeacutetica afirmando que Aquele
ao qual representava simbolizava a plena afirmaccedilatildeo de uma loacutegica da ordenaccedilatildeo Divina entre
os homens Isso se concretiza em suas obras especialmente na I Apologia quando afirma ndash de
uma forma praticamente sistemaacutetica ndash que as profecias do Antigo Testamento se cumpriram na
encarnaccedilatildeo do Logos A obra de Gonzaacutelez nos auxilia na compreensatildeo desta loacutegica orientada e
proposta por Justino
572 TACIANO Discurso Contra os Gregos apud GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 89
573 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 88
574 Ver Atos dos Apoacutestolos 1718-32
575 METZ In A Primeira Epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006 p 253 grifo do
autor
576 METZ In A Primeira Epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Comentaacuterio Biacuteblico Beacon 2006 p 254
132
Segundo os filoacutesofos gregos tudo o que nossa mente consegue compreender o faz
porquecirc de algum modo participa do ldquologosrdquo ou razatildeo universal Por exemplo se
podemos compreender que dois e dois satildeo quatro isso se deve ao fato de que tanto
em nossa mente como no universo existe um ldquologosrdquo uma razatildeo ou ordem segundo
o qual dois e dois satildeo quatro Ora o que os cristatildeos creem eacute que em Jesus Cristo esse
logos ndash e esta eacute a palavra que aparece no proacutelogo do Quarto Evangelho ndash se fez carne
O que Joatildeo 114 nos diz eacute que a razatildeo fundamental do universo o verbo ou palavra
(logos) de Deus se fez carne em Jesus Cristo577
Nesse ambiente tatildeo carregado de ordenamentos filosoacuteficos e por conseguinte tambeacutem
teoloacutegicos nasce uma interrogaccedilatildeo de acentuada relevacircncia ldquoMas por que esta interpretaccedilatildeo
sobre Jesus deve ser acreditadardquo578 Como premissa seria interessante (ou necessaacuterio)
providenciar uma soluccedilatildeo para esta demanda partindo do que podemos encontrar no proacuteprio
autor (Justino)
Assim o Apologista comeccedila a nos responder este ponto que poderia ser interpretada
como repetitiva eou ateacute mesmo ldquotrivialrdquo para com o contexto filosoacutefico e teoloacutegico moderno
Contudo esta questatildeo parece ter sido solucionada de forma amplamente criativa e inovadora
para com aquele contexto sociorreligioso Justino responde essa pergunta de caraacuteter entranhaacutevel
ndash figadal para alguns ouvintes espirituosa para outros ndash dizendo ldquoos homens poderiam
considerar incriacutevel e impossiacutevel de acontecer Deus o indicou antecipadamente por meio do
Espiacuterito profeacutetico para que quando acontecesse natildeo lhe fosse negada a feacute e sim justamente
por ter sido predito fosse acreditadordquo579
Entretanto cabe-nos realocar Walde nesta construccedilatildeo conceitual (a pergunta acima eacute
de sua autoria) Ele nos propotildee duas razoaacuteveis respostas na tentativa de concretizar sua ideia
tendo como base o que pode ser considerado um resultado ordenado na tentativa de tornar a
mensagem de Justino plausiacutevel A primeira baseia-se direta e integralmente em uma citaccedilatildeo da
I Apologia Walde vecirc com consideraacutevel eficiecircncia nas palavras de Justino580 uma opccedilatildeo
admissiacutevel para emoldurar essa questatildeo Importante tambeacutem eacute entendermos que no contexto
daquela eacutepoca (e igualmente na atualidade) em questotildees que envolviam a aplicaccedilatildeo de algumas
proposiccedilotildees natildeo bastava ser diretivo era necessaacuterio ser consequente Desta forma o autor
inicia a resposta agrave sua pergunta citando o Apologista581
577 GONZAacuteLEZ A Era dos Maacutertires 1995 p 92 grifo nosso
578 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
579 JUSTINO I Apologia XXXIII 2
580 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
581 Ver JUSTINO I Apologia XXXI 7-8
133
Nos livros dos profetas jaacute encontramos anunciado que Jesus nosso Cristo deveria vir
nascido de uma virgem que ele chegaria agrave idade adulta curaria toda doenccedila toda
fraqueza e ressuscitaria dos mortos que seria invejado desconhecido e crucificado
que morreria ressuscitaria e subiria aos ceacuteus que ele eacute e se chama Filho de Deus que
ele enviaria alguns para proclamar essas coisas a todo o gecircnero humano e seriam os
homens das naccedilotildees aqueles que mais creriam nelerdquo E essas profecias foram feitas
umas cinco outras trecircs outras dois mil e outras mil e oitocentos anos antes que ele
aparecesse no mundo Com efeito eacute sabido que os profetas se sucederam uns aos
outros de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo582
A segunda resposta de Walde se orienta atraveacutes de uma questatildeo cultural que tambeacutem
possui uma importante relevacircncia neste cenaacuterio ldquoNatildeo soacute foi o cumprimento da profecia notaacutevel
em si mesmo mas tambeacutem foi significante que tais profecias foram feitas muito antes dos
filoacutesofos gregos pois diferente de hoje a antiguidade era importante para a mentalidade grega
em estabelecer uma crenccedilardquo583 Cabe-nos registrar que nesse enlace a pesquisa biacuteblica teoloacutegica
poderia apontar datas posteriores (ao periacuteodo da Filosofia Claacutessica) para a promulgaccedilatildeo dessas
Palavras Profeacuteticas (Messiacircnicas) aleacutem de debater se os ldquotextos satildeo autecircnticosrdquo584 no entanto
lembramos que nosso alvo em anaacutelise estaacute centrado na pessoa de Justino o qual sem nenhuma
duacutevida eacute um dos pioneiros da interpretaccedilatildeo de caraacuteter expositivo e natildeo cientiacutefico meacutetodo (por
assim chamar) reconhecidamente usual no periacuteodo Patriacutestico ateacute o Seacuteculo V585 Deste modo
para Justino natildeo havia duacutevidas as profecias satildeo anteriores aos filoacutesofos
Na busca de um resultado mais qualificado para esta pesquisa entendemos que uma
anaacutelise mais pormenorizada da I Apologia ainda se faz necessaacuteria em pelo menos um quesito
O cenaacuterio no qual a I Apologia foi escrita expunha necessidades claras de se apresentar
evidecircncias fortes na tentativa de se estabelecer o status necessaacuterio as provas que visavam
atestar o cumprimento das profecias messiacircnicas na existecircncia futura (encarnaccedilatildeo) de Cristo
Nunca podemos esquecer que para Justino de forma primordial o cristianismo se estabelecia
em um esquema com propriedades ldquomorfoloacutegicasrdquo pois este era mais que um sistema ndash como
configurado em escolas filosoacuteficas ndash ele era essencialmente ldquouma pessoa o Verbo encarnado
e crucificado em Jesus que lhe revelou o misteacuterio de Deusrdquo586 Para Justino questotildees factiacuteveis
parecem ser importantes ou ateacute mesmo fundamentais no programa que ele visava representar
582 JUSTINO I Apologia XXXI 7-8
583 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000 p 5
584 ROumlSEL Panorama do Antigo Testamento histoacuteria contexto e teologiacutea 2009 p 95
585 HALL Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja 2003
586 HAMMAN A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristatildeos (95-197) 1997 p 152 grifo nosso
134
de forma minuciosa Sendo assim vemos em sua construccedilatildeo apologeacutetica um claro objetivo de
desenvolvimento daquilo que ele desejava provar por meio de suas palavras
Eacute portanto necessaacuterio apresentar detalhadamente as citaccedilotildees que salientam a
encarnaccedilatildeo de Cristo na visatildeo de Justino O esquema abaixo baseia-se nas obras de Frangiotti587
e Santos588 os quais retratam em seus trabalhos esta conexatildeo exegeacutetica existente em Justino
Neste esquema conseguimos visualizar com significativa clareza (de maneira ateacute mesmo
didaacutetica) a notaacutevel relaccedilatildeo dos textos da I Apologia com os textos do Antigo Testamento que
para Justino antecipam a encarnaccedilatildeo de Cristo Segundo a obra do Apologista a realizaccedilatildeo das
Palavras preditas pelos profetas de Israel constitui a conexatildeo com o Logos tornado carne e
concretiza um dos pontos elementares da accedilatildeo de Deus em meio aos homens Partindo da I
Apologia em paralelo com a Primeira Alianccedila vemos
I Apologia Antigo Testamento
Moiseacutes que foi o primeiro dos profetas
disse literalmente ldquoNatildeo faltaraacute priacutencipe
de Judaacute nem chefe saiacutedo de seus
muacutesculos ateacute que venha aquele a quem
estaacute reservado Ele seraacute a esperanccedila das
naccedilotildees amarrando seu jumentinho agrave
vinha e lavando sua roupa no sangue da
uvardquo (JUSTINO I Apologia XXXII 1)
ldquoNatildeo faltaraacute priacutencipe de Judaacute nem mesmo um
chefe de suas entranhas ateacute que venha aquilo
que estaacute guardado para ele ele eacute a expectativa
dos povos Ele amarraraacute seu jumentinho agrave
vinha e o filhote do seu jumento ao ramo ele
lavaraacute sua veste em vinho e o seu manto no
sangue das uvasrdquo589 Gecircnesis 4910-11
E Isaiacuteas outro profeta diz a mesma coisa
com outras palavras ldquoLevantar-se-aacute uma
estrela de Jacoacute e uma flor subiraacute da raiz
de Isaiacute e as naccedilotildees esperaram sobre o seu
braccedilordquo (JUSTINO I Apologia XXXII
12a)
ldquoLevantar-se-aacute um broto da raiz de Jesseacute e um
renovo subiraacute desta raiz [] Naquele dia
haveraacute a raiz de Jesseacute que se levanta para
587 FRANGIOTTI In Subtiacutetulo I Apologia 1995 p 24-26
588 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 115-
117
589 No original ldquoοὐκ ἐκλείψει ἄρχων ἐξ Ιουδα καὶ ἡγούμενος ἐκ τῶν μηρῶν αὐτοῦ ἕως ἂν ἔλθῃ τὰ ἀποκείμενα αὐτῷ
καὶ αὐτὸς προσδοκία ἐθνῶν δεσμεύων πρὸς ἄμπελον τὸν πῶλον αὐτοῦ καὶ τῇ ἕλικι τὸν πῶλον τῆς ὄνου αὐτοῦ πλυνεῖ
ἐν οἴνῳ τὴν στολὴν αὐτοῦ καὶ ἐν αἵματι σταφυλῆς τὴν περιβολὴν αὐτοῦrdquo
135
governar as naccedilotildees nele esperaratildeo as naccedilotildees
e seu repouso seraacute gloriosordquo590 Isaiacuteas 11110
Escutai agora como foi literalmente
profetizado por Isaiacuteas que Cristo seria
concebido por uma virgem Ele diz o
seguinte ldquoEis que uma virgem conceberaacute
e daraacute agrave luz um filho e lhe poratildeo o nome
Deus conoscordquo (JUSTINO I Apologia
XXXIII 1)
ldquoPor causa disto o proacuteprio Senhor vos daraacute
um sinal eis que a virgem conceberaacute e daraacute agrave
luz um filho e tu lhe daraacutes o nome de
Emanuelrdquo591 Isaiacuteas 714
Escutai agora como Miqueacuteias outro
profeta predisse o lugar da terra em que
ele nasceria Assim diz ldquoE tu Beleacutem terra
de Judaacute de modo algum eacutes a menor entre
os priacutencipes de Judaacute pois de ti sairaacute o
chefe que apascentaraacute o meu povordquo
(JUSTINO I Apologia XXXIV 1)
ldquoE tu Beleacutem casa de Efrata eacutes insignificante
em tua existecircncia entre os milhares de Judaacute
poreacutem em teu meio se levantaraacute aquele que
seraacute governante em Israel Tambeacutem as
origens dele satildeo desde o princiacutepio desde os
tempos eternosrdquo592 Miqueacuteias 51
Tambeacutem foi predito que Cristo depois de
nascer viveria oculto aos outros homens
ateacute agrave idade adulta Escutai o que foi dito
antecipadamente a esse respeito Eacute o
seguinte ldquoUm menino nasceu um
pequenino nos foi dado cujo impeacuterio estaacute
sobre os ombrosrdquo ( JUSTINO I Apologia
XXXV 1-2a)
ldquoPorque um menino vos nasceu e um filho vos
foi dado o qual recebeu o governo sobre os
seus ombros E ele seraacute chamado de
Mensageiro do Magniacutefico Conselho pois eu
trarei paz sobre os priacutencipes e sauacutede para
elerdquo593 Isaiacuteas 95
590 No original ldquoκαὶ ἐξελεύσεται ῥάβδος ἐκ τῆς ῥίζης Ιεσσαι καὶ ἄνθος ἐκ τῆς ῥίζης ἀναβήσεται [] καὶ ἔσται ἐν
τῇ ἡμέρᾳ ἐκείνῃ ἡ ῥίζα τοῦ Ιεσσαι καὶ ὁ ἀνιστάμενος ἄρχειν ἐθνῶν ἐπrsquo αὐτῷ ἔθνη ἐλπιοῦσιν καὶ ἔσται ἡ ἀνάπαυσις
αὐτοῦ τιμήrdquo
591 No original ldquoδιὰ τοῦτο δώσει κύριος αὐτὸς ὑμῖν σημεῖον ἰδοὺ ἡ παρθένος ἐν γαστρὶ ἕξει καὶ τέξεται υἱόν καὶ
καλέσεις τὸ ὄνομα αὐτοῦ Εμμανουηλrdquo
592 No original ldquoκαὶ σύ Βηθλεεμ οἶκος τοῦ Εφραθα ὀλιγοστὸς εἶ τοῦ εἶναι ἐν χιλιάσιν Ιουδα ἐκ σοῦ μοι ἐξελεύσεται
τοῦ εἶναι εἰς ἄρχοντα ἐν τῷ Ισραηλ καὶ αἱ ἔξοδοι αὐτοῦ ἀπrsquo ἀρχῆς ἐξ ἡμερῶν αἰῶνοςrdquo
593 No original ldquoὅτι παιδίον ἐγεννήθη ἡμῖν υἱὸς καὶ ἐδόθη ἡμῖν οὗ ἡ ἀρχὴ ἐγενήθη ἐπὶ τοῦ ὤμου αὐτοῦ καὶ καλεῖται
τὸ ὄνομα αὐτοῦ μεγάλης βουλῆς ἄγγελος ἐγὼ γὰρ ἄξω εἰρήνην ἐπὶ τοὺς ἄρχοντας εἰρήνην καὶ ὑγίειαν αὐτῷrdquo
136
E outra vez por meio de outro profeta diz
com outras palavras ldquoEles transpassaram
meus peacutes e minhas matildeos e lanccedilaram sorte
sobre a minha roupardquo (JUSTINO I
Apologia XXXV 5)
ldquoPois muitos catildees me cercaram a assembleia
dos perversos me rodeia traspassaram as
minhas matildeos e os meus peacutes [] Repartiram
entre si as minhas vestes e sobre o meu traje
lanccedilaram sortesrdquo594 Salmos 211719
Citamos tambeacutem a profecia de outro
profeta Sofonias595 que literalmente
profetizou que ele montaria sobre um
jumentinho e desse modo entraria em
Jerusaleacutem Satildeo estas as suas palavras
ldquoAlegra-te muito filha de Siatildeo daacute gritos
filha de Jerusaleacutem Eis que o teu rei vem a
ti manso montado sobre um jumento
sobre um jumentinho filho de um animal
de jugordquo (JUSTINO I Apologia XXXV
10-11)
ldquoRegozija-te muito Filha de Siatildeo proclama
Filha de Jerusaleacutem Eis que o teu rei vem a ti
ele eacute justo e salvador Ele eacute humilde e estaacute
montado sobre um jumentinho um asno
novordquo596 Zacarias 99
Em suma podemos afirmar que em Justino encontra-se uma salutar e liacutempida
cristologia messiacircnica baseada consistentemente no Antigo Testamento597 De maneira
objetiva a descriccedilatildeo que conseguimos desenvolver a partir do texto de Justino nos aponta para
uma consistente elaboraccedilatildeo no qual alguns detalhes de caraacuteter terminante (irrevogaacuteveis)
quanto a funccedilatildeo de serem utilizados como conceitos primazes ndash na tentativa de estabelecer
princiacutepios e valores fundantes ndash se evidenciam por parte e a partir dos apontamentos de caraacuteter
particular que Justino faz agrave pessoa de Jesus Cristo (especialmente na I Apologia) Sem exageros
eacute possiacutevel agregarmos a esta organizaccedilatildeo textual a intenccedilatildeo de apresentar uma proposta de
constituiccedilatildeo messiacircnica segundo um modelo cristoloacutegico em desenvolvimento o qual seguia
594 No original ldquoὅτι ἐκύκλωσάν με κύνες πολλοί συναγωγὴ πονηρευομένων περιέσχον με ὤρυξαν χεῖράς μου καὶ
πόδας [] διεμερίσαντο τὰ ἱμάτιά μου ἑαυτοῖς καὶ ἐπὶ τὸν ἱματισμόν μου ἔβαλον κλῆρονrdquo
595 O Profeta aqui mencionado deveria ser Zacarias e natildeo Sofonias O equiacutevoco possivelmente natildeo eacute do tradutor
mas sim de Justino No texto grego temos σοφονιανSofonian
596 No original ldquoχαῖρε σφόδρα θύγατερ Σιων κήρυσσε θύγατερ Ιερουσαλημ ἰδοὺ ὁ βασιλεύς σου ἔρχεταί σοι δίκαιος
καὶ σῴζων αὐτός πραῢς καὶ ἐπιβεβηκὼς ἐπὶ ὑποζύγιον καὶ πῶλον νέονrdquo
597 HAMMAN Os Padres da Igreja 1985
137
de perto a ortodoxia da eacutepoca que jaacute estava sofrendo inuacutemeros ataques de acircmbito interno e
externo598
Natildeo haacute consenso de que Justino tenha inaugurado esse meacutetodo exegeacutetico599 mas sem
duacutevida eacute um dos que melhor conseguiu contribuir para o desenvolvimento desta temaacutetica na
histoacuteria da teologia dogmaacutetica600 Neste contexto em particular o Apologista passou a ser visto
como um claro orientador eou catalisador dos pressupostos existentes na filosofia grega Ele eacute
o primeiro a conceber o Logos como uma evidecircncia viaacutevel para uma siacutentese teoacuterica
possibilitando deste modo seu envolvimento no cristianismo Essa participaccedilatildeo intelectual
indiscutivelmente se destaca em sua autenticidade autoral a ponto de podermos dizer que
Justino foi o responsaacutevel por lanccedilar ldquoos fundamentos de um humanismo cristatildeordquo601
Este estudo evidenciou o apreccedilo e o temor de Justino pelas Sagradas Escrituras Sua
abordagem leitura e registro das profecias veterotestamentaacuterias constituem um quadro de
profunda responsabilidade e sobriedade por parte do Apologista especialmente naquilo que se
refere agrave descriccedilatildeo e aplicaccedilatildeo de seu conceito sobre o que seria a Verdade sempre focando esse
fim como um resultado da revelaccedilatildeo escrituriacutestica Nesse ponto em especiacutefico a ponderaccedilatildeo de
Xavier nos oferece generosa lucidez ldquosua obra como um todo contribui para explicar a feacute cristatilde
baseada nas Escrituras como a fonte suprema de autoridade cujas profecias podem ser
compreendidas somente pela Graccedila de Deusrdquo602
Por uacuteltimo ainda devemos adotar uma postura clara e objetiva junto a este processo
que em si traz elementos fortemente interpretativos Assim salientamos que na concepccedilatildeo de
Justino era fundamental que o procedimento exegeacutetico de um cristatildeo sempre orientasse seus
leitoresouvintesmeditantes a conhecer e descobrir agrave Verdade O acontecimento que expressava
de forma incondicional que a revelaccedilatildeo Divina se realizou concretiza-se de maneira simples
nos elementos (profecias) que provam que o Logos encarnou603 Estes relatos profeacuteticos
apresentavam as condiccedilotildees ideais tornando-se assim em fatos irrefutaacuteveis para aqueles que
598 DREHER A Igreja no Impeacuterio Romano 1993
599 Para Daniel-Rops Justino utiliza-se do meacutetodo de interpretaccedilatildeo jaacute encontrado em Fiacutelon de Alexandria Nesse
processo partia-se do sentido concreto e histoacuterico do relato (biacuteblico) passando a seguir a busca de se obter
(alcanccedilardescobrir) uma explicaccedilatildeo de espeacutecie simboacutelica existente (implicitamente) nos Textos Sagrados Deste
modo essa ldquodescobertardquo de caraacuteter esoteacuterico tornava-se o objetivo uacuteltimo (principal) a ser alcanccedilado nesse meacutetodo
interpretativo Contudo faltam evidecircncias mais concretas sobre essa relaccedilatildeo e influecircncia autoral sobre Justino
Ver DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 280
600 KELLY Patriacutestica origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da feacute cristatilde 1994
601 BOEHNER GILSON Histoacuteria da Filosofia Cristatilde 1991 p 30
602 XAVIER Justino Maacutertir Um Filoacutesofo em Defesa da Feacute Cristatilde 2014 p 21
603 WALDE Justino Maacutertir Defensor da Igreja 2000
138
nisso criam fazendo com que cristatildeos de todas as classes e niacuteveis viessem a abraccedilar essa ideia
(como conceito) passando a compreender o cristianismo como um valor permanente do
ldquoespiacuterito humano a que a Encarnaccedilatildeo deu o seu verdadeiro sentido e o seu alcancerdquo604 Neste
contexto de impressionante singularidade a citaccedilatildeo de Santos nos permite encerrar com
excepcional qualidade esse item apresentado ldquoTodos os detalhes da histoacuteria de Jesus jaacute estavam
preditos nos profetas do Antigo Testamento Essa eacute a maior prova da superioridade da religiatildeo
cristatilde Por isso na concepccedilatildeo de Justino tudo o que eles (os cristatildeos) dizem eacute a verdaderdquo605
604 DANIEL-ROPS A Igreja do Apoacutestolos e dos Maacutertires 1988 p 279 grifo nosso
605 SANTOS Identidade Cristatilde no Seacuteculo II dC Uma Anaacutelise da I Apologia de Justino Maacutertir 2012 p 117
grifo nosso
139
CONCLUSAtildeO
A presente dissertaccedilatildeo procurou explanar a respeito de uma concepccedilatildeo que se destaca
por sua ordem moral e por seus paracircmetros dogmaacuteticos apresentando-se como uma chancela
na descriccedilatildeo apologeacutetica de Justino Maacutertir Este ponto de valor axiomaacutetico revelado pelo
Apologista torna-se de maneira evidente em uma espeacutecie de mediador de sua mensagem
permeando-se em toda a extensatildeo de um de seus mais conhecidos tratados literaacuterios Assim
reconhecemos que a I Apologia de Justino estaacute repleta de uma empolgante apresentaccedilatildeo do
termo Verdade sendo este substantivo normalmente utilizado pelo autor para uma distinccedilatildeo de
caraacuteter qualitativo sobre a representaccedilatildeo de um novo conjunto humano da realidade
sociorreligiosa do Seacuteculo II
Para Justino evidenciar a Verdade era tambeacutem ldquosetorizaacute-lardquo de alguma maneira dentro
da realidade humana Necessariamente essa postura adotada pelo Apologista acabou por se
definir por meio de sua leitura ativa sobre o estado e as praacuteticas de um grupo do qual ele mesmo
pertencia e do qual se estabeleciam as bases para sua dialeacutetica Logo falar sobre a Verdade
para Justino era falar dos recursos conceituais e praacuteticos vivenciados pelos cristatildeos de seu
tempo
Importa-nos nesta conclusatildeo ressaltar que Justino visava necessariamente qualificar o
ldquoobjetordquo junto a ldquoideiardquo que possuiacutea e defendia e como um bom filoacutesofo procurou obter
explicaccedilotildees satisfatoacuterias que salientassem sua posse daquilo que realmente era verdadeiro Na
esteira desta ideia o pensamento contemporacircneo balizado em argumentos considerados
ldquoortodoxosrdquo ndash mesmo tendo se passado quase vinte seacuteculos ndash ainda redunda com forccedila pois
consegue conceber que se estar na Verdade eacute para o espiacuterito humano possibilitar que as coisas
recebam agrave devida e real importacircncia que elas possuem na realidade
A partir disso na consciecircncia do Apologista tudo o que era produzido pela feacute cristatilde ndash
sendo ela assumida como um meio constitutivo de vida e praacutetica ndash possibilitava o
desenvolvimento de um senso de valor inesgotaacutevel sobre aquilo que se pode minimamente
relacionar como sendo o real o lugar onde a Verdade se ldquohospedardquo sendo que esta existecircncia
estaacute soberanamente ligada a uma realidade superiortranscendente ou seja esse real eacute Deus
Logo estar na Verdade seraacute sempre reconhecer a soberana realidade de Deus Esta
realidade percebida de forma geral pela noccedilatildeo de se possuir a Verdade eacute a realidade de Deus
manifestada pois aquilo que os cristatildeos vivem eacute a realidade de Deus entre noacutes Assim a
Verdade seraacute confessar a infinita majestade e santidade divinas por meio do legado de Deus
140
orquestrado pelos cristatildeos Nesta linha por meio dos princiacutepios metodoloacutegicos de Justino
consegue-se sintetizar com eficaacutecia e transparecircncia os resultados aos quais o Apologista
chegou como tambeacutem compreende-se melhor sua finalidade apologeacutetica que aponta com
clareza para uma identificaccedilatildeo que conforma a ideia (Verdade) ao objeto (Jesus Cristo) o dito
(novo Modus Vivendi) ao feito (Praxis Fidei) o anunciado (Profecias Messiacircnicas) ao ocorrido
(Encarnaccedilatildeo) em seu sentido absoluto
O problema que esta pesquisa levantou objetivamente foi qual o sentido do vocaacutebulo
ldquoVerdaderdquo empreendido de forma maximal por Justino na sua primeira obra apologeacutetica A
partir disto quatro capiacutetulos foram desenvolvidos na busca de se estabelecer um caminho
central e loacutegico para a soluccedilatildeo dessa questatildeo
O primeiro capiacutetulo fez uma breve apresentaccedilatildeo de Justino sua vida seu ministeacuterio
sua obra e seu contexto histoacuterico De maneira objetiva apresentamos um resumo biograacutefico da
pessoa de Justino em seu meio social e histoacuterico Procurou-se tambeacutem apresentar traccedilos
importantes para a compreensatildeo do cenaacuterio que elaborou nossa argumentaccedilatildeo central onde o
Pai Apologista Justino foi apresentado e a obra base desta pesquisa foi examinada de modo
literaacuterio dentro da necessidade requerida ndash relaccedilatildeo na qual ainda se agregou a perspectiva
cultural de Justino e por consequecircncia esta nos conduziu a uma abordagem sobre sua formaccedilatildeo
filosoacutefica
Mesmo natildeo sendo um dos pontos de sustentaacuteculo para a estrutura desta pesquisa em
nossa opiniatildeo o fator mais importante deste primeiro capiacutetulo certamente eacute o fenocircmeno do
martiacuterio entre os cristatildeos Fora do acircmbito teoloacutegico este traacutegico processo poderia ser
interpretado de forma estranha quando apresentado como um elemento determinante e ateacute
mesmo uacutetil enquanto via para que os natildeo-cristatildeos viessem a se converter e assim conhecerem a
Verdade Desta forma compreendemos que o processo de martiacuterio dos cristatildeos como um fato
histoacuterico foi influente na concepccedilatildeo e fundamental na constituiccedilatildeo do desenvolvimento do
ideaacuterio de Justino O Apologista por meio de sua obra nos oferece a niacutetida impressatildeo de ser um
habilidoso comentador da revelaccedilatildeo escrituriacutestica tambeacutem um autecircntico conhecedor da vida
espiritual mas acima de tudo demonstra ser um irredutiacutevel defensor da crenccedila que possuiacutea
selando sua obra ministeacuterio e vida com o proacuteprio sangue derramado O martiacuterio cristatildeo foi eacute e
continuaraacute sendo um dos casos mais misterioso e emblemaacutetico da histoacuteria da civilizaccedilatildeo
humana
O segundo capiacutetulo falou sobre o novo modus vivendi orquestrado pelos cristatildeos onde
se pode de maneira sinteacutetica observar as praacuteticas do contexto social de Justino apresentando e
clarificando o que eram os haacutebitos cristatildeos em contraste com o cotidiano da cultura greco-
141
romana Nesse processo estabeleceu-se uma descriccedilatildeo de cunho analiacutetico que procurou seguir
uma loacutegica encontrada em Justino o qual pocircs em praacutetica nossa leitura sobre o meacutetodo dialeacutetico
e empiacuterico do Apologista O capiacutetulo apresenta ldquoa nova identidaderdquo surgida junto ao cenaacuterio
sociorreligioso da eacutepoca o cristianismo Aleacutem disto definir aqueles que natildeo compunham esse
grupo de feacute ndash os Judeus e os Gentios ndash tornou-se tambeacutem uma tarefa necessaacuteria Por isso foi
indispensaacutevel apresentar os criteacuterios que para Justino demonstravam a ordem sistemaacutetica de um
grupo que se distinguia e separava dos demais Para Justino tratava-se da praxis fidei Adversus
Iniquitatem ldquoa praacutetica da feacute contra a iniquidaderdquo um realce com tonalidades absolutamente
opostas que apresentava um claro e inevitaacutevel ambiente de separaccedilatildeo entre os grupos
Deste modo esta segunda divisatildeo da pesquisa nos conduziu a uma inserccedilatildeo de postura
paradoxal para com alguns haacutebitos e assuntos humanos que no periacuteodo ocupavam tanto o
acircmbito privado quanto puacuteblico Assim algumas provas factiacuteveis passaram a ser descritas como
sentenccedilas de um novo modus vivendi ndash proposto por Justino ndash na conjuntura sociorreligiosa do
Seacuteculo II fato altamente desafiador o qual definimos em sentenccedilas classificadas como
teologais deterministas e puristas de acordo com suas consequecircncias praacuteticas Aqui salientou-
se o iniacutecio das distinccedilotildees que descreviam a certeza de haver um estado manifesto e claro do
que era a Verdade para Justino
O terceiro capiacutetulo retratou a filosofia em Justino tratando a respeito de sua influecircncia
e seu legado nesse seguimento O desenvolvimento desse capiacutetulo partiu de um formal apelo
desenvolvido pelo proacuteprio Apologista no capiacutetulo XXVIII da I Apologia para o uso da razatildeo
como um elemento determinante para o reconhecimento da Verdade oriunda da revelaccedilatildeo
Divina Um exame introdutoacuterio sobre o capiacutetulo XXVIII abriu o caminho para o entendimento
do que eacute filosofia para Justino A partir disto explicitou-se o filoacutesofo Justino evidenciando
suas principais influecircncias filosoacuteficas oriundas do estoicismo e do meacutedio platonismo aleacutem de
apresentar um sinteacutetico esboccedilo do autecircntico conceito de Logos encontrado em nosso autor
filoacutesofo-teoacutelogo
Todavia o aacutepice desta seccedilatildeo encontra-se em seu uacuteltimo item onde se justificou o que
Justino almejava com a citaccedilatildeo ldquoSe algueacutem natildeo crecirc que Deus se preocupe com essas coisas
(uso da razatildeo)rdquo606 O Apologista realccedila de uma forma quase ldquopalpaacutevelrdquo sua compreensatildeo de
como se concebia naturalmente a feacute em Jesus Cristo Partindo do fato de que a razatildeo eacute um
recurso exclusivamente humano Justino entendia que apenas nisso estavam condicionadas
todas as possibilidades reais do autecircntico Logos ser recebido e concebido pelos homens o que
606 JUSTINO I Apologia XXVIII 4 grifo nosso
142
os levava a verdadeira filosofia e os afastava decisivamente dos equiacutevocos e enganos praticados
pelos democircnios
O quarto e derradeiro capiacutetulo deste estudo salienta o que Justino considera o ponto
alto da revelaccedilatildeo por ele recebida o cumprimento das profecias messiacircnicas e as consequecircncias
para compreender o que Justino considera como sendo a Verdade
Iniciamos com uma sinteacutetica poreacutem objetiva descriccedilatildeo dos elementos socioculturais
de acircmbito religioso que desde a Antiguidade ateacute os dias de Justino formaram e identificaram a
figura de um Messias na cultura judaica Em seguida analisamos a revelaccedilatildeo das profecias
messiacircnicas do Antigo Testamento na visatildeo de Justino referentes a pessoa de Jesus Cristo
Finalizamos este capiacutetulo ratificando o conceito que definimos como principal para
Justino em sua descriccedilatildeo apologeacutetica o qual apresentava a Verdade ao mundo O modo e o
sentido que o Apologista procurava dar agrave concepccedilatildeo central de sua feacute passava necessariamente
pela identificaccedilatildeo entre o Logos dos filoacutesofos com o personagem messiacircnico preconizado pelos
profetas do Antigo Testamento Vimos que esse ser que havia sido reconhecido pelos filoacutesofos
como o Logos tambeacutem havia sido profetizado pelos servos de Deus A providecircncia Divina
levou a humanidade ao ponto alto desta histoacuteria quando o Logos profetizado se encarnado
Logo as profecias se cumpriram Assim concluiacutemos que este cenaacuterio e seus casos tornaram-se
para Justino um elemento real que evidenciava de maneira inquestionaacutevel o que era a Verdade
em sentido absoluto
Por fim eacute oportuno registrar a pertinente e categoacuterica postura do Apologista em aceitar
o cristianismo como ldquoa verdadeira razatildeordquo607 Justino compreendeu que a feacute cristatilde tinha em si
alguns pontos de caraacuteter deliberativo e proposital que consequentemente se estabeleciam nas
vidas que se estruturavam sobre esses preceitos utilizando-os de forma resolutiva Aqui cabe
ressaltar que para uma correta anaacutelise de Justino como autor eacute necessaacuterio se utilizar de medidas
efetivas que amparem o uso da razatildeo para os fins que o Apologista entendia serem ordenados
por Deus Nisso salienta-se a compreensatildeo jaacute atestada no ideaacuterio de Justino de natildeo haver
acepccedilatildeo do recurso da razatildeo a nenhum homem pois todos aqueles que foram criados agrave imagem
e semelhanccedila de Deus podiam ser instruiacutedos desse modo desde as mentes mais simples as mais
capacitadas
Importa-nos ainda registrar que outros aspectos de relevacircncia para esta pesquisa
poderiam ter sido tratados visando um maior aprofundamento desta temaacutetica e suas possiacuteveis
variaccedilotildees De forma praacutetica podemos citar as seguintes observaccedilotildees propor uma maior ecircnfase
607 JUSTINO I Apologia XLIII 6b
143
na questatildeo do martiacuterio cristatildeo como elemento habilitador na construccedilatildeo do conceito da Verdade
como princiacutepio moral e dogmaacutetico uma mais detalhada descriccedilatildeo do conceito Logos tanto para
a cultura helecircnica quanto para os cristatildeos do Seacuteculo II abordar sobre o conceito elaborado por
Justino de Jesus Cristo ser o mestre dos cristatildeos608 referindo-se ao Messias como o condutor
pleno de toda verdadeira revelaccedilatildeo Divina em detrimento aos mitos criados pelo helenismo
oferecer uma pormenorizada anaacutelise sobre a forccedila ilocucionaacuteria desses atos e discursos
apologeacuteticos Aleacutem disso outros pontos significativos poderiam ter sido abordados na tentativa
de se construir de forma mais completa esse importantiacutessimo cenaacuterio do cristianismo histoacuterico
Contudo essa ampliaccedilatildeo possivelmente ultrapassaria os limites propostos desta pesquisa
provavelmente poluindo sua intenccedilatildeo central
A abordagem desta dissertaccedilatildeo demonstrou que na I Apologia Justino revela e retrata
a sua concepccedilatildeo do que eacute ser cristatildeo e viver na Verdade O Apologista transparece de forma
intensa sua postura em transmitir essa maacutexima que natildeo era simplesmente verossiacutemil em seu
entendimento Eacute fato que essa demonstraccedilatildeo tambeacutem visava proteger e resgatar seu povo de
um cenaacuterio hostil salientando por meio de sua postura uma clara separaccedilatildeo de valores e
preceitos
Vimos que as vicissitudes do tempo natildeo seriam capazes de alterar o objeto e as coisas
que caracterizavam sua posiccedilatildeo que estava plenamente balizada e sustentada por meio de sua
dialeacutetica Isso nos impressiona porque para quem procura entender este testemunho sobre a
Verdade os livros de Justino nunca envelhecem aleacutem disso quase vinte seacuteculos depois os
textos desse notaacutevel cristatildeo ainda reverberam o som do eco causado por nossos vazios que
precisam ser preenchidos pelos conceitos princiacutepios e valores que natildeo pertence a este mundo
Por essa razatildeo ldquodialogarrdquo com Justino na atualidade eacute algo importantiacutessimo e ateacute mesmo
fundamental
Em resumo para Justino a uacutenica via para possuir a Verdade era ser cristatildeo o que
equivale a crer e professar sobre Aquele que prometido pelos antigos profetas de Israel e
percebido pelos antigos filoacutesofos gregos veio em carne para apresentar agrave razatildeo humana os
meios de como se proceder ldquoafirmando a Verdaderdquo609
608 Ver JUSTINO I Apologia XIII 3 XIX 6 XXI 1-6
609 JUSTINO I Apologia XLIII 2a grifo nosso
144
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