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  • 8/12/2019 DIFERENA E REPETIO Silvio Ferraz

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    DIFERENA E REPETIO: A POLIFONIA SIMULADA NASEQUENZA VII PARA OBO, DE LUCIANO BERIO

    Silvio Ferraz

    Intro!"#o

    As Sequenzas para instrumento solo do compositor Luciano Berio compem semdvida um ponto de referncia fundamental para a escrita instrumentalcontempornea.

    Numa srie de dez peas! aparentemente escritas espontaneamente! de improviso! ocompositor encerra uma an"lise #astante pertinente da $ist%ria da composi&o parainstrumento solo na msica ocidental. Nessas peas a lin'ua'em virtuos(stica claramente revisitada.

    )otando cada uma dessas peas de uma pulsa&o de acontecimentos quaseininterrupta! procedimentos os mais diversos perse'uem o *o'o esquecido da tens&o edo rela+amento tonais. Nasce da( o aspecto or'nico quase fisiol%'ico dessas peas!onde aflora a constante alternncia entre equil(#rio e desequil(#rio! espera ereso,u&o.

    B$%&'B(r)o: P$rt)t$*, S!)t(*+S(!(n-$*. O )nt!)to /o0)12n)%o

    -ntre os diversos fatores que orientaram o compositor Luciano Berio ao compor assuas Sequenzas est" sem dvida a inten&o de desenvolver polifonicamenteprocedimentos aparentemente mon%dicos/0.

    1 seu 2ideal3 eram as melodias polif4nicas de Bac$50! onde com o uso deinstrumentos! ou mesmo de discursos mon%dicos! simularia ent&o uma te+turapolif4nica.

    6ara a realiza&o deste intuito as respostas estavam *ustamente no 2ideal3 de Berio.

    Nas o#ras de Bac$! mais precisamente em suas 6artitas para violino solo e Suites paravioloncelo! a te+tura de 2melodias polif4nicas3 #astante clara.

    Nessas peas! as melodias s&o facilmente identific"veis. Funcionalmente apresentam7se com as mesmas caracter(sticas dos contrapontos realizados em peas paracon*untos instrumentais polif4nicos. )istri#u(das em re'ies espec(ficas e delimitadasda tessitura! as diversas vozes dividem7se em su*eitos! respostas! contrapontos! #ase$arm4nica! etc. )e forma n&o restritiva! mas determinante! ao 'rave ca#e a fun&o dequalificar $armonicamente a pea e ao a'udo e mdio sua condu&o mel%dica linear.

    Assim! dentro dos padres mel%dicos e $arm4nicos do Barroco! Bac$ 'arante ale'itimidade de suas 2melodias polif4nicas3 de forma #astante particular sem noentanto fu'ir a uma lin'ua'em coletiva e pertinente 8 sua poca.

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    Or3$n)%)$( n#o ton$0

    Berio n&o dispe dos artif(cios de Bac$. )istante de uma composi&o musical detradi&o tonal! suas o#ras dispem de um universo referencial que a princ(pio a

    pr%pria o#ra.

    9ada nota tra#al$ada enquanto (cone da pr%pria composi&o! uma auto7refernciaconstante. 1 compositor articula7se numa lin'ua'em $arm4nica e mel%dicapraticamente individual! onde os elementos su#*etivos s&o sempre o#*etivados! deforma que para cada componente da pea e+iste uma raz&o estrutural e formaldeterminante.

    1 compositor 'arante a audi&o de suas poli7melodias tornando claros aqueleselementos que participam do con*unto de foras que d" movimento 8 pea.

    :esmo estando li'ada a uma lin'ua'em composicional onde a forma e a estrutura s&ocondies fundamentais para a an"lise! a compreens&o de sua dinamicidade polif4nicaest" voltada para uma vivifica&o do or'nico. As an"lises formal e estrutural n&o s&opertinentes 8 compreens&o desse movimento interno 8 pea.

    )e al'uma maneira! Berio faz uso de uma lin'ua'em coletiva e comum 8 sua cultura.Assim como Bac$! capta os artif(cios necess"rios para 'arantir 8s suas Sequenzascaracter(sticas polif4nicas! especialmente naquelas escritas para instrumentosmon%dicos.

    D)1(r(n"$ ( r(/(t)"#o

    Num arti'o de /;...o ouvinte encontra! ?...? na contempla&o de ordem lin'u(stica! uma confirma&oda $armonia 'eral le'itimada por uma lin'ua'em comum! mas n&o escuta a forma. A@formation de la forme ?...? n&o *amais levada em conta! ao invs disso! perce#eapenas os artif(cios do suporte formal consonncia?dissonncia! tens&o?rela+amento!espera?resolu&o tornando cada vez mais a'udo o dese*o de um falso equil(#rio3C0.

    )ada tal compreens&o da percep&o que o te+to de Berio apresenta! pode7se acreditarna pertinncia de uma an"lise das Sequenzas sem a#ordar a forma musical. As

    dualidades relatadas enquanto 2artif(cios do suporte formal3 praticamente remetem 8no&o primeira de diferena e repeti&o. )a( o dese*o do equil(#rio a repeti&o= aassocia&o de elementos0 e sua frustra&o diferenas= a intensidade com que novoseventos aparecem0D0.

    6ara alm de um nivelamento cultural da percep&o! a diferena e a repeti&oqualificam enfim a pr%pria no&o de referncia. Assim! na o#ra de Berio! o que antesera qualidade da percep&o $umana transmuta7se em fundamento da composi&omusical. )istante do sistema de referncias tonal suas estruturas $arm4nicas!mel%dicas e formais0! as Sequenzas tm na diferena e na repeti&o o seu elementoor'nico! e no 2dese*o de um falso equil(#rio3 o ponto de apoio necess"rio para 'erar a

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    sensa&o de suas 2polifonias3.

    S(!(n-$ VII

    A Sequenza E,, per o#oe ilustra claramente esses procedimentos. A diferena e arepeti&o de seus elementos sonoros e musicais s&o constantes e fundamentam aspr%prias caracter(sticas da pea como= o *o'o entre cont(nuo e descont(nuo aimpress&o de uma tens&o crescente na pea a te+tura em processo de cria&o erecria&o a sensa&o polif4nica intencionada pelo compositor.

    A r(/(t)"#o

    -ssa Sequenza introduzida por uma nota referncia! o Si natural! que se repete aolon'o da pea G-+. ,H. A cada repeti&o esta nota se atualiza em pequenasdesi'ualdades dada suas relaes com os diversos momentos sonoros que a pea

    desenrola.

    9om novas repeties as diferenas se multiplicam. -ventos sin'ulares vari"veiscontrapem7se constantemente 8 nota inicial que! por sua vez! tam#m se eleva 8condi&o de evento musical! o nico evento constante da pea G-+. ,,H.

    9onstituem7se ent&o as referncias para a escuta polif4nica que se constr%i.

    -+. , 9ompassos 5! C e D lin$a /0. 9omo uso de ataques e intensidades diferentes! o#tm7se!

    numa mesma altura! o princ(pio elementar para simular uma te+tura polif4nica.

    -+. ,, )ois e+emplos de simula&o polif4nica onde o Si natural desempen$a o papel

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    de evento constante= a0 compassos C e D lin$a /50 #0 compassos I! ; e /J lin$a I0

    A (*%!t$ /o0)12n)%$

    Na #usca do 2falso equil(#rio3 o ouvinte se v diante de uma lin$a praticamentefra'mentada e descont(nua. No *o'o constante de diferenas e repeties cadaelemento torna7se mltiplo. 9ompem7se ent&o eventos os mais diversos. Alinearidade dos acontecimentos evitada e assim as poss(veis melodias seem#aral$am. As repeties n(vel associativo0 e as diferenas contraposi&o deeventos0 tanto evidenciam quanto ocultam lin$as mel%dicas aparentementeintercaladas G-+. ,,,aH. 6erse'ui7las torna7se quase que frustrante! ou mel$or! torna7se uma rica e+perincia de mltiplas escol$as onde o que se #usca sempre evitadoG-+. ,,,#H.

    -+. ,,,a e # )uas interpretaes do *o'o polif4nico de um mesmo momento compassos D a

    lin$a /J0. Note7se que o nico evento idntico! nos dois e+emplos! o do Si natural reiteradoevento a0.

    A maneira com que aparecem os elementos quase sempre constantes! tanto isolaquanto li'a fra'mentos de eventos os mais diversos.

    A presena de Bac$ patente. 6orm! se nas 6artitas e Suites de Bac$! os elementossonoros est&o um em fun&o do outro! na Sequenza E,, eles apenas se contrapem. 1que era em Bac$ uma soma de elementos musicais torna7se em Berio umamultiplica&o de eventos.

    9omo foi visto antes! a similaridade te+tural dos elementos sonoros empre'ados na

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    pea de Berio a#re 8 escuta a possi#ilidade de que se*am encadeados ou n&o emeventos diversos. 9ada pequeno 'rupo de notas torna7se si'nificativo qualificando7seem evento. 1 contraste intenso e os momentos 'eralmente curtos afastam'radativamente a possi#ilidade de 'randes lin$as mel%dicas intercaladas. 6roliferam

    ent&o microcosmos que se intensificam num 'rande crescendo! conduzindo a peapara um ponto em que cada nota! isolada! torna7se um evento. -ventos sin'ulares emmeio ao intenso *o'o de contrastes que caracteriza a pea G-+. ,EH. Sur'e da( apossi#ilidade de se o#ter uma sensa&o polif4nica. )a tentativa de li'ar! or'anizar oseventos da necessidade de equivaler ou diferenciar esses padres 2patterns30sonoros! aflora a 2melodia polif4nica3 de Berio.

    -+. ,E -+emplo de um dos momentos em que cada nota pode ser considerada enquanto evento

    sin'ular incompleto compassos D e K! lin$a /C0.

    Contr$*t(*

    Na Sequenza E,, a tessitura! as formas de ataque! a tens&o musical! s&o tra#al$adasde maneira a sempre evidenciar os eventos como tais G-+.EH. )iverso do uso que Bac$fez desses parmetros em suas peas! aqui n&o se reservam uma ou outra re'i&o datessitura! formas de ataque ou envelopes dinmicos a al'uns poucos eventos lineares.

    -+cetuando7se o Si natural com que se inicia a pea! nen$um outro elemento apresentado como uma das vozes de um contraponto! di'amos! Bac$iano. 1s eventoscaracterizam7se apenas por suas diferenas. )e cada nova repeti&o nascem novasdiferenas sendo poss(vel! ao lon'o da pea! associar os mais diversos eventos ouelementos sonoros num contraponto polif4nico simulado. 1s parmetros citados s&oarticulados sempre de modo a 'erar o contraste! a que#rar a continuidade doseventos! de maneira que o nmero destes se multiplique no *o'o de diferenas erepeties que permeiam a pea.

    N&o se tem aqui a ilus&o de eventos intercalados. 9omo *" foi dito! estes aparecem

    isolados! li'ados por pura falta de li'a&o! o que d" tam#m a sensa&o de uma

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    tens&o crescente a quem ouve a pea.

    -+. E a0 -ventos qualificados por diferenas de intensidades e forma de ataques compassos


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