*
Repetições, retomadas e deslocamentos no discurso de/sobre solidariedade1
André Luís Campos Vargas2
Introdução
Este trabalho mobiliza alguns elementos constitutivos de nosso projeto de
dissertação, no qual temos como objetivo principal analisar o que chamamos
discurso de/sobre o par solidariedade/economia solidária. Esse discurso manifesta-
se pelo Projeto Esperança/Cooesperança (PEC), sediado em Santa Maria (RS), e
está vinculado (inicialmente) à realização de um evento anual denominado Feira do
Cooperativismo (FEICOOP). Os elementos constitutivos dessa discursividade que
mobilizamos são, além dos discursos de/sobre, o interdiscurso, a paráfrase e a
polissemia.
1 Este texto vincula-se ao Projeto de Dissertação intitulado Gramatização de saberes em rede: Solidariedade aprendente e ensinante, desenvolvido sob orientação da Prof.ª Dr. Verli Petri (UFSM/PPGL). 2 Professor do SENAC, Santa Maria (RS); Mestrando em Letras/Estudos Linguísticos – PPGL -UFSM - Laboratório Corpus.
Repetições, retomadas e deslocamentos no discurso de/sobre solidariedade André Luís Campos Vargas
Tecnologias de linguagem e produção do conhecimento
Coleção HiperS@beres | www.ufsm.br/hipersaberes | Santa Maria | Volume II | Dezembro 2009
64
Para tanto, buscamos aporte teórico-analítico na Análise de Discurso (AD),
especialmente em trabalhos de Michel Pêcheux e Eni Orlandi. Para este artigo,
propomo-nos a analisar, ainda de modo preliminar, cartazes da Feira do
Cooperativismo (1ª a 7ª edições), quanto às imagens e enunciados que se repetem
e se modificam, que permanecem e/ou ganham novo estatuto.
Nosso estudo visa a, sobretudo, compreender alguns processos discursivos
encadeados, aparentemente, como resistência à globalização, uma vez que a
FEICOOP objetiva, entre outras coisas, que seus participantes (feirantes)
empreendam práticas que se sobreponham à exclusão social e produtiva.
Breve história da FEICOOP
O Projeto Esperança3, vinculado ao Banco da Esperança da Diocese de
Santa Maria (RS), é um experiência “de geração de renda baseada nos princípios da
economia solidária, onde a ordem dominante é invertida e o trabalho é posto à frente
do capital” (Cigana, 2007, p. 55). O Projeto Esperança, coordenado desde sua
criação pela Irmã Lourdes Dill, foi idealizado nos anos de 1980, pelo então Bispo
Diocesano de Santa Maria (RS), Dom José Ivo Lorscheiter, que instigava a Cáritas
(RS) a criar e desenvolver os Projetos Alternativos Comunitários (PACs), como
formas de construir o desenvolvimento solidário e sustentável perante urgências
sociais como o desemprego, o êxodo rural, a fome, a miséria e a exclusão.
Em 1989, surge a Cooesperança - Cooperativa Mista dos Pequenos
Produtores Rurais e Urbanos, que congrega e mobiliza grupos organizados com
vistas à comercialização direta da produção oriunda dos empreendimentos solidários
do campo e da cidade.
Em janeiro de 2003, foi criada a Teia Esperança, a rede dos
empreendimentos solidários associados ao Projeto Esperança/Cooesperança, que
conta com 40 espaços fixos de comercialização, e tem por objetivo articular os
Empreendimentos Solidários, associados ao Projeto Esperança/Cooesperança.
3 Para elaborarmos este breve histórico acerca do Projeto Esperança (Cooesperança), valemo-nos dos dados divulgados no site do projeto http://www.esperancacooesperanca.org.br, e em matérias publicadas em: http://consolbrasil.com.br/index/index.php?option=com_content&task=view&id=13&Itemid=30 e em: http://desafios2.ipea.gov.br/sites/000/17/edicoes/37/pdfs/rd37not08.pdf acesso em 03/10/2009.
Repetições, retomadas e deslocamentos no discurso de/sobre solidariedade André Luís Campos Vargas
Tecnologias de linguagem e produção do conhecimento
Coleção HiperS@beres | www.ufsm.br/hipersaberes | Santa Maria | Volume II | Dezembro 2009
65
A partir de então, estabeleceu-se uma melhor distribuição desde o local de produção
até os Pontos de Comercialização Direta em Santa Maria e região.
Os eixos que mobilizam o modo de atuação do Projeto
Esperança/Cooesperança e a Teia Esperança são especialmente: a autogestão, a
agroindústria e a agricultura familiar, a agroecologia, o trabalho dos catadores/as, o
artesanato, a economia popular solidária, a comercialização direta, o consumo justo,
ético e solidário. Tais eixos são, sobretudo, pautados no princípio do
desenvolvimento sustentável e são permeados por um sentido que resiste à lógica
do poder e do mercado.
Atualmente, o Projeto Esperança organiza em torno de 230 empreendimentos
solidários urbanos e rurais, beneficiando aproximadamente 4,5 mil famílias de 30
municípios.
Mas é em 1994 que acontece a 1ª FEICOOP sob o fio condutor da
solidariedade, e tendo como eixos a organização, a cooperação e a construção
participativa, como meio de ser conquistada uma melhor qualidade de vida, em
contraponto à comercialização capitalista baseada nas relações de produção com
finalidade precípua do lucro. A 1ª FEICOOP, via divulgação em cartazes que reúnem
imagens e enunciados, é o nosso ponto de partida, pois nos fornece a materialidade
que analisamos.
De fato, é sobre esse cenário que lançamos nosso olhar com o intuito de tê-lo
como determinante do sentido, pois pensamos que sob tais condições (sociais,
econômicas, ideológicas) são produzidos determinados efeitos de sentidos e não
outros.
Coisas a saber, o novo do velho
No presente artigo, explicitaremos algumas das noções da Análise de
Discurso (AD) que se relacionam aos nossos objetivos e que serão mobilizadas nas
análises. Para tanto, começaremos pelo conceito de interdiscurso que é concebido
por Pêcheux como sendo um “todo complexo” que abriga uma multiplicidade de
saberes (discursivos) correlacionados a um lugar de sentido, do qual “algo fala”
sempre “antes, em outro lugar e independentemente” (Pêcheux, 1997, p. 162).
Repetições, retomadas e deslocamentos no discurso de/sobre solidariedade André Luís Campos Vargas
Tecnologias de linguagem e produção do conhecimento
Coleção HiperS@beres | www.ufsm.br/hipersaberes | Santa Maria | Volume II | Dezembro 2009
66
Já em Orlandi (1999, p. 31), temos que o interdiscurso “torna possível todo
dizer e (...) retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do
dizível, sustentando cada tomada da palavra”. Ou seja, o interdiscurso é concebido
também como uma forma de memória (social ou coletiva) a qual vincula cada sujeito
à sua ‘realidade’ por um sistema de evidências e de significações que atualiza
(presentifica) o dizer.
É na memória que se inscrevem os sujeitos e os sentidos, mostrando-nos as
coisas a saber, não como uma elaboração de aprendizagem, mas com um
deslizamento de sentidos metafóricos que são produzidos nos discursos. Dessa
forma, podemos dizer que não há sentidos literais, prontos, mas há, sim,
possibilidades de interpretação, já que os sentidos são da ordem do simbólico e
constituem-se em processos discursivos, na relação entre interlocutores.
Ainda para refletirmos sobre o interdiscurso, podemos compreendê-lo em seu
funcionamento através da relação entre paráfrase e polissemia: entre o “mesmo” e o
“diferente”. A paráfrase reitera o “mesmo”, a memória, o dizível, enquanto que a
polissemia admite, permite, abre-se para o “outro”, e temos o deslocamento dos
sentidos, ruptura de processos de significação (Cf. Orlandi, 1999). Nessa relação, a
memória acaba estruturando-se entre a paráfrase e a polissemia, podendo vir a
produzir efeitos outros, que não os esperados, efeitos metafóricos, promovendo a
ressignificação, a transferência de sentidos. Isso nos remete para o que é externo às
condições de produção, constituído pela ideologia e pela historicidade, mas que é
também constitutivo do processo.
Importa trazer, para esse trabalho, a noção de ideologia, pois consideramos
(cf. Pêcheux, 1997) que não há realidade sem ideologia, qual seja a impressão de
que a produção do sentido só pode ser “este” e que o sujeito é a origem dos
sentidos que produz. Dessa forma, pode-se concordar que são as imagens que
permitem que as palavras “colem” às coisas (cf. Orlandi, 1999). O que nos leva a
pensar no gesto de interpretação como lugar em que tanto se inscrevem a repetição,
como efeito do já-dito, da historicidade, no domínio da memória institucional
(arquivo); quanto a repetição que possibilita os diferentes sentidos, no domínio dos
efeitos da memória (interdiscurso).
Repetições, retomadas e deslocamentos no discurso de/sobre solidariedade André Luís Campos Vargas
Tecnologias de linguagem e produção do conhecimento
Coleção HiperS@beres | www.ufsm.br/hipersaberes | Santa Maria | Volume II | Dezembro 2009
67
Imagens em movimento (de sentidos)
Tendo em conta essas noções rapidamente explicitadas, arrolamos a seguir
os objetos de nossa atenção, os cartazes de sete edições da FEICOOP, partindo da
primeira, conforme segue:
Im14- Cartaz da 1ª Feicoop - 1994 Im2 - Cartaz da 2ª Feicoop - 1995
4 Im = Imagem.
Repetições, retomadas e deslocamentos no discurso de/sobre solidariedade André Luís Campos Vargas
Tecnologias de linguagem e produção do conhecimento
Coleção HiperS@beres | www.ufsm.br/hipersaberes | Santa Maria | Volume II | Dezembro 2009
68
Im3 - Cartaz da 3ª Feicoop - 1996 Im4 – Cartaz da 4ª Feicoop - 1997
Repetições, retomadas e deslocamentos no discurso de/sobre solidariedade André Luís Campos Vargas
Tecnologias de linguagem e produção do conhecimento
Coleção HiperS@beres | www.ufsm.br/hipersaberes | Santa Maria | Volume II | Dezembro 2009
69
Im5 – Cartaz da 5ª Feicoop – 1998 Im6 – Cartaz da 6ª Feicoop - 1999
Repetições, retomadas e deslocamentos no discurso de/sobre solidariedade André Luís Campos Vargas
Tecnologias de linguagem e produção do conhecimento
Coleção HiperS@beres | www.ufsm.br/hipersaberes | Santa Maria | Volume II | Dezembro 2009
70
Im7 - Cartaz da 7ª Feicoop – 2000
Fonte de Im1 a Im7: Revista do histórico dos 15 Anos da Feira de Santa Maria: Uma experiência aprendente e ensinante, 2008.
O discurso sobre e o discurso de
Consideraremos, nesta análise inicial, a assertiva de que o discurso sobre é
formulado desde uma memória constitutiva, oferecendo uma gama de formulações,
doutrinamentos, veiculados, muitas vezes, por uma voz de autoridade e de verdade
que parece harmonizar as diferentes vozes dos discursos de. O discurso sobre é,
ainda, uma das formas decisivas da institucionalização dos sentidos, uma vez que
engendra uma espécie de mecanismo controlador dos sentidos, um funcionamento
Repetições, retomadas e deslocamentos no discurso de/sobre solidariedade André Luís Campos Vargas
Tecnologias de linguagem e produção do conhecimento
Coleção HiperS@beres | www.ufsm.br/hipersaberes | Santa Maria | Volume II | Dezembro 2009
71
incessante para manter um sentido literal, um efeito de direcionamento a um centro,
a um alvo visível e indiscutível.
A fim de compreendermos como se formula esse discurso sobre
solidariedade, recortamos enunciados (E) em que o nome solidariedade figura, bem
como outros que o circundam e o significam. O primeiro deles, que constitui o corpus
de análise, é o enunciado que aparece envolvendo a parte superior do emblema do
Projeto Esperança Cooesperança (Im4 a Im6), qual seja:
E1 - A transformação pela solidariedade.
Por E1, podemos dizer que ‘solidariedade’ é uma designação bastante
difundida, em circulação na atualidade, inscreve-se em uma rede de sentidos que
nos conduz a pensar em união, humanismo, fraternidade, mão estendida, apoio,
reciprocidade, cooperação, assistência moral e/ou financeira, enfim, há todo um
elenco de sentidos que enfeixam processos parafrásticos, nos quais há sempre algo
que se mantém. Ao passo que, ainda em E1, o nome “transformação” enseja um
funcionamento da polissemia, na qual há um deslocamento, uma ruptura nos
processos de significação, um movimento possível para um lugar outro (poderíamos
antecipar em nossa reflexão inicial, o deslocamento de uma economia sob o jugo do
capitalismo, para uma economia solidária/cooperativismo alternativo).
No entender de Mariani (2001), o processo de produção do discurso (ou de
sentidos) da solidariedade articula-se em uma filiação discursiva disseminada nos
domínios de saber da religiosidade, da moral e do direito, ou seja: campanhas de
caridade, de filantropia, de SOS a desabrigados, flagelados, enfim, de um intenso
apelo midiático e, poder-se-ia dizer, ostensivo ao cidadão, impondo-lhe uma
manifestação (colaboração) inescapável. O que também pode ser lido da seguinte
forma, de acordo a autora: a valorização do individualismo e das responsabilidades individuais vai aumentando na mesma proporção em que se defende uma coletivização nacional, enquanto repartição de culpas, destas mesmas responsabilidades sociais e individuais (Ibid., 2001, p. 45).
Nessa perspectiva, no processo discursivo em análise e, especificamente em
E1, temos um jogo de relações em confronto no interior mesmo do sistema
Repetições, retomadas e deslocamentos no discurso de/sobre solidariedade André Luís Campos Vargas
Tecnologias de linguagem e produção do conhecimento
Coleção HiperS@beres | www.ufsm.br/hipersaberes | Santa Maria | Volume II | Dezembro 2009
72
dominante (capitalismo). Para ilustrar essa questão, diríamos que seja possível
correlacionar ao que Pêcheux procurou esclarecer do seguinte modo: “ao falarmos
de ‘reprodução/transformação’, estamos designando o caráter intrinsecamente
contraditório de todo modo de produção que se baseia numa divisão de classes”
(Pêcheux, 1997, p.144).
Dessa forma, a solidariedade desencadeia o surgimento de novas
designações, como economia solidária (Im5 e Im7), por exemplo. Além disso,
sobredetermina o social pelo solidário, e este último pelo que se vincula ao
produtivo, cidadão, associativo. Nesse modo de significar solidariedade, o real de
um saber “colono”, oriundo do então feirão colonial, é substituído por categorias,
elementos, discursos do urbano em torno de organização política, administrativa,
jurídica e comercial (da venda direta aos consumidores). Podemos então dizer:
organizam-se sentidos na ordem do discurso sobre, o que redundaria em uma deriva
ideológica que homogeneíza a forma de significar o rural, o campo.
Isso nos conduz, necessariamente, a recortes discursivos bem específicos,
estabelecendo relações entre domínios discursivos, como nos cartazes (Im6 e Im7)
que proclamam a FEICOOP como sendo um evento de âmbito estadual e, nos
mesmos cartazes, à designação cooperativismo, é acrescentado o adjetivo
alternativo, e, principalmente, a FEICOOP passa a ser denominada como:
E2 - O maior evento do cooperativismo alternativo do RS (Im6 e Im7).
No que diz respeito ao nome ‘cooperativismo’, tomamos como entendimento
que, na AD, distinguem-se as noções de produtividade e criatividade, nas quais, pelo
dizer de Orlandi (1999, p. 37), a primeira vem a produzir a variedade do mesmo,
enquanto que a segunda, demanda um trabalho que vem instar um conflito ao já
produzido e ao que se busca instituir. Ou seja, podemos observar, na inserção
central dos cartazes, nas respectivas imagens ao alto, a seguinte repetição da
designação:
Repetições, retomadas e deslocamentos no discurso de/sobre solidariedade André Luís Campos Vargas
Tecnologias de linguagem e produção do conhecimento
Coleção HiperS@beres | www.ufsm.br/hipersaberes | Santa Maria | Volume II | Dezembro 2009
73
Im1 - cooperativismo
Im2 - cooperativismo
Im3 - cooperativismo
Im4 - cooperativismo
Im5 - cooperativismo
Por esse viés, a sucessão de repetições de cooperativismo sustenta o sentido
de ‘solidariedade’ por um processo parafrástico, de estabilização, em uma
formulação que retorna e, portanto, reafirma o mesmo dizer: O maior evento do
cooperativismo alternativo do RS (E2). Percebemos uma mudança de estatuto
significativa, visto que o advento de ‘tornar-se maior’ afilia novos sentidos ao
movimento cooperativo/solidário, elevando-o a uma condição superior, de
consolidação em um lugar relevante: a FEICOOP é (inquestionavelmente) o maior
evento do cooperativismo.
Com o objetivo de compreendermos essas relações de sentido, buscamos
observar como a ideologia produz uma impressão de transparência do sentido, o
que faz funcionar como uma evidência – um senso de certeza no qual o sentido só
pode ser “este” – e da qual nos permitimos assinalar o discurso sobre como sendo
um processo discursivo organizador, uma espécie de um guarda-chuva, sustentado,
por um lado, pela repetição de enunciados e de imagens, o que configura uma
estabilidade de pré-construídos; e, por outro, pelos procedimentos de “fazer-crer” e
“fazer-ver” que pode fazer emergir outros sentidos (cf. Pêcheux,1997). Há, portanto
uma voz que organiza diferentes discursos de, reunindo e homogeneizando diversas
forças de produção, desde o artesão até o colono.
O discurso de, por exemplo, poderia ser atribuído ao colono, pois ele está em
um lugar de fundação, da força de trabalho e de produção. Mas, isso não é simples,
pois a organização desses discursos se dá na complexificação e instalação de
demandas, em que se inscreve o sujeito urbano, que produz, por uma tecitura de
competências e de saberes, o discurso sobre, e, por ele, produz-se o suposto
controle de sentidos, efeito que referimos anteriormente. Reafirmamos a condição
de “suposto controle de sentidos”, visto que não há garantia desse controle. A
qualquer tempo e lugar, algo inerente ao discurso de pode vir a emergir,
desestabilizando o que estaria estabilizado, fazendo irromper vínculos de
Repetições, retomadas e deslocamentos no discurso de/sobre solidariedade André Luís Campos Vargas
Tecnologias de linguagem e produção do conhecimento
Coleção HiperS@beres | www.ufsm.br/hipersaberes | Santa Maria | Volume II | Dezembro 2009
74
associação ao discurso sobre, permitindo um novo olhar para o que parecia
esquecido, apagado, mas que faz parte de uma fundação, de uma referência
histórica.
Dessa forma, podemos mais uma vez recorrer à Orlandi, em sua insistência
do que seja a história, na ótica da AD. A história está ligada a práticas e não ao
tempo em si. O que significa se colocar no interior de um confronto de sentidos (cf.
Orlandi, 1990). Ainda, por esse olhar, temos um jogo entre imaginário e simbólico,
uma relação da produção de sentido com o “seu lugar” para levá-lo para “outro”
como se fosse o próprio (Ibid., p. 37). Nessa perspectiva de suspensão e de
movimento, podemos situar os seguintes enunciados5:
E3 - Mais qualidade de vida (Im1 a Im3).
E4 - Há 10 anos construindo o associativismo, o trabalho, a solidariedade
e a cidadania (Im4).
E5 - Há 11 anos construindo o associativismo, o trabalho, a solidariedade
e a cidadania (Im5).
Com base nesses enunciados, podemos compreender que a consolidação do
discurso de/sobre a solidariedade mostra-se com uma visibilidade de apelo social
que reafirma sentidos e quer atribuir historicidade à FEICOOP. Instaura-se uma
temporalidade cronológica que visa a referendar (10 – 11 anos, E4, E5), via
intradiscurso, efeitos de verdade e de autoridade e, assim, configurar e afirmar a
existência desde sempre de uma prática em torno dos elementos ‘construídos’ (E4 e
E5), de sentidos inscritos em uma memória.
Desse modo, podemos dizer que tais evidências cristalizadas, naturalizadas,
só podem se dar dessa maneira pelo imbricamento da história com o poder. Uma
relação tensa entre o estabilizado e o constitutivo de novos dizeres, ou seja, o
discurso de e o discurso sobre encontram-se em tensão, mesmo porque não há
garantias de que o discurso de irrompa no discurso sobre ou vice-versa. Todavia,
em qualquer tempo e lugar, algo próprio do discurso de (do pequeno produtor rural,
5 Com grifos nossos.
Repetições, retomadas e deslocamentos no discurso de/sobre solidariedade André Luís Campos Vargas
Tecnologias de linguagem e produção do conhecimento
Coleção HiperS@beres | www.ufsm.br/hipersaberes | Santa Maria | Volume II | Dezembro 2009
75
por exemplo) pode emergir, desestabilizando o discurso sobre, presentificando o real
do discurso, sentidos negligenciados, silenciados etc.
Da mesma maneira, entendemos que a intensificação dos sentidos (O maior evento – E2; mais qualidade de vida – E3) é um processo marcante no interior das
formulações. Tais enunciados ostentam um lugar de já-dito e ao mesmo tempo de
atualidade, assim como remetem ao funcionamento da ideologia, a qual não está
relacionada à falta, mas ao excesso, à saturação que produz o efeito de evidência
(cf. Orlandi, 1990).
O movimento das imagens
Pela sucessão de imagens, podemos exemplificar esse jogo de repetições
pelo que segue: nas Im1 a Im3, a união (cooperativada) é simbolizada pela imagem,
em primeiro plano, de um desenho manual em preto e branco que expressa um
aperto de mãos sobre um sol nascente.
Abaixo dessa imagem, também com o desenho traçado em linha pura, sem
sombreamentos, três elementos estão perfilados: o queijo, o vinho e o pão. Estes
podem ser considerados como produtos característicos do trabalho artesanal de
pequenos produtores que então integravam o Feirão Colonial, a organização
rudimentar que a FEICOOP sucedeu.
No entanto, o vinho e o pão, também podem ser entendidos como elementos
de ordem religiosa, o sangue e o corpo de Cristo, isto é, remetem a um dizer que é
anterior, calcado em uma memória e uma história, nesse caso, aquelas dos
princípios constitutivos do Projeto Esperança – um movimento social da Diocese de
Santa Maria. Este nos parece ser um primeiro indício, uma primeira pista de que
essa rede de formulações e reformulações está vinculada a um discurso religioso,
um lugar de fundação no qual se insere a igreja como constitutiva de um discurso
(“eu sou” o caminho, a verdade e a vida, que explica a origem do homem como obra
divina e, propenso à fraternidade, a união de “todos iguais”, perante o criador).
Também a partir de Im4, a arte manual dos desenhos e sua significação pelo
aperto de mãos e pelos elementos representativos, o queijo, o vinho e o pão são
substituídos pela inserção do símbolo do Projeto Esperança/Cooesperança, que o
apresenta como instituição promotora da FEICOOP.
Repetições, retomadas e deslocamentos no discurso de/sobre solidariedade André Luís Campos Vargas
Tecnologias de linguagem e produção do conhecimento
Coleção HiperS@beres | www.ufsm.br/hipersaberes | Santa Maria | Volume II | Dezembro 2009
76
Pode-se perceber que os elementos correlacionados (pão e vinho, corpo e sangue),
ao serem substituídos, parecem querer levar, neste segundo momento, a um
apagamento da instituição igreja, já que emerge a articulação de um discurso de
cunho social representado pelas designações associativismo, trabalho, solidariedade
e cidadania. No entanto, ao invés de apagamento, o que se pode perceber é um
deslocamento de sentidos já que, ao inscrever a noção temporal (há 10 anos, há 11
anos - E4, E5), remete a uma identificação com o idealismo precursor assentado na
liderança religiosa do Bispo Diocesano de Santa Maria (RS), Dom José Ivo
Lorscheiter.
Um efeito que também pode ser observado pela descrição do símbolo Projeto
Esperança, em forma de um círculo (Im4 em diante), figura geométrica que significa
processo contínuo, sem começo nem fim, agregados à imagem inicial (Im1 a Im3) do
aperto de mãos, agora sobrepostas ao emblema mundial do cooperativismo, e em
seu interior faz constar os dizeres: Santa Maria (RS), Projeto Esperança
Cooesperança, isto é, a figura remete à compreensão de globo, global, também
inerente à apologia encetada pela globalização de um mundo sem fronteiras.
Conclusão
Poderíamos dizer, finalmente que, ao nos lançarmos ao trabalho de
investigação de determinadas noções, teoricamente, já nos colocávamos em relação
com as análises, como asseveramos logo no início, mas desde já compreendemos
que, para tal análise, é imprescindível novas formulações que tomem mais
profundamente o embate de mudanças cada vez menos controladas, como é o caso
do capitalismo, de um lado e, de outro, os processo institucionais que resistem ou
transformam(se) nesse embate de representações. O presente trabalho nos
possibilitou a experimentação, entre teoria e análise, trazendo possibilidades de
interpretação aos questionamentos iniciais, porque a forma de tratamento que o
corpus recebe não advém de uma região estagnada ou cristalizada do conhecimento
científico, podendo sempre alterar-se. E ao alterar-se, torna-se outra e é, de fato, o
caráter marcante das possibilidades que a AD nos oferece. Há o diferente no
mesmo, há uma articulação imbricada, quase em simbiose e ao mesmo temo em
Repetições, retomadas e deslocamentos no discurso de/sobre solidariedade André Luís Campos Vargas
Tecnologias de linguagem e produção do conhecimento
Coleção HiperS@beres | www.ufsm.br/hipersaberes | Santa Maria | Volume II | Dezembro 2009
77
confronto, entre o político e o simbólico que envolve um estar sempre “entre”
sentidos, desconstruindo evidências do imaginário e fazendo irromper o irrealizado,
o que está por vir, o outro, o possível do impossível, o reformulável, na tensão entre
os discursos sobre e de. Diríamos, somos partícipes de um jogo sempre aberto para
a interpretação outra.
Referências CIGANA, Caio. Melhores práticas. Uma utopia chamada esperança. Desafios do desenvolvimento. n. 37. Nov. 2007: IPEA, Segmento. p. 54-59.http://desafios2.ipea.gov.br/sites/000/17/edicoes/37/pdfs/rd37not08.pdf
MARIANI, Bethania. Questões sobre a solidariedade. In: ORLANDI, Eni P. (Org.). Cidade atravessada. Os sentidos públicos no espaço urbano. Campinas: Pontes, 2001. ORLANDI, Eni. P. Discurso e texto. Formulação e circulação dos sentidos. 2. ed. Campinas: Ed. Pontes, 2005. ______. (Org.). Discurso fundador. A formação do país e a constituição da identidade nacional. 3. ed. Campinas: Pontes, 2003. ______. Análise de discurso. Princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999. ______. As formas do silêncio. No movimento dos sentidos. 3. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995. ______. Terra à vista! Discurso do confronto: velho e novo mundo. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. de Eni P. Orlandi (et al.). 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. ______. O discurso. Estrutura ou acontecimento? Trad. de Eni P. Orlandi. 5. ed. Campinas: Pontes, 2008. Revista do histórico dos 15 Anos da Feira de Santa Maria: Uma experiência aprendente e ensinante. Projeto Esperança/Cooesperança, Diocese de Santa Maria e Apoiadores, Santa Maria, RS, 2008. * A imagem que abre este texto foi elaborada, a partir de recortes do corpus de estudo, por Rejane Vargas, a quem agradecemos pelas contribuições.