UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
Gabriela Doll Ghelere
Ao, representao e o fetichismo da mercadoria
So Paulo 2013
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Gabriela Doll Ghelere
Ao, representao e o fetichismo da mercadoria
Tese apresentada ao programa de Ps-Graduao em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutora em Filosofia sob a orientao do Prof. Dr. Luiz Henrique Lopes dos Santos.
So Paulo
2013
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Olivia, minha fiel companheira durante a escrita deste trabalho.
Agradecimentos
Ao professor Luiz Henrique Lopes dos Santos, pela orientao, pelo grande apoio e pela sabedoria alm da filosfica.
Ao professor Francis Wolff, pela orientao na cole Normale Suprieure, e por contrapor-se elegantemente aos meus argumentos.
Aos professores Marco Zingano e Jorge Grespan, por participarem da banca de qualificao.
Aos companheiros da USP, da UBA, da cole, dos congressos e da vida toda: Sylvia e Leandro Cardim, Nestor Lavergne, Gaston Caligaris, Rodrigo Brando, Giselle Lozano e Francisco Cofano, Mariana e Guilherme Braun, Jonas Waks, Ian Packer, Gustavo Pedroso, Anderson Gonalves, Renata Grinfeld, Pedro Heise, Livia Almendary, Tiago Novaes.
Julia Maia, pela ajuda prtica em tantos momentos, pela amizade, pelas boas discusses.
Carolina Noto, pela amizade incondicional, pelo apoio e por andar junto comigo.
s secretrias do departamento de filosofia, especialmente Marie Pedrozo e Maria Helena Barboza.
Aos familiares, por entender as ausncias, pelo apoio, pelo incentivo. Especialmente Sofia Portas, por me esperar sem saber bem porqu. minha me Laurici, por sempre estar presente. Ao meu pai, pela minha estrutura.
FAPESP, pelo financiamento dessa pesquisa.
Ao Federico Esquerro, meu companheiro e meu grande amor.
RESUMO
GHELERE, Gabriela Doll. Ao, representao e o fetichismo da mercadoria. 2013. 117 f. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013. Este trabalho consiste em abordar o conceito de fetichismo da mercadoria, de Karl Marx, presente principalmente na obra O Capital. Ao fazer essa abordagem, a pesquisa encontrou aspectos de certa teoria da ao que estariam presentes na problemtica do fetichismo. As relaes entre a ao e a representao formam o eixo que permeia toda a pesquisa. Est dividida em trs captulos. No primeiro, se apresenta o fetichismo como um problema que relaciona de modo muito particular a ao e a representao. Para refletir sobre estes aspectos buscamos, nos captulos seguintes, alguns pontos da teoria da ao de Aristteles como a responsabilidade moral, a diferena entre prxis e poisis, a diviso entre o intelecto prtico e o terico e a figura do acrtico. Tais conceitos so articulados de modo que o fetichismo pode ser visto como um problema de uma teoria da ao.
Palavras-chave: fetichismo da mercadoria, ao, representao, intencionalidade.
ABSTRACT
GHELERE, Gabriela Doll. Action, representation and commodity fetishism. 2013. 117 f. Thesis (Doctoral) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013. This work addresses the concept of commodity fetishism, from Karl Marx's book The Capital. By doing this approach, this research has found certain aspects of the theory of action that would be present in the problematic of fetishism. The relationship between action and representation form the axis that permeates all research. It is divided into three chapters. At the first, it presents fetishism as a problem that relates most particularly the action and representation. To think about these aspects we look for, in the following chapters, some points of the action theory of Aristotle as a moral responsibility, the difference between praxis and poiesis, the division between the theoretical and the practical intellect and the figure of akratic. Such concepts are so articulated that fetishism can be seen as a problem of a theory of action.
Key Words: commodity fetishism, action, representation, intentionality.
SUMARIO
INTRODUO 09
CAPTULO 1: O FETICHISMO DA MERCADORIA 15
INTRODUO
O ESPELHAMENTO DO VALOR
TRABALHO ABSTRATO
AO E REPRESENTAO
A PROVA: OUTROS MODOS DE PRODUO
OUTRAS FORMAS DO FETICHISMO DO VALOR
CAPTULO 2: TEORIA DA AO 56
INTRODUO
RESPONSABILIDADE DA AO: O SUJEITO E SUA VONTADE
PRXIS E POIESIS
CAPTULO 3: DUPLA INTENCIONALIDADE 86
REPRESENTAO
INTELECTO PRTICO E INTELECTO TERICO
SABE MAS AGE COMO SE NO SOUBESSE
LTIMOS COMENTRIOS 108
ELES SO SABEM MAS O FAZEM
BIBLIOGRAFIA 113
Introduo
"Clsico no es un libro que necesariamente posee tales o cuales mritos; es un libro que las generaciones de los hombres,
urgidas por diversas razones, leen con previo fervor y con una misteriosa lealtad"
(Borges, Sobre los clsicos).
Embora a escolha de dois autores clssicos Karl Marx e Aristteles tenha
sido incontornvel para trabalhar com o problema do fetichismo e da ao, o modo
como escolhemos interrog-los no propriamente clssico. O delicado trabalho da
exegese dos textos filosficos, principalmente de um clssico, tarefa que em geral se
faz concentrada em um autor, um livro, um conceito. As valiosas pesquisas dos
intrpretes e comentadores nos serviram, desse modo, como ferramentas e apoio para
encontrar nos textos filosficos aquilo que a investigao foi exigindo para seguir um
caminho talvez pouco clssico.
Dado que detectamos no esquema fetichista um problema que envolve os
conceitos ligados filosofia da ao, poderamos recorrer diversas teorias e sistemas
para resolv-lo. Nossa aposta foi na teoria da ao de Aristteles, porque l ele
sistematiza, filosoficamente, o tema da responsabilidade da ao, de modo to
relevante que est presente at nas concepes ordinrias da moral. Aristteles
apresenta critrios que aparentemente contrastam com o problema da ao no
fetichismo, porm, vistas por certa interpretao, as duas teorias encontram pontos
que poderiam at oferecer uma soluo filosfica para o quiproqu apresentado por
Marx na teoria do fetichismo.
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Desse modo, no se trata de buscar aquilo que aproxima ou afasta Marx e
Aristteles, embora alguns elementos tenham saltado, inevitavelmente, nesta direo.
Tampouco procuramos abordar o Marx leitor de Aristteles, embora seja profcuo
para sustentar alguns argumentos da teoria do valor. Trata-se, ento, de tomar a teoria
de Marx e aplicar-lhe contedos da tica aristotlica?
Um dos problemas que introduz essa pesquisa sobre sua insero na histria
do marxismo, ou ainda, definir qual o estatuto deste estudo sobre Marx. A anlise
do fetichismo da mercadoria percorreu um caminho histrico1 a partir do marxismo
ocidental, seguido pela Escola da Frankfurt. Contudo, o problema mais especfico que
nos colocamos a respeito da tica e, mais precisamente, de uma filosofia da ao
supostamente contida no conceito de fetichismo. J que pisamos no terreno da tica,
preciso observar em qual registro, especificamente, operou o chamado marxismo
tico. Comeamos por mencionar o dilema entre tica e cincia que animou o debate2
entre marxistas no incio do sculo passado. A pergunta que nos move nesta direo
se esses autores so possveis interlocutores para discutir o fetichismo na perspectiva
tica.
1 O conceito foi retomado, torcido, ampliado, virado do avesso, por autores importantes como Lukacs, Adorno, Kurtz e Hooneth. Cf. REGATIERI, 2012.
2 A pergunta "O marxismo portador de concepo prpria e original sobre a tica e a moral?" que aparece no dossi Marxismo, tica e poltica revolucionria (Revista Crtica Marxista, n.14, 2002) tem aquela ambiguidade bastante comum que aparece no termo marxismo. Refere-se aos escritos de Marx (marxianos), ou aos estudos posteriores (marxistas) que se valeram de Marx e, a partir dele, criaram suas prprias teorias? mais difcil responder pelo segundo caso, j que o marxismo tem uma histria grande e diversificada, desde Engels e Kautsky at Habermas e Hooneth. No outro sentido, a teoria marxiana parece no desenvolver uma concepo tica e moral prpria e original. Certamente emite juzos morais e esboa anlises ticas, mas seria um exagero atribuir a Marx uma teoria original sobre tica tal como a histria da filosofia atribui a Aristteles ou Espinosa.
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Nas primeiras dcadas do sculo XX se desenvolve na Europa uma discusso
sobre o problema da tica na obra de Marx. Partindo da pergunta pelo estatuto de sua
obra, houve quem optou pela tica como guia da poltica marxiana. Impulsionada pela
teoria da revoluo, a poltica poderia ser pensada como uma adequao entre meios e
fins. O produto o fim e o trabalho o meio. Ora, o trabalhador no se apropria do
fim para o qual ele gerou os meios, ento preciso adequar essa relao, diziam os
revolucionrios marxistas. Desse modo, a emancipao proletria o verdadeiro fim,
e a luta dos trabalhadores o meio revolucionrio mais adequado.
Houve tambm aqueles que entenderam Marx a partir de um vis cientfico,
seja por interpretarem sua obra como uma teoria epistemolgica, seja porque o objeto
analisado por Marx, principalmente a economia poltica, tomado, por eles, como
uma cincia. Com as diferenas mais sutis at as mais acentuadas, os autores se
posicionaram do lado da tica ou da cincia no momento em que a filosofia de Hegel
sai da cena europeia e abre espao para o positivismo, por um lado, e seus crticos
os neokantianos de outro (Cf. Colletti, 1977). Grosso modo, ou o marxismo se
considerava um guia para a revoluo, ou um mtodo de anlise cientfico.
No primeiro momento, o debate entre Kautsky e Bernstein abre a disputa pela
cincia ou pela tica como ocupantes do lugar central na teoria marxista. Kautsky
defende um materialismo cientfico natural, fortemente inspirado em Darwin. Critica
duramente a teoria kantiana3, tanto no seu aspecto cientfico quanto tico. Reduz a
3 No se trata de avaliar aqui se a interpretao de Kautsky a respeito da obra de Kant vlida ou no pois seria evadir-se da tese central. No entanto, Otto Bauer o faz, no texto editado como posfcio da edio consultada do livro de Kautsky. Segundo Bauer, a crtica de Kautsky est dirigida contra um kantismo vulgar, fundada sobre a noo de a priori, tanto na teoria do conhecimento quanto na tica. E defende o uso da tica kantiana para entender o marxismo especificamente pelo seu estatuto universal. J que h uma tica proletria, diferente da tica burguesa, no se pode estabelecer os critrios da justia. Assim, a universalidade da lei moral kantiana seria a soluo para o marxismo.
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teoria do conhecimento de Kant a um subjetivismo, como se todos os fenmenos e as
coisas em si fossem criaes da cabea do sujeito do conhecimento. Quanto s duas
leis morais, "age de modo que a mxima de tua vontade sempre possa valer ao mesmo
tempo como princpio de uma legislao fundamental" e "age de modo a tratar a
humanidade, tanto na sua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como fim
e jamais como simples meio" so reduzidas por Kautsky a um requentado da moral
crist.
Transferiu-se a lei moral do aqum do mundo sensvel para o alm do mundo suprassensvel, Kant no favoreceu seu conhecimento cientfico, mas ao contrrio, obstruiu-lhe todos os caminhos. Antes de tudo h que eliminar esse obstculo, h que superar Kant caso se queira levar o enigma da lei moral sua soluo (Kautsky, 1975, p. 43).
O rechao ao kantismo se explica pela proposta de fundamentar a moral na
natureza e, com isso, Kautsky entende que a concepo materialista da histria opera
nesse registro, em oposio tica que abstrai o indivduo da sua natureza e o coloca
no terreno do suprassensvel, tal como Kant teria feito.
Na cincia, efetivamente, o ideal moral se converte em fonte de erros quando pretende querer indicar-lhe seus fins. (...) A tica pode ser unicamente e sempre um objeto da cincia; esta deve indagar e tornar compreensveis os instintos morais como os ideais morais, mas no aceitar deles nenhuma indicao sobre os resultados a que tem que chegar. A cincia est por cima da moral; seus resultados so to pouco morais ou imorais como moral ou imoral a necessidade (Kautsky, 1975, p. 135).
Assim, o sistema kantiano no oferece ferramentas adequadas para produzir
uma reflexo epistemolgica das categorias marxianas, pelo menos do ponto de vista
de Kautsky, da hierarquizao dos saberes, onde a cincia ocupa o primeiro lugar. J
Bernstein busca fundamentar o marxismo justamente na tica kantiana e, com isso,
defende o socialismo como um ideal moral que salvaria o marxismo do
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necessitarismo cientfico. Para tanto, estabelece um vnculo estranho entre o
socialismo e o liberalismo por entender que esta relao levaria os homens
emancipao.
O ponto de contraste com Kautsky centra-se em Kant: enquanto Bernstein
defende que os princpios morais reguladores da ao voltada para o fim e o conceito
de repblica universal formam as bases do socialismo, para Kautsky a moral kantiana
se distancia demais de uma tica naturalista e do materialismo histrico. Essa
discusso, contudo, conduz a problemas do marxismo que no tocam exatamente na
nossa investigao, como a ideia de progresso, histria, emancipao e revoluo.
Desse modo, defendemos que na crtica da economia poltica de Marx h uma
avaliao moral das consequncias do modo de produo. Mas no h uma
moralidade que prescreve normas de comportamento. Justamente porque a existncia
social no est predeterminada, ento a tica aristotlica pode funcionar como
ferramenta de reflexo, j que Aristteles no desenvolve uma normatividade
prescritiva; ele antes trata de parmetros ticos para situaes circunstanciais.
Pensar um conceito marxiano fetichismo da mercadoria luz da teoria
tica aristotlica no significa afirmar o carter tico da obra de Marx, nem tentar
agregar ou complementar a proposta marxiana. Assim, esta investigao assume a
proposta de pensar os dois autores mais no que tange filosofia da ao do que
propriamente a problemas ticos.
Nossa hiptese fundamenta-se na ideia de que h elementos na teoria da ao
de Aristteles que servem para repensar o problema do fetichismo e, possivelmente,
apontar uma sada em termos filosficos, conceituais. Entretanto, a teoria da ao de
Aristteles no poderia oferecer uma sada exata como uma receita a seguir passo a
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passo. O que o estagirita nos oferece um modo peculiar de articular ao e
representao que nos faz refletir sobre tal relao no fetichismo.
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Captulo 1: O fetichismo da mercadoria
Introduo
A mercadoria enquadrada por Marx como a unidade que rene e alinhava o
sistema do capital. Quando as mercadorias adquirem a capacidade de troca, esta
confrontao aparece como o resultado misterioso de uma qualidade interna que elas
possuiriam substancialmente, o valor. No entanto, a confrontao entre as
mercadorias o resultado da identidade comum entre elas, por serem produtos
diferentes do mesmo ato social. Por outro lado, as propores de troca aparecem
como o resultado de suas quantidades nas quais se manifestam essa misteriosa
qualidade substancial que o valor. No entanto, as propores de troca so o
resultado das despropores nas quais os diferentes trabalhos privados materializam o
trabalho socialmente abstrato. Assim resumimos um dos grandes problemas do
primeiro captulo dO Capital, onde Marx explica, ao mesmo tempo, o que a
mercadoria4 e qual o seu segredo o fetichismo. Iniciamos, desse modo, nossa
investigao pela apresentao do seu objeto e, com isso, comeamos pela relao
4 Trataremos mais do segredo que envolve a mercadoria do que da sua definio mesma. to esclarecedora (quanto polmica) a nota acrescentada por Engels na quarta edio do Capital sobre a diferena entre mercadoria e produto. Marx havia marcado que uma coisa pode ser til para o outro, ter valor de uso, mas no ser mercadoria. Ou seja, o valor de uso no condio suficiente para que um produto seja considerado mercadoria. preciso que esse valor de uso seja "social". Engels, ento, esclarece que esse aspecto social se refere capacidade do produto ser transferido a outro pela relao de compra e venda, atravs do mercado. Desse modo, a produo se d em funo do mercado, visando a troca, e no aleatoriamente ou por acaso, nem esporadicamente. H, portanto, uma relao de determinao entre a produo de mercadorias e o mercado que ocorre historicamente. Por isso se pode pensar na produo de produtos (que no visam o mercado) que no so mercadorias.
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entre ser e aparncia que envolve superficialmente o problema. Para tanto,
destacaremos aspectos que compem uma suposta teoria da ao.
O fetichismo da mercadoria , geralmente, descrito como um fenmeno que
promove a inverso das relaes entre coisas e pessoas. Remetendo-se origem da
palavra e do conceito aos escritos de Charles de Brosses5, nos aproximamos da figura
da transferncia do atributo divino para a coisa fsica. Para qual finalidade Marx usa o
conceito de encarnao misteriosa e a metfora da magia, na anlise da mercadoria?
Que tipo de feitio esse que capaz de inverter as relaes entre coisas e pessoas?
O Espelhamento do Valor
O feitio do espelho mais uma das metforas a qual se vale Marx para
apresentar parte da teoria do valor. Refere-se ao ser humano que s pode reconhecer-
se como humano quando observa num outro semelhante sua condio humana. Ora, o
5 No livro de Alfonso Iacono (1992) encontra-se a histria do nome fetiche e do conceito de fetichismo. Segundo o autor, o termo aparece pela primeira vez com Charles de Brosses, em 1760, no ensaio "Do culto dos deuses fetiches". Tendo sua origem na palavra feitio, do portugus, fetiche foi usada, ento, pelos homens brancos, europeus, para nomear os objetos de culto e as prticas religiosas dos povos da frica ocidental dos sculos XV e XVI. O conceito, segundo Iacono, logo satisfez a ideologia colonial e passou a ser difundido. Segundo Marcel Mauss, considerava-se fetichista o selvagem que no era capaz de distinguir uma representao da coisa representada e, por isso, usava um objeto como encarnao de um fenmeno sem sab-lo. Assim, a origem do fetichismo est numa forma primordial de religio, cujas prticas de divinizao ocorrem diretamente pelas coisas. A histria do conceito mostra, segundo o autor, que, embora tenha surgido para descrever crenas religiosas, o fetiche passa a ser usado para descrever outros fenmenos na psicologia, antropologia, filosofia e psicanlise. Assim, com Marx e Freud, o fetiche se destaca porque seu contexto modificado. Passa a ser aplicado a fenmenos mercadoria e perverso que so prprios de si mesmos (dos europeus "civilizados") e no mais do outro considerado como raa inferior ou primitiva. No caso de Marx, Iacono interpreta a referncia ao fetiche como um recurso da crtica, do mesmo modo que fez Voltaire. Trata-se de sair do mundo observado e depois retom-lo de outro ponto de vista, comparando-o e, com isso, relativizando os valores da sociedade em que se vive. Assim, em 1842, Marx l Brosses e escreve num dos artigos da Gazeta Renana uma comparao entre os espanhis que tomam o ouro como um fetiche e em seguida ironiza os burgueses alemes que preferem tomar a lenha como fetiche, no conhecido episdio do "roubo" de lenha. (Cf. Iacono, 1992).
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homem no nasce com um espelho para identificar-se a si mesmo por si mesmo, e da
se explica a analogia entre mercadorias e pessoas atravs da relao de espelhamento.
Marx compara o valor das mercadorias com a relao de espelhamento entre Paulo e
Pedro6: um s reconhece a si mesmo olhando o outro e, por isso, pode revelar ao
outro que ele mesmo aparece como gnero humano. Para identificar-se preciso,
portanto, projetar-se no outro que semelhante, porm no idntico. Isso significa, de
certo modo, negar a si mesmo para afirmar a existncia do outro, o seu reflexo e, com
isso, assumir sua forma (Cf. Marx, 2006, p. 40, nota 20). Assim, o espelhamento no
apenas projeo do reflexo. H o efeito de projeo no corpo do outro de uma
caracterstica abstrata, sua identidade.
Marx apresenta, desse modo, o esquema do espelhamento da representao do
valor. Encontramos a o embrio do enigma do fetichismo da mercadoria. Abstrados
os trabalhos concretos particulares, a relao de troca entre duas mercadorias
relativa e equivalente reflete um modo peculiar de representao. Na raiz do
espelhamento do valor est a diferena entre o valor de troca e o valor, uma diferena
que j comporta parte do mecanismo da iluso real.
Em primeiro lugar, porque o valor de troca tem um modo de apresentao tal
que parece ser varivel ao acaso e se coloca, por isso, em contradio aparente com
algum valor que seja intrnseco mercadoria (Cf. Marx, 2006, p.15), o qual seria fixo
e necessrio. Como o valor de troca aparece? A mesma mercadoria apresenta valores
6 Talvez, como sugere Grespan em nota traduo utilizada (Marx, 2006), a referncia a Paulo e Pedro seja um pouco mais ampla. Apostamos na seguinte ampliao: os dois apstolos discutem sobre a evangelizao dos gentios no "Incidente de Antioquia", onde discordam sobre se os gentios deveriam ou no adotar as prticas judaicas, como a circunciso. Paulo, ento, teria perguntado a Pedro se ele mesmo, que judeu, vive como um gentio, por qu exigir dos gentios que vivam como judeus? Ou seja, para identificar-se a si mesmo, neste caso, como judeu aps a evangelizao, seria necessrio, segundo Pedro, praticar os rituais do outro, dos judeus.
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de troca diferentes, dependendo da outra mercadoria que ser trocada e da proporo
da troca. Por isso, o valor de troca nada mais do que o modo da mercadoria
expressar, na troca, sua qualidade e quantidade, tal como se representa nas equaes
do tipo x de mercadoria A = y de mercadoria B.
Em segundo lugar, o valor de troca expressa aquilo que as mercadorias tm
em comum, aquilo que possibilita sua igualao, j que suas quantidades e qualidades
so diferentes. Aqui est uma das peas da mquina de iluso. O que faz com que
duas mercadorias concretas possam ser trocadas a capacidade de serem teis, o
valor de uso. No entanto, elas s podem ser trocadas realmente se seus valores de uso
forem abstrados. Ou seja, os valores de uso dos corpos das mercadorias precisam ser
desconsiderados embora permaneam como pressupostos e junto com eles o
trabalho determinado, especfico e concreto que necessrio para a produo destas
mercadorias, j que valor de uso e trabalho concreto no so igualveis entre duas
mercadorias; so justamente os fatores diferentes entre elas, alm da proporo de
troca.
O mecanismo ilusrio, desse modo, est na aparncia de valor de troca que a
mercadoria tem. Realmente tem essa aparncia, sua forma. Mas, efetivamente, o que
as faz capazes de serem trocadas, igualadas, o valor mercantil que elas so, formado
pelo trabalho despido de suas particularidades, chamado por Marx de trabalho
humano abstrato. Neste sentido, o valor social, pois sua substncia o trabalho
igual, "a fora de trabalho conjunta da sociedade, que se apresenta nos valores do
mundo das mercadorias, conta aqui como uma e mesma fora de trabalho humano,
apesar de ela consistir em inmeras foras de trabalho individuais" (Marx, 2006, p.
19).
19
Portanto, identificamos o processo de abstrao real como gerador de uma
iluso necessria: preciso abandonar o valor de uso para realizar a troca e, com isso,
desaparece o carter til do trabalho; o resultado que a troca entre dois corpos de
mercadorias sensveis s possvel se houver a iluso real de que os corpos, as
propriedades sensveis e as determinaes particulares do trabalho para produzi-las
so abstrados completamente.
Na troca, o valor da mercadoria em forma relativa representado pelo valor de
uso da mercadoria equivalente, de modo que obrigada a ocultar seu prprio valor,
como se no tivesse valor em si mesma, para se fazer aparecer no valor de uso da
equivalente:
Na relao de troca na qual o casaco forma o equivalente do pano, a forma de casaco conta, portanto, como forma de valor. Da que o valor da mercadoria pano seja expresso no corpo da mercadoria casaco, o valor de uma mercadoria no valor de uso da outra. Como valor de uso o pano uma coisa sensvel diversa do casaco; como valor, ele um 'igual ao casaco' e se parece com um casaco por isso. Assim ele obtm uma forma de valor diversa da sua forma natural (Marx, 2006, p. 39).
A mercadoria relativa, desse modo, valor quando trocada pela equivalente,
mas no a funo de equivalente que determina o valor, pois o valor medido pelo
tempo de trabalho socialmente necessrio para a produo.
O que acontece de curioso na forma equivalente que "o valor de uso se torna
forma de aparecimento de seu contrrio, do valor" (Marx, 2006, p. 45). Como? Este
o quiproqu. A forma natural, seu corpo de mercadoria com valor de uso, no forma
valor por auto referir-se. somente ao projetar-se no corpo da forma equivalente que
a forma relativa se torna valor. A relao de contrariedade, neste caso, se d entre o
corpo natural, valor de uso, e a forma social, o valor. Por isso, se evidencia que o
valor no a propriedade natural comum s duas mercadorias, relativa e equivalente,
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envolvidas na troca. "Mas como as propriedades de uma coisa no surgem de sua
relao com outras coisas, antes apenas atuam em tal relao" (Marx, 2006, p. 47),
ento a forma equivalente se apresenta como se tivesse, por natureza, a propriedade
natural de ser forma equivalente, do mesmo modo que tem a propriedade de peso ou
calor.
O valor representado na forma equivalente tem uma medida puramente social,
denominada por Marx como uma propriedade sobrenatural, porque criada pela
relao social na qual os homens alienaram na mercadoria suas relaes sociais. A
propriedade sobrenatural porque j no mais histrica, ento se atribui o carter
"natural", como se a natureza lhe imputasse valor, da a expresso sobrenatural.
Assim, a mercadoria natural sobrenatural ou fisicamente metafsica. Quando a
forma de valor de uma mercadoria relativa expressa seu valor na mercadoria
equivalente, "essa expresso mesma indica que oculta uma relao social" (Marx,
2006, p. 47). Com a relao de espelhamento do valor, Marx acaba por mostrar que os
corpos se dissolvem quando suas qualidades sensveis so abstradas para que o
objeto seja apenas o suporte do valor de troca, ocorrendo uma espcie de processo de
sublimao. Como o corpo da mercadoria torna-se a capacidade de equivaler-se a
outro corpo, aquilo que lhe peculiar se esfumaa e abre espao para a encarnao do
valor.
Portanto, o enigma da forma equivalente rene trs particularidades. Tratamos
mais pontualmente da primeira delas, a saber, quando o valor de uso se torna forma de
aparecimento do seu contrrio, o valor. Trataremos, a seguir, de apresentar o trabalho
concreto que se torna forma de aparecimento do seu contrrio, o trabalho abstrato e,
de alguma maneira, a mesma relao estendida ao trabalho privado que se torna
trabalho imediatamente social.
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Trabalho Abstrato
A discusso sobre o conceito de trabalho abstrato na obra de Marx tem longa
histria. O que interessa especificamente a esta investigao dar um passo para
compreender o que abstrao real; operao importante no fetichismo e objeto de
controvrsias profcuas. Este aspecto aparece, por exemplo, na polmica que se
estabeleceu entre os autores Cornelius Castoriadis e Ruy Fausto e que tambm
envolvem Jos Arthur Giannotti e os althusserianos.
Em Marx, encontramos o trabalho abstrato caracterizado por seu aspecto
fsico-material, porque "dispndio de fora humana de trabalho em sentido
fisiolgico", mas tambm como atividade puramente social, porque "nesta qualidade
de trabalho humano igual ou abstrato forma o valor das mercadorias" (Marx, 2006, p.
30). Ora, h algo de concreto no trabalho abstrato? Como possvel que o gasto de
crebro, nervos e msculos venha a ser uma abstrao? A partir destas perguntas
destacamos, pelo menos, dois problemas. Aparentemente, haveria uma contradio
entre o carter concreto e abstrato no mesmo processo de trabalho. preciso verificar
se mesmo uma contradio, ou se h apenas uma diferena, ou oposio, ou relao
de contrariedade e, ainda, se real ou aparente. O outro problema est localizado no
nvel em que ocorre a abstrao do trabalho: no pensamento que concebe o conceito
de trabalho abstrato ou na realidade efetiva?
Essas supostas ambiguidades que giram ao redor do conceito de trabalho
abstrato transtornam o pensamento de Castoriadis, quem chega a acusar o primeiro
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captulo do Capital de metafsico, qumico e hegeliano. Resumidamente, sua crtica,
carregada de ironia, atribui a oscilao de Marx uma construo fictcia que se torna
hiper-realista:
Essa significao imaginria social, essa condensao mais real do que toda 'realidade', esse fictcio efetivo e todas as significaes que escolta e s quais remete, constitui antes o 'limite histrico' que permite compreender, em certa medida, como Marx pode pensar a Substncia Trabalho ora como puramente fisiolgico-natural e ora como plenamente social, ora como transitria e ora como ligada especificamente fase capitalista, ora como uma manifestao da reificao do homem sob a explorao capitalista e ora como o fundamento que permitir um 'clculo racional' na sociedade do futuro (Castoriadis, 1997, p.357).
Duvida, pois, da existncia do trabalho abstrato e do valor por no entender se
Marx revela uma realidade que constri essas categorias, ou se obra do pensamento
terico puro. Ora, dir Ruy Fausto, as duas coisas. A realidade constri efetivamente
o sistema e o pensamento o reproduz. A contradio real porque a prpria realidade
contraditria, assim como tem tambm sua medida metafsica; Marx a reproduz,
assim tambm os agentes do sistema a reproduzem em suas representaes.
Com efeito, para compreender o que o valor e distingui-lo de sua Forma,
Marx teria chegado concluso de que a forma do valor o modo de expresso do
Valor. Porm, o valor da mercadoria no poderia aparecer substancialmente, "in
persona", j que "nenhuma substncia metafsica digna desse nome jamais o fez e
no poderia faz-lo" (Castoriadis, 1997, p. 337). O valor s poderia aparecer na
relao de troca e esse modo de aparecimento varia historicamente, da forma simples
e acidental at a moeda. Isso significa, segundo Castoriadis, que Marx opera o
movimento que vai do fenmeno essncia, pois comea sua anlise pela relao de
troca e chega ao valor. Assim, por tratar-se de um movimento de passagem do
fenmeno essncia, por considerar o valor como uma Substncia social que s pode
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aparecer na relao e no por si mesma, Marx teria, ento, gerado uma investigao
completamente metafsica do capital.
Os termos destacados por Castoriadis como peculiares do campo da metafsica
tambm so usados para provar que Marx opera no campo da qumica, ou melhor, da
alquimia. Desse modo, os conceitos de essncia, substncia, fenmeno, forma de
aparecimento na relao, somados aos de gelatina (de trabalho de humano),
substncia cristalizada nos produtos, dentre outros, formam a "qumica da dialtica
social", que "evidentemente alquimia: a alquimia que permitir transformar o social-
histrico em fisiolgico e reciprocamente" (Castoriadis, 1997, p. 339). , tambm,
pelo uso destes mesmos conceitos, sobretudo de substncia e essncia, que se faz,
segundo Castoriadis, do primeiro captulo do Capital uma rplica do pensamento
hegeliano, j que so termos usados por Hegel (e por muitos outros filsofos, pode-se
supor).
Ruy Fausto desenvolve uma resposta profunda a estas crticas de Castoriadis.
Pinamos apenas o que nos parece necessrio para formar o conceito de abstrao
real. Marx atribui o estatuto de substncia (social) ao valor porque faz a crtica viso
parcial de Ricardo, quem somente observa o lado quantitativo do valor, o tempo de
trabalho. Como os clssicos no percebem que h um contedo social na mercadoria,
Marx teria nomeado substncia para chamar a ateno ao aspecto qualitativo do valor.
Alm disso, segundo Ruy Fausto, a manobra de Marx est na compreenso da
substncia como portadora dos contrrios:
Observemos que a noo de substncia remete a duas ou, se se quiser, a trs determinaes. Em primeiro lugar, Marx quer dizer com isso que o trabalho coisa social, ele tem a espessura, o peso da coisa. A ideia de substncia remete ousia aristotlica. Mas coisas sociais so tambm o valor, o capital, etc. Aqui intervm o segundo sentido ou a segunda determinao: a substncia coisa em forma de trabalho, em forma fluida, pois se trata de uma substncia que ainda no se cristalizou; se no primeiro
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caso se pensa em Aristteles e numa certa tradio filosfica, aqui se conduzido ao universo das cincias naturais. Por outro lado, substncia se ope a sujeito, a substncia trabalho abstrato ao sujeito capital, a substncia que se tornou sujeito (...). Marx rene num mesmo objeto como determinaes do mesmo nvel os dois sentidos principais da ousia aristotlica; da resulta a possibilidade no aristotlica de que a substncia comporte contrrios (Fausto, 1983, pp. 100-101).
Tomando esta noo de substncia, os contrrios apresentados no primeiro
captulo do Capital esto dentro do conceito de valor e dentro do conceito de trabalho.
Na substncia valor, seu carter bipartido de valor de uso como coisa concreta e valor
como coisa social. Assim tambm, no trabalho, como substncia concreta, o trabalho
til e o trabalho abstrato, sua dimenso social, sua forma fluida. Ambos compem as
determinaes da mercadoria.
Parece que h algo de metafsico na mercadoria, como afirma Castoriadis, e
at o prprio Marx. O que nos esclarece Ruy Fausto sobre esse ponto que no h
equvoco em construir uma anlise metafsica, porque a prpria realidade, neste caso,
apresenta elementos metafsicos. " o real, o capitalismo que em certo sentido
metafsico, e o discurso quase metafsico por isso o verdadeiro discurso cientfico,
assim como o discurso claro da 'cincia' se torna nesse caso inadequado" (Fausto,
1983, p. 101). Na parte do primeiro captulo do Capital sobre o fetichismo da
mercadoria, essa relao entre o discurso de Marx sobre o real e a prpria realidade,
ambos metafsicos, aparece com mais nfase, pois o objeto em discusso, o
fetichismo, rene e faz saltar o que h de mstico na mercadoria e na teoria do valor.
Assim, a anlise do fetichismo da mercadoria conta com expresses como coisa
supra-sensvel sensvel, fantasmagrica, as analogias religiosas e a prpria metfora
do fetiche. Precisamente, poderamos dizer, com Marx7, que o mundo religioso cristo
7 "Para uma sociedade de produtores de mercadorias, cuja relao de produo social em geral consiste em comportar-se para com seus produtos como mercadorias, ou seja, como valores, e em referir seus
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funciona melhor para explicar a teoria da mercadoria e toda a sociedade de produtores
de mercadoria do que a ampla metafsica.
No entanto, para Castoriadis, trata-se de alquimia, responsvel por transformar
o que concreto e fisiolgico em histrico e social. Essa transformao, segundo o
comentador, requer operaes de reduo que so, do seu ponto de vista pcaro, mais
tpicas da magia da alquimia do que da cincia da qumica. Desse modo, tais
operaes seriam impossveis pois abordam a substncia como se fosse uma
"nebulosa de enigmas". O conceito de tempo socialmente necessrio para a produo
s poderia ser o tempo mdio e isto uma abstrao vazia (Cf. Castoriadis, 1997, p.
342), dado que se trata de um operao aritmtica sem funcionalidade prtica,
contraditria com o avano da tcnica que realmente reduz os tempos mdios. Alm
disso, quando o capitalismo j est estabelecido, as mercadorias so trocadas pelo
preo da produo, no pelo tempo de trabalho socialmente necessrio, que a
reduo do valor. Outra reduo que estaria longe de existir na experincia a do
trabalho complexo simples. Marx teria estabelecido um "postulado metafsico ao
mesmo tempo fisiolgico" (idem, p. 345). O que se reduz efetivamente, segundo o
crtico, o conjunto de todos os trabalhos a dinheiro (idem, p. 346). Por fim, a
reduo do trabalho concreto a abstrato seria uma contradio: ora Marx diz que a
abstrao fisiolgica, ora diz que social, "os nervos e msculos so forma de
aparecimento do social? Ou ento o social expresso e apresentao dos nervos e
dos msculos?" (idem, p. 349).
trabalhos privados uns aos outros sob essa forma coisificada como trabalho humano igual, o cristianismo a religio mais adequada, com seu culto do homem abstrato, especialmente, com seu desenvolvimento burgus, no protestantismo, no desmo etc." (Marx, 2006, p. 79).
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Afastemos a investigao dos motivos pelos quais Castoriadis foi impedido8
de compreender o raciocnio e os conceitos de Marx. Nossa ateno se concentra no
discurso que realmente parece titubeante e que nos aproxima do conceito de abstrao
real. Para Marx, a reduo das medidas e a abstrao ocorre no sentido dos valores
de uso para o valor; dos trabalhos concretos para o abstrato; do trabalho complexo
para o simples. A transformao no pura mgica, embora tenha um componente
que escapa percepo cotidiana do fenmeno.
A mudana das medidas, tanto qualitativas como quantitativas, das
propores, um processo que no est vista dos agentes e, no entanto, dir Marx,
mesmo que estivesse, no faria a menor diferena - da a magia - pois no se trata de
um processo subjetivo. "As diversas propores em que os diversos tipos de trabalho
so reduzidos a trabalho simples, como a sua unidade de medida, estabelecem-se por
um processo social s costas dos produtores, e parecem a eles da como dados pelo
costume" (Marx, 2006, p. 28). Isso significa que os valores de uso, os trabalhos
concretos e o trabalho complexo existem realmente mas, efetivamente, na troca e na
produo para a troca, enfim, no sistema capitalista de produo, funcionam somente
se forem abstrados e reduzidos a outras medidas e propores, que so,
respectivamente, o valor, o trabalho abstrato e o trabalho simples. Portanto, valor de
uso, trabalho concreto e trabalho complexo existem; entretanto, contam efetivamente
como valor, trabalho abstrato e simples.
8 Segundo Ruy Fausto, tanto Castoriadis como Balibar no podem compreender a dialtica de Marx porque so kantianos. "Em Kant preciso separar as determinaes de um conceito e sua existncia/posio, sendo a posio exterior s suas determinaes. Para Hegel e Marx, pelo contrrio, o conjunto das determinaes no esgota o conceito. Mesmo plenamente determinado, o conceito no ele prprio se no for posto" (Fausto, 1983, p. 106). Esta discusso sobre a posio ser lanada ainda neste captulo.
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Alm da diferena apontada9 entre o que existe e o que existe com efeitos na
realidade prtica, Ruy Fausto marca outra diferena conceitual que poderia estar no
fundo do raciocnio de Marx. Qual a relao entre o trabalho concreto e o abstrato?
Em algumas passagens, parece que o trabalho abstrato somente a generalidade do
concreto. Entretanto, uma leitura mais atenta e mais abrangente que o incio do
Capital revela outro movimento. S pode ser uma relao de contrariedade, analisa
Ruy Fausto, se considerarmos o trabalho abstrato como um universal concreto, isto ,
"como um objeto que contm ao mesmo tempo a universalidade e a singularidade (...)
como se o universal invadisse o particular, de onde a tenso, que estaria ausente se
se tratasse s do gnero ou s do indivduo" (Fausto, 1983, p. 98). Assim, o trabalho
abstrato o gnero, o universal que existe ao lado das espcies e indivduos, e
participam da sua composio os trabalhos concretos. No pode, portanto, ser uma
relao de simples diferena, j que existe uma tenso, um conflito entre o carter
concreto e abstrato do trabalho. Tampouco mera oposio, pois o gnero no o
oposto da espcie, do mesmo modo que o mamfero no o oposto do leo. Trata-se,
nos termos de Marx, de um "contrrio imediato" (Marx, 2003, p. 19); conceito que
compreendemos pela sua relao imediata com a realidade da abstrao.
Por isso, Marx enfatiza, na Contribuio Crtica da Economia Poltica, em
que sentido a abstrao do trabalho real:
9 Mais precisamente, a diferena apontada por Ruy Fausto entre trs nveis: categoria, realidade efetiva (Wirklichkeit) e praticamente verdadeiro (praktisch wahr). Destacando a Introduo de 1857 de Marx, Ruy Fausto marca o trabalho abstrato no nvel da categoria como a realidade que s est no nvel da essncia, ao passo que o trabalho abstrato no nvel da realidade efetiva est na realidade que tambm se manifesta no fenmeno. Portanto, no h oposio entre pensamento e realidade, h nveis de realidade que podem coexistir. (Cf. Fausto, 1983, p. 95).
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Essa reduo dos diferentes trabalhos a trabalho simples aparece como uma abstrao que se faz diariamente no processo da produo social. A reduo de todas as mercadorias a tempo de trabalho no uma abstrao maior nem menos real que a reduo a ar de todos os corpos orgnicos. De fato, o trabalho assim medido pelo tempo no aparece como trabalho de indivduos diferentes, antes os diferentes indivduos que trabalham aparecem normalmente como simples rgos do trabalho (Marx, 2003, p.15).
Segundo Jos Arthur Giannotti, embora real, essa relao no pode ser de
contrariedade, pois duas coisas contrrias se movimentam em sentido oposto sem
perder suas prprias identidades. "Dois trens que se chocam no so contraditrios"
(Giannotti, 1985, p.3) exemplifica para criticar a lgica de Ruy Fausto e sua retomada
da noo de substncia aristotlica. Ora, o trabalho concreto, quando se torna abstrato,
tem seu ncleo substancial afetado e, por isso, seria mais adequado nomear essa
relao de contradio real.
Seja como for, o trabalho abstrato pode ser considerado, a partir desta
discusso, como a substncia orgnica ou o universal concreto que se realiza todos os
dias no modo de produo capitalista. Mas como pode ser universal e concreto ao
mesmo tempo? Essa pergunta emerge do texto de Ruy Fausto e encontra a lgica da
posio, a qual esboamos resumidamente do seguinte modo: o que h de geral no
trabalho em sentido fisiolgico no o trabalho abstrato, a realidade natural
pressuposta posio do trabalho abstrato. Ou seja, evidentemente, desgaste
fisiolgico atributo do trabalho. No entanto, este aspecto no levado em conta no
modo de produo capitalista, embora esteja l como uma condio. O que posto, o
que aparece e o que levado em conta na produo do valor e, portanto, das
mercadorias para troca, o trabalho abstrato.
No a realidade biolgica da universalidade do trabalho que constitui o trabalho abstrato, mas a posio dessa realidade, e a posio no mais
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biolgica. A generalidade em sentido fisiolgico (no mais do que a generalidade abstrata e subjetiva) retomamos o problema num nvel mais elevado no constitui o trabalho abstrato: ela apenas a realidade natural pressuposta (posio) deste. A realidade social faz com que valha o que era apenas uma realidade natural. E que a abstrao do trabalho em sentido fisiolgico no pode constituir o trabalho abstrato, visvel pelo fato de que lhe falta o momento da singularidade. A identidade do trabalho no nvel fisiolgico a unidade dos trabalhos (fisiologicamente) idnticos. Cada trabalho considerado no nvel fisiolgico idntico ao outro, mas cada um um trabalho (e alm disso trabalho de algum). Com efeito, seria impossvel dizer que s existe, l, um trabalho, a menos que se os tome no nvel da representao. Ora, essa unidade pode (e deve) ser atribuda ao trabalho abstrato. Ele uma unidade (mesmo se, como diz Marx, esta unidade est 'constituda por inmeras foras de trabalho individuais'. Aqui a pluralidade segunda). E precisamente esta unidade que retira aos seus agentes a condio de sujeitos (Fausto, 1983, pp.91-92).
Esta uma perspectiva para se observar o papel do trabalho abstrato no
fenmeno do fetichismo da mercadoria. Exercendo a funo social de igualar o que
diferente, impe, na realidade cotidiana, seu papel ativo e, com isso, abafa seu
pressuposto: a condio de diferentes agentes executando trabalhos concretos e
particulares. A prova da existncia e das determinaes do trabalho abstrato, assim
como do valor, est na comparao com outros modos de produo: sem capitalismo,
h trabalho abstrato, valor, enfim, fetichismo?
Ao e representao
Seguindo o plano de usar metforas para abordar criticamente os conceitos da
economia poltica, Marx se vale da imagem do fetiche da mercadoria, e de seu
correlato fetichismo, para nomear o fenmeno de separao entre a natureza fsica dos
produtos de trabalho e a forma de valor com suas relaes sociais que faz com que
"apenas a relao social determinada dos prprios homens assuma aqui a forma
fantasmagrica de uma relao entre coisas" (Marx, 2006, p. 69). A partir dessa
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definio, parece que h consenso na literatura de que se trata de uma inverso na
relao entre coisas e pessoas, ou, pelo menos, de que as relaes entre as pessoas
aparece como relao entre coisas. O que gera controvrsia , principalmente, o papel
da conscincia dos agentes.
De um modo geral, se interpreta que o fetichismo um problema da conscincia
que elabora falsas representaes sobre a realidade do modo de produo das
mercadorias. Tambm pode-se tomar o fetichismo como a causa do quiproqu, como
uma conscincia fetichista que gera a prtica da inverso das relaes entre coisas e
pessoas. Ambas interpretaes se baseiam na separao entre a representao do
agente e a ao, de modo que o fetichismo seria um fenmeno que ocorre antes da
ao de produzir mercadoria, determinando-a, ou depois, na representao falsa do
fenmeno. Nossa aposta, a partir da leitura do primeiro captulo do Capital e
complementada por outros textos de Marx, na tese que sustenta que o fetichismo
est no processo mesmo da produo de mercadoria, nem antes, nem depois. Por isso,
a relao entre a representao e a ao no fetichismo da mercadoria nos parece
peculiar e passa, ento, a ocupar o centro da investigao.
Se a mercadoria guarda um enigma porque ela portadora das relaes sociais
de trabalho. Marx analisa, desse modo, como se d a transposio do atributo da ao
humana para a forma da mercadoria.
A igualdade dos trabalhos humanos adquire a forma coisificada da objetividade igual de valor dos produtos de trabalho, a medida do dispndio de fora humana de trabalho pela sua durao adquire a forma da grandeza de valor dos produtos de trabalho, e, finalmente, as relaes dos produtores, que devem efetuar seus trabalhos dentro daquelas determinaes sociais, adquirem a forma de uma relao social dos produtos de trabalho (Marx, 2006, pp. 68-69).
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Desse modo, Marx resume trs aspectos da ao de produzir mercadoria para
troca presentes no deslocamento do contedo para a forma. Com isso, aparecem as
determinaes da forma mercadoria com carter fetichista. Vejamos mais de perto
como funciona esse movimento.
A igualdade dos trabalhos humanos, ou seja, a necessidade de equiparar os
diferentes trabalhos para que haja troca, que constitui a abstrao do trabalho concreto
e, por conseguinte, do valor de uso, faz sobrar aquilo que igual em todos os
trabalhos, isto , o mero dispndio de fora humana de trabalho e, na mercadoria,
resta o valor. Tal ao de igualar os trabalhos , com efeito, a ao de objetivar o que
particular ao trabalho de cada um, tornar objetivo tambm o valor pelo mecanismo
da igualao. Com isso, aquilo que da ao das pessoas os seus trabalhos
adquire a forma de coisas; a mercadoria a objetivao do trabalho humano.
Para igualar os diferentes trabalhos toma-se aquilo que lhes comum: a medida
do dispndio de fora humana de trabalho pela sua durao. No entanto, o critrio da
quantidade de horas de trabalho das pessoas usado para formar a grandeza do valor
das coisas. A medida humana reveste a medida das coisas.
Dadas essas condies de produzir e trocar as coisas, as pessoas que agem nesse
sistema tambm se relacionam entre si pelas mesmas regras. As relaes entre
produtores, que devem efetuar seus trabalhos dentro das determinaes sociais,
assumem a forma de relaes entre as coisas produzidas, pois no mercado no
importa para quem se vende e, na produo, no importa para quem se produz.
Dissolvidas as pessoas que produzem, restam as coisas produzidas que estabelecem e
dominam as relaes entre as pessoas. Ou melhor, as determinaes do trabalho os
atributos humanos passam a existir nas coisas, na forma de valor.
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At este ponto da argumentao de Marx pode-se afirmar que no aparece o
sujeito com suas representaes. no pargrafo seguinte que encontramos a primeira
pista sobre a representao:
O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente em que elas refletem aos homens as caractersticas sociais de seu prprio trabalho como caractersticas objetivas dos produtos mesmos do trabalho, como propriedades naturais sociais destas coisas e, da, reflete tambm as relaes sociais dos produtores com o trabalho conjunto como uma relao existente fora deles, entre objetos. Por esse quiproqu, os produtos de trabalho se tornam mercadorias, coisas supra-sensveis sensveis, ou sociais (Marx, 2006, p. 69, traduo levemente modificada).
Com isso, sustentamos que o fetichismo, ou o mistrio da inverso, se d na
realidade da produo de mercadoria e que parte deste fenmeno refletir ou fazer
aparecer para seus agentes que as determinaes de suas aes o trabalho na
verdade so determinaes da coisa produzida. Mais ainda: a coisa produzida adquire
a aparncia de ter sido constituda por si mesma, naturalmente, e no pelo agente
produtor. Consequentemente, as relaes entre os agentes tambm aparecem como se
fossem relaes entre as coisas, as mercadorias. O foco, portanto, est mais na
transformao do produto em mercadoria, na ao, do que na conscincia.
Embora no seja a causa, a representao tem seu papel no fetichismo da
mercadoria. Qual o problema que a conscincia dos agentes enfrenta a ponto de
tornar-se mstica? Trata-se de erro, engano da razo, iluso, falsa conscincia?
Destacamos em Marx duas analogias para se aproximar desse problema. Uma
cientfica, que no funciona perfeitamente, e outra religiosa, que se encaixa
adequadamente no esquema do fetichismo. No por acaso que o discurso cientfico
pouco eficiente para explicar um fenmeno to metafsico ao passo que "a regio
nebulosa do mundo religioso" sirva perfeitamente como discurso comparativo. Nas
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palavras de Marx, o quiproqu da transformao do produto do trabalho em coisa
supra-sensvel sensvel comparado:
Assim tambm a impresso luminosa de uma coisa sobre o nervo tico no se apresenta como um estmulo subjetivo do prprio nervo tico, mas como forma objetiva de uma coisa fora do prprio olho. Mas, ao olhar, de fato lanada a luz de uma coisa, um objeto externo sobre uma outra coisa, o olho. uma relao fsica entre coisas fsicas (Marx, 2006, p.69).
Ora, a mercadoria, embora construo subjetiva do trabalhador, se apresenta ao
sujeito como forma objetiva de coisa externa a ele mas, efetivamente, quando o
sujeito v este objeto, se depara com algo independente dele. A analogia serve apenas
at esse ponto superficial. No funciona completamente pois, "ao contrrio, a forma
de valor e a relao de valor dos produtos de trabalho em que ela se apresenta no tm
absolutamente nada que ver com sua natureza fsica e com as referncias de coisas
que surgem dessa ltima" (Idem). Portanto, no caso do fenmeno da viso, a relao
fsica e se estabelece entre coisas fsicas, a correspondncia adequada; ao passo que
no fetichismo da mercadoria, a relao entre pessoas assume a forma de relao entre
coisas; a correspondncia fantasmagrica.
Do mesmo modo que a religio: "aqui os produtos da cabea humana parecem
dotados de vida prpria, relacionando-se uns com os outros e com os homens em
figuras autnomas" (Marx, 2006, pp.69-70). Por isso o fetiche serve como metfora
para nomear este fenmeno: o objeto produzido pelo homem, seja o deus cristo, seja
qualquer objeto de culto, aparece, aos olhos do sujeito, como se tivesse uma vida
independente e objetivada em relao ao seu criador, de modo que as relaes entre
estes fetiches e entre eles e os homens que os criaram passam a ser tambm
independentes e dominantes.
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Portanto, poderamos dizer que a representao que o sujeito faz da sua ao
opera no registro da iluso e, no entanto, no da ordem do erro ou engano. Como
no se trata de uma realidade oculta atrs da falsa aparncia, ento o fenmeno no
poderia estar inscrito no domnio da falsa conscincia. A prpria realidade, a
mercadoria concreta, apresenta-se para a conscincia j de forma invertida,
misteriosa, da optarmos pelo termo iluso real. Para compreender o papel da
conscincia, ou melhor, de como uma iluso pode ser real, lanamos uma distino
que supomos implcita na argumentao de Marx: a diferena entre conscincia
prtica10 e terica que corresponderia quilo que o sujeito sabe e o conhecimento que
ele se vale quando age. A conscincia fetichista faz a representao de que o trabalho
o valor da mercadoria e, no entanto, esta representao independente do
conhecimento dos agentes sobre as determinaes do valor.
A iluso real se fundamenta na relao entre o trabalho privado e o trabalho
social como atividade efetiva e concreta, fundamento, portanto, do fetichismo da
mercadoria. De que modo essa forma determinada, o trabalho privado, origina o
fetichismo?
Os trabalhos privados efetuam-se realmente como membros do trabalho conjunto social s atravs das referncias em que a troca transplanta os produtos de trabalhos e, por seu intermdio, os produtores. Para esses ltimos, as referncias sociais de seus trabalhos privados aparecem, por isso, como o que so, isto , no como relaes sociais imediatas das pessoas em seus prprios trabalhos, mas antes como relaes coisificadas das pessoas e relaes sociais das coisas (Marx, 2006, p.70, grifos nossos).
10 Tomamos os termos conscincia prtica e crena como sinnimos e como categorias contrastantes em relao conscincia terica ou saber. No entanto, no se pretende colocar o contraste como uma oposio forte, como se necessariamente as aes fossem sempre sem pensamento. O fetichismo abre a possibilidade da separao das duas categorias no sentido da inteno: o sujeito pode ter uma inteno porque sabe, mas age como se no soubesse, visto que sua prtica reflete a iluso da mercadoria como objeto autossuficiente e natural inteno da ao, diferente daquela do agente. Trataremos dessa reflexo mais adiante.
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Assim, a representao que os agentes fazem de suas aes e que Marx chama
aqui de referncias sociais de seus trabalhos privados no uma operao apenas
interna da conscincia dos agentes, antes representao da prpria realidade que
invertida e gera a iluso da inverso, s que uma iluso de realidade, de modo que os
agentes s se relacionam efetivamente atravs das mercadorias e essas, por sua vez,
dominam as relaes sociais como se fossem agentes. Mas continua sendo ilusria
porque s na troca que o produto ganha objetividade efetiva, s quando se
comparam os tempos de trabalho. Isto , o trabalhador privado tem liberdade de
produzir o que quiser pois independente dos demais produtores. No entanto,
socialmente determinado pois tem que produzir algo til para o outro e quem atribui
valor ao seu produto o outro produtor privado, ou ainda, o mercado. Portanto, o
produtor privado no pode controlar conscientemente nem planejar seu processo de
trabalho j que o reconhecimento real e efetivo de que o produto valor s se d com
o outro, na troca, quando se comparam os tempos de trabalho. Como se d a
representao do duplo carter da ao trabalho privado e social na cabea do
agente, produtor privado?
O crebro dos produtores privados espelha esse duplo carter social de seus trabalhos privados apenas sob as formas em que aparecem no intercmbio prtico, na troca de produtos: o carter socialmente til de seus trabalhos privados, portanto, sob a forma em que o produto de trabalho deve ser til e, na verdade, para outros; o carter social da igualdade de trabalho de tipo variado sob a forma do carter de valor comum dessas coisas materialmente diversas, os produtos de trabalho (Marx, 2006, p. 71).
A representao filtrada pela troca e reflete a inverso mesma da realidade,
qual seja, a abstrao dos diferentes trabalhos como simplesmente iguais e, por
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conseguinte, dos diferentes produtos como valores comuns. O trabalho representado
pela coisa til para o outro a mercadoria e esta, por sua vez, representada pelo
trabalho social. Marx assinala que a representao do agente se debrua
reflexivamente sobre o intercmbio prtico, isto , a conscincia age no interior do
processo de troca de modo a captar apenas esta parte11 do processo de formao do
valor.
No momento da troca, a relao entre o atributo humano e a coisa contrria, ou
seja, trocam os diferentes produtos e, para tanto, precisam igualar seus diferentes
trabalhos. "Eles no o sabem, mas o fazem12" (Marx, 2006, p. 72). A iluso parece,
assim, incidir sobre o saber, sobre a conscincia dos agentes, que seria diferente de
sua prtica. Isso at pode acontecer, mas no a raiz do fetiche. Ora, se o problema
fosse apenas da ordem da conscincia, da falsa conscincia ou de suas limitaes,
bastariam esclarecimento e alargamento da viso para solucion-lo. Entretanto, a
iluso fetichista, como vimos, no mero equvoco, mas antes um fenmeno real.
Essa frmula13, portanto, s pode indicar que h uma conscincia terica do agente - o
11 A viso parcial do reflexo invertido da realidade poderia sugerir que basta a descoberta da totalidade do processo de formao do valor para que a conscincia se torne esclarecida e talvez desfetichizada. Mas da neste caso seria necessrio considerar que o saber terico da conscincia igual crena da conscincia prtica. Este processo que exige a percepo da totalidade, ou ainda, que encontra sua soluo na apreenso do todo ou no reconhecimento social ser desenvolvido por Lukcs sob o nome do reificao.
12 Mais uma referncia religiosa utilizada por Marx para tratar do fetichismo: "perdoai-lhes, pai, eles no sabem o que fazem", a frase que Jesus dirige a Deus quando estava crucificado, pedindo o perdo dos seus detratores.
13 Slavoj Zizek chamou a ateno para a possibilidade de erro de interpretao desta frmula de Marx, acrescentando que "o que 'no sabem', o que desconhecem, o fato de que, em sua prpria realidade social, em sua atividade social no ato de troca da mercadoria , esto sendo guiados pela iluso fetichista" (Zizek, 1996, p. 315). O perigoso jogo de "agir como se fosse mas sabendo que no " poderia ser associado separao entre aquilo que chamamos de conscincia prtica (crena) formadora da disposio para a ao e conscincia terica (saber). At aqui a interpretao de Zizek no se distancia da nossa. O que se pode colocar em questo o conceito de razo cnica utilizado por Zizek, emprestado de Peter Sloterdijk, como instrumento de atualizao do fetichismo da mercadoria.
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saber - que no tem o poder de modificar sua prtica, pois no capaz de afetar sua
conscincia prtica ou crena.
Se a representao no exata porque o valor no transparente. Mas
inevitvel que a ao continue a mesma porque o fetichismo est impregnado na
mercadoria e, mesmo que a representao se modifique, mesmo que os agentes
descubram que "os produtos de trabalho, na medida em que so valores, so simples
expresses coisificadas do trabalho humano despendido em sua produo" (Marx,
2006, p. 72), ainda assim o produto social continua com a aparncia de objetividade,
como se no fosse produto da ao desses mesmos agentes que fizeram a descoberta.
A conscincia terica insuficiente porque a iluso que engendra a representao
real, com efeitos na prtica. Porque a ao que forma o fetichismo no determinada
pelas conscincias dos homens privados e independentes, determinada antes pelo
sistema das mercadorias.
Mesmo desvendando o hierglifo social, o enigma do fetichismo, os homens
continuam trocando seus produtos de modo que lhes parece to natural e necessrio
que as coisas parecem ter seu prprio movimento, e da se esfumaa a relao entre o
agente e a ao. A representao para o trabalhador de que as coisas passam a ser os
agentes com autonomia e controle, como criaturas nascidas por gerao espontnea,
pois no mais possvel que o sujeito se reconhea14 no objeto.
14 O tema do reconhecimento tal como aparece em Axel Honneth pode oferecer uma sada para o problema e, de outro modo, a conscincia de classe analisada por Lukcs. Mas entendemos que so sadas para o problema da reificao, no para o problema do fetichismo. Lemos em Honneth: "Em minha opinio, uma tendncia auto-reificao surge quando comeamos outra vez a esquecer esta auto-provao preliminar ao conceber nossas sensaes psquicas s como objetos para ser observados ou produzidos" (Honneth, 2007, p.143). Preferimos contornar essas solues por entender que h algo mais sutil no texto de Marx que faz da relao entre ao e representao algo que no se traduz no problema da falsa conscincia, at mesmo porque a ao ultrapassa a conscincia.
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Efetivamente as relaes sociais que formam as grandezas de valor passam a
dominar os homens porque so mediadas pelas mercadorias. Estas coisas criadas
pelos homens tm aparncia natural; fator que contribui para que sejam representadas
como coisas externas e independentes dos agentes. As grandezas de valor das coisas
so, desse modo, as medidas sociais dos trabalhos que fixam o valor dos produtos
tanto na aparncia como finalmente na realidade efetiva. A diferena entre a
representao da realidade e a coisificao do trabalho humano que, aparentemente,
essa inverso casual, mas, efetivamente, prpria do modo de produo capitalista.
Por isso, a determinao da grandeza de valor pelo tempo de trabalho um dos segredos ocultos sob os movimentos aparentes dos valores relativos das mercadorias. Sua descoberta ultrapassa a aparncia da determinao meramente casual das grandezas de valor dos produtos de trabalho, mas de modo algum sua forma coisificada (Marx, 2006, p. 74).
A impotncia do esclarecimento mostra-se perversa quando a descoberta no
pode transformar a prxis. Neste sentido, a descoberta tambm ineficaz quando as
relaes j esto naturalizadas e, com isso, no possvel perceber seu carter
histrico. O fetichismo , nesta medida, de ordem prtica15.
Esta ordem prtica se d tanto na ao do sujeito, individualmente, como na
prtica social. Isto porque h uma relao de dependncia e ao mesmo tempo de
15 As relaes de trabalho no sculo XIX, de modo geral, no so mais da ordem da poisis, da atividade que o arteso mentaliza (noiesis) o objeto externo que ser produzido e em seguida passa a imprimir a motricidade na matria para conferir uma forma. Se fosse poisis, estava garantida a subjetividade da ao e a vontade estaria subordinada ao sujeito. Ao contrrio, o trabalho descrito por Marx parte de um grande processo inserido necessariamente num sistema. prxis pertencente a uma totalidade que impe sua vontade sobre os agentes. Giannotti vai mais longe quando destaca a diferena entre prxis e poisis no artigo "O Ardil do Trabalho" para sustentar a mudana do estatuto ontolgico da tcnica. "Deslocando o trabalho para o universo do processo, retirando-o da esfera da emerso e surgimento da coisa para situ-lo na circularidade da interiorizao e da exteriorizao, Marx faz dele prxis ao invs de poisis" (Giannotti, 1983, p.99). Mas o ponto que nos interessa neste momento apenas marcar o estatuto da ao. Mais adiante trataremos da relao entre prxis e poisis.
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independncia entre os produtores, pois afinal o trabalho individual e social. Em que
sentido haveria, concomitantemente, dependncia e independncia? A independncia
aparece junto com a forma privada de apropriar-se dos meios de produo. Quando os
indivduos se apropriam de modo privado, significa que h certa autonomia dos
produtores e das relaes entre eles. "As coisas so extrnsecas ao homem e, assim,
por ele alienveis. Para a alienao ser recproca, mister que os homens se
confrontem, reconhecendo, tacitamente, a respectiva posio de proprietrios
particulares dessas coisas alienveis e, em consequncia, a de pessoas independentes
entre si" (Marx, 1999, p. 112). Assim, a existncia da apropriao privada ou de
produtores privados requisito para esta forma de sociabilidade. Est centrada na
produo, ou mais especificamente, nas condies de produo onde o indivduo
livre para produzir o quiser. Alm disso, o indivduo no tem relao direta, planejada
e consciente com os outros indivduos e seus trabalhos privados. Por isso, nesta forma
de produo capitalista, a conscincia individual se debrua somente sobre o carter
individual do seu trabalho o trabalho concreto ofuscando-lhe o carter social o
trabalho abstrato, de modo que se abre espao para o fetichismo.
Por outro lado, a dependncia aparece, no como requisito, mas como uma
consequncia. Se d no sentido de nexo social, onde cada produtor privado
independente necessita dos outros produtores privados para a troca, ou alienao,
como na citao anterior. A contradio, assim, entre dependncia e independncia se
coloca nos seguintes termos:
O ponto verdadeiro est, sobretudo, em que o prprio interesse privado j um interesse socialmente determinado, e pode-se alcan-lo somente no mbito das condies que fixa a sociedade, e com os meios que ela oferece; est ligado, por conseguinte, reproduo destas condies e destes meios. Trata-se do interesse dos particulares; mas, seu contedo,
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assim como a forma, e os meios de sua realizao, esto dados pelas condies sociais independentes de todos (Marx, 2007, p. 84).
Com isso, a contradio se coloca na medida em que a independncia do
indivduo privado, na produo, determinada pela dependncia social, no caso, desta
forma especfica de sociabilidade em que imperam as regras da troca. No final das
contas, a independncia da produo significa que o processo de produo se torna
independente ou alheio aos prprios produtores privados:
Os componentes dispersos do organismo social de produo, configurados na diviso social do trabalho, tm suas funes e proporcionalidade determinadas de maneira espontnea e aleatria. Por isso, descobrem nossos donos de mercadorias que a mesma diviso do trabalho, ao fazer deles produtores privados, torna independente deles o processo social de produo, e, ainda, que a independncia recproca das pessoas se integra num sistema de dependncia material de todas as partes (Marx, 1999, p.135).
O enrosco, portanto, parte da produo de mercadorias e se realiza na
conscincia dos produtores privados. Ao representar em suas cabeas a autonomia e
independncia na sua produo, ou seja, ao perceberem somente o carter concreto do
seu trabalho, terminam determinados por seu produto, a mercadoria, que os faz
dependentes uns dos outros e impe, pela forma social que parece natural, as relaes
sociais entre eles. Este enrosco justamente o fetichismo da mercadoria, prprio,
portanto, desta forma de sociabilidade criticada por Marx.
Ao tomar outras formas de produo historicamente j desenvolvidas bem como
outras hipotticas, Marx demonstra que o fetichismo no nem natural nem
necessrio, embora seja intrnseco a essa forma histrica especfica da produo
capitalista.
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A prova: outros modos de produo
Para tanto, Marx analisa quatro formas de produo em que, supostamente, no
h fetichismo: a produo isolada independente (robinsonadas), a produo
dependente da Idade Mdia europia, a indstria patriarcal rural de famlia camponesa
e a produo comunitria de homens livres. So formas muito diferentes de produo
mas que tm em comum o fato de que os produtores so conscientes do processo e
das relaes de produo. No h, portanto, inverso entre o papel das coisas e das
pessoas.
No caso de Robinson Cruso, ele representa em sua cabea de forma simples e
transparente as coisas por ele produzidas, ele forma a crena de que o mesmo
homem que faz os diferentes trabalhos, tem registro das operaes necessrias para as
diferentes produes, assim como do tempo em mdia necessrio para cada produo,
enfim, h planejamento. No caso do modo de produo medieval, ao contrrio do
indivduo independente e isolado, h tanta dependncia das relaes de produo e
das outras esferas da vida dos homens que os produtos e os trabalhos no se revestem
de um misticismo que oculte sua realidade. As coisas e as pessoas atuam de forma
imediata e clara, os papis sociais esto determinados e so fixos. No h forma de
ocultar: "O dzimo prestado ao padre mais claro que a bno do padre" (Marx,
2006, p.77). Assim, a dependncia social neste caso, e a independncia individual no
primeiro caso, no se colocam ao mesmo tempo, como j vimos que se d nas
determinaes do sistema capitalista de produo.
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No caso da forma de produo da famlia rural, tambm no h coisificao do
trabalho. No h mercado, pois tudo imediatamente socializado como produto.
Alm disso, no h necessidade da mediao das coisas nas relaes entre as pessoas,
porque os diferentes trabalhos so distribudos naturalmente pela prpria estrutura da
famlia e regulados realmente pela natureza e no pelo valor. "Mas o dispndio das
foras de trabalho individuais, medidas pelo tempo de trabalho, aparece aqui desde o
comeo como determinao social dos prprios trabalhos, pois as foras de trabalho
individuais atuam desde o comeo como rgos da fora de trabalho comum da
famlia" (Marx, 2006, p. 78) e no como atributo absoluto do valor.
Por fim, est o caso da associao comunitria de homens livres cujos meios
de produo so comunitrios e cada trabalho individual imediatamente social.
Nesta situao hipottica tudo que produzido social e ser em parte compartilhado
entre todos e em parte usado para repor e manter o sistema de produo. Com isso,
est garantida a reproduo da vida (com o consumo individual de parte da produo
social) e dos meios de vida (com a reposio de parte da produo social nos meios de
produo, que so comunitrios). Que critrio ser usado para distribuir o conjunto da
produo social entre os indivduos? Depende, diz Marx, de como se organizam
especificamente para a produo e do nvel de desenvolvimento social que atingirem.
No entanto, Marx faz uma suposio para esse critrio de diviso: o tempo de
trabalho. Precisamente um dos aspectos encontrados no modo de produo capitalista.
O que acontece aqui na comunidade com o critrio da medida do tempo de trabalho?
O tempo de trabalho desempenharia, assim, um duplo papel. Sua diviso social planificada regula a proporo entre as diversas funes de trabalho e as diversas necessidades. Por outro lado, o tempo de trabalho serve ao mesmo tempo de medida da cota individual dos produtores no trabalho
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conjunto e, da, tambm na parte individualmente gasta do produto total (Marx, 2006, pp. 78-9).
Ou seja, mesmo tomando o tempo de trabalho como medida, no necessrio
que se forje o trabalho abstrato. Basta que o tempo de trabalho no seja objetivado no
valor, como feito no modo de produo capitalista. Na comunidade de homens
livres, o tempo de trabalho dos homens critrio de distribuio do que produzido
proporcionalmente ao prprio trabalho. J no sistema mercantil, o tempo de trabalho
dos homens atributo das coisas, a medida de comparao necessria para atribuir
valor s coisas. Se, no modo de produo capitalista, o tempo de trabalho atributo
das coisas, na comunidade de homens livres, o tempo de trabalho atributo do
prprio trabalho. No capitalismo, a medida do tempo de trabalho aparece como se
fosse um atributo absoluto e se sobrepe ao natural, coisa mesma, que continua l,
s que com a aparncia ilusria. Pode-se resolver a diviso social do trabalho de
forma transparente e imediata, com planejamento social, caso os meios de produo
sejam coletivos e a medida do homem no se transforme em medida da coisa.
Parece que Marx tomou quatro modos de produo diferentes, mas o que eles
tm em comum que cada um carregaria um aspecto do capitalismo. Quando Marx
revela a origem do carter misterioso da mercadoria, comea negando que seja pelo
contedo das determinaes do valor, ou seja, o enigma no provm da abstrao do
trabalho, nem do tempo de trabalho ou de uma forma geral do trabalho. Agora ele
mostra no s a determinao histrica como mostra que possvel manter alguns
aspectos do sistema, como o contedo da determinao do valor, e no existir
fetichismo. No caso de Robinson, as determinaes do valor esto presentes16, mas de
16 A frase registrada ao final da descrio da Ilha de Robinson, "a esto contidas todas as determinaes essenciais do valor" foi motivo de muitos equvocos de interpretao (Cf. Castoriadis,
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forma transparente; na Idade Mdia est a relao de dependncia entre os produtores,
s que no pela troca, ento no h mercado; na famlia camponesa est a diviso do
trabalho s que natural e no social; na comunidade dos homens livres, a medida at
pode ser o tempo de trabalho, mas ele planificado, transparente e coletivo.
Com isso, Marx indica que o fetichismo fruto de uma forma de produo
histrica e aponta uma sada para o ocultamento das relaes: "A figura do processo
de vida social, isto , do processo de produo material, despir o seu vu de nvoa
mstica apenas quando se colocar como produto de homens livremente sociabilizados
e sob seu controle consciente e planificado" (Marx, 2006, p. 80). Trata-se de construir
relaes sociais sem a mediao das coisas efetivamente e com isso a transparncia do
processo refletir na conscincia, na representao de agentes que controlam seu
processo de produo. importante ressaltar que o fetichismo no ser desfeito por
obra da conscincia e do planejamento. Ao contrrio: s ser possvel atingir o
controle consciente e planificado quando os homens puderem construir outras formas
de produo material. "(...) preciso uma base material para a sociedade ou uma srie
1997). Segundo Ruy Fausto, Marx trabalha com estas quatro formas de produo para mostrar a "diferena sobre o fundo de uma identidade", no caso, os quatro modos de produo no tm trabalho abstrato nem valor, pois a forma social a forma imediata do produto. Mas como explicar que no sistema de produo de Robinson esto todas as determinaes do valor, sem haver valor? Ora, o valor no est posto, s suas determinaes, pois preciso, dentre outras coisas, a troca sistemtica e a produo para troca para que haja valor, a posio do valor. As determinaes do valor, segundo Ruy Fausto, esto presentes pois h o critrio do tempo de trabalho e da distribuio (no socialmente, claro, pois trata-se do individuo isolado, mas da distribuio do seu prprio tempo de trabalho); porm falta a posio objetiva do valor. Assim, as determinaes do valor existem como representao, na cabea de Robinson e na conscincia dos planificadores da sociedade de homens livres, ou at como resultado dessa representao, mas no como existncia social efetiva. "Mesmo plenamente determinado, o conceito no ele prprio se no for posto" (Cf. Fausto, 1983, pp. 103-107). J Giannotti indica que alm da presentificao do valor, necessria a reposio pelas trocas dos valores de uso, determinando a contradio plena desde o incio, como marca do sistema capitalista de produo. Marca, assim, a importncia da temporalidade: "O que me interessa salientar, contudo, que no existe uma substncia valor, algo fixo e residual, que pudesse receber determinaes contraditrias; o valor se constitui como substncia fantstica na travessia de suas aparncias, no curso de seus valores de troca, pondo-se numa presena que retira, do tempo sucessivo, os produtos do trabalho concreto. Isto graas a um esquema de comportamento, a um jogo de linguagem, onde cada representao antecipa apenas seu outro" (Giannotti, 1985, p.4). O ponto de diferena entre as duas interpretaes, segundo este ltimo, est no deslocamento do lugar da reflexo: enquanto Ruy Fausto operaria com um juzo da reflexo, Giannotti trata dos objetos reflexionantes.
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de condies de existncia material, que so, elas mesmas, o produto espontneo de
uma histria de desenvolvimento longo e penoso" (Marx, 2006, p. 80). Independente
da experincia17 que o sculo XX nos mostra, o que se quer ressaltar aqui,
filosoficamente, que a conscincia terica, para Marx, ineficaz para esse processo,
pois est sempre emaranhada na representao de que o valor no criao do agente,
atributo absoluto da coisa. E, como vimos, mesmo que a conscincia possa fazer
essa descoberta, a ao continua necessariamente a mesma, pois o tempo de trabalho
continuar sendo a medida da formao do valor.
Outras formas do fetichismo do valor
Apesar de Marx desenvolver explicitamente e nomear apenas poucas formas
de fetichismo mercadoria, dinheiro e capital produtor de juros entendemos que, na
medida em que se d a autonomizao do valor e das formas, o fetiche tambm se
desdobra nestas outras determinaes. Poderamos afirmar que h um "fetichismo do
valor", pois as diferentes formas do valor so figuras fetichizadas, mesmo que cada
uma delas tenha suas peculiaridades. Desse modo, apenas vamos mencionar algumas
formas do fetiche do valor, como dinheiro, capital, taxa de lucro e capital produtor de
juros, a fim de certificar a amplitude do conceito e seus contornos, ao mesmo tempo
em que isso pode contribuir para esclarecer qual o papel do fetichismo n`O Capital
em relao ao projeto de crtica da economia poltica de Marx.
17 Poderia ser muito interessante confrontar essa pequena passagem com a histria posterior, do sculo XX, atravs de algum projeto conjunto na rea de Histria.
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Com isso, tambm se pretende aproximar do objeto de estudos de Marx, isto ,
da economia poltica de modo mais amplo, onde se encontram as categorias reais em
contradio entre si e seu modo de manifestao fetichista. Ao apreender estas
contradies, entende-se como a realidade material forja as representaes dos
agentes, e, no limite, o fetichismo.
Como a autonomizao da mercadoria conduz ao fetiche do dinheiro? Vemos
no incio d`O Capital a evoluo das formas de valor, desde a forma simples ou
fortuita, passando pela forma total, pela forma geral e, finalmente, se alcana a forma
dinheiro do valor. Esta a gnese do dinheiro. Conforme aumenta a autonomizao
do valor, vemos crescer a iluso produzida nas conscincias dos agentes, tanto do
processo de produo quanto de circulao. As aparncias que brotam da forma
dinheiro enquanto objeto de troca, e parte do processo de circulao, completam o
fenmeno do fetiche do dinheiro.
Na expresso mais simples do valor, x da mercadoria A = y da mercadoria B, a coisa (B) que representa a magnitude de valor da outra (A) parece possuir forma de equivalente, independentemente dessa relao, como propriedade social de sua natureza. Investigamos como se consolidou essa falsa aparncia. Ela se imps quando a forma de equivalente geral se fundiu com a forma corprea de determinada espcie de mercadoria ou se cristalizou na forma dinheiro. Segundo essa aparncia ilusria, uma mercadoria no se torna dinheiro somente porque todas as outras nela representam seu valor, mas, ao contrrio, todas as demais nela expressam seus valores, porque ela dinheiro. Ao se atingir o resultado final, a fase intermediria desaparece sem deixar vestgios. As mercadorias, ento, sem nada fazerem, encontram a figura do seu valor, pronta e acabada, no corpo de uma mercadoria existente fora delas e ao lado delas. Ouro e prata j saem das entranhas da terra como encarnao direta de todo trabalho humano. Da a magia do dinheiro. Os homens procedem de maneira atomstica no processo de produo social e suas relaes de produo assumem uma configurao material que no depende de seu controle nem de sua ao consciente individual. Esses fenmenos se manifestam na transformao geral dos produtos do trabalho em mercadorias, transformao que gera a mercadoria equivalente universal, o dinheiro. O enigma do fetiche dinheiro , assim, nada mais do que o enigma do fetiche mercadoria em forma patente e deslumbrante (Marx, 1999, p. 117).
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O espelhamento do valor na mercadoria equivalente gera a iluso de que o
valor uma propriedade natural. Esse mecanismo forma o fetichismo da mercadoria e
tambm o do dinheiro quando as mercadorias se representam no equivalente
universal. Desse modo, o dinheiro fruto de um ato social (e no natural), pois sua
existncia e consolidao so forjadas quando todas as mercadorias se espelham nele
(e no antes disso). Alm do deslocamento da relao social para a aparncia natural,
esta forma de fetiche consiste no dinheiro apagar as mediaes entre o princpio de
que todas as mercadorias representam seu valor numa nica mercadoria, e o resultado
que a forma de aparecimento do dinheiro, a saber, que todas as mercadorias refletem
seu valor em apenas uma mercadoria justamente porque ela dinheiro.
Consequentemente, o dinheiro autonomizado em relao ao processo de produo
material e passa a transferir, efetivamente, ao seu possuidor, o controle do trabalho
dos outros.
Para tanto, a conscincia do agente, do ponto de vista do possuidor de
mercadoria, toma o processo de troca como se fosse individual, mesmo sabendo que
processo social. "Cada proprietrio de uma mercadoria s a cede por outra cujo valor
de uso satisfaz necessidade sua. Assim, a troca , para ele, processo puramente
individual" (Marx, 1999, p.110). A conscincia do agente considera o processo de
troca antes do consumo, ou seja, sua mercadoria valor. No entanto, se sua
mercadoria no for valor de uso para o outro, no h troca e ele no poder adquirir
uma mercadoria com valor de uso para si mesmo. Ento, a mercadoria precisa ser
valor de uso antes de ser um valor. Da a compreenso de que o processo de troca
um processo social, ao mesmo tempo em que, na conscincia do agente, consta como
processo individual.
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O desenvolvimento histrico da troca desdobra a oposio, latente na natureza das mercadorias, entre valor de uso e valor. A necessidade, para o intercmbio, de exteriorizar essa oposio exige forma independente para o valor da mercadoria e persiste at que, finalmente, satisfeita com a duplicao da mercadoria em mercadoria e dinheiro (Marx, 1999, pp.112-112).
Marx, desse modo, evidencia o modo em que se forja o dinheiro mostrando
que, por um lado, no natural, por outro, necessrio quando as trocas se implantam
no modo de produo histrico, como o sistema do capital, e que sua origem est na
forma mais simples, a mercadoria. Oriundo da confuso18 entre valor de uso e valor,
entre contedo e forma, o fetiche do dinheiro gera dois grandes erros ou iluses
falsas. Marx os coloca da seguinte maneira:
O processo de troca d mercadoria que transforma em dinheiro, no o valor dela, mas sua forma especfica de valor. A confuso entre esses dois elementos, valor e sua forma, induziu ao erro de se considerar imaginrio o valor do ouro e da prata. Alm disso, por ser possvel substituir o ouro em certas funes por meros smbolos dele mesmo, sups-se, erroneamente, que era mero smbolo. Mas nessa ideia falsa se contm o pressentimento de que a forma dinheiro de uma coisa exterior prpria coisa, sendo pura forma de se manifestarem relaes humanas atrs dela ocultas. Neste sentido, cada mercadoria seria um smbolo, pois, como valor, apenas invlucro material do trabalho humano nela despendido (Marx, 1999, p.115).
A iluso de que o dinheiro tem uma forma que independente de seu
contedo finca p na realidade na medida em que confere ao dinheiro o poder de
controlar as relaes entre os homens. O dinheiro, enquanto uma mercadoria singular,
18 Mais do que confuso entre valor de uso e valor, o fetiche do dinheiro se instala tambm na oposio do duplo carter do trabalho, e se coloca como contradio imanente: "A contradio imanente mercadoria, que se patenteia na oposio entre valor de uso e valor, no trabalho privado, que tem, ao mesmo tempo, de funcionar como trabalho social imediato, no trabalho concreto particular, que, ao mesmo tempo, s vale como trabalho abstrato geral, e que transparece na oposio entre a personificao das coisas e a representao das pessoas por coisas essa contradio imanente atinge formas completas de manifestar-se nas fases opostas da metamorfose das mercadorias" (Marx, 1999, p. 140).
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tem a capacidade de encarnar o contedo social e, com isso, medir o valor de todas as
outras mercadorias. No entanto, essa capa