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CAMPBELLSVILLE UNIVERSITY
JONAS MONTEIRO ARRAES
PAISAGEM SONORA DE BELÉM DO PARÁ: ASPECTOS E REGISTROS DOS
SONS URBANOS NO SÉCULO XX ATÉ OS DIAS DE HOJE
RECIFE – PE
2005
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JONAS MONTEIRO ARRAES
PAISAGEM SONORA DE BELÉM DO PARÁ: ASPECTOS E REGISTROS DOS
SONS URBANOS NO SÉCULO XX ATÉ OS DIAS DE HOJE
Dissertação apresentada comorequisito parcial à obtenção dograu de Mestre do curso depós-graduação em ArtesMusicais, da CampbellsvilleUniversity, sob orientação doProfessor Dr. Alcingstone
Cunha.
Recife – PE
2005
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JONAS MONTEIRO ARRAES
FOLHA DE APROVAÇÃO
PAISAGEM SONORA DE BELÉM DO PARÁ: ASPECTOS E REGISTROS DOS
SONS URBANOS NO SÉCULO XX ATÉ OS DIAS DE HOJE
Avaliado por:
Recife – PE _____/______/_______
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À cidade de Belém do Pará que me ensinou a ver com os ouvidos.
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AGRADECIMENTOS
A Jesus Cristo que pacientemente espera pelos meus bons atos.
À minha esposa Rosa Arraes, provocadora da idéia da tese e grande colaboradora e
aos meus filhos Luciana e Raoni, que amainam meus sacrifícios.
Ao meu orientador Prof. Dr. Alcingstone Cunha pela competência, profissionalismo e
paciência.
Aos amigos Carlos Augusto e Urubatan Castro pelas contribuições.
Ao Dr. Luiz Mindelo, narrador de deliciosos causos sonoros e grandes companheiro
da arqueologia sonora.
Ao Professor Dr. Aldrin Figueiredo, por sua valiosa colaboração quando da busca
das fontes e do percurso inicial.
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Se ficarmos todos surdos, simplesmente não haverá mais música. Uma das
definições de ruído é que ele é o som que aprendemos a ignorar. E, como nós o
temos ignorado por tanto tempo, ele agora foge completamente ao nosso controle.
Murray Schafer
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ARRAES, Jonas Monteiro. Paisagem Sonora de Belém do Pará: aspectos
e registros dos sons urbanos no século XX até os dias de hoje. 2005. 99 f.
Dissertação (Mestrado em Artes Musicais) – Universidade de Campbellsville, USA.
RESUMO
Este trabalho discutirá a evolução da sonoridade da cidade de Belém, capital
do estado do Pará, desde o início do século XX, até os dias hoje. Para melhor
compreensão dos fenômenos que ocasionaram grandes mudanças na quantidade e
qualidade dos sons que encontramos atualmente permeando o território auditivo da
urbe, buscamos conhecer a origem do núcleo urbano e os personagens que aqui
chegaram para ocupar o lugar que há milênios era propriedade dos índios.
Ao discutir a contemporaneidade buscaremos entender a relação daspessoas com a música e com os ruídos, no sentido de colaborar com a premente
necessidade de dominar os efeitos nocivos da poluição sonora, abrindo caminho
para enriquecer a nova ciência que une música e ecologia, a ecologia sonora.
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ABSTRACT
This paper discusses the evolution of sound in the City of Belém, Capital of
the State of Pará, Brazil, from the beginning of the Twentieth Century up until current
times. To better understand the phenomena that bring about great changes in the
quantity and the quality of sounds that today permeate the auditive territory of the
urb, we have sought to understand the origin of the urban nucleus and the persons
who arrived in this city to occupy a place that for thousands of years belonged to the
Indians.
Upon discussing the contemporary setting, we seek to understand the
relationship among people and music and noise, so as to cooperate with the urgent
necessity to control the harmfull effects of sound pollution, thus opening paths to
enrich the new science that joints music and ecology, called sound ecology.
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SUMÁRIO
FOLHA DE APROVAÇÃO .........................................................................................iii
DEDICATÓRIA .......................................................................................................... iv
AGRADECIMENTOS ..................................................................................................v
RESUMO .................................................................................................................. vii
ABSTRACT ...............................................................................................................viii
LISTA DE FIGURAS .................................................................................................. x
INTRODUÇÃO............................................................................................................ 1
I - PRIMEIROS SONS DE UMA CIDADE NOVA ....................................................... 6
1.1 - A chegada dos portugueses................................................................................ 6
1.2- Primeiros passos e sons da cidade.....................................................................10
II – A BUSCA DO SOUNDSCAPE DE BELÉM NO SÉCULO XX............................ 15
2.1 – De cavalos a bondes: a velocidade sonora que chega.....................................15
2.2 - Orquestras, bandas de música e grupos musicais............................................23
2.3 –Vendo imagens sonoras.....................................................................................34
2.4 – Poluição sonora, refúgios e jardins sonoros .....................................................49
III – ENCONTROS E CONFRONTOS DOS SONS ...................................................49
3.1 – A diversidade sonora de uma cidade amazônica do século XXI .....................49
3.2 – Análise sócio musical da influência da evolução sonora e musical sobre os
habitantes de Belém...................................................................................................57
3.3 - Propostas de encontros sonoros em passeios sensitivos..................................68
IV - CONCLUSÃO. ....................................................................................................78
V - BIBLIOGRAFIA. .................................................................................................81
VI – ANEXOS ........................................................................................................... 85
6.1 – Anexo I – Lei Nº 7.990/2000, de 10 de janeiro de 2000....................................85
6.2 – Anexo II – Entrevista com o Dr. Luiz Mindelo ...................................................97
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x
LISTA DE FIGURAS
1- Figura 1. A Fundação da cidade de Belém. .......................................................... 9
2- Figura 2. Forte do Castelo .................................................................................... 10
3- Figura 3. Mapa da cidade de Belém, em 1773..................................................... 12
4- Figura 4. O Barco Pô-Pô-Pô................................................................................. 37
5- Figura 5: Quadro de queixas registradas no CIOP............................................... 44
6- Figura 6: Quadro de queixas registradas na DEMA ............................................ 45
7- Figura 7: Níveis de ruídos da Grande Belém....................................................... 46
8- Figura 8. Residência às margens do Rio Guamá................................................ 52
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INTRODUÇÃO
Mais que a vontade de colaborar ou a preocupação de um cidadão que vive
intensamente sua cidade, optei por desenvolver esta pesquisa com intuito de
apresentar uma nova abordagem às questões já postas em debate no que diz
respeito ao meio ambiente auditivo, ou, como bem sintetiza R. Murray Schafer
(1933– ), no prefácio da edição brasileira do seu livro “A afinação do mundo” (2001):
A maior parte dos sons que ouvimos nas cidades, hoje em dia,pertence a alguém e é utilizada retoricamente para atrair nossa atenção oupara nos vender alguma coisa. À medida que a guerra pela posse dosnossos ouvidos aumenta, o mundo fica cada vez mais superpovoado desons, mas, ao mesmo tempo, a variedade de alguns deles decresce. Sonsmanufaturados são uniformes e, quanto mais eles dominam a paisagemsonora, mais homogênea ela se torna. Há muitas “espécies em extinção”na paisagem sonora atual. Elas precisam ser protegidas, do mesmo modoque a natureza. De fato, muitos sons em extinção são sons da natureza,dos quais as pessoas cada vez mais se alienam. (p. 12)
A motivação pela participação dos debates a respeito do meio ambiente
acústico esta centrada no desejo de viver numa cidade em pleno desenvolvimento,
mas que respeite suas tradições, seu passado, seu memorial auditivo, sua culturaimaterial e seu ambiente amazônico.
Um ditado muito popular em Belém diz: “Belém: a cidade do já teve”. Esta
referência lamentosa e saudosista é uma forma muito competente que a população
encontra para fazer seu protesto em face da degradação constante e cada vez mais
violenta do meio ambiente urbano.
Cada dia fica mais difícil a convivência dos costumes atuais com que restou
do glamour da Belle-Époque, vivida pela cidade no final do século XIX até as duas
décadas do início do século XX.
A sonoridade de Belém mudou muito no decorrer do século XX, acompanhando
sua evolução demográfica. Com cerca de 100 mil habitantes nos primeiros anos do
século a cidade tem hoje aproximadamente 1,3 milhão de habitantes.
Todos os dias vemos casas e prédios antigos, de arquitetura nobre e
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refinada, serem abandonados ao sabor do tempo, não obstante o relevante trabalho
realizado pelo poder público que restaurou vários prédios, casas, igrejas, palacetes,
monumentos e logradouros públicos.
Estas ações governamentais recentes são poucas se comparadas aos
inúmeros monumentos, casarios, igrejas e logradouros que estão vitimados por anos
de abandono de nosso patrimônio histórico. Lugares pitorescos da cidade, onde se
podia respirar um ar saudável e ouvir a natureza em seu melhor esplendor sonoro,
foram invadidos pela faminta especulação imobiliária. Verdadeiros acervos imateriais
desapareceram sem serem notados, a exemplo de cordões de pássaros, bois,
quadrilhas, grupos de chorinho, grupos de carimbó, orquestras, bandas de música e
de jazz, entre outros.
Este trabalho não pretende resgatar minuciosamente sons desaparecidos ao
longo do período estudado e sim compreender historicamente a evolução dos sons
que podemos considerar como parte de uma ambiência sonora, que se vislumbra
como paisagem sonora1 e estão limitados a um território auditivo e que serão
debatidos no decorrer de nossa pesquisa: a) sons da “paisagem sonora natural”,
como explica Schafer: “os sons fundamentais de uma paisagem são os sons criados
por sua geografia e clima: água, vento, planícies, pássaros, insetos e animais”
(2001, p. 26), b) sons esquizofônicos, de acordo com a explicação de HeloisaValente (1959-): “Com o advento do telefone e do rádio, teve aquilo que M. Schafer
denomina esquizofonia (squizo + phonos = som separado, fendido) neologismo que
designa o som que tem sua origem num local e sua audição em outro, longínquo”
(1999, p. 80), c) sons industriais e eletro-eletrônicos, d) bandas, orquestras, grupos
1 Neologismo criado por Murray Schafer, professor, compositor e pesquisador canadense, para designar onosso ambiente sonoro com seus conjuntos de sons, sejam agradáveis ou desagradáveis, fortes e fracos, ouvidosou ignorados e que foi traduzido por Mariza Fonterrada como “Paisagem Sonora”.
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vocais e instrumentais, e) aparelhagens ou treme-terras, f) pregões.
Pretendemos levar em consideração as sonoridades acima citadas, além de
outros sons interessantes que serão relatados nas entrevistas e encontrados nos
meios pesquisados.
A mola propulsora para iniciar a pesquisa foi buscar conhecer os sons do
passado, que desapareceram no tempo, como que numa arqueologia sonora, para
fazer prospecções de fatos sonoros encontráveis somente pela dedução ou pelos
relatos literários. Dos sons possíveis de avaliar por intermédios de gravações e
audição direta procuraremos compreender os gostos peculiares por uma estética
musical de rua, salões de festas e salas de concertos e shows, localizar refúgios e
até possíveis jardins sonoros, considerar a poluição sonora e outros sons resultantes
da modernidade urbana.
Schafer, como o principal pesquisador das paisagens sonoras do mundo,
aponta caminhos para o entendimento das sonoridades que percebemos ao nosso
redor: “O que o analista da paisagem sonora precisa fazer, em primeiro lugar, é
descobrir os seus aspectos significativos, aqueles sons que são importantes por
causa da sua individualidade, quantidade ou preponderância” (2001, p. 25).
Outro aspecto relevante que Schafer aponta é a percepção dos sons
fundamentais da natureza, diferentemente do modo musical de ouvir a nota básicade uma emissão sonora:
Os sons fundamentais de uma paisagem sonora são os sonscriados por sua geografia e clima: água, vento, planícies, pássaros, insetos eanimais. Muitos desses sons podem encerrar um significado arquétipo, isto é,podem ter-se imprimido tão profundamente nas pessoas que os ouvem que avida sem eles seria sentida como um claro empobrecimento. (p. 26)
Acreditamos ser possível incentivar encontros e passeios sonoros,
chamando atenção para a escuta sensitiva, resultante da percepção do nosso meio
ambiente acústico, e quem sabe valorizar nossas sonoridades criativas, inibir o
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desenfreado crescimento de sonoridades abrasivas ao nosso bem-estar. Nesses
encontros e passeios sonoros queremos propor o descobrimento de refúgios e
jardins sonoros, que são locais existentes na cidade onde é possível conviver com a
natureza mais primordial e ouvir seu repertório de sons, cheiros, cores e sabores.
O debate a respeito da paisagem sonora da cidade de Belém é oportuno,
num momento em que o mundo passa por transformações em seu eco sistema,
causando preocupações nos meios científicos no que diz respeito a sustentabilidade
do meio ambiente e na relação do homem com seu habitat.
A audição, como sentido de ampla utilidade para o homem, está sempre em
tempo integral, ativada e pronta para receber qualquer estímulo sonoro, desde a
linguagem musical, sons da natureza, sons de alerta, entre outros sons. É possível
que mesmo sons não audíveis ao ouvido humano possam estar, de alguma forma,
afetando-lhe.
Os estímulos sonoros que recebemos são mudanças ou movimentos que
ocorrem no meio externo de nossos ouvidos e não dependem de nossa vontade. Até
mesmo em países com grande controle de ruídos, inclusive com a confecção de
divisórias acústicas em avenidas de grande tráfego, não é possível isolar
completamente o cidadão dos inusitados e muitas vezes agressivos sons.
A música, linguagem que interage com seu espectador através de um fruidorapto e esteticamente criativo e que pode se valer de sons definidos, ruídos, silêncios
e meio ambiente, está sempre a serviço de um espetáculo. Podemos ouvir música
ativamente ou passivamente, quer tenhamos escolha ou não. O mesmo não ocorre
frente aos chamados ruídos urbanos, então, “O que é preciso enfatizar em relação
ao ruído é que é impossível nos afastarmos dele: cada pessoa é o centro do seu
ambiente sonoro, num círculo cujo diâmetro é o limite da escuta. Permanentemente,
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quer tenhamos consciência disso ou não, os sons produzidos nesse âmbito de
escuta nos afetam, positiva ou negativamente. Ao contrário dos olhos, cuja
pálpebras protegem o indivíduo daquilo que não quer ver, os ouvidos não dispõem
de tal aparato, permanecendo abertos aos sons do mundo” (Fonterrada, 2004, p.
44).
O desenvolvimento de Belém do Pará no decorrer do séc. XX, até os nossos
dias foi muito maior do que nos três séculos anteriores. A explosão demográfica,
resultante de processos migratórios, em conjunto com o desenvolvimento industrial e
urbano, potencializou os problemas de relacionamento dos seus habitantes com o
meio ambiente acústico.
Em decorrência das modificações ocorridas neste território bio-acústico e da
evolução de sua paisagem sonora, bem como da internacionalização dos novos e
velozes meios de comunicação de massa, cabe, neste trabalho, uma análise dos
efeitos desses elementos sobre o comportamento das diversas gerações de
habitantes, bem como da notável modificação do gosto musical das pessoas.
Face ao ineditismo da pesquisa, sabemos que não abordaremos todos os
tópicos que o assunto requer, no entanto, procuraremos dar início a um debate, em
nossa comunidade, que possa gerar reflexões, seguidas de ações positivas para a
cidade de Belém, onde suas mangueiras centenárias, seus rios e igarapés, suasilhas e praias de água doce, seus cheiros e sabores, suas ruas antigas e novas e
sua rica paisagem sonora possam conviver com os animais, com as flores, com a
música e a poesia e principalmente com o homem.
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I - PRIMEIROS SONS DE UMA CIDADE NOVA
1.1 - A chegada dos portugueses
Assim, mandou disparar alguns pequenos canhões que levara, os quais,ao mesmo tempo que serviam de salvar de alegria, não poucocontribuíram também para conter em respeito aos indígenas, receosos eintimidados com a vizinhança de tão inoportuno e destemido hóspede(Amaral, 2004, p. 77).
Belém do Pará, assim é chamada esta cidade brasileira, amazônica por
natureza, situada no norte do país, próxima da linha do Equador. Seu clima e sua
paisagem natural configuram um complexo sistema ecológico, onde coabitam fauna,
flora e homem.
Com uma parte continental e outra insular, Belém está localizada a 48 29’
graus de longitude oeste e 1 28’ de latitude sul. Limitada a oeste pela baia do
Guajará, que é o fim do Rio Pará. (O Rio Pará deriva da divisão do Rio Amazonas no
encontro com a Ilha do Marajó). Ao sul Belém é limitada pelo Rio Guamá.
Com características muito peculiares, a cidade é plana e com clima quente eúmido. Não obstante este clima quente, a cidade recebe banhos de ventos em
determinadas horas do dia que a refrescam e amenizam sua temperatura.
Fundada no início do séc. XVII, por Francisco Caldeira de Castelo Branco que deu
o nome de Belém em alusão à data de sua partida de São Luiz do Maranhão em 25 de
dezembro de 16152. Ainda é polêmica a data certa para a chegada de Castelo Branco ao
local, onde mandou construir um forte batizado de Santo Cristo, no entanto 12 de janeiro é
comemorado atualmente como o dia da fundação da atual capital do estado do Pará.
2 Os fundadores de Belém vieram do Maranhão, onde no ano anterior Ravardière, ocupante francês,tinha sido derrotado e capitulado aos Portugueses no dia 04 de novembro de 1615. Gaspar de Souza, governadorgeral do Brasil, atendendo exigências de Portugal ordena, o Capitão Mor do Maranhão, Alexandre de Moura,que substitui Jerônimo de Albuquerque, a empreender jornada de conquista do Grão Pará, organizando aexpedição que iria fundar Belém. Francisco Caldeira é então escolhido para comandar a viagem que tinha como
objetivo alargar os domínios portugueses na região amazônica. Parte com cerca de 200 homens, entre eles índiosque pudessem ser tradutores e facilitadores na abordagem aos nativos da região onde hoje está Belém e osdistribui em três regimentos nas naus denominadas de Santa-Maria da Candelária, Santa Maria da Graça eAssunção, de quem eram capitães Pedro de Freitas, Álvaro Neto e Antonio da Fonseca respectivamente.
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A cidade está localizada numa península, que originalmente era habitada por
índios Tupinambás, estrategicamente situada na margem direita da foz do rio
Guamá onde este rio deságua na baía do Guajará e possui dois terços de seu
território formado por 39 ilhas.
O impacto da chegada dos portugueses, visualmente espetacular para estes
índios, também é marcado pelos novos sons que traziam, provenientes dos diversos
artefatos de guerra e materiais utilitários além do idioma falado que constituía uma
novidade sonora incompreensível para eles, assim como a língua tupi o era para os
portugueses.
No ano da fundação de Belém, o Brasil já estava apropriado há mais
de um século pelos portugueses. Portanto, a estratégia de abordagem aos
habitantes naturais foi a de uso de outros “parentes”3 que já tinham sido constatados
anteriormente sem, no entanto, deixar de usar uma intimidação convincente: os tiros
de canhão, peças de artilharia que normalmente ultrapassam a bitola de 20 mm e
que proporcionam um forte espetáculo sonoro. Ribeiro do Amaral nos relata esta
abordagem e descreve o uso do canhão naquele momento:
Desembarcado Caldeira com toda a sua gente, depois deencomendar o bom êxito da empresa à Virgem Senhora, como era deum ânimo superior às suas mesmas forças, foi seu primeiro cuidadose fazer respeitado do muito gentio de que havia se cercado. Assim,mandou disparar alguns pequenos canhões que levara, os quais, ao
mesmo tempo em que serviam de salvar de alegria, não poucocontribuíam também para conter em respeito aos indígenas, receosose intimidados com a vizinhança de tão inoportuno e destemidohóspede. Contudo, como muito bem sabia que todo o poder quelevara pequeno e fraco era para sustentar um posto que só sepoderia conservar na paz e amizade com aqueles naturais, de cujasforças, como senhores do país que eram, pendia a estabilidadedaquele presídio, usando da maior prudência, expediu, porembaixadores, a alguns dos tupinambás da sua comitiva, para quepraticassem com os seus parentes e estes com os seus aliados,certificando-os, a uns e outros, de que a sua vinda ali não era paralhes fazer dano nem tirar as suas terras, mas antes para viveremtodos como bons amigos, permutando as drogas das suas florestas
3 Expressão usada pelos índios para referir a outros índios, mesmo que de nações diferentes.
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Figura 1. A Fundação da cidade de Belém. Óleo sobre tela de TheodoroBraga. In: Museu de Arte de Belém – MABE.
Neste momento inaugura-se a cidade de Belém e a nova configuração de
sua paisagem sonora. A ampliação do território geográfico português se dá também
no plano sonoro. Novos sons são incorporados ao memorial dos recém chegados.
Para os habitantes naturais novos sons são acrescentados ao seu milenar memorial
sonoro, ampliando o seu território auditivo4.
Cidade mais antiga da Amazônia, Belém possui, desde antes da colonização
portuguesa, encantos dos mais diversos. Sua paisagem sonora original era
composta principalmente de sons da natureza. As intervenções sonoras naquele
ambiente acústico eram feitas pelos seus habitantes originais: homens e animais.Hoje, onde estão ruas asfaltadas, prédios e logradouros públicos, existia
uma densa floresta com todos os elementos ecológicos e, neste meio, homens que
foram chamados de índios por ocasião do descobrimento do Brasil. Estes homens,
genericamente chamados de tupinambás, organizavam-se em grupos tribais onde a
principal língua era o tupi.
4 Este território auditivo aqui citado pode ser entendido como um território espacial e físico ou mesmocomo a cultura sonora de cada indivíduo ou coletividade, onde cada parte ou o todo possui seus limites sonoros.
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Com um território auditivo delimitado por uma cultura milenar, onde os
costumes incluíam ritos, cantos de trabalho, sons de guerra e espetáculos de deleite,
a chegada dos europeus configurou uma somatória de sons aos existentes no lugar
onde se formaria mais tarde a cidade de Belém. Neste encontro de culturas sonoras
distintas e de origem diversas, sobrepõe-se a européia, seja pela persuasão da
novidade, pelo convencimento verbal ou pela força.
1.2 - Primeiros passos e sons da cidade
A criação do núcleo urbano se dá pela construção de um Forte Militar, feito
de madeira com cobertura de palha, numa parte elevada à frente de uma grande
baia, onde a visualização de que chegava era abrangente. Ali e a partir deste Forte
surgiu o primeiro núcleo urbano chamado inicialmente de Forte do Presépio,
posteriormente Feliz Luzitânia. Este Forte permanece até hoje e é chamado de
Forte do Castelo, tendo sido restaurado recentemente para abrigar o Museu do
Forte, gerido pelo Governo do Estado do Pará. Na restauração foi retirado um muro
que o separava da praça Frei Caetano Brandão.
Figura 2. Forte do Castelo. In: Página eletrônica da Prefeitura de Belém.
Foto: Sávio Castro
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De fundamental importância foram os intérpretes que chegaram com a
comitiva de Caldeira, tornando o contato com as tribos, no sentido de facilitar a
construção do forte. Como já era hábito na época, os portugueses distribuíram
ferramentas, peças de pano e diversos utensílios, o que muito agradava aos
habitantes naturais.
Após estarem feitos o desembarque e contatos com os habitantes originais,
os colonizadores iniciaram a expansão do domínio territorial abrindo ruas e
construindo casas, conventos, igrejas entre outros tipos de edificações. As primeiras
casas eram de arquitetura simples, feitas de madeira e enchimento com barro. Este
modo de construir dos primeiros colonizadores contou com a participação e
colaboração dos índios, sendo que “não foi o padrão cultural do colonizador, mas do
nativo, que prevaleceu nessa fase inicial da conquista. Pelo seu número e pelo seu
concurso, o índio impôs à cidade a presença do meio, o que mostra que ele não foi
apenas um “braço”, mas também animador e parte integrante da paisagem urbana”.
(Eidorfe Moreira apud Maranhão, 2000, p. 107)
Segundo relato do historiador Ernesto Cruz (1898 – 1976), primeira rua de
Belém recebeu o nome de Rua do Norte, hoje Siqueira Mendes, que, em direção ao
sul contornava a margem do rio. Nesta rua um capitão-mor, Bento Maciel Parente,
construiu sua casa em 1621. Em 1627 doou as benfeitorias e o terreno aos fradescarmelitas calçados que ali fundaram um convento e uma igreja no lugar que hoje é
conhecido como largo do Carmo. Outras ruas paralelas foram sendo abertas a partir
da fortificação militar como a rua do Espírito Santo, atual Dr. Assis e a rua dos
Cavaleiros, hoje Dr. Malcher (1970, p. 9)
O mapa da cidade daqueles primeiros anos de colonização era muito
diferente do que temos hoje. Um alagado, chamado Piri, separava as terras firmes
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ao redor do forte de uma campina que se adentrava em direção ao continente, tendo
sido este lago aterrado nos fins do século XVIII. Todos os sons presentes naquele
desenho geográfico se perderam definitivamente com o alagamento e com as
construções provenientes da expansão da cidade. Um mapa de cerca de 1773,
mostra com clareza a existência deste lago.
Figura 3. Mapa da cidade de Belém, em 1773. Autor: Gaspar João Geraldo de Gronsfeld.
A presença do homem europeu na pequena cidade que nascia vem adicionar ao
local uma nova cultura, impositiva e dominante. Através de diversos recursos importados
de Portugal, os colonizadores procuravam reproduzir os ambientes deixados além mar.As ordens-unidas dos militares e todos os seus aparatos como cornetas, pequenas
bandas e fanfarras, ferramentarias e armas provocam nos ouvintes da época um novo
soundscape que certamente impressionava e quem sabe até amedrontava os habitantes
naturais, acostumados aos sons da floresta e dos rios.
Mas não é somente o conjunto de sons de armas e equipamentos militares
que são adicionados ao território sonoro das terras recém tomadas. Os sons
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religiosos se farão presentes através da vinda de padres e demais membros do clero
católico. A música dos ofícios e as diversas formas de rezas, em latim, ocuparão as
igrejas imediatamente construídas. Conforme os religiosos europeus vão adentrando
o sertão,5 suas falas, seus cantos e seus instrumentos vão permeando a paisagem
de novas músicas e de novas informações sonoras. Com as construções das igrejas
e conventos, os padres passam a importar da Europa estilos musicais diversos, haja
vista que a música já era bastante desenvolvida no velho continente. Para que a
música cumprisse seu papel evangelizador foram trazidos instrumentos musicais,
partituras e métodos para o ensino da música aos índios.
Nestes primeiros tempos de uma nova cidade acontece uma substituição
gradual de uma paisagem sonora constituída basicamente de sons da natureza, dos
artefatos manufaturados e da música dos índios, por uma sonoridade ambiental
repleta de sons intensos e com capacidade de serem ouvidos em grandes
distâncias, a exemplo dos sinos das igrejas.
Inicia-se nestes primeiros anos um processo de expansão territorial linear,
que perdura até meados do século XX, época de sensíveis avanços tecnológicos e
da verticalização das construções para negócios e moradias. A expansão, por
ocupação pelo homem, das áreas além do núcleo inicial se dá pela substituição de
uma paisagem sonora por outra, esta cada vez mais complexa e sensivelmenteprejudicial ao bem-estar do ser humano.
Pesquisadores dos impactos que os sons projetam nos seres humanos
afirmam que a exposição prolongada a sons excessivamente fortes atinge nossos
limites fisiológicos podendo ocasionar danos temporários ou permanentes.
Os índios que habitavam o lugar onde hoje está Belém, tinham sua audição
5 Denominação dada às localidades distantes dos núcleos urbanos, o que na Amazônia se traduzia pormata virgem.
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muito mais sensível, podendo definir com clareza os diversos sons emitidos pelos
animais e pelos cantos dos pássaros, o fluir das águas nos rios e igarapés, os sons
da chuva nas árvores, no chão e no rio. Quando caçavam seus ouvidos eram
acessórios importantes na localização da presa, assim como na percepção espacial
de seu entorno, trazendo-lhe segurança e habilidade na ação.
Sabemos que doenças de fácil controle para nós, como a gripe, foram
devastadoras para os índios. Como nem todas as doenças tem origem no contato
com vírus, bactérias ou outros meios físicos de contágio, podemos supor que males
derivados dos efeitos psicossomáticos da audição de sons nefastos como tiros de
canhões, de armas de fogo portáteis, de espadas, fogos de artifícios causaram
danos no equilíbrio mental daqueles habitantes, não sendo simplesmente
assustadores e intimidadores.
A invasão colonizadora trazia outros costumes somando-se a outros
indicadores de um processo de matança genocídica a que foram submetidos os
habitantes e verdadeiros donos das terras invadidas. As diversas estratégias de
dominação e opressão que os colonizadores usaram foram eficientes para
desarticular culturalmente os índios. A imposição de novos estilos musicais
corrompeu uma audição milenar que era circundada por um território auditivo
consagrado pelo tempo e quase imutável, sem pretensões evolutivas ou sentidocomercial.
O novo idioma, que viria a se tornar oficial, juntamente com a nova música e
os novos sons dos inúmeros materiais usados no dia-a-dia, ocuparam gradativamente
o lugar, abrindo as cortinas de uma nova era sonora, de um novo Soundscape e de
uma nova cidade que estudaremos em seu último século e no inicio do atual.
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II – A BUSCA DO SOUNDSCAPE DE BELÉM NO SÉCULO XX
2.1 – De cavalos a bondes: a veloc idade sonora que chega
Belém, no inicio do século XX, era uma cidade glamourosa, cantada em
verso e prosa. Todos que a visitavam prestavam as mais solícitas homenagens,
cunhando em elogios fartos as suas praças e monumentos, seus amplos boulevards,
prédios requintados, teatros, cafés, igrejas seculares e paisagens naturais de rara
beleza.
Com o progresso do beneficiamento da borracha, feitos em laboratórios dos
Estados Unidos da América e em alguns países da Europa, a melhor matéria prima
para o desenvolvimento de diversos produtos e sub-produtos do látex extraído das
seringueiras estava concentrada na Amazônia.
Ainda no século XIX, a partir dos anos 40, a economia da região Norte do
Brasil passa a girar em torno da extração e exportação do látex. Neste período a
cidade de Belém, por ter seus portos localizados no grande estuário do rio
amazonas e próximo do oceano atlântico, passa por grandes transformações no seu
desenho urbano, na sua população e em sua cultura. Para atender a crescente
demanda por serviços e infra-estruturas foram criados mecanismos de urbanização
que mudaram o mapa da cidade e conseqüentemente sua paisagem sonora.
Apesar de boa parte dos produtos consumidos pela população seremimportados, foram estabelecidas fábricas e oficinas de manufaturas de muitos
produtos, o que trouxe para a cidade processos industriais que iriam mudar
substancialmente o território auditivo da população. Já em 1862, segundo censo do
IBGE, existiam 24 fábricas de sabão, 18 de cal, 06 de louças de barro, 06 de óleos,
03 de beneficiamento de arroz, 25 olarias, 01 de café, 01 de artefatos de borracha,
10 serrarias, 03 curtumes, entre outras de menor impacto sonoro (apud Sarges,
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2002, p. 20). Com o processo de mecanização foram trazidos motores, serras,
geradores e outras máquinas que produziam uma quantidade de sons e ruídos de
alto volume.
Assim como o desenvolvimento urbano e o crescimento da cidade em
direção à parte continental foram se incorporando à vida das pessoas, as novidades
sonoras foram gradativamente absorvidas pela população ao longo dos anos. O
aparecimento de novos ruídos e as mudanças nos padrões de escuta da sociedade
proporcionaram um novo meio ambiente sonoro na cidade onde outrora
praticamente só se ouvia a natureza e a música.
Com a necessidade de adequar culturalmente a cidade ao seu belo espaço
em construção, a sociedade investiu no desenvolvimento da música e das artes em
geral neste período, surgindo na cidade grupos corais, instrumentais populares,
orquestras e bandas de música. A partir destas práticas musicais, surgiram
talentosos compositores, regentes, cantores e instrumentistas. No entanto a
formação desses músicos não era integralmente feita aqui. Como não havia ainda
escolas de música oficiais estabelecidas, viajavam para a Europa a fim de
desenvolver seus talentos, sendo que lá sofriam influências diretas das correntes de
composição e interpretação musical vigente nos principais países da Europa.
Com o desenvolvimento econômico foi possível vir para Belém grupos demúsica e diversos espetáculos de teatro e dança. Foram então construídos teatros e
cinemas que abrigariam estes espetáculos, além de outros espaços destinados para
outros fins, mas que podiam ser usados em dias de recitais, saraus e demais
funções artísticas e literárias. A mais expressiva construção do período foi o Teatro
da Paz, apresentado à cidade em 1878. Com belas linhas arquitetônicas e uma sala
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de espetáculo de primeira categoria o teatro desde sua inauguração recebeu artistas
do mundo todo nos mais diferentes tipos de espetáculos.
Ainda sob os benefícios da extração do látex das seringueiras, a cidade
pulsava prosperidade e desenvolvimento econômico. Bancos nacionais e
estrangeiros abriam suas portas em Belém. A exportação do látex favorecia a
importação de diversos gêneros de consumo. Como no Pará e em sua capital não
havia um processo industrial que suprisse a necessidade do consumo das classes
abastadas, importava-se até alimentos e pequenos adereços de vestuário.
Tudo era feito para Belém se parecer com Paris ou qualquer outra cidade
próspera e chique da Europa. Um certo francesismo existia na denominação de ruas
e nas indicações de prédios, cafés e teatros. Muitas vezes, importava-se o que se
desejava por inteiro a exemplo dos chalets de ferro que vinham em peças e eram
montados aqui.
O mundo da música se fazia presente em Belém. Toda casa de um bom
burguês tinha um piano e alguém a tocá-lo. Fazia parte da educação das
senhorinhas o estudo do canto e do piano. Companhias de óperas vinham
diretamente para Belém encenar as mesmas óperas recém lançadas na Europa.
Grupos de câmara, solistas, bandas sinfônicas, entre outras atrações, embelezavam
a sonoridade da cidade tropical com gosto de Belle-Époque.No cinema Olímpia, localizado na Praça da República, com seu salão de
recepção luxuoso onde os espectadores aguardavam a próxima sessão, grupos
musicais tocavam para o deleite dos presentes, enquanto na sala de projeção um
pianista fazia o seu trabalho de ilustração musical dos filmes mudos.
Antonio Lemos (1843-1913), natural do Maranhão, era o intendente da
cidade, cargo equivalente ao de prefeito atualmente. Seus atos administrativos
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visavam tornar Belém uma cidade limpa, calma e de aparência européia. Lemos
governou Belém de 1897 a 1910. Neste período a cidade passou pela sua mais
importante urbanização: praças, parques e ruas foram redesenhadas para oferecer a
população e ao visitante, conforto, beleza e funcionalidade.
Para suscitar noções mais claras de como era a cidade neste período e
como a sociedade reagia às oportunidades que o ouro negro, como era chamada a
borracha, proporcionava, apresentamos algumas descrições que Murilo Macedo6 fez
sobre Belém:
No tempo do “velho” Lemos, Belém viveu a época do seu maior fastígio.Sendo o maior empório de borracha do mundo, o seu comércio nadavaem ouro. A cidade vivia a sua fase verdadeiramente esplendorosa eromântica. Eram festas suntuosas pelo carnaval, verdadeiros carnavaisde Nice.Regatas dignas das dos Doges de Veneza, realizavam-seperiodicamente. Os dinheiros da Prefeitura, embora gastos em jardinaostentosos, apareciam a rodo.. Metade, seguramente, do calçamento dacidade foi feita nessa gestão, que durou de 1897 a 1911. O IntendenteAntonio Lemos onerou com empréstimos o Município de Belém, pormuitos anos, com o argumento que os futuros cidadãos iam gozar osmelhoramentos feitos, portanto, lhe cabia também pagá-los. AIntendência naquele tempo rendia muito menos que hoje, se bem que odinheiro fosse muito mais valorizado. E por toda a parte, a figura dohomem superior dominava. Asilo da Mendicidade, Forno Crematório,Mercado de São Braz, Curro Velho, o velho Mercado remodelado commais um andar, o Orfanato Antonio Lemos, Companhia de Força e Luz(Pará Eletric), Edifício da Santa Casa, com enorme aparelhamentocientífico, o Corpo de Bombeiros, de organização moderníssima, quepossuía uma banda-orquestra que rivalizava com a da Guarda Municipalde Lisboa, então famosa –eram obras públicas que iam surgindo semdescontinuar, mercê da operosidade megalomaníaca do Intendente.(apud Maranhão, 2000, p. 147,148).
Lemos impôs à cidade um severo Código de Posturas. No seu artigo 110constava a proibição de fazer “algazarra, dar gritos sem necessidade, apitar, fazer
batuques e sambas”. Em seu relatório de 1903 aos vogais (vereadores) da câmara
municipal, o intendente justificou estes atos legais como medidas em favor do
silêncio. Com a construção de parques, praças e jardins, alamedas, ruas e avenidas
arborizadas as medidas tentavam atenuar os incômodos dos novos e fortes sons
6 Os trechos citados por Haroldo Maranhão foram extraídos da obra “A Capital do El Dorado”, editadoem 1954 pela Imprensa Oficial de Belém.
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provocados pelo moderno tráfico de veículos que viria a somar com os antigos meios
de locomoção.
Para dar cumprimento às medidas apontadas no Código de Posturas os
habitantes deveriam seguir regras rígidas, caso contrário seriam punidos com multas
e até com prisão.
O cuidado com a parte central da cidade, onde ocorreram as melhorias
urbanas, visavam unicamente o bem estar dos habitantes das classes abastadas.
Para isso várias medidas de controle reprimiam os pobres que necessitavam vir para
o belo centro. Este foi um dos grandes motivos para o acirramento das disputas
políticas que culminariam com a destituição e humilhação pública de Antonio Lemos
em 1912.
Até hoje a chamada era Lemos é vista como de grande importância para o
embelezamento da cidade de Belém, no passado, mesmo com todas as suas
controvérsias. Alguns cuidados que ele tinha com a beleza ambiental marcaram para
sempre a história da cidade, principalmente em lugares onde o silêncio era de
grande importância. Para demonstrar sua preocupação com a escuta dos
espetáculos no Teatro da Paz, Lemos mandou revestir as ruas ao redor do teatro
com um asfalto especial que absorvia os ruídos dos cascos dos cavalos das
carruagens.Na virada do século XIX para o XX, Belém assistiu a grandes
transformações de sua paisagem sonora. Muitas modificações sejam nos costumes
ou no uso de novos objetos industrializados influenciaram nos movimentos dos
cidadãos pelas ruas da cidade. O ritmo da urbe passou a ser outro, desta vez bem
mais forte e ativo.
O bonde chega a Belém em 8 de agosto de 1870, após o governo municipal
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conceder ao empresário americano James B. Bond, em 1868, a exploração do
serviço por 30 anos. Vieram inicialmente de Nova Iorque a máquina e dois carros,
idênticos aos usados no Rio de Janeiro. Muito elegantes e bonitos, foram no primeiro
momento usados para o transporte de famílias. A primeira linha saía do Largo da Sé
em direção ao Largo de Nazaré, passando por diversas ruas até chegar a Estrada
de Nazaré. As avenidas de Belém tinham naquele tempo o nome de estradas. Nota-
se também que o nome bonde deriva diretamente do sobrenome do empresário que
trouxe esse moderno veículo de transporte de passageiros para o Brasil.
Inicialmente movidos por tração animal tinham sonoridades e ritmos diferentes dos
que viriam mais tarde movidos a energia elétrica.
Em 1908 o bonde já era movido a energia elétrica com linhas cobrindo vários
bairros da cidade. De propriedade da Pará Eletric Company, empresa
inglesa concessionária dos serviços de água, luz e transporte, as linhas de bonde
eram um meio de transporte coletivo relativamente silencioso. Por serem movidos a
energia elétrica só provocavam sons decorrentes do contato das rodagens com os
trilhos em contraste com os automóveis, carroças, carruagens e outros meios de
transporte movidos por tração animal.
Com um meio ambiente acústico permeado por sons de cascos de cavalos,
rodas de carroças e carruagens, carros de boi, entre outros meios de locomoção, oaparecimento de novas sonoridades está diretamente ligado ao desenvolvimento
industrial que já vinha ocorrendo em outras partes do mundo, influenciando a
convivência entre as pessoas nos aglomerados urbanos e até nos meios rurais. Mais
importante que a novidade do som em si é o seu alto volume de emissão.
Os sons das patas dos cavalos nos paralelepípedos, que hoje para nós
causa certo sentimento de saudosismo, naqueles tempos eram sons pertencentes à
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cultura local e comuns no território auditivo da urbe. Os sinos da igreja, os sons das
ferramentas nas pequenas oficinas familiares e outros sons do trabalho somados
aos pregões de vendedores ambulantes compunham um universo sonoro familiar a
cada cidadão.
A mecanização de processos de fabricação de inúmeros objetos criou novos
sons, no entanto, esses processos não obedeciam a nenhum controle de emissão
de sons pelos produtos fabricados. O ambiente fabril tampouco possuía critérios de
controle da sonoridade nos ambientes de trabalho. A revolução industrial foi um
marco na história da humanidade sendo que suas conseqüências tiveram caráter de
irreversibilidade. Os benefícios da industrialização ficaram claros ao longo da história
assim como seus malefícios. Até em dias de hoje as máquinas são feitas com peças
e sistemas que produzem ruídos e sons desagradáveis ao ouvido humano.
Schafer, ao discorrer sobre a revolução industrial e sua influência para o
aparecimento de novos sons, lista vários objetos e equipamentos e seus respectivos
anos de criação:
máquina de costura (1711), máquina de escrever (1714), trilhos deestrada de ferro feitos de ferro fundido, em Whitehaven, Inglaterra(1738), aço fundido (1740) rodas de ferro para carros a carvão (1755),manufatura de cimento (1756), cilindros de ar; pistão movido por rodad’água; produção de altos-fornos mais que triplicada (1761), motor demáquina a vapor aperfeiçoado com condensador separado (1765-1769),trilhos de ferro fundido (em Coalbrookdale) (1767), broca (1774), motorde movimento alternado com roda (1775), fornalha reverbatória (1776)
máquina a vapor como fonte de energia (1781-1786) barco a vapor(1781), primeira usina de fiação movida a vapor (em Papplewick) (1785),tear mecânico (1785), hélice (1785), navio a vapor (1787), debulhadora(1788), primeira máquina de costura patenteada (1790), motor a gasolina(1791), telégrafo (1793), prensa hidráulica (1796), torno mecânico decortar parafusos (1797). (2001, p.48).
A listagem que Schafer produz, aponta para o século XVIII, principalmente
na Inglaterra, como um dos grandes marcos históricos na produção de
equipamentos e unidades fabris. As influências destas invenções só serão
amplamente sentidas em nossa cidade a partir da segunda metade do século XIX,
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mesmo que nem todas essas máquinas tivessem uso no dia-a-dia da população de
Belém.
Com as riquezas trazidas pelas exportações da borracha chegaram algumas
dessas máquinas, além de outras inventadas no estrangeiro ou aqui mesmo,
mudando significativamente nossa paisagem sonora.
Após a revolta da Cabanagem iniciada em 1833, quando Belém era uma
pequena cidade com aproximadamente 13 mil habitantes, segundo o Censo
Episcopal, constante do acervo do Arquivo Histórico Ultramarino, iniciou-se uma
crise econômica superada ao longo da segunda metade daquele século pelo
surgimento da exploração e exportação do látex da seringueira. Na década de 70 do
mesmo século Belém já tinha duplicado sua população chegando nos primeiros
anos do Século XIX com aproximadamente 100 mil habitantes, de acordo com José
Coelho da Gama, o Barão do Marajó (apud Sarges, 2000, p. 50, 51).
O início do século XX apresenta-se como o principal momento da cidade de
Belém em termos de crescimentos urbano, populacional, territorial e cultural. Na
década de 20 Belém já possuía em torno de 236.000 habitantes, segundo censo do
IBGE divulgado em 1926 (apud Sarges, 2000, p.136). Vários empreendimentos
decorrentes da grande riqueza gerada pela borracha foram feitos na cidade
preparando-a para um novo século de muitas sonoridades, algumas de grandebeleza, outras que poderiam ser classificadas como incômodos sonoros.
Além dos projetos de embelezamento da cidade feitos por Antonio Lemos,
outros aconteceram entre os últimos anos do Século XIX e o início do Século XX,
como nos relata Sarges:
Na dinâmica cidade de Belém foram projetados além do Porto deBelém, o Mercado Municipal do Ver-o-Peso (1901), o Hospital Dom Luiz e oGrêmio Literário (obras da colônia portuguesa), The Amazon TelegraphCompany, linha telegráfica por cabos submarinos, substituída posteriormentepela Western Co., O Arquivo e Biblioteca Pública (1894); o Teatro da Paz
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(1878), 43 fabricas (incluindo desde chapéu até perfumaria), 5 bancos, 4companhias seguradoras, além da implantação da iluminação a gás, sob aresponsabilidade da Pará Eletric Railway and lighting Co. Ltd, autorizada afuncionar pelo Decreto Federal n° 5.780 de 26.01.1905 (2000, p. 138).
Assim era Belém, no início do Século XX: Glamourosa, bela, elegante,
moderna, rica e charmosa. Sua paisagem sonora era composta de música, sons da
natureza e novos ruídos.
No entanto a chamada poluição sonora ainda não poderia ser dada como
elemento importante. Outros fatores e novas aparições sonoras estavam por vir e
apontar o som da cidade até o final do século.
2.2 - Orquestras, bandas de música e grupos musicais
A economia da borracha significou para a Amazônia e em especial para
Belém, oportunidade diversa de emprego, renda e ascensão social. Devido ao
tempo curto de permanência deste comércio na região pode-se classificar este
momento de fenômeno comercial passageiro com forte influência na história da vida
social e cultural da região.
No campo da música, em Belém, o poder aquisitivo dos governos estadual e
municipal, dos comerciantes, banqueiros e pessoas enriquecidas com este
comércio, proporcionava o aparecimento na cidade de eventos artísticos de grande
porte, sendo que alguns somente aconteciam aqui.
O Teatro da Paz, inicialmente chamado de Teatro Nossa Senhora da Paz,
por sugestão do bispo D. Antonio Macedo Costa, recebeu desde sua inauguração
muitos espetáculos de diversos gêneros artísticos. Óperas, balé, peças teatrais,
concertos de música de câmera, concertos sinfônicos entre outras apresentações,
foram apreciadas pelo público da então pequena cidade do norte do país com
menos de cem mil habitantes.
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A inauguração do Teatro da Paz foi o marco inicial para os espetáculos que
se seguiriam por vários anos até que o declínio econômico, por volta de 1920,
chegasse e fizesse o teatro e Belém mergulharem na grande depressão social e
artística. O espetáculo de inauguração do Teatro da Paz iniciou com o Hino Nacional
executado por uma orquestra oficial do teatro, com apoio de quatro bandas marciais,
num total de 150 músicos, sob a regência do maestro maranhense Libânio Colas (?
– 1885). Em seguida foi executada a marcha “Grão Pará” composta especialmente
para este dia. Seguindo o programa foi encenado o drama "As Duas Órfãs", de
Adolphe d’Ennery, (1811-1899) um dos mais aplaudidos autores franceses do século
XIX.
Os espetáculos montados no palco do Teatro da Paz bem refletiam os
acontecimentos cotidianos da cidade, com sua vida próspera e feliz num ambiente
de elegância e modernidade. O primeiro ano de atividades no teatro foi simbólico
para os anos que se seguiriam. Somente a companhia de Vicente Pontes de
Oliveira, a mesma que havia encenado “As Duas Órfãs” na inauguração, realizou
125 espetáculos até dezembro do ano de 1878.
Os espetáculos de grande porte, principalmente ópera, demandam um
grande aporte de recursos materiais e humanos para uma única récita. Nos dias de
hoje para a montagem profissional de uma ópera são necessários, minimamente, osseguintes recursos materiais: aluguel e/ou confecção de roupas comuns e trajes de
época, incluindo adereços e calçados; compra e/ou aluguel de equipamentos de
iluminação, além dos já existentes no teatro; compra e/ou aluguel de equipamentos
de sonorização, gravação e efeitos sonoros; compra de material para confecção de
cenários; compra de material de maquiagem e confecção de bonecos cênicos;
contratação de serviços diversos como afinação de piano, segurança e entregas;
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despesas com alimentação, transportes e apoio administrativo.
Os recursos humanos mínimos necessários para o bom desempenho da
ópera são: Compositores, libretistas, copistas, regentes, diretores e assistentes de
cena, músicos, diretores e assistentes administrativos, produtores, marceneiros,
eletricistas, gráficos, sapateiros, costureiros, figurinistas, maquiadores, agente de
segurança, agentes de limpeza, iluminadores, sonoplastas, técnicos de som,
especialistas em efeitos especiais, auxiliares de serviços gerais, entre outros
profissionais necessários para a execução do projeto.
Normalmente há repetições da função por duas ou mais noites o que
encarece sobremaneira o investimento. Mesmo que nos tempos da Belle-Époque
não fossem necessários todos os recursos aqui listados, os altos custos das
produções fizeram com que a ópera em Belém somente florescesse, com
regularidade, até a temporada de 1908.
Ao mesmo tempo em que as caras produções de espetáculos com cena
decaiam em virtude da crise econômica, a música instrumental procurou ocupar o
espaço deixado por estas, fazendo com que os reflexos desta fase de bel canto em
Belém sejam percebidos até hoje. Com a vinda de companhias inteiras da Europa,
muitas vezes diretamente para Belém e Manaus, alguns músicos cantores ou
técnicos ficaram por aqui, refazendo suas vidas e colaborando para odesenvolvimento artístico da terra que adotaram como sua.
A decadência econômica vem atingir o segmento musical com força. Em
janeiro de 1908 faltou verba pública para honrar diversos pagamentos. As Bandas
militares são praticamente dissolvidas. É neste ano que o Instituto Carlos Gomes
tem suas portas fechadas. Criado pelo governador Lauro Sodré em 1894 e entregue
sua direção ao reconhecido compositor paulista Antonio Carlos Gomes (1836-1896),
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em 1896, a mais importante instituição de ensino musical do Pará é desativado no
momento em que seus professores e alunos, dirigidos pelo pianista e compositor
Paulino Chaves (1880-1948) desenvolviam inúmeras atividades musicais.
O desenvolvimento da música e a formação de gerações de cantores,
instrumentistas e compositores em Belém deve-se, em boa parte, à criação do
conservatório de música. Logo após a morte de Carlos Gomes, em 16 de setembro
de 1896, sucederam-lhe na direção do conservatório notáveis músicos residentes
em Belém: Enrico Bernardi (1838-1900), maestro italiano, José Cândido da Gama
Malcher (1853-1921), compositor paraense que estudou na Europa, Meneleu
Campos (1872-1928), autor de valiosa obra musical, tendo também se destacado na
direção do Instituto Carlos Gomes, onde, nos primeiros anos do século XX,
desenvolveu a orquestra e o coro da escola, além de promover dezenas de
espetáculos musicais.
Esta época, início de século, foi profícua e importante para a composição da
memória musical dos belenenses vindo a influenciar por várias décadas o gosto
estético e, de certa forma, criar ambientes de beleza sonora nas ruas, praças e
residências da cidade.
Músicos compunham, tocavam e regiam obras musicais feitas aqui ou
importadas, nas casas, nos coretos das praças, nas escolas, nos teatros, cafés ecinemas. Paulino Chaves (1880-1948), Meneleu Campos (1872-1928), José Cândido
da Gama Malcher (1853-1921), Alípio Pinto da Silva (1871-1925), Manuel Paiva
(1888-1920), José Domingos Brandão (1865-1941), Ettore Bosio (1862-1936), entre
tantos outros músicos, artistas de teatro, poetas e cantores, enriqueciam a cidade
com sons e sonetos de beleza e arte. Esta intensa atividade musical colaborou muito
para o desenvolvimento social e cultural da cidade e viria plantar fortes sementes
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para a formação da cultura musical de Belém nas décadas seguintes.
Nos anos em que o Instituto Carlos Gomes esteve fechado [1908 - 1929], os
professores de música, alguns com grande prestígio e experiências em outros
países, abriram cursos e escolas particulares além de centros culturais. Meneleu
Campos manteve sua escola de música aberta de 1908 a 1912. Em 1914 um grupo
de artistas criou o Centro Musical Paraense, tendo como seu primeiro presidente
José Cândido da Gama Malcher. Vários talentos foram revelados nestas
escolas particulares.
O Instituto Carlos Gomes só foi reaberto em 11 de julho de 1929, quando o
governo estadual acolheu pedido de um grupo de artistas e intelectuais. Neste
momento, Waldemar Henrique (1905-1995), compositor paraense, então com 24
anos de idade, entra para o instituto, que naquele momento passa a se chamar
Conservatório Carlos Gomes.
A importância desta instituição de ensino de música na sociedade paraense
é muito grande. O Conservatório Carlos Gomes, como ainda hoje é coloquialmente
chamado, está atualmente ligado a uma fundação pública estadual, a Fundação
Carlos Gomes. Chama-se, em sua primeira versão, Conservatório de Música. Hoje
tem o nome oficial de Instituto Estadual Carlos Gomes. Sua primeira ligação
administrativa foi com a Associação Paraense Propagadora das Belas Artes, quetinha uma seção de música. Foi para dirigir esta seção e conseqüentemente a
primeira direção do conservatório, que o governador Lauro Sodré convidou o
compositor Antonio Carlos Gomes. Este convite oficial foi feito no ano de 1895, no
entanto somente após a volta do maestro, que tinha ido a Itália desfazer-se de seus
pertences, foi efetivado esta direção no ano de 1896. Carlos Gomes ficou na direção
do Conservatório por alguns meses, vindo a morrer no dia 16 setembro daquele ano.
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Além do Instituto Carlos Gomes, Belém tinha no início do século XX, outras
instituições que ensinavam e cultivavam a arte musical. Os dois institutos de
educação com internato, “Gentil Bittencourt” para meninas e “Lauro Sodré”, para
meninos, colocavam o ensino da música no mesmo nível de importância das outras
matérias ofertadas para os alunos, de acordo com as explicações do Governador do
Estado do Pará, Augusto Montenegro:
O Instituto Gentil Bittencourt, com 240 meninas recebem, além dasmatérias que constituem o ensino primário, o aprendizado de trabalhosdomésticos, trabalhos de agulha e bordado, música, canto, piano edesenho e recebem uma educação profissional nas oficinas de floresartificiais, de tecidos e de tipografia; O Instituto Lauro Sodré, com 300alunos internos meninos, oferece matérias do curso elementar ecomplementar primário, além dos cursos completos de desenho emúsica instrumental. Também se ensina ali, nas suas grandes oficinas,os ofícios de marceneiro e carpinteiro, serralheiro e ferreiro, sapateiro,alfaiate, encadernador e tipógrafo. (1908, p. 294, 301)
Além da orquestra, dos grupos de câmara e vocais do Instituto Carlos
Gomes, dos grupos musicais das escolas de música particulares e dos grupos
instrumentais e vocais dos demais institutos de ensino, Belém sempre teve nas
bandas de música um dos mais fortes veios de sua tradição musical.
As bandas de música nascem e desenvolvem seus músicos, muitas vezes,
independente das escolas de música existentes na cidade ou nas proximidades.
Mesmo sem ter a estrutura dos cursos regulares, as bandas têm produzido muitos
músicos para as orquestras e grupos de música popular, além de possibilitar oacesso ao estudo da música para pessoas da comunidade, que normalmente não
podem freqüentar as escolas particulares ou mesmo públicas.
A afirmação do musicólogo Vicente Salles: “a banda de música é, pois o
conservatório do povo e é, ao mesmo tempo nas comunidades mais simples, uma
associação democrática, que consegue desenvolver o espírito associativo e nivelar
as classes sociais” (1985, p. 11), explica com clareza o papel exercido pelas bandas
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de música na formação de músicos, bem como na composição da paisagem sonora
de um lugar.
Devido as bandas de músicas participarem ativamente da vida social da
cidade, a população tem durante o ano várias oportunidades de assistir a retretas ou
concertos nos coretos das praças.
Tanto na zona rural como nas cidades, a banda de música impressiona
positivamente o público, atingindo todas as classes sociais. Com sua capacidade de
locomoção, chama atenção por onde passa e ao contrário de uma orquestra
sinfônica, pode se apresentar, tanto parada quanto se locomovendo.
O poeta e compositor Chico Buarque assim canta no primeiro verso de sua
música “A Banda”:
Estava à toa na vidaO meu amor me chamouPra ver a banda passarCantando coisas de amor (Composta e gravada em 1974 pelo selo
PREMIER-RGE, no disco “Chico Buarque de Holanda”).
As pessoas de qualquer idade se fascinam com o som agradável da banda de
música. As músicas escolhidas para as apresentações vão desde os dobrados
militares, passando por melodias populares arranjadas para o grupo, até música
clássica adaptadas ou compostas especialmente para a instrumentação de uma
banda de música. Civil ou militar as bandas agradam ao público por onde passam.
Ao construir os passeios públicos, jardins e parques os arquitetos sempre
projetam um lugar especial para a banda de música se apresentar. Em Belém,
praticamente todas as praças possuem um coreto ou uma concha acústica, onde as
bandas de música têm o espaço adequado para tocar seu repertório.
É tão grande o fascínio que uma banda pode exercer sobre as pessoas, que
os ruídos e outros sons vindos das redondezas podem ficar mascarados pela
música. Quando a banda passa ou encerra sua apresentação tudo volta ao seu
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lugar, como fala o poeta Chico Buarque nos dois últimos versos de sua marcha,
citada acima:
Mas para meu desencantoO que era doce acabouTudo tomou seu lugarDepois que a banda passou
E cada qual no seu cantoEm cada canto uma dorDepois da banda passarCantando coisas de amor.
As bandas de música aqui citadas representam um grupo orquestral de
sopros com três tipos básicos de instrumentação, que refletem seu tamanho, de
acordo com os formatos organizados por Oscar Brum: Banda militar ou banda
pequena, banda média e banda sinfônica (1988, p. 12, 13).
Seja como escola de música ou como parte da cultura musical da cidade a
banda de música é uma formação tradicional e com seu percurso histórico bem
definido nas palavras de Salles:
A banda de música tal como hoje se apresenta, é produto do século XIX.Quando D. João VI embarcou para par o Brasil, a 27 de novembro de1807, trouxe em sua comitiva a Banda da Brigada Real (...). Por decretode 27 de março de1810, D, João estabeleceu que, no Rio de Janeiro,houvesse em cada regimento um corpo de músicos de 12 a 16executantes (...). Em 1814 começaram a espalhar-se nos quartéis dequase todo o Brasil o ensino e a prática de instrumentos maisatualizados. (1985, p. 18, 19).
Em Belém algumas formações instrumentais apreciadas pelos músicos
populares, contribuíram para o surgimento do conjunto mais organizado e que se
chamaria banda de música, ainda de acordo com as explicações de Salles:
Nos primitivos ternos encontramos, claramente, a motivação para a persistênciados conjuntos musicais, ou talvez mesmo o modelo de alguns desses conjuntosque se folclorizaram. Mas terço ou terno também podia ser a reunião de apenastrês instrumentos. Notável, pela disseminação e pela preferência dos músicos populares, era o terno que agrupava simplesmente a flauta, o violão e ocavaquinho. Esse terno alcançou a época do choro e das serenatas e ainda podeser encontrado pelo interior e subúrbios de Belém. A banda de música herdaria,do terno, a divisão clássica e/ou tradicional agrupando os naipes de madeiras,
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metais e percussão; portanto, um terno. No século XIX, o terno se transformouem banda de música. (1985, p. 19).
Do início do século XX para a atualidade, foram poucas as mudanças
ocorridas nas bandas de música quanto à sua instrumentação. Na parte pedagógica
e no modus faciendi, tanto na capital como no interior, as bandas de música
continuaram a formar músicos e tocar ao ar livre ou em salas de concertos.
No decorrer do século XX as bandas de música sobreviveram a todas as
intempéries e dificuldades que o meio musical belenense apresentou, ajudando, do
ponto de vista musical a compor memoriais sonoros importantes, que marcaram
todas as gerações de habitantes e visitantes da cidade de Belém. Seus parques,
passeios públicos, ruas e avenidas sempre tiveram, por várias vezes durante o ano,
a presença dos sons envolventes deste importante grupo instrumental.
No que concerne ao aparecimento de outros grupos musicais, inclusive as
modernas bandas de música popular urbana, creditamos à banda de música, civil
ou militar, uma grande influência na formação desses conjuntos bem como na
preparação de seus músicos.
As orquestras sinfônicas, embora sejam grupos musicais grandes, tem na
sua instrumentação o equilíbrio necessário para espetáculos em recintos fechados.
No entanto, mesmo com estas características de sonoridade mais sensível, as
orquestras sinfônicas sempre participaram de eventos ao ar livre.
Com apresentações ao ar livre, nos teatros e em outros recintos da cidade
estes grupos orquestrais formaram um grande e fiel público, tanto que até na
atualidade temos representantes destas formações instrumentais em pleno vigor na
cidade. Além das ações de performance as orquestras tiveram importante papel na
formação de músicos, que aproveitando a prática diária de seus repertórios,
dedicaram-se a outras atividades musicais em grupos menores de câmara ou de
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música popular. Deriva daí o nascimento de várias conformações instrumentais
autônomas ou especializadas em acompanhar cantores.
Percorrendo caminhos históricos diversos, grupos musicais de diversas
formações instrumentais ilustraram nossa paisagem sonora. São várias as
denominações para grupos pequenos, desde os genéricos duos, trios, quartetos e
quintetos, passando pelas pequenas orquestras de câmara, até os regionais e pau e
corda.
Alguns grupos orquestrais de Belém, quando foram fundados recebiam
denominações variadas, sendo que seus objetivos estavam centrados na execução
de repertório para ouvir e de músicas para dançar, ficando conhecidas como
orquestras de baile.
Nos anos 1940 e 1950, épocas de transição da grande era do rádio para
a da televisão, surgem em Belém, as “Big Bands”, nos moldes das orquestras de
jazz americanas. Estas orquestras tocavam nas praças, nos clubes, nos parques,
nos teatros e nas residências. Chamadas de orquestras, esses grupos revelaram
cantores e instrumentistas. Do formato imitativo das orquestras americanas
evoluíram para formações adaptadas, sempre buscando adequar-se aos novos
tempos que traziam tecnologia e novos gostos musicais.
Todos esses conjuntos musicais, cada um com seu gênero e estilo musicaldefinidos, corroboram a idéia de que Belém é terra de músicos. Em 1930, Raimundo
Morais já falava sobre esse aspecto da cidade:
A capital paraense é a terra de músicos boêmios, das famosasorquestras de pau e corda, dos tocadores de flauta e violão, doscantadores de modinhas, dos trovadores noturnos, que levantam, emsetembro e outubro, nas noites brancas de lua cheia, em lânguidasserenatas, quarteirões inteiros. (apud Maranhão, 2000, p. 185).
Nos idos dos anos 1980, chega à Belém uma nova forma de nomear os
grupos musicais compostos de instrumentos elétrico-eletrônicos e que interpretam
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repertórios variados de música popular urbana, anteriormente chamados de
conjuntos ou grupos. A palavra banda é imediatamente seguida do nome do grupo,
como p. ex. Banda Nova, Banda Eva, entre outras, que são formadas geralmente
por uma ou duas guitarras, um contrabaixo elétrico, um teclado eletrônico e uma
bateria. Raramente estas bandas são somente instrumentais, tendo sempre um
cantor e ou um grupo de cantores integrados ao grupo.
Além dos grupos e orquestras citados, Belém ouviu ainda as fanfarras
colegiais, as baterias das escolas de samba, os grupos de carimbó, forró, boi
bumbá, grupos de música afro, das rodas de capoeira e as modernas bandas de
rock, rag, bossa nova, jovem guarda, guitarradas, brega e hip hop. Ainda
poderemos citar outros grupos musicais para compor a paisagem sonora da cidade
das mangueiras e da música: bandas evangélicas, grupos de percussão de música
contemporânea, grupos de música indígena, entre outros. Em ação há algum tempo,
os chamados DJs, operadores de aparelhagens de som, em clubes e casas
noturnas, são considerados por alguns como executantes de um instrumento
musical, haja visto o perfil criativo de suas apresentações.
Os grupos musicais são responsáveis até hoje pela compensação sonora
frente ao crescimento descontrolado da sonoridade fractal e até em certa medida,
caótico. A beleza dos sons desses grupos, que em tempos mais próximos da eraLemos era apreciado pela população com maior transparência e sensibilidade,
inclusive em praças públicas, hoje se faz necessário o uso de amplificadores de
som, cada vez mais potentes.
Atualmente a perenidade desses grupos está seriamente abalada pelas
mudanças dos costumes e da própria paisagem sonora de Belém. A cada década
foram adicionados ao meio ambiente novos sons formando uma complexa cápsula
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sonora onde os grupos musicais de sonoridade leve são obrigados ao uso de
refúgios sonoros como os teatros ou locais de melhor ambientação para a sua
performance.
Cercados pela possante poluição sonora, envoltos no debate sobre o meio
ambiente acústico e ao mesmo tempo atuantes, os grupos musicais ampliam seu
papel na construção do soundscape da cidade de Belém do novo século que se
inicia.
2.3 - Vendo imagens sonoras
Ver com os ouvidos ou enxergar com a audição parece ser um mecanismo
de percepção desafiador para o ser humano. No entanto no dia-a-dia das pessoas
numa grande cidade com Belém do Pará esta prática descortina uma ação bastante
saudável para os seus habitantes: a percepção da paisagem sonora de forma mais
ampla, que possibilita às pessoas uma relação mais proveitosa com o seu território
auditivo.
Neste sentido Schafer define a relação entre a paisagem visual e a
sonora:
Podemos isolar um ambiente acústico como um campo de estudo, domesmo modo que podemos estudar as características de umadeterminada paisagem. Todavia, formular uma impressão exata de umapaisagem sonora é mais difícil do que a de uma paisagem visual. Nãoexiste nada em sonografia que corresponda à impressão instantâneaque a fotografia consegue criar. Com uma câmera, é possível detectar osfatos relevantes de um panorama visual e criar uma impressãoimediatamente evidente. O microfone não opera dessa maneira. Ele fazuma amostragem de pormenores e nos fornece uma impressãosemelhante à de um close, mas nada que corresponda a uma fotografiaaérea (2001, p. 23).
Devido os sons aparecerem e desaparecerem do nosso entorno de várias
formas, sempre no decorrer do tempo, não podemos registrar instantaneamente e
com a mesma competência do que os dados visuais que passam por nossa frente.
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ambiente penetrarão, sem controle ou critério de escolha, pelo microfone, vindo a
somar com o assunto sonoro principal vindo a compor uma paisagem sonora real.
Ao reproduzirmos o que foi gravado ouviremos ainda o que o equipamento
reprodutor emite, além dos sons existentes no meio ambiente acústico do nosso
entorno.
Ao promover o historicismo da paisagem sonora da cidade de Belém, no
período ora estudado, não será possível resgatar inúmeras ocorrências sonoras,
bem como diversos momentos sonoros ocorridos no passado. A evolução da
sonoridade da cidade espelha, mesmo que num período curto da sua história, um
processo de acúmulo veloz e gradativo de novos sons.
O memorial sonoro da cidade de Belém é muito rico e criativo. Algumas
fontes sonoras somente aqui existiram ou existem até hoje. A cidade por estar
dentro da floresta amazônica e cercada por rios, igarapés e espelhada numa baia,
tem nas lendas e mistérios da floresta um forte componente sonoro. A proximidade
da mata faz com que as pessoas tenham muita intimidade com diversos animais e
seus sons. Mesmo na atualidade, onde a urbanização aponta para a globalização
dos costumes e uso dos espaços, o povo guarda na relação com a natureza e seus
atores uma relação única.
Permeando o território auditivo de Belém alguns sons peculiares são ouvidosna cidade diariamente. Outros desapareceram por completo, mas ficaram na
memória das pessoas de idade avançada. Abordaremos alguns exemplos de
imagens sonoras, transcritas pela simples descrição textual, sendo que algumas são
associadas com a sua imagem gráfica o que pode aproximar o espectador da
audição do seu verdadeiro resultado sonoro.
Na beira do Rio Guamá e da Baia do Guajará ouvimos muitos sons da
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natureza ou criados pelo homem. O pô-pô-pô, como é chamado um tipo de barco
que transita pelos rios levando passageiros e mercadorias, emite, do motor de
popa, ruídos característicos que o povo denomina com criativa onomatopéia.
O barulho da descarga do motor é intermitente e bem forte o suficiente
para se ouvir da margem do rio. Além de avisar às pessoas de sua aproximação
o som identifica o tipo e tamanho do barco, haja vista que outros barcos de
menor ou maior porte emitem outros sinais sonoros.
Figura 4. O Barco Pô-Pô-Pô. Foto: Rosa Arraes
O açaí, fruta típica da região amazônica, chega diariamente numa feira
denominada pelo mesmo nome da fruta, ao lado da grande feira do Ver-O-Peso e é
processado numa máquina para fazer um suco forte e muito apreciado pela
população. O som que esta máquina gera é uma mistura do barulho do motor com o
ruído dos caroços dentro da máquina. Antes da invenção desta máquina o açaí era
amassado por uma pessoa numa vasilha de barro cozido chamado aguidá e depois
coado numa peneira feita com fibras vegetais. Este modo manufaturado caiu em
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atracado um barbante. Na outra extremidade o barbante é amarrado a uma varinha
untada de breu. Ao girar a varinha um ruído trêmulo é transportado pelo barbante e
amplificado no copo, soando semelhante ao rosnar de um bicho, o que agrada muito
às crianças.
Outros brinquedos e brincadeiras infantis são comuns na época do círio e
mesmo em outras fazes do ano. Algumas se extinguiram outras continuam a existir,
porém somente na periferia da cidade onde a influência dos meios de comunicação
e dos brinquedos eletrônicos ainda não tem muita força. Além do roque-roque temos
o bate-bate, as bola de gude, que em Belém são conhecidas como petecas, a corda
de pular, o fura-fura, a baladeira, o bole-bole e muitos outros.
Um dos mais interessantes brinquedos infantis é o carro-de-lata, construído
por crianças que não tendo recursos para comprar brinquedos industrializados
utilizam-se da criatividade para fazê-lo. A montagem é feita com latas de leite em pó,
furadas no fundo e na tampa, bem tampadas, cheias de areia branca e algumas
pedras pequenas. Pelos furos é introduzido um arame grosso no qual se liga outra
lata igual, com o mesmo tamanho e peso aproximado que, ao final, emenda-se em
outro arame fino, (com duas pernas separadas) com o qual pode-se puxar o carro
que normalmente é de três latas, atreladas.
O som que sai do “carro” é feito pelo contato da lata com o chão somado aosom que o próprio “motorista” faz com a boca, imitando o barulho do motor, inclusive
com as mudanças de marcha, buzinas, além dos impropérios aos outros “motoristas”
e “transeuntes”. Tudo na fértil e criativa imaginação infantil.
A audição das crianças é motivada para a execução das brincadeiras e
jogos infantis não sendo necessário ter o brinquedo material para haver a diversão.
Uma dessas brincadeiras é a adoleta, onde os braços e as vozes compõem um
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criativo componente sonoro. O som das batidas das palmas somados ao texto
falado ou cantado pelas crianças fazem um conjunto sonoro muito forte. Outra
brincadeira que utiliza poucos recursos é a corda de pular que sempre foi um dos
mais animados e queridos brinquedos infantis, permitindo inúmeras possibilidades
de variação em sua prática.
Nos dias de hoje é comum ver pessoas reclamando que Belém é uma
cidade barulhenta. Se pudéssemos escutar a cidade da mesma forma como alguém
a visualiza de um avião, teríamos uma percepção geral de toda a sonoridade de seu
território auditivo, com variantes de intensidade sonora, de acordo com a hora do
dia, do dia do ano e dos eventos que estejam acontecendo. Poderíamos observar,
então, que a cidade pode ser barulhenta, calma e até silenciosa, de acordo com o
momento de nossa observação.
Diferentemente da percepção visual, a escuta ocorre de forma independente
da posição de nosso corpo em relação à fonte sonora. Podemos escutar algo,
mesmo estando de costas para a fonte produtora do evento sonoro. É possível que
escutemos algo que vem de muito longe, desde que o vento e outros fenômenos da
natureza ajudem. Caso estejamos num avião, podemos ver a cidade através do
vidro da janela, mas não escutaremos, devido a cabine ser hermeticamente fechada.
Na paisagem sonora de Belém estão contidos todos os elementos sonorosda natureza amazônica e da construção artificial de sons que o homem vem
produzindo ao longo da história da cidade, gerando um complexo ambiente acústico,
onde habitam ruídos, músicas, pregões, vozes, etc., constituindo uma grande
cápsula sonora, tão rica quanto frágil e bela, porém sujeita a altos níveis de violação
e de contágio por elementos nocivos à saúde, à apreciação estética.
Cabe-nos então vê-la com os ouvidos, escutá-la com atenção e amorosidade.
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2.4 – Poluição sonora, refúgios e jardins sonoros
Belém possui uma lei específica para o controle do que a mesma denomina de
“poluição sonora”. É a lei 7.990, de 10 de janeiro de 2000 (ver anexo). Através do
texto legal podemos avaliar o que ocorre atualmente na cidade e quais componentes
principais contribuíram para que a paisagem sonora de Belém pudesse evoluir para
o que temos hoje.
A lei, no seu artigo 6º apresenta várias definições, entre elas a de poluição
sonora, meio ambiente, som, ruído, ruído impulsivo, ruído contínuo, ruído
intermitente, ruído de fundo e vibração. Todas estes elementos pertencentes ao
meio acústico somados à música e aos sons fundamentais da natureza formam o
soundscape de Belém.
A poluição sonora é uma definição amplamente aceita pelos musicólogos,
ecologistas, geógrafos e demais profissionais que lidam com o ambiente acústico. A
ela se refere Schafer: A poluição sonora é hoje um problema mundial. (2001, p. 17)
Podemos considerar a poluição como uma ação individual ou coletiva de
sujar o meio em que vivemos, contribuindo para prejudicar a saúde dos indivíduos e
sua comunidade. É um abuso da liberdade de emissão sonora e da criação estética
que temos ao lidar com o nosso território auditivo.
Lendo com atenção o texto da lei e observando os movimentos sonoros dacidade diariamente, podemos encontrar diversas contradições que explicam parte
dos problemas relativos à poluição sonora em Belém. Os serviços de auto falantes
fixos funcionam a qualquer hora do dia contradizendo o que diz o Art. 14. Nas feiras e
ruas com comércio estes sistemas de som atuam livremente.
O Art. 5º: institui o Programa Municipal de Educação e Controle da Poluição
Sonora, com vários objetivos. No entanto a sociedade não vê os resultados práticos
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deste programa. Um dos mais flagrantes descumprimentos da lei 7.990 é no que diz
respeito aos limites de emissão sonora apontada no Art. 8º, principalmente nas
festas de rua, onde o limite de pressão sonora sobre as pessoas avança muito além
do que está estabelecido na lei, chegando a serem registradas emissões de até
cento e setenta decibéis por alguns equipamentos de som. O simples não
cumprimento da lei pela população acontece devido a fatores diversos, não cabendo
o entendimento de desobediência coletiva ao poder público.
Muitos sons sejam eles ruídos produzidos por descargas de automóveis,
cultos religiosos ou festas populares de rua e de terreiros e sedes, são apreciados
por parte da população, advindos de costumes e processos educacionais. Por este
lado a lei vem para beneficiar parte da população em detrimento de uma outra parte
que deseja exatamente o contrário daquela, além do que o poder público muitas
vezes autoriza eventos que contradizem a própria lei que ele deveria zelar.
A poluição sonora é visto pela maioria das pessoas, inclusive especialistas
na área do meio ambiente, como um dos problemas de saúde p