Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da
Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VII – Número VI – Janeiro a Dezembro de 2011
Do Príncipe aos Discorsi: Algumas Considerações sobre o Pensamento Político de Maquiavel
Du Principe à les Discorsi: Quelques considerations sur
la pensée politique de Machiavel
Felipe Fernandes Santana1 - Universidade Federal de São João del Rei Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a aparente contradição entre duas obras de Maquiavel, O Príncipe e os Discorsi. A história do pensamento comumente associa o nome de Maquiavel à ação interesseira e desleal baseada unicamente no livreto O Príncipe, deixando de lado a grande defesa que Maquiavel faz do republicanismo em os Discorsi. Buscaremos demonstrar que tal contradição é uma falácia e não se sustenta quando se procede à uma análise atenta do pensamento de Maquiavel. Palavras-chave: Estado, Política, Sociedade. Résumé: Cet article vise à analyser la contradiction apparente entre deux œuvres de Machiavel, les Discorsi et Le Prince. L'histoire de la pensée associe communément le nom de Machiavel à l'action auto-intéressée et injuste fondée uniquement sur le livret Le Prince, laissant de côté la grande défense du républicanisme que Machiavel fait dans les Discorsi. Nous chercherons à démontrer que cette contradiction est un sophisme et ne tient pas, si on fait une analyse minutieuse de la pensée de Machiavel. Mots-clés: Etat, Politique, Société.
em dúvida, Maquiavel é quase sempre muito mais citado do que lido. É
possível falarmos de uma ruptura entre a política e a moral realizada por Maquiavel? Seria o
caso de nos perguntarmos também por que Maquiavel causou tanto alvoroço na cultura
ocidental, chegando a gerar o que se considera “o problema Maquiavel”. O que não resta
dúvida é que o século XX se abre com uma recusa a toda espécie de idealismo. Chevallier nos
diz:
Quanto ao século XX, votado às guerras gigantescas, o mundo liberal se vê assaltado, de todos os lados, pela maré autoritária, em breve totalitária, o idealismo político perde terreno diante dos “realismos”, que se valem, mais ou menos abertamente, de Maquiavel e de O Príncipe (CHEVALLIER, 1990, p. 48).
1 Graduando em filosofia pela UFSJ. Orientador: Prof. Dr. Adelmo José da Silva. E-mail: [email protected]. Agência Financiadora: CNPq
S
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O pensamento inovador de Maquiavel se inscreve dentro de uma virada
epistemológica que a Renascença vinha sofrendo há algum tempo. Bem antes de Maquiavel,
com Copérnico e Galileu, já evidenciamos um movimento de ruptura de nível ontológico nas
bases paradigmáticas do pensamento ocidental.
A partir da imensa literatura maquiaveliana, podemos tirar uma primeira conclusão
muito elementar: a obra do nosso autor está longe de inserir-se num campo de reflexão em
que se possa trabalhar com tranquilidade. Acreditamos, conforme Bignotto e Croce, que a
obra maquiaveliana é habitada por um certo mistério, qual seja, afinal Maquiavel operou a
cisão definitiva entre a ética e a política ou estaria apenas em busca da verdade efetiva dos
fatos?
Lefort (1972, p. 10), alude ao fato de o nome de Maquiavel ter ganhado tal significado
que o utilizamos mesmo sem jamais ter contato com sua obra:
Estranha aventura, e que intriga, pois basta a mais rápida iniciação a história da sociedade em que viveu Maquiavel, e de uma leitura mesmo superficial de suas obras para se persuadir que ele não foi nem o praticante nem o autor dessa perversão política que se nomeia maquiavelismo [...] (LEFORT, 1971, p. 23, tradução nossa).2
Uma primeira leitura da obra maquiaveliana poderia parecer que há um autor para o
Príncipe e outro para os Discorsi. Na primeira obra encontramos um autor focado no papel do
governante, na segunda um autor buscando firmar as bases do poder dos governandos. Para
Bignotto, o Maquiavel mais extenso é republicano, enquanto o Maquiavel mais curto é
monárquico. Em relação ao Príncipe, Lefort argumenta:
Se a primeira questão da obra parece indicar um retrato do pensamento no limite do conhecimento das operações necessárias à conquista e à conservação do poder, com o alargamento de seu objeto, pouco a pouco vemos que é todo o edifício de representações construídos sobre a base de concepções clássicas e cristãs que se encontra arruinado e uma nova relação com a política se instaura (LEFORT, 1971, p. 453, tradução nossa).3
Se tínhamos a impressão de que o Príncipe respondia todas as nossas questões sobre a
2 Étrange aventure, et qui intrigue, car il suffit de l'initiation la plus rapide à l'histoire de la société où vivait Machiavel, et d'une lecture, si superficielle soit-elle, de ses ouvrages, pour se persuader qu'il ne fui ni le pratiquant, ni l'auteur de cette perversion politique qu'on nomme machiavélisme [...]. 3 Si la première question de l`ouvrage semble indiquer un retrait de la pensée aux limites de la connaissance des opérations nécessaires à la conquête et à la conservation du povoir, avec le déplacement de son objet, c'est peu à peu tout l´édifice de représentations construit sur la base des concptions classiques et chrétiennes qui se trouve ruiné et un rapport neuf à la politique qui s´instaure.
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ação política, o que vemos, e o que Lefort nos indica, é que na verdade o Príncipe abre uma
série de discussões que nascem exatamente onde esse edifício teórico solidamente construído
desaba. Para Lefort (1972, p. 453), o Príncipe nos coloca questões como “o que é o poder, a
divisão do Estado e da sociedade, a divisão de classes e os desejos das classes”. Para
responder tais questões, devemos observar a obra que se segue ao Príncipe, os Discorsi. A
questão, levantada por Lefort (1972, p. 453) é: “Devemos supor que essa segunda obra
prossegue o trabalho começado, desenvolvendo suas consequências olhando de uma nova
maneira ou se ela marca um novo começo distante do primeiro, ou apagando-o?” Como
demonstraremos mais adiante, Maquiavel mesmo nos oferece a resposta para tal questão.
Porém o que intriga é que Maquiavel não tenha dito isso nos Discorsi, uma vez que está claro
que o Príncipe está em evidente contraste com os Discorsi. Embora, como diz Escorel (1984,
p.24), entre ambos se possa estabelecer vários pontos de contato.
Escorel (1984, p. 24) esclarece que, se repetidas vezes Maquiavel foi acusado de
despotismo, isso se deve a que o Príncipe foi seu livro mais difundido e não poucas vezes a
única obra utilizada para fundamentar essa crítica. Para Escorel:
Hoje em dia, entretanto, ninguém mais ousaria definir o pensamento político de Maquiavel sem ter presentes as considerações apologéticas que nos deixou sobre a República romana, as quais colocam na devida perspectiva histórica sua defesa do absolutismo. Quer-nos parecer, porém, injustificável exaltar o republicanismo de Maquiavel a ponto de, como faz J. W. Allen, qualificar O Príncipe de simples livro de circunstância, apenas parcialmente sincero. Porque, na verdade, no pensamento maquiavélico, a apologia da monarquia absoluta, uma vez bem compreendida, pode legitimamente coexistir, sem que por isso seu autor deva ser acoimado de insincero, com as manifestas simpatias que os Comentários revelam pela forma republicana de governo (1984, p.24).
Antes de mais nada devemos ter em mente que o Príncipe foi escrito dentro de um
determinado contexto político, qual seja: a desestruturação provocada pela corrupção e pela
anarquia que reinava nos Estados italianos. Maquiavel apontava como solução para essa
situação a intervenção de um governante absoluto cheio de virtù, visando a unificação e a
libertação da Itália do domínio estrangeiro. Como analisa Escorel (1984, p.24), “acreditava
Maquiavel realmente que tanto a fundação de uma nação, de um Estado, quanto a reforma de
uma cidade corrupta requeriam a intervenção da vontade absoluta de um legislador”. Desta
forma, para aquele momento específico, para aquela Itália debilitada por conflitos, atacada por
forças estrangeiras, Maquiavel propunha a intervenção de um poder forte que catalisasse as
forças italianas e reconduzisse a Itália para o caminho da glória. Portanto, conforme Escorel
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(1984, p.24), “o absolutismo régio se coloca, destarte, como um recurso necessário em
determinadas situações históricas, particularmente em momentos de reforma ou criação de um
Estado, como era o caso do século XVI”. Daí se segue, na reflexão maquiaveliana, que um
Estado que se pretenda duradouro, não deve ter por base apenas a virtù de um governante. É
necessária uma base constitucional que lhe sustente, e que ofereça garantias que a excelência
de seu governo prossiga mesmo após o governo desse príncipe virtuoso. Conforme Maquiavel
mesmo no diz: “Se um só homem é capaz de estabelecer normas para um Estado, este durará
bem pouco tempo, se um só homem continuar a suportar todo o peso. Não acontece o mesmo,
quando uma guarda é confiada a um grande número de pessoas” (Discorsi L. I, c. II, X e XI).
Para Escorel (1984, p.24), esse “segundo momento de vida do Estado que Maquiavel
se dedicou nos Discorsi”, representa uma evolução especulativa em relação à doutrina
formulada no Príncipe, “pois nele se efetua a passagem da concepção do Estado como obra de
engenharia do indivíduo de exceção à teoria do Estado-Civilização, do Estado força ao
Estado-Regime, cujo protótipo será para Maquiavel a República romana”.
Constatamos desta forma que os Discorsi não representam uma incoerência no
pensamento de Maquiavel. Didaticamente e fiel à sua teoria, Maquiavel desenvolve uma
reflexão monárquica absolutista que crie bases para uma república. Citando Luigi Russo,
Escorel nos oferece uma interpretação chave do pensamento maquiaveliano:
Russo, a quem devemos páginas extremamente agudas sobre Maquiavel, observa ainda que se O Príncipe é um libelo de política militante que “esgota as exigências da prática política do Renascimento, os Comentários são uma construção ideal, uma obra de educação política, uma sistematização mais refletida uma projeção na história passada e futura das ‘lezioni delle cose del mondo’, um acolhimento menos polêmico de alguns motivos da ética tradicional, por demais impetuosamente negados ou transcurados em O Príncipe” (1984, p. 25).
Como humanista que era, Maquiavel acreditava que o passado, mais precisamente um
passado clássico romano, guardava as chaves para o bom governo. Desta forma, já na leitura
do proêmio dos Discorsi Maquiavel deixa bem claro a tarefa a que se propõe, qual seja:
estabelecer um paralelo entre os grandes feitos e a degradação cada vez maior de Florença.
Estudando a história de Roma, Maquiavel queria evidenciar o desenvolvimento do Estado,
desde seu nascimento até sua morte. Maquiavel acreditava poder encontrar na história de
Roma a resposta para suas questões. Ele via na virtù e na prudência romana os elementos
básicos que contribuiriam para fazer dela um Estado tão poderoso. Ressaltamos porém, como
se era entendida por Maquiavel essa imitação da antiguidade que ele vai propor no proêmio
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dos Discorsi. Aqui nos servimos da explicação que Lefort nos dá:
O artista não é aquele que copia servilmente um fragmento de estátua; se ele imita, é porque o objeto lhe devolve o poder da vida e que, convertido em modelo, ele se torna, como coisa do passado, mais presente que todo que povoa o universo imediato dado como presente. Entretanto a diferença do presente e do passado é apreendida pela política em uma experiência singular. A estátua antiga pode facilmente continuar, animando a criação moderna, um monumento e um emblema da Antiguidade; mas a República romana não é nem um monumento e um emblema; com ela o passado retoma o presente, a história revela que não é nem antiga nem moderna; a diferença de tempo não se abole, mas ela se acaba, pois a verdade antiga é assujeitada pela experiência Florentina (1972, p. 463, tradução nossa).4
Os Discorsi estão divididos em três livros. No primeiro livro encontramos um estudo
detalhado dos diversos modos utilizados para se fundar os Estados, as diversas modalidades
de governo e a organização dos mesmos. No segundo livro, Maquiavel analisa como se
engrandecem os Estados e como se conquistam novos. No terceiro livro ele reflete sobre
como acontece a decadência dos Estados. Entretanto, alerta Escorel, não devemos crer que
esses temas estejam assim didaticamente expostos, ao contrário, “seria mesmo difícil
determinar com rigor o tema central da obra, escrita evidentemente ao sabor das leituras e das
preocupações de momento do autor, que esteve longe de ser um pensador temático” (1984, p.
25). De qualquer forma, por mais que Maquiavel faça grandes digressões, jamais perde de
vista o seu foco: a fonte da sabedoria se encontra na República romana.
O trabalho de Maquiavel surge de uma constatação indignada: os artistas buscam
inspiração nos antigos, os médicos também a buscam, mas os juristas, os encarregados da
ação política não a buscam. Maquiavel constata que:
Para fundar uma República, manter os Estados; para governar um reino, organizar um exército, conduzir uma guerra, dispensar a justiça, não encontramos nenhum príncipe, nenhuma república, nenhum capitão, nem cidadão que recorra ao exemplo dos antigos. (Discorsi L. II, c. II, IX).
Segundo Lefort (1972, p. 477) a força da tarefa que Maquiavel quer impor aos seus
4 L'artiste n'est pas celui qui copie servilement un fragment de statue; s'il imite, c'est que l'objet s'est par lui rendu à sa puissance de vie et que, converti en modèle, el devient, em tant que chose du passé, plus présent que tout ce qui peuple l'univers immédiatement donné comme présent. Pourtant la defférence du présent et du passé est appréhendée par le politique dans une expérience signulière. La estatuaire antique peut bien demeurer, en animant la création des modernes, un monument et un emblème de l'Antiquité; mais la République romaine n'est ni monument ni emblème; avec elle le passé se saisit du présent, l'histoire se dévoile qui n'est ni antique ni moderne; la différenc des temps ne s'abolit pas, mais elle se brouie puisque l'vérité de l'ancien est assujettie à l'expérience du Floretin.
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contemporâneos está em afirmar que nenhum chefe civil, ignorando os antigos, não quer
imitá-los, Maquiavel faz parecer que quer subverter a tradição guardiã da tradição antiga. “En
suggérante que l'amour porté à Rome par tant Florentins a pour fonction de couvrir leur
impuissance à affronter les tâches du présent, il avertit sans doute que son interprétation de
Tite-Leve et de l'histoire romaine a la portée d'une démystification”.
Maquiavel quer corrigir esse erro. Ele está seguro de que a imitação da Antiguidade é
a saída para os problemas enfrentados em seu tempo. E essa ideia tanto mais se afirmou em
ele quanto mais ele percebia, conforme demonstra Escorel (1984, p. 26), que os mesmos
acidentes se repetem na história, “num momento de permanente retorno histórico”.
Maquiavel tinha uma fé ingênua na história. Para Escorel, sua concepção de história
era a seguinte:
Todas as coisas do mundo, em todos os tempos, dizia ele, encontram seu paralelo nos tempos antigos. O que resulta do fato de serem elas dirigidas pelos homens, que têm e sempre tiveram as mesmas paixões, de tal modo que necessariamente os efeitos são os mesmos. Tinha Maquiavel, como de resto seus contemporâneos, uma concepção ingênua e dogmática da história, a qual o levava a julgar esta última um depositário de exemplos universalmente válidos, ignorando o caráter particular da experiência histórica. Villari adverte que Maquiavel não abordou a história de Roma com espírito crítico, mas aceitou-a indiscriminadamente, sem fazer mesmo qualquer distinção entre os fatos históricos e a tradição legendária, sobretudo em torno da origem de Roma (1984, p. 26).
Villari, citado por Escorel (1984, p. 26), conclui daí que Maquiavel não via a
possibilidade de um melhoramento nos costumes políticos, já que partia da ideia de que os
homens são sempre os mesmos e de que a história se repete. Prosseguindo, Escorel
argumenta:
Faltando-lhe, ainda, como à sua época em geral, uma concepção do devenir histórico – que, de resto, esboçada por Vico, só entrou na ciência e na cultura ocidentais depois da revolução filosófica iniciada por Kant, como observa Villari – Maquiavel não dispunha de critérios relativos para julgar diversamente as ações e a conduta política, segundo a variedade dos tempos, as diferentes sociedades e modalidades dos povos, considerando que aquilo fora oportuno, necessário e útil numa determinada época estava logicamente justificado para sempre (1984, p. 26).
Porém, como bem explica Escorel (1984), Maquiavel não era de forma nenhuma um
fatalista. Certamente Maquiavel não possuía a noção que hoje temos de devir histórico, porém
isso não nos autoriza a daí concluir que ele se fiava piamente à repetição dos fatos. Está
presente na obra de Maquiavel um certo relativismo, a partir do qual em Maquiavel sempre há
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espaço para a adequação entre a forma de governo e o meio. Daí, conclui Escorel, (1984)
Maquiavel não foi nem um apologista exclusivo do absolutismo nem um puro defensor do
ideal republicano, nem tampouco um meio termo entre essas duas posições, só podendo ser
entendido se considerarmos como um pensamento que antes de tudo dá a cada caso seu
devido tratamento.
O fato é que Maquiavel rompe com o modelo platônico para o qual a política se
regulava a partir de um modelo perfeito. A Maquiavel vai interessar a ação pura, se é que
assim podemos dizer. Sabemos que para os gregos a sociedade era fundada na ordem da
physis, e as leis (nómos) de uma cidade deveriam corresponder a essa physis. Aristóteles foi o
grande articulador dessa forma de pensar.
A ideia aristotélica de cosmos é de um todo organizado em que cada parte possui seu
exato lugar no mundo. É exatamente esse modo de pensar que o homem renascentista irá
abandonar em favor de uma concepção de mundo, como dirá Maquiavel, mais condizente
com os fatos. Não é difícil imaginar o nível da mudança que se deu na mentalidade do homem
renascentista. Copérnico havia acabado de demonstrar que a terra não era o centro do
universo, e isso trouxe grandes consequências também para a posição do homem na terra. O
homem se vê questionado naquilo que ele tem de mais profundo, seu próprio ser no mundo. A
physis deixa de fazer parte do universo conceptual do homem, doravante o que há é apenas
um espaço no qual todas as ações estão por serem tomadas. Como alerta Gomes, é importante
termos em mente que “se o Renascimento é a porta de entrada da modernidade, ela não se
confunde com esta” (1992, p.14). O Renascimento é um período incerto, quase experimental,
no qual não se sabe bem ao certo onde tudo vai dar. Para Gomes, “o que temos é um universo
que tenta se constituir ao preço da destruição de um outro que se funda na concepção
aristotélico-medieval de um mundo ordenado e hierarquizado (1992, p. 15)”.
Diante desse quadro, o homem renascentista se encontra mesmo em sérios apuros, pois
se antes a physis fundava a cidade, dando-lhe uma coesão uma finalidade, e agora, o que
orientaria o homem?
O homem, antes hierarquicamente fixo numa determinada posição, agora tem a
liberdade de escolher o lugar em que quer ficar. O homem não se encontra mais diante de um
mundo imutável, a partir de agora ele pode interferir no mundo e mesmo conduzir-lhe os
movimentos. O mundo é um espaço de possibilidades.
Para Maquiavel não há modelos que possam guiar minha ação política, pois está na
pura iminência do seu desenvolvimento e envolta numa bruma de incertezas. E seu sucesso
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dependerá em grande parte da virtù dos personagens que se dispõem a jogar o jogo da
política. Conforme Escorel:
Maquiavel entendeu que os Estados não são uniformes, mas variam segundo circunstâncias históricas, condições de tempo, de clima e de espaço, nascendo e se desenvolvendo em diferentes ambientes físicos, econômicos e sociais – circunstâncias, condições e ambientes que imprimem uma particular estrutura e uma individualidade própria a cada um -, Maquiavel não erigiu nenhuma forma de governo em ideal político aplicável indistintamente os povos (1984, p. 31).
Francisco Ercole, que segundo Escorel (1984) nos deu uma importante contribuição ao
pensamento fragmentado de Maquiavel, nos mostra que o Republicanismo de Maquiavel foi
um tanto quanto relativo, uma vez que a possibilidade da república está condicionada por uma
série de fatores (virtudes morais, por exemplo), sendo muito mais o ápice de um processo
político do que seu começo. Da mesma forma para Maquiavel, uma monarquia não se adapta
num povo acostumado com a igualdade social e política.
O elogio que Maquiavel faz da República romana se centra principalmente na
capacidade que esta teve de lidar com seus conflitos. Para ele, a estabilidade e a força política
que Roma atingiu estavam principalmente centradas paradoxalmente na tensão que havia
entre a força do povo e a dos poderosos. Os conflitos, dentro da ótica maquiaveliana, não são
algo que se deva eliminar numa sociedade, mas administrados de forma que a tensão que eles
geram possa estar sempre presente. Pois acreditava Maquiavel que o desejo do povo
raramente é pernicioso à liberdade, porque tudo que eles querem é não serem oprimidos, ao
passo que os governantes sempre querem aumentar o seu poder. A manutenção de uma e
outra disposição é o que gera um bom estado social.
Em várias passagens dos Discorsi podemos evidenciar o quanto Maquiavel atribui ao
povo o papel decisivo no desenvolvimento saudável do corpo social. Escorel nos explica que
o capítulo LVIII dos Discorsi
Não deixa dúvida quanto à convicção de Maquiavel de que a participação popular é o fator decisivo da vida e força de um Estado, e de que a função do soberano, seja a de organizar um Estado, seja a de reformar uma sociedade corrupta, corresponde apenas a um momento determinado da trajetória política de um povo (1984, p. 40).
Voltemos agora ao nosso objetivo, qual seja, o de situar o Príncipe e os Discorsi,
obras aparentemente contrastantes, dentro do pensamento de Maquiavel. Inicialmente, como
escreve Lefort (1972), os Discorsi parecem ser mais limitados se comparados com o Príncipe,
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pois aqueles circunscrevem seu esforço a análise de textos antigos. Porém o diferencial
certamente desconcertante está em que os Discorsi clamam por uma imitação, num
movimento que completa o percurso iniciado com o Príncipe, a saber, romper com o antigo
paradigma estabelecido por Aristóteles e Cícero. Lefort chega a afirmar que “a audácia das
fórmulas sugere desta vez que os Discorsi são aos olhos do seu autor a obra da fundação, da
qual o Príncipe foi apenas uma primeira tentativa de descoberta” (1972, p. 455).
Maquiavel dedicou os Discorsi a dois jovens republicanos com os quais discutia
política e literatura nos jardins de Rucellai. Provavelmente, segundo Bignotto (1991, p. 74),
Maquiavel estaria querendo, ao dedicar seu livro a dois jovens republicanos, mudar a imagem
que sua dedicatória do Príncipe teria deixado. “Se a prudência é a marca da dedicatória, a
audácia será a do proêmio. Logo nas primeiras linhas, Maquiavel anuncia a intenção de se
distanciar do passado” (BIGNOTTO, 1991, p. 77).
O contraste mais importante desse primeiro capítulo não é, no entanto, entre Maquiavel e os humanistas, mas entre Roma e Florença. Ao apelar para a diferença das fundações, e ao fazer de Roma o modelo da república livre, nosso autor nos convida não só a compreender seu tempo através do confronto com a Antiguidade, mas a compreender a política através do estudo de suas formas mais perfeitas (1991, p. 79).
O historiador inglês Quentin Skiner (1988, p. 61) vê na ausência de impedimentos no
momento da fundação, tal como descreve Maquiavel a fundação romana, a definição formal
da liberdade. Segundo Skiner, ser livre significaria, para o secretário florentino, poder agir
sem depender do concurso de outros agentes, para tomar suas decisões partindo apenas de sua
própria vontade. Bignotto argumenta:
Dois novos pontos de partida para nossa pesquisa parecem, no entanto, surgir da leitura do segundo capítulo. Em primeiro lugar, aprendemos que a liberdade pode existir em “germe” em qualquer forma constitucional: a monarquia romana é a demonstração. Em segundo lugar, aprendemos que Roma deve ser considerada modelo não porque tenha tido uma fundação perfeita, mas, ao contrário, porque foi capaz de operar transformações que sabemos extremamente difíceis de serem levadas a bom termo. (1991, p. 82).
Pelo que foi dito, afirmamos que o pensamento de Maquiavel não se contradiz ao
propor duas etapas distintas no percurso de construção de uma sociedade. Há momentos
distintos, atitudes distintas. É certo que Maquiavel era um republicano, não sendo a tirania
uma forma de governo desejada em si mesma, mas um passo rumo ao republicanismo, à
liberdade.
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Referências BIGNOTTO, Newton. Maquiavel Republicano. São Paulo: Loyola, 1991. CHAVALLIER, Jean-Jacques. O Príncipe, de Maquiavel. In: CHAVALLIER, Jean-Jacques. As Grandes Obras Políticas: de Maquiavel aos Nossos Dias. Tradução de Lydia Christina. 5. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1990, p. 15-48. ESCOREL, Lauro. O Pensamento político de Maquiavel. In: Humanidades. Brasília, n. 8, p. 18-52, jul./set. 1984. GOMES, João Carlos Lino. Maquiavel: o poder e instauração da ordem política. 1992. 121f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. LEFORT, Claude. Le travail de l’ouevre: Machiavel. Paris: Gallimard, 1972. MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe/Escritos políticos. São Paulo: Nova Cultural, 2004. (Os Pensadores). SKINNER, Quentin. Maquiavel. São Paulo: Brasiliense, 1988.
Submetido em: 26/09/2011 Aceito em: 24/11/2011
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