Trabalho apresentado no II Seminário Internacional Media, Jornalismo e Democracia, “Jornalismo e Actos de Democracia”, dias 13 e 14 de novembro de 2006, Lisboa, Portugal.
Do real à imagem: a crítica nas charges
Diva Lea Batista da SILVA (IMESA/FEMA, Assis/SP)
Sumário
O objetivo deste trabalho é apresentar as relações lingüísticas intertextuais entre editorial e charges
publicadas, em periódicos paulistas, durante o mês de julho de 2006, relacionados com os ataques
do Primeiro Comando da Capital (PCC). Por meio de conceitos sobre níveis de linguagem, de
considerações gerais sobre o humor, dos conceitos de caricatura, cartum, charge, histórias em
quadrinhos, editorial, apresentamos os pontos convergentes entre os textos citados.
Abstract
This work shows questions about linguistic relations between editorial and charges published in
periodicals of São Paulo, during the month of July of 2006, related with the attacks of First
Command of Capital (PCC). By means of concepts on language levels, of general considerations on
humour, caricature, cartum, charge, comics and editorial concepts, we present the convergent points
between cited texts.
Introdução
Existe perceptivelmente ao nosso redor uma série de formas de comunicação como a do cinema, a
do jornal, a da televisão, a do rádio, a do cotidiano coloquial etc., que possuem uma estrutura
comum informativa, que chamamos de linguagem. Essa palavra faz a maioria de as pessoas
pensarem em texto ou linguagens verbais, ou seja, o uso da palavra falada ou escrita como meio de
expressão ou comunicação entre pessoas, como nos artigos de jornais e revistas, no radiojornalismo
etc. Entretanto, há outras formas de linguagem como a mímica, a dança, a música, o teatro, a
pintura, a fotografia etc.
Por isso, classificamos essas linguagens informativas e criativas em três níveis (Silva, 2000: 18):
a) linguagem verbal: usa uma unidade lingüística concreta (fala ou escrita), percebida pela audição
visão e/ou tato, produzida num espaço e num tempo determinados, que constitui uma unidade de
sentido (denotativo ou conotativo), independente de sua extensão, em relação a uma situação de
interação comunicativa;
b) linguagem não-verbal: utiliza qualquer signo que não seja a palavra, isto é, outras formas de
linguagem, valendo-se de imagens sensoriais diversas, como as visuais, auditivas, cinestésicas,
olfativas e gustativas. Exemplos: gravuras e fotografias (que exploram as formas e as cores, por
exemplo), músicas (melodia), mímicas, esculturas, algumas histórias em quadrinhos, charges etc.
c) linguagem verbo-visual: trabalha com a palavra e outras formas de linguagem que também se
valem dos signos, que se compõem de significantes (cor, forma, som, movimento etc.) e também de
significados (os conceitos que são expressos). Exemplos: textos publicitários, músicas, filmes,
charges, algumas histórias e tiras em quadrinhos, gravuras com legenda etc.
Tanto a linguagem verbal como as linguagens não-verbais expressam sentidos por meio de signos.
Enquanto que, na primeira, os signos são organizados pelos fonemas (sons) articulados da língua
(livro, casa, boi), nas outras linguagens são explorados outros signos, como as cores, as linhas, os
gestos, os sons, entre outros. Porém, ambas as formas estão marcadas por nosso modo de ser e
nossa visão de mundo. É, por meio delas, que o homem se comunica, exprime o seu pensamento,
representa a realidade que o rodeia e influencia os outros.
Destacamos agora, de acordo com Fiorin & Savioli (1992: 371-375), algumas diferenças e
semelhanças existentes entre esses tipos de linguagem.
Uma das diferenças é a de que a linguagem verbal é linear, isto é, cada signo e cada fonema são
usados num momento distinto do outro, não se superpõem: uma letra, uma palavra não “encavala”
na outra. Ao contrário, na linguagem não-verbal, vários signos (figuras) podem ocorrer
simultaneamente, como na pintura, na qual encontramos oposições de cores, formas (linhas retas e
curvas, horizontais e verticais), oposições de luz e sombra.
Quanto às semelhanças, percebemos que vários signos podem ocorrer ao mesmo tempo em uma
foto, quando há o ponto estático de tempo (descrição), ou então uma seqüência de fatos (narração)
apresentada em novelas, cinema, história em quadrinhos, fotonovelas etc.
Para Fiorin & Savioli (1992), a disposição de imagens em progressão que aparece nas histórias em
quadrinhos mostra uma seqüência de fatos que ocorrem gradualmente, representando uma narração
e não uma descrição. Nelas, há vários meios de sugestão de timbres, entonações, que nos levam à
interpretação dos sons emitidos: usam-se muito as onomatopéias como figuras que nos permitem,
pela representação lingüística de determinados fonemas, perceber o ruído manifestado. Esse
processo ocorre na intersecção dos planos verbal e visual, com base na estrutura fonética da língua,
em representação gráfica. A linguagem verbo-visual e a não-verbal, contidas nesse tipo de texto,
têm sintaxe, morfologia e léxico próprios, iguais à linguagem verbal, só que cada uma com suas
peculiaridades.
Ao analisar charges, destacamos as seguintes observações sobre o humor:
a) Freud (1969) e Gil (1991) chamaram a nossa atenção para a importância da brevidade das piadas,
o que também pode ser verificado em muitas charges. Para Lipps (in Freud, 1969: 26, grifo do
autor), um chiste diz o que tem a dizer, nem sempre em poucas palavras, mas sempre em palavras
poucas demais, isto é, em palavras que são insuficientes do ponto de vista de estrita lógica ou dos
modos usuais de pensamento e de expressão. Pode-se mesmo dizer tudo o que se tem a dizer nada
dizendo.
b) o humor, segundo Travaglia (1990), é uma espécie de denúncia, forma de se conservar o
equilíbrio social e psicológico, meio de se revelar outros modos de ver o mundo e a realidade que
nos rodeia e, assim, de desarmar falsas estabilidades;
c), de acordo com Freud (1969), o humor pode ser uma caracterização de realização catártica,
liberando uma série de desejos, anseios, com sensações de boas surpresas e embaraços conforme a
situação;
d) consideramos a charge, como as piadas, um texto de interpretabilidade restrita: o entendimento
desse texto depende da habilidade do leitor de se ajustar à visão do mundo do emissor. O leitor
recupera o sentido do texto instantaneamente se o “enredo” da charge for coerente e se ela se
encaixar em seu conhecimento de mundo, isto é, “frames”, conhecimentos adquiridos mediante
representações coletivas de situações, nas quais os acontecimentos são constantes, como por
exemplo, em desfiles de moda, natal, batizado, carnaval, guerras etc.
Tratamos nesta parte o que entendemos pelos três níveis de linguagem citados, com destaque para
os textos não-verbais e verbo-visuais, uma vez que serão apresentados, a seguir, os dois textos
básicos deste trabalho: editorial e charges.
1. Dos conceitos adotados
Em primeiro lugar, apresentamos algumas considerações sobre caricatura, cartum, charge e
histórias em quadrinhos, baseando-nos em Burtin-Vinholes (1953), Cagnin (1994), Cunha (1982),
Melo (1992), Moretti (2006), Rabaça & Barbosa (1995), pois não é fácil estabelecer uma diferença
entre esses tipos de texto.
A palavra caricatura origina-se do italiano, provavelmente do verbo “caricare” (fazer carga) e do
adjetivo “caricato” (ridículo, burlesco, grotesco) e, no sentido figurado, carranca. Representa
qualquer figura desenhada de modo não-convencional, cujo objetivo é ironizar, provocando o riso.
Consiste, propriamente, de retrato humano ou de objetos, com características grotescas, cômicas ou
humorísticas, que exageram ou simplificam traços, e ressaltam detalhes ou destacam defeitos;
O termo cartum provém do inglês “cartoon”, papelão duro, cartão (pequeno projeto em escala,
desenhado em cartão para ser produzido depois em mural ou tapeçaria). Esse termo surgiu talvez
devido a um projeto, sob forma de cartão, encomendado pelo príncipe Albert, em 1841, para os
novos murais do Palácio de Westminster. Como esse projeto serviu de alvo de crítica por parte do
povo inglês, a revista “Punch” publicou seus próprios cartuns, parodiando a iniciativa da corte.
Desse modo, o cartum consiste em uma narrativa humorística, que comporta uma cena apenas ou
uma seqüência de cenas, e pode ter alguns elementos das histórias em quadrinhos como balões,
onomatopéias, títulos etc. Na maioria da vezes, apresentado em um único quadro, esse tipo de texto
é uma anedota atemporal, universal, e não-perecível. Rimos com o amante dentro do armário, brigas
entre marido e mulher, gato e rato, etc. Seu objetivo é provocar o riso do leitor, por meio de uma
crítica satírica, irônica e principalmente humorística do comportamento do ser humano, das suas
fraquezas, dos seus hábitos e costumes (Rabaça & Barbosa, 1995: 114).
A charge é um cartum, segundo Rabaça & Barbosa (Ibidem), que se configura como uma notícia
ilustrada imediata de um momento histórico, como uma representação caricatural, em geral de
caráter político-editorial, em que se ridiculariza uma idéia, situação ou pessoa. Também pode ser
vista como elemento de ataque, com função risível. Com seu simbolismo, muitas vezes exagerado, a
charge tem o poder de criar e destruir ícones nas áreas política, religiosa, esportiva, social etc. A sua
função consiste em apresentar uma crítica interpretativo-humorística de um fato já conhecido do
leitor, segundo a ótica do desenhista, por meio de uma reprodução gráfica (imagem ou imagem
mais texto). A charge impõe uma “opinião”, interpretando os fatos em imagens, misturando pessoas
(parte social) e a situação (cenário). Mas tem uma limitação: ela perde o impacto se for transportada
para fora desse contexto de compreensão, pois é feita para aqueles que conhecem o tema usado na
referência. A palavra charge se origina do verbo francês “charger”: atacar, disparar carga; acusar,
injuriar. Uma carga sobre um assunto factual e jornalístico, daí a crítica humorística imediata que
se faz a certos fatos geralmente políticos, ao questionar o poder a todo o momento, o que “dispara”
o riso, o que chamamos de “gatilho” lingüístico.
A história em quadrinhos é uma forma de linguagem não-verbal (desenho) ou verbo-visual
(desenho e balões), em que encontramos personagens fixos, oposições de cores, formas (linhas retas
e curvas, horizontais e verticais, inclinadas), oposições de luz e sombra, usos de onomatopéias, falas
por meio de balões etc. Esse tipo de texto nos mostra uma sucessão de imagens e de fatos
entremeados, contendo balões ou não, com ou sem diálogos, que conta com a imaginação do leitor
para entender a seqüência da narrativa. Pode ser feita numa tira, numa página ou em duas, ou em
várias páginas (revista ou álbum). Pode ser atemporal, temporal, regional, científica, erótica,
infantil, esportiva, entre outras.
Retornando ao tema principal deste trabalho, de acordo com Rabaça & Barbosa (1995: 126, grifos
nossos), a charge usa, quase sempre, os elementos da caricatura na sua primeira acepção
(representação da fisionomia humana com características grotescas, cômicas ou humorísticas),
coisa que nunca acontece com o cartum, em que os bonecos representam um tipo de ser humano e
não uma pessoa específica.
Diante do exposto, percebemos que a charge nasceu da caricatura, ambas representam gêneros
jornalísticos opinativos, em virtude de terem um vínculo forte com o momento vivido, com
acontecimentos e personagens contemporâneos à sua produção.
O caráter depreciativo da caricatura é evidenciado pela deformação do modelo, o que significa a sua
destruição física, reproduzindo a imagem isolada dos personagens vivos da notícia, por exemplo. Já
a charge personifica alguns setores da sociedade por meio de seus personagens, satirizando e
ironizando fatos do cotidiano: é uma notícia ilustrada.
É possível até que a charge pela função humorística que a caracteriza seja utilizada para amenizar as
tensões provocadas por situações de ordem econômica, política, social, segurança pública, como
neste trabalho. Porém, o humor visual da charge pode ser condutor de ideologias e, com isso,
caracterizar o momento histórico de sua produção. Assim não podemos prescindir das lições sobre
gêneros opinativos, de acordo com Melo (1992: 52), ao afirmar que a charge contém a expressão de
uma opinião sobre determinado acontecimento jornalístico, porque se nutre dos símbolos e valores
que fluem permanentemente e que estão sintonizados com o comportamento coletivo.
Tanto que, segundo Maringoni (1996: 86-89),
a charge é apresentada pelo jornal como um material de opinião. Colocada na página de
Editoriais, configura-se como uma espécie de editorial gráfico unidimensional, que ou é contra
ou é a favor. (...), por ser datada, a charge política é perene, mas pode ficar como registro de
uma época sem, contudo, carregar a graça, a não ser que se tenha uma explicação dos fatos do
período; todavia, explicação mata qualquer piada.
Como a charge se relaciona com fatos publicados, geralmente, na véspera ou na antevéspera da
veiculação, seu leitor precisa, necessariamente, ser também consumidor da notícia. Essa é uma
limitação da charge, o que a torna temporal, finita e não duradoura.
É fundamental esclarecer o significado do contexto, necessário para decodificação da charge, uma
vez que, para se fazer humor, no entender de Maringoni (1996: 88), é preciso haver cumplicidade
com o público. Ninguém ri da piada que você conta, se não houver um código próprio entre você e
seus ouvintes.
A seguir, apresentamos as seguintes definições, por considerarmos muito tênue a diferença entre
reportagem e notícia:
a) notícia é um relato de uma série de fatos a partir do fato mais importante (Lage, 1987: 60);
limita-se, em geral, à cobertura de fatos que não ultrapassam o interesse do grupo de leitores a que
se destina a publicação (Lage, 1987: 40). Configura-se como matéria-prima do jornalismo, seja
impresso, televisado ou radiofônico;
b) reportagem é um gênero jornalístico que consiste no levantamento de assuntos para contar uma
história verdadeira, expor uma situação ou interpretar fatos (Lage, 1987: 61). A pauta ou o
projeto do texto da reportagem deve indicar de que maneira o assunto será abordado, que tipo e
quantas ilustrações, o tempo de apuração, os deslocamentos da equipe, o tamanho e até o estilo da
matéria; para tudo isso, é preciso dispor de dados (Lage, 1987: 47). Esse gênero cuida do
levantamento de um assunto, que está sempre disponível, para expor uma situação, de forma mais
livre e variada, conforme o ângulo preestabelecido. Os assuntos podem ou não ser atualizados por
um acontecimento.
Neste trabalho, apresentamos a influência que um texto escrito pode ter em um texto icônico, no
caso, um editorial sobre uma charge. O conteúdo de um editorial expressa a opinião, o pensamento
da empresa, da direção ou da equipe da redação, e não tem a obrigação de se ater a nenhuma
imparcialidade ou objetividade. Seu conteúdo possui características que fazem com que o leitor
estabeleça relações do texto com a “personalidade” do jornal.
Para fazer a comparação entre charge e editorial, valemo-nos de um processo lingüístico,
denominado intertextualidade que, em sentido estrito, é entendido como a relação de um texto
com outros textos previamente existentes, já efetivamente produzidos. É uma expressão do léxico
atual, criada pela semioticista Júlia Kristeva, para indicar o fenômeno da relação dialógica entre
textos (Curi, 1995: 64). Diálogo que não é uma simples troca de fala entre interlocutores, mas um
processo de autoconhecimento, conhecimento do outro e conhecimento de mundo.
Pela intertextualidade, há a ativação de dois mundos textuais; por esse processo, ocorre a mudança
de um mundo textual para o outro. Conforme Guimarães (1990: 26), as práticas intertextuais
inscrevem o texto novo num campo intelectual já conhecido do leitor, com quem estabelecem uma
espécie de conivência, pela reutilização de material que remete a um “já escrito” que predetermina
o texto e lhe assegura a previsibilidade - desde a simples reminiscência até a citação.
2. Do editorial à charge
Neste trabalho, utilizamos como corpus as seguintes publicações do jornal FOLHA DE S. PAULO,
no caderno A: o editorial “Novos ataques” (Texto A), publicado no dia 13 de julho de 2006, na
página 9 e as charges publicadas nos dias 17 e 18 de julho de 2006, na página 2.
No texto A, verbal, temos um editorial que “expõe uma situação”, na qual “políticos, na crise da
segurança paulista, travam uma batalha retórica que confunde e ofende a opinião pública”. Por ser
mais opinativo do que o da notícia, o estilo do editorial varia de acordo com o veículo, o público, o
assunto. Às vezes, chega-se a escolher técnicas literárias, como a interpretação, para uma
abordagem mais incisiva, agressiva e reveladora da realidade, devendo basear-se em situações,
atitudes e fatos devidamente comprovados.
Como exemplo, no primeiro parágrafo do texto A, temos o seguinte período “políticos envolvidos
no episódio têm se lançado a um esgrimismo retórico que os afasta cada vez mais da realidade; que
confunde, frustra e ofende a opinião pública”. Ou então, a permanência de justificativas de
políticos, colocando a culpa dos ataques terroristas em jornalistas da FOLHA DE S. PAULO,
insinuando que esse periódico publicara “uma lista de presos a serem transferidos para um presídio
federal” (3º parágrafo), o que pode dar a falsa impressão ao leitor de que o governo teve saídas para
a crise, mas a imprensa não soube divulgá-las.
Percebemos a opinião do editorialista, no 6º parágrafo do texto A, quando escreve que todos os
políticos só pensam nos votos que poderão perder ou ganhar com suas declarações, ignorando a
principal e imediata necessidade dos paulistas: “confiar em que as principais autoridades públicas
restabelecerão a ordem e não permitirão que os autores da selvageria fiquem impunes”.
Já a charge, publicada no dia 17/07/2006, é um desenho humorístico, de caráter histórico-político,
cujo entendimento depende de um texto que o explique, como o editorial do dia 13/07/2006 (Texto
A), e outras reportagens já publicadas no citado jornal. Para o leitor entender uma charge, ele deve
ter conhecimento dos fatos, porque esse tipo de texto necessita de um trabalho de assimilação e de
transformação. A leitura de notícias, editoriais provoca a interação texto-autor-leitor para que este
último perceba semelhanças (assimilação) e veja a transformação da linguagem verbal (editorial,
neste caso) em linguagem visual ou verbo-visual (charges analisadas).
A charge assim como a história em quadrinhos é inspirada na linguagem cinematográfica, que tem
uma gramática de enquadramento e uma sintaxe específica de construção. Esse artifício estilístico é
utilizado sem haver necessidade de uma narrativa própria.
Na primeira charge, o autor, Angeli, “dispara a sua carga” crítica, a sua realização catártica, apoiada
no editorial citado: vários cidadãos, sentados à beira de um balcão de um bar, assistem à televisão,
em cujo fundo de tela verde, aparecem os dizeres escritos em amarelo, “cadeia nacional”. No pé da
dessa charge está escrito o que é transmitido oralmente: “Interrompemos a programação, para a
transmissão do horário eleitoral obrigatório reservado ao PCC”.
O leitor perspicaz percebe dois trocadilhos: em primeiro lugar, o que aparece na expressão “cadeia
nacional”, na tela da televisão do bar com as cores verde e amarela (cores nacionais, no Brasil) –
abertura do programa eleitoral gratuito em todos os canais de TV aberta, em âmbito nacional: ao
mesmo tempo, as pessoas ficam presas em suas casas, devido ao medo dos ataques terroristas. Em
segundo lugar, quanto ao horário eleitoral: ele é gratuito (?) no Brasil e “obrigatório”, pois esse
programa é transmitido em todos os canais abertos de televisão, no mesmo horário, o que não deixa
de ser outro modo de o cidadão se sentir preso em sua própria casa.
Na segunda charge, um novo tratamento (irônico) foi dado à realidade, vista e formalizada com
base na atualidade viva: na rua, há um ônibus pegando fogo e um cidadão, de um telefone público,
comunica: “Querida, perdi o ônibus das oito. Vou me atrasar”, justificando seu atraso, como se
fosse um fato normal. Nesse caso, a charge se coloca, principalmente, como um meio entre o visual
e o verbal e essa relação deve ser percebida pelo leitor. Há um ponto estático de tempo, apresentado
pela descrição de uma imagem retirada de reportagens já publicadas (ônibus pegando fogo), que nos
aponta a importância da brevidade das charges: “dizer tudo o que se tem a dizer nada dizendo”.
Esse tipo de texto, por ser de interpretabilidade restrita, solicita, principalmente, o conhecimento
anterior do leitor para entender o seu conteúdo. Temos até a possibilidade de imaginar o tom de voz
do personagem, o seu comportamento, de forma diferente do texto informativo em geral, que não
conta com o visual e necessita descrever verbalmente a expressão, tom de voz dos personagens etc.
Nas charges analisadas, os gêneros do cômico-sério se basearam conscientemente na experiência e
na fantasia livre; na pluralidade de estilos e de vozes, houve a fusão do sério com o cômico. Esse
tipo de texto “nostálgico” relaciona o passado (o editorial do dia 13/07/2006) ao presente (charges
publicadas nos dias 17 e 18/07/2006). Assim, a charge tem uma função significativa que faz com
que o leitor perceba que há uma outra linguagem além da palavra.
Reiteramos que a inserção ou não de legendas, informações, balões e/ou títulos nas charges depende
do autor. Para tornar-se acessível ao leitor, a charge necessita ser contextualizada pelo seu próprio
veículo divulgador ou pela legenda ou balões, que, muitas vezes, vai além do texto visual, podendo
estar nas manchetes, nas matérias ou podendo, ainda trazer uma informação nova ou funcionar
como editorial propriamente.
A ironia na segunda charge faz com que esse tipo de texto, por meio da intertextualidade, assuma a
mesma perspectiva ideológica do texto lingüístico, por intermédio do título do texto A: “Novos
ataques”, do período escrito no pé da primeira charge: “Interrompemos a programação, para a
transmissão do horário eleitoral obrigatório reservado ao PCC”, e no balão da segunda charge:
“Querida, perdi o ônibus das oito, vou me atrasar!”. Desse modo, há ativação de dois mundos
textuais: o texto novo, que é a charge, com o mundo já conhecido do leitor, que é o texto A.
Percebemos, portanto, que as charges apresentam explicitamente tanto as críticas apresentadas no
texto A, como as críticas implícitas nas charges (horário político obrigatório em cadeia nacional,
pois tanto o paulista como o paulistano ficou “preso” em sua casa devido ao medo de sair à rua, ou
“justificou seu atraso, como coisa normal”, pois esses ataques já se tornaram “rotineiros”) e também
todas as outras críticas que o receptor quiser atribuir.
O texto chárgico, por meio da sátira, da ironia e do riso, exerce uma influência ativa na formação da
opinião pública. É uma representação pictórica humorística, de caráter político, que satiriza um fato
específico; é uma estilização do texto A (e de outros que a FOLHA DE S. PAULO publicou sobre o
assunto). Há um deslocamento causado pela mudança de código – verbal icônico – mas não há uma
traição do significado. Há união entre signos gráficos, conteúdos ideológicos e consciência cultural;
enfim, é o pano de fundo político que lhe dá função e caráter.
A representação parodística do horário político na televisão e o telefonema do cidadão não fizeram
com que as charges assumissem uma perspectiva divergente do texto-fonte (Texto A), pois neste
aparecem contextos relacionados às charges: “Todos pensam apenas nos votos que poderão perder
ou ganhar”, “ignoram a necessidade imediata dos paulistas"; “Ninguém deve esperar milagres”.
Considerações finais
A análise desses três textos, sob os pontos de vista, estético, crítico e sociológico, nos permitiu
exemplificar as relações lingüísticas intertextuais de natureza convergente entre as charges e o
editorial citado, que serviram para veicular o sistema de valores de seus autores.
O binômio indissociável “leitura crítica e construção de textos opinativos” poderá ser favorecido
com o desenvolvimento de atividades que contemplem a leitura e a interpretação de charges, em sua
forma-conteúdo, isto é, quando associam humor, estética e crítica.
Enfatizamos a força da comunicação proveniente das várias modalidades da linguagem dos
quadrinhos, aqui neste trabalho, as charges, pois, por meio delas, a imagem se marca por seu
grafismo específico, seja realista ou seja caricatural, e podemos denunciar ou revelar com muito
mais eficiência e humor, pela aceitabilidade do leitor, aquilo que o texto jornalístico ou científico,
muitas vezes não alcança.
Após essas considerações, verificamos que o leitor precisa e deve acompanhar o momento social e
político de seu país para entender a charge. E isso também acontece, mais do que ninguém, com o
próprio chargista, pois, com seu poder de síntese e imediatismo, ele mostra acontecimentos e
situações. Usando um humor sem pudor, o autor transpõe para o papel, por meio de traços, os seus
valores, trazendo à tona a sua opinião formada sobre o assunto em pauta e proporciona ao leitor,
espaço para a reflexão, para o questionamento e para a crítica.
Glossário
- PCC – Primeiro Comando da Capital (PCC) - organização de criminosos existente no Brasil,
criada para supostamente defender os direitos de cidadãos encarcerados no país. Surgiu no início da
década de 1990, no Centro de Reabilitação Penitenciária de Taubaté, local que acolhia prisioneiros
transferidos por serem considerados de alta periculosidade pelas autoridades.
O PCC conta com vários integrantes, que financiam ações ilegais em São Paulo e em outros Estados
do Brasil. A organização também é identificada pelos números 15.3.3; a letra "P" é a 15ª letra do
alfabeto português e a letra "C" é a terceira.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Primeiro_Comando_da_Capital. Acesso em 02 ago. 2006.
- PSDB – sigla do Partido da Social Democracia Brasileira, fundado em 25 de junho de 1988.
- “tucanos” - os filiados do PSDB são conhecidos como "tucanos", pois o partido adotou essa ave
brasileira como símbolo. Atribuímos à figura do tucano as seguintes significações:
a) O tucano é um dos símbolos do movimento ecológico e da defesa do meio ambiente, em voga
nas décadas de 80 e 90, o que renderia ao partido uma boa imagem (de modernidade e ligação com
temas importantes contemporâneos) frente à opinião pública.
b) Trata-se de uma ave "brasileira", característica importante para indicar a suposta preocupação do
partido com a realidade nacional, ou seja, a de que o partido não entende a social-democracia como
uma "fórmula" pronta para ser aplicada no Brasil, um país com realidades distintas dos países da
Europa, o berço da ideologia social-democrata. Nesse sentido, o tucano procuraria representar o
entendimento de que é preciso formar um programa social-democrático que se encaixe e atenda às
realidades do Brasil.
www.psdb.org.br/opartido/porquetucano.asp Acesso em 02 ago. 2006.
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ANEXOS
TEXTO A - NOVOS ATAQUES
Políticos, na crise da segurança paulista, travam uma batalha retórica que confunde e ofende
a opinião pública (FONTE: FOLHA DE S. PAULO, 13 jul. 2006, cad. A, p. 2)
O período eleitoral tem prejudicado a tarefa de identificar causas e estabelecer linhas de ação
apropriadas para enfrentar a crise na segurança pública do Estado de São Paulo. Políticos
envolvidos no episódio têm se lançado a um esgrimismo retórico que os afasta cada vez mais da
realidade; que confunde, frustra e ofende a opinião pública.
Na terça-feira, durante o dia, o governador Cláudio Lembo disse que a facção criminosa PCC “não
domina mais” os presídios paulistas. A seguir, uma nova onda generalizada de ataques, iniciada na
noite daquele dia, veio mostrar que a realidade não se harmoniza com suas palavras.
Mais triste foi notar a permanência da atitude truculenta e avessa à prestação de contas que tem
marcado a atuação do secretário da Segurança Pública, Saulo Abreu. Agora chegou ao desplante de
insinuar, sem qualquer evidência, que este jornal, ao publicar uma lista de presos a serem
transferidos para um presídio federal, tinha tido responsabilidade na nova crise – embora esta tenha
começado antes de a notícia ter sido publicada.
De sua parte, diante da nova rodada de agentes de segurança covardemente assassinados, ônibus
queimados, supermercados alvejados, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reincidiu na
demagogia e se esforçou em vender a falsa impressão de que seu governo tem uma saída
emergencial para a crise – o envio da insondável Força Nacional de Segurança e/ou Exército-, mas
esbarra na recusa das autoridades paulistas. Sejamos claros: nem o Exército nem a força federal
estão em condições de fazer diferença na luta contra a ofensiva dos bandidos em São Paulo.
Não tem se saído melhor que Lula o seu adversário tucano. Como escreveu Elio Gaspari, ontem
nesta Folha, Geraldo Alckmin se esmera em tergiversar quando confrontado com as conseqüências
de um problema que cresceu sob sua gestão – deixou há menos de quatro meses o governo de São
Paulo, após cinco anos de exercício do cargo.
Todos pensam apenas no voto que poderão perder ou ganhar dando esta ou aquela declaração,
evitando este ou aquele tema. Incapazes de ler o presente, ignoram a necessidade imediata dos
paulistas: confiar em que as principais autoridades públicas restabelecerão a ordem e não permitirão
que os autores da selvageria fiquem impunes.
Ninguém deve esperar milagres. Ataques genéricos como os perpetrados pelo PCC são difíceis de
evitar em qualquer parte do mundo – o problema foi o PCC ter chegado à dimensão atual. Ondas de
atentados, por outro lado, oferecem oportunidades à polícia: a quadrilha se expõe e seus integrantes
podem ser identificados e presos.
É nesse ponto que a ação emergencial se encadeia com outra, mais longa, cujo objetivo é impor
uma derrota definitiva à organização delinqüente. Nesse ponto se deve adensar, e muito, a
articulação de instituições nas esferas estadual e federal, no Executivo, no Legislativo, no Judiciário
e no Ministério Público. Basta de demagogia eleitoreira.
ANEXO B
Folha de S. Paulo, 17 jul. 2006, cad. A, p.2.
ANEXO C
Folha de S. Paulo, 18 jul. 2006, cad. A, p.2.