1
ECOLOGIA DE SABERES:
Um estudo do dilogo entre o conhecimento escolar e o
saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Aa.
EDIELSO MANOEL MENDES DE ALMEIDA
SO PAULO
2016
2
Almeida, Edielso Manoel Mendes de.
Um estudo do dilogo entre o conhecimento escolar e o saber
popular dos ribeirinhos da Ilha do Aa./ Edielso Manoel Mendes de
Almeida. 2016.
227 f.
Tese (doutorado) Universidade Nove de Julho - UNINOVE, So
Paulo, 2016.
Orientador (a): Prof. Dr. Ana Maria Haddad Baptista.
1. Ecologia de saberes. 2. Diversidade epistemolgica. 3. Saber popular. 4. Amaznia.
I. Baptista, Ana Maria Haddad. II. Titulo CDU 37
3
ECOLOGIA DE SABERES:
Um estudo do dilogo entre o conhecimento escolar e o
saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Aa.
___________________________________________________________________
Orientadora: Prof. Dra. Ana Maria Haddad Baptista (UNINOVE)
________________________________________________________________
Examinador I: Prof. Dra. Diana Navas (PUC/SP)
________________________________________________________________
Examinador II: Prof. Dra. Mnica Rebecca Ferrari Nunes (ESPM)
________________________________________________________________
Examinador III: Prof. Dr. Maurcio Silva(UNINOVE)
________________________________________________________________
Examinador IV: Prof. Dr. Manuel Tavares Gomes (UNINOVE)
________________________________________________________________
Suplente: Prof. Dra. Carminda Mendes Andr (UNESP)
________________________________________________________________
Suplente: Prof. Dr. Jos Eduardo de Oliveira Santos (UNINOVE)
Aprovadoem ______/______/______
Tese apresentada Universidade Nove de Julho,
junto ao Programa de Mestrado e Doutorado em
Educao, para obteno do ttulo de Doutor em
Educao pela banca examinadora formada por,
4
AGRADECIMENTOS
A todos os meus professores do Programa de Ps-graduao em Educao
da Universidade Nove de Julho (UNINOVE) que socializaram seus conhecimentos e
experincias.
A professora Ana Maria Haddad Baptista, por acreditar em mim, aceitando-
me como orientando, e pelo apoio moral nos momentos difceis que vivenciei em So
Paulo.
A diretora da Escola Plo e aos professores e professoras da Ilha do Aa pela
recepo, companheirismo e acolhimento no perodo da pesquisa de campo.
A todos os ribeirinhos e ribeirinhas que vivem/convivem na Ilha do Aa.
Aos membros da banca de qualificao professores Diana Navas e Manuel
Tavares Gomes, pela leitura criteriosa do trabalho o que contribuiu significativamente
no processo de construo e concluso da tese.
Aos professoresMauricio Silva e Mnica Rebecca Ferrari Nunes que se
disponibilizaram em compor a banca de defesacom os demais professores.
A minha famlia, em especial a querida mezinha,Maria Jos Mendes de
Almeida que sempre acreditou na capacidade de seus filhos eIn memoriam ao meu
pai,Mercdio Gomes de Almeida pelos ensinamentos que me proporcionou durante
sua existncia neste mundo.
A Edmar Souza das Neves, grande amigo, companheiro de viagem e de
caminhada neste doutorado que sempre me incentivou a voar mais alto.
E a todos que contriburam com a realizao deste trabalho, mas que no
foram citadossintam-se contemplados, pois esta conquista um pouco de cada um
de ns.
5
RESUMO
Estapesquisa apresenta como temtica a Ecologia de Saberes: um estudo do
dilogo entre o conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Aa,
na qual investigamos como ocorre o dilogo, na prtica pedaggica dos professores
que atuam em classes multisseriadas, entre o conhecimento escolar e o saber popular
das comunidades ribeirinhas da referida ilha. Numa perspectiva mais ampla, a
pesquisa objetiva analisar o modo como o saber escolar dialoga com os outros
saberes de carter popular decorrentes da diversidade cultural e, por isso,
epistemolgica.De forma mais especfica, a pesquisa objetivarealizar um estudo, a
partir das memrias dos moradores da ilha do Aa, em relao aos saberes presentes
no discurso e nas prticas cotidianas dos ribeirinhos; bem como, identificar, na prtica
pedaggica do professor, a presena do saber popular dos ribeirinhos e as formas
como dialogam com o saber escolar e; averiguar como as populaes ribeirinhas
foram se constituindona Amaznia brasileira e a relao entre o saber popular,
produzido por essa populao, com os aspectos culturais, sociais e econmicos do
municpio de Afu. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa do tipo estudo
etnogrfico, realizado em cinco comunidades ribeirinhas que compem a ilha do Aa
no municpio de Afu, no Estado do Par; tendo como base para fundamentao
terica: a Ecologia de Saberes proposta por Boaventura de Souza Santos e o dilogo
na concepo de Paulo Freire. Os resultados indicam que o saber popular dos
ribeirinhos est relacionado com o contexto social, econmico, cultural e religioso no
qual esto imersos;esses povos estabelecem, entre si e com os outros, relaes de
trocas materiais e simblicas. No tocante ao dilogo na prtica pedaggica dos
professores, esteocorre de forma vertical (colonizadora) e horizontal
(descolonizadora), com a predominncia das prticas colonizadoras nas quais o
dilogo ocorre verticalmente, por meio da imposio do saber escolar e o no
reconhecimento do saber popular.
Palavras-chave: Ecologia de Saberes. Diversidade Epistemolgica. Saber Popular.
Amaznia.
6
ABSTRACT
This research brings as a theme Ecologys Knowledge: a study about the dialog
between school and popular knowledge by people that live in Aai Island (called in
Portuguese Ribeirinhos), it was done a survey to investigate how is the teachers
pedagogic practice, considering teachers that work with different levels in the same
class and how is the dialog between school and popular knowledge in Ribeirinhos
community in Aai Island. In a holistic view the research aims to analyze how the
school knowledge dialog with others popular knowledge considering cultural diversity
and epistemological. In specific way this study tries to understand the Aai residents
memories about knowledge presents in daily Ribeirinhos discuss and practice. As
well as aims to identify the popular presence and the way that occur the knowledge
dialog in teachers pedagogic practice and to inquire how Ribeirinhos people were
compounded in Brazilian Amazon and the relation between popular knowledge that
these people produced with cultural, social and economic aspects in Afu district. It is
a qualitative search with ethnographic study produced in five (05) Ribeirinhas
Community that are in Aai Island in Afu district in Par state. As theory base this
search used the Ecologys knowledge suggestion by Boaventura de Souza Santos and
the dialog Paulo Freires concept . The results present that popular knowledge is linked
with social, economical, cultural and religion contexts where they are. These people
establish themselves a kind of material and symbolic transposition relation. About
dialogs teachers pedagogic practice there is a vertical (colonizer) and horizontal
(decolonized) way where Colonizer practices are predominate and the dialogs occur
vertically by school knowledge imposition and the popular knowledge its not
recognized.
Key words: Knowledge Ecology. Epistemological diversity.Popular Knowledge.
Amazon.
7
RESUMEN
Esta investigacin presenta el tema de la ecologa del conocimiento: un estudio
del dilogo entre el conocimiento escolar y el saber popular de los ribereos de la isla
del Aa, en la cual investigamos cmo el dilogo, en la prctica pedaggica de los
docentes que trabajan en multisseriadas clases, entre el conocimiento y el saber de
las comunidades ribereas de esta isla. En una perspectiva ms amplia, la
investigacin pretende examinar cmo el saber de la escuela dialoga con otros
conocimientos derivados de la diversidad cultural y epistemolgica, por lo tanto, de
carcter popular. Ms especficamente, la investigacin tiene como objetivo realizar
un estudio de los recuerdos de los habitantes de la isla de Aa, en relacin a los
conocimiento presente en el discurso y en las prcticas diarias de los ribereos; bien
como, identificar en la prctica pedaggica del maestro, la presencia de los
conocimientos populares de ribereos y como es el dilogo con la escuela y su
conocimiento; descubrir cmo las poblaciones reasentadas si constituyeron en
Amazonia brasilea y la relacin entre el conocimiento de las personas, producidas
por esta poblacin, con los aspectos culturales, sociales y econmicos del municipio
de Afu. Es una investigacin cualitativa de tipo etnogrfico estudio, en cinco
comunidades ribereas que conforman la isla de Aa en el municipio de Afu, en el
estado de Par; la base para la fundamentacin terica: la Ecologa del Conocimiento
propuesta por Boaventura de Souza Santos y el dilogo desde la concepcin en Paulo
Freire. Los resultados indican que el saber de la poblacin riberea, est relacionado
con el contexto social, econmico, cultural y religioso en el que est inmerso; Estas
pueblos establecen entre s y con otros, intercambio de materiales y simblicas. En
relacin con el dilogo sobre la prctica pedaggica de docentes, se produce
verticalmente (colonizacin) y horizontal (descolonizadora), con el predominio de
prcticas coloniales en el que el dilogo se produce verticalmente, a travs de la
imposicin de conocimiento y el no reconocimiento del saber popular.
Palabras clave: Ecologa del conocimiento. Diversidad epistemolgica. Saber Popular.
Amazonia.
LISTA DE FOTOGRAFIAS
8
Fotografia 1 -Mina de ferro Carajs, no Estado do Par
Fotografia 2 - Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina
Fotografia 3 - Vista area da construo da barragem de Belo Monte, em Altamira,
Par
Fotografia 4 - Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari, no municpio de
Ferreira Gomes, estado do Amap
Fotografia 5 - Passarela de madeira no bairro Capimarinho
Fotografia 6 Trabalhador autnomo (carreteiro) transportando mercadoria
Fotografia 7 - Igreja de Nossa Senhora da Conceio
Fotografia 8 Ribeirinho jogando a tarrafa no rio
Fotografia 9 rea desmatada para o plantio de milho
Fotografia 10 Casas construdas em rea de invaso no bairro Capimarinho
Fotografia 11 Centro de Educao Infantil Theopompo Nery
Fotografia 12 Classe multisseriada
Fotografia 13 Laboratrio de Informtica da EMEF Frei Faustino Lagarda
Fotografia 14 -Escola ribeirinha que funciona como anexo
Fotografia 15 - Sala de aula de uma escola ribeirinha que funciona como anexo
Fotografia 16 - Escola Polo
Fotografia 17 - Prdio da Escola B
Fotografia 18 - Prdio da Escola E
Fotografia 19 Cascos feitos de madeira Cedro
Fotografia 20 Ribeirinho levando o filho para a escola no casco
Fotografia 21 Ribeirinha pescando com o canio
Fotografia 22 Ribeirinho com o filho colocando a malhadeira no rio
Fotografia 23 - Ribeirinho tecendo a malhadeira
Fotografia 24 Matapi
Fotografia 25 - Benzedor benzendo uma criana com susto
Fotografia 26 Ribeirinha cuidando da horta
Fotografia 27 Marupazinho
Fotografia 28 P de Mastruz
Fotografia 29 P de Capim Marinho
Fotografia 30 P de Noni
Fotografia 31 Sementes de Cacau
9
Fotografia 32 Erva Cidreira
Fotografia 33 Catinga de Mulata
Fotografia 34 Palmeira de Buriti
Fotografia 35 - Ps de Aa
Fotografia 36 Menino subindo no Aaizeiro
Fotografia 38 Instrumentos utilizados para a colheita de aa
Fotografia 39 Menina debulhando o cacho de aa
Fotografia 40 Amassadeira eltrica.
Fotografia 41 Amassadeira manual
Fotografia 42 Ribeirinha amassando o aa com as mos
Fotografia 43 Lista de contedos da disciplina Cincias
Fotografia 44 Fragmentos do contedo sobre ecossistema no caderno de aluno
Fotografia 45 Fragmentos do contedo sobre os animais no caderno de aluno
Fotografia 46 Contedo referente ao tem moradia abordado no livro didtico da
disciplina Artes para o 1, 2 e 3 ano do ensino fundamental
Fotografia 47 Sala de aula multisseriada
LISTA DE TABELAS
10
Tabela 01 - Membros do grupo Modernidade/Colonialidade
Tabela 02 Comparao da produo de aa no intervalo de quatro anos
Tabela 03 Quantidade de Alunos matriculados no CEI
Tabela 04 Percentual de atendimento das crianas de 0 a 3 anos
Tabela 05 - Percentual de atendimento das crianas de 4 a 5 anos em Afu
Tabela 06 Estabelecimentos de ensino fundamental por dependncia administrativa
Tabela 07 - Distoro idade/srie no ensino fundamental
Tabela 08 - Taxa de rendimento escolar no ensino fundamental em 2015 rea
urbana
Tabela 09 Escolas que compem o Regional Madeira com o nmero de alunos no
ano de 2016
Tabela 10 Distribuio das turmas da Educao Infantil e anos iniciais do ensino
fundamental por professor
Tabela 11 Os professores sujeitos da pesquisa
Tabela 12 Os moradores sujeitos da pesquisa
Tabela 13 Categorias apriorsticas
Tabela 14 Categorias apriorsticas
Tabela 15 Categorias no apriorsticas
LISTA DE MAPAS
11
Mapa 01: Localizao Geogrfica do municpio de Afu.
Mapa 02: Mapa da ilha de Maraj indicando a proximidade de Afu com o Macap.
LISTA DE SIGLAS
12
CAETA - Comisso Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a
Amaznia
CEI- Centro de Educao Infantil Theopompo Nery
EJA - Educao de Jovens e Adultos
ECA - Estatuto da Criana e do Adolescente
ICOMI Sociedade Brasileira de Industria e Comercio de Minrios de Ferro e
Mangans
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IDH ndice de Desenvolvimento Humano
INEP Instituto Nacional de Edies Pedaggicas
IDEB ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica
LDBEN Lei de Diretrizes e Base da Educao Nacional
MEC - Ministrio da Educao
NEC - Ncleo de Educao do Campo
PME - Plano Municipal de Educao
PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclio
PNDU -Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento
PNLD- Programa Nacional do Livro Didtico
SEMED - Secretrias Municipais de Educao
SEED - Secretaria de Estado da Educao do Amap
SEMTA - Servio Especial de Mobilizao de Trabalhadores para a Amaznia
UEPA - Universidade do Estado do Par
UNIFAP - Universidade Federal do Amap
SUMRIO
13
APRESENTAO 15
INTRODUO 19
1ESTUDOS TERICOS DA PESQUISA 24
1.1A ECOLOGIA DE SABERES 24
1.1.1O Paradigma hegemnico 24
1.1.2 A crise do paradigma hegemnico 26
1.1.3 O Conhecimento Prudente para uma Vida Decente 28
1.1.4 A crtica da razo indolente 30
1.1.5 Ecologia de Saberes: o reconhecimento dos saberes nascido das lutas
dosoprimidos
38
1.2 A DESCOLONIZAO EPISTEMOLGICA 42
1.2.1Os Estudos Ps-Coloniais 42
1.2.2A colonialidade do poder 47
1.2.3 Gnose ou pensamento liminar 53
1.3O DILOGO: ponto de partida para prticas transformadoras 59
2 A EDUCAO DAS POPULAES RIBEIRINHAS NA AMAZNIA 64
2.1 UM MERGULHO NA AMAZNIA BRASILEIRA 64
2.2 POVOS DA AMAZNIA: os ribeirinhos 80
2.3 AFU: a Veneza Marajoara 85
2.3.1 Aspectos Histricos, Geogrficos e Econmicos 86
2.4 A EDUCAO RIBEIRINHA NO MUNICPIO DE AFU 99
2.4.1 Educao Infantil 99
2.4.2 Ensino Fundamental e Mdio 106
3 PERCURSO METODOLGICO 115
3.1 TIPO E LOCAL DA PESQUISA 115
3.2 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS PARA A COLETA DE DADOS 120
3.3 CARACTERIZAO DOS SUJEITOS DA PESQUISA 124
3.4 TCNICA DE ANLISE DOS DADOS 125
3.4.1 A emergncia das categorias de anlise da Pesquisa 127
4ANLISE E INTERPRETAO DOS DADOS 130
4.1 O SABER POPULAR DOS RIBEIRINHOS DA ILHA DO AA 130
4.1.1 Saberes das guas 134
4.1.2 Saberes da Terra e da Mata 147
14
4.1.3 Saberes do Aa 156
4.2 O DILOGO ENTRE O CONHECIMENTO ESCOLAR E O SABER POPULAR 164
4.2.1 O Conhecimento Escolar 164
4.2.1.1 O conhecimento escolar na tica dos professores 166
4.2.2O Livro Didtico 173
4.2.3O Planejamento das Aulas 180
4.2.3.1 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma
perspectiva colonizadora
181
4.2.3.2 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma
perspectiva descolonizadora
183
4.2.4 Metodologias de Ensino e Aprendizagem 186
4.2.4.1 Professores que desenvolveram prticas colonizadoras 187
4.2.4.2 Professores que desenvolveram prticas descolonizadoras 193
5CONCLUSO 206
REFERENCIAS 214
APNDICES
APNDICE A Roteiro de entrevista para a comunidade 223
APNDICE B Roteiro de entrevista para os professores 224
APNDICE C Roteiro de observao das aulas 226
APNDICE D Roteiro de observao das atividades na comunidade 227
APRESENTAO
15
Investigar a Amaznia um desafio, devido ao vasto territrio que a compe e
a diversidade tnica e cultural que a caracteriza. A vastido geogrfica e os aspectos
multiculturais das populaes que habitam a regio fazem com que a Amaznia no
seja concebida como unvoca, mas sim como espao pluralizado e multicultural.
Nesses espaos, a populao, que diversificada, constri e reconstri
cotidianamente as Amaznias. Nesta tese, investigamos a Amaznia ribeirinha, na
qual o rio e a mata tm um papel preponderante nos aspectos econmicos, sociais,
culturais e religiosos dos povos que habitam esta regio.
Como oriundo da Amaznia Ribeirinha, vivenciei desde a infncia a convivncia
com o rio por meio da pesca do peixe e camaro, dos banhos e brincadeiras nas
guas; com a mata, atravs da caa de animais silvestres e feitura de roa para plantar
milho, melancia, mandioca, macaxeira e maxixe para o consumo, bem como trocar e
vender. Tambm aprendi a confeccionar os utenslios necessrios produo
econmica, dentre os quais o paneiro para colocar camaro e o aa, o casco para
navegar nos rios, o matapi para pegar o camaro, a malhadeira e o canio para
pescar, dentre outros necessrios para a sobrevivncia neste contexto.
Minha famlia era ribeirinha, oriunda da Ilha dos Cars no municpio de Afu,
que pertence ao estado do Par. Como na ilha no havia escola, os pais que
quisessem que seus filhos estudassem tinham que mudar para cidade, foi o que os
meus fizeram, pois acreditavam que com acesso educao escolar, seus filhos
poderiam ter uma vida melhor da que eles levavam. Aos sete anos j estava morando
em Macap, capital do estado do Amap e matriculado na 1 srie do ensino
fundamental.
Inicialmente,a convivncia com a escola no foi muito boa;fui muitas vezes
repreendido pelas minhas professoras devido forma como falava, a minha
linguagem era oriunda do meio social no qual vivia, ou seja, dos ribeirinhos,
considerada pela escola como feia, incorreta. Assim, dificilmente abria a boca nas
aulas, geralmente apenas respondia presente na hora da chamada quando meu
nome era citado. Isso me fez ter vergonha da minha prpria linguagem e para
sobreviver neste meio foi preciso reaprender a falar de acordo com a lngua dominante
considerada correta, culta e hegemnica.
Conclui o ensino fundamental e, em 1985,fui aprovado no teste de seleo para
o curso de formao de professores a nvel mdio no Instituto de Educao do
Territrio do Amap (IETA), instituio pblica que formava professores para atuar na
16
educao infantil e anos iniciais do ensino fundamental. Durante o referido curso, fui,
aos poucos, motivado pela professora da disciplina Didtica e principalmente pelos
meus colegas de turma, perdendo a timidez e ficando mais a vontade para falar, pois
nas aulas a professora fazia perguntas, queria saber nossa opinio sobre os temas
das aulas, abria espao para o debate, garantia a todos o direito palavra.
No ano de 1988, iniciei a carreira docente em uma escola ribeirinha no
Municpio de Macap. Tinha acabado de concluir o curso de formao de professores,
para aprender a ensinar1,e fui encaminhado, juntamente com meus colegas recm-
formados, para o interior2. O meio de transporte que utilizaram para nos distribuir nas
comunidades foi o caminho, e, onde o carro no podia entrar, trocvamos o
caminho por barcos, voadeiras ou catraios3 para chegar ao futuro local de trabalho.
Era professor recm-formado, sem experincia de sala de aula, tendo a
responsabilidade de ministrar aulas de 1 a 4 sries em classes multisseriadas4,
sozinho, sem ter nenhum colega de trabalho para dividir as dvidas, as angstias e
as dificuldades. Assim, a docncia foi aprendida na prtica, pois, no curso de
formao, no estudamos o processo de ensino e de aprendizagem com classes
multisseriadas. Alis, nunca discutimos a educao ribeirinha, apesar de vivermos na
Amaznia, uma regio repleta de rios e florestas. Trabalhei na escola para a qual fui
designado durante seis anos e vim para a cidade aps a aprovao no vestibular para
o curso de Pedagogia na Universidade Federal do Amap (UNIFAP).
Concluda a graduao, passei a trabalhar como docente em uma instituio
de formao de professores para educao infantil e sries iniciais do ensino
fundamental. Nesta escola, formamos um grupo de estudos para discutir e refletir
sobre a educao do campo na Amaznia e especificamente no Amap. A literatura
era escassa e tnhamos acesso a poucas obras sobre o assunto. Essa escassez
reflete os poucos estudos e investigaes referentes a essa temtica. Em relao a
isso, explica Arroyo (2004, p. 8) que somente 2% das pesquisas dizem respeito a
questes do campo, no chegando a 1% as que tratam especificamente da educao
1 Expresso usada pelo gestor do setor de Educao do campo da Secretaria de Educao, na primeira e nica reunio na qual fomos informados de que iramos trabalhar na zona rural. 2 Expresso comumente utilizada para se referir s escolas localizadas fora da rea urbana do muncipio. 3 Pequenos barcos movidos a motor que fazem o transporte de pessoas e pequenas cargas nos rios da Amaznia. 4 Escolas nas quais somente um professor (a) atua, ao mesmo tempo e no mesmo espao, com todas as turmas das sries iniciais do ensino fundamental. Em algumas comunidades, o professor ou a professora assume tambm a educao infantil.
17
escolar no meio rural. Isso nos fez criar um projeto no qual convidvamos professores
das escolas ribeirinhas, dos assentamentos, das comunidades quilombolas, das
regies de garimpos, dentre outras, para dialogarem com os professores e os alunos
do magistrio (como chamvamos o curso de formao de professores). Em seguida,
decidimos ir at essas escolas. Foi um projeto ousado. Enfrentamos muitos
obstculos que, geralmente, os educadores que atuam nessas instituies enfrentam
constantemente; eles abrangem desde o apoio logstico at a burocracia das
Secretrias Municipais de Educao (SEMED).
Posteriormente, em 2002, assumi a disciplina Estrutura e Funcionamento da
Educao Bsica no curso de Pedagogia no polo5 de Afu, como professor substituto
na UNIFAP. Este foi o primeiro contato que tive com o municpio conhecido como a
Veneza Marajoara, famoso por seu Festival do Camaro, que atrai milhares de
pessoas de todos os cantos do pas e do exterior no ms de julho.
O polo universitrio ao qual fui designado funcionava apenas nos meses de
janeiro e julho, em uma escola pblica de ensino fundamental e mdio. Os alunos da
turma de Pedagogia eram todos professores nas escolas ribeirinhas6 pertencentes ao
sistema de ensino de Afu. As nossas aulas partiam das discusses das garantias
constitucionais sobre a educao, da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional
e das recm-aprovadas Diretrizes Operacionais para a Educao Bsica nas Escolas
do Campo, uma vez que, para eles, estas leis ainda no tinham nascido naquele
lugar, visto que a realidade educacional vivenciada nas escolas ribeirinhas estava
longe do que estabelecem as leis.
No ano de 2009, conclui o mestrado em Educao pela Universidade do Estado
do Par (UEPA), no qual investiguei a prtica pedaggica do professor em escolas
ribeirinhas na Amaznia Paraense. Em seguida, comecei a trabalhar na Secretaria de
Estado da Educao do Amap (SEED), especificamente no Ncleo de Educao do
Campo (NEC), setor responsvel pelo planejamento, execuo e avaliao dos cursos
de formao continuada dos professores das escolas do campo da rede estadual de
ensino. Trabalhei neste setor at a minha aprovao para cursar o doutorado.
5 Os polos universitrios funcionavam nos municpios que firmavam convnio com a UNIFAP para a formao, em nvel superior, dos professores do seu sistema de ensino. 6 Utilizaremos a expresso escolas ribeirinhas, pois todas as escolas situadas no meio rural de Afu so ribeirinhas. Acreditamos que assim destacaremos as singularidades da realidade vivenciada pelos atores sociais que vivem e sobrevivem do rio e da mata.
18
Portanto, a incurso na temtica da educao ribeirinha na Amaznia, faz parte
da minha histria de vida pessoal e profissional. Neste estudo, investigamos uma
faceta desta regio denominada de Amaznia Afuaense que aprofundamos no
decorrer desta tese.
INTRODUO
Esta tese intitulada,Ecologia de Saberes: um estudo do dilogo entre o
conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Aa, analisa, no
mbito da educao bsica, especificamente na educao infantil e anos iniciais do
ensino fundamental, o dilogo entre diferentes tipos de conhecimentos. Tm como
19
objeto de estudo, investigar como dialogam o saber popular dos ribeirinhos da ilha do
Aa e o saber escolar (saber hegemnico) na prtica pedaggica dos professores
que atuam em classes multisseriadas nas escolas da referida ilha.
Utilizamos como referencial tericopara fundamentar a pesquisa a concepo
de ecologia de saberes proposta por Boaventura de Souza Santos e o dilogo na
visode Paulo Freire. Na ecologia de saberes, o mundo um arco-ris policromtico
(SANTOS, 2008), sendo assim, h uma diversidade de culturas com diferentes formas
de produzir saberes que orientam suas atividades produtivas, sociais, culturais e
religiosas. O reconhecimento da diversidade epistemolgica existente no mundo,
essencial para que se efetivem prticas nas quais os saberes possam dialogar numa
relao de igualdade, sem a imposio do conhecimento cientfico como hegemnico.
O termo ecologia, de acordo com Santos (2008, p. 157), assenta no reconhecimento
da pluralidade de saberes heterogneos, da autonomia de cada um deles e da
articulao sistemtica, dinmica e horizontal entre eles.
Para Freire (2014), o dilogo se constitui no encontro entre educador e
educandos que refletem e agem sobre o mundo a ser transformado e humanizado.
Portanto, o dilogo comunicao, pois conhecemos a realidade na interao com
nossos semelhantes, o que o torna tambm social, apesar da dimenso individual,
haja vista que por meio dele que podemos atuar criticamente para transformar a
realidade na qual vivemos.
O dilogo, segundo Freire (2014), para ser um elemento de humanizao e
transformao, precisa ser repleto de amor, humildade, f e confiana nos homens,
bem como esperana aliada luta pela mudana. No dilogo, todos tm que ter
garantido o direito palavra que, para o autor, considerada prxis (ao-reflexo-
ao).
Assim, investigamos o dilogo entre o conhecimento escolar e o saber popular
dos ribeirinhos na prtica pedaggica dos professores que atuam em classes
multisseriadas e desenvolvem suas atividades profissionais nas escolas situadas na
ilha do Aa, pertencente ao municpio de Afu, no estado do Par.
A opo pelo referido municpio deu-se por trs motivos. O primeiro foi o contato
que tive como docente no polo da Universidade Federal do Amap (UNIFAP), perodo
em que vivenciei a formao em nvel superior, no curso de Pedagogia, dos
professores do referido muncipio. Os constantes dilogos, dentro e fora da sala de
aula, aguaram-me o interesse em investigar a prtica pedaggica com turmas
20
multisseriadas, nas quais somente um professor assume a responsabilidade pelo
ensino de crianas da educao infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental, e
tambm de adolescentes e adultos, porque nas comunidades ribeirinhas comum
encontr-los estudando nas turmas do 1 ao 5 ano. Sendo assim, as classes
multisseriadas so espaos marcados predominantemente pela heterogeneidade, ao
reunirem grupos com diferenas de sexo, de idade, de interesses, de domnio de
conhecimentos, de nveis de aproveitamento, etc. (HAGE, 2005, p. 6).
O segundo motivo foi o nmero significativo de escolas ribeirinhas; de acordo
com os dados obtidos na Secretaria Municipal de Educao (SEMED) em 2015, foram
contabilizadas 207 escolas localizadas na zona rural7. Neste estudo, so
consideradas escolas ribeirinhas, pois esto situadas s margens de rios, lagos, furos
ou igaraps nas comunidades ribeirinhas. Este montante corresponde a 98,2% do
total de escolas do sistema municipal de ensino de Afu, que est organizado
administrativa e pedagogicamente em 24 regionais. Os regionais so agrupamentos
de escolas de acordo com a sua localizao geogrfica. Esta foi a estratgia adotada
pela Secretaria Municipal de Educao (SEMED) para atender diversidade
geogrfica da regio.
O terceiro motivo est voltado para a continuidade da pesquisa que realizei no
mestrado, na qual investiguei os saberes mobilizados e produzidos na prtica
pedaggica dos professores ribeirinhos em classes multisseriadas que atuam na
referida ilha. Neste estudo, cheguei concluso de que os professores produzem
saberes a partir do contexto no qual desenvolvem suas atividades profissionais; no
doutorado, resolvi investigar como acontece o dilogo entre o saber popular e o
escolar, compreendendo que a maneira como o dilogo ocorre na prtica pedaggica
do professor est vinculado com o saber produzido por este docente.
Dentre os regionais, optamos por continuar a investigao no Regional
Madeira, devido a algumas caractersticas que o distinguem dos outros regionais,
dentre elas: o horrio das aulas nas escolas de acordo com a mar, ou seja, os rios
e igaraps da regio na mar vazante inviabilizam a entrada dos catraios para o
transporte dos alunos, sendo necessrio esperar a mar encher para poder adentr-
los; a economia das comunidades que compem o regional baseada quase que
7 Os tcnicos da SEMED chamam escolas da zona rural, mas todas as 207 escolas esto localizadas em ilhas ou as margens de rios, furos ou igaraps por isso as consideramos ribeirinhas.
21
exclusivamente na colheita do aa. Outra caracterstica que nos fez optar pelo citado
regional foi a proximidade com Macap, onde reside o pesquisador, o que viabilizou a
pesquisa de campo, devido facilidade de transporte (a viagem de catraio at as
escolas do regional dura em mdia 90 a 120 minutos) e permanncia no local da
pesquisa8.
Diante deste contexto, partimos nesta investigao da seguinte questo
problema: Como ocorre o dilogo, na prtica pedaggica dos professores que atuam
em classes multisseriadas, entre o conhecimento escolar e o saber popular das
comunidades ribeirinhas da ilha do Aa?
Como objetivo geral, propomos analisar o modo como o saber escolar dialoga
com os outros saberes de carter popular decorrentes da diversidade cultural e, por
isso, epistemolgica. E como especficos: Cartografar, a partir das memrias dos
moradores da ilha do Aa, os saberes presentes no discurso e nas prticas cotidianas
dos ribeirinhos; identificar, na prtica pedaggica do professor, a presena do saber
popular dos ribeirinhos e as formas como dialogam com o saber escolar; averiguar
como as populaes ribeirinhas foram se constituindona Amaznia brasileira e a
relao entre o saber popular, produzido por essa populao, com os aspectos
culturais, sociais e econmicos do municpio de Afu.
O municpio de Afu pertence ao estado do Par. Est situado no arquiplago
do Maraj que uma ilha com uma rea de aproximadamente 40.100 km, a maior
ilha do Brasil e tambm a maior fluviomartima do mundo.
Afu fica s margens dos rios Cajuuna, Afu e Marajozinho; como a maioria
das cidades ribeirinhas na Amaznia, nasceu ao redor de uma igreja catlica
denominada Nossa Senhora da Conceio, atravs de terras doadas por Micaela
Ferreira, no final do sculo XIX. Possui forte vnculo com os rios atravs da pesca, do
lazer e do uso como via para o meio de transporte. uma cidade pequena; de acordo
com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) de 2013, possua
em torno de 15 mil habitantes. Localmente, a prefeitura e alguns grupos de
propagandistas a definem como "Veneza Marajoara" ou "Veneza Amazonense", pois
a cidade se levanta sobre as guas. Embora a comparao seja suprflua, fato que
8 Durante a pesquisa de campo fiquei hospedado nas escolas ribeirinhas, onde fui gentilmente recebido pelos professores e comunidade local.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Brasilhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Riohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Rio
22
a pequena cidade levantou-se pouco a pouco sobre o terreno de vrzea, criando uma
formosa obra em palafitas.
O sistema de ensino do municpio de Afu composto por escolas ribeirinhas
divididas em vinte e quatro regionais. Os regionais so agrupamentos de escolas que
esto localizadas geograficamente prximas. Cada regional possui uma escola Plo
que responsvel pela administrao de todas as demais que compem o respectivo
regional. Realizamos a pesquisa no Regional Madeira9 que abrange cinco escolas
situadas na ilha do Aa10.
Organizamos o texto destatese em quatro captulos. No primeiro,abordamos a
construo de um quadro terico para a anlise do dilogo entre o saber escolar e o
saber popular, que consiste no referencial terico para discutir as categorias
apriorsticas e no apriorsticas que emergiram da pesquisa de campo. No segundo
captulo, fizemos uma imerso histrica das populaes ribeirinhas na Amaznia,
realizamos um mergulho na Amaznia brasileira, com nfase nos povos das guas;
em seguida,abordamos o municpio de Afunosseus aspectos: histricos, geogrficos
e econmicos, com destaque paraa dimenso educacional.
No terceiro captulo, descrevemos o percurso metodolgico com o tipo e local
da pesquisa, os procedimentos e instrumentos para a coleta de dados, caracterizao
dos sujeitos e a tcnica de anlise dos dados. No quarto capitulo,apresentamos a
cartografia, a partir das memrias dos ribeirinhos da ilha do Aa, do saber popular o
qual classificamos em trs categorias: saberes das guas, saberes da terra e da mata
e saberes do aa. E,finalizamos o referido captulo analisando como ocorre o dilogo
entre o conhecimento escolar e o saber popular na prtica pedaggica dos
professores que atuam em classes multisseriadas nas escolas da ilha do aa,
classificamos essas prticas em duas categorias no apriorsticas: as colonizadoras
e as descolonizadoras.
9 Nome fictcio para preservar o anonimato do gestor e dos professores que atuam nas escolas pertencentes ao regional. 10 Nome fictcio para preservar o anonimato dos sujeitos da pesquisa que residem na ilha.
23
1ESTUDOS TERICOS DA PESQUISA
Nestecaptulo, fizemos a discusso do referencial terico da pesquisa que
balizou as inferncias e interpretaes das categorias apriorsticas e no apriorsticas.
1.1 A ECOLOGIA DE SABERES
Nesta seo, com o objetivo de compreendermos a gnese da proposta
apresentada por Boaventura de Sousa Santos quanto ecologia de saberes, fizemos
24
uma abordagem referente ao paradigma hegemnico, sua crise e a assuno de um
novo paradigma, bem como a crtica da razo indolente para chegarmos concepo
das ecologias.
1.1.1O Paradigma hegemnico
Segundo Santos (2008), o modelo hegemnico da cincia moderna oriundo
do modelo de racionalidade que se constituiu a partir da revoluo cientfica do sculo
XVI. Grn (2002), considera que esta revoluo, de cunhocientfico e filosfico, sofreu
marcadas influncias de Galileu Galilei (1564-1642), Francis Bacon (1561-1626),Ren
Descartes (1596-1650) e de Isaac Newton (1642-1727) e guiaram as aes dos
sujeitos na civilizaoocidental.
De acordo com Perez Filho(2003), Galileu foi quem primeiro descreveu a
Natureza em uma linguagem fsico-matemtica. No sculo XVI, estabeleceu
matematicamente a Lei dos Corpos em seu manuscrito De Motu.Afirma Grn (2002),
que a qualidade dos os objetos, para Galileu, no eram semelhantes e sim diferentes,
sendo elas primrias e secundrias. As primrias so concretas e no esto
diretamente relacionadas ao pensamento. As secundrias por serem subjetivas, esto
ligadas a sensibilidade. Galileu achava que a experimentao era fundamental para a
comprovao (MORAES, 1997), assim, determinava a importncia da quantificao
dos fenmenos.
Para Francis Bacon, de acordo com Moraes (1997), a experincia nos conduz
ao correto e exato conhecimento dos fenmenos, logo o empirismo e sua lgica
dedutiva, criados por Bacon, trouxeram uma nova metodologia baseada na
experimentao cientfica. Nesse sentido, rompe com o antigo modo de pensamentoe
fortalece a superioridade do Homem em relao Natureza. (GRN, 2002).
Diferentemente de Bacon, para Descartes o conhecimento obtido a partir da
intuio e da deduo; anatureza humana tem suaessnciano pensamento e de a
verdade est nas coisas que concebemos de forma clara e distinta.A obra Discurso
do Mtodo apresenta a diviso dopensamento e dos fenmenos em infinitas partes,
sendo que a disposio delas ocorre a partir de uma sequncia lgica.Na viso
cartesiana, a nfase nas partes em detrimento do todo caracteriza a divisibilidade do
objeto que compartimentado em partes infinitas (DESCARTES, 1996).
Na referida obra, Descartes assinala a oposio entre homem-natureza, na
qual o homem passa definitivamente a ser visto como centro do mundo e um sujeito
superior Natureza;sujeito-objeto; mente-corpo e esprito-matria, bem como o
25
carter pragmtico do conhecimento como recurso infinito e ilimitado no domnio dos
processos, afirma o autor: [...] conhecimentos que sejam teis vida em vez dessa
filosofia especulativa que se ensina nas escolas [...] (DESCARTES, 1996, p. 69).
Isaac Newton, dando continuidade ao pensamento de Descartes, sedimentou
a viso de mundo como uma mquina governada por leis imutveis, fortalecendo,
desta forma, o paradigma mecanicista. Para o fsico, o mundo, considerado
umsistema mecnico, pode ser descrito objetivamenteo que levou a descrio objetiva
da Natureza como o ideal para a cincia (MORAES, 1996).
Dentre os pressupostos do pensamento cartesiano-newtoniano est a diviso
e a modelagem do fenmeno em estudo em diversas partes para compreend-lo. Esta
forma de conceber a cincia, vai ao encontro dos interesses do capital, que o utiliza
para organizao da sociedade burguesa. Outro fator de relevncia para o avano da
cincia moderna, na concepo de Ribeiro (2007, p. 58), foi o movimento iluminista
na Europa que,
[...] em meados dosculo XVIII, reforou o pensamento cartesiano-newtoniano.Os iluministas consideram que o Homem um ser dotado de razo e que essedeveria se emancipar atravs do seu saber. O Iluminismo expurga os resqucios religiosos medievais e autentica a visoantropocntrica e pragmtica no imaginrio cultural e no universo ideolgico, apartir do momento em que h uma transposio s regras lgico-formais daperspectiva mecanicista das cincias naturais para as cincias humanas,culminando no movimento conhecido como positivismo.
Nesse intento, o que no se pode transformar em nmeros desconsiderado
pelo positivismo moderno e o conhecimento que no tem utilidade e tambm no pode
ser calculado descartado pela viso iluminista. Desta maneira, s pode ser
considerado verdadeiro aquilo que quantitativamente medido.
Desta maneira, a quantificao dos fenmenos pelo emprego rigoroso de
medies se consolidou, sem levar em considerao as qualidades do objeto, pois o
objetivo era quantificar e reduzir a complexidade do mundo por meio da diviso,
classificao e posterior determinao de relaes entre o que foi separado. Assim, o
conhecimento validado se for dirigido pelos preceitos dessa racionalidade cientfica.
Para Santos (2008), o paradigma moderno estabelece a separao entre o que
cientfico e que senso comum; separa natureza e humanidade; no aceita como
vlidas o conhecimento oriundo das experinciascotidianas.
Desta forma, a cincia moderna elabora as leis a partir de uma viso do
conhecimento cientfico como causal, e que guiam as pesquisas nas cincias naturais
26
e sociais de acordo com os preceitos mecanicistas baseados na segurana,
previsibilidade, ordem e estabilidade.
Esse paradigma das cincias naturais, foi aplicado tambm nas cincias sociais
emergentes, pois tal como foi possvel descobrir as leis da natureza, seria igualmente
possvel descobrir as leis da sociedade (SANTOS, 2008, p. 45). Tornando-se
hegemnico, e negando as outras formas de conhecimento que no se guiam
pelosseus princpios epistemolgicos. Segundo o autor, as pesquisas na rea das
cincias sociais no sculo XIX abrangem duas vertentes. A primeira com a aplicao
da metodologia das cincias da natureza, dentre os seus percussores est Durkheim,
que concebia as cincias sociais como parte das naturais. A segunda preconizava
uma epistemologia e metodologia de acordo com o objeto de estudo das cincias
sociais, teve como principais representantes Max Weber e Peter Winch.Para Santos
(2010),as duas correntes estavam atreladas ao paradigma da cincia moderna, por
mais que a segunda representasse a crise e inicio da transio para outro paradigma
cientfico.
1.1.2 A crise do paradigma hegemnico
Apenas no desenrolar do sculo XX a soberania da cincia moderna comea a
ser coloca em discusso, afirma Santos (2008) que o questionamento da soberania
epistemolgica hegemnica, fruto da sua crise, traz no seu interior o paradigma
emergente.
Paradoxalmente, o avano da cincia moderna que a levar a sua crise:
[] a identificao dos limites, das insuficincias estruturais do paradigmacientfico moderno o resultado do grande avano no conhecimento que elepropiciou. O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda (SANTOS, 2008, p. 41).
Segundo Santos (2008),esta crise profunda e irreversvel, foi paulatinamente,
gerada por diversas condies tericas e sociais. Dentre as tericas esto, ateoria da
relatividade de Einsteinque relativizou as leis de Newton; a mecnica quntica; os
questionamentos da matemtica e os avanos tecnolgicos da microfsica, qumica e
biologia. Em relao mecnica quntica, para Santos (2008) no possvel no
interferi no objeto de investigao, mesmo quando estamos observando-o ou
quantificando-o. Desta maneira, o limite do conhecimento torna-se evidente,
mostrando que as leis da fsica so meramente probabilsticas,o que demonstra a
inviabilidade do determinismo mecanicista, fica evidente que: a totalidade do real no
27
se reduz soma das partes e a distino entre o sujeito e o objeto complexa (idem,
p. 56).
Outro fator que evidencia a crise deste paradigma a possibilidade de
formulao de proposies que no podem ser demonstradas muito menos refutadas
pela medicao e quantificao. A teoria de Ilya Prigogine, vem revolucionar a
concepo de matria e de natureza, contribuindo para o avano cientifico da
microfsica, da qumica e da biologia.
Segundo Morin (2003), os princpios do paradigma hegemnico se tornaram
cada vez mais cegos: o princpio de ordem que o determinismo absoluto traduzia no
reina mais no universo. O princpio da separabilidade ou disjuno encontrou seus
limites em qualquer acepo terica (2003, p. 43). Em relao ao objeto, o referido
autor destaca que o seu isolamento do contexto no qual se encontra e a sua incluso
num ambiente artificial perde a validade para tudo que vivo. A induo e a deduo
demonstraram seus limites, assim como a contradio no sinaliza mais o erro, o que
caracteriza a emergncia de um novo tipo de verdade.
Deste modo, para Morin (2010), a impossibilidade de uma viso global do
fenmeno dar-se-ia pela disjuno e pela reduo, que constituem uma ignorncia do
pensamento,
A cincia clssica havia dissolvido o Cosmo, a Natureza e o Sujeito Humano. O Cosmos, porm, ressuscitou a partir de uma cosmologia oriunda da descoberta da expanso do universo. A Natureza ressuscitou com a cincia ecolgica. Se o sujeito foi expulso da cincia objetiva, o retorno do sujeito indispensvel, isso porque o objeto do conhecimento coproduzido por nossas projees mentais sobre a realidade exterior e pela introduo, via traduo e reconstruo, dessa realidade exterior em nossa mente (MORIN, 2010, p. 244).
No que concerne s possiblidades de uma viso global, Santos (2008) defende
a transdisciplinaridade que abrange conjuntamente as cincias da natureza e as
sociais, que vai de encontro ao modelo mecanicista linear da cincia moderna. O
questionamento das leis da natureza faz parte da crise do paradigma dominante,
dentre elas a ideia de que os fenmenos observados independem de tudo,para Santos
(2008) as leis da cincia moderna simplificam de forma arbitraria a realidade.
Dentre as condies sociais que contriburam para a crise do paradigma
moderno destaca: a industrializao da cincia e o seu compromisso com o poder
econmico, social e poltico, os quais passaram a definir as prioridades cientficas; as
relaes de poder autoritrias e desiguais entre os cientistas; a proletarizao no
interior dos laboratrios e centros de estudos; o acesso aos equipamentos,
28
contribuindo para o aprofundamento do fosso cientfico entre pases centrais e pases
perifricos (SANTOS,2008).
1.1.3 O Conhecimento Prudente para uma Vida Decente
Contrapondo-se ao paradigma da cincia moderna, em 1987, na obra Um
discurso sobre as cincias, Santos (2008) apresenta um novo paradigma que
denominou de um conhecimento prudente para uma vida decente que no
somente cientfico, mas tambm um paradigma social. Quatro teses so defendidas
pelo autor para justific-lo. Na primeira, afirma que todo conhecimento cientfico-
natural cientfico-social, aglutinando, desta maneira, as cincias naturais e as
cincias sociais, com nfase na segunda.
[] trata-se de saber qual ser o parmetro de ordem, segundo Haken, ou o atractor, segundo Prigogine, dessa superao, se as cincias naturais, se as cincias sociais. [] Para no irmos mais longe, quer a teoria das estruturas dissipativas de Prigogine, quer a teoria sinergtica de Haken, explica o comportamento das partculas atravs dos conceitos de revoluo social, violncia, escravatura, dominao, democracia nuclear, todos eles originrios das cincias sociais [] (SANTOS, 2010, p. 40-41).
Assim, o autor esclarece que a superao da dicotomia entre cincias naturais
e sociais ocorrer com a preponderncia das cincias sociais; a valorizao dos
estudos humansticos; a rejeio dos preceitos do positivismo;o fim dahierarquia entre
os tipos de conhecimentos. O sujeito, nesta tese, est como protagonista do
conhecimento.
Na tese todo conhecimento local e total, o conhecimento ps-moderno
caracteriza-se pela pluralidade metodolgica, interdisciplinaridade
etransdisciplinaridade envolvendo as diversas cincias. Assim, Santos (2010, p.
46)exemplifica: o direito que reduziu a complexidade da jurdica secura da
dogmtica, redescobre o mundo filosfico e sociolgico em busca da prudncia
perdida. A ampliao da medicina com um o olhar mais abrangente, j que a
hiperespecializao do saber mdico transformou o doente numa quadrcula sem
sentido (Idem, p. 46). A diviso do conhecimento que passa de disciplinar para ser
temtica: Ostemas so galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro
uns dos outros (SANTOS, 2010, p. 76). Temas que so gerados e adotados pelos
grupos sociais, e assim, tornam-se projetos de vida locais.
Na terceira tese, o autor explica que todo conhecimento autoconhecimento.
Deixa claro a ligao entre sujeito e objeto; poisno ato de produo do conhecimento
as trajetrias de vida, os valores e crenas do pesquisador esto presentes. Desta
29
forma, o carter autobiogrfico e auto referencivel da cincia plenamente
assumido(SANTOS, 2010, p. 83). Assim, o objeto passa a ser uma extenso do
sujeito, implicando que em uma pesquisa seja adquirido conhecimento sobre o objeto
e sobre o prprio sujeito.
Na ltima tese, Santos (2010) afirma que todo conhecimento cientfico visa
constituir-se em senso comum. O autor destaca que a converso do conhecimento
cientfico ps-moderno em senso comum, possibilitar a sua valorizao e o seu
reconhecimento.
A cincia ps-moderna, ao sensocomunizar-se, no despreza o conhecimentoque produz tecnologia, mas entende que, tal como o conhecimentose deve traduzir em autoconhecimento, o desenvolvimento tecnolgico devetraduzir-se em sabedoria de vida. esta que assinala o marco da prudncia nossa aventura cientfica (SANTOS, 2010, p. 91).
As quatro teses defendidassuscitam novas formas de racionalidades,
sustentadasem vertentes holsticas, Inter e transdisciplinar. Em uma reflexo crtica
feita aps duas dcadas da publicao do Discurso sobre as Cincias11, o autor
destaca que nas transies as mudanas no paradigma dominante so mais
evidentes que aemergncia de um novo paradigma.Levanta a hiptese de que o
paradigma emergente seja, de facto, um conjunto de paradigmas, ou seja, a
coexistncia de uma pluralidade de epistemologias irredutveis a uma epistemologia
geral (SANTOS, 2007, p. 2).
Os conhecimentos que so elaborados e reelaborados pelos ribeirinhos na
Amaznia, que orientam as suas aes sociais, culturais, econmicas e religiosas,
fazem parte destas epistemologias que dialogam de forma vertical ou horizontal.
Verticalmente, quando no so reconhecidos como vlidos, neste caso, a
epistemologia dominante imposta como a nica maneira de conceber o mundo.
Horizontalmente, quando h o reconhecimento e a valorizao desse saber, o
queSantos (2007), chama de conhecimento prudente, poisbrotados dilogos e das
constelaes de saberes que permitem construir, enquantoque as epistemologias
dominantes impossibilitam a comunicao entre os conhecimentos, pois O importante
salientar a incompletude de todos os conhecimentos e o potencialque existe nos
dilogos entre eles. [...] (SANTOS, 2012, p. 3).
11Em torno de um novo paradigma scio-epistemolgico: Manuel Tavares conversa com Boaventura de Sousa Santos. Revista Lusfona de Educao. Lisboa, n.10, p.131-140, 2007.
30
O mundo, segundo o autor, um arco-ris policromtico com diversidades de
culturas que produzem infinitas epistemologias, da a importncia de torna-las visveis.
o que pretendemos, nesta tese, ao dar visibilidade aos saberes dos povos das
guas12, ao traz-los para a reflexo e problematizao, demonstrar que tais saberes
possuem uma racionalidade e uma lgica prpria de construo (so prticos,
construdos e reconstrudos de acordo com as necessidades dos sujeitos),
socializao (transmitidos por meio da oralidade) e validao (baseada na utilidade,
crena e nos costumes locais) alm de contriburem para a formao de identidades
e subjetividades.
Ao defender a diversidade epistemolgica, Santos (2012) problematiza
questes referentes ao colonialismo, ps-colonialismo e a interculturalidade, a partir
da crtica razo moderna que abordamos a seguir.
1.1.4 A crtica da razo indolente
A razo indolente, segundo Santos (2007), uma racionalidade que norteia
nossa maneira de pensar, a forma como concebemos a vida e o mundo, bem como a
produo da cincia, considerada uma razo nica, eurocntrica e ocidental,
excluindo outras formas de conhecimento. A excluso dar-se- pela no aceitao da
validade dos conhecimentos alternativos por no terem passado pelos rigores que
requer o conhecimento cientfico. O desenvolvimento desta razo, afirma o autor, deu-
se dentro de contextos que possibilitaram a sua emergncia, dentre os quais
destacam-se: a consolidao do Estado Liberal na Europa e na Amrica do Norte; as
revolues industriais; o desenvolvimento capitalista; o colonialismo e o imperialismo.
A indolncia da razo criticada neste ensaio ocorre em quatro formas diferentes: a razo impotente, aquela que no se exerce porque pensa que nada pode fazer contra uma necessidade concebida como exterior a ela prpria; a razo arrogante que no sente necessidade de exercer-se porque se imagina incondicionalmente livre e, por conseguinte, livre da necessidade de demonstrar a sua prpria liberdade; a razo metonmica que se reivindica como a nica forma de racionalidade e, por conseguinte, no se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade, ou, se o faz, f-lo apenas para torn-los em matria-prima; e a razo prolptica, que no se aplica a pensar o futuro, porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe como uma superao linear, automtica e infinita do presente (SANTOS, 2002, p. 240).
A razo indolente, portanto, a hegemnica,de base epistemolgica positivista
que desconsidera outras epistemolgicas, assim como exclui toda diversidade
cultural, deixando-as na invisibilidade.
12 Como so conhecidos os ribeirinhos na Amaznia.
31
Estermann (2009, p. 54) estabelece a diferena entre colonizao e
colonialismo,
Mientras que colonizacin es el proceso (imperialista) de ocupacin ydeterminacin externa de territorios, pueblos, economas y culturas por partede un poder conquistador que usa medidas militares, polticas, econmicas,culturales, religiosas y tnicas; colonialismo se refiere a la ideologia concomitante que justifica y hasta legitima el orden asimtrico y hegemnicoestablecido por el poder colonial.
Desta forma, o colonizador imps a todos os povos a sua cultura, os seus
modos de ver o mundo, o seu conhecimento, a sua epistemologia, universalizando-os
e absolutizando-os; assim, moldou e formatou conscincias, colonizou o pensamento
por meio de uma nica lgica, a eurocntrica.
Corroborando com esta viso, Santos (2014, p. 28) afirma que [...] o fim do
colonialismo, enquanto relao poltica, no acarretou o fim do colonialismo enquanto
relao social, enquanto mentalidade e forma de sociabilidade autoritria e
discriminatria. [...]. As contradies geradas pelo colonialismo ainda esto presentes
e se manifestam na cultura, no racismo, no autoritarismo nas relaes sociais, e
dominam as relaes internacionais.
Mas, segundo o autor, no vis epistemolgico que o colonialismo assume
maior centralidade, por meio da imposio do conhecimento hegemnico, o que
caracteriza uma perspectiva redutora do conhecimento, que impede o surgimento de
outras perspectivas epistemolgicas.
O colonialismo, para alm de todas as dominaes por que conhecido, foi tambm uma dominao epistemolgica, uma relao extremamente desigual de saber-poder que conduziu supresso de muitas formas de saber prprias dos povos e naes colonizados, relegando muitos outros saberes para um espao de subalternidade (SANTOS; MENESES, 2010, p. 11).
Efetivamente, o conhecimento tornou-se um instrumento imperial de
colonizao. Desta maneira, uma das tarefas necessrias, segundo Quijano (1994) e
Mignolo (2003), a de descolonizar o conhecimento, o que requer descolonizar a
lgica e o modelo de racionalidade excludente, descolonizar o imaginrio,
reprogramar o pensamento, no sentido de desmantelar a matriz colonial do poder
(MIGNOLO, 2003, p.12), reconhecendo que em outros lugares tambmocorre
manifestaes culturais e epistemolgicas.
Para Santos (2010) o motivo da preponderncia da razo indolente est na
supresso da diversidade epistemolgica dos outros povos, pela excluso e
32
silenciamento de toda riqueza presente na diversidade cultural que no atenda aos
interesses do capitalismo, fato que ocorreu por meio da dominao politica,
econmica e militar nas sociedades colonizadas. Balandier (1995) acrescenta a ao
missionria, tambm como forma de dominao ideolgica. O problema da dominao
colonial foi analisado por Gruzinski (2003) a partir do que ficou oculto, do que se
passou na esfera do invisvel, da mentalidade, que resultou na colonizao do
imaginrio e construiu a maneira atravs da qual os povos colonizados veem o mundo
e a si mesmos.
O rompimento desta hegemonia requer mudanas profundas na estruturao
dos conhecimentos, para isso, necessrio comear por mudar a razo que preside
tanto aos conhecimentos como a estruturao deles (SANTOS, 2002, p. 241). O
propsito desta pesquisa , exatamente, contribuir para este desafio por meio do
reconhecimento de outras racionalidades que estruturam os conhecimentos locais a
partir de pressupostos voltados para as questes culturais, sociais e religiosas, no
somente as econmicas.
Aponta o citado autor as consequncias dessa monocultura do saber, assim
como a possibilidade de outras epistemologias, em outros lugares, onde existem
manifestaes e epistemologias prprias denominadas de epistemologias do sul.
Trata-se do conjunto de intervenes epistemolgicas que denunciam asupresso dos saberes levada a cabo, ao longo dos ltimos sculos, pelanorma epistemolgica dominante, valorizam os saberes que resistiram comxito e as reflexes que estes tm produzido e investigam as condies deum dilogo horizontal entre conhecimentos. A esse dilogo entre sabereschamamos ecologias de saberes (SANTOS; MENESES, 2010, p. 7).
Toda essa diversidade, que caracteriza as epistemologias do sul, foi omitida
pela dominao capitalista do mundo. Para o autor, as epistemologias so geradas
nas relaes sociais, por isso, todo conhecimento fruto da relao entre sujeitos
situados num contexto histrico, politico e cultural. Desta forma, o critrio de validade
do conhecimento deve est ligado a sua contextualidade. Assim, as experincias
sociais englobam uma gama de conhecimentos com seus critrios de validade
individual, sendo institudos por conhecimentos rivais (SANTOS,2008).
Conclui-se, ento, que se produz e reproduz conhecimento a partir da
experincia social, por meio de diversas epistemologias, o que ocorre nas
comunidades ribeirinhas na Amaznia, nas quais os sujeitos, em mtua interao,
produzem e reproduzem saberes nas suas prticas sociais. Assim, a proposta do
33
autor dar visibilidade aos conhecimentos construdos nas diversas prticas sociais
e que foram excludos pelo exclusivismo da cincia moderna.
O conceito de Sul no geogrfico, o sul anti-imperial, anti-patriarcal, anti-
colonial, esse sul que se transforma numa experincia fundadora de uma proposta
mitolgica, que obviamente, se, parte do sofrimento, s tem um objetivo que atacar
as causas desse sofrimento (SANTOS, 2008, p. 24). Portanto, a metfora do
sofrimento humano, fruto do capitalismo, que o caracteriza. Aprender com o Sul
requer um rompimento com o Norte imperial.
[...] Mas admito que o Sul , ele prprio, um produto do imprio e, por isso, a
aprendizagem com o Sul exige igualmente a desfamiliarizao em relao ao
Sul imperial, ou seja, em relao a tudo que no Sul o resultado da relao
colonial capitalista (SANTOS, 2008, p. 33).
Neste sentido, o aprender com o Sul requer a descolonizao das nossas
mentes que foram colonizadas pelo Norte, desta maneira, poderemos eliminar os
restcios deixados pelo colonizador, assim s se aprende com o Sul [...] na medida
em que se contribui para a sua eliminao enquanto produto do imprio. (SANTOS,
2008, p. 33). Isto pede o reconhecimento da diversidade e a afirmao das diferenas,
bem com o combate da viso, segundo Tavares (2014, p. 1), de um saber
institucionalizado no Ocidente, a um repositrio axiolgico, esttico e cognitivo que foi
produzido pela humanidade e que se auto define como universal.
Essa racionalidade tem grande influncia na nossa forma de pensar, ler e ver
o mundo, por isso, a leitura que fazemos da realidade est imbricada por uma razo
que direciona o nosso olhar, que no nos possibilita vislumbrar a riqueza
epistemolgica presente no entorno. Esta viso unilateral, monocultural, produzida,
de acordo com Santos (2007), pela razo indolente que se manifesta principalmente
por meio de duas razes, a metonmica e a prolptica.
Segundo o autor, a razo metonmica uma figura da teoria literria e da
retrica que significa tomar a parte pelo todo: E essa uma racionalidade que
facilmente toma a parte pelo todo, porque tem um conceito de totalidade feito de partes
homogneas, e nada do que fica fora dessa totalidade interessa (SANTOS, 2008, p.
25). Ono existente o que est fora desta totalidade, para isso, faz-se a contrao
do presente porque deixa de fora muita realidade, muita experincia, e, ao deix-las
de fora, ao torn-las invisveis, desperdia a experincia(idem, p. 26). As experincias
cotidianas por no estarem atreladas a esta razo, impossibilitam outras leituras do
mundo que diferem da hegemnica.
34
Esse reducionismo gerado por ideias aliceradas na simetria dicotmica e a
hierarquia que impossibilitam vises mais abrangentes do tempo presente, e assim,
acabam por limitar, condicionar e ate mesmo inviabilizar o conhecimento das demais
experincias.
[...] Ento a razo metonmica tem essa dupla ideia das dicotomias e das hierarquias, por isso no possvel pensar fora das totalidades: no posso pensar no sul sem o norte, a mulher sem o homem, no posso pensar o escravo sem o amo. Mas o que devemos inquirir que se nessas realidades no h coisas que esto fora dessa totalidade: o que h na mulher que no depende da relao com o homem [...], ou seja, pensar fora da totalidade [...] (SANTOS, 2007, p. 28).
Assim, a compreenso do mundo vai alm da viso eurocntrica, h outras
maneiras de enxergar o mundo que transcende a razo metonmica, na qual as partes
so pensadas em relao direta com a totalidade. Para pensar fora dessa totalidade,
que homognea e excludente, o autor prope a sociologia das ausncias, que
uma sociologia insurgente para tentar mostrar que o que no existe produzido como
no existente, invisvel realidade hegemnica do mundo (idem, p. 30). O que
ausente produzido propositalmente para reduzir a realidade ao que existe. As
ausncias so produzidas, afirma Santos (2008), a partir de cinco monoculturas: do
saber e do rigor, do tempo linear, da naturalizao das diferenas, da escala
dominante e a do produtivismo capitalista.
Na primeira monocultura, a do saber e do rigor, os conhecimentos populares
no so visibilizados porque no passam pelos rigores da cincia positivista,
reconhecido como nico critrio de validao; portanto, as prticas sociais aliceradas
nesses saberes, dentre elas as dos ribeirinhos, no existem luz da cincia ocidental.
Isso gera o que Santos (2007) denomina de epistemicdio, a morte de conhecimentos
que no se encaixam nos rigores do mtodo cientifico. Esses saberes so
invisibilizados, subalternizados, no sendo aceitos como diferentes maneiras de ver,
ler e interpretar o mundo e que esto ligadas histria e a cultura dos diferentes
povos. Desta maneira,no faz sentido dizer que esses conhecimentos no so
cientficos, pois, para o autor, so outras maneiras de fazer cincia, dentro de um
contexto simblico de que fazem parte os saberes da maioria da populao
marginalizada pela cincia eurocntrica. O saber popular, neste estudo, os das
populaes ribeirinhas, tem seus prprios critrios de validao e aceitao. Ao levar
seus filhos, que foram acometidos por doenas causadas por seres encantados, para
35
o benzedor benz-los, a crena no poder de cura emanado pelo curandeiro o critrio
de validao do seu saber.
A monocultura do tempo linear est relacionada ao capitalismo. Como assegura
Santos (2002, p. 243), a razo metonmica , juntamente com a razo prolptica, a
resposta do Ocidente, apostado na transformao capitalista do mundo, pois tem
como foco o desenvolvimento e a mercantilizao. Nessa tica, os pases menos
desenvolvidos so inferiorizados e estigmatizados como pr-modernos, primitivos,
selvagens, dentre outros adjetivos que os tornam inferiores. Por no se inclurem
totalmente dentro desta lgica capitalista os ribeirinhos so tachados de preguiosos
e demais adjetivos pejorativos.
Em relao mercantilizao, o que predomina o tempo linear como
referencia produo e circulao de mercadorias. As diversas formas de
organizao temporal que envolve outros mundos que vo alm do terreno, no so
reconhecidas, o que prevalece a linearidade com presente, passado e futuro. Com
isso, o tempo das mars que predomina na Amaznia Ribeirinha, o mundo dos seres
encantados que povoam os rios e as florestas so invisibilizados.
A diviso da populao nas categorias de raa, sexo e tnica, so maneiras de
naturalizar as diferenas e justificar as hierarquias. Para o autor, as hierarquias no
so causa das diferenas, mas suas consequncias. Desta maneira, as diferenas
so veladas e naturalizadas a partir de uma escala baseada na inferiorizao do que
difere do padro dominante.
A monocultura da escala dominante, que mais uma maneira de produzir as
ausncias, parte do princpio de que o global e universal hegemnico, o particular
e o local no conta, invisvel, descartvel, desprezvel (SANTOS, 2007, p. 31). Em
decorrncia disso, os saberes no hegemnicos so tidos como locais, portanto,
inferiores. O considerado universal valido em qualquer contexto, por isso que o
hegemnico dominante independente do lugar, da a predominncia no currculo
escolar de somente uma forma de conhecimento e, a no aceitao por parte de
alguns professores da incluso dos saberes locais na sua prtica pedaggica, fruto
de um processo de formao profissional colonizadora.
No tocante monocultura do produtivismo capitalista, o autor afirma que pode
ser empregada para o trabalho e para a natureza. A utilizao das novas tecnologias
so as bases para a organizao da produtividade a partir da lgica hegemnica
capitalista. As outras lgicas de produo, dentre elas as dos povos das guas, so
36
consideradas improdutivas. Dessa maneira, so produzidas as cinco formas de
ausncias: o ignorante, o residual, o inferior, o local e particular, e o
improdutivo(SANTOS, 2007, p. 32), que so contrapostas a formas universais e
globalmente reconhecidas: o cientfico, o avanado, o superior, o global e o produtivo.
Tais monoculturas so responsveis pela produo das ausncias, suprimindo
as demais experincias, vivncias e conhecimentos que foram e so historicamente
invisibilizados. Com o objetivo de tornar presente o que est ausente e dar visibilidade
s experincias, o autor prope a substituio das monoculturas pelas ecologias
consideradas a prtica de agregao da diversidade pela promoo de interaes
sustentveis entre entidades parciais e heterogneas (SANTOS, 2008, p. 105). So
cinco as ecologias: dos saberes13, das temporalidades, do reconhecimento, da
transescala e das produtividades.
A ecologia das temporalidades parte do princpio de que, alm do tempo linear,
existem outras formas de organizao temporal. Na Amaznia Ribeirinha, por
exemplo, o tempo das aulas em algumas comunidades regido pelas mars; a
derrubada e a plantao das roas nas comunidades camponesas dependem das
estaes do ano: no vero, so feitas as derrubadas e a limpeza da rea onde ser
plantada a mandioca, no inverno realizada a plantao, por causa das chuvas que
possibilitam o crescimento das manivas14. Em certas comunidades indgenas, a
presena concomitante de espritos da mata e das guas juntamente com os seres
vivos constante, a relao com esses entes ocorre de maneira que, para entrar em
determinadas horas na mata ou no rio, faz-se necessrio pedir licena e solicitar que
nos acompanhem durante a caminhada na mata ou remada pelo rio, no sentido de
proteo contra os possveis males. Essas lgicas precisam ser reconhecidas, o
jeito amaznida de ser e de lidar com o tempo, que vai alm da linearidade. Como
afirma Santos (2007, p. 34): se vou reduzir tudo a temporalidade linear, estou
afastando todas as outras coisas que tem uma lgica distinta da minha.
No tocante ecologia do reconhecimento, que se refere produo das
desigualdades, faz-se necessrio a descolonizao das mentes que foram
colonizadas com a imposio de valores e esteretipos gerados por meio da
categorizao e hierarquizao da populao, tendo como referencia as diferenas
13 Abordaremos numa seo especfica a ecologia de saberes por ser objeto de estudo do nosso trabalho. 14 Nome dado ao caule do p de mandioca, o qual, cortado em pedaos, usado no plantio.
37
sexuais, culturais, raciais, sociais, etc. Nesse intento, a ecologia proposta [...] procura
uma nova articulao entre o princpio da igualdade e o princpio da diferena, abrindo
espao para a possibilidade de diferenas iguais uma ecologia de diferenas feita
de reconhecimentos recprocos (SANTOS, 2008, p. 110). Nesta ecologia, a
pluralidade e a diversidade como parte do reconhecimento dos direitos humanos
ressaltada. Assim, Temos o direito a ser iguais quando a diferena nos inferioriza;
temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza (SANTOS,
1997, p. 31).
Para ir alm da escala dominante, proposta a ecologia da transescala, que
parte da integrao do local, do nacional e do global nos projetos contra hegemnicos,
como estratgia de combate a globalizao, atravs destas ligaes, as formaes
locais desligam-se da srie inerte de impactos globais e religam-se como pontos de
resistncia e gerao de globalizao alternativa(SANTOS, 2008, p. 113). Algumas
experincias j foram e esto sendo desenvolvidas por movimentos sociais com
atuao local, e que se expandiram a nvel nacional e mundial como frente de luta
contra a excluso social.
Em oposio monocultura do produtivismo capitalista, apresentada a
ecologia das produtividades, que consistem no
[...] mbito das alternativas que engloba, desde microiniciativas levadas a cabo por grupos sociais marginalizados do Sul global, procurando reconquistar algum controle das suas vidas e bens, at propostas para uma coordenao econmica e jurdica de mbito internacional destinada a garantir o respeito por padres bsicos de trabalho decente e de proteo ambiental, novas formas de controle do capital financeiro global, bem como tentativas de construo de economias regionais baseadas em princpios de cooperao e solidariedade (SANTOS, 2008, p.114).
A concepo abrangente de economia est no bojo destas iniciativas, pois
abarcam valores organizacionais e polticos que vo de encontro ao capitalismo
global, tais como questes relacionadas sustentabilidade ambiental, participao
democrtica, alm da equidade social, racial, tnica e cultural. a favor dessa
equidade que precisamos romper com as vises estereotipadas que persistem em
relao aos homens e mulheres que constituem os povos das guas da Amaznia. As
pesquisas, realizadas na regio Amaznica, vem tornando visveis as experincias
que so ativamente produzidas por esses sujeitos, dentre elas o cuidado com os rios
e a mata, no sentido de preservar a biodiversidade para garantia da sobrevivncia.
Segundo Boaventura, o objetivo das diversas ecologias [...] revelar a
diversidade e multiplicidade das prticas sociais e credibilizar esse conjunto por
38
contraposio credibilidade exclusiva das prticas hegemnicas (2008, p. 115). A
seguir abordaremos com mais profundidade a ecologia de saberes, por ser nosso
objeto de estudo.
1.1.5 Ecologia de Saberes: o reconhecimento dos saberesnascido das lutas dos
oprimidos
A ecologia de saberes parte do reconhecimento da diversidade epistemolgica
que caracteriza o mundo no qual vivemos e de que a cincia no a nica forma de
explicao da realidade reconhecendo a existncia de outros conhecimentos que
norteiam as prticas sociais e do sentido nossa vida. Assim, a ecologia de saberes
um conjunto de epistemologias que partem da possibilidade da diversidade e da
globalizao contra hegemnicas e pretendem contribuir para as credibilizar e
fortalecer (SANTOS, 2008, p.154). Fortalecer e credibilizar no intuito de reconhecer
os saberes das populaes que foram historicamente invizibilizados e excludos,
dentre eles os dos povos indgenas, populaes do campo, ribeirinhos, em suma, os
saberes que nasceram da luta dos oprimidos e marginalizados.
Portanto, no h saber maior ou menor, mais importante ou menos valioso, o
que existe so conhecimentos que explicam a natureza, a sociedade e os diversos
fenmenos que diferem ou complementam o cientfico. Nesse sentido, para que
ocorra o dilogo numa perspectiva intercultural, pois o dilogo no ser somente entre
esses diferentes saberes, mas tambm entre culturas diferentes, o autor prope a
hermenutica diatpica15 que no visa atingir:
[...] a completude objetivo inatingvel mas, pelo contrrio, ampliar ao mximo a conscincia de incompletude mtua, por meio de um dilogo que se desenrola, por assim dizer, com um p numa cultura e outro, noutra. Nisso reside o seu carter diatpico (SANTOS, 2009, p. 15)
Neste sentido, a perspectiva intercultural objetiva estimular o dilogo entre os
diferentes saberes e conhecimentos, partindo do princpio de que a incompletude o
que os caracteriza. Assim, os conhecimentos cientficos no so considerados
superiores, e, sim,mais uma forma de expresso epistemolgica. A reciprocidade, o
respeito e o reconhecimento da diversidade so os alicerces que balizam o dilogo
intercultural.
15A hermenutica diatpica baseia-se na ideia de que os topoi de uma dada cultura, por mais fortes que sejam,
so to incompletos quanto prpria cultura a que pertencem. Tal incompletude no visvel do interior dessa cultura, uma vez que a aspirao totalidade induz a que se tome a parte pelo todo (SANTOS, 2009).
39
Para aprofundarmos a nossa compreenso em relao perspectiva
intercultural, Walsh (2011) estabelece a diferena entre os tipos de interculturalidade:
a relacional, a funcional e a crtica. A interculturalidade relacional sempre existiu ao
longo da histria por meio do encontro entre as culturas, mas sem a ocorrncia do
dilogo entre elas. A interculturalidade funcional existe nas sociedades capitalistas,
na qual a multiculturalidade encaixada nas estruturas de dominao, mas, nos
discursos oficiais, so concebidas como prticas interculturais numa viso neoliberal.
E a interculturalidade crtica que, para a autora, indissocivel do processo de
descolonizao. Walsh (2011), afirma que no possvel a interculturalidade crtica
sem a dissoluo das estruturas de dominao, nesse sentido, enquanto estas
estruturas existirem, no ser possvel o dilogo entre o saber popular e o saber
dominante ou entre qualquer tipo de saber.
A perspectiva da interculturalidade crtica, proposta por Walsh (2011), difere do
dilogo intercultural apresentado por Santos (2009) na ecologia de saberes. Para o
autor, o dilogo entre as culturas no requer necessariamente a dissoluo das
estruturas do poder.
Segundo Catherine Walsh (2006, p.11), a interculturalidade :
[...] um processo dinmico e permanente de relao, comunicao e aprendizagem entre culturas em condies de respeito, legitimidade mtua, simetria e igualdade. Um intercmbio que se constri entre pessoas, conhecimentos, saberes e prticas culturalmente diferentes, buscando desenvolver um novo sentido entre elas na sua diferena.
Esta concepo de interculturalidade necessria para a efetivao da
construo de um pensamento crtico, pois surge da experincia vivida na
colonialidade; parte tambm de um pensamento gerado no Sul, e muda os rumos da
geopoltica do conhecimento dominante (WALSH, 2006). Segundo a citada autora, a
interculturalidadepode contribuir para a construo de sociedades diversificadas por
meio da explicitaoe abertura de espaos, conhecimentos e prticas. Para Walsh
(2006, p. 21),
mais do que um simples conceito de inter-relao, ainterculturalidade assinala e significa processos deconstruo de conhecimentos outros, de uma prticapoltica outra, de um poder social outro, e de umasociedade outra, formas diferentes de pensar e atuarem relao e contra a modernidade/colonialidade, umparadigma que pensado atravs da prtica poltica.
Desta forma, a interculturalidade crtica reconhece as desigualdades sociais,
econmicas, polticas e de poder, bem como, a dominao em que estamos
40
submetidos pelas condies institucionais. Assim, no dilogo intercultural, numa
perspectiva crtica as assimetrias sociais, econmicas e polticas sempre estaro
permeando as discusses entre pessoas e grupos culturais diversificados sem a
negao ou sobreposio de suas diferenas.
Corroborando com esta viso, Candau (2006) afirma que a interculturalidade
indica a edificao de sociedades que assumam as diferenas como constitutivas da
democracia, bem como a possibilidade de construo de relaes igualitrias entre os
diferentes grupos socioculturais que foram historicamente inferiorizados.
Na perspectiva da ecologia de saberes, Santos (2010) prope cinco imperativos
transculturais que precisam ser aceitos pelos grupos sociais e culturais para o dilogo
intercultural. O primeiro chama-se Da completude incompletude, que o ponto de
partidapara o dilogo, e consiste no nosso interesse em conhecer outras culturas,
como reflexo da necessidade e do descontentamento com a nossa cultura. Assim, A
hermenutica diatpica aprofunda, medida que progride, a incompletude cultural,
transformando a conscincia inicial de incompletude, em grande medida difusa e
pouco articulada, numa conscincia autorreflexiva (p. 46).
J o segundo, denominado Das verses culturais estreitas s verses amplas,
o referido autor afirma que, devemos evidenciar dentro de uma determinada cultura
aquilo que est voltado para o reconhecimento do outro. O terceiro, De tempos
unilaterais a tempos partilhados, o autor assegura que a deciso em estar aberto para
o dialogo cabe a cada grupo cultural.
A cultura ocidental, durante sculos, no teve qualquer disponibilidade para dilogos interculturais mutuamente acordados e agora, ao ser atravessado por uma conscincia difusa de incompletude, tende a crer que todas as outras culturas esto igualmente disponveis para reconhecer a sua incompletude e, mais do que isso, ansiosas para se envolver em dilogos interculturais com o Ocidente(SANTOS, 2010, p.47).
O quarto imperativo, De parceiros e temas unilateralmenteimpostos a parceiros
e temas escolhidospor mtuo acordo, parte da ideia de que para o dilogo, os
protagonistas e o assunto precisam ser acordados mutuamente. Segundo o autor, no
tocante aos temas, em todas as culturas h temas que necessariamente precisam ser
includos no dilogo com outras culturas, pois o importante para a
hermenuticadiatpica a direo, a noo eo sentimento de incompletude da
cultura. (SANTOS, 2010, p. 47). O ultimo imperativotranscultural,Da igualdade ou
diferena igualdadee diferena, parte da aceitao de que o direito a igualdade deve
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ser garantido quando a diferena nos inferioriza e o direito a ser diferente quando a
igualdade nos descaracteriza.
Alm dos imperativos transculturais, essenciais para o dilogo intercultural,
Santos (2008, p. 154) ratifica que a ecologia de saberes se alicera em dois
pressupostos: no h epistemologias neutras e as que clamam s-lo so as menos
neutras; a reflexo epistemolgica deve incidir no nos conhecimentos em abstratos,
mas nas prticas de conhecimento e seus impactos noutras prticas sociais. Posto
isso, fica evidente de que no h neutralidade no conhecimento cientfico, pois atende
aos interesses da ideologia dominante que o produz. Quanto ao segundo pressuposto,
refere-se prtica dos conhecimentos, sua aplicabilidade na realidade social. Nessa
lgica,
No h dvidas de que para levar o homem ou a mulher a lua no h conhecimento melhor do que o cientifico, o problema que, hoje tambm sabemos que, para preservar a biodiversidade, de nada serve a cincia moderna. Ao contrrio, ela a destri. Porque o que vem conservando e mantendo a biodiversidade so os conhecimentos indgenas e camponeses (SANTOS, 2007, p. 33).
Fica evidente que a importncia de determinado conhecimento est na sua
capacidade e utilidade para resolver os problemas sociais, ambientais entre outros.
No exemplo acima, cada conhecimento produz um tipo de resultado quando aplicado
para atingir determinados objetivos. A hierarquia entre eles ocorre pela interveno
concreta nas prticas sociais.
A nossa inteno nesta tese, foi conferir legitimidade acadmica e
epistemolgica aos saber popular dos ribeirinhos, que este possa, juntamente com o
saber escolar, fazer parte do currculo da escola de educao bsica frequentada
pelas crianas, jovens e adultos das comunidades ribeirinhas na Amaznia e desta
maneira contribuir para a formao de identidades e subjetividades.
1.2 A DESCOLONIZAO EPISTEMOLGICA: UM ESTUDO DAS PROPOSIES
TERICAS
Nesta seo, procuramos fazer uma discusso entre autores que discutem os
conceitos de colonialidade, gnose/pensamento liminar e pensamento fronteirio, com
o intuito de analis-los criticamente a partir da abordagem terica baseada nos
Estudos Ps-Coloniais do grupo modernidade/colonialidade, que emerge com a
finalidade de questionar a constituio da modernidade a partir de suas concepes
dominantes. Finalizamos com uma discusso referente categoria Dilogo na viso
Freireana.
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1.2.1Os Estudos Ps-Coloniais
Os estudos ps-coloniais podem ser considerados como um movimento
intelectual e tambm poltico com a finalidade de questionar a hegemonia
epistemolgica e fazer emergir os saberes subalternizados dos povos colonizados.
Segundo Ribeiro e Escobar (2012) os impactos do processo de colonizao so
abordados por autores oriundos dos pases colonizados como grito de alerta para o
rompimento das amarras impostas pela colonizao.
Para Costa (2006, p. 84) o colonialismo alude a situaes de opresso
diversas, definidas a partir de fronteiras de gnero, tnicas ou raciais. Neste sentido,
o colonialismo gerou a opresso dos povos dominados que foram classificados de
acordo com os estigmas impostos pelo colonizador, e ainda reforou as j existentes
situaes de opresso.
Ballestrin (2012, p. 4), no tocante ao argumento ps-colonial, apresenta-o como
um movimento poltico e intelectual no necessariamente linear, disciplinado e
articulado.
Neste sentido, defendemos que o argumento ps-colonial em toda sua amplitude histrica, geogrfica e disciplinar percebe a diferena colonial e intercede pelo colonizado. Isto significa dizer que o argumento ps-colonial em maior ou menor grau comprometido. Pelo argumento ps-colonial o resgate da histria, do conhecimento, do discurso, do sujeito e da memria do status colonizado nunca pretende, atravs de sua visibilidade e da vocalizao, fortalecer o outro colonizador. Em termos de teoria poltica contempornea, a relao colonial uma relao antagnica e no agnica.
Desta forma, o resgate da histria, do conhecimento e do discurso do
colonizado foram protagonizados por autores como Albert Memmi, Aim Cesrie e
Franz Fanon que foram os pio