Revista Saberes da Faculdade São Paulo – FSP, 2019
Rev. Saberes, Rolim de Moura, vol. 9, n. 1, jan./jul, 2019. ISSN: 2358-0909.
EDUCAÇÃO QUILOMBOLA: A ESCOLA COMO GARANTIDORA DO RESPEITO À
MULTICULTURALIDADE
Marta Martins Ferraz Paloni1
RESUMO O reconhecimento legal dos quilombos no Brasil representa um marco histórico na visibilidade das diferenças étnicas e culturais da sociedade. Analisando a luta pelo reconhecimento, percebe-se a necessidade de ampliação dos direitos, como é o da educação quilombola. Os desafios são grandes, sendo necessário modificar a cultura escolar, que exclui a diversidade. Faz-se necessário a inclusão de propostas educacionais que partam da etnicidade e da cultura podem abarcar o contexto e o texto territorial. Numa sociedade cada vez mais globalizada, ainda que muitos sejam excluídos, é possível projetar um modelo de educação diferenciado para um determinado grupo social? É possível, num país marcado pela diversidade étnica/cultural, criar uma modalidade de educação destinada a um grupo social específico? Este artigo tem como objetivo central evidenciar a Educação Escolar Quilombola como uma política pública afirmativa, balizada pelos referenciais da ancestralidade quilombola, na construção de um currículo lastreado pelo respeito e reconhecimento dos saberes tradicionais quilombolas, visando fortalecer e desenvolver posturas críticas a partir das vozes do próprio grupo quilombola, quase sempre silenciado. Palavras-chave: Educação quilombola; Inclusão; Política pública.
ABSTRACT The legal recognition of the quilombos in Brazil represents a historic mark in the visibility of the ethnic and cultural differences of society. Analyzing the struggle for recognition, it is perceived the need to expand the rights, such as quilombola education. The challenges are enormous, and it is necessary to change school culture, which excludes diversity. It is necessary to include educational proposals that depart from ethnicity and culture and can encompass the context and territorial text. In an increasingly globalized society, although many are excluded, is it possible to design a differentiated education model for a particular social group? Is it possible, in a country marked by ethnic / cultural diversity, to create a form of education for a specific social group? The main objective of this article is to highlight Quilombola School Education as an affirmative public policy, based on the references of quilombola ancestry, in the construction of a curriculum based on the respect and appreciation of traditional quilombola knowledge, in order to strengthen and develop critical positions based on Quilombola group own voices, almost always silenced. Keywords: Quilombola education; Inclusion; Public policy.
INTRODUÇÃO
1 Graduada em Letras pela Universidade Federal de Rondônia-UNIR (1998) e graduada em Direito pela Universidade Luterana do Brasil-ULBRA (2001), Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Luterana do Brasil - ULBRA (2003), pós-graduada em Direito Processual Civil (2008) e Metodologia do Ensino Superior (2011) pela Faculdade de Rolim de Moura FAROL, Doutora em direito privado (2013) e Pós-doutorado em Princípios Fundamentais e Direitos Humanos (2015) pela Universidade de Ciências Sociais e Empresariais-UCES. É sócia do escritório de Advocacia Paloni Advogados Associados na cidade de Rolim de Moura-RO, é servidora Pública Federal contratada com Professora Nível Superior, Professora colaboradora da Universidade Federal de Rondônia, Mestranda em Letras pela Universidade Federal de Rondônia-RO, email: [email protected]
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No Brasil desde o Século XX já havia iniciativas para estabelecer uma
educação plural e inclusiva que contemplasse a História da África e dos povos negros
e combatesse práticas discriminatórias sofridas pelas crianças no ambiente escolar.
Muitos movimentos produziram amplo debate sobre a importância de um
currículo escolar que refletisse a diversidade étnico-racial da sociedade brasileira. A
Marcha Zumbi contra o racismo, pela Cidadania e a Vida, em 1995, representou o
movimento de maior aproximação e reivindicação com propostas de políticas públicas
para a população negra, inclusive sugerindo políticas educacionais para o Governo
Federal.
A proposta deste trabalho é analisar o significado e as formas que a educação
pode assumir no contexto da singularidade territorial quilombola objetivando levar a
escola a repensar seu papel no asseguramento da inserção social desse povo.
A principal questão é: A escola brasileira permite a realização de potências
transformadoras e o reconhecimento da multiculturalidade no seu interior?
Dentro dessa temática pretendemos discutir sobre a importância de se
repensar o papel da escola como agente transformador na formação da cidadania,
com respeito pelas diversas matrizes culturais, a partir das quais se constrói a
identidade brasileira.
Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivo evidenciar a Educação
Escolar Quilombola como uma política pública afirmativa, balizada pelos referenciais
da ancestralidade quilombola, na construção de um currículo lastreado pelo respeito
e reconhecimento dos saberes tradicionais quilombolas.
A ESCOLA COMO RECONHECEDORA DAS DIFERENÇAS
Identidade e diversidade são dimensões que compõem o cenário atual das
políticas educacionais brasileiras, se não de forma central, de maneira persistente.
É nesse contexto que se insere o debate sobre o reconhecimento de direitos
das comunidades remanescentes de quilombos, que alcançaram na Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988 o status de grupo formador da sociedade
brasileira.
O Brasil escravocrata negava aos negros a prática da educação formal e a presença dos escravos na escola era considerada uma ameaça à estabilidade social da época. Pode-se entender, assim, que a exclusão negra do espaço escolar era entendida tanto como garantia de “ordem social”, como
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já mencionado, quanto pela ameaça de influência negativa que os escravos poderiam exercer nesses espaços (FONSECA, 2001).
A questão quilombola entrou, de fato, para a agenda política institucional
brasileira a partir da Constituição Federal de 1988, como resultado da forte atuação
do Movimento Negro na busca da garantia de direitos, do reconhecimento e da
valorização do negro na formação social, econômica e cultural do Brasil.
No sentido de questionar a extrema exclusão dos negros na sociedade brasileira, o movimento negro surgiu tendo em vista que: A luta dos negros na perspectiva de resolver seus problemas na sociedade abrangente, em particular os provenientes dos preconceitos e das discriminações raciais, que os marginalizam no mercado de trabalho, no sistema educacional, político, social e cultural (PINTO, 1993 apud DOMINGUES, 2007, p. 101).
Neste contexto de luta, surge no cenário nacional a busca por ações
afirmativas que possam superar as graves desigualdades raciais. Cabe aqui ressaltar
o significado do termo “ação afirmativa”, que:
[...] refere-se a um conjunto de políticas públicas para proteger minorias e grupos que, em uma determinada sociedade, tenham sido discriminados no passado. A ação afirmativa visa remover barreiras, formais e informais, que impeçam o acesso de certos grupos ao mercado de trabalho, universidades e posições de liderança. Em termos práticos, as ações afirmativas incentivam as organizações a agir positivamente a fim de favorecer pessoas de segmentos sociais discriminados a terem oportunidade de ascender a postos de comando (OLIVEN, 2007, p. 30).
De acordo com Medeiros (2007), a luta pela existência de cotas para negros
tanto nas universidades como em posto de empregos públicos visava à reelaboração
do critério “mérito” para a admissão, de modo com que haja uma avaliação mais justa
e eficiente, levando em consideração “filiação racial, origem, renda, local de moradia
e outros, juntamente com a capacidade de superar obstáculos” (MEDEIROS, 2007, p.
128).
A partir da criação de políticas públicas de ação afirmativa, pode-se
compreender a organização recente de leis que normatizam a educação quilombola
no Brasil. A educação, em seu sentido mais amplo, de acordo com Höflig (2001), é
entendida como uma política pública social, de responsabilidade do Estado, mas não
pensada apenas por ele. O modelo de educação adotado, com isso, está situado no
interior de um tipo particular de Estado, sendo: Formas de interferência do Estado,
visando à manutenção das relações sociais de determinada formação social. Portanto,
assumem ‘feições’ diferentes em diferentes sociedades e diferentes concepções de
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Estado. É impossível pensar Estado fora de um projeto político e de uma teoria social
para a sociedade como um todo (HÖFLIG, 2001, p. 31-32).
Mediante o tensionamento do Movimento Negro é possível entender a criação
das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola no ano de
2012. Sua elaboração seguiu as orientações presentes nas Diretrizes Curriculares
Nacionais Gerais para a Educação Básica, determinando que a Educação Escolar
Quilombola seja desenvolvida em unidades educacionais inseridas em suas próprias
terras, baseada na cultura de seus ancestrais, com uma pedagogia própria e de
acordo com a especificidade étnico-cultural de cada comunidade, reconhecendo-a e
valorizando-a (BRASIL, 2013).
A temática sobre Educação Escolar Quilombola é absolutamente
contemporânea no cenário nacional da política pública educacional. Trata-se de uma
modalidade de educação fortemente vinculada à produção de uma nova cartografia
da diversidade brasileira, cujo mapa mostra o reconhecimento étnico-cultural de um
grupo étnico historicamente posicionado às margens, quando não completamente
excluído. A Educação Escolar Quilombola configura uma política da diferença sem
precedentes na história da educação brasileira.
No campo das políticas educacionais, importantes passos legais já foram
dados nos últimos anos, visando o reconhecimento e a valorização da diversidade
cultural e étnica presente no território brasileiro por meio dos Parâmetros Curriculares
Nacionais, mais especificamente com o tema transversal “Pluralidade Cultural”; da Lei
nº 10.639/2003 (BRASIL, 2003b); da definição das Diretrizes Curriculares para as
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e
Africana, por meio da Lei nº 11.645/2008 (BRASIL, 2008), garantindo o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígena; e mais recentemente por meio
das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na
Educação Básica (BRASIL, 2012).
Formar cidadão significa dar condições ao aluno de se reconhecer-se como sujeito social que tem uma história, que tem um conhecimento prévio do mundo e é capaz de construir o seu conhecimento. Significa compreender a sociedade que vive sua história e o espaço por ela produzido como resultado da vida dos homens. Isso tem de ser feito de modo que o aluno se sinta parte integrante daquilo que está estudando (CALLAI, 2003, p. 78).
Observa-se que a escola vive uma época de desafios, pois a um só tempo é
convocada a participar/acompanhar as simultaneidades dos acontecimentos em
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escala global, visto que as identidades juvenis de milhões de estudantes se constroem
tendo como referências os artefatos culturais globais; por outro lado, é convocada
para auxiliar no fortalecimento e reconhecimento de culturas locais, que se mantêm,
a despeito da sugestão global de homogeneização cultural. Mas, numa sociedade
cada vez mais globalizada, ainda que muitos sejam excluídos, é possível projetar um
modelo de educação diferenciado para um determinado grupo social? É possível, num
país marcado pela diversidade étnica/cultural, criar uma modalidade de educação
destinada a um grupo social específico?
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola
compreendem que Educação Escolar Quilombola é aquela realizada em
estabelecimentos de ensino localizados no interior das Comunidades Remanescentes
dos Quilombos, que demandam uma organização curricular em consonância com as
singularidades históricas, sociais, e culturais de cada Comunidade.
A Educação Escolar Quilombola é desenvolvida em unidades educacionais inscritas em suas terras e cultura, requerendo pedagogia própria em respeito à especificidade étnico-cultural de cada comunidade e formação específica de seu quadro docente, observados os princípios constitucionais, a base nacional comum e os princípios que orientam a Educação Básica brasileira. Na estruturação e no funcionamento das escolas quilombolas, deve ser reconhecida e valorizada sua diversidade cultural (BRASIL, 2012, p. 1)
Nesse sentido, a Educação Escolar Quilombola se constitui numa ação
afirmativa visando quebrar o amuleto das injustiças históricas, de intervir e dissolver
as marcas colonizadoras imbricadas nos saberes escolares, e, sobretudo, vislumbrar
a possibilidade de imprimir uma carga de reparação cultural e material à população
negra que arrasta uma situação de desvantagem social histórica.
De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar
Quilombola na Educação Básica:
[...] o ponto de partida para a conquista da autonomia pela instituição educacional tem por base a construção da identidade de cada escola, cuja manifestação se expressa no seu Projeto Pedagógico e no regimento escolar próprio, enquanto manifestação de seu ideal de educação e que permite uma nova e democrática ordenação pedagógica das relações escolares. O projeto político-pedagógico deve, pois, ser assumido pela comunidade educativa, ao mesmo tempo, como sua força indutora do processo participativo na instituição e como um dos instrumentos de conciliação das diferenças, de busca da construção de responsabilidade compartilhada por todos os membros integrantes da comunidade escolar, sujeitos históricos concretos, situados num cenário geopolítico preenchido por situações cotidianas desafiantes (BRASIL, 2012).
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Assim, considerando tais situações, residem a justificativa e a importância das
Diretrizes Nacionais para Educação a Escolar Quilombola e da Lei 10.639/003, como
uma ação afirmativa que busca efeitos práticos na vida dos sujeitos com o objetivo
central de propiciar condições efetivas para que as situações de desvantagem sejam
superadas e eliminadas.
O artigo 27 da Resolução nº 4/2010, que define as Diretrizes Curriculares
Nacionais Gerais para a Educação Básica, indica que a cada etapa da educação
básica pode corresponder mais de uma modalidade.
Na seção VII que a educação escolar quilombola é definida, conforme
descrição do art. 41:
Art. 41. A Educação Escolar Quilombola é desenvolvida em unidades educacionais inscritas em suas terras e cultura, requerendo pedagogia própria em respeito à especificidade étnico-cultural de cada comunidade e formação específica de seu quadro docente, observados os princípios constitucionais, a base nacional comum e os princípios que orientam a Educação Básica brasileira. Parágrafo único. Na estruturação e no funcionamento das escolas quilombolas, bem como nas demais, deve ser reconhecida e valorizada a diversidade cultural (BRASIL, 2010a).
De acordo com a Resolução CEB/CNE nº 08/2012, para a efetivação da
educação escolar quilombola é necessário:
[...] pedagogia própria em respeito à especificidade étnico-cultural de cada comunidade e formação específica de seu quadro docente, observados os princípios constitucionais, a base nacional comum e os princípios que orientam a Educação Básica brasileira. Na estruturação e no funcionamento das escolas quilombolas, deve ser reconhecida e valorizada a diversidade cultural (BRASIL, 2012).
Nessa perspectiva é do entendimento deste artigo de que a Educação Escolar
Quilombola se constitui numa política de ação afirmativa, no sentido atribuído por
Santos (1999, p. 147-157), de eliminar desigualdades historicamente acumuladas,
garantindo a igualdade de oportunidade e tratamento, bem como de compensar
perdas provocadas pela discriminação e marginalização, decorrentes de motivos
raciais, étnicos, [...] e outros. Portanto, as ações afirmativas visam combater os efeitos
acumulados em virtude das discriminações ocorridas no passado (SANTOS, 1999, p.
147- 157).
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A Escola Quilombola, que convive com alunos negros quilombolas, mas
também com alunos de outros pertencimentos étnicos, pode ser compreendida a partir
da perspectiva multicultural de Mclaren (2000), ou seja, que as,
[...] identidades conseguem fazer soar suas vozes, em uma interação dialógica com a condição do outro, exigindo disputa aberta nas estruturas acordadas e utilizando uma forma crítica de contraponto, para prevenir que a animosidade ferva e transborde para violência. Nessa perspectiva, trata-se de repensar o currículo tendo como mote a visibilidade e reconhecimento das especificidades históricas, sociais e culturais das CRQs. No entanto, contextualizando a diversidade étnico-cultural e as marcas históricas e estruturais das desigualdades socioeconômicas, raciais e educacionais que, de forma perversa e impositiva, estabelecem os espaços por onde cada sujeito deve circular.
Ainda segundo Mclaren (1997, p. 124), “[...] a diversidade deve ser firmada
dentro de uma política de crítica e compromisso com a justiça social”.
A construção de uma política específica de educação voltada às comunidades
remanescentes de quilombos é uma maneira de reconhecer e compensar no âmbito
educacional o absoluto ocultamento e a invisibilidade histórica de um grupo étnico
excluído da pauta dos projetos educacionais nacionais.
Conforme Silvério (2002, p. 98), Embora várias investigações tenham detectado os fatores que estruturam as desigualdades raciais, os velhos argumentos que procuram nos convencer da não necessidade ou da ineficácia de políticas públicas para grupos específicos retornam com novas roupagens. Assim, aparentemente, o problema é que, no Brasil, não se assume que as desigualdades sociais têm um fundamento racial, que influi de maneira decisiva nas variações encontradas nos indicadores relativos à renda, à educação e à saúde da população brasileira.
A proposição dessa política afirmativa não pode prescindir do reconhecimento
da diversidade étnico-cultural que compõe a nação brasileira. Reconhecer o
amálgama da diversidade étnico-cultural, que no Brasil está feito e é indissolúvel, não
significa utilizá-lo como tapete para esconder os que foram/são desiguais na
diversidade.
Conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar
Quilombola na Educação Básica:
É imprescindível considerar que a garantia da Educação Escolar Quilombola como um direito das comunidades quilombolas rurais e urbanas vai além do acesso à educação escolar. Significa a construção de um projeto de educação e de formação profissional que inclua: a participação das comunidades quilombolas na definição do projeto político-pedagógico e na gestão escolar; a consideração de suas estruturas sociais, suas práticas socioculturais e religiosas, um currículo aberto e democrático que articule e
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considere as suas formas de produção de conhecimento; a construção de metodologias de aprendizagem adequadas às realidades socioculturais das comunidades; a produção de material didático-pedagógico contextualizado, atualizado e adequado; a alimentação que respeite a cultura alimentar das comunidades; a infraestrutura escolar adequada e em diálogo com as realidades regionais e locais; o transporte escolar de qualidade; a formação específica dos professores quilombolas, em serviço e, quando for o caso, concomitante à sua escolarização; a inserção da realidade sociocultural e econômica das comunidades quilombolas nos processos de formação inicial e continuada de docentes quilombolas e não quilombolas que atuarão ou receberão estudantes dessas comunidades na educação (BRASIL, 2012).
É importante que educadores estimulem seus alunos a reconhecerem a
legitimidade dos diferentes saberes presentes na sociedade e perceberem como cada
grupo sociorracial contribuiu para a formação da identidade cultural do país. Diante
de uma população escolar educacional multirracial, como a brasileira, mostram-se
imprescindíveis novas práticas didático-pedagógicas que ressignifiquem os conteúdos
curriculares e as atividades de sala de aula, por meio de recursos diferenciados de
ensino, como os presentes nas comunidades quilombolas e quase sempre não
apropriados por educadores e educadoras como alternativas didático-pedagógicas.
O multiculturalismo se refere a estudos voltados para as diferentes culturas
espalhadas nos diversos lugares do mundo, objetivando a partir da aprendizagem a
importância de cada cultura a fim de evitar os conflitos sociais. Também pode ser
voltado à política, quando os grupos como negros, índios, mulheres dentre outros
reivindicam perante as autoridades políticas seus direitos e deveres como cidadãos.
Assim, o professor deve ser um sujeito reflexivo que preserve a preocupação
com os aspectos políticos, sociais e culturais em que se insere sua pratica, levando
em conta todos os silêncios e discriminações que se manifestam na sala de aula, bem
como amplie o espaço de discussão de sua atuação.
No campo da educação, o multiculturalismo também tem assumido várias
formas e modelos, gerando assim molduras teóricas para pensar a educação, dentre
tais modelos, podemos destacar os seguintes: Educação compensatória, cujo objetivo
aparece explícito no próprio nome, compensar déficits das culturas minoritárias. Estes
podem referir-se às mais variadas formas de leitura e escrita, mas principalmente,
com relação à língua do grupo majoritário.
Hermenêutica interpretativa, este modelo educativo propõe uma reforma na
estrutura social e educativa, porém não chega a atingir grandes transformações nas
estruturas da sociedade. No entanto, não deixa de oferecer suas contribuições, como
por exemplo, o fato de os professores serem conscientes da realidade multicultural e
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poderem estimular seus alunos a refletir sobre atitudes e práticas discriminatórias
produzindo, assim, algum tipo de mudança. Já o modelo Crítico ou Sócio Político,
evidencia a preocupação não somente dos professores, mas também dos alunos no
sentido de modificar a situação social e cultural, bem como os aspectos ideológicos
que provocam a discriminação racial. Este modelo aceita os conflitos que surgem da
interação humana, como elemento motivador de transformações (Rebolledo, 2009).
Observa-se que o multiculturalismo e a educação estão intimamente ligados,
porque ao mesmo tempo em que a escola ensina as pluralidades culturais ela não
pode segregar os que não fazem parte daquele padrão aceitável pelo seu sistema
educacional, o que se faz necessário que o professor tenha responsabilidades que
vão desde o processo ensino-aprendizagem à formação do sujeito consciente que se
coloca à frente dos problemas do seu tempo, se socializa, se compromete com o outro
e com o meio em que vive. (Freire, 2006).
Assim, a Escola para todos é uma escola inclusiva, desta forma torna-se: Uma
ruptura com os valores da escola tradicional. Rompe com o conceito de um
desenvolvimento curricular único, com o de aluno padrão e estandardizado, de
aprendizagem como transmissão, de escola como estrutura de reprodução
(Rodrigues, Krebs & Freitas, 2005, p. 60).
Embora a legislação seja clara no sentido de se assegurar uma educação que
respeite a diversidade cultural, no Referencial Curricular do Estado de Rondônia traz
a educação quilombola de forma muito superficial que não atende as peculiaridades
multiculturais das comunidades, pois o atendimento ocorre de forma fragmentada, não
levando em consideração o contexto sociocultural dos alunos, uma vez que o currículo
é centralizado, não flexível e fechado. “O atendimento educacional a essas
Comunidades é realizado pela Secretaria Estadual de Educação na modalidade de
Educação de Jovens e Adultos com cursos Telensino e Modular, e Exames Gerais”
(Referencial Curricular de Rondônia, Ensino Médio, 2013, p. 194). Evidenciando
dessa forma que não se tem garantido aos alunos uma educação diferenciada pois
vem utilizando o mesmo currículo das escolas regulares, o que implica a perca da
identidade as referidas comunidades.
Assim, é premente a necessidade de se repensar quanto a importância de se
trabalhar a parte diversificada do currículo valorizando a história e a cultura do povo
quilombola.
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Há de se ressaltar que não se trata de visualizar a Educação Escolar
Quilombola como uma “tábua de salvação” dos alunos quilombolas, e, sim, como uma
proposta de tratamento pedagógico e estrutural específica, visando precipuamente
corrigir desigualdades histórico-sociais no âmbito educacional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A educação é um instrumento privilegiado para formar cidadãos capazes de
conhecer e compreender, para saber discernir e, se necessário, mudar a sociedade
em que vivem. É através da educação que podemos reconhecer que vivemos em um
país formado de povos com culturas e cores diferenciadas onde atentar para a
composição multicultural do povo brasileiro é condição essencial quando se tem por
objetivo formar alunos e professores para o exercício da cidadania.
No cenário educacional, o Brasil reconhece a necessidade absolutamente
contemporânea, de elaborar uma política pública de educação escolar direcionada às
Comunidades Remanescentes dos Quilombos – CRQs, com objetivo de superar o
abismo da exclusão educacional que marca a vida de cada quilombola.
No que diz respeito a Educação Escolar Quilombola é uma modalidade de
ensino recente no âmbito da Educação Básica, visto que, a Resolução Nº 08 de
20 de novembro de 2012 define as Diretrizes Curriculares Nacionais para
Educação Escolar Quilombola na Educação Básica, portanto, trata-se de uma
política pública em construção, de uma política pública cujo movimento é de
afirmação e valorização de saberes históricos e culturais secularmente ausentes
no currículo escolar.
Conforme Mclaren, A reforma curricular precisa reconhecer a importância de
espaços de encorajamento para multiplicidade de vozes em nossas salas de aula e
de criar uma pedagogia dialógica na qual as pessoas vejam a si e aos outros como
sujeitos e não como objetos. Quando isso ocorre, os estudantes tendem a participar
da história, em vez de tornarem-se suas vítimas (MCLAREN, 1997, p. 145).
É necessário considerar que garantir uma política pública afirmativa a um
grupo étnico cujas marcas das desigualdades históricas e estruturais estão
estampadas nos lugares onde vivem não depende somente ou exclusivamente dos
dispositivos legais e formais, pois é na dinâmica social, nos embates travados no
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campo político e no próprio cotidiano que os preceitos legais tendem a ser legitimados
ou não.
Assim, a diversidade étnico-cultural deve ser incorporada ao currículo de
maneira contextualizada. É necessário mostrar que no conjunto da diversidade
existem vozes historicamente silenciadas, ausentes, quando não deformadas e
estereotipadas na intenção de anestesiar suas possibilidades de reação. Nesse caso,
reconhecer os estudantes quilombolas e as diferenças que os constituem é romper
com aquele modelo curricular pautado na hierarquização de povos e culturas e na
escolha de um grupo étnico como referencial de beleza, inteligência, enfim, com
características desejáveis da perspectiva do grupo hegemônico.
Observa-se que o cenário da Educação Escolar Quilombola abriga a
diversidade sociocultural e étnica brasileira, que deve ser manejada da perspectiva do
reconhecimento e do respeito dos diferentes indivíduos, alguns estabelecidos e outros
que foram/são social e historicamente excluídos e despossuídos de direitos básicos à
cidadania, mas, a despeito das situações de desigualdade e exclusão são
protagonistas de suas batalhas cotidianas pela sobrevivência. Como entende Souza
Santos (1996, p. 62), “temos o direito a ser iguais, quando a diferença nos inferioriza,
temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”.
Portanto, faz-se necessário que professores e gestores da escola
compreendam os sentidos dos elementos culturais para a vida das comunidades
quilombolas para que, a partir daí, compreendam o papel da escola, do currículo, dos
materiais didáticos utilizados e das atividades propostas em sala de aula no
fortalecimento da identidade sociocultural dos alunos.
Dessa forma, tanto a formação inicial quanto a formação continuada de
professores em serviço são pilares estruturantes para a implementação da educação
quilombola como modalidade de ensino, juntamente com a elaboração de material
didático que atenda às demandas quilombolas. Para isso, urge mais esforços nas
esferas municipal, estadual e federal.
Não temos dúvida de que somente a partir de ações coletivas e intencionais
será possível construir um projeto de educação capaz de superar a visão eurocêntrica
e
homogeneizadora da diversidade cultural, que atenda aos princípios de uma
educação para a igualdade racial e cumpra as diretrizes estabelecidas na Resolução
CEB/CNE nº 08/2012 (BRASIL, 2012b).
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É importante lembrar que ações afirmativas são importantes para a garantia
de uma sociedade democrática o que se faz necessário superar o baixo preparo de
gestores no trato dos problemas sociais brasileiros e, em especial, aqueles
relacionados com os chamados excluídos sociais para que a equidade racial esteja
de fato corporificada em nossa sociedade, em especial na escola que deve respeitar
a multiculturalidade de nossos alunos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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