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QUE “NEGRO” É ESSE NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS?
UMA ANÁLISE SOBRE O JEREMIAS DE MAURÍCIO DE SOUSA
Elbert de Oliveira Agostinho
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-graduação em
Relações Étnico-raciais do Centro
Federal de Educação Tecnológica
Celso Suckow da Fonseca,
CEFET/RJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção
do título de Mestre.
Orientador:
Prof. Dr. Alexandre de Carvalho Castro
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2017
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QUE “NEGRO” É ESSE NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS?
UMA ANÁLISE SOBRE O JEREMIAS DE MAURÍCIO DE SOUSA
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Relações
Étnico-raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca,
CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre
Elbert de Oliveira Agostinho
Banca Examinadora:
________________________________________________________
Presidente, Professor Dr. Alexandre de Carvalho Castro (CEFET-RJ)
________________________________________________________
Professora Dra. Maria Cristina Giorgi (CEFET-RJ)
_______________________________________________________
Professora Dra. Ana Paula Alves Ribeiro (UERJ)
SUPLENTES
________________________________________________________
Professor Dr. Fábio Sampaio de Almeida (CEFET-RJ)
_________________________________________________________
Professora Dra. Marcele Linhares Viana (UFRJ)
‘
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2017
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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do CEFET/RJ
A275 Agostinho, Elbert de Oliveira Que “negro” é esse nas histórias em quadrinhos? : uma
análise sobre o Jeremias de Maurício de Sousa / Elbert de Oliveira Agostinho.—2017.
184f. : il. (algumas color.) ; enc. Dissertação (Mestrado) Centro Federal de Educação
Tecnológica Celso Suckow da Fonseca , 2017. Bibliografia : f. 180-184 Orientador : Alexandre de Carvalho Castro 1. Negros – identidade racial. 2. Histórias em quadrinhos. 3.
Jeremias (Personagem fictício). 4. Dialogismo (Análise literária). 5.
Bakhtin, M. M. (Mikhail Mikhailovitch), 1895-1975. I. Castro, Alexandre de Carvalho (Orient.). II. Título.
CDD 305.896081
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AGRADECIMENTOS
A construção de todo o caminho que se conclui com a finalização da dissertação, é um
momento no qual esbarramos com muitas pessoas, existem as que de alguma forma nos
presenteiam com novas referências bibliográficas, e as que se tornam importantes por um
abraço, ou um aperto de mão. Então, seria elementar (como diria Sherlock Holmes)
compreender que esse momento de agradecimento, apresenta-se como uma prática um
tanto quanto injusta, já que as poucas palavras apresentadas aqui não serão suficientes
para contemplar todos os que de alguma maneira contribuíram para este trabalho. Mas
ainda sim, apresenta-se aqui uma tentativa.
Inicialmente desejo agradecer a Deus, por ampliar minha intelectualidade, e ouvir minhas
orações nos momentos que pareciam impossíveis sonhar com a possibilidade de estar no
mestrado.
Agradeço por ter me dado forças, e me fazer vislumbrar caminhos que vão além da
graduação.
Agradeço a meus pais. Obrigado Mãe por tornar-se o exemplo acadêmico no qual me
inspirei desde os momentos em que fazia trabalhos da faculdade e corrigia provas no
horário em que todos dormiam, você nunca desistiu, e de maneira nenhuma eu faria o
contrário. Obrigado Pai, por me ensinar a ser exemplo de homem, e por me chamar de
"mestre" desde o momento em que comentei que consegui entrar no curso de mestrado,
saiba que o conhecimento que pude hackerar de você não está em nenhum livro.
Agradeço a minha esposa, Vivian Ramos Santos Agostinho, por dividir comigo a jornada
do herói, e enfrentar de mãos dadas os possíveis inimigos, compreendendo os momentos
em que era necessário me colocar afastado, enclausurado nas cavernas epistemológicas,
onde nada se ouve, apenas se escreve. Saiba que você é minha Heroína.
Agradeço também, a alguns "sacerdotes do saber", que me apresentaram ferramentas para
cavar mais fundo, e pensar e repensar práticas de pesquisa. Ao professor Alexander
Martins Viana, meu muito obrigado, por ser o primeiro a me ouvir dizer: "quero estudar
a representação do negro nos quadrinhos" e me propor o primeiro repertório bibliográfico,
me levando a ter mais sede sobre os estudos culturais e a questão do negro na sociedade.
A professora Ana Paula Ribeiro, que me fez refletir sobre a identidade negra nas
narrativas cinematográficas, e participou de todo o processo de pesquisa, indicando
possíveis caminhos, e questionando possíveis equívocos conceituais deste aspirante a
escritor. A professora Alyxandra Gomes por conversar comigo diretamente da UFBA, e
discutir sobre representação e representatividade negra, sempre elucidando: “Precisamos
de mais Mestres e Doutores Negros”. A professora Cristina Giorgi, que chegou de
repente, como um personagem que daria um tom a trama, levando assim a história a um
clímax, obrigado por assistir minhas apresentações em eventos e congressos, por se
disfarçar de coorientadora, e ainda sim manter sua identidade secreta. Agradeço ao
professor Alexandre de Carvalho Castro, meu orientador, em toda minha trajetória de
vida conheci mestres fictícios, como o Mestre Yoda (Star Wars), Mestre dos Magos
(Caverna do Dragão), Mestre Kami (Dragon Ball Z) e o Mestre Ancião (Cavaleiros do
Zodíaco), mas não pude me aproximar de nenhum deles, você Alexandre Castro,
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realmente reorganizou as possibilidades na qual eu pudesse caminhar, me levando ao
conhecimento do Dialogismo, conceito no qual eu desenvolvi minha dissertação, a partir
de suas sugestões, pude compreender a importância de aprimorar e ter domínio das
questões acerca de minha pesquisa, meu muito obrigado por suas orientações acadêmicas,
e seus conselhos sobre a vida. Saiba, como enunciava em todos os e-mails " Você é meu
Mestre". Agradeço também a todos os amigos que me acompanharam nessa trajetória,
aos que conheci no PPRER, e aos que já faziam parte de minha vida. Agradeço a minha
diretora Silvia Meneses por me apoiar em todos os sentidos, e me colocar como um
exemplo para os outros professores da escola Tabernáculo Educacional. E em especial
agradeço a meus alunos, todos vocês são importantes, vocês são meus super-heróis dos
quadrinhos. Então, "se grandes poderes trazem grandes responsabilidades", me torno
responsável aqui por todo conhecimento que adquiri nesta jornada, e mais uma vez meu
muito obrigado.
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RESUMO
Este trabalho tem como objetivo iluminar práticas discursivas que aludem às identidades
negras, no Brasil, tendo como ponto de observação o personagem negro Jeremias criado
por Maurício de Sousa na década de 1960, e presente nas narrativas atuais da Turma da
Mônica. A pesquisa propõe uma abordagem investigativa, observando narrativas nas
quais o personagem aparece de forma mais efetiva, verificando que o personagem negro
de Maurício de Sousa oscilou entre posições de coadjuvante, figurante, e protagonista
temporário, sem assumir uma posição explícita e efetiva de denúncia do racismo e da
promoção da igualdade racial.
Palavras-chave: Bakhtin; Dialogismo; Relações Étnico-raciais; História em Quadrinhos;
Indústria Cultural
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ABSTRACT
This work aims to illuminate discursive practices that allude to black identities in Brazil,
having as a point of observation the black character Jeremias created by Mauricio de
Sousa in the 1960s, and present in the current narratives of the Monica's Gang. The
research proposes an investigative approach, observing narratives in which the character
appeared more effectively, verifying that the black personage of Mauricio de Sousa
oscillated between positions of assistant and temporary protagonist, without assuming an
explicit and effective position of denouncing the Racism and the promotion of racial
equality.
Keywords: Bakhtin; Dialogism; Ethnic-racial relations; Comics; Cultural Industry
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Jeremias, candidato a presidente do clubinho da turma.
Revista Cebolinha. São Paulo: Panini, n°30,jun. 2009. (p.58)
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SUMÁRIO
Uma Dissertação em Quadrinhos.................................................................9
Introdução....................................................................................................11
Recordatório................................................................................................14
1. Referencial Teórico e Metodologia de Estudo...........................................18
1.1 Análise Bakhtiniana...............................................................................21
1.2 O Conceito de Indústria Cultural.........................................................26
1.3 O Desenvolvimento Histórico dos Syndicates......................................29
2. O Cenário Brasileiro.....................................................................................36
2.1 A produção Cultural de Maurício de Sousa.........................................41
2.2 Maurício de Sousa Produções (Ltda)....................................................46
3. Periodização – Maurício de Sousa Produções............................................49
3.1 Era dos Esboços (1947- 1961) ................................................................63
3.2 Período Pré-Turma (1961 – 1970) .........................................................76
3.3 Período Turma (1970 – 2008) ................................................................90
3.4 Período Pós-Turma (2008 – 2016) .......................................................129
4. Conclusão......................................................................................................176
5. Referências Bibliográficas...........................................................................180
9
Uma
Dissertação
em
Quadrinhos
10
11
Introdução
Os estudos relacionados a construção, inserção e manutenção da identidade negra
sempre me instigaram. Primeiramente porque eu me compreendo como negro, e a
maneira como eram construídos os diálogos, os personagens, e os papéis que estes
ocupavam na narrativa televisiva, cinematográfica, teatral e até nas histórias em
quadrinhos me causavam incômodo. Meus questionamentos giravam em torno da
reprodução massiva e posições específicas em que o personagem negro deveria ocupar,
ou seja, eram perceptíveis mecanismos comunicacionais de estereotipagem. Papeis
subalternos e práticas racistas, recortes pontuais direcionados a identidade negra me
levaram a possíveis investigações, tendo como objetivo compreender os motivos de tais
repertórios culturais, e suas problemáticas em relação as questões etnicoraciais.
A partir destas perspectivas iniciais comecei a pesquisar de maneira mais ampla
tais questões, colecionando bibliografias que discutissem mídia e racismo, os objetivos
dos estereótipos, o papel da imagem, do discurso e da representação, ou seja, um arsenal
particular que me permitisse pensar sobre a posição do negro nas narrativas midiáticas.
Foi possível observar que os estudos se debruçavam principalmente pelas questões
televisivas, cinematográficas e teatrais.
Ao procurar pesquisas sobre negros e histórias em quadrinhos percebi algumas
lacunas, então, reorganizei os conceitos, até então absorvidos, e me permiti discutir sobre
aspectos representativos da identidade negra, tendo como ponto de observação as
histórias em quadrinhos. Propondo diálogos entre as posições que os personagens negros
são articulados e as leituras de histórias em quadrinhos, tive contato com a obra “O Gênio
e as Rosas (2010)”, uma narrativa construída por Maurício de Sousa e Paulo Coelho, que
em uma história intitulada “Conversando com o Mal”, a figura maligna era representada
por um personagem negro que reunia uma série de características que fazem parte do
imaginário construído em torno do negro, tal leitura me levou a uma abordagem
investigativa tendo como referência as narrativas da Turma da Mônica.
Tendo as revistas produzidas pela Maurício de Sousa Produções como
bibliografia, foi possível identificar dois personagens negros (Pelezinho e Ronaldinho
Gaúcho), entretanto, optou-se por questionar tais protagonismos, pois, esses personagens
foram criados em contextos específicos para ganhar mercados. Logo, ainda no processo
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de pesquisa, me deparei com Jeremias, personagem construído na década de 1960, e ainda
presente nas narrativas atuais da Turma da Mônica.
Iniciei, então, uma espécie de inquérito sobre esse personagem, verificando seu
status não fixo, pois, o personagem Jeremias flutua entre protagonismos temporários,
coadjuvantes, figurantes. Localizando suas posições, e verificando as relações dialógicas
entre as identidades negras no Brasil, não esquecendo de averiguar o papel da indústria
cultural neste processo.
Inicialmente foi possível notar que no decorrer dos cinquenta e seis anos de
existência do personagem, sua palheta de cor originalmente pintada de nanquim, foi
adquirindo um tom marrom, e que o personagem era deslocado para narrativas que tinham
o seguinte objetivo: Precisa-se de um negro.
Então, observou-se que Jeremias tinha posição cativa em narrativas sobre a
escravidão do Brasil e cenários africanos, além dessas histórias, sua presença era
esporádica, quase inexistente. Uma peça que representava a diversidade dentro de um
grupo de histórias em quadrinhos conhecida em toda a sociedade brasileira, e distribuída
em alguns países do mundo. Logo, existia um negro nas histórias da Turma da Mônica,
entretanto, tal dado não apresenta-se como suficiente.
Em suma, a abordagem que se constitui tal trabalho apresenta-se como uma
proposta de desvendar as representações imagéticas desse personagem, levando em
consideração o aspecto discursivo das histórias em quadrinhos, revelando assim práticas
de manutenção do papel do negro na mídia brasileira, evidenciando todo um debate ligado
a maneira que a indústria cultural condiciona práticas de estereotipagem, valorizando a
importância de se rediscutir o cenário em que são apresentadas as relações etnicoraciais
e seus dialogismos no cenário sócio-cultural brasileiro. Ou seja, diante de todos estes
apontamentos, configura-se o objetivo desta dissertação: analisar as relações dialógicas
implicadas no personagem Jeremias, de Maurício de Souza Produções.
Sendo assim, os capítulos a seguir terão a seguinte estrutura. No capítulo 1 serão
apresentados o Referencial Teórico e a Metodologia de Estudo, abordando as
possibilidades de se problematizar as histórias em quadrinhos, levando em consideração
sua multiplicidade, observando também a construção de um arcabouço teórico pautado
em uma análise bakhtiniana, ou seja, uma análise sobre o dialogismo, propondo
intersecções com o conceito de Indústria Cultural, e a construção histórica dos Syndicates.
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No segundo capítulo haverá o detalhamento da construção do mercado editorial
brasileiro de quadrinhos, especificando o cenário no qual surgiram as primeiras revistas,
e a introdução de um jovem artista chamado Maurício de Sousa, culminando em um dos
maiores estúdios de histórias em quadrinhos da América Latina, a Maurício de Sousa
Produções, e toda sua produção cultural. No capítulo 3, a análise dialógica do personagem
Jeremias se constitui como abordagem principal, pois, apresenta-se uma investigação
sobre as diferentes posições que o personagem ocupa, oscilando entre protagonismos
específicos e modelos de estereotipagem, ou seja, evidencia-se como o negro é
apresentado nas narrativas construídas pela Maurício de Sousa Produções.
Vale lembrar, contudo, que alguns resultados parciais dessas pesquisas foram
apresentados em congressos1 e submetidos para publicação, como, por exemplo, o
capítulo “Gibi” do livro a ser publicado pela editora Ciranda Cultural, ainda em 2017.
1 Durante o processo de pesquisa foi possível apresentar fragmentos do trabalho em congresso como: Ser
Negra (IFB), CONINTER (UNB), ABRALIC (UERJ), JED (PUC-RJ), Torna-se Negro (Pedro II) e JIPP (CEFET-RJ).
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Recordatório
As Histórias em Quadrinhos além de seu aspecto textual e imagético apresentam
um recurso específico chamado Recordatório, que funciona como caixas de textos que
acompanham os quadrinhos. Os recordatórios servem para explicar, ou introduzir a
história, ou seja, funcionam como um texto que propõe uma contextualização, no intuito
de situar o leitor. Uma narração particular que pode acrescentar aspectos que não estão
nos desenhos, servindo como uma referência dentro das narrativas. Nesse sentido, ao
propor um trabalho sobre histórias em quadrinhos, optou-se por utilizar o recordatório na
tentativa de situar o leitor, ou seja, a partir deste momento, apresento todos os caminhos
percorridos para se chegar na construção deste trabalho.
Lembro de meu primeiro contato com a disciplina história ainda na quinta série
(hoje sexto ano), um professor de sobrenome Lisboa, era impossível esquecer a capital de
Portugal. As aulas pareciam histórias do meu avô, coisas que ninguém entendia, e não
davam atenção, talvez por ele apenas ditar as questões e encher o quadro de dever,
estamos falando da década de 1990, diálogo com alunos? Essa prática é um tanto quanto
contemporânea...
Depois das manhãs que aconteciam no universo escolar eu passava as tardes
aprendendo outras histórias, estas não estavam no livro didático, mas eu conseguia
lembrar exatamente o que tinha lido, ainda de maneira tacanha pensava: poxa, as aulas da
escola podiam ser com histórias em quadrinhos.
As narrativas foram se alterando, quando olhei a próxima página já estava no
ensino médio, os livros tornaram-se mais densos, e em alguns era possível ver tirinhas em
quadrinhos, que me impressionavam mais do que o texto, entretanto, me perguntava: por
que ao explicar os conteúdos o professor nunca fala das imagens? Eu imaginava que
existia algum potencial nelas... Mas quem eu era para questionar o saber oracular do
professor? Se eles ignoravam aquelas poucas tirinhas da Mafalda (Quino), é porque
realmente não deveriam ser problematizadas.
Apesar das escolhas duvidosas dos tais professores, tinha algo na disciplina de
História que me fascinava, não sabia se eram as guerras, revoltas, processos de
independência, mas, suspeitava que em alguns textos parecia que não estavam relatando
os fatos de maneira coerente. A curiosidade sempre acompanhou esse que vos escreve. E
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pairava pela minha cabeça a seguinte questão: Se um dia eu for professor... Acho que as
aulas podem ser diferentes.
Em 2004 tive contato com umas edições diferenciadas da DC Comics e da Marvel
Comics, conheci os universos alternativos, as leituras apresentavam a ideia de que não
existe apenas o espaço que conhecemos e estamos habituados, há um "infinito e além", a
narrativa me tomou, chacoalhou as ideias, principalmente por que eu estava em outro
universo. Nesse período fui abduzido pela graduação, que realmente parecia fora do meu
mundo, entretanto, escutei a frase de um professor que abalou minhas estruturas: "Tudo
que você aprendeu sobre história até agora é mentira".
O mundo parou, e iniciei minha jornada do Herói, composta por três momentos:
O chamado, a imersão e o retorno... E como um idealista pensei em alto e bom tom: "Eu
realmente quero me formar em História”.
Fui compreendendo a cada capítulo que "história" era um caminho que eu
precisava seguir, fui respondendo perguntas, a algumas dúvidas sobre processos
históricos que os livros que tinha lido até então não me davam respostas... Encontrei o
melhor superpoder de todos: A leitura. Tantas aventuras, mas um episódio em particular
me chamou atenção, em uma aula aparentemente inofensiva, aprendi sobre a imagem
como fonte histórica.
A partir desse momento, iniciou-se meu processo de imersão, leituras e mais
leituras no intuito de saciar minha sede de saber... Até um momento que considero o
estopim de um grande processo, exatamente quando descobri a seguinte informação: "As
histórias em quadrinhos são a 9ª arte”. Como assim? Quadrinhos tem esse título?
Quadrinhos são fontes? São imagens? São História? Sim! Histórias em Quadrinhos são
documentos históricos.
Ainda na graduação pensava nas possibilidades sobre quadrinhos de maneira
muito tímida. Então chegou o momento: "O retorno do Herói". Conclui minha saga,
coloquei meu diploma no bolso, e então passei a procurar livros que falassem sobre
histórias em quadrinhos. Compreendi algumas possibilidades de se lidar com esse tipo de
bibliografia, e já exercendo minha profissão, passei a levar as histórias em quadrinhos
para meus alunos.
A maneira de se trabalhar com os conteúdos de História se tornou mais dinâmica,
pois os alunos estavam exercendo a leitura, e tomando gosto por tal prática. Acreditando
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que a missão já estava completa, no sentido de alterar a forma de ensino dos conteúdos
de História, me vi em um sonho estranho, talvez uma viajem no tempo, seria possível?
Neste sonho, eu me deparava com todos os super-heróis e personagens dos quadrinhos
que eu conhecia, que tinha lido na infância e adolescência. Entretanto, havia um homem
que eu não conhecia, me parecia indiferente ao lugar, pois podia perceber nos personagens
um tom de ficção, entretanto, aquele homem não tinha uniforme, nem escudos ou
espadas... Então perguntei a um dos personagens: "Quem é aquele?" E a resposta veio de
imediato: Você não o conhece? Aquele é o Elbert, um dos maiores especialistas em
histórias em quadrinhos do Mundo.
Acordei eufórico, que sonho era aquele? Seria uma profecia? Passei semanas
tentando lembrar de cada detalhe daquele momento, até que percebi algo muito
interessante, eu era o único negro naquela cerimônia... Isso desencadeou um incômodo,
que se alastrou quando voltei a frequentar as bancas de jornal e não encontrava revistas
com super-heróis negros. Minha agonia só diminuiu quando encontrei um personagem
negro chamado Jeremias que dizia: Eu tenho um sonho. Seria o mesmo sonho que eu
tive? Passei a conversar com Jeremias, e perceber que ele já estava há um tempo nas
Histórias em Quadrinhos, e que apesar de muitos não lembrarem, ele está inserido nas
narrativas da Turma da Mônica.
As conversas que tive com Jeremias, que passou de um personagem a meu objeto
de estudo me fizeram refletir sobre a ausência da representação negra nas Histórias em
Quadrinhos.
No intuito de propor uma investigação sobre essa problemática, iniciei outra
caminhada, com o objetivo de compreender as relações dialógicas entre o personagem e
as diferentes décadas em que ele aparece. A aventura ainda está em curso, no caminho
percebi algumas situações que se repetem e posições que o personagem ocupa. Foi
possível notar a relevância de tal pesquisa. E tornou-se interessante compreender que
passei a produzir uma história, sou o sujeito, personagem de minha narrativa, que é
construída sem estereótipos em torno do negro.
Talvez esse seja o registro que deixarei para as futuras gerações... De repente
alguns desejam compreender o porquê de o personagem negro estar enclausurado em
espaços restritos... Essa história será publicada em breve, e acho que já tenho até título,
que tal: Que “negro” é esse nas Histórias em Quadrinhos?
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Referencial Teórico e Metodologia de Estudo
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1. Referencial Teórico e Metodologia de Estudo
O estudo das Histórias em Quadrinhos tem sido realizado de diferentes formas,
desde a compreensão de que HQs podem ser consideradas uma forma de literatura
(EISNER, 2013), até a concepção de que podem ser utilizadas como recurso pedagógico
(RAMOS, 2012), funcionando também como instrumento de análise de imagens (signo)
e texto (discurso), pois para se compreender os mecanismos comunicacionais de uma
história em quadrinhos torna-se necessário que se saiba ler os componentes sígnicos que
forjam a temperatura estética (CIRNE, 1975). Esta leitura propõe a funcionalidade de
uma mensagem que estimula (e coordena) uma infinidade de significados, e se coloca
portanto, como fonte de informação (ECO, 2004). Seria então, as Histórias em
Quadrinhos um tipo de leitura distinta, dotada de recursos próprios e exclusivos (MOYA;
D’ASSUNÇÃO, 2002).
Portanto, deve-se levar em consideração a multiplicidade de possibilidades de
análise das Histórias em Quadrinhos. De fato, do ponto de vista acadêmico, já foi
superada a tendência dos anos 1950 que considerava os quadrinhos como subarte ou
subliteratura. As HQs marcaram a história do século XX e, para chegar à forma que
conhecemos atualmente, acompanharam toda espécie de evolução gráfica, sofreram
muitas influências, mas forneceram, nas últimas décadas, subsídios para todos os meios
de comunicação e também para as artes (LUYTEN, 1984).
Além disso, por retratar hábitos, costumes e formas de consumo de uma dada
época, as HQs podem se configurar como uma fonte histórica, pois, “Onde o homem
passou, onde deixou qualquer marca da sua vida e da sua inteligência, aí está a história”
(Fustel de Coulanges, apud Le Goff,. 2003, p. 530). Nesse sentido, toda produção material
humana pode ser pesquisada em contextos mais amplos, evidenciando novas perspectivas
analíticas e possibilitando transformações na ótica tradicional de se lidar com documentos
(CARDOSO; MAUAD, 2011).
Alterar esse tipo de mecanismo de análise de fontes históricas significa a
substituição da tradicional narrativa de acontecimentos por uma história-problema,
19
questionando assim, a história das atividades humanas em seus diferentes cenários,
buscando novas respostas, tendo como referência diferentes epistemologias (BURKE,
1992) pois, com tudo o que, sendo do próprio homem, dele depende, lhe serve, o exprime,
torna significante a sua presença, atividade, gosto e maneira de ser (FEBVRE, 1985).
Tendo como referência as distintas possibilidades de se lidar com as Histórias em
Quadrinhos, neste trabalho pretendemos propor articulações discursivas entre os
conceitos de Dialogismos, Indústria Cultural, e Identidade Negra.
Como aporte teórico utilizaremos a análise bakhtiniana, optando pela abordagem
de identidade dialógica do personagem, pois identifica-se como adequada para analisar
as diferentes posições nas quais o personagem foi inserido desde sua criação até suas
representações contemporâneas, ou seja, os discursos surgem nas condições de um
convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido (BAKHTIN, 2011).
E verifica-se o diálogo entre a 9ª arte e as práticas culturais, pois, todos os diversos
campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem (idem, 2011). Nota-se
que, para que esse exercício seja feito de forma correta deve-se prestar atenção nas
transformações subjetivas e objetivas presentes no contexto sócio-cultural, verificando o
desenrolar de eventos que dialogam com as direções escolhidas nas construções de
roteiros e composições estéticas dos personagens nas histórias, ou seja, a utilização do
dialogismo de Bakhtin é fundamental para tal pesquisa.
Portanto, observar um personagem é investigar as realidades que se apresentam e
dão o tom de seu discurso, verificando tais reflexos e questionando possíveis
representações, desvendando os aspectos ideológicos e suas significações, logo, o
personagem é um signo, pois, sem signos não existe ideologia (BAKHTIN, 2014).
Ao observar tais relações dialógicas presentes na Indústria Cultural,
evidenciaremos a questão ligada a lógica mercadológica destinada às HQs. Aspecto que
envolve uma análise sobre o papel dos Syndicates (apresentando as relações que se
articulam e propiciam os mecanismos de produção em massa das Histórias em
Quadrinhos) e um olhar sobre a lógica comercial que utiliza as HQs como produtos de
consumo almejando a obtenção de lucros. Pois essa é a base para a manutenção da
Indústria Cultural.
Em tal trabalho, pretende-se também, examinar a construção e representação das
identidades negras dentro dos quadrinhos, evidenciando o aspecto signico e sua
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representatividade, questionando como a presença dos personagens negros são
efetivamente configuradas, pois expõe valores, agendas culturais, políticas, expectativas,
nesse sentido, os aspectos da identidade cultural formam-se através do pertencimento a
uma cultura nacional, e com os processos de mudança as identidades podem ser
deslocadas (HALL, 2014).
Esses deslocamentos ocorrem também, dentro das histórias em quadrinhos, ou
seja, o personagem apresenta uma fluidez, sendo deslocado em diferentes contextos.
Entretanto, percebe-se a necessidade de questionar os espaços em que a identidade negra
é impressa dentro dos quadrinhos, pois, a identidade é relacional, e existem condições
específicas para que ela exista (WOODWARD, 2014).
A análise inicial sobre estas questões nos leva a percepção de que a identidade dos
personagens negros pode estar enclausuradas em uma objetividade esmagadora (FANON,
2008), ou seja, apesar de se compreender que as identidades se deslocam, observa-se a
manutenção dos espaços em que o personagem negro ocupa, sua construção baseia-se em
estereótipos que negligenciam o processo de representação identitária, ou seja, não está
de acordo com a ideia de assumir plenamente, com orgulho, a condição de negro, em
dizer, de cabeça erguida: sou negro (MUNANGA, 1988). Portanto, pretende-se destacar
os processos de efabulação e enclausuramento que se articulam em torno das construções
sobre a figura do negro (MBEMBE, 2014).
Tendo como base todos estes apontamentos, observaremos as HQs como
uma forma de leitura e lazer inserida na articulação existente no sistema capitalista, que
utiliza ferramentas próprias para produzir representações identitárias que apresentam
dialogismos com a identidade negra na sociedade brasileira e conduz as condições de
produção cultural provocando a manutenção dos mercados editoriais que produzem
histórias em quadrinhos
1.1 Análise Bakhtiniana
Na tentativa de compreender de maneira mais adequada as Histórias em Quadrinhos
e propor analises sobre a instrumentalização do personagem Jeremias, optou-se pelo
dialogismo bakhtiniano, ou seja, a compreensão das relações dialógicas que se conectam
21
no sentido de dar sentido à construção, inserção e manutenção do personagem nas
histórias em quadrinhos.
Tais narrativas refletem as condições especificas que culminaram na representação de
determinado personagem, e as direções que este toma dentro da história em quadrinhos,
neste caso, se ocorrem mudanças na trajetória histórica do personagem, ou seja, se de
alguma maneira sua identidade narrativa apresenta-se de maneira diferenciada de sua
construção inicial, isso baseia-se nas diferenças discursivas que são apresentadas no
personagem, em momentos distintos a identidade do personagem Jeremias dialoga com
questões específicas, alterando assim sua estética inicial, ou discursos. Nas palavras de
Bakhtin (2014):
Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como
todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao
contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é
exterior (BAKHTIN, 2014. p. 31).
Portanto, observar Jeremias é investigar as realidades que se apresentam e dão o tom
de seu discurso, verificando tais reflexos e questionando possíveis representações,
desvendando os aspectos ideológicos e suas significações, ou seja, o personagem é um
signo, pois, sem signos não existe ideologia (BAKHTIN, 2014).
Dentro de uma perspectiva histórica, não a como compreender as formas específicas
de utilização do personagem, sem compreender o universo social onde tal obra foi
produzida, no sentido de compreender de forma mais plausível as diferentes posições que
o personagem ocupa, produziu-se uma periodização, identificando seus pontos de
dialogismo, ou seja, as relações dialógicas que posicionam Jeremias na década de 1960,
são diferentes das que posicionam o mesmo personagem em 2016, situando assim as
narrativas no tempo, entre as relações dialógicas, o cenário social e a indústria cultural,
com suas atividades mecânicas de produzir cultura.
Ao utilizar Bakhtin, compreende-se as práticas discursivas racistas (ou não), nas
quais emergiram certos discursos, e que se constituem ao redor do personagem Jeremias.
Portanto, propõe-se uma pesquisa sobre a representação do negro, investigando seus
22
dialogismos, tal prática pretende evidenciar a construção, inserção e manutenção do
personagem ao longo de seus cinquenta e seis anos.
A partir de tal postura busca-se averiguar também, os instrumentos de produção, as
relações que se articulam para que em determinado momento o personagem apareça com
mais propriedade, e seu uso torna-se mais preponderante, levando este a ser
ressignificado, ou a perder suas nuances estereotipadas, pois o status de produto de
consumo do personagem faz com que este possa sofrer constantes transformações,
inclusive tornar-se um signo ideológico. Tal perspectiva, posiciona a dimensão ideológica
ligada ao personagem e os espaços que este frequenta. Bakhtin sinaliza: “O domínio do
ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali
onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico”. (BAKHTIN, 2011. p. 33).
Então, compreende-se que torna-se impossível estabelecer o sentido de uma dada
transformação, ou seja, das diferentes representações do personagem, sem considerar toda
a esfera ideológica no qual tais transformações foram produzidas. Pois, a partir de tais
representações é possível enxergar as transformações sociais, portanto, ao se
compreender que o personagem existe por um longo período histórico, é possível
compreendê-lo como indicador de diferentes momentos sociais.
Nesse sentido, ao propor uma pesquisa sobre “O Negro na turma da Mônica”, procura-
se encontrar o ignorado, o encoberto, verificando as condições em que as narrativas que
o personagem está presente foram construídas, ou seja, tomar como base Bakhtin, é
problematizar a estrutura da narrativa, questionar os discursos, observar que existem
relações dialógicas que interferem no cenário social, apresentando direções e espaços
onde o negro pode ou não estar. Portanto, a análise Bakhtiniana apresenta-se como uma
ferramenta fundamental para analisar o Jeremias, um personagem que faz parte de um
contexto social, apresentado nas histórias em quadrinhos, que devem ser compreendidas
como representações discursivas.
Nota-se então que as histórias em quadrinhos funcionam como objeto de discussões
ativas em forma de diálogos, através das narrativas é possível compreender as relações
dialógicas presentes em torno do personagem.
Então, cabe mencionar que o personagem se submete a influência dos sistemas
ideológicos estabelecidos, ele comunica, interage socialmente, funciona como um
discurso, ele responde a alguma coisa, refuta, confirma. Bakhtin (2014) comenta que a
23
situação e o auditório social obrigam o discurso, o direcionam, fazem com que ele se
amplie, ou seja, não se torne fixo, mas sim fruto das relações dialógicas. Nas palavras do
autor: “Só se pode falar de fórmulas específicas, de estereótipos no discurso da vida
cotidiana quando existem formas de vida em comum relativamente regularizadas,
reforçadas pelo uso e pelas circunstâncias” (BAKHTIN, 2014. p. 130)
Portanto, as HQ’s não podem ser compreendidas independentemente dos
conteúdos e valores ideológicos que elas se ligam, e o personagem, imerso nessas
narrativas deve ser compreendido da mesma forma. A construção da narrativa faz parte
de uma estrutura social, então, se perdermos de vista os elementos da situação, estaremos
tampouco aptos a compreender as circunstâncias que culminaram na construção da
narrativa e na representação do personagem, pois, sua significação é inseparável da
situação concreta em que se realiza. Para Bakhtin (2014):
A sociedade em transformação alarga-se para integrar o ser em transformação.
Nada pode permanecer estável nesse processo. É por isso que a significação,
elemento abstrato igual a si mesmo, é absorvida elo tema, e dilacerada por suas
condições vivas, para retomar enfim sob a forma de uma nova significação
com uma estabilidade em uma identidade igualmente provisórias. (Bakhtin,
2014. p. 141).
O personagem encontra-se então, com uma estabilidade provisória, aguardando
sua próxima utilização, pois, a partir do momento que a sociedade se transforma, este não
pode permanecer estável, pois é fruto de uma articulação social, faz parte do cenário.
Propõe-se então, novas significações, isso faz com que o personagem continue a existir,
o personagem continua funcionando como um discurso, ou seja, o discurso citado e o
contexto narrativo unem-se por relações dinâmicas, complexas e tensas. É impossível
compreender qualquer forma de discurso citado sem levá-las em conta (BAKHTIN,
2014).
A partir de Bakhtin, utilizando o dialogismo como arcabouço teórico,
problematiza-se a utilização dos instrumentos de produção, as relações que se articulam
para que em determinado momento o personagem apareça com mais propriedade, e seu
uso torna-se mais preponderante, levando este a ser ressignificado. E por que a observação
das relações dialógicas é tão pontual nesta pesquisa? Existe a partir de cada narrativa
24
presente no entrelace de cada quadrinho que compõe uma história a comunicação da vida
cotidiana, de modo particular, ou seja, do modo como o autor compreende a sociedade,
uma espécie de domínio específico, uma maneira de enxergar o cotidiano por tal criador,
tal relação pode ser ressignificada, se outro autor apropria-se do personagem, revelando
assim, outras possibilidades e apresentando novas dinâmicas, ou seja, a identidade é
dialógica, verifica-se assim que as formas discursivas situam-se de maneira singular em
diferentes indivíduos. Verifica-se então, a importância de tal epistemologia, a partir da
análise bakhtiniana, evidenciam-se, relações dialógicas, logo, em diferentes períodos
poderão ser atribuídos aos personagens valores sociais significativos.
Em suma, percebe-se que ao estudar um personagem presente em qualquer tipo
de mídia (inclusive nas histórias em quadrinhos), não se deve perder de vista a atividade
de interpretação socioideológica, não dissociando o personagem de possíveis fatores
sociais, não perdendo de vista a significação e sua representatividade, levando em conta
o caráter social do personagem e entendendo que este não é independente, pois, ao ignorar
tais fatores, não será possível compreender a realidade social no qual este foi constituído.
Ao ignorar tais fatores, nos pautaremos sobre uma interpretação errônea dos mecanismos
de produção onde este se insere. Deve-se então, levar em consideração a observação sobre
as articulações e situações sociais, evidenciando o valor cultural, reflexo de relações
dialógicas presentes em cada contexto especificamente.
Portanto, a identidade dialógica do personagem funciona como um registro,
apresenta as impressões do discurso presente no curso das relações dialógicas na
sociedade, manifestando-se como relevantes para a compreensão do cenário social em
que determinada narrativa funciona. A observação sobre os diálogos presentes na
estrutura narrativa das histórias em quadrinhos nos leva a percepção de que um dado
personagem, ou uma certa identidade transita de uma caracterização para outra. Leva-se
em consideração a prática de uma pesquisa específica sobre a funcionalidade da
identidade do personagem nas narrativas estudadas, um personagem negro e as
problemáticas ligadas a sua funcionalidade, como possibilidade de ruptura de um discurso
estabelecido, delimitando assim os espaços que o negro deve ocupar, favorecendo a
manutenção de práticas de invisibilização do negro latentes na sociedade brasileira. Nesse
sentido, procura-se aqui compreender os dialogismos em torno do personagem negro,
25
verificando as posições que o personagem ocupa, e questionando os discursos presentes
nas narrativas observando o papel da indústria cultural neste processo.
1.2 O Conceito de Indústria Cultural
A opção por Bakhtin traz em seu bojo a necessidade de situar os enunciados em
seu contexto sócio-histórico. Nesse sentido, os estudos sobre o conceito de Indústria
Cultural se apresentam como indispensáveis para a compreensão da articulação e
funcionamento das diferentes instituições que comercializam e produzem bens
simbólicos e culturais. É possível perceber a dinâmica de vinculação de arte com o
processo de mercantilização do que antes funcionava apenas como manifestação cultural,
portanto, a Indústria Cultural apresenta-se como dispositivo unívoco de produção de
mercados culturais, e nesse sentido, a mídia ligada aos tentáculos industriais age como
porta voz desta lógica que se espalha pelo cenário social, levando aos indivíduos a
sensação de felicidade pela obtenção de bens. Dentro desta perspectiva, os produtos
confeccionados pela Indústria Cultural apresentam-se como bons para o homem, e
adequados ao desenvolvimento das potencialidades e projetos humanos.
O aparecimento efetivo da Indústria Cultural inicia-se com os primeiros jornais
(COELHO, 2006). A invenção dos tipos móveis de imprensa, feita por Gutenberg no
século XV faz com que gradativamente apareça uma cultura de massa, a arte do consumo
ganha mais expressividade a partir do contato de produtos específicos, nas palavras de
Teixeira Coelho:
Produtos como o romance de folhetim – que destilava em episódios, e para
amplo público, uma arte fácil que se servia de esquemas simplificadores para
traçar um quadro da vida na época (mesma acusação hoje feita às novelas de
TV). Esse seria, sim, um produto típico da cultura de massa, uma vez que
ostentaria um outro traço caracterizador desta: o fato de não ser feito por
aqueles que o consumiam. (COELHO, 2006. p. 9)
Nota-se a partir deste trecho uma espécie de funcionalidade característica do
processo de industrialização da cultura. A cultura antes compreendida como uma
singularidade ligada a um tipo de festa organizada por um determinado povo, ou a uma
canção entoada por civilizações antigas passa a ser construída por uns e consumida por
26
outros. Compra-se e vende-se, capitaliza-se a arte na intenção de apresentar ao
consumidor algo que ele imagina que seja necessário.
A indústria cultural nutre a cultura de massa, e esta sente-se satisfeita, até que
deseje consumir mais. Coelho (2006) comenta que para se compreender essa estrutura
torna-se interessante observar dois processos específicos: A Coisificação e a Alienação.
Segundo o autor, a Indústria Cultural transforma tudo em coisa, e após a transformação a
tal “coisa” ganha preço, valor monetário, inclusive o homem faz parte deste jogo. E a
alienação funciona como instrumento na vida deste homem, que mesmo produzindo,
mesmo transformando coisas em produtos que serão consumidos, ele mesmo não pode
comprar o que produz.
A coisificação e a alienação funcionam em conjunto levando a produção de uma
cultura em série, que torna-se perecível, apenas uma peça para se usar ou simplesmente
deixar de usar. Existe dentro deste processo uma lógica própria, como por exemplo o fato
de um produto cultural considerado como de categoria inferior alterar sua significação e
status é uma questão de tempo. “É o caso do jazz, que saiu dos bordéis e favelas negras
para as plateias brancas dos teatros municipais da vida” (COELHO, 2006. p. 9)
Adorno e Horkheimer foram os primeiros a usar a expressão Indústria Cultural
ainda na década de 1940. Na abordagem destes autores, a Indústria Cultural
desempenhava as mesmas funções de um estado fascista no exercício de conseguir a
alienação do homem, processo esse onde o indivíduo é levado a não meditar sobre si
mesmo e sobre a totalidade que o circunda. “Na realidade, é por causa desse círculo de
manipulações e necessidades derivadas que a unidade do sistema torna-se cada vez mais
impermeável” (ADORNO, 2015. p.9). O fator alienante presente nesta equação faz com
que o indivíduo não perceba que o esquematismo do procedimento mostra-se no fato de
que os produtos mecanicamente diferenciados revelam-se no final das contas, como
sempre os mesmos. Adorno (2015) ainda comenta que: “A indústria cultural se
desenvolveu com a primazia dos efeitos, da performance tangível, do particular técnico
sobre a obra, que outrora trazia a ideia e com essa foi liquidada”. (ADORNO, 2015. p.14).
A falta de percepção do indivíduo sobre o mundo a sua volta tornou-se o grande
sucesso da lógica de empreendimento da Indústria Cultural, que fornecia artigos de
entretenimento dos quais os indivíduos necessitariam em seu tempo livre, e que seriam
consumidos por eles a partir de sua livre escolha, como sugere Rodrigo Duarte (2014):
27
De fato a Indústria Cultural nunca deixou de levar em consideração
necessidades afetivas (inclusive libidinais) latentes do seu público, fornecendo,
entretanto, mercadorias que atendessem a essa demanda sem colocar em risco
a ordem estabelecida. DUARTE, 2014.p. 29)
A lógica presente na Indústria Cultural oferece o produto fornecendo também a
chave de sua interpretação oficial não deixando lacunas para possíveis questionamentos
do indivíduo, um tipo de mensagem subversiva transmitida em um pacote aparentemente
inofensivo. A conclusão deste raciocínio é que o significado dos produtos culturais não é
inerente aos objetos em si, mas reside fora deles. Nas palavras de Muniz Sodré: “... O
produto define-se basicamente como “desejo”, isto é, como noção psíquica que compele
a consciência do sujeito na direção de um objeto”. (SODRÉ, 2010.p.101). E o autor
continua:
Na realidade são várias as “indústrias da cultura”, com diferentes graus de
penetração capitalista. Pode-se mesmo falar em “ramos” industriais (unidades
de produção especializadas) na medida em que os produtos audiovisuais, por
exemplo, são extensões de indústrias já existentes nos campos editoriais,
eletrônicos ou fotoquímicos. (SODRÉ, 2010.p.116-117)
Uma lógica própria, com uma linguagem visando a manipulação, a penetração
ideológica que funcionará como veículo de colonização e doutrinamento intelectual.
Segundo Dorfman (2010), cujo estudo abordou especificamente a questão das Hqs, “essa
tecnologia cultural vai desde a comunicação de massa e seus produtos até as
quinquilharias do turismo organizado (DORFMAN, 2010.p. 115). O autor ainda
especifica a construção social ligada ao processo de industrialização da cultura:
Em toda sociedade, em que uma classe social é dona dos meios de produzir a
vida, também essa mesma classe é proprietária do modo de produzir as ideias,
os sentimentos, as instituições; numa palavra, o sentido de mundo.
(DORFMAN, 2010.p. 154).
28
Nota-se através dessas ideias discutidas até aqui que a cultura transformou-se em
produto a ser consumido. A Industria Cultural domina e controla, age na consciência e
inconsciência daqueles aos quais se dirige e de cujo gosto ela procede (ADORNO, 2015).
Torna-se interessante salientar que o lazer não funciona apenas como simples
diversão ou entretenimento, pois, existe uma estrutura que constrói estratégias visando
um tipo de comportamento dócil e uma multidão domesticada através da exploração
sistemática de bens culturais. Entre as estratégias mercadológicas, sua produção é
introduzida como mercadoria e aliada ao espírito de concentração capitalista atingindo
assim, um cidadão passivo e conformista, que não percebe a transformação da arte em
expressão da racionalidade técnica e ignorando totalmente o status de lazer ou
simplesmente entretenimento.
O conceito de Indústria Cultural ainda deve ser compreendido como necessário
para as características e contradições fundamentais do que compreendemos como
sociedade contemporânea. E apresenta-se como fundamental para discutir sobre a mídia,
pois a ideia de produzir cultura está atrelada a produção de entretenimento visando a
manipulação e o consequente consumo da sociedade como um todo.
1.3 O desenvolvimento histórico dos Syndicates
O século XIX influenciou diretamente a noção do que seria de fato informação,
devido à grande evolução dos processos técnicos ocorreram alterações no paradigma de
comunicação. Nesse cenário é possível compreender o nascimento das chamadas
“Agências Noticiosas” (SILVA, 2002). Este é século em que a comunicação social
transforma-se em uma indústria, nota-se o tipo de potencial existente na informação e a
possibilidade de seu alcance. Surgem então, agências singulares que direcionam
informação a certos públicos, não informando apenas sobre assuntos políticos,
econômicos e sociais, mas, construindo conteúdos para alcançar mercados específicos.
A imprensa de opinião transforma-se em imprensa informativa, torna-se mais
acessível e começa a demonstrar uma nova postura. O grande nome deste novo processo
de difusão de informações é Charles – Louis Havas, que em 22 de outubro 1835 cria um
tipo de agência para divulgar informações, a Agence des Feuilles Politiques –
29
Correspondence Génerale, que ficou conhecida como Agence Havas (SILVA, 2002).
Charles Havas inicia essa agência com a criação de um pequeno negócio de venda de
notícias, essa tática de manutenção de venda e distribuição de informações transformou
Havas no dono de uma das mais importantes agências de notícias internacionais, a France
Presse. Nota-se que a comercialização de conteúdos (informações) foi pioneira de Havas,
que inicia a história das agências que vendem informações em todo mundo.
Um cenário semelhante também foi se desenvolvendo nos Estados Unidos, onde
agências com estruturas análogas eram chamadas de Syndicates, e igualmente voltavam
ao potencial mercadológico da informação, e a possibilidade de direcionar o conteúdo, o
que fizeram inicialmente com as notícias, e depois com as tirinhas em quadrinhos, nesse
sentido, é importante salientar que apesar do sucesso internacional dos Syndicates norte-
americanos, e a popularização do pioneirismo na comercialização de conteúdos , nota-se
que esse processo de produção dentro do mercado editorial, não pode ser visto como uma
exclusividade norte-americana. Entretanto, nos Estados Unidos os Syndicates
responsabilizavam-se por qualquer tipo de relação mercadológica ligada a possibilidade
de negociação de informações, e ainda trabalhavam protegendo os direitos autorais dos
artistas e o combatendo a concorrência.
É importante salientar portanto, que antes do surgimento das Hqs os Syndicates já
existiam como forma de distribuição de material jornalístico em geral, nesse sentido, a
lógica mercadológica já existia, entretanto, absorveu as histórias em quadrinhos tendo
como objetivo aumentar expressivamente as tiragens, ampliando a produção no intuito de
alcançar novos mercados consumidores. Segundo Iannone (1994): “Os Syndicates
surgiram por volta de 1840, para abastecer os jornais norte-americanos, geralmente de
pequeno porte e sem estrutura para produzir seus próprios artigos e materiais gráficos.”
(IANNONE, 1994, p. 44).
Os Syndicates apropriaram-se das tiras diárias e redimensionaram seu potencial,
compreendo a possibilidade lucrativa das histórias que eram publicadas, multiplicando
este tipo de produto cultural, criando assim uma estrutura para produção e reprodução das
Histórias em Quadrinhos.
Cleide Furlan (1984) ao propor um estudo sobre HQ e os Syndicates norte-
americanos nos alerta que para se compreender a construção e a importância dos
Syndicates nos EUA é necessário perceber que o primeiro passo para seu
30
desenvolvimento surge em virtude da concorrência entre dois grandes jornais e seus
proprietários. Ainda segundo a autora, o New York World e o Morning Journal, de Joseph
Pulitzer e William Randolph Hearst respectivamente, seriam as grandes duas potências
no mundo da comunicação estadunidense neste momento.
Pulitzer edita, em 1893, um suplemento dominical no New York World, com a
história “Down Hogan’s Alley”, desenhada por Richard Outcault. Em 1896,
realizam-se os primeiros testes de cor na camisa da personagem principal, que
passou então a ser conhecida como “ Yellow Kid” (“O garoto amarelo”).
“Down Hogan’s Alley” pode ser considerada uma predecessora do gênero de
HQ, pois utiliza-se do balão, além de, por sua natureza debochada e
sensacionalista, ter dado origem à expressão “imprensa amarela” nos EUA (no
Brasil, passou a chamar-se “imprensa marrom”).
Posteriormente, Richard Outcault e seu “Yellow Kid” passaram ao Morning
Journal, de Hearst. Em contrapartida, Pulitzer vem introduzir, em 1897, “Os
Sobrinhos do Capitão”, criada por Rudolph Dirks e que, pelo novo tipo de
linguagem e de expressão, será chamada de HQ. (FURLAN, Cleide. HQ e os
"syndicates" norte-americanos. In: LUYTEN, Sonia Bibe (org). História em
quadrinhos: leitura crítica. São Paulo: Edições Paulinas. 1984. p. 27.)
Furlan (1984), explica que no início as HQs eram humorísticas, daí surge o termo
Comics. Posteriormente todas as revistas que seguiam o mesmo modelo, a mesma
estrutura, foram chamadas de Comics, independente da linguagem ou do tipo de história
desenvolvida. Neste clima de disputa comercial e comunicacional em 1912 Hearst cria o
primeiro Syndicate, o International 28 News Service que, em 1914, deu origem ao King
Features Syndicate. Segundo Furlan (1985) “Alguns anos depois, surgiram o Chicago
Tribune Daily New Syndicate, o United Press International, além de outros de menor
porte”. (Furlan, 1985, p. 27). A autora ainda discute sobre a possível tradução do termo
Syndicate:
A palavra “Syndicate”, nos moldes norte-americanos, não encontra similar em
nosso contexto. Não se trata de um sindicato e ultrapassa as atribuições de uma
associação. Podemos tratá-lo como agência especializada em fornecer matérias
variadas, particularmente de entretenimento. (FURLAN, Cleide. HQ e os
31
"syndicates" norte-americanos. In: LUYTEN, Sonia Bibe (org). História em
quadrinhos: leitura crítica. São Paulo: Edições Paulinas. 1984.p.28).
Furlan (1985) e Iannone (1994) concordam que o termo mais adequado para se
compreender o que eram Syndicates na língua portuguesa seria “Agência”, Nota-se,
entretanto, que o conceito não deve ser simplificado. Trata-se então de uma espécie de
agência especializada em desenvolver tarefas específicas. Furlan (1985), explica:
Os “Syndicates”, além de possuir direitos sobre os trabalhos dos desenhistas
(direitos sobre a venda e a distribuição), funcionam como agência de
veiculação das histórias, preparando e emitindo milhares de matrizes a serem
vendidas não só nos EUA como também em outros países. São responsáveis
por alguns cuidados, ou seja, devem seguir um código de ética: as histórias não
devem ofender nenhum leitor; não devem conter palavrões explícitos, que
poderão ser substituídos por sinais convencionais; não devem conter sugestões
de imoralidade; devem evitar controvérsias quanto à religião, raça ou política;
devem evitar cenas de violência com mulheres, crianças e animais; não devem
incentivar o crime, que será sempre punido. (FURLAN, Cleide. HQ e os
"syndicates" norte-americanos. In: LUYTEN, Sonia Bibe (org). História em
quadrinhos: leitura crítica. São Paulo: Edições Paulinas. 1984.p.28).
Deve-se lembrar que a estrutura desenvolvida pelos Syndicates não foi construída
especificamente para as Histórias em Quadrinhos, a lógica funcionava inicialmente nos
jornais. Furlan (1984) comenta que essas “agências” começam a surgir por volta de 1840,
entretanto, neste momento, não possuem a mesma estrutura e dimensão que os Syndicates
que são estruturados em torno de 1912. Nesse sentido, toda a lógica que começa a ser
articulada por volta de 1840, e apresenta-se como extremamente mais eficaz e estruturada.
Por volta de 1912 foi direcionada posteriormente as tirinhas dominicais ou diárias que
eram veiculadas nos jornais, pois, este tipo de conteúdo estava se tornando popular, dentro
desta perspectiva, as HQs tornaram-se mais um elemento dentro desta percepção
lucrativa, ou seja, para a estrutura dos Syndicates as Histórias em Quadrinhos tornam-se
mais um produto com potencial de venda, como complementa Vergueiro (2003):
32
O componente econômico da equação envolvida na exportação de histórias em
quadrinhos que enfocam o ambiente familiar é facilmente compreensível:
como grandes distribuidores de quadrinhos, os lucros dos Syndicates eram
estabelecidos em proporção direta aos jornais que publicassem cada tira ou
página dominical específica; da mesma forma, ao atingir um determinado nível
de distribuição, os custos se estabilizavam e os lucros aumentavam
exponencialmente. Assim, quanto maior a distribuição, maior o lucro.
(Vergueiro, As Histórias em Quadrinhos e seus gêneros IV: os quadrinhos em
ambiente familiar. 2003)
Waldomiro Vergueiro (2003), comenta que a ânsia por maiores lucros fez com
que os Syndicates, que em geral eram ligados a grandes cadeias jornalísticas, buscassem
temas que possibilitassem a mais ampla distribuição possível, inclusive externamente ao
país.
Nessa busca de maior aceitação popular, histórias enfocando o ambiente
familiar surgiram naturalmente como uma alternativa bastante viável, pois
traziam um espaço narrativo com o qual todos os leitores se identificavam e
que, ao mesmo tempo, não causava qualquer tipo de rejeição, como poderia
acontecer, por exemplo, com histórias que representassem graficamente as
minorias ou reproduzissem estereótipos raciais... A fórmula atingiu o objetivo
esperado e em pouco tempo os jornais norte-americanos se viram abarrotados
de quadrinhos que retratavam o american way of life das mais variadas formas
e ajudavam a divulgar os costumes e valores norte-americanos pelo mundo
inteiro, com todas as implicações ideológicas que esse fato representava
(VERGUEIRO, Valdomiro. As Histórias em Quadrinhos e seus gêneros IV: os
quadrinhos em ambiente familiar. 2003)
Então, os Syndicates são responsáveis pela transformação das Histórias em
Quadrinhos em produto comercializável internacionalmente, organizando uma estrutura
de controle funcional e articulando as técnicas e possibilidades de merchandising,
portanto, além da lógica de produção, existem as táticas de comercialização dos
personagens ligados as histórias em quadrinhos, como por exemplo, a utilização de
personagens em camisetas, brinquedos e produtos em geral.
33
Edmilson Marques (2011) apresenta uma crítica a lógica proposta pelos
Syndicates. Segundo o autor a mercantilização traz como consequência para as Hqs a
transformação dos personagens em propriedade privada, e consequentemente, em
mercadoria a partir do momento em que são comercializados através de revistas, jornais,
etc. O autor ainda comenta:
Com isso, empresas oligopolistas voltadas para a produção de histórias em
quadrinhos começam a utilizar mecanismos para se apropriar daqueles
personagens que os desenhistas criam, assegurando assim o lucro com tais
produções, mediante a exclusividade no uso dos personagens, após sua
divulgação, despertando o interesse de leitores, isto é, além do lucro com a
vendagem dos gibis, lucram também com os direitos autorais (MARQUES, E.
Super – Heróis: Ficção e Realidade. In: VIANA, N; REBLIN, I. A. Aparecida,
SP: Idéias & Letras, 2011. p. 101.).
A análise sobre a atuação dos Syndicates nos faz perceber os sutis mecanismos
que são articulados para que se obtenha lucros. Como apropriação de personagens para
ganhar contextos específicos, ou a própria construção de personagens para determinados
fins. Existe dentro desta prática uma sedução ideológica. Ao se propor uma crítica sobre
a participação dos Syndicates na lógica mercadológica de produção das Histórias em
quadrinhos é importante notar os contextos, as condições históricas, as relações de
produção, os significados culturais, os mecanismos de motivação ligados ao consumo do
leitor, e todos estes fatores funcionam como manutenção da Indústria Cultural. É possível
compreender que Histórias em Quadrinhos são ferramentas de marketing veiculadas a
empresas e produtos. Dentro desta perspectiva, ao compreender as histórias em
quadrinhos como uma mercadoria da indústria cultural, torna-se importante notar os
valores que difundem, e as ideologias que utilizam em seu processo comunicacional,
tendo como objetivo o real significado das mensagens utilizadas nas aparentemente
inofensivas histórias em quadrinhos.
Nildo Viana e Iuri Andréas Reblin (2011) desenvolveram a obra Super-Heróis,
Cultura e Sociedade, selecionando diferentes intelectuais para discutir sobre a temática
histórias em quadrinhos. A obra discute as possíveis aproximações multidisciplinares
sobre o mundo dos quadrinhos conectando os elementos ficcionais aos mecanismos reais
da sociedade. Entre os temas discutidos, e os autores selecionados, Edmilson Marques
34
(2011) evidencia o papel dos Syndicates. Segundo o autor é possível notar a partir dos
Syndicates uma intensificação da produção de Histórias em Quadrinhos, uma maneira
específica de produzir e distribuir as Hqs, dando a estas o status de produto cultural.
Com o sucesso das tiras diárias, os syndicates proliferaram, contratando
desenhistas famosos e difundindo seus trabalhos por todo o território norte-
americano. Operando com custos cada vez menores, devido ao enorme volume
de reproduções feitas a partir de uma única tira, eles acabaram dominando o
mercado editorial internacional. Hoje os syndicates atuam no mundo inteiro e
são os grandes responsáveis pelo sucesso das histórias em quadrinhos norte
americanas (IANNONE, 1994, p. 44. apud MARQUES, E. Super – Heróis:
Ficção e Realidade. In: VIANA, N; REBLIN, I. A. Aparecida, SP: Idéias &
Letras, 2011. p. 99.).
A compreensão dialógica dos sentidos da Indústria Cultural, particularmente em
relação à dinâmica dos Syndicates norte-americanos, configura-se, portanto, como
fundamental para circunstanciar o cenário brasileiro das publicações de Maurício de
Sousa, conforme será melhor detalhado no capítulo a seguir.
35
O Cenário Brasileiro
36
2. O Cenário Brasileiro
No livro “A Guerra dos Gibis” de Gonçalo Junior (2004), o autor apresenta uma
pesquisa destinada a mostrar ao leitor a formação do mercado editorial brasileiro,
enfatizando a maneira que as Histórias em Quadrinhos chegaram ao país, e com o tempo
tornaram-se populares. Segundo o autor, um dos primeiros brasileiros a prestar atenção
no potencial mercadológico deste tipo de leitura foi Adolfo Aizen, jornalista que em uma
viagem aos Estados Unidos se encantou com um novo formato de leitura aparentemente
infanto-juvenil que estava fazendo um enorme sucesso. Gonçalo Junior (2004) comenta
que:
Um dos passatempos do jornalista era bisbilhotar os pontos-de venda de jornais
e revistas. Encantava-se com o mercado editorial americano, então
impulsionado pelas modernas tecnologias de impressão, que possibilitavam
triagens cada vez maiores em menor tempo. (JUNIOR, 2004, p. 24).
Adolfo Aizen começou a demonstrar interesse na lógica mercadológica
estadunidense. O ato de prestar atenção nos jornais e revistas que eram comercializados
funcionou como uma tática para apresentar ao Brasil novas possibilidades de produção.
Junior (2004) comenta que nessa viajem Adolfo Aizen notou uma novidade conhecida
como suplementos semanais temáticos que eram encartados gratuitamente nos jornais.
Entre estes suplementos os comics faziam mais sucesso.
Em conversa com colegas americanos, Aizen descobriu que aqueles
suplementos aumentavam substancialmente a venda dos diários, uma vez que
muitos leitores compravam o jornal apenas pare tê-los. Notou ainda que
nenhum caderno fazia mais sucesso que o infanto-juvenil, que trazia
curiosidades, passatempos e muitas histórias em quadrinhos – chamadas
comics pelos americanos porque os primeiros artistas exploraram o gênero
para fazer graça com o universo miserável dos cortiços das grandes cidades
americanas no final do século XX. (Junior, 2004, p. 25).
37
Ao ler os suplementos que saiam no jornal e observar e perceber que tratava-se de
uma obsessão nacional, Adolfo Aizen começava a compreender as relações específicas
de produção que existiam nos Estados Unidos, e as táticas de manutenção destes
mecanismos. Adolfo Aizen trouxe para o Brasil a mesma lógica de produção, ou seja,
dentro do mercado editorial brasileiro de histórias em quadrinhos, Adolfo Aizen pode ser
considerado um dos primeiros a reproduzir, adaptando a lógica dos Syndicates no Brasil.
Contudo, o processo não foi tão simples (JUNIOR, 2004). A aplicabilidade da
lógica mercadológica estadunidense enfrentou alguns percalços no Brasil.
Aizen procurou ser fiel ao formato dominical americano, o que não seria nada
fácil, uma vez que as máquinas de A Nação estavam longe de possuir alguma
qualidade gráfica. Os cadernos foram planejados e desenhados numa pequena
sala, no ritmo frenético de um jornal com circulação diária. Como estratégia
contra a concorrência, somente dois dias antes da estreia os leitores foram
informados da novidade. (JUNIOR, 2004, p. 30).
Apesar das dificuldades técnicas que instauravam-se no Brasil, um tipo de
mecanismo iria alterar a maneira de se compreender as Histórias em Quadrinhos, até
então, observadas em tirinhas nos jornais, então no dia 15 de março de 1934 saiu a
primeira edição do suplemento juvenil encartado no jornal A Nação. Segundo Junior
(2004), a concorrência ficou boquiaberta, acharam ousado o novo formato apresentado
por Aizen, entretanto a repercussão entre os leitores funcionou de forma adequada, Aizen
conseguiu reproduzir a maneira de comercializar os exemplares como observou nos
Estados Unidos. Mantendo ainda ligação com o país, na verdade com “agências” que
representavam o país, Aizen fazia conexões com os Syndicates.
Alimentar cinco edições por semana com notícias e variedades culturais e
esportivas se tornou uma tarefa árdua para Aizen. Parte da dificuldade foi
resolvida com a compra de textos e desenhos americanos, vendidos no Brasil
por representantes de agências conhecidas nos Estados Unidos como
syndicates, distribuidoras de features (ilustrações, artigos e reportagens).
(JUNIOR, 2004, p. 30).
38
Torna-se interessante comentar que não há menção neste texto de que Adolfo
Aizen fundou um Syndicate no Brasil, percebe-se que Aizen traz para o país uma maneira
de se produzir e reproduzir os suplementos semanais que aprendeu nos Estados Unidos.
Apesar de Aizen ser considerado um dos primeiros a utilizar tais técnicas, por observação,
outros jornais compreenderiam a lógica mercadológica utilizada por Aizen, e
reproduziriam o modelo adequando as suas edições, o que para alguns era compreendido
como cópia, como se Aizen tivesse criado esta maneira singular de transformar a leitura
de tirinhas ou HQs em produto comercializável. Não se trata apenas de compreender que
a lógica proposta pelos Syndicates começou a funcionar no Brasil, além disto, mantinha-
se contato com os Syndicates para que se tivesse os direitos de utilização de personagens
e histórias. Aizen apresentou sua ideia para que fosse incluída no jornal A nação, nesse
sentido, A Nação passava a ter um suplemento infantil, um jornal que tinha sido fundado
em 1932, ao incluir a aposta de Aizen em um projeto pioneiro de lançar suplementos
diários, teve sua tiragem triplicada.
De repente, um jornal sisudo, de temática quase que exclusivamente política,
era disputado no meio da semana por crianças e adolescentes em todos os
pontos-de-venda do Rio de Janeiro. Em pouco tempo, o jornalzinho se tornou
assunto da garotada nas filas das matinês dos cinemas, até se transformar numa
leitura quase obrigatória, em especial para os meninos. A aceitação do tabloide
de Aizen foi tão grande que era comum a molecada se dirigir ao jornaleiro toda
semana para pedir o caderno de forma peculiar: - Por favor, moço, quero o
suplemento que está ai no jornal. (JUNIOR, 2004, p. 33).
Ao fazer tamanho sucesso com os suplementos juvenis, Aizen também levou a
concorrência a prestar atenção na nova maneira de conduzir os jornais para o lucro. O
mercado editorial brasileiro notou a repercussão dos suplementos juvenis no público. O
jornal O Globo, de Roberto Marinho, passou a planejar um jornal de histórias em
quadrinhos para concorrer com diretamente com Aizen, reproduzindo uma concorrência
similar aos grandes tabloides norte-americanos. É interessante pontuar que Aizen, ao
voltar de sua viagem dos Estados Unidos ofereceu primeiramente a seu chefe e amigo
Roberto Marinho as possibilidades de se utilizar a lógica dos Syndicates nos jornais
39
brasileiros. Marinho não achou interessante as ideias de Aizen, entretanto, posteriormente
percebeu o potencial dos suplementos juvenis e “copiou” a proposta de Aizen.
Em 12 de Junho de 1937 saiu o primeiro número do suplemento juvenil de Roberto
Marinho, chamado de O Globo Juvenil. Marinho também fez contato com representantes
de Syndicates no Brasil, isso fez com que importasse quadrinhos para incluir em suas
edições, 100 % do material de O Globo Juvenil vinha dos Estados Unidos e da Inglaterra.
O Suplemento Juvenil de Aizen tinha alguns artistas brasileiros. Nesse sentido, nos parece
que Roberto Marinho podia investir mais pesado, e construir melhores acordos com os
Syndicates e consequentemente possuir os direitos de mais personagens e histórias.
Apesar de se tratar de dois jornais diferentes, Aizen e Marinho reproduziam a
mesma maneira de se articular e comercializar os quadrinhos existentes nos Estados
Unidos. A aproximação com os Syndicates fazia com que estes usufruíssem das histórias
em quadrinhos e dos personagens como produtos, podendo utilizar da melhor forma
possível, ou seja, da maneira que mais gerasse lucro. É importante notar que os jornais
imersos na concorrência e na articulação ao redor dos direitos de publicar, ou da
associação com os Syndicates não estava nem um pouco preocupada com o caráter
pedagógico das Histórias em Quadrinhos. As HQs eram um produto, e precisava ser
vendido.
A lógica proposta pelos Syndicates revela a possibilidade e capacidade de
consumo das histórias e dos personagens. O personagem das histórias em quadrinhos, por
exemplo, torna-se uma marca que tem os direitos vinculados as tais “agências”, e pode
ser vendido, sendo agregado a diferentes produtos. A importância desse cenário histórico
para esta pesquisa se deve ao fato de que o personagem que é o foco deste estudo –
Jeremias – também se constituiu dentro da mesma perspectiva, pois a Turma da Mônica,
de Maurício de Sousa, tornou-se um fenômeno, sucesso absoluto de vendas,
desenvolvendo uma lógica mercadológica muito semelhante à dos Syndicates, da
indústria cultural norte-americana.
40
2.1 A produção cultural de Maurício de Sousa
Eu faço histórias para contar histórias. Na minha infância ouvi muitas e até
hoje meus avós me contam algumas, ou melhor, me ensinam a ser um contador
de histórias. (Maurício de Sousa, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo,
dezembro de 1982).
Mauricio Araújo de Sousa nasceu no Brasil, numa pequena cidade do estado de
São Paulo, chamada Santa Isabel, em 27 outubro de 1935. Seu pai era o poeta e barbeiro
Antônio Mauricio de Sousa. A mãe, Petronilha Araújo de Sousa, poetisa. Além de
Mauricio, o casal teve mais três filhos: Mariza (já falecida), Maura e Marcio. Com poucos
meses, Mauricio foi levado pela família para a vizinha cidade de Mogi das Cruzes, onde
passou parte da infância. Outra parte foi vivida em São Paulo, onde seu pai trabalhou em
estações de rádio. Suas primeiras aulas foram no externato São Francisco, ao lado da
Faculdade, no centro de São Paulo. Mas depois continuou estudos no primário e no
ginásio, dividindo-se entre as duas cidades.
Enquanto estudava, trabalhou em rádio, no interior, onde também ensaiou
números de canto e dança. E, para ajudar no orçamento doméstico, desenhava cartazes e
pôsteres. Mas seu sonho era se dedicar ao desenho profissionalmente. Chegou a fazer
ilustrações para os jornais de Mogi, mas, interessava-se no aprimoramento, no
desenvolvimento de técnica e arte. Para isso, precisava procurar os grandes centros, onde
editoras e jornais pudessem se interessar pelo seu trabalho. Pegou amostras do que já
tinha feito e publicado e dirigiu-se para São Paulo em busca de emprego. Não conseguiu.
Mas havia uma vaga de repórter policial no jornal Folha da Manhã. Mauricio de Sousa
fez um teste para ocupar a vaga e trabalhou com reportagens policiais durante cinco anos.
Após esse período resolveu se dedicar a arte, então, em 1959, criou seu primeiro
personagem – o cãozinho Bidu, juntamente com uma série de tiras em quadrinhos e
resolveu oferecer seu material para os redatores do Jornal a Folha de São Paulo. As
historinhas foram aceitas, iniciava-se então, a trajetória de Maurício de Sousa no ramo
dos quadrinhos.
Inicialmente as tirinhas de Maurício de Sousa eram calcadas no cãozinho Bidu e
no personagem Franjinha, posteriormente outros personagens como Cebolinha, Piteco,
41
Chico Bento, Penadinho, Horácio, Raposão, Astronauta, etc. foram sendo inseridos nas
Histórias, até que em 1963 surge a Mônica em uma tira de jornal, ainda como personagem
da história do Cebolinha (nome da tirinha nos jornais) que passa a ser o principal
personagem do desenhista, e ganha uma revista com seu nome em 1970, com tiragem de
200 mil exemplares, pela editora Abril, torna-se a protagonista de “A Turma da Mônica”
história em quadrinhos que tornou-se extremamente popular no território nacional e
conhecida internacionalmente.
No ano de 1986, Maurício saiu da Editora Abril e passou a fazer parte da Editora
Globo, onde permaneceu até 2006. Atualmente está na Editora Panini.
O autor fundou o Instituto Maurício de Sousa, em 1997, para desenvolver
campanhas sociais, realizando assim várias campanhas educacionais e institucionais.
Atualmente, entre quadrinhos e tiras de jornais, suas criações chegam a cerca de
30 países. Dentre as revistas de histórias em quadrinhos mas vendidas no Brasil, dez são
de Maurício de Sousa – o autor já alcançou o extraordinário número de 1 bilhão de revistas
publicadas e é considerado o maior formador de leitores do Brasil. O autor ainda é
considerado o mais famoso e premiado autor brasileiro de quadrinhos.
Buscamos sempre estar informados sobre os interesses das crianças.
Acompanhamos as mudanças naturais de geração para geração. Por essa razão,
acredito que sempre mantemos um público constante sem perda de atualidade.
(Entrevista de Maurício de Sousa para revista Literatura da Editora Escala,
2013)
Isso se deve as diversas áreas que Maurício atua, como por exemplo: Livros
ilustrados, revistas de atividades, álbuns de figurinhas, espetáculos teatrais, desenhos
animados e longas-metragens produzidos pela Maurício de Sousa Produções.
Maurício de Sousa, para a distribuição desse material (suas histórias em
quadrinhos), criou um serviço de redistribuição que atingiu mais de 200 jornais ao fim de
uma década, reproduzindo os mecanismos dos Syndicates em suas produções. Rodrigo
Otávio dos Santos em seu artigo “Origem dos Quadrinhos e o Binômio Produção
Consumo: De Topffer aos Syndicates nos ajuda a compreender:
42
Sousa percebeu que não poderia concorrer comercialmente com as tiras norte-
americanas, vendidas de forma muito barata por meio dos já citados syndicates.
Assim, o artista começou a vender a mesma tira para diversos jornais, passando
a lucrar não mais com a criação da história, mas sim com sua distribuição pelo
maior número de jornais possível. Com este tipo de estratégia, seus
personagens ficaram conhecidos do grande público, sendo populares o
suficiente para entrar em outro ramo do mesmo negócio, que no final da década
de 1960 parecia mais rentável: as revistas em quadrinhos. (SANTOS. Origem
dos Quadrinhos e o Binômio Produção Consumo: De Topffer aos Syndicates.
2010.).
Apesar de Maurício de Sousa utilizar a lógica proposta pelos Syndicates, nos
parece que ele amplia a possibilidade de utilização dos mecanismos utilizados antes por
Aizen e Roberto Marinho, Maurício de Sousa cria suas histórias, então, toma para si a
lógica de uma forma diferenciada, nos moldes de Walt Disney. Torna-se interessante
perceber que a lógica de criação e apropriação das técnicas utilizadas pelos Syndicates é
apropriada por Maurício de Sousa, que também se apropria da maneira que Walt Disney
conduzia seus personagens, uma espécie de ideologia que se transfere sutilmente, não é
explicita, e pretende atingir os leitores. Isso se traduz por exemplo na maneira que as
Histórias de Maurício de Sousa são construídas.
História em quadrinhos é, antes de tudo, roteiro. Não é desenho: desenho vem
na sequência. O que eu busco é roteiro, história, texto. (SOUSA, Uma
conversa com Maurício de Sousa: depoimento. [Dezembro de 1982]. São
Paulo: Jornal Folha de São Paulo.
A Turma da Mônica não possui elementos regionais, que para o sistema
mercadológico pode limitar seu potencial de vendas. A História é construída geralmente
no Bairro do Limoeiro, que pode ser identificado como qualquer bairro ao redor do
mundo, possui uma praça, pessoas aparentemente comuns. E a turma é composta por
quatro personagens principais: Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali, crianças que podem
gerar identificação com leitores de outros países. Nesse sentido, Maurício de Sousa
utilizou e continua utilizando a ideia base proposta pelos Syndicates, uma maneira
43
adequada de criar, produzir e reproduzir um produto. Além disso, ainda cria histórias em
quadrinhos para ganhar contextos específicos, como é o caso de Pelezinho, personagem
que surgiu em 1976 entre conversas de Maurício de Sousa com o jogador Pelé. A proposta
era criar um personagem para promover melhor o jogador (e alavancar o mercado de
histórias em quadrinhos) que tinha acabado de se tornar um fenômeno na seleção
brasileira. A primeira edição da HQ Pelezinho foi publicada em agosto de 1977.
Rodrigo Otávio dos Santos também observa o tato de Maurício de Sousa para
comercializar seus produtos: “Em 1970, as revistas passam também a ser comercializadas
na forma de revistas em quadrinhos, com histórias maiores e mais bem elaboradas, além de
uma tiragem inicial de 200.000 cópias. (SANTOS, Origem dos Quadrinhos e o Binômio
Produção Consumo: De Topffer aos Syndicates 2010.).
O autor ainda comenta que os gibis da Turma da Mônica tornaram-se os mais
vendidos no território nacional. E nos diz que:
Atualmente as marcas de vendagem das revistas chega a atingir 400.000
exemplares para cada edição. Interessante salientar que a tiragem da mais bem
vendida revista em quadrinhos nos Estados Unidos na década de 2000 foi a
nova edição da revista Wolverine, que, de acordo com Allen (2007) vendeu
163.000 cópias. No entanto, apenas mais 5 títulos venderam acima de 100.000
cópias nesta década, mostrando que as revistas de Sousa são efetivamente
muito populares no Brasil, não sendo sequer ameaçadas em sua liderança de
vendas por nenhuma outra revista em quadrinhos brasileira ou estrangeira
comercializada no Brasil. (SANTOS, Origem dos Quadrinhos e o Binômio
Produção Consumo: De Topffer aos Syndicates. 2010.).
O autor apresenta uma interessante pesquisa sobre as relações de produção
articuladas por Maurício de Sousa. Como por exemplo, a relação do Universo da Turma
da Mônica com o merchandising. Em 1968 Maurício de Sousa fechou contrato com a
empresa de alimentos Cica, onde inseria sua personagem Jotalhão, um elefante, para ser
o garoto-propaganda do extrato de tomate Elefante. Dentro desta perspectiva, nos parece
que esta foi uma das primeiras ações para que se construísse um império ligado ao
merchandising, possibilitando nos dias de hoje a ligação direta entre o universo da Turma
da Mônica e incontáveis produtos licenciados que vão desde um tipo específico de maçã
44
até alimentos caninos, passando pelos mais diversos tipos de brinquedos e artigos para
bebês.
Essa maneira de se vincular os produtos, e ganhar mercados específicos, ou seja,
a possibilidade de se apropriar do universo das Histórias em Quadrinhos e construir um
império apresenta-se como algo ímpar na história dos quadrinhos brasileiros. Paulo
Ramos (2012) em sua obra “Revolução do Gibi – A Nova Cara dos Quadrinhos
Brasileiros”, analisa a trajetória de Maurício de Sousa, segundo o autor é interessante
perceber como Maurício de Sousa conseguiu se manter em um mercado difícil como o
território nacional, e transformou suas revistas em líderes de vendas. O autor comenta
que:
Não é exagero dizer que a turma da Mônica se tornou sinônimo de publicação
infantil. Tanto que Maurício de Sousa foi indicado como um dos dez escritores
mais admirados do país, segundo pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, de
2008. Não Bastassem essas conquistas, o Pai de Mônica e Cebolinha soube se
reinventar editorialmente na segunda metade da década inicial deste século.
Trocou a Globo pela multinacional Panini (RAMOS, 2012, p. 59).
Ramos (2012), ao propor essa análise nos apresenta a maneira que Maurício de
Sousa se articula para a utilização de suas Histórias em Quadrinhos. Trocar de editora,
por exemplo, é uma estratégia baseada na lógica proposta pelos Syndicates. É
compreender quais são os melhores caminhos para o meu produto, ou seja, pra onde devo
vender? Portanto, nos parece que dentro do mundo dos quadrinhos Maurício de Sousa foi
o que utilizou melhor as técnicas que vieram dos Estados Unidos. Maurício de Sousa
conseguiu estruturar suas empresas reproduzindo de maneira muito eficaz os Syndicates
norte-americanos tornando-se liderança única dentro da área de Histórias em Quadrinhos
no Brasil. Após, aprender os métodos adequados, Maurício de Sousa apenas rearticula as
conexões para gerar outros produtos, projetos, e novas propostas lucrativas.
45
2.2 Maurício de Sousa Produções (Ltda)
Eu já sabia que queria distribuir para jornais e ter uma equipe grande para
aguentar o rojão. Mas não sabia que o que ia acontecer, se teria sucesso.
Sucesso não se planeja, só se deseja, se ambiciona. Mas quando se faz um
trabalho bem feito, direitinho, organizado, bem montado e administrado,
modéstia à parte, se alcança resultados. Depois de poucos anos, eu já estava
preparado para fazer as revistas com uma equipe razoavelmente grande. Daí,
o processo se espalhou, e já são mais de cinquenta anos de um processo sem
volta, sempre crescendo. (Entrevista de Maurício de Sousa ao livro: Universo
HQ Apresenta. 2015. p. 356).
A Maurício de Sousa Produções é a empresa responsável pela produção de
histórias em quadrinhos, desenhos animados, criação e desenvolvimento de personagens,
licenciamento de produtos e todos os demais projetos relacionados com as figuras dos
personagens criados por Maurício de Sousa e/ou por funcionários da empresa. Situada na
Rua Do Curtume, nº 745 em São Paulo, a empresa ou estúdio, apresenta espaços
específicos para diferentes projetos, onde trabalham cerca de 300 funcionários, entre
desenhistas, animadores e equipes de produtos e comunicação. A maneira de lidar com
os personagens reproduz a estrutura de empresas multinacionais, ou seja, torna-se
possível perceber o papel de indústria cultural que o estúdio ocupa, nas palavras de
Roberto Civita: “O Brasil é o único país em que um material nativo sobrepujou a Disney
em vendas” (CIVITA, apud GUSMAN, 2015. p. 343).
A empresa apresenta uma projeção visual, marcando sua identidade em produtos
que vão além de histórias em quadrinhos e desenhos animados, como por exemplo em
saches de açúcar e adoçantes utilizados no próprio estúdio.
Outra característica, interessante é o processo que se destaca no desenvolvimento
das atividades exercidas no estúdio2, feita em etapas, por diferentes artistas, perspectiva
que representa o conceito de Taylorismo, pois, está ligada ao aperfeiçoamento dos
2 No dia 10 de Outubro de 2016, foi possível conhecer a Maurício de Sousa Produções. Depois de alguns telefonemas e e-mails, a produção deixou claro que valorizava as pesquisas acadêmicas, e se colocaram à disposição para uma visita, onde foi possível verificar de perto o processo de produção das Histórias em Quadrinhos e outros produtos do estúdio.
46
métodos empregados no processo de trabalho, especialmente no tocante aos seus aspectos
organizacionais, uma vez que o desenvolvimento dos meios e instrumentos de trabalho
foi mínimo (RIBEIRO, 2002), ou seja, a partir de Taylor pode-se compreender que o
capital e o trabalho se fortalecem com a prosperidade e a cooperação (HELOANI, 2002).
A construção de Histórias em Quadrinhos apresenta-se nas seguintes etapas:
Roteiro (é nele que estará descrito cada quadro, como ficam os personagens nele, qual
cenário, falas, e como se desenrola toda a história. Desenhista (acompanha as descrições
e ilustrar o que roteirista imaginou.); Arte Finalista (reforça e limpa o traço do desenhista,
dá textura e profundidade às imagens); Colorista (trabalha com a palheta de cores);
Letrista (adiciona os balões e coloca o texto das falas), questões ligadas a impressão e
distribuição (no caso da Maurício de Sousa Produções), são atribuídas as editoras nas
quais o estúdio tem parceria, atualmente é feita pela Panini Comics.
Uma particularidade do estúdio é o fato de a Maurício de Sousa produções
trabalhar com uma palheta de cores padronizadas que envolvem a cor de pele dos
personagens, suas roupas e também o cenário, e a empresa utiliza uma fonte (formato de
letra) própria, chamada “Maurício de Sousa”.
Em suma, é possível notar a partir de uma análise sobre a Maurício de Sousa
produções, que sua funcionalidade representa os mecanismos comunicacionais baseados
no conceito de indústria cultural, ou seja, nas palavras de Maurício:
Não inventei nada. Estava só imitando o que os americanos faziam com
redistribuição de tiras com sindicatos. Na redação da Folha de S. Paulo, onde
eu trabalhava, recebíamos todo o material dos Syndicates. Então, pedi para o
redator-chefe me passar os prospectos, materiais e propagandas que eles
mandavam. Era uma espécie de curso, uma pós-graduação de comercialização
dos quadrinhos que eu fiz. Passei quatro ou cinco anos na redação aprendendo
com esse material e me preparando para fazer esse trabalho no Brasil,
guardadas as devidas proporções de nosso país. (Entrevista de Maurício de
Sousa ao livro: Universo HQ Apresenta. 2015. p. 346).
A organização Maurício de Sousa produções, portanto, configura uma série de
relações dialógicas, algumas delas capturadas em torno do conceito de Indústria Cultural,
47
que permitem uma análise mais consequente do personagem Jeremias, conforme será
visto no próximo capítulo.
48
Periodização Maurício de Sousa Produções
49
3. Periodização Maurício de Sousa Produções
A metodologia a ser desenvolvida levará em conta o fato de que este estudo volta-se
para a análise da Identidade Dialógica do personagem, evitando a naturalização de
conceitos, e propondo a identidade como fluida, ligada a valores culturais instituídos,
evitando, pensar em identidade como estável, estática. Para isso compreende-se como
necessário demarcar as circunstâncias e contextos sócio-históricos que possibilitaram a
configuração do personagem.
Esse estudo e consequente análise sobre o personagem Jeremias perpassa os espaços
simbólicos e representacionais, observando as posições que o personagem é direcionado,
e percebendo sua funcionalidade. Neste trabalho, o uso deste tipo de estrutura analítica
pauta-se sobre a Indústria Cultural, pois, a partir desta instituição alterou-se a noção de
entretenimento e lazer, e essa articulação foi construída visando o que deve ser consumido
e consequentemente gerar prazer para a sociedade.
Destaca-se também, a questão mercadológica existente e os valores atribuídos,
relacionando-os com as ideologias presentes e arquitetadas como parte do produto,
construindo denúncias sobre o real significado das mensagens, criando-se novas maneiras
de se perceber o produto como um problema.
A pesquisa sobre personagens que atuam dentro dos universos conduzidos pela
Indústria Cultural, ou seja, os personagens presentes no cinema, novelas, nos livros,
histórias em quadrinhos ou qualquer universo que funcione de forma narrativa, deve-se
pautar por possibilidades metodológicas plurais, para que possamos analisar as
articulações e construções simbólicas referentes aos personagens de maneira adequada,
nos proporcionando assim novas meditações sobre o objeto de estudo.
Para tal, optou-se por observar o trabalho de Dorfman e Matterlart (1971), intitulado
“Para ler o Pato Donald”, obra que alcançou notoriedade dentro dos estudos culturais
sobre histórias em quadrinhos. Os autores fazem parte de um grupo chileno de análises
da área de comunicação, e apresentam como traço marcante abordagens teóricas com
certa originalidade, construindo trabalhos que se articulam entre o “real significado das
mensagens” e relatórios do exercício concreto do poder editorial na tentativa de
transformar conteúdos em mercadorias (Miranda, 1978 apud DORFMAN e JOFRÉ,
1978, p.10).
50
Miranda (1978), comenta que tal obra funciona de forma panfletária, dedicando-se ao
desmascaramento da sútil forma de abordagem do universo Disney. Os autores
negligenciam o papel dinâmico de Pato Donald, analisando várias histórias deste
personagem a partir de um único olhar, partindo desta prática, ignorou-se que o
personagem foi concebido por diferentes artistas em momentos sociais, políticos e
econômicos que se diferem entre si. A obra intitulada “Para ler o Pato Donald”, ensina-
nos a prestar atenção na lavagem cerebral que funciona através dos veículos massivos de
comunicação, e que na frente deste manifesto está a maquiavélica Disney: “Em
consequência, temos no “Para Ler o Pato Donald” um poderoso panfleto (aliás, esta a
intenção principal de seus autores, mas um texto de escasso valor teórico, que se limita a
denunciar o “imperialismo cultural” e seus efeitos”. (MIRANDA, 1978 apud DORFMAN
e JOFRÉ, 1978, p.11).
Compreendo a contribuição dos autores para o estudo e análise do fenômeno da
comunicação de massa e da ação imperialista articulada pela Indústria Cultural, nota-se
que sem a leitura desta obra, algumas considerações presentes neste texto não existiriam,
entretanto, torna-se necessário pontuar que a metodologia utilizada deixou lacunas, e a
partir destas lacunas, pretendo conduzir a pesquisa sobre meu objeto de estudo de maneira
distinta dos autores citados.
Esse tipo de prática apresenta-se como um problema, pois, tenta-se fixar o
personagem, como se tivesse uma identidade presa, marcada. Tais abordagens funcionam
a partir de simplificações banalizadoras costurando uma espécie de esquematismo
empobrecedor. Diminui-se o potencial signico do personagem, impossibilitando novas
concepções metodológicas e danificando a análise de conteúdo. E ignora-se o fato de que
o personagem pode ser compreendido como um ícone, assim sugere Mcclould (1993)
“Todavia, nas figuras, o significado é fluido e variável, de acordo com a aparência elas
diferem da “vida real” em vários graus” (MCCLOULD, 1993).
Mcclould (1993), comenta que as imagens que normalmente compreendemos
como símbolos são uma categoria de ícone, e as figuras funcionam como imagens criadas
para se assemelharem a seus temas. (MCCLOULD, 1993, p. 27).
Vale ressaltar que as diversas formas narrativas podem ser diferentemente
interpretadas e significadas, e os personagens compreendidos de uma maneira não fixa
estão sujeitos a reinterpretações e ressignificações. Dentro desta perspectiva entende-se
51
como metodologia impropria tornar estático o que é dinâmico, e que o universo das
histórias em quadrinhos altera-se constantemente. Então, ao propor uma análise sobre um
personagem não podemos cometer o erro de apresentar como unívoco o que é múltiplo.
O significado das histórias está ligado a muitos processos, entre eles a questão capitalista
de produção que incorpora as contradições inerentes às relações produtivas, e como
sinaliza Eisner (2013): “A arte dos quadrinhos lida com reproduções facilmente
reconhecíveis da conduta humana”. (EISNER, 2013, p. 21).
Observando o personagem Jeremias como objeto de estudo, pretende-se
problematizar o universo construído por Maurício de Sousa, demarcando as utilizações
do personagem negro nas histórias em quadrinhos, analisando a funcionalidade da
identidade narrativa em articulação com a identidade negra. Evidenciando os possíveis
estereótipos e arquétipos, e questionando a instrumentalização do personagem Jeremias
e suas formas de representação articuladas pela Maurício de Sousa Produções, tendo
como ponto de observação, também, as condições históricas no qual este foi concebido,
dando atenção as transformações sociais e seus efeitos. Em outras palavras, o personagem
deve ser analisado e compreendido de forma não linear, se possível, tridimensional, ou
polivalente, pois em sua construção a uma série de fatores envolvidos que implicam em
mudanças em seus conteúdos, que estão vinculadas ao desenvolvimento da sociedade
capitalista e às necessidades de valorização do indivíduo com determinadas
características. (SILVA, 2005 apud VIANA, 2005, p.9).
Sobre a construção do personagem, nota-se que os seres sociais e conscientes que
escrevem (e desenham) fazem de uma determinada forma, portando determinadas
concepções, valores, sentimentos, justamente com determinada relação com o tema que
abordam (VIANA,2011). Nesse sentido, Viana (2011), complementa “Um texto, assim
como um livro de textos, é a manifestação de uma relação social” VIANA (2011 apud
VIANA e REBLIN, 2011, p.11.) Pontuo então, que as HQ’s apresentam esta
manifestação de relações sociais, e nas palavras de Eisner (2013): “O processo de leitura
dos quadrinhos é uma extensão do texto” (EISNER, 2013, p.9). Portanto, um personagem,
além de sua representação visual e narrativa contém um grau de comunicabilidade, é um
produto atrelado a significações.
O Personagem Jeremias de Maurício de Sousa será analisado levando em
consideração estes fatores, como por exemplo, o processo de construção e significação
52
do personagem que data da década de 1960, e suas alterações estéticas que ocorreram nas
décadas subsequentes, levando o personagem a estar presente nas histórias em quadrinhos
até os dias atuais. Pretende-se também, verificar os protagonismos específicos do
personagem, que geralmente funcionam em ambientes temáticos ligados a África, a
escravidão, ou a posições subalternas, sempre destacando o deslocamento do
personagem, e nunca compreendendo este de forma fixa, imutável. Pois, os personagens
podem alterar-se de geração em geração, e a medida que são transmitidos, mudam sobre
novas pressões. Para O’Neil (2009):
Isso acontece... bem, por uma série de razões. Os criadores tem novas ideias,
ou são forçados a ter novas ideias porque o mercado faminto exige novas
histórias... ou os criadores envelhecem e aos poucos começam a pensar no
mundo de um jeito diferente, e essas mudanças refletem-se de um modo sútil
no trabalho deles. (O’NEIL, Dennis. O Crimson Viper versus a Manyaca
Meme Metamorfica. In: IRWIN, William (org.) Super-Heróis e a Filosofia:
Verdade, Justiça e o Caminho Socrático. Tradução: Marcos Malvezzi Leal. São
Paulo: Madras, 2009.
Partindo deste pressuposto, a metodologia utilizada se baseia na análise de um
grupo específico de Histórias em Quadrinhos, propondo uma leitura flutuante sobre
narrativas em que o personagem Jeremias está localizado, mapeando assim, as posições
e deslocamentos do personagem dentro das histórias em quadrinhos.
Nota-se que existe certa dificuldade em mapear todas as aparições do personagem,
levando em conta o pioneirismo de tal pesquisa, pois, nenhuma outra até então, pautou-
se sobre estudos específicos do personagem Jeremias, nesse sentido, pretende-se capturar
as histórias em quadrinhos em que a presença do personagem se torna mais efetiva, para
que se possa examinar a identidade narrativa do personagem de maneira mais eficaz.
Tendo como referência este material, a análise será construída observando a narrativa
gráfica no âmbito do diálogo (textos presentes nas Hqs) e a representação estética do
personagem no intuito de perceber a articulação entre esses dois campos (a questão
narrativa e a visual), propondo releituras, pois a leitura do texto não pode ser dissociada
da leitura do mundo, já que os sentidos de dado discurso circulam na consciência de um
leitor a partir de formações discursivas muitas vezes vinculadas a outras esferas da vida
53
Periodização
Maurício de Sousa Produções
Período Turma
(1947- 1961) (1961 – 1970) (1970 – 2008) (2008 – 2016)
social (CASTRO; ALCANTARA, 2007). E de que forma funciona a representação do
personagem a partir da compreensão de sentidos que a história em quadrinhos produz.
No sentido de propor um recorte temporal, pontuando uma abordagem histórica,
construiu-se uma periodização3, evidenciando os diferentes momentos da produção
cultural de Maurício de Sousa, localizando a posição do personagem Jeremias.
3.1 Era dos Esboços (1947- 1961)
Consideramos “Era do Esboço” período em que Maurício de Sousa inicia sua prática
de desenho e consequentemente carreira como desenhista. Nesse período apresenta-se o
primeiro personagem de Maurício de Sousa, o Capitão Picolé (1947) foi apresentado em
uma edição de Mônica 35 anos (1998), como o primeiro personagem criado por Maurício
de Sousa (até então, o cãozinho Bidu era apresentado nas HQ’s como o primeiro
3 Em “Maurício 80” revista lançada em 2015 como proposta de comemoração aos 80 anos do autor,
apresenta-se nesta publicação uma periodicidade de cunho ficcional. O autor aponta seis períodos, que se
dividem entre sua infância e sua fase adulta. Esses períodos são divididos por seis gênios da inspiração que
Maurício de Sousa encontrou durante sua vida. São eles: Fantasia, Aventura, Terror, Ficção, Juventude e
Inspiração Filosófica. O autor ainda pontua que sua produção baseia-se em 19 universos.
Era dos Esboços
Período
Pós-Turma
Período
Pré – Turma
54
personagem de Maurício de Sousa), o autor reapresentou o personagem nas revistas
Lostinho (2006), Os 12 Símbolos do Natal (2009), MSP 50 (2009) e Uma Aventura
Olímpica (2012). Dentro de um ponto de vista histórico torna-se importante pontuar o
início da trajetória editorial de Maurício de Sousa nos Quadrinhos. Em 1959 Maurício de
Sousa apresenta o personagem Bidu nas tirinhas de jornais na Folha de São Paulo. A
tirinha alcança visibilidade, e a editora Continental lança o gibi Zaz Traz, Bidu e
Franjinha (outro personagem de Maurício de Sousa) figuram as páginas da revista.
Mauricio entrou na Continental pelas mãos do desenhista Jayme Cortez, um dos
mandachuvas da editora, e logo se tornaria seu amigo (nos gibis da Abril, por sinal, Cortez
era o único ‘autorizado’ a desenhar as criações de Mauricio em estilo próprio).
Devido ao sucesso das histórias em quadrinhos, Bidu logo ganhou título próprio, que
durou oito edições. A partir do número 5, contudo, o gibi passou a trazer quadrinhos
também de outros autores, já que Mauricio não conseguia tempo para produzir as tiras
diárias e o material para a revista simultaneamente. Atualmente Bidu, continua fazendo
parte das HQ’s do universo de Maurício de Sousa, e é o símbolo da empresa de Mauricio,
a Mauricio de Sousa Produções.
Nesse período o personagem Jeremias aparece pela primeira vez, na revista Bidu, e
analisaremos as histórias em quadrinhos:
O Ovo da discórdia. Revista Bidu nº 1. Ed. Continental. 1960.
Um Rapaz do Outro Mundo. Revista Bidu nº 1. Ed. Continental. 1960.
3.2 Período Pré – Turma: (1961 – 1970)
Com a popularização do personagem Bidu, Maurício de Sousa começa a criar outros
personagens, e inicia algumas articulações distribuindo seu material.
Em 1963, Mauricio de Sousa cria junto com a jornalista Lenita Miranda de
Figueiredo, Tia Lenita, a Folhinha de S. Paulo. Sua principal personagem a Mônica foi
criada neste ano.
A Folhinha apresentava um formato diferenciado, não se parecia com nenhum desses
suplementos que circulam nos jornais de hoje — todos, ainda assim, derivados dela. Da
55
primeira à última página, o jornalzinho era fartamente ilustrado com os personagens da
Turma.
As tiras de Mauricio eram publicadas na Folha (Bidu, Franjinha e Cebolinha) e no
Diário da Noite (Astronauta, Piteco, Zé da Roça & Hiro). Pois foi com esses personagens
que o quadrinista lançou, em 1965, pela Editora FTD, três livros ilustrados. Maurício de
Sousa atuava em diferentes plataformas, oferecendo diferentes personagens e iniciando a
construção de seu universo. Deste período será analisada a história em quadrinhos:
“Quem conta um conto”. Revista Mônica nº 2. Editora Abril, 1970.
3.3 Período Turma – (1970 – 2008)
Período em que cria-se se a revista Mônica e sua turma, primeira revista seriada
apresentando o universo construído por Maurício de Souza com a protagonista Mônica.
Nesse momento Maurício constrói as relações entre os personagens, inserindo estes em
um mesmo espaço que será chamado de “Bairro do Limoeiro”, e paralelamente constrói
universos distintos distribuindo seus personagens entre o espaço, a pré-história, a selva,
etc. Esse período se desdobra em cinco plataformas diferentes, articulando-se em cinco
fases.
Fase1: Início do Universo Maurício de Sousa
Entre 1970 e 1986, já como Turma da Mônica, as revistas passaram a ser publicadas
pela Editora Abril. Pela Abril Maurício publicou 200 edições (1-200).
No ano seguinte (1987), a turma da Mônica passou a ser publicadas pela Editora
Globo, onde ficou até 2006 e totalizou 246 edições (1-246).
A partir de 2007 A turma da Mônica e os outros produtos editoriais de Maurício de
Sousa começaram a ser publicados pela editora Panini, que atualmente ainda publica os
produtos de Maurício de Sousa. Nessa fase serão analisadas inicialmente as histórias em
quadrinhos:
56
“Fumando” – Revista Cebolinha 121, Ed Abril. 1983
“Jeremim – O Príncipe que veio da África” - Revista Turma da Mônica nº
5.Editora Globo.1987
“Os Novos Donos da Rua” - Almanaque da Mônica nº 1 - Ed. Globo, 1987
“A raça do Floquinho” - Revista Cebolinha nº 107. Globo, 1995.
Fase 2: Produção Audiovisual
Os personagens da Turma da Mônica também são os protagonistas da que pode ser
considerada a primeira série de animação brasileira. Após ser introduzida na televisão
como garotos-propaganda em comerciais a partir de meados dos anos 1960, histórias
completas começaram a ser produzidas em 1976 e distribuídas através de filmes-
coletâneas durante os anos 1980 e 1990 (lançados inicialmente nos cinemas e depois em
diretamente em vídeo)
A coleção audiovisual possui até o ano de 2015 vinte e três títulos, segue abaixo:
As Novas Aventuras da Turma da Mônica (1986, cinema e vídeo)
A Fonte da Juventude e Outras Histórias (1986)
Mônica e a Sereia do Rio (1986, cinema e vídeo)
O Bicho-Papão e Outras Histórias (1987, cinema e vídeo)
A Estrelinha Mágica (1988, cinema e vídeo)
Chico Bento, Óia a Onça! (1990, vídeo)
O Natal de Todos Nós (1992, vídeo)
Turma da Mônica Quadro a Quadro (1996, vídeo)
Videogibi Turma da Mônica: O Mônico (1997, vídeo)
Videogibi Turma da Mônica: O Plano Sangrento (1997, vídeo)
Videogibi Turma da Mônica: O Estranho Soro do Dr. X (1998, vídeo)
Videogibi Turma da Mônica: A Ilha Misteriosa (1998, vídeo)
Coleção Grandes Aventuras da Turma da Mônica (2003, relançamento em
DVD incluindo novos episódios)
Cine Gibi - O Filme (2004, cinema, vídeo e DVD)
Cine Gibi 2 (2005, DVD)
Cine Gibi 3: Planos Infalíveis (2008, DVD)
Cine Gibi 4: Meninos e Meninas (2009, DVD)
Cine Gibi 5: Luzes, Câmera, Ação! (2010, DVD)
Se Liga na Turma da Mônica - Volume 1 (2011, DVD)
Se Liga na Turma da Mônica - Volume 2 (2012, DVD)
57
Cine Gibi 6 - Hora do Banho (2013, DVD e Blu-Ray)
Cine Gibi 7 - Bagunça Animal (2014, DVD)
Cine Gibi 8 - Tá Brincando? (2015, DVD)
Entre os 23 títulos destacados, o personagem Jeremias aparece apenas em dois
momentos, nas produções: A Fonte da Juventude e Outras Histórias (1986) e Se Liga na
Turma da Mônica - Volume 1 (2011).
Fase 3: Turma da Mônica Baby (1990)
A Turma da Mônica Baby é a versão bebê da Turma da Mônica, que foi criada por
Mauricio de Sousa e surgiu no início do ano de 1990, também é chamada de Turminha
Baby e aparece com frequência nos pacotes de fraldas descartáveis, em babadores, em
brinquedos e outras coisas direcionadas para o público da primeira infância de 0 a 3 anos.
Constantemente, nas historinhas da "Turma da Mônica Baby" aparecem crianças (bebês)
reais que foram desenhadas pela MSP (as crianças foram sorteadas pela antiga promoção
"Seu Bebê no Meu Gibi"). A Turma da Mônica Baby é composta por um pequeno grupo
de personagens, e não inclui o personagem Jeremias. Fazem parte os seguintes
personagens: Mônica, Cebolinha, Cascão, Magali, Mingau, Bidu e Anjinho.
Fase 4: Você sabia? (2003) E Saiba Mais (2007)
As publicações Você sabia? (2003) e Saiba Mais (2007) apresentam temáticas
educacionais no sentido de apresentar histórias em quadrinhos que ensinem além de
divertir. Essas revistas discutem assuntos ligados às áreas de ciências, história, saúde,
comunicações, folclore, datas específicas e biografias de personalidades da história
brasileira.
Este tipo de história em quadrinhos não representa algo novo para os Estúdios de
Maurício de Sousa, que há muitos anos possuem um ativo e eficiente departamento
voltado para projetos especiais, com o propósito de elaborar histórias em quadrinhos com
finalidades específicas. Desta Fase será analisada a revista:
Você Sabia? Turma da Mônica - Abolição da Escravatura (2007)
Saiba Mais sobre o Descobrimento do Brasil (2008)
58
Fase 5: Clássicos do Cinema (2007)
A série Clássicos do Cinema da Turma da Mônica possui até fevereiro de 2016
cinquenta e uma edições. Neste tipo de histórias em quadrinhos, os personagens de
Maurício de Sousa representam histórias do cinema consagradas pela crítica e
consideradas produtos da cultura pop. Nesta fase analisaremos a revista:
Os Vingadoidos – Clássicos do Cinema Turma da Mônica. Panini Comics.
2013.
3.4 Período Pós-Turma (2008 – 2016)
Período em que a Turma da Mônica já é conhecida em todo território nacional, e
internacionalmente, e se diversifica, a Maurício de Sousa Produções articula novas
possibilidades e amplia suas plataformas. Para as plataformas deste período pretende-se
verificar as aparições do personagem Jeremias, pensando em suas representações na fase
“Pós-Turma” da Mônica em diferentes séries. Torna-se importante salientar que as
revistas da Turma da Mônica continuaram a ser produzidas e ganharam a titulação de
“Clássicas”. Em relação as revistas da “Turma da Mônica Clássicas”, analisaremos:
Jeremias presidente da turma. Revista Cebolinha nº 30. Ed. Panini. 2012.
Turma da Mônica Jovem (2008)
A Turma da Mônica Jovem é uma publicação mensal dos Estúdios Mauricio de
Sousa lançada em agosto de 2008. Trata-se de uma releitura dos personagens da Turma
da Mônica em versões adolescentes, em traços e linguagem que remetem aos
mangás japoneses e histórias que buscam dialogar com o público pré-adolescente. Com
edições que já chegaram a atingir tiragens superiores a 400 mil exemplares, é uma das
séries de histórias em quadrinhos mais vendidas no mundo. Desta série serão analisadas
inicialmente as Histórias:
Edição nº 4: Fortes Emoções – Primeira aparição do personagem Jeremias na
Turma da Mônica Jovem
59
Edição nº 11: Ser ou Não ser – Primeira vez que o personagem apresenta
diálogo na Turma da Mônica Jovem
Clássicos Ilustrados Turma da Mônica (2008)
Os clássicos ilustrados da Turma da Mônica, foram lançados pela RBS Publicações.
São 14 livros na coleção, e cada um deles traz um conto clássico como, por exemplo,
Cinderela, Branca de Neve e Rapunzel, representado pelos personagens da Mônica, e
assinado pelo pai da turminha, Mauricio de Souza.
O objetivo da coleção é incentivar o aprendizado, dos valores abordados nas histórias,
com diversão através da releitura dos clássicos. Nesta série será analisada a história:
A Roupa Nova do Rei
MSP 50 (2009 – 2012)
MSP 50 é uma série de quatro livros de quadrinhos desenvolvido pela Mauricio de
Sousa Produções no qual artistas brasileiros foram convidados a elaborar histórias em que
fizeram uma releitura dos personagens clássicos de Mauricio de Sousa em homenagem
aos 50 anos da carreira do quadrinista, completados em 2009. A série deu origem ao
projeto Graphic MSP, iniciado em 2011. Desta série será analisada a história:
A Lenda de Jeremiwazi. André Diniz. MSP+50 – Maurício de Sousa por mais
50 artistas. Editora: PANINI LIVROS. Edição: 2. 2011
Histórias em Quadrões (2010)
Com 'Histórias em Quadrões', o autor tem como objetivo atrair as crianças aos
museus, e usa a turminha das histórias em quadrinhos para difundir o universo das artes
plásticas. Desta série será analisada a pintura:
Primo Mestiço do Jeremias
60
Lendas Brasileiras (2010)
Livros que apresentam algumas das lendas mais conhecidas do folclore popular
brasileiro, representadas pelos personagens da Turma da Mônica lançado em 2010 pela
editora Girassol. Desta série será analisada a História:
Turma da Mônica: Negrinho do Pastoreio
Mônica Toy (2013)
Mônica Toy é uma série derivada lançada em maio de 2013 e distribuída via
internet, pelo canal oficial do Youtube da Turma da Mônica. Os personagens da Turma
da Mônica são reapresentados em traços chibi e vivem situações cômicas através de
histórias mudas, de 30 segundos cada. A série está em sua quarta temporada e também
chegou a ser episódios apresentados na programação dos canais TBS e Cartoon Network.
Edições Especiais
Durante este período (Pós-Turma, entre 2008 e 2016) foram lançadas diversas
edições especiais em comemoração aos Aniversários de Maurício de Sousa e dos
primeiros personagens da Turma da Mônica. Pretende-se também observar a posição do
personagem Jeremias nas edições especiais, verificando a presença ou ausência do
personagem nas “comemorações” da Maurício de Sousa Produções.
Tendo como referência a periodização e as fases e séries destacadas pretende-se
avaliar como a identidade narrativa de Jeremias funciona em cada espaço, e caracteriza-
se efetivamente, articulando tal narrativa com a temporalidade, num quadro de interações
distintas. A partir daí será possível compreender que a construção e deslocamento do
personagem dependerá das transformações subjetivas e objetivas que ocorrem na
Indústria Cultural, frente ao desenrolar dos eventos sociais.
Se debruçar sobre a noção de identidade é apresentar um tom reflexivo,
direcionando os estudos das histórias em quadrinhos a uma compreensão de
temporalidade. Isso nos ensina que: Para se estudar um personagem que
consequentemente possui uma identidade narrativa não se deve usar categorias
monolíticas e essencialistas, pois o caráter não fixo da identidade torna instáveis as
fronteiras (CASTRO, 2012).
61
Pretende-se então, posicionar e contextualizar as HQs em seus horizontes
socioculturais, pontuando o processo de mudanças onde um dado personagem, ou uma
certa identidade, transita de uma caracterização preliminar até um momento posterior,
com caracterização totalmente diferente, portanto, a identidade do personagem pode se
transmudar assumindo contornos que fragmentam o sujeito e se articulam de diferentes
formas nas relações presentes no texto.
A pesquisa possui um caráter de reflexão sobre as questões étnico-raciais, não
observando apenas as narrativas propostas por Maurício de Sousa, mas também o campo
social que conduziu, no Brasil, a maneira que se localiza o negro dentro do campo de
representação, verificando os modos de produção e manutenção de estereótipos e
estigmas em torno do negro (BORGES, 2012). Refletindo sobre a instauração de outras
narrativas capazes de abordar dimensões diferentes sobre a temática racial dentro das
HQ’s. Citando Rosane Borges (2012) “As formas de emoldurar o Outro, de fundi-lo em
figuras restritas, é prática recorrente nos sistemas midiáticos que se nutrem, em grande
medida, do discurso imagético”. (BORGES, 2012). Portanto, pretende-se questionar
posições que acentuam uma imagem deformante do negro – sempre caminhando no
sentido de marginalizá-lo de uma maior participação nos destinos da sociedade global
(LUZ, 2010).
A partir da compilação desses dados será possível afirmar o quanto de
estereótipos e arquétipos existem no personagem Jeremias, e de que forma a Indústria
Cultural manipula o personagem negro nas histórias em quadrinhos, nas palavras de
CIRNE (1982): “A verdade é que nossa galeria de personagens negros é bastante
pequena”. (CIRNE, 1982, p.53.).
Nesse sentido, a partir das Histórias em Quadrinhos da Turma da Mônica propõe-
se uma leitura crítica sobre as relações presentes na identidade narrativa que
consequentemente servirá de pano de fundo para a discussão de questões atuais, ligadas
a identidade negra, colocando em xeque as estruturas temporais e evitando que a
identidade (narrativa e negra) venha a ser interpretada em termos rígidos, naturalizados e
permanentes. Portanto, compreender o Jeremias como objeto de pesquisa é propor uma
análise sobre a maneira que o personagem negro é construído e articulado dentro das
histórias em quadrinhos, pensando as coincidências na qual o negro é submetido na
62
sociedade brasileira nos diferentes momentos e histórias em que o Jeremias está presente
são produzidas e comercializadas.
Em suma, os mecanismos funcionais de análise de personagem elaborados por
estudos como os de Dorfman e Matterlart (1971), podem funcionar como referência,
entretanto, pretende-se seguir caminhos distintos, propondo novas leituras e formas de
contextualização, evidenciando o status móvel do personagem, propondo assim, um
estudo analítico e consequentemente plural, no sentido de evidenciar as utilizações do
personagem (negro) Jeremias, as articulações e mecanismos gerados pela Indústria
Cultural com objetivo de produção e comercialização direcionada a obtenção de lucros.
Era dos Esboços (1947- 1961)
O período entre 1947 e 1961 apresenta-se como um recorte inicial, servindo como
base para identificar os primeiros passos de Maurício de Sousa. Apesar de ser entendido
com um período onde seus primeiros personagens foram surgindo, o exercício analítico
se pautará pelas questões que evolvem o personagem Jeremias, que representa o objeto
específico deste trabalho. Portanto, para tal perspectiva, optou-se por apresentar em um
primeiro momento as referências que fizeram com que o pai da Turma da Mônica
construísse um repertório estético de como se desenha, ou seja, como se constrói
esteticamente um personagem negro. Nota-se que, as narrativas apresentadas como
referência para se compreender o personagem estudado funcionam como importante
referencial teórico, pois, apresentam-se como mediadoras dos valores latentes na
sociedade brasileira (BAETA, 2009).
Dentro desta análise, observa-se possíveis perspectivas recorrentes no discurso
das histórias em quadrinhos, leva-se em conta, então, o fato de que os discursos surgem
nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito
desenvolvido (BAKHTIN, 2011). Tais perspectivas nos levarão a conclusão de que
nenhum personagem surge por acaso, ou seja, todos os diversos campos da atividade
humana estão ligados ao uso da linguagem (idem, 2011). Pontua-se então, a observância
de padrões relativamente comuns nos diferentes estratos da sociedade, padrões estes que
configuram as tentativas de fixar determinadas posições, ou seja, o personagem pode estar
ligado a estereótipos, um modelo de representação unívoca, que funciona como um
63
conhecimento instituído (DIAS, 2010). A partir desses dados, identificaremos
inicialmente o contexto sócio-cultural, no qual, mediante relações dialógicas, Maurício
de Sousa construiu seu personagem negro chamado Jeremias.
O Contexto sócio-cultural: Como se desenha um Negro?
Os traços que identificam um personagem surgem de um imaginário social, nesse
sentido, nota-se como importante, evidenciar quais cenários direcionaram o artista que
desenhou o personagem Jeremias, ou seja, ao analisar um personagem, deve-se levar em
conta o ambiente social no qual estava inserido. A adequação e construção dos
personagens estão vinculadas ao contexto social. Para tal, perceber algumas das histórias
em quadrinhos que Maurício de Sousa leu, e consequentemente se afeiçoou, amplia a
perspectiva dialógica, indicando o caminho por onde a construção imagética do autor-
desenhista se fundamentou.
Em entrevista a série “HQ Edição Especial”, transmitida pelo canal HBO em julho
de 2016, Maurício de Sousa apresenta suas referências mais importantes, segundo o autor:
Tinha príncipe valente que era um clássico né? Um clássico world, tinha
Mandraque, Tarzan, Ferdinando e tinha o Espirito. Que é a história em
quadrinhos que mais me impressionou e mais me influenciou como narrativa,
como ousadia criativa, desenho eu não puxei Will Eisner, puxei roteiro, mas
em desenho eu gostava do Teréré, eu gostava do Popeye antigo e também a
Luluzinha -Bolinha que influenciou milhões de pessoas ai com desenhos
simples né, e chutinho, e tudo mais então eu fui puxando esses dados das
histórias e criando meu estilo que é uma colcha de retalhos, tudo que eu fui
apreendendo juntei ali, fui desenhando. (Depoimento de Maurício de Sousa a
série “HQ Edição Especial”, no canal HBO em julho de 2016).
A partir das palavras do autor é possível compreender o cenário social no qual este
estava inserido. Portanto, a construção de seus personagens se relacionam, ou seja,
dialogam com referências iniciais, percebe-se então, que as relações dialógicas se
conectam no sentido de dar sentido a construção, inserção e manutenção do personagem
nas histórias em quadrinhos. Para se compreender melhor as referências de Maurício de
Sousa, construiu-se uma tabela, indicando se tais narrativas possuíam algum personagem
64
negro em seu elenco principal. A tabela foi construída de acordo com a ordem de
referência que o autor apresentou, não seguindo portanto, a ordem cronológica da
construção de cada história em quadrinhos. Nota-se que todo material pertencia aos
Estados Unidos, chegando ao Brasil pelos Syndicates.
Repertório Cultural de Maurício de Sousa baseado nos Quadrinhos
Foram apresentadas oito referências, que datam de 1929 – 1940. Tais datas
representam os lançamentos das tirinhas dominicais nos Estados Unidos. De todas as
histórias em quadrinhos, apenas duas apresentam personagens negros. Percebe-se então,
uma prática comum de não utilizar personagens negros advinda dos Estados Unidos, e
sendo veiculada na mídia nacional, ou seja, ao se compreender o contexto apresentado na
lógica estadunidense, percebe-se que as identidades dos personagens negros possam estar
enclausuradas em uma objetividade esmagadora (FANON, 2008).
Nos concentraremos então, nos dois personagens que fizeram parte do imaginário
simbólico do criador de Jeremias, direcionando como deveria ser o negro dentro das
narrativas quadrinizadas. Lothar, é um personagem criado em 1934 por Lee Falk, ajudante
do personagem título da série, o Mandraque. Lothar é o típico personagem negro que vem
da África, tem força bruta, porém não consegue pensar sozinho, sendo sempre
direcionado pelos conhecimentos do mágico Mandraque.
No início, Lothar era uma espécie de “Bom Selvagem”, mas com o tempo,
Falk para adaptar as tiras aos novos tempos, o fez um homem sofisticado e
boa pinta. (Artigo publicado no site Guia dos Quadrinhos por Antônio Luiz
Ribeiro em setembro de 2007.)
Ébano White, criado por Will Eisner em 1940 é um taxista, que tenta ajudar
Espirito (Spirit no original) a ir a certos lugares, ou a fugir deles se for necessário, não
Príncipe
Valente
(1937)
Mandraque
(1934)
Tarzan
(1929)
Ferdinando
(1934)
Espirito
(1940)
Teréré
(1935)
Popeye
(1929)
Luluzinha-
Bolinha
(1935)
Nenhum
personagem
Negro no
elenco
principal
Um
Personagem
Negro no
elenco
principal
chamado:
Lothar.
Nenhum
personagem
Negro no
elenco
principal
Nenhum
personagem
negro no
elenco
principal
Um
personagem
negro no
elenco
principal
chamado:
Ébano White.
Nenhum
personagem
Negro no
elenco
principal
Nenhum
personag
em
Negro no
elenco
principal
Nenhum
personagem
Negro no
elenco
principal.
65
consegue falar inglês direito, sendo sempre corrigido por ter um vocabulário deficiente,
um verdadeiro estereótipo. O próprio Eisner admitiu os problemas na estética de seu
personagem, nas palavras de Eisner:
Em julho de 1940, comecei uma tira de jornal, chamada Spirit, sobre um herói
mascarado, que punha em cena, como contraponto cômico, um jovem afro-
americano de nome Ébano. Isso não era nenhuma inovação. Jack Beny tinha
Rochester, o cinema tinha Stephin Fretchit, o rádio tinha Amos e Andy. Tais
eram as caricaturas estereotipadas aceitas na época. Naquele estágio de nossa
história cultural, o uso deformado do inglês, com base na origem étnica, era
considerado humor. Ébano falava o dialeto ‘negro’ convencional, e seu humor
leve contrabalançava a frieza das histórias de crime. Na minha ânsia de atrair
mais leitores, achei que tinha descoberto um bom filão. (EISNER, 2011. p.3).
Eisner ainda comenta que tomou consciência da gravidade do estereótipo
posteriormente, percebendo as implicações sociais dos estereótipos de raça. O autor
pontua que “com a emergência dos movimentos pelos direitos civis, criei um detetive
negro de linguagem impecável e passei a tratar o assistente de meu herói com mais
cuidado” (EISNER, 2011. p. 3). Então, percebe-se que havia dois apenas dois
personagens negros no repertório de quadrinhos que Maurício de Sousa consumiu entre
as décadas de 1940 e 1950, culminando na criação de seu primeiro personagem negro em
1960, verificaremos agora se o personagem Jeremias dialoga com as referências de seu
criador, pontuando a identidade dialógica do personagem, e se este apresenta possíveis
estereótipos.
O Negro por Maurício de Sousa
Corria o ano de 1960. Haviam se passado apenas alguns meses, desde que
Maurício de Sousa tomara a decisão de deixar de ser repórter policial da Folha
de S. Paulo para arriscar tudo e se dedicar à sua paixão, as histórias em
quadrinhos, fazendo as tiras do cãozinho Bidu e seu dono Franjinha, no mesmo
Jornal. (Sidney Gusman, depoimento para o livro Coleção Histórica Maurício,
2015).
As tirinhas de Maurício de Sousa começaram a fazer parte dos jornais ainda em
1959, com a criação do Cãozinho Bidu e de Franjinha, o autor-desenhista começou a
66
construir mais personagens ao iniciar o ano de 1960, construindo assim um universo
particular. Sobre o início de seu primeiro personagem famoso, o Bidu, o autor comenta:
Chegou um dia em que eu senti que tava na hora de sair da reportagem policial,
eu vou fazer minha historinha, vou montar a história em quadrinhos que eu
queria fazer, acho que eu to mais preparado, e voltei pra casa e desenhei a
minha primeira historinha do Bidu, Bidu e Franjinha, tiras de jornal, seriadas,
e levei pra redação, olharam, ah desenha bem, podemos publicar pô, se aceita
publicar? Lógico”. (Depoimento de Maurício de Sousa a série “HQ Edição
Especial”, no canal HBO em julho de 2016).
Maurício de Sousa publicou suas primeiras histórias mais longas, fora do formato
de tira pela Editora Continental, liderada por Jayme Cortez, que anos depois tornou-se o
diretor de arte da Maurício de Sousa produções. Entre essas histórias surgiu sua primeira
turma, na qual faziam parte Franjinha (e seu cãozinho Bidu), Titi, Manezinho, Humberto
e Jeremias, seu primeiro personagem negro. Nota-se que cada personagem apresenta um
tom de significações, o personagem é um signo, então, verificaremos as significações que
envolvem o personagem Jeremias, observando a posição de sua identidade dialógica.
Segundo os registros do livro “Coleção Histórica Maurício: As clássicas aventuras
das revistas BIDU e ZAZ TRAZ!”, publicado em 2015, a primeira história4 em que
Jeremias aparece chama-se “Um Rapaz do Outro Mundo”. A narrativa apresenta o
personagem Franjinha comprando um capacete de Astronauta, e quando seus amigos
encontram Franjinha com o novo adereço, pendem emprestado, entretanto, Franjinha não
consegue escutar nada, o capacete abafa sua audição. Seus amigos acreditam que ele não
quer emprestar, isso desperta a ira do grupo. Jeremias é bem presente nesta narrativa,
tendo diálogos próprios, e apresentando discursos de maneira bastante interessante.
4 Todas as Histórias em Quadrinhos utilizadas nesta periodização foram lançadas originalmente entre 1960 e 1961, sendo republicadas em 2015 na Obra “Coleção Histórica Maurício: As clássicas aventuras das revistas BIDU e ZAZ TRAZ!
67
Figura 1. Primeira Aparição de Jeremias, 2015. p. 11.
Figura 2. Personagem Jeremias na História: Um
rapaz do outro mundo. 2015. p. 11. Figura 3. Personagem Jeremias na História: Um
rapaz do outro mundo. 2015. p. 11
A história ainda com formato parecido com as tirinhas de jornal, apresentava
apenas duas palhetas de cor, entre o branco e o preto é possível identificar de maneira
bem visível o personagem, que aparentemente não apresenta estereótipos específicos
como no caso de Lothar e Ébano White. O discurso do personagem apresenta-se de modo
diferente dos outros da turma, Jeremias parece ter ficado mais ofendido do que os outros
pelo fato de Franjinha não ter emprestado o capacete de astronauta.
68
Figura 4. Personagem Jeremias na História: Um
rapaz do outro mundo. 2015. p. 12.
Apesar de todos ficarem chateados com a situação, Jeremias é o único que chama
Franjinha de “Gorduchão”, apelidando o suposto amigo. No quadro adiante, Jeremias faz
um tipo de ameaça a Franjinha, quando comenta: “Aquele cara está marcado comigo”.
Então, ao verificar o discurso do personagem, verifica-se que sua postura em
relação a “não conseguir o que deseja” apresenta-se de modo bem evidente. Jeremias foi
o personagem que ficou mais indignado com a situação. Apesar de sua manifestação de
ira, Titi que pensa em um plano para se vingar, e o executa sozinho, pintando o capacete
de Franjinha de tinta preta, e fazendo com que o amigo não consiga enxergar ao andar, e
tenha possíveis problemas. Seria esse o negro que faz parte do universo simbólico de
Maurício de Sousa? Pois, ao construir tal narrativa midiática, o autor, refletiria de algum
modo, representações sociais vigentes (MONNERAT, 2010). Ou seja, a identidade do
personagem Jeremias dialoga com questões específicas, pois, o personagem funciona
como um produto ideológico, ao se ter contato com tal narrativa quadrinizada,
compreende-se o negro como representação ideal, como se não pudesse ser desenhado de
outra maneira. Nas palavras de Bakhtin (2014):
69
Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como
todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao
contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é
exterior. (BAKHTIN, 2014. p. 31).
Entende-se então, o potencial ideológico do personagem, que funciona como um
signo, e apresenta significações sobre a ideia de “ser negro”. Barbosa (2009), comenta
que a narrativa das histórias em quadrinhos está envolvida em três pilares: cotidiano,
realidade e ficção. Nesse sentido, ao propor que um produto ideológico faz parte de uma
realidade, Bakhtin (2014), nos ajuda a compreender a posição do personagem, pois, ao
refletir e refratar outra realidade, o personagem apresenta-se imerso entre universos
ficcionais que funcionam como representação do cotidiano, tendo como referência a
compreensão do real do artista. Nas palavras de Barbosa (2009):
Presumimos que as histórias em quadrinhos podem assumir um fator
importante na construção da realidade por alguns motivos: elas trabalham com
a ficção, mas carregam em si todos os elementos que constatam a realidade,
tanto no discurso da escrita como no discurso visual; e autor de quadrinhos –
principalmente aquele que trabalha com os chamados quadrinhos históricos –
remete o leitor a documentos que são tidos como verdadeiros, por uma visão
subjetiva, que é aquela dada pelo artista; dessa forma, ele constrói a cada
momento uma nova história, com um olhar cotidiano, influenciado pelos novos
estereótipos ou por ícones da culturas de massa (BARBOSA, 2009. p. 105 -
106).
Quando Barbosa comenta que “ele constrói cada momento uma nova história, com
um olhar cotidiano”, o autor (intencionalmente ou não) remete aos estudos de Bakhtin,
pois, apresenta as relações dialógicas, ou seja, o personagem não é fixo, ele dialoga com
as questões que estão em pauta no início da década de 1960, período em que ele é
construído. Portanto, observar Jeremias é investigar as realidades que se apresentam e
dão o tom de seu discurso, verificando tais reflexos e questionando possíveis
representações, desvendando os aspectos ideológicos e suas significações, levando em
consideração as questões mercadológicas que estão impregnadas neste cenário cotidiano,
como comenta Vergueiro (2009):
70
“Na sua grande maioria, as histórias em quadrinhos da indústria
massiva do mundo comercial ocidental estão relacionadas com a necessidade
de diversão e entretenimento de seus leitores”. (VERGUEIRO, 2009. p. 83).
De que maneira o personagem negro entretém o leitor? Sendo construído de forma
estereotipada? Barbosa (2009) comenta que todos os homens, qualquer que seja a sua
posição na hierarquia social, vivem as cotidianidades. Nela colocam-se ‘em
funcionamento’ todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas
habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, ideias, ideologias. Por meio deste
mecanismo, podemos entender novas informações que chegam até nós. Nesse sentido, ao
desenvolver a construção de um personagem, seu autor-criador, torna-se responsável,
pelo campo de representação que envolve tanto o personagem, quanto a narrativa em que
este está presente. Tendo em mente o posicionamento do personagem Jeremias nas
diferentes narrativas, analisaremos agora sua próxima história: O ovo da discórdia.
Em O ovo da discórdia, enquanto, a Turma (do Franjinha) está brincando no lago,
o cãozinho Bidu acha um ovo que estava enterrado. Quando os meninos encontram o ovo,
cada um fica imaginando como poderia lucrar com a venda do tal ovo, e o que fariam
com o prêmio em dinheiro. Entre os sonhos de comprar um cavalo e virar caubói (Titi),
de comprar ingressos para o cinema pelos próximos três anos (Humberto), de esconder o
dinheiro embaixo do colchão (Manezinho), e o de aquecer o ovo até chocar, e sair um
dinossauro (Franjinha), apresenta-se o sonho de Jeremias.
Figura 5. Jeremias na História em Quadrinhos “O Ovo da Discórdia”. 2015. p. 50.
71
Figura 6. Jeremias na História em Quadrinhos “O
Ovo da Discórdia”. 2015. p. 50.
Segundo Jeremias, se ele ficasse milionário, compraria um avião, ou seja, se
tornaria um piloto, em relação a construção imagética dos sonhos, o sonho de Jeremias
particularmente, apresenta-se como um sonho nobre, a oportunidade de voar, conhecer os
céus, como se pode verificar na continuação do quadrinho abaixo:
Jeremias alça voo, e faz piruetas, enquanto seus amigos observam sem dizer nada.
A nível de comparação, o sonho de Jeremias apresenta-se como menos usual, essa é uma
postura interessante por parte de seu criador. Levando em consideração as relações
dialógicas presentes na narrativas, o sonho de Titi, por exemplo, dialoga com o fenômeno
de faroeste que invadiu o cinema entre as décadas de 50 e 60, filmes como Matar ou
Morrer (1952), Rastros de Ódio (1956), Homem sem Lei (1958), e a própria aparição do
ícone do velho oeste “Clint Eastwood”, pavimentaram um imaginário social, onde tornar-
se um xerife de faroeste equivaleria a um super-herói nos dias atuais, portanto, não era
algo estranho, desejar comprar um cavalo, e cavalgar “por aí”, como na representação
apresentada no sonho de Titi, pois, a partir do Velho Oeste os meios de massas prepararam
uma mitologia substitutiva que ninguém confronta com os fatos de um passado tão
remoto. Os astros do cinema, os hits, suas letras e seus títulos doam um brilho igualmente
calculado. Palavras, sob as quais o próprio, mitológico, man on the street dificilmente
poderia pensar algo, adquirem, com isso popularidade”. (Theodoro Adorno, apud
DUARTE, 2003. p. 97), nas palavras de Antonio Mendonça (2013): “50 anos atrás,
sucessos na TV eram o Pica-pau e os filmes de caubói” (MENDONÇA, 2013. p. 22).
Nesse sentido, o sonho de Jeremias, apresenta-se como uma postura insólita, não imagina-
72
Figura 7. Jeremias na História em Quadrinhos “O
Magriço Terrível”. 2015. p. 140.
se, com base nas representações midiáticas do negro na década de 1960, que um
personagem negro teria o sonho de se tornar um piloto de avião. Entretanto, há uma
particularidade entre os sonhos dos personagens, no sentido narrativo, alguns sonhos
ocupam mais a história do que outros, nota-se que, a projeção do sonho de Jeremias
apresenta-se como menor, pois este, tem o seu sonho dimensionado em apenas dois
quadrinhos. O curioso, é que o sonho deste personagem, não equivale nem a uma tirinha,
que possui início, meio e fim, sendo compilada em três quadrinhos.
O sonho de Titi se resolve em quatro momentos, o de Manezinho em nove
momentos, o de Franjinha (que se compreende como protagonista das histórias) se resolve
em oito momentos, e o de Humberto apresenta-se em apenas um momento. O sonho de
Manezinho apresenta-se como uma prática recorrente, ainda nos dias de hoje, “esconder
o dinheiro no colchão”, entretanto, foi-se construída uma narrativa em que para a história
apresentar-se como concisa, necessitou-se de mais espaço, ou seja, de mais momentos
narrativos. Isso nos leva a percepções em torno de como se contar a história de um negro,
na verdade, como exercício podemos pensar: É mais interessante contar a história de
alguém que esconde o dinheiro no colchão, ou alguém que se torna um piloto? Entretanto,
dentro de um roteiro, qualquer uma das histórias podem gerar problematizações
interessantes, dependendo da temperatura estética que o autor situa os horizontes que
deseja, a pergunta mais específica para tal análise é: Qual é a maneira mais adequada de
se contar a história sobre um negro?
Um item importante na caracterização do personagem é o seu boné, entretanto, é
possível dizer que nem sempre o personagem utiliza tal adereço, porém, seu uso costuma
ser frequente. Nas narrativas que se apresentam entre 1960 – 1961, conhecemos o
personagem a partir da História “Magriço O Terrível”.
73
O Boné faz parte do personagem desde sua construção inicial, entretanto, tal item
não deve ser considerado essencial para se conhecer o Jeremias, pois o personagem não
é fixo, e pode apresentar contornos ideológicos diferenciados. Em uma das contra capas,
apresentada pela revista ZAZ TRAZ, o personagem é apresentado em versão colorida,
ainda no início da década de 1960, como é possível verificar na Figura 8. Nesta figura
específica o personagem é apresentado com seu característico boné, na cor vermelha, e
ao seu lado, outros personagens da ZAZ TRAZ que não eram desenhados por Mauricio
de Sousa, pois existiam diferentes histórias construídas por outros desenhistas.
O negro que Maurício de Sousa apresenta se configura como parte de um cenário
social, quer dizer, apesar de o autor construir o personagem, ele não criou a maneira de
ser negro nos quadrinhos, por isso, sua abordagem dialoga com questões culturais. Tal
perspectiva nos leva a pensar que seu repertório Cultural parte de suas influências, ou
seja, dos autores-desenhistas que Maurício se inspirou para construir seu estilo. Nesse
sentido, a estética apresentada pelo autor é além de uma representação, uma reprodução
baseada em modelos pré-estabelecidos, ou seja, o negro de Maurício de Sousa apresenta-
se como a manutenção de um estereótipo.
Figura 8. Jeremias na Contra capa da revista ZAZ
TRAZ. 2015. p.214.
74
As primeiras aparições se Jeremias, ainda no momento em que os quadrinhos eram
construídos em Preto e Branco, mostra o personagem pintando de Nanquim. Deve-se
levar em consideração a importância de um personagem negro no primeiro leque de
personagens do autor, Jeremias, ainda apresentado de maneira tímida, fazia parte da turma
principal de Maurício de Sousa, pois no início da década de 19605 era possível contar nos
dedos os personagens do autor, nesse sentido o personagem “dava as caras” com mais
frequência, posteriormente ele passou de coadjuvante a figurante, perdendo o título de
membro da turma, e sendo utilizado conforme as necessidades de pontuar um personagem
negro na narrativa.
Levando em consideração as referências citadas, quer dizer ao citar os
personagens Lothar e Ébano White como signos de referência de Maurício de Sousa,
nesse ponto, o personagem de Maurício de Sousa leva vantagem, Jeremias fala bem, ou
seja, utiliza a linguagem que os outros de sua idade usam. Maurício de Sousa acertou na
inversão do personagem, porém, não soube lidar com a manutenção, na verdade, dentro
de uma perspectiva da Indústria Cultural, em alguns momentos o personagem não era útil,
então, era inviabilizado, colocado de lado, até que houvesse a necessidade de um negro
na história.
Portanto, observar Jeremias é investigar as realidades que se apresentam e dão o
tom de seu discurso, verificando tais reflexos e questionando possíveis representações,
desvendando os aspectos ideológicos e suas significações, ou seja, o personagem é um
signo, pois, sem signos não existe ideologia (BAKHTIN, 2014).
A partir de tal postura busca-se averiguar também, os instrumentos de produção,
as relações que se articulam para que em determinado momento o personagem apareça
com mais propriedade, e seu uso torna-se mais preponderante, levando este a ser
ressignificado, ou a perder suas nuances estereotipadas, pois o status de produto de
consumo do personagem faz com que este possa sofrer constantes transformações,
inclusive tornar-se um signo ideológico. Tal perspectiva, posiciona a dimensão ideológica
ligada ao personagem e os espaços que este frequenta. Bakhtin sinaliza: “O domínio do
5 Deve-se pontuar que entre 1960 e 161, Maurício de Sousa criou dois de seus personagens mais conhecidos, Cebolinha e Cascão. Em 1960 surgiu o personagem Cebolinha, segundo o autor, a referência foi um amigo de seu irmão que falava errado e tinha um cabelo que lembrava uma cebola. Cascão foi construído em 1961, também, tendo como referência um garoto que jogava bola com seu irmão, não gostava de tomar banho, e de vez em quando estava fedendo.
75
ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali
onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico”. (idem, 2011. p. 33).
Em suma, após observar a “Era dos Esboços”, pretendemos pontuar, as utilizações
posteriores do personagem, que passa a ser desenhado em cores, e que a partir deste
momento se relaciona dialogicamente com um estereótipo conhecido como Black Face,
portanto, é a partir deste ponto que iniciaremos a construção do “Período Pré-Turma”.
Período Pré-Turma (1961 – 1970)
O período estabelecido como “Pré-Turma”, é compreendido como o momento em
que Maurício de Sousa pavimenta seu caminho como ícone de Histórias em Quadrinhos
no Brasil, tornando-se um caso ímpar na história dos quadrinhos brasileiros (RAMOS,
2012). Nota-se que a fama do autor amplia-se nos períodos posteriores, entretanto, as
articulações construídas nesse momento, funcionaram como pilares, para as opções que
o autor fez ao lidar com seus personagens. Compreende-se que os personagens funcionam
como signos, ou seja, todo signo, como sabemos, resulta de um consenso entre indivíduos
socialmente organizados no decorrer de um processo de interação. (BAKHTIN, 2014).
Essa interação foi sendo compreendida pelo quadrinista, e sendo moldada e
posicionada para adequação de seus personagens. Percebe-se então, um conjunto de
práticas discursivas (GOMES, 2013), uma leitura da sociedade em que o criador das
histórias está inserido, nesse panorama, vale ressaltar que, as identidades, é sempre bom
lembrar, também são “inventadas” e surgem em decorrência dos estabelecimentos de
fronteiras e não como causa destas (FERNANDES, 2013). Ao construir tais identidades,
utiliza-se elementos da vida comum, podendo fazê-lo de modo alienado e alienante
(COELHO, 2006). Constrói-se a partir dos roteiros presentes nas histórias em quadrinhos
um mundo através da linguagem, e a linguagem como parte deste movimento é
redistribuída, e essa redistribuição se faz sempre por corte (BARTHES, 2015).
Portanto, tais cortes, apresentam a opção narrativa do autor, que opina sobre o
direcionamento que seus personagens poderão dialogar. Percebe-se então, que a
construção do personagem está atrelada a uma série de significações pré-estabelecidas, e
neste sentido, verifica-se que sua utilização apresenta-se condicionada a certos repertórios
culturais, não impossibilitando determinadas rupturas, pois este não deve ser
76
compreendido de forma fixa e imutável, entretanto, o personagem dialoga, então, vê-se
marcado pelo horizonte social de uma época e grupo determinado (BAKHTIN, 2014)
Nesse jogo de significações pretende-se verificar possíveis estereótipos em torno
do personagem Jeremias, pois, a característica do estereótipo é justificar a exploração e a
opressão pelo índice imaginário de superioridade de um grupo humano sobre outro,
recalcando todo o processo histórico que engendrou esta determinada situação (LUZ,
2010), pois, se for evidenciado algum tipo de estereótipo, há a ser realizada uma tentativa
de desalienação em prol a liberdade (FANON, 2008).
Diante de tais questões apresentadas, a análise observará o início da formação do
império de Maurício de Sousa, que na década de 1970, se posiciona em três espaços
distintos: As tirinhas em quadrinhos (publicadas nos jornais), As histórias em quadrinhos,
e a publicação de seus primeiros livros infantis.
Construção e Redistribuição dos Personagens: Por onde anda o Jeremias?
Fazer uma tira só pagava um salário mínimo, eu tava casado, eu falei: Preciso
ganhar mais, então eu tirei o Cebolinha da história do Bidu e Franjinha e criei
uma segunda tira, mas ai eu descobri que duas tiras também não tava dando aí
pra feira, daí eu precisava fazer a terceira tira, criei o Piteco, o lado pré-
histórico, mas daí não dava tempo de criar três tiras por dia, daí eu contratei
um auxiliar pra me ajudar, daí pra pagar o auxiliar, eu precisava criar mais uma
tira, e assim, foi indo, foi indo, foi indo, e eu fui sendo conduzido a necessidade
de criar a equipe, administrar o esquema maior e buscar sustentabilidade na
redistribuição, a utilização da mesma tira em diversos jornais. (Depoimento de
Maurício de Sousa a série “HQ Edição Especial”, no canal HBO em julho de
2016).
A obra construída por Maurício de Sousa apresenta relações dialógicas com o
cenário cultural, ao mesmo tempo em que o autor percebia a necessidade de construir
novos personagens, preocupado com a questão econômica, elaborava seus desenhos tendo
como referência o auditório social que estava vivenciando
“Quando eu comecei a pensar em aumentar a nossa produção em
enfrentar a história em quadrinhos estrangeira, eu estudei quais os gêneros de
história em quadrinho, dos que havia e que dominavam o mercado”
(Depoimento de Maurício de Sousa a série “HQ Edição Especial”, no canal
HBO em julho de 2016).
77
Ao prestar atenção no cenário social, o autor, direcionou a posição e a construção
de seus personagens, alguns destes, o autor até comenta qual foi sua referência. Segundo
a Maurício de Sousa Produções, o personagem Chico Bento, por exemplo, nasceu das
observações do Mauricio junto ao homem do campo, morador do alto do Tietê, área
próxima à Mogi das Cruzes e ao Vale do Paraíba, na sua porção paulista. O nome do
personagem foi emprestado de um tio-avô de Mauricio, que ele nem chegou a conhecer,
mas sobre o qual ouviu muitas histórias engraçadas, contadas por sua avó – a vó Dita,
também retratada nos quadrinhos do Chico. Apesar de tal explicação, nota-se também,
que o personagem dialoga com outro caipira conhecido como “Jeca Tatu”, criado por
Monteiro Lobato em 1914, e apresentado no cinema em 1959, Mazzaropi interpreta o
personagem Jeca Tatu, e é com esse nome que vai protagonizar a maioria das películas
que se seguem até 1981 (D’Oliveira, 2009). O estereótipo de caipira já fazia parte do
repertório cultural dos brasileiros quando surge Chico Bento.
Pois é, muita gente não sabe, mas o Chico nasceu como coadjuvante. Ele
estreou em 1963, na tira Hiroshi e Zezinho (O Hiro e o Zé da Roça), publicada
na revista da cooperativa Coopercotiva. Ele era quase uma versão mirim do
Jeca Tatu, personagem clássico de Monteiro Lobato” (SOUSA, 2015)
Percebe-se então que, a partir do estereótipo de caipira que figurava na literatura
e no cinema, tal personagem chega aos quadrinhos. Ao exemplificar como compreendia
o mundo a sua volta e representava tal mundo em suas histórias em quadrinhos, o autor
apresenta um esquema, que utilizou na década de 1960:
Astronautas
Homem das
Cavernas
Histórias
de Crianças
Terror
78
O esquema construído foi elaborado com base na explicação feita pelo autor, para
apresentar uma compreensão melhor da estratégia utilizada. Maurício observou estes
quatro domínios dialógicos presentes na sociedade, e funcionais, a partir da indústria
cultural, e então, criou seu repertório. Tinham várias séries espaciais, ele criou o
astronauta, tinha série de fantasmas, ele criou o Penadinho, tinha homem das cavernas, o
Brucutú, ele criou o Piteco. (GUSMAN, 2016). Nas palavras do criador:
Quando eu comecei a pensar em aumentar a nossa produção em enfrentar a
história em quadrinhos estrangeira, eu estudei quais os gêneros de história em
quadrinho, dos que havia e que dominavam o mercado. Tinha história
infantil, tinha do fantasminha, tinha história espacial, então eu fiz um círculo,
fiz uma pizza né, e pûs ali em cada pedaço, o gênero que dominava.
(Depoimento de Maurício de Sousa a série “HQ Edição Especial”, no canal
HBO em julho de 2016).
E dentro de toda esta trajetória, por onde andava Jeremias? Apesar de observar
sobre referências citadas por Maurício de Sousa, não foi encontrada nenhuma explicação
para a composição do personagem Jeremias, ou seja, não é possível compreender a
construção do personagem pelas palavras do autor, entretanto, pode-se compreender de
acordo com as relações dialógicas presentes nas narrativas. Pontua-se que os personagens
utilizados pelo autor, reproduzem estereótipos, prática utilizada de maneira frequente nos
quadrinhos, ele é uma necessidade maldita – uma ferramenta de comunicação da qual a
maioria dos cartuns não consegue fugir. Dada a função narrativa do meio, isso não é de
se surpreender (EISNER, 2013). Ainda sobre estereótipos, Eisner (2013) continua:
A arte dos quadrinhos lida com reproduções facilmente reconhecíveis da
conduta humana. Seus desenhos são reflexo no espelho, e dependem de
experiências armazenadas na memória do leitor para que ele consiga visualizar
ou processar rapidamente uma idéia. Isso torna necessária a simplificação de
imagens transformando-as em símbolos que se repetem. Logo, estereótipos”
(EISNER, 2013. p. 21).
Observa-se que a construção do personagem de quadrinhos baseia-se na
simplificação de certas imagens, entretanto, deve-se olhar com cautela o “reflexo no
espelho” exemplificado por Eisner, pois, se o negro é desenhado de certa forma, qual foi
79
o espelho utilizado como referência? Se o desenhista do personagem negro não é negro,
que imagem está refletida? Nesse sentido, deve-se questionar determinados esquemas
estéticos atribuídos a certos personagens, pois a partir da representação, influencia-se o
leitor, fazendo com que este enxergue a todos da forma como estão desenhados nos
quadrinhos.
A partir de tais análises entende-se que Jeremias de vez em quando apresenta-se
em determinadas narrativas que são construídas entre 1961 e 1970, observaremos agora
entre as três dimensões que o autor trabalha (tirinhas em quadrinhos, histórias em
quadrinhos e livros infantis), em que momentos o personagem evidencia-se de maneira
mais pontual.
As Tirinhas em Quadrinhos
A construção das tirinhas em quadrinhos, que faziam partes dos jornais, eram
construídas tendo certos esquemas estéticos, o jornal era uma forma de comunicação
popular, então, embora os negros e as tradições e comunidades negras apareçam e sejam
representados na cultura popular sob forma de deformados, incorporados e inautênticos,
continuamos a ver nessas figuras e repertórios, aos quais a cultura popular recorre, as
experiências que ficam por trás deles (HALL, 2014.)
O negro que se apresenta nestes espaços como personagens, pode apresentar
características que fazem com que este não seja identificado pelos leitores negros.
Observou-se as tirinhas clássicas6 publicadas por Maurício de Sousa entre 1961 e 1970,
e em nenhuma destas verificou-se a presença de Jeremias, entretanto, foi possível
verificar a presença de personagens coadjuvantes negros, nota-se que alguns outros
personagens que faziam parte da primeira “turma” em que Jeremias estava presente,
também não estão nas tirinhas, ou seja, o autor optou pela utilização de certos personagens
em detrimento de outros.
Um aspecto curioso das tirinhas distribuídas nos jornais, é que o conteúdo
dialogava de maneira mais particular com os acontecimentos culturais do período, então,
6 "As Tiras Clássicas da Turma da Mônica" é uma coleção da Editora Panini, lançada em 2007, que compila as tiras da turma que saíram no jornal "Folha de são Paulo" em ordem cronológica, desde os primórdios dos anos 60. Foram analisadas 6 edições que datam de 1960-1970.
80
Figura 10. Tirinha do Cebolinha, publicada em Tirinhas
Clássicas da Turma da Mônica nº5, 2009. p.17
entre as tirinhas apresentadas entre 1961-1970, é possível encontrar referência a episódios
como a eficiência dos correios, enchentes, conflitos no Vietnã, Jovem Guarda,
Tropicalismo, Super-Heróis, ou seja, a partir das tirinhas é possível compreender as
relações dialógicas entre quadrinhos e o ambiente sócio-cultural.
Para tal análise destacam-se duas tirinhas que foram publicadas entre 1968-1970,
por perceber a utilização de personagens negros na narrativa.
Na tirinha em questão, Cebolinha está tocando samba, e impressiona Cascão, que
comenta: “Puxa, Cebolinha! Como você consegue batucar tão bacana assim numa caixa
de fósforo?”. A Tirinha dialoga uma prática recorrente entre os encontros de grandes
sambistas, então, Cebolinha mostra a Cascão o grande segredo: Dois personagens negros
estavam escondidos dentro da caixinha de fósforo. Então, os personagens negros estavam
presos na caixinha de fósforo? A tirinha apresenta a utilização da cultura negra, sem
necessariamente dizer que pertence aos negros. A apropriação da música por parte de
interesses próprios. Neste caso, Cebolinha sabia tocar bem, porque utilizava o talento dos
negros sambistas.
Figura 9. Tirinha do Cebolinha, publicada em Tirinhas
Clássicas da Turma da Mônica nº5, 2009. p.21
81
Na tirinha (Figura 10), Cebolinha questiona Mônica7, por ter falado que ele tinha
medo do escuro. Mônica chama Tião, que representa o “escuro”, o personagem é negro,
e Mônica ainda comenta que Cebolinha estava falando mal dele. Então, ao se chamar um
negro o que ele fará? Vai bater no Cebolinha? O apelido de Tião era “Escuro”? As tirinhas
sempre apresentam-se de forma muito rápida, ou seja, geralmente o leitor não pensa muito
para compreender, então, todo negro é compreendido como “Escuro”, e
consequentemente deve ser temido? A expressão de Cebolinha é de medo, ao ver Tião
chegar.
Nas duas tirinhas apresentadas, o negro figura como instrumento, sendo utilizado
quando é necessário, entre a musicalidade e a força bruta, estereótipos clássicos do negro
na narrativa midiática, ou seja, na ficção brasileira, no cinema ou fora dela, todos os
personagens negros pertencem a classificações específicas, ou se não, uma mistura de
várias delas (RODRIGUES, 2011).
Nota-se que nas tirinhas apresentadas o personagem negro não era totalmente
pintado de nanquim, como nas aparições de Jeremias, mas sim com riscos no rosto que
identificavam sua face mais escura. Nesse sentido, as narrativas produzidas por Maurício
de Sousa estavam permeadas de estereótipos, reflexos de todo aparelho midiático da
época. Isso não significa que a maneira de se construir o negro sempre funcionará desta
forma, pois, em diferentes períodos poderá ser atribuído aos personagens valores sociais
significativos, Bakhtin (2014).
A História em Quadrinhos: “Quem conta um conto...”
A História em questão apresenta uma narrativa onde os personagens representam a
confusão entre “ouvir e dizer”, distorcendo a informação. Enquanto Franjinha está
caminhando, um senhor ao explicar ao filho o que significa “supérfluo”, comenta que a
barriga de Franjinha é supérflua, fazendo com que o protagonista sinta orgulho, pois este
não sabe o significado da palavra. Ao encontrar os amigos, Franjinha conta a informação
como algo muito importante, fazendo com que estes redistribuam a informação a sua
7 A personagem Mônica foi criada em 1963, tendo como inspiração a filha de mesmo nome de Maurício de Sousa. Devido a importância da personagem no universo construído pelo autor, trataremos desta personagem, especificamente no Período Turma que data de 1970 – 2008. Período que se inicia com a revista turma da Mônica.
82
maneira, fazendo com que cientistas venham verificar o que existe na barriga de
Franjinha, até descobrirem que foi um mal-entendido. Na narrativa Jeremias tem aparição
de acordo com a maioria dos personagens, destaca-se em tal história apenas Cebolinha,
que neste momento (1961), já faz parte do grupo. Entretanto, verificou-se que a história
foi publicada originalmente em 1961, e publicada posteriormente em cores em 1970,
portanto, será apresentado as alterações feitas no personagem Jeremias entre as duas
edições.
Acima apresentam-se as duas versões da mesma história, torna-se interessante
dizer que nesta narrativa, alterou-se praticamente apenas as cores, o que torna curioso
pensar: Se a palheta de cores tinha aumentado, porque Jeremias continuava sendo pintado
de nanquim? A alteração de Jeremias representava o estereótipo conhecido como
Figura 12. Personagem Jeremias na década de 1970. “Quem conta um conto”.
Revista Mônica nº 2. Editora Abril, 1970 p. 23.
Figura 11. Personagem Jeremias na década de 1960. Coleção Histórica
Maurício: As clássicas aventuras das revistas BIDU E ZAZ TRAZ.2015. p. 209
83
blackface8, pois, para se estabelecer a origem da representação gráfica que se tornou o
estereótipo do negro nos desenhos humorísticos, é possível traçar uma linha evolutiva que
começa com os primeiros artistas itinerantes que se apresentavam em salões de bailes e
praças públicas: os menestréis (CHINEN, 2013).
A partir de tal perspectiva, compreende-se que as diferentes representações de
Jeremias, indicam uma linha, uma direção do imaginário social, e das questões que
dialogam em torno do negro. Muitas das configurações e ideias sobre os negros eram
sintetizadas pela figura do menestrel, que ajudaram a massificar e reforçar estereótipos
raciais sobre os negros ao satirizar seu modo de vestir, suas maneiras e seu linguajar
incorreto (CHINEN, 2013).
Tal representação, advinda dos menestréis, também figurou nas representações de
Jeremias, como é possível perceber nas narrativas apresentadas, principalmente, nas da
década de 1970, onde o personagem apresenta a boca construída esteticamente de maneira
estereotipada, remontando a vermelhidão nos lábios, presente nas construções estéticas
do blackface. Quais são os problemas dos estereótipos em torno do negro? Nas palavras
de Fanon (2008): "E o Lobo, O Gênio do Mal, o Mal, O Selvagem, são sempre
representados por um Preto..." (Fanon, 2008. p. 130).
8 Blackface é o nome dado para a caracterização de personagens do teatro com estereótipos racistas atribuídos aos negros. Na tradução literal do inglês, blackface significa “rosto negro”, em português. Os blackfaces surgiram no começo do século XIX nos Estados Unidos, como uma das atrações dos Minstrel Shows (shows de menestréis ou jograis), que eram bastante populares naquela época.
Figura 13. Personagem Jeremias na década de 1960.
Coleção Histórica Maurício: As clássicas aventuras
das revistas BIDU E ZAZ TRAZ.2015. p. 209
Figura 14. Personagem Jeremias a década de
1970. “Quem conta um conto”. Revista Mônica
nº 2. Editora Abril, 1970 p. 23.
84
Fanon, fala sobre as narrativas ficcionais que geralmente estão nas revistas
ilustradas para jovens, pois ao observar tais revistas, algumas pessoas poderão pretender
que isso não é muito importante, porque não refletiram sobre o papel dessas revistas
ilustradas (FANON, 2008).
Então, esse é nosso papel, tal reflexão apresenta-se como essencial para se
compreender a identidade dialógica do personagem negro, e o exercício apresenta-se
como importante, pois, há uma constelação de dados, uma série de proposições que, lenta
e sutilmente, graças às obras literárias, aos jornais, a educação, aos livros escolares, aos
cartazes, ao cinema, a rádio, penetram no indivíduo - constituindo a visão do mundo da
coletividade a qual pertence (FANON, 2008), nesse sentido, as histórias em quadrinhos
se encaixam nesta coletividade, funcionando como veículo midiático.
No caso de Jeremias não há um linguajar incorreto, nem um modo de vestir que o
difere dos meninos de sua turma, mas há, a questão da invisibilidade que o torna um
personagem menos expressivo, na maioria das vezes com menos diálogos que outros
personagens, e torna-se importante comentar que, conforme o leque de personagens de
Maurício de Sousa foi aumentando, o personagem negro foi tornando-se menos usual, na
verdade, dos personagens que “andavam” com Jeremias, apenas Franjinha e Titi
continuam presentes nas narrativas da Turma da Mônica, além de Cebolinha e Cascão
que chegaram depois, e fazem parte da turma principal, personagens como Manezinho e
Humberto, tornaram-se completamente invisíveis, na verdade, inexistentes nas narrativas
das décadas posteriores.
Nesse sentido, Jeremias apresenta-se com um personagem que resistiu as
alterações propostas pelo artista, e consequentemente, as alterações socioculturais que
culminam no imaginário sobre o negro. Nas palavras de Maurício de Sousa: “Não sou eu
que dirijo a perpetuidade do personagem, é o público, o personagem que aparece, que
deixa de ser coadjuvante e vira principal, é puxado pelo público” (SOUSA, 2016).
Ou seja, o consumidor torna-se o álibi da indústria do divertimento, cujas
instituições ele não pode subtrair (ADORNO, 2015). E para tal, esta narrativa, portanto,
é executada por adultos que justificam seus motivos, estrutura e estilo em virtude do que
pensam que deve ser uma criança (DORFMAN; MATTERLART, 2010).
Portanto, as opções do autor apresentam uma visão de mundo, uma corrente, um
ponto de vista, uma opinião sempre tem uma expressão verbalizada (BAKHTIN, 2011).
85
Observaremos agora, a posição do personagem Jeremias nos primeiros livros
infantis com os personagens de Maurício de Sousa.
Novas Perspectivas: O Negro nos Livros Infantis é diferente do Negro nos
Quadrinhos.
Observaremos agora, a posição do personagem Jeremias nos primeiros livros
infantis com os personagens de Maurício de Sousa.
A partir das análises sobre as narrativas em que Jeremias está presente, foi possível
perceber que existe a partir de cada narrativa presente no entrelace de cada quadrinho que
compõe uma história a comunicação da vida cotidiana, de modo particular, ou seja, do
modo como o autor compreende a sociedade, uma espécie de domínio específico, uma
maneira de enxergar o cotidiano por tal criador, tal relação pode ser ressignificada,
revelando assim, outras possibilidades e apresentando novas dinâmicas atreladas a
identidade dialógica, verifica-se assim que as formas discursivas podem situar-se de
maneira particular em diferentes esferas, e é a partir desta perspectiva que observaremos
como se situa a identidade dialógica do personagem Jeremias no livro infantil9 lançado
por Maurício de Sousa.
Os personagens de Maurício de Sousa estavam se tornando populares, então,
surgiu o projeto do livro, neste momento (1965), o autor trabalhava com três jornais:
Folha de São Paulo, Diário de São Paulo e Diário da Noite. A FTD investiu na ideia,
propondo um livro de 64 páginas.
Eu não tinha nada! Nunca tinha feito aquilo. Quando o Moacir trouxe o desafio,
chamei minha equipe de artistas para conversar. Ainda era pouca gente, mas
conseguíamos manter as tiras de páginas semanais dos jornais com muito
esforço e competência. Às vezes, à custa de noites em claro. Mas os livros
eram uma deliciosa tentação. A oportunidade de ver meus personagens
saltarem das histórias em quadrinhos e ganharem o texto colorido, a ilustração
colorida, a capa dura... Então, eu e minha pequena equipe decidimos que
valeria a pena o desafio. Reuni os artistas e disse: “Vamos fazer bastante café
para todos aguentarem. Eu vou escrevendo e desenhando e vocês vão fazendo
a arte-final”. (SOUSA, 2015).
9 Em 1965 Maurício de Sousa publicou três livros pela editora FTD, que foram relançados em 2016 na coletânea “Maurício O Início”.
86
Apesar de o autor trabalhar com quadrinhos, adaptou seus personagens para os
livros infantis, isso mostra que existe fluidez, tais personagens não estão presos no
universo dos quadrinhos, podem, como disse o autor: “saltarem das histórias em
quadrinhos”, percebe-se então, que nesta alteração, nas representações apresentadas pelo
autor para os livros infantis, a composição estética do personagem Jeremias foi mais
alterada, compreende-se que torna-se impossível estabelecer o sentido de uma dada
transformação, ou seja, das diferentes representações do personagem, sem considerar toda
a esfera ideológica no qual tais transformações foram produzidas. No entanto, presume-
se que a representação estética que figurava nos quadrinhos tendo como referência a
blackface, não era usual nos livros infantis, considerados meios educacionais legítimos,
já que na década de 1960, os quadrinhos não eram bem vistos, funcionavam apenas como
um tipo de entretenimento barato destinado as crianças.
Naquele tempo, eu tinha os personagens divididos em dois blocos: na Folha,
saíam as tiras do Bidu e Franjinha, do Cebolinha, do Piteco, do Penadinho e
do Raposão. Nos Diários Associados, vinham Hiro e Zé da Roça, do
Astronauta e do Chico Bento. Só não usei os personagens no núcleo principal,
com Cebolinha, Franjinha, Bidu e a Mônica, que começava a ganhar
notoriedade, porque eu tinha planos de fazer livros com eles também.
(SOUSA, 2015).
O autor estrategicamente optou por utilizar seus personagens iniciais, pois, se tal
proposta funcionasse, poderia lançar seus personagens que estavam mais populares.
Em “Chico Bento”, uma das histórias do livro, a narrativa se pauta pelo ambiente
rural, local onde o personagem Chico Bento vive. Na história apresenta-se o núcleo
familiar de Chico Bento, o rancho onde vive, e o fato de que aos sábados ele visita sua
avó, e ouve histórias e contos, histórias do tempo em que os bichos falavam, de reis e
rainhas, dos tempos da escravidão (SOUSA, 2015). Sua avó, ao contar histórias do
folclore brasileiro, de Saci, Mula sem cabeça e lobisomem, fez com que Chico Bento
ficasse impressionado, tanto que, ao ouvir qualquer barulho o personagem ficava
assustado e pensava: “Só pode ser o Saci”, ou “Deve ser a Mula sem cabeça”. Para
completar sua angústia, ao amanhecer, sua avó comenta que os cavalos do sítio acordaram
com o rabo trançado. “Arte do Saci”. Após tal episódio, Jeremias começa a fazer parte da
narrativa, pois, é o amigo que ouve as histórias de Chico Bento.
87
Na narrativa, Jeremias é um amigo que mora em um rancho vizinho, nota-se que
pela primeira vez, Jeremias mora em algum lugar, em relação as narrativas observadas
até então, Jeremias apenas aparece nas histórias em Quadrinhos, não sabemos de onde ele
vem, e pra onde ele vai quando acaba as histórias. Nesta história publicada no livro
infantil, Jeremias vive em algum lugar, sua representação estética, se diferencia dos
referenciais utilizados nos quadrinhos, ele não usa boné, não apresenta traços
estereotipados, e é pintado de marrom, e não preto. Isso nos leva a percepção de que a
representação utilizada nos quadrinhos não condizia com a maneira de se representar o
negro nos livros infantis, pois, sua circulação era maior, ou seja, através de um meio
considerado educacional não cabia um “negro da cor de carvão”, em contrapartida, por
apresentar um viés humorístico, o estereótipo era permitido e bastante usado nos
quadrinhos. Na História, Jeremias fica rindo de Chico Bento, aparentando não acreditar
muito nos contos do amigo.
Deve-se observar que da mesma forma que Chico Bento faz parte das relações
dialógicas pautadas na representação do caipira, a popularização de um imaginário
Figura 15. Personagem Jeremias em 1965. História “Chico Bento”. 2015.
88
pautado na figura mítica do Saci10, foi utilizado anteriormente por Monteiro Lobato
(1918), em Ziraldo (1959) e em Maurício de Sousa (1965). O autor de Turma da Mônica,
apresentou relações dialógicas com o folclore nacional, relações apresentadas antes por
outros autores, e rearticulou a posição do Saci nas narrativas, na história de Maurício de
Sousa, Saci é o pai de Jeremias.
No fim da História, Jeremias conta o que ouviu de seu amigo para seu pai em tom
repreensivo, e seu pai (o Saci), promete que não voltará mais a assustar ninguém nas
10 Sobre a figura e representação do Saci, deve-se levar em consideração que "O Sacy-Pererê:
Resultado de um Inquérito" é o primeiro livro do escritor Monteiro Lobato, publicado em 1918, a partir
de uma série de depoimentos reunidos pelo autor e publicados no jornal "O Estado de S. Paulo" sob o
título: "Mitologia Brasílica – Inquérito sobre o Saci-Pererê". Este material depois se converteu
no primeiro livro a tratar da crença no Saci, um dos personagens mais conhecidos do folclore brasileiro.
Lobato, porém, não assinou a obra como autor, considerando que seu papel havia sido de editor dos textos
enviados. Esse trabalho estendeu-se ao público infanto-juvenil, com a publicação, em 1921, do livro "O
Saci", inscrito no universo do "Sítio do Pica-pau Amarelo”.
Figura 16. Personagem Jeremias em 1965. História “Chico Bento”. 2015.
89
redondezas. Nota-se que a figura do Saci apresenta certos estereótipos, sua composição
estética diferencia-se de seu filho Jeremias.
Em suma, observou-se até então, duas periodizações, e neste período temporal
discutido até agora foi possível notar três representações diferentes do personagem
Jeremias, como é possível observar na linha do tempo a seguir:
Personagem Jeremias entre 1960 e 1970
A partir desses estudos iniciais, já foi possível notar como o personagem torna-se
flexível, dependendo de qual plataforma este será posicionado, portanto, o personagem é
fruto de relações dialógicas, este funciona como um signo, propondo diferentes
significados. Jeremias pode ser o menino que sonha em ser piloto de avião, ou o filho do
Saci que mora em um rancho. A investigação sobre o personagem deve continuar,
observando a maneira que este é direcionado, a partir destes resultados, passaremos para
a próxima periodização, notando assim, as diferentes utilizações do personagem em
consonância com as relações dialógicas, e as direções escolhidas pela Indústria Cultural.
Período Turma – (1970 – 2008)
As análises apresentadas até aqui evidenciaram três representações do
personagem Jeremias, tratando este como objeto, e discutindo sobre sua composição
estética. A partir de agora, apresentaremos a ampliação do cenário construído por
Maurício de Sousa, ou seja, as novas articulações e consequentes configurações das
1960 1970 1965
90
narrativas, verificando sempre, o papel de Jeremias em cada universo simbólico expresso
nas histórias em quadrinhos, levando em consideração que, as histórias criadas expressam
o contexto histórico que as cercam, são expressões da realidade (MARQUES, 2011).
Nota-se que a década de 1970 apresenta-se como importante para o desenrolar de
seus personagens, pois, nesta década, cria-se a revista Turma da Mônica, então,
constroem-se elementos que giram em torno da protagonista, como uma relação mais
próxima entre personagens, e torna-se evidente a compreensão de um núcleo principal,
coadjuvantes e figurantes, ou seja, compreende-se tais personagens como um elenco,
surge assim um cenário específico chamado “Bairro do Limoeiro”, a partir desta opção
narrativa, os personagens principais ganham família, casa, e até constroem-se bairros
vizinhos, ou seja, o que era uma noção... virou uma explosão criativa... surgiram novos
mundos, personagens, turmas... (SOUSA, 2015). Além disso, o autor associa seus
personagens ao marketing, dialogando entre alimentos e brinquedos, também conquista
um “Yellow Kid”, o Oscar das Histórias em Quadrinhos, em 1971 (IAONNE, 1994). A
partir de sua própria agência, o autor ultrapassa os obstáculos enfrentados pelos
quadrinistas brasileiros e compete com as histórias em quadrinhos estrangeiras. Portanto,
apresenta-se todo um cenário onde a identidade dialógica do personagem surge, e é
reinterpretada, reconfigurada, dialogando entre o imaginário, assim como no simbólico
(HALL, 2014).
Então, percebe-se que a identidade dialógica é construída dentro de um discurso,
e a ampliação e utilização de personagens, apresentam relações dialógicas com discursos
presentes na sociedade. Para se discutir sobre o “Período Turma”, construiu-se uma
divisão em cinco fases: Início do Universo Maurício de Sousa, Produção Audiovisual,
Turma da Mônica Baby, Revistas: Você sabia? E Saiba Mais, e Clássicos do Cinema. Em
cada fase, verificaremos as aparições e ausências do personagem Jeremias, verificando
os discursos e os cenários em que o personagem é apresentado, e dando atenção ao fato
de que, todo meio de representação, ao propor uma narrativa, funciona como a tradução
de eventos (HALL, 2014). Eventos estes, que se relacionam dialogicamente com a
sociedade.
91
Fase1: Início do Universo Maurício de Sousa
Criei o Bidu, Franjinha, Cebolinha, Cascão, Manezinho, Jeremias e assim por
diante, e daí alguém da redação falou: Cadê as mulheres da sua história?
(Depoimento de Maurício de Sousa a série “HQ Edição Especial”, no canal
HBO em julho de 2016).
A partir da década de 1960, é possível compreender que partes do
repertório cultural produzido por Maurício de Sousa foram compondo o que
compreendemos seu universo ficcional, entretanto, pontua-se aqui, especificamente nessa
periodização, como início do universo, pois, a partir da década de 1970, e
consequentemente da revista Turma da Mônica, o autor organiza todo o seu leque de
personagem, e o projeta em um só cenário, ou seja, suas narrativas passam a girar em
torno da Mônica, e seus personagens anteriores, passam a funcionar nas narrativas em
que ela ou sua turma estão presentes.
A partir da perspectiva de demanda, ou seja, o fato de não haver nenhuma
personagem feminina, Maurício construiu a Mônica como mais um personagem, nas
palavras do autor: “Eu não planejei a Mônica para ser tudo isso, ela entrou, e o público é
que alçou, que elegeu a Mônica como carro chefe” (SOUSA, 2016).
Ao iniciar a construção de sua nova personagem, o autor observou os traços de
sua filha, e com o tom de sua personalidade, projetou tais características na nova
personagem, então, em 1963 época em que sua filha tinha mais ou menos três anos, a
personagem Mônica passou a fazer parte das tirinhas de jornais juntamente com seus
Figura 17. Primeira aparição da Mônica no Universo Maurício de Sousa, publicada
em 3 de março de 1963 no Jornal Folha de São Paulo.
92
outros personagens. Na década de 1960, as cartas funcionavam como termômetro ou seja,
a partir delas o autor sabia os personagens que faziam mais sucesso. Entre as opiniões e
sugestões, Maurício percebeu que o público desejava ver mais a aparição da nova
personagem.
O sucesso da personagem fez com que em 1970 ela tivesse sua própria revista em
quadrinhos, onde os outros personagens foram sendo posicionados de acordo com
narrativas em torno da Mônica.
Durante muitos anos a tira em quadrinhos onde sai a Mônica, saiu com título
de Cebolinha. Não existe na história nossa, uma tira chamada Mônica, existe
história em quadrinhos, existe revista, mas na tira, talvez o meu lado, Cebolau,
tenha mantido lá o Cebolinha pelo menos dono do título da Tira. (Depoimento
de Maurício de Sousa a série “HQ Edição Especial”, no canal HBO em julho
de 2016).
Em pouco tempo a personagem tornou-se o elemento mais importante de suas
criações, fazendo com que o autor reorganizasse a direção de seus personagens e seus
roteiros, nas palavras de Sidney Gusman:
A Mônica é a primeira dama do quadrinho brasileiro, qual o maior personagem
da França? Asterix. Da Bélgica? Tim Tim. Do Japão? Sei lá, Dragon Ball ou
um personagem do Tezuca. Estados Unidos? Super-Homem, Homen Aranha,
Batman. Qual desses países tem uma mulher como a maior personagem de seu
país? Ah! Talvez a Mafalda na Argentina, mas também tem o Internauta que é
pau a pau. Agora o único lugar que é unanime é no Brasil, o único lugar do
planeta que a principal personagem de quadrinhos do seu mercado é uma
mulher é o Brasil. Uma doce garotas de sete aninhos que com seu coelinho fez
o mercado acontecer no nosso País. Ela é um ícone da cultura pop brasileira, é
incrível, eu viajo muito com o Maurício, o tanto de gente que se chama Mônica
por causa dele, é assustador... (Depoimento de Sidney Gusman a série “HQ
Edição Especial”, no canal HBO em julho de 2016).
Tendo como referência o sucesso de sua primeira personagem feminina, ainda em
1963, o autor criou a Magali, sua segunda personagem feminina, também inspirada em
uma filha, e assim o autor construiu a “Turma”, entre 1960 e 1963, Maurício criou
Cebolinha, Cascão, Mônica e Cebolinha, que acabou se tornando sua turma principal nas
narrativas produzidas por ele.
93
Percebe-se então que ao estudar um personagem presente em qualquer tipo de
mídia, não se deve perder de vista a atividade de interpretação socioideológica, não
dissociando o personagem de possíveis fatores sociais, não perdendo de vista a
significação, e levando em conta o caráter social do signo (personagem) e entendendo
que este não é independente, pois, ao ignorar tais fatores, não será possível compreender
a realidade social no qual este foi constituído, ignorar tais fatores, nos leva a uma
interpretação errônea dos mecanismos de produção onde este se insere.
Portanto, ao inserir suas filhas nas Histórias em Quadrinhos o autor dialoga com
as questões culturais que presencia, a partir de tais dados, deve-se então, levar em
consideração a observação sobre as articulações e situações sociais, evidenciando o valor
cultural, reflexo de uma ideologia presente em cada contexto especificamente. Nas
palavras de Bakhtin (2014): “O signo e a situação social em que se insere estão
indissoluvelmente ligados. O Signo não pode ser separado da situação social sem ver
alterada sua natureza semiótica”. (idem, 2014. p. 63).
Tendo como referência as novas articulações construídas a partir da presença da
Mônica, verificaremos agora histórias em quadrinhos em que o personagem Jeremias está
presente.
Um personagem, diferentes representações
E na Turma da Mônica não existe negro? Não tem? Tem sim. É o Jeremias
(personagem criado em 1960, que durante... por muito tempo foi o único
menino negro da turma. Usa sempre um boné que foi de seu avô, para esconder
a falta de cabelo, embora todos saibam disso...). Não faço diferença de cor de
personagem, porque todos eles funcionam da mesma maneira nas historinhas
(Entrevista de Maurício de Sousa ao programa Roda Viva, exibido em 9 de
outubro de 1989.
A partir das perspectivas discutidas até então, percebe-se que as relações
socioculturais se apresentam como panorama para as articulações impressas nas histórias
em quadrinhos, partindo desse ponto, percebe-se que entre as décadas de 1980 e 1990,
entra em pauta toda uma discussão sobre as ações afirmativas, ocorre no Brasil uma
intensificação nas ações do Movimento Negro, que se voltam cada vez mais, em defesa
de seus interesses, ou seja, a partir dessas ações, questiona-se os direitos dos negros no
94
país, reivindica-se sua história, e ancestralidade, questiona-se também, a maneira que o
negro é representado na mídia.
Alguns pontos desta histórica reivindicação dos movimentos sociais negros
foram atendidos pelo governo brasileiro na segunda metade da década de 1990,
como, por exemplo, a revisão de livros didáticos ou mesmo a eliminação de
vários livros didáticos em que os negros apareciam de forma estereotipada, ou
seja, eram representados como subservientes, racialmente inferiores, entre
outras características negativas. (Santos, 2005. p. 25)
Tendo perspectivas em torno do âmbito cultural e social, ideias transformadoras
se expandem, rompendo barreiras e concedendo maior visibilidade ao negro no Brasil.
Observa-se então que, o Movimento Negro engloba um conjunto das organizações negras
do tipo sociedade recreativa, associações comunitária ou cultural, instituto de pesquisas,
grupo e organizações não governamentais – além de personalidades e indivíduos
engajados em ações políticas, culturais, sociais, religiosas, recreativas e desportivas – que
lutam para promover a igualdade racial. Seu objetivo é combater o racismo manifesto nas
relações sociais brasileiras marcadas pelo preconceito, a discriminação e o racismo,
defender os direitos da população negra e empoderar sua presença nas instancias jurídico-
politicas (SANTOS, 2010).
Portanto, a partir deste cenário que era vivenciado no país, surge a primeira
história em que o personagem Jeremias é protagonista, uma narrativa construída apenas
sobre o personagem negro, explicando o processo de escravidão, e de certa forma a
herança cultural que veio da África.
Figura 18. Jeremim em O Príncipe que veio da África. Revista
Turma da Mônica nº 5.Editora Globo, 1987. p. 66
95
Em Jeremim, O Príncipe que veio da África, história criada em 1987, Jeremias é
da família real, um príncipe, esbelto e corajoso, conhecedor das selvas africanas, cobiçado
pelas meninas de sua idade, e que curte bastante a liberdade. Dentro da narrativa, nota-se
que as características apresentadas inicialmente, que direcionam o leitor, são apresentadas
pelo narrador, e curiosamente, a primeira fala do personagem é: “Oh, não! Caçadores de
Escravos!”
O principado do personagem dura apenas uma página, a história de sete páginas,
se concentra em mostrar como os negros foram escravizados, como trabalhavam de
maneira forçada, seus momentos de fuga, e por fim foram agraciados com a liberdade.
A narrativa deixa claro que os negros foram vendidos como bichos, e
transportados em navios pra longe da África. A presença do dono do escravo, manuseando
sua propriedade, ou seja, utilizando o chicote, e alimentando mal seu escravo para que
este não dê prejuízo.
Figura 19. Jeremim em O Príncipe que veio da África.
Revista Turma da Mônica nº 5.Editora Globo, 1987. p. 67
Figura 20. Jeremim em O Príncipe que veio da África. Revista Turma da
Mônica nº 5.Editora Globo, 1987. p. 67
96
Além do fato de posicionar a maneira como os negros sofriam no período
escravista.
A narrativa pauta-se também, pelos momentos de resistência dos escravos, onde
Jeremim, é o protagonista, e livra seus amigos do cativeiro, escondendo-se na floresta.
Figura 21. Jeremim em O Príncipe que veio da África. Revista Turma
da Mônica nº 5.Editora Globo, 1987. p. 68.
Figura 22. Jeremim em O Príncipe que veio da África. Revista Turma
da Mônica nº 5.Editora Globo, 1987. p. 69.
Figura 22. Jeremim em O Príncipe que veio da África.
Revista Turma da Mônica nº 5.Editora Globo, 1987. p. 70.
97
Por fim, a liberdade foi concebida aos negros, como se estes não tivessem
importância neste processo.
O Narrador propõe que um dia alguém resolveu dar um basta naquela situação, e
que esse foi o primeiro passo para que todos se tornassem iguais, independentemente de
cor de pele ou lugar de nascimento. Ao chegar no final, percebemos que o Avô de
Jeremias que lhe contava essa história.
Uma História ancestral, de seu Tataravô. Jeremias sente orgulho por saber do que
aconteceu com seu antepassado. Entretanto, o protagonista, aparentemente não
compreendeu de maneira adequada o contexto da história que seu avô lhe contou e o
contexto em que vivia naquele momento. Após ouvir a história, Jeremias vai jogar bola
com seus amigos, e apresenta muita habilidade e talento, enquanto demonstra suas
Figura 22. Jeremim em O Príncipe que veio da África.
Revista Turma da Mônica nº 5.Editora Globo, 1987. p. 72.
Figura 22. Jeremim em O Príncipe que veio da África.
Revista Turma da Mônica nº 5.Editora Globo, 1987. p. 73.
98
proezas, o jogador é observado por um agente de futebol, que fica impressionado e
vislumbra planos para o novo talento.
Quando o agente elogia Jeremias, e menciona “quero comprar você!
Quanto custa?” Jeremias interpreta a afirmação e relaciona com o contexto de escravidão,
o quadro seguinte apresenta o olheiro tonto no chão, como se tivesse tomado uma bolada
de Jeremias. Então, o personagem não conseguiu diferenciar o contexto escravocrata de
sua realidade social, fazendo com que seu colega Cascão também apresentasse um olhar
de espanto.
Vale ressaltar que apesar de o personagem ganhar uma história, toda a
condução do personagem é feita pelo narrador, Jeremias se passando por “Jeremim” tem
poucas falas, então, o narrador nos revela todas as relações presentes na narrativa, ou seja,
mesmo em sua própria história o personagem não tem voz. Nota-se também, que existem
diferenças estéticas entre o príncipe Jeremim, e Jeremias, na narrativa que trata do
príncipe, este é apresentado com lábios, já no momento em que Jeremias aparece, é
desenhado com círculo rosado na boca. Outra questão importante, é que os traços de
Jeremias se modificaram, sua cor tornou-se marrom, esta é uma das expressões estéticas
Figura 23. Jeremim em O Príncipe que veio da África.
Revista Turma da Mônica nº 5.Editora Globo, 1987. p. 73.
99
do personagem na década de 1980, onde sua representação11 oscilou entre diferentes tons,
como é possível perceber na história “Os Novos Donos da Rua”, publicada no primeiro
almanaque da Mônica da editora Abril, em 1987.
Jeremias aparece ainda no formato “blackface”, torna-se interessante perceber que
no mesmo ano, a estética do personagem foi modificada, apresentando seu caráter não
fixo, pontua-se então que, não seria apropriado apresentar o personagem repleto de
estereótipos para contar um pedaço da história dos negros, ou seja, para se contar sobre a
herança africana, e consequentemente o processo de escravidão e a liberdade, o
personagem sofreu alterações estéticas, pois foi representado de maneira a propor novas
significações.
Na história “Os Novos Donos da Rua”, Mônica desiste do título e resolve nomear
Cebolinha e Cascão como seus sucessores, com tal título os personagens começam a
brigar, querendo a conquista sem nenhum tipo de divisão, até que Mônica volta atrás e
toma o título de volta.
Jeremias aparece de maneira muito pontual, para parabenizar os amigos pela
conquista, e visualiza toda a briga.
11 Sobre as representações de Jeremias da década de 1980, a figura 24 corresponde a uma representação utilizada inicialmente entre o final da década de 1970 e o início da década de 1980, alguns arquivos da internet pontuaram essa utilização do personagem, entretanto, não foi encontrada histórias em quadrinhos com o personagem representado desta cor na data sugerida, portanto, em 1987 provavelmente a história “Os Novos Donos da Rua foi republicada, fazendo com que o personagem apresenta-se a tonalidade anterior, já que em 1987, Jeremias já era pintado de marrom, entretanto, existe a possibilidade de o personagem ter sido pintado de maneira errada, ou diferente, levando em consideração o fato de que as histórias de Maurício de Sousa funcionavam em diferentes plataformas.
Figura 24. Jeremias na história “Os Novos Donos da Rua”,
Almanaque da Mônica, Abril. 1987. p. 51
100
Torna-se interessante pontuar que as alterações de cor do personagem Jeremias
não foram feitas por mero acaso, e sim com relações dialógicas, de acordo com as
alterações socioculturais em torno da figura do negro, portanto, a partir de tal perspectiva,
é possível compreender que mesmo no ano de 1987, o personagem figurou de maneiras
diferentes nas histórias em quadrinhos.
É possível perceber também o personagem representado de outra forma na mesma
década:
Em “Fumando”, história que tem como protagonista o Cebolinha, Jeremias
aparece como coadjuvante, fazendo parte de toda a narrativa. O Personagem vê Cebolinha
saindo da loja com um maço de cigarro e acredita ser de verdade, como bom amigo,
Figura 25. Jeremias na história “Os Novos Donos da Rua”,
Almanaque da Mônica, Abril. 1987. p. 52
Figura 26. Representação de Jeremias na década de 1980.
101
aconselha Cebolinha a não utilizar os cigarros, até descobrir que são cigarros de
chocolate.
Não é Incomum dentro das narrativas que Jeremias está presente, o personagem
entender os acontecimentos de forma equivocada, como é possível notar na continuação
da história logo abaixo.
Figura 27. Representações de Jeremias na década de 1980 na história
“Fumando”, publicada em Cebolinha 121, Ed Abril. 1983, p. 36
Figura 28. Representações de Jeremias na década de 1980 na história
“Fumando”, publicada em Cebolinha 121, Ed Abril. 1983, p. 39
102
Apresentam-se então, diferentes nuances, Jeremias dialoga com diferentes
momentos culturais do País, sendo representado entre o nanquim e o marrom, tornando-
se fruto das relações dialógicas. O personagem funciona como um signo, propondo inter-
relações com o contexto no qual foi concebido.
Na história “A raça do Floquinho”, publicada na década de 1990, Jeremias aparece
em apenas um quadro, demonstrando que não compreende o que Cebolinha diz, como é
possível observar abaixo:
Figura 29. Jeremias. Revista Cebolinha nº 107. Globo, 1995.
Observa-se que em algumas narrativas Jeremias aparece como um personagem
que não compreendesse a narrativa em que está presente, um desconhecedor do discurso.
Então, o personagem situa-se entre a ausência de falas e a falta de compreensão do que
está acontecendo. Apesar de sua alteração estética, sua posição discursiva não sofreu
grandes alterações, na verdade, é possível perceber que na década de 1960, quando o
leque de personagens de Maurício de Sousa era menor, o personagem era posicionado de
maneira mais presencial, ou seja, como parte da turma, tinha trechos específicos em que
eram apresentados suas opiniões, seus sonhos, o personagem era parte do discurso, e
compreendia a narrativa que funcionava ao seu redor. No entanto, com a chegada de
novos personagens, seu posicionamento tornou-se limitado, figurando entre personagem
secundário e terciário.
Em “O Chapéu do Contrário” publicada em 2005, é possível ver o personagem
reivindicando a utilização do chapéu pelos outros personagens, já que é um item que
Jeremias usa desde sua primeira aparição. Nas palavras do personagem: “Ué! Agora, todo
mundo deu pra imitar?” É possível compreender uma atitude tomada pelo personagem,
103
ou seja, o personagem posiciona o seu lugar de único usuário de boné da Turma, e
apresenta um discurso no momento em que ninguém fala.
Nota-se que na década de 1980, a composição estética de Jeremias se alterou em
vários momentos, e no final desta década o personagem assumiu a representação que
figura até os dias de hoje na Turma da Mônica Clássica, portanto, a partir desta década é
possível traçar o seguinte panorama:
Personagem Jeremias na Década de 1980
Figura 30. Jeremias em “O Chapéu do Contrário” Publicada no
almanaque do Cebolinha nº 89, ed. Globo, 2005. p. 33
1980 1982 1987 1989
104
Tendo como referência as histórias em quadrinhos analisadas foi possível observar
as alterações feitas no personagem, e seus dialogismos. Ao propor a linha do tempo como
exercício analítico, é possível compreender que o personagem passou por quatro estágios
na década de 1980, e ao comparar com a linha do tempo apresentada no período chamado
“Pré-Turma”, nota-se que entre 1960 e 1989 Jeremias12 é representado de sete maneiras
distintas, ou seja, o personagem não funciona de maneira fixa, este funciona como signo,
discurso e dialoga com a sociedade em que está inserido.
Um Protagonista Negro: Surge o Pelezinho
“De início, Pelé relutou muito em aceitar a ideia, ver sua imagem ligada
a um personagem com feições estritamente infantis...” Entrevista de Maurício
de Sousa ao jornal Folha de São Paulo, 1976).
Na década de 1970, Maurício de Sousa articulava seus personagens de acordo com
as possibilidades mercadológicas, e o autor foi percebendo que os personagens
funcionavam, dialogando com marketing, diferentes mídias, ou seja, o autor foi repetindo
uma lógica que conseguiu administrar, e que ainda é utilizada nos dias atuais. Maurício
compreendeu a forma que os Syndicates funcionavam nos Estados Unidos, e reproduziu
as articulações com a Indústria Cultural. A partir de tal percepção, o autor propôs um
diálogo com a cultura futebolística, criando a partir de um grande atleta, sua representação
nos quadrinhos.
Sobre a minha impressão do Pelezinho, no início quando o Maurício veio com
a ideia, eu não tinha nenhuma experiência também, era tudo novo, a única coisa
que eu não gostei e que hoje é a marca real do Pelezinho, a única coisa que eu
não gostei foi o cabelo, o topete... Falei mas Maurício... Não dá pra arrumar...
(Depoimento do jogador Pelé no relançamento do personagem Pelezinho para
Copa do Mundo de 2014).
12 Em algumas histórias em quadrinhos produzidas na década de 1990 Jeremias fazia parte da “Turma do Bermudão”, com Manezinho, Titi e Franjinha. A tal turma aparecia em poucas narrativas, e o “bermudão” servia para identificar o fato de estes personagens serem mais velhos que Mônica, Cebolinha e os outros personagens criados posteriormente.
105
O personagem foi criado em 1976, e foi publicado inicialmente nas tiras de Jornal
do Folha de São Paulo, Maurício de Sousa acreditava que as narrativas deveriam ser
baseadas nas histórias que Pelé viveu quando era pequeno. Entretanto, o jogador
acreditava que seria melhor uma versão adulta em quadrinhos. Segundo Maurício, a
continuidade da marca do rei do futebol estaria garantida se os quadrinhos fossem
destinados ao público infantil.
Pelezinho tinha uma turma, os personagens coadjuvantes eram todos baseados em
sua infância, Maurício de Sousa e Pelé mantinham diálogos, e a partir daí, as tirinhas eram
criadas. Em 1977, devido ao sucesso da tirinha, Pelezinho ganhou uma revista publicada
pela editora Abril.
“Frangão; Teófilo; Cana Brava; Bonga; Rex, o cavador e Samira serão os
primeiros da “turminha do Pelé” a entrarem em ação. Para isso foram feitas
algumas subtrações dos personagens inicialmente indicados por Pelé”.
(Divulgação dos personagens no Jornal Folha de São Paulo, 5 de Outubro de
1976)
Em relação a composição e características dos personagens coadjuvantes da
“turminha do Pelezinho”, torna-se interessante destacar dois deles, e a maneira como eles
foram descritos.
A descrição apresentada no jornal Folha de São Paulo mostrava “Teófilo” como
um goleiro “criolão”, que jogava no São Paulinho de Curuçá. Por ser forte andava sempre
de camiseta bem apertada para mostrar o físico. E “Bonga”, apelido de uma crioulinha
com seios grandes, que brigava muito quando a chamávamos assim.
Figura 31. Divulgação do personagem Pelezinho no Jornal Folha de São Paulo, 5 de Outubro de 1976.
106
As características dos personagens foram apresentadas por Pelé, indicando como
eram seus amigos de infância, então, tal descrição foi feita pelo jogador, ou pelo autor
das representações? A questão aqui, é compreender como era o pensamento social no
momento em que as tirinhas foram criadas, percebe-se que os personagens dialogam com
o futebol, como tirinhas construída especificamente para mercados específicos, com fins
lucrativos.
A construção de narrativas sobe Pelé deve-se ao fato de o jogador ser muito
habilidoso e ter se tornado um fenômeno nacional e internacional, nas palavras do
jornalista esportivo Luís Mendes13:
O Pelé foi maior jogador do mundo por causa do comportamento pessoal que
agradava a todos. Sempre foi muito cordial, era um homem completo, sempre
muito profissional. Vou usar a frase do Johan Cruyff: 'Para surgir alguém
13 Luís Mendes começou a trabalhar na rádio globo em 1950, foi um dos criadores do debate esportivo chamado de “mesa redonda” na televisão brasileira, ficou conhecido como o comentarista da palavra difícil.
Figura 33. Personagens Teófilo e Bonga
107
como Pelé, só de cem em cem anos'. Depois ele se corrigiu, ainda bem.
'Talvez nunca mais'. Foi uma coisa fora do normal (Entrevista de Lupis
Mendes ao jornalista Lucas Moretti, em 2010).
Quando o personagem transformou-se em personagem de quadrinhos, Pelé
(Edson Arantes do Nascimento) já tinha participado de três copas do mundo
( 1958, 1962 e 1970), e o jogador já tinha feito mil gols (o milésimo ocorreu em 1969),
fato inédito na história do futebol, ou seja, colocá-lo nas histórias em quadrinhos era uma
fórmula lucrativa, pois, o jogador, já era conhecido em diferentes mídias, faltava apenas
as histórias em quadrinhos. Nesse sentido, percebe-se a proposta e articulação de
Maurício de Sousa, que ao compreender a lógica existente no mercado, posicionava suas
ideias em direções lucrativas, construindo assim um novo personagem negro que tornou-
se mais famoso que Jeremias.
Apesar do sucesso das histórias em quadrinhos, as publicações feitas pela editora
duraram até 1982, e alguns almanaques ainda continuaram sendo publicados até 1986.
Em 1988, Maurício de Sousa trabalhava coma editora Globo, então, Pelezinho foi
republicado em uma coleção de histórias antigas. O personagem ainda teve algumas
aparições posteriores, chegando a ser relançado em 2014, como possível mascote da Copa
do Mundo no Brasil, pois, segundo Maurício de Sousa “Pelé continua representando o
Brasil no mundo todo, mesmo não entrando em campo” (Sousa, 2009), e o autor teve o
apoio do Rei do Futebol: ‘Hoje tudo que se respira é futebol. Temos a Copa do Mundo, a
Figura 34. Primeira capa da revista Pelezinho, 1977.
108
Copa das Confederações, etc… O Pelezinho serve como mascote da Copa no Brasil de
maneira informal” (Pelé, 2002).
Em suma, foi possível perceber que no decorrer dos anos, a Maurício de Sousa
Produções tornou-se uma potência, entre tirinhas, histórias em quadrinhos, livros infantis,
e representações de ícones da cultura pop, os personagens de Maurício de Sousa deixaram
as narrativas gráficas, e funcionaram como signos, propondo diferentes diálogos com a
Indústria cultural. Nota-se que nesse fluxo, Jeremias não tornou-se um personagem fixo,
mesmo com aparições pouco expressivas, o personagem foi sendo alterado de acordo com
as demandas apresentadas pela sociedade. Em relação as alterações estéticas, o autor
comenta: “Quanto às mudanças, todo mundo muda um pouco hoje em dia, todo mundo
quer dar uma mudadinha de visual, eu, enquanto desenhista, tenho essa vontade também”
(SOUSA, 2007). Entretanto, percebe-se que os desenhos de Maurício são direcionados
pelo auditório social em que o autor está vivenciando, logo, é preciso focar uma área do
público e ir em direção a essa faixa (SOUSA, 2014), percebe-se então que suas opções
são dialógicas.
Dentro desta perspectiva, observaremos agora, a identidade dialógica do
personagem, dialogando com outra mídia que Maurício de Sousa passou a utilizar.
Analisaremos a produção audiovisual construída pelo autor, ou seja, o universo
cinematográfico que se inicia na década de 1980, percebendo em que narrativas Jeremias
está presente, e de que forma o personagem é posicionado.
Fase 2: Produção Audiovisual
Os estudos sobre o personagem Jeremias nos levam a compreensão de que
o personagem inicialmente é construído de uma certa forma, entretanto, este pode ser
utilizado de acordo com os interesses de seu criador, os dialogismos em torno do
personagem fazem com que este seja posicionado em diferentes mídias, ou seja, pode
estar atrelado a outras significações em momentos específicos distintos, portanto, a
situação social determina que modelo, que metáfora, que forma o personagem poderá
assumir, representar. Nas palavras de Bakhtin (2014):
Os sistemas ideológicos constituídos da moral social, da ciência, da arte e da
religião cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano, exercem por sua vez
109
sobre esta, em retorno, uma forte influência e dão assim normalmente o tom a
essa ideologia. (BAKHTIN, 2014. p. 123).
Dentro desta perspectiva, observou-se que a inserção dos personagens na mídia
televisiva e cinematográfica inicia-se na década de 1960, com comerciais, onde seus
personagens tornavam-se garotos propagandas, ou dialogavam com algum ator. As
Histórias completas, no formato curta metragem, começaram a ser produzidas em 1976,
e distribuída através de filmes coletâneas durante os anos 1980 e 1990, lançadas no
cinema inicialmente, e depois em vídeo. O repertório audiovisual cinematográfico da
Maurício de Sousa Produções possui até o ano de 2015 vinte e três títulos.
Após ser introduzida na televisão como garotos-propaganda em comerciais a
partir de meados dos anos 1960, histórias completas começaram a ser produzidas em 1976
e distribuídas através de filmes-coletâneas durante os anos 1980 e 1990 (lançados
inicialmente nos cinemas e depois diretamente em vídeo)
A coleção audiovisual possui até o ano de 2015 vinte e três títulos, entre eles,
Jeremias aparece em apenas dois.
O filme A fonte da Juventude e outras histórias (1986), vem com oito episódios,
onde apresentam-se os personagens de Maurício de Sousa distribuídos nas narrativas.
O Episódio “A fonte da Juventude”, apresenta alguns dos primeiros personagens
de Maurício de Sousa, estão presentes, Franjinha (e o cãozinho Bidu), Titi, Jeremias e
Cebolinha. A narrativa se passa em uma ida dos amigos a uma floresta, onde estes
desejam acampar.
Figura 35. Jeremias em “A Fonte da Juventude”, 1986
110
Cebolinha deixa os amigos para procurar água e encher o cantil, sem saber,
Cebolinha enche o cantil e dá para seus amigos, eles fazem um café com aquela água e
bebem. Todos transformam-se em bebês, menos Cebolinha, pois esse não queria beber
café, e sim refresco.
Após perceber que os amigos tornaram-se crianças, Cebolinha é instruído por um
senhor que conhecia a floresta a leva-los na “fonte da velhice”, e assim, após algumas
horas, seus amigos voltariam ao normal.
Observa-se que em toda narrativa Jeremias é o único que não fala, limita-se a
chorar quando se torna criança. O personagem é construído com base nas referências da
década de 1980, ou seja, lhe são atribuídos os estereótipos que eram considerados úteis
para representar o negro naquele momento. Sua posição na narrativa difere-se dos
momentos anteriores em que existiam apenas esses personagens, no filme o personagem
aparece em diferentes cenas, entretanto, passa como invisível, sem apresentar nenhum
discurso, utilizado como figuração.
Em Se Liga na Turma da Mônica - Volume 1 (2011), Jeremias aparece no episódio
“A Aposta”, em que Cebolinha e Mônica fazem uma aposta, onde o prêmio seria um
sorvete.
Figura 36. Jeremias Bebê em “A Fonte da Juventude”, 1986
111
Nesta narrativa, Jeremias estava jogando bafo (cartas) com Cascão, quando
Cebolinha passa correndo e atrapalha a brincadeira das crianças. Jeremias indignado diz:
O que foi isso? Cascão responde: Foi o Cebolinha, então Jeremias comenta: Ah! Aquela
aposta ridícula. O personagem está caracterizado com a composição estética construída
no final dos anos 1980, e que passou a ser utilizada na maioria das histórias posteriores.
Entre um filme e outro é possível notar diferenças estéticas, e o fato de que em um o
personagem funciona como figurante, e no outro como coadjuvante, chegando a ficar
indignado pelo fato de Cebolinha atrapalhar o jogo.
O personagem apresenta personalidade, questionando o fato de alguém ter
atrapalhado a brincadeira dele, tal postura, não é comum nas aparições de Jeremias, que
se apresenta como passivo em muitas das narrativas onde está presente. Outro aspecto
interessante é o fato de que o personagem funciona além do grupo onde quase sempre é
apresentado, ou seja, nesta história, Jeremias é apresentado isoladamente com Cascão, os
Figura 37. Jeremias em “A Aposta”, 2011.
Figura 38. Jeremias em “A Aposta”, 2011.
112
dois brincam independentemente das coisas que estão acontecendo. Isso mostra a fluidez
do personagem.
Nota-se que mesmo em diferentes plataformas, a identidade dialógica do
personagem se mantém de forma fluida, entre protagonismos e invisibilidades, entretanto,
é possível perceber também, que independente das nuances do personagem, este
permanece nas narrativas, sendo posicionado conforme os interesses de produção, ou seja,
ter um personagem negro tornou-se relevante. Entretanto, percebe-se também, que em
algumas plataformas específicas são escolhidos determinados personagens, não
utilizando perspectivas ligadas a diversidade, mas sim a obtenção de lucros, como é
possível perceber no próximo tópico que trabalharemos.
Fase 3: Turma da Mônica Baby (1990)
As análises propostas até então, pautaram-se sobre o dialogismo, verificando os
pontos em que ocorrem relações dialógicas entre a produção de personagens e o ambiente
sociocultural, partindo desta perspectiva, construiu-se na década de 1990 uma versão
bebê para a turma da Mônica, a “Turma da Mônica Baby”, que foi direcionada como
proposta de marketing para pacotes de fraldas descartáveis, babadores, brinquedos, ou
seja, foi criada especificamente para o universo infantil da primeira infância, de 0 a 3
anos.
A Turma é composta pelo elenco principal de Maurício de Sousa (Mônica,
Cebolinha, Cascão e Magali), com os mascotes Bidu e Mingau, e também com o
Figura 39. Turma da Mônica Baby
113
personagem Anjinho. Alguns comerciais foram vinculados na década de 1990, onde
apareciam os personagens juntamente com crianças pequenas.
Ainda hoje são lançados produtos específicos direcionados produzidos com a
temática da turma baby. Mesmo com a linha de mercado lucrativa, não há uma
preocupação da empresa em propor diversidade entre os personagens, nesse nicho
específico Jeremias não está presente. Ou seja, não há nenhum bebê negro. Recentemente
saíram alguns livros temáticos para crianças, com histórias ligadas a rotina dos bebês.
Fase 4: Você sabia? (2003) E Saiba Mais (2007)
As Histórias em Quadrinhos publicadas em: Você sabia? (2003) e Saiba Mais
(2007), dialogam com questões educacionais, discutem assuntos ligados às áreas de
ciências, história, saúde, comunicações, folclore, datas específicas e biografias de
personalidades da história brasileira. Dentro deste repertório foram escolhidas as revistas
Você Sabia? Turma da Mônica - Abolição da Escravatura (2007) e Saiba Mais sobre o
Descobrimento do Brasil (2008)
Figura 40. Turma da Mônica
Baby em Hora do Banho, 2008.
Figura 41. Turma da Mônica
Baby em Hora da Papinha, 2013.
114
A Abolição da Escravatura em Quadrinhos
Na opção narrativa proposta pela Maurício de Sousa Produções, a história se inicia
com a indignação de José do Patrocínio, que nessa história é tio da Mônica. O
abolicionista não aguenta mais o processo de escravidão no Brasil, e conta para a sobrinha
como se iniciou tal processo no Brasil.
Na história aparecem personalidade como Castro Alves, Rui Barbosa e Princesa
Isabel, entretanto, Jeremias não faz parte da narrativa, apesar de aparecerem personagens
negros e até indígenas. Jeremias apresenta-se apenas na seção “passatempo”.
Curiosamente o personagem aparece sete vezes, não tendo diálogo, ou seja, mesmo na
história que fala-se sobre o negro e o processo de escravidão, o personagem não foi
utilizado dentro da narrativa, provavelmente por já ter feito parte de história semelhante
em Jeremim, o príncipe que veio da África (1987). Entre as sete representações
apresentadas em “Passatempo”, em apenas uma delas Jeremias é escravo, em cinco ele é
um homem livre, e em uma delas Jeremias apresenta-se como um navegante.
Figura 41. Turma da Mônica em Abolição da Escravatura.
115
Outro aspecto interessante da narrativa, é que a princesa Isabel, só assina a Lei
Áurea porque a Mônica fez um pedido a ela.
Através das leituras e análises dessa história em quadrinhos, percebeu-se que
mesmo se a temática tratar de uma parte da história em que os negros viveram, isso não
significa que Jeremias será utilizado dentro das narrativas, mesmo sendo o único
personagem negro da Turma da Mônica (Pelezinho não faz parte da Turma, esse
personagem tem revista própria), então, percebe-se que a utilização do personagem está
atrelada a lógica mercadológica de produção, este pode ser utilizado ou não, dependendo
do contexto, como por exemplo, o fato de Jeremias aparecer como um navegante, um
leitor de mapas, representação inédita até este momento.
O Descobrimento do Brasil em quadrinhos
Em saiba mais sobre o descobrimento do Brasil (2008), o personagem Jeremias
aparece na capa da revista como um dos navegantes.
Figura 42. Jeremias como Navegante, Aproveitando a liberdade
após a libertação dos Escravos, e como escravo. 2007.
Figura 43. Mônica e a Princesa Isabel. 2007
116
A revista propõe diálogo com a publicação do ano anterior (Você sabia –
Escravidão do Brasil). Onde o personagem apareceu pela primeira vez como navegante.
Apesar do cargo de ajudante do capitão, Jeremias não apresenta nenhum diálogo
nesta narrativa, é apenas uma representação figurativa.
Figura 44. Capa da Revista Saiba Mais sobre Descobrimento do Brasil
Figura 45. Jeremias o navegante, 2008.
117
Um fato curioso sobre a aparição do personagem nesta narrativa, é que quando o
Navio chega as terras brasílicas, uma pequena equipe sai para averiguar o local que
“descobriram”, tendo Cebolinha como capitão, e representando Pedro Alvares Cabral na
narrativa quadrinizada. Neste momento específico Jeremias fica no navio, e não tem
contato com os habitantes do país, não participa dos contatos culturais, e não aparece mais
na história. O personagem volta a aparecer na seção passatempo.
Jeremias como Aires Gomes da Silva, aparece como “os 13 mais mais da marinha
portuguesa”, importantes por comandarem uma grande exposição, com 10 naus e 3
caravelas escolhidos por Dom Manuel, como um dos 13 comandantes. Apesar de tal
prestígio e titulação, o personagem mais uma vez é invisibilizado dentro da narrativa.
Ainda na mesma revista, Jeremias aparece como parte importante da diversidade.
Figura 46. Jeremias é Aires Gomes da Silva, 2008.
Figura 47. Jeremias é parte da diversidade do país, 2008.
118
É exatamente pelas questões apresentadas até aqui que as HQ’s não podem ser
compreendidas independentemente dos conteúdos e valores ideológicos que elas se
ligam, e o personagem, imerso nessas narrativas deve ser compreendido da mesma forma.
A construção da narrativa faz parte de uma estrutura social, então, se perdermos de vista
os elementos da situação, estaremos tampouco aptos a compreender as circunstâncias que
culminaram na construção da narrativa e na representação do personagem, pois, sua
significação é inseparável da situação concreta em que se realiza. Sua significação é
diferente a cada vez, de acordo com a situação (BAKHTIN, 2014). Se o personagem muda
sua significação, quer dizer, a mudança de significação apresenta-se como uma
reavaliação, um deslocamento possibilitando novas representações. Para Bakhtin (2014):
A sociedade em transformação alarga-se para integrar o ser em transformação.
Nada pode permanecer estável nesse processo. É por isso que a significação,
elemento abstrato igual a si mesmo, é absorvida elo tema, e dilacerada por suas
condições vivas, para retomar enfim sob a forma de uma nova significação
com uma estabilidade em uma identidade igualmente provisórias. (BAKHTIN,
2014. p. 141).
Na tentativa de mapear as aparições do personagem, apresentam-se nuances,
representações que podem ser consideradas positivas, estereótipos e processos de
invisibilidade, onde o personagem não tem voz, ou simplesmente desaparece da narrativa.
Isso mostra que o personagem existe, mas não é estável, pode ser situado em diferentes
fronteiras de formas distintas, não sendo posicionado de maneira fixa.
Fase 5: Clássicos do Cinema (2007)
As análises apresentadas até então, nos levam a percepção de que a identidade
dialógica do personagem funciona como um registro, apresenta as impressões do discurso
presente no curso das relações dialógicas na sociedade, manifestando-se como relevantes
para a compreensão do cenário social em que determinada narrativa funciona.
Dentro desta perspectiva, apresentaremos as posições do personagem Jeremias na
série Clássicos do Cinema, publicada inicialmente em 2007. Nota-se que até junho de
2016 foram lançadas cinquenta e uma edições, as narrativas presentes nessas histórias
dialogam com o cinema, filmes que obtiveram certo prestígio, ou seja, tornaram-se
119
sucesso, e transformaram-se em produtos da cultura pop. Nesse sentido, os personagens
da Turma da Mônica ocupam os lugares dos atores, propondo uma espécie de sátira.
Observou-se que entre as edições publicadas Jeremias apareceu na capa de cinco edições:
Comandante Gancho (2008), O Feio Contra-Ataca (2008), Esse Espelho é Meu (2013),
Os Vingadoidos (2013) e Gamebusters (2016).
Observou-se também um fato curioso na revista Star Treko (2012), onde o
objetivo da narrativa era propor um diálogo com a série Star Trek14 (Jornada nas Estrelas),
lançada incialmente em 1966.
Como parte da frota estelar, e do elenco principal, existe na série original uma
personagem chamada Uhura, oficial-chefe de comunicações, com representatividade
significativa na série. Na versão produzida pela Maurício de Sousa Produções, a
personagem Uhura é representada pela Mônica.
Em relação a posição da Mônica nesta revista específica, dois fatores devem ser
levados em consideração, o primeiro é o fato inegável de que a personagem Mônica é o
ícone mais importante da Maurício de Sousa Produções, como foi possível observar nas
discussões propostas anteriormente, outra questão relevante, é que apresentar a Mônica
14 Star Trek é uma franquia de entretenimento norte-americana criada por Gene Roddenberry. A franquia iniciou-se como uma série de televisão em 1966, originalmente chamada Star Trek mas posteriormente renomeada para Star Trek: The Original Series.
Figura 48. Mônica é Uhura em Star Treko, 2012.
120
neste papel evidencia o fato de que aparentemente não existe personagem feminina negra
no universo da Turma da Mônica. Falamos anteriormente sobre a personagem Bonga, que
é específica do universo em que Pelezinho existe, apesar de que recentemente a
personagem está sendo reapresentada na campanha “Somos todas donas da rua”,
veiculada pela Maurício de Sousa Produções em 2016.
Para a campanha alteraram a composição estética da personagem, processo similar
ao de Jeremias. Entretanto, a personagem Bonga, limita-se exclusivamente as narrativas
de Pelezinho, apesar de isso não significar que a personagem é fixa, os dialogismos
ligados a personagem Bonga podem leva-la a ser “Dona da Rua”. Porém, imagina-se que
a falta de popularidade da personagem fez com que não se tornasse interessante
mercadologicamente para figurar “Uhura” na revista em quadrinhos.
Figura 49. Bonga é uma das Donas da Rua, 2016.
Figura 50. Aninha é “Chuvinha” em X-monicos, (2015).
121
Tal questão apresenta-se também, em X-Monicos (2015), a série inspirada nos X-
Men15, que desde a década de 1970 tem em seu uma protagonista negra chamada Ororo
Munroe16 (Tempestade), que na versão turma da Mônica foi interpretada por Rosinha
(Chuvinha). Observa-se que Rosinha faz parte de um universo rural, uma personagem
frequente nas narrativas de Chico Bento, que, na ausência de uma protagonista negra, teve
sua identidade deslocada, ou seja, Rosinha tornou-se negra, mas uma vez é possível
compreender que os personagens não possuem identidades estáveis, ou seja, suas
identidades flutuam de acordo com os interesses de seus criadores.
Portanto, observou-se que não só a identidade dialógica de Jeremias pode mudar,
mas de todos os personagens que fazem parte da Maurício de Sousa Produções, pois, a
questão mercadológica direciona as utilizações dos personagens, então, a Mônica (ou a
Rosinha) podem se tornar personagens negras, se for de interesse dos meios que
produzem as revistas em quadrinhos.
Jeremias, um Agente Secreto
Até o presente momento, as narrativas em torno de Jeremias o apresentavam como
uma criança, um príncipe africano, um escravo, e até um navegante. Em Os Vingadoidos
15 X-Men é uma equipe de super-heróis de histórias em quadrinhos épicas publicadas nos Estados Unidos pela Marvel Comics. Criados por Stan Lee e Jack Kirby, estrearam em The X-Men #1, publicada em setembro de 1963 16 Ororo Monroe é Tempestade em X-Men, uma personagem fictícia de história em quadrinhos do Universo Marvel Comics. Sua primeira aparição foi em Giant-Size X-Men #1 (Maio de 1975). Uma das primeiras personagens femininas negras a fazer parte do universo das histórias quadrinhos.
Figura 51. Aninha (Chuvinha) utilizando seus poderes (2015).
122
(2013), Jeremias obtém seu papel mais representativo, até este momento. Jeremias
tornou-se agente especial, figura importante na espionagem mundial.
Em Vingadoidos Jeremias é o agente responsável por reunir os super-heróis mais
poderosos da terra. A narrativa inspira-se no filme Vingadores lançado pela Marvel17
Studios em 2012. Devido a uma grande ameaça alienígena, o agente Nick Furo
(Jeremias), prepara um plano de contenção para livrar o planeta terra do mal.
17 Marvel Studios (originalmente conhecida como Marvel Films entre 1993-1996) é um estúdio de televisão e de cinema, subsidiário da Marvel Entertainment, responsável por produzir filmes, desenhos animados e séries.
Figura 52. Jeremias em Vingadoidos, 2013.
123
Nas palavras de Jeremias “Só mesmo os Vingadoidos”, o agente articula situações
para conseguir conversar com os super-heróis e convencê-los sobre a importância de
trabalharem juntos.
Nota-se que nessa narrativa, a representação de Jeremias é bastante significativa,
tornando-se o articulador de um grupo de pessoas com superpoderes, e convencendo estes
a usarem tais poderes pelo bem da humanidade.
A posição da identidade dialógica do personagem nesta história é mais
evidenciada do que em Jeremim, O Príncipe que veio da África (1987), Apesar da história
resgatar elementos da herança africana, o personagem passa a maior parte da narrativa
em silêncio, já em Vingadoidos, o personagem protagoniza certos momentos, posiciona-
se em determinados aspectos, ou seja, torna-se presente, não sendo possível passar
despercebido. Em Gamebusters (2016), Jeremias também participa de uma narrativa onde
Figura 53. Jeremias e sua equipe de Agentes Secretos, 2013.
Figura 54. Representação da autoridade de Jeremias
124
salva o mundo. A revista, apresenta uma versão de Caça-Fantasmas18 (1984), entretanto,
foi produzida devido ao fato de que em 2016 estreou um remake19 do filme, logo a
Maurício de Sousa Produções, lançou a história em quadrinhos antes da estréia do filme
2016, dialogando com a indústria cultural, e posicionando Jeremias na narrativa, pelo fato
de ele ser um personagem negro.
Foi possível notar que a maneira de conduzir o personagem alterou-se, desde sua
aparição inicial, em um primeiro momento, Jeremias era integrante da turma, coadjuvante
presente nas histórias de Bidu e Franjinha, com a construção da “Turma Oficial”
composta por Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali, o personagem foi perdendo espaço,
fazendo aparições restritas, entretanto, com a construção de Clássicos do Cinema,
Jeremias apresenta-se como pontual, quando deve ser feita uma representação de um
personagem negro, ou seja, é possível compreender que, nessas narrativas, Jeremias
aparece quando precisa-se de um negro, o personagem é uma proposta de diálogo com a
representatividade negra no cinema, este, apresenta-se sozinho, como o único
personagem negro que se apresenta na Turma da Mônica.
18 Ghostbusters (Os Caça-Fantasmas) é um filme americano de 1984, do gênero comédia, dirigido por Ivan Reitman. 19 Refilmagem é o termo em português equivalente ao inglês remake (tradução literal: "refazer") e é a designação usada para novas produções e regravações de filmes, telenovelas, jogos, seriados ou outras produções do gênero de ficção.
Figura 55. Jeremias em Gamebusters, 2016.
125
A observação sobre cada fase presente no “Período Turma”, nos levou a percepção
de que no decorrer das décadas, o personagem Jeremias esteve ligado a diferentes
contextos de significação, ou seja, é perceptível seu caráter fluido. Onde antes, eras
possível observar as alterações estéticas do personagem, com o passar dos anos foi
possível identificar que o personagem estava inserido em contextos ligados a história do
Brasil, e em diferentes profissões.
Nasce outro jogador (negro), a Turma de Ronaldinho Gaúcho
Além de todas as questões abordadas no “Período Turma”, deve-se evidenciar a
construção de mais uma narrativa particular, onde a figura do jogador de futebol é
utilizada mais uma vez por Maurício de Sousa. Depois da revista Pelezinho (1977), a
indústria responsável pela Turma da Mônica repete a dose e constrói um universo
particular onde vive o novo personagem com habilidades futebolísticas: Ronaldinho
Gaúcho. Nas palavras de Maurício de Sousa: “Ronaldinho me pareceu a chave ideal para
fazer uma entrada no mercado internacional. Serviu para melhorar nossa estratégia”
(Sousa apud RAMOS, 2012). Observa-se então que, de maneira similar a proposta que
envolvia Pelezinho, as articulações que envolveram a construção do personagem,
visavam um contexto mais abrangente, uma publicação internacional, Ronaldinho é o
cartão de visitas. Só que junto com ele, estavam também os outros personagens da
empresa, como Mônica e Cebolinha (Ramos, 2012).
Figura 56. Primeira edição da revista Ronaldinho Gaúcho, editora globo, 2006.
126
Observa-se que Jeremias está presente na capa da primeira edição, pois, o
personagem geralmente faz parte do núcleo futebolístico das histórias da turma da
Mônica. Entretanto, Ronaldinho Gaúcho tem sua própria turma, com histórias que se
articulam além de Mônica e seus amigos.
Nota-se que no núcleo de personagens das histórias de Ronaldinho Gaúcho,
existem duas meninas negras, Deisi é irmã do meio de Ronaldinho Gaúcho, e Marilu é
sua amiga, esse fato nos faz contatar que no universo de Maurício de Sousa existem três
personagens femininas negras (sem contar a Mãe de Ronaldinho), Além de Deisi e
Marilu, Bonga faz parte das histórias de Pelezinho, logo, na série “Clássicos do Cinema”
(2007), a utilização de personagens como Mônica e Rosinha para interpretarem
personagens negras do cinema, não é por falta de personagens, mais uma opção
estratégica, mecânica, para que a aceitação do público funcione de forma sistemática.
Figura 57. Ronaldinho Gaúcho com Dona Miguelina (sua Mãe), Diego, Assis e Deisi, 2006.
127
O contrato de Maurício de Sousa foi feito com a empresa americana Universal,
que mantém uma rede de 4. 700 jornais, e tornou-se responsável pela distribuição de tiras
e histórias em quadrinhos de Ronaldinho Gaúcho e da Turma da Mônica. Nota-se então,
que cada produção construída pela Maurício de Sousa Produções, apresenta relações
dialógicas com o cenário cultural, enfatizando o aspecto industrial, ou seja, a criação de
personagens específicos para sua utilização mercadológica.
Partindo destas perspectivas, a análise a partir de agora se pautará pelas
articulações feitas em torno do personagem no período conhecido como “Pós-Turma”,
período onde a Turma da Mônica já tem um mercado específico, os personagens tornam-
se adolescentes, a Maurício de Sousa Produções continua dialogando com várias mídias,
inclusive com a internet, onde foram criadas histórias específicas para essa plataforma, e
suas publicações são comercializadas visando a comemoração de aniversário dos
personagens e do autor.
Figura 58. Marilu na capa de Ronaldinho Gaúcho nº 49, 2006.
128
Período Pós-Turma (2008-2016)
O período Pós-Turma é compreendido como o período que se inicia em 2008, e
funciona até os dias atuais, a Maurício de Sousa Produções já possui mercado específico
nacional e internacional, e continua propondo novas articulações, construindo
mecanismos para que seus personagens possam ser posicionados em diferentes
plataformas, sendo responsável por império cultural que movimentam representações e
identidades, assim, nossos contextos culturais agregam infinitas tendências, estilos,
características, que interferem nos processos de identidade dos indivíduos de modo
complexo e peculiar (GONÇALVES, 2016). Nota-se em tal período os usos da identidade
dialógica do personagem Jeremias, investigando seus deslocamentos, e suas inserções
específicas em determinados contextos. Em tal período verificou-se publicações distintas,
reconfigurando certos personagens, entre o que compreendemos como “Turma da Mônica
Clássica” e “Turma da Mônica Jovem”, levando em consideração, também, uma série de
publicações de aniversário, com objetivo de homenagear o Maurício de Sousa e seus
personagens. Constroem-se então, perspectivas, evidenciando o dialogismo presente nas
histórias em quadrinhos que serão analisadas, percebendo a linguagem, ou seja, o discurso
presente, e sua significância narrativa, levando em consideração seu status de produto
cultural que dialoga com o cenário social.
Em suma, pretende-se então, pontuar especificamente a posição do personagem
Jeremias em todo este processo que data de 2008 -2016, discutindo as relações dialógicas,
e a manutenção da indústria cultural, pois, todos os aspectos dos quadrinhos tem sido
afetados pelo comércio (MCCLOUD, 2005), e compreender tais relações são essenciais
para propor de maneira coerente tal periodização.
Jeremias, o Presidente da Turma
A compreensão das relações dialógicas nos leva a uma análise mais elaborada
sobre a construção narrativa, e a inserção do personagem em cenários específicos, nota-
se então, a observância de relações dinâmicas, complexas e tensas. Logo, é impossível
compreender qualquer forma de discurso citado sem levar tais relações em conta
(BAKHTIN, 2014).
129
Optar pelo dialogismo como ponto epistemológico específico para análise das
narrativas em que Jeremias está presente, é propor uma leitura, percebendo assim, pontos
de comunicação com o cenário social, ou seja, a percepção das relações dialógicas. Dentro
desta perspectiva, nota-se que as construções da identidade dialógica de Jeremias flutuam,
apresentam-se de formas distintas, assim o personagem ocupa diferentes posições. Um
exemplo disso é a narrativa que foi construída especificamente no ano de 2009, onde
Jeremias concorre a presidência do “clubinho”. Jeremias tem como candidato de oposição
Cebolinha, com um discurso pautado na igualdade, o personagem convence os eleitores
e vence a eleição. Nas palavras de Jeremias: “Sonho que se sonha só é um sonho igual,
mas sonho que se sonha junto vira uma coisa real”.
Observa-se que tal narrativa que transforma Jeremias a candidato à presidência e
consequentemente, o presidente do clubinho, não foi construída de maneira aleatória.
Em 20 de Janeiro de 2009, Barack Hussein Obama tornou-se o 44º presidente dos
Estados Unidos. Em Junho de 2009, Jeremias diz: “Eu tenho um sonho”.
Toda a narrativa em torno de Jeremias teve como referência, ou seja, dialogou
com o cenário político dos Estados Unidos, onde pela primeira vez um negro tornou-se
presidente. Jeremias, representa obama, e o bairro do Limoeiro simboliza os Estados
Unidos. Este dialogismo presente, verifica-se a partir da maneira como a identidade
dialógica do personagem é posicionada ou reposicionada, onde este, ocupa o lugar do
negro na sociedade.
Um fato curioso dentro da análise narrativa é a aparição do personagem Louco no
final do discurso de Jeremias. Tal personagem costuma aparecer quando a narrativa “não
Figura 59. Jeremias, presidente da turma, 2009.
130
faz sentido”, ou seja, o Louco20 que comunica a todos que Jeremias ganhou a eleição.
Então, Jeremias cadidatar-se a presidencia do clubinho e consequentemente vencer faz
parte de um discurso delirante ou esquizofrênico? Nota-se que mesmo nos esparsos
momentos de protagonismos do personagem, há uma ausência de legitimidade na figura
de Jeremias, percebe-se também, a expressão do rosto de Cebolinha, quando Jeremias
emociona os outros personagens com suas palavras, Cebolinha ao “pôr a lingua pra fora”,
demonstra um dilogismo comas práticas culturais hegemônicam que descaracterizam o
discurso do negro, na tentativa de desconstruir toda uma história, subjulgando, ou seja,
não legitimando a posição do sujeito negro em cenários sociais que se diferem do
imaginário de estereótipos construido ao longo dos anos.
Em 2012, é possível notar também relações dialógicas entre a representação de
Jeremias e as relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos, quando o presidente
Barack Obama se reuniu com a presidenta Dilma Rousseff, o desenhista e ilustrador
Ismael Martinez, evocou Jeremias em uma ilustração, onde este, mais uma vez apresenta-
se como presidente, ao lado de Mônica, que representa a presidenta brasileira.
Nota-se que Ismael Martinez não representa a Maurício de Sousa Produções,
entretanto, o desenhista repete a construção narrativa apresentada em 2009 na revista
Cebolinha. Ou seja, por mais um momento o personagem ocupa a posição de presidente,
20 O personagem Louco da Turma da Mônica foi criado em uma parceria de Márcio Araújo (roteirista) e Sidnei Lozano (artista). Márcio é irmão de Maurício de Sousa. Louco estreou na primeira edição da revista Cebolinha em janeiro de 1973, em “Uma história muito louca”, o personagem foge do hospício e se encontra com Cebolinha.
Figura 60. Jeremias Obama e Mônica Rousseff por Ismael Martinez. 2012.
131
que é transitória, flutuante, pois, especificamente na narrativa proposta pela Maurício de
Sousa Produções, a história tem um fim, então, não é possível compreender se Jeremias
tornou-se um bom presidente, ou se por acaso chegou a exercer o cargo, a narrativa de
maneira pontual apenas incorporou os aspectos culturais e deu voz ao personagem por
um único momento específico. Bakhtin (2014), comenta que a sociedade em
transformação alarga-se para integrar o ser em transformação. Nesse sentido, a sociedade
construída nas narrativas dos quadrinhos reproduz esse exercício., pois o Bairro do
Limoeiro, pode tornar-se mais amplo, e Jeremias pode ser o protagonista de uma
narrativa, entretanto, é possível observar, que de maneira pontual o personagem é inserido
nas narrativas, que nunca estão separadas das relações sócio-culturais. Logo, as HQ’s não
podem ser compreendidas independentemente dos conteúdos e valores ideológicos que
elas se ligam, a construção da narrativa faz parte de uma estrutura social.
Turma da Mônica Jovem (2008)
Mônica mantém os dentões e o coelhinho, mas não é mais uma menina
gorducha, como diziam Cebolinha e Cascão. Os dois também mudaram...
Magali continua comilona. Mas controla o que come para se manter esbelta.
(RAMOS, 2012. p. 64).
Em 2008 a Maurício de Sousa Produções, lançou a Turma da Mônica Jovem,
publicações em que ocorreu mudança no perfil de seus personagens, onde tornaram-se
adolescentes. A proposta dessa nova cara da Turma da Mônica, seria atrair um leitor mais
jovem, diferente do que tradicionalmente lê as revistas infantis (RAMOS, 2012).
A revista foi produzida no estilo mangá (quadrinho japonês), gênero muito
popular entre a faixa etária adolescente, chegando a dividir espaço com as revistas de
super-heróis. Para promover a nova publicação, a Maurício de Sousa Produções distribuiu
gratuitamente uma revista especial de seis páginas em um evento chamado Anime
Friends.
132
Nota-se que a MSP (Maurício de Sousa Produções), não tinha nenhuma
publicação nesse formato, logo, percebendo o mercado específico onde adolescentes
consumiam os quadrinhos japoneses, a MSP se articulou e construiu narrativas em que
seus personagens tornaram-se jovens, para se inserir em um tipo diferente de nicho de
mercado. Observa-se que tal articulação dialogou diretamente com a indústria cultural,
pois, a disputa mercadológica fez com que construíssem publicações específicas para tal
público. A construção de tal narrativa representa um discurso, parte integrante de uma
discussão ideológica em grande escala (BAKHTIN, 2014).
Há um incômodo estranhamento na leitura do primeiro número de “Turma da
Mônica Jovem”, que já é vendido em lojas de quadrinhos paulistanas (Panini,
132 páginas). Demora um pouco para assimilar as duas principais mudanças
da obra. A primeira e mais evidente é aceitar que os personagens cresceram e
estão na adolescência. A segunda é constatar que o novo projeto dos Estúdios
Maurício de Sousa faz uma radical mudança de gênero. Sai o quadrinho
infantil, entra o Mangá. (RAMOS, 2012. p. 65).
Em a Turma da Mônica Jovem, além dos quatro protagonistas, o universo
construído por Maurício de Sousa, também é reapresentado nesta nova caracterização, a
volta de antigos personagens, a interação com a turma do fantasma Penadinho e do
Elefante Jotalhão, então, dentro dessas novas relações dialógicas, por onde anda
Jeremias?
Figura 61. Capa da Edição nº 1 da Turma da Mônica Jovem. 2008.
133
O Jovem Jeremias
As perspectivas apontadas nesta pesquisa nos mostram que as relações dialógicas
estão vinculadas a processos de produção e articulam-se com práticas discursivas,
especificamente, evidenciam-se tais questões nas narrativas gráficas escolhidas para
observação, e de que maneira se posiciona a identidade dialógica do personagem
Jeremias.
A partir das novas produções da MSP, verificou-se que Jeremias também está
presente nesse universo remodelado, e observaremos se as discussões acerca de sua
inserção e manutenção de alguma maneira se alteraram.
A versão Jovem de Jeremias se diferencia das versões analisadas anteriormente,
o personagem, que dialoga com o perfil do adolescente negro, tem roupas estilosas, uma
possível referência ao street style21 advindo da cultura hip hop. Jeremias agora usa um
boné azul, entretanto, nas histórias da Turma da Mônica clássica ainda permanece com o
boné vermelho.
21 O street style é uma tendência de moda que surge nos centros urbanos, uma proposta de valorização do indivíduo, onde este através das roupas reproduz sua identidade, independente de classe social dos indivíduos, cultura ou etnia, e não das marcas ou semanas de moda.
Figura 62. O Jovem Jeremias. 2008.
134
Apesar das alterações em torno do personagem, suas posições nas
narrativas continuam esparsas, o personagem tem sua primeira aparição em Turma da
Mônica Jovem nº 4 “Fortes Emoções...” (2008).
Jeremias faz sua primeira aparição com grande parte do elenco, quando Mônica,
Cebolinha, Cascão e Magali precisam de ajuda para derrotar um vilão. Apesar da cena
demonstrar que todos apareceram no momento exato para derrotar o vilão, a aparição de
Jeremias se resume apenas a esse momento. Na continuação da narrativa Jeremias não
está mais presente, o personagem tornou-se invisível, ou seja, para o desenrolar da
história, ele não era essencial. Ocorre então um processo de invisibilização, onde nesse
momento, o personagem é deslocado, não precisa mais estar presente.
Observa-se então, que apesar de sua nova composição estética, o personagem
ainda ocupa uma posição subalterna, onde sua presença não é pontual na narrativa.
Figura 63. Primeira aparição de Jeremias na Turma da Mônica. 2008.
135
O personagem aparece novamente na edição nº 11 “Ser ou não ser?” (2009), onde
faz parte do time de futebol do colégio. Esta é a primeira narrativa em que o personagem
apresenta diálogos.
Apesar de Jeremias fazer parte do time que está em um campeonato escolar, o
personagem é invisibilizado, e não aparece no campo como um elemento importante do
grupo, suas aparições são pontuais quando os personagens estão no vestiário, e isso é
apresentado no discurso do treinador do time.
Figura 64. Jeremias, Do Contra e Titi (2009).
Figura 65. Jeremias e Nimbus (2009).
136
Entre as histórias que foram observadas até então, nenhuma tinha
apresentado tal discurso, essa opção “irônica” do roteirista revela que ele compreende
bem o papel que Jeremias ocupa nas narrativas da Turma da Mônica, ou seja, não trata-
se apenas de um processo invisibilidade aleatório, a narrativa é um discurso, e neste
discurso produzido pela MSP o negro torna-se invisível, e em momentos específicos são
construídas posições de visibilidade temporária, onde Jeremias faz parte de um contexto,
e é presente na história, até que seja deslocado para uma posição subalterna novamente.
Nota-se que Jeremias oscila entre o coadjuvante, o figurante, e o protagonista
temporário, entretanto, percebe-se também, que em alguns momentos, o personagem é
desconstruído dentro da narrativa, passando a não existir, ou a não ser mais importante.
Na tentativa de um exercício analítico mais preciso, foram analisadas as revistas
da turma da Mônica Jovem de agosto de 2008 a agosto de 2009, observando um recorte
especifico de um ano de produção, entre as revistas em quadrinhos foi possível notar que
Jeremias aparece apenas em duas edições (nº 4 e nº 11), e que em tais narrativas gráficas,
sua presença não é pontual, ou seja, se o personagem não estivesse presente,
aparentemente não faria diferença.
A partir de tais perspectivas, observa-se que apesar deste universo jovem criado
pela MSP, o personagem Jeremias é posicionado da mesma maneira que nas narrativas
da Turma da Mônica clássica.
Clássicos Ilustrados Turma da Mônica (2008)
Em 2008 a Maurício de Sousa Produções construiu narrativas pautadas em
clássicos da literatura, as revistas foram lançadas pela RBS Publicações. Os personagens
da Turma da Mônica se dividiram em 14 histórias, e cada uma delas trazia clássicos como
Cinderela, Branca de Neve e Rapunzel.
Entre as histórias Jeremias aparece em “A Roupa nova do Rei22”. A narrativa é
apresentada de maneira semelhante a história original, os personagens não apresentam
falas, apenas compõem a cena, uma espécie de livro ilustrado.
22 A roupa nova do rei (em dinamarquês Kejserens nye Klæder) é um conto de fadas de autoria do dinamarquês Hans Christian Andersen, e foi inicialmente publicado em 1837.
137
Jeremias é um súdito real do rei Cebolinha, o personagem aparece duas vezes na
narrativa, e também está presente na capa da história. Apesar de aparições pontuais,
Jeremias se mostra alegre em desempenhar suas funções. Observa-se que entre as 14
narrativas produzidas, na única em que Jeremias está presente, o personagem apresenta-
se em posição de subalternidade.
MSP 50, MSP + 50, MSP 50 Novos Artistas e Ouro da Casa
Em 2009, a Maurício de Sousa Produções criou um novo projeto, em homenagem
aos 50 anos de carreira de Maurício de Sousa, a proposta era uma releitura do universo
criado pelo autor, ou seja, os desenhistas convidados teriam liberdade para reelaborar a
Turma da Mônica. A obra se dividia entre cartuns, tiras e quadrinhos feitos por um rol de
desenhistas e roteiristas nacionais. A ideia era mesclar diferentes autores, cada um com
uma versão pessoal de dado grupo de personagens.
MSP 50 – Maurício de Sousa Por 50 artistas foi um projeto bem sucedido.
Termômetro disso pôde ser percebido na premiação do Troféu HQMix do ano
seguinte. A obra venceu três categorias: melhor edição especial nacional,
projeto editorial e publicação mix (reunião de histórias de diferentes autores).
(RAMOS, 2012. p. 70).
Figura 66. Jeremias é um súdito do Rei (2008).
138
Do ponto de vista mercadológico, a obra também tornou-se interessante,
gerando mais duas continuações “MSP + 50 Maurício de Sousa por mais 50 artistas
(2010)” e “MSP 50 Maurício de Sousa por 50 novos artistas”. Em 2012 a Maurício de
Sousa resolveu fazer uma obra específica intitulada “Ouro da Casa”, que seguia o mesmo
formato das três edições citadas, entretanto, a homenagem foi feita pelos profissionais
que trabalham em seu estúdio. A inspiração veio da clássica “Mônica 30 anos”, em que
vários artistas brasileiros e estrangeiros desenharam a “dona da turma”, e do álbum
“Asterix e seus Amigos”, no qual 34 artistas do mundo todo fizeram histórias do baixinho
gaulês para comemorar os 80 anos de Albert Uderzo que criou o personagem junto com
o roteirista René Goscinny (GUSMAN, 2009). Ou seja, as obras reunidas totalizaram 200
novas representações do universo da Turma da Mônica, e dentro destas releituras, nos
interessa saber a posição do personagem Jeremias. Nesse sentido, destacaremos as
narrativas em que Jeremias está presente.
Cebolinha em: Ele está Chegando (MSP 50 – 2009)
A Narrativa criada por Luciano Félix, apresenta uma rotina aparentemente normal
no bairro do Limoeiro, Cebolinha mais uma vez arquiteta um plano para pegar o
coelhinho da Mônica, até que o personagem Louco diz para as crianças se esconderem,
pois, “ele está chegando”. A história é a única de MSP 50 em que Jeremias aparece.
Apesar de uma releitura, o personagem apresenta-se como em algumas narrativas
anteriores, sem falas, nos dando a impressão de que se não estivesse neste quadro
específico não faria falta, pois a cena poderia ser construída com qualquer outro
Figura 67. Jeremias na História “Ele está chegando” (2009).
139
personagem, já que apenas o personagem Louco apresenta um discurso. Jeremias ainda
encara o leitor, o personagem foi construído com uma expressão de que não compreende
nada do que está acontecendo. Depois desse quadro o personagem não aparece mais, e a
narrativa termina com um tom de suspense, pois “ele” não revela sua aparência.
Sessão da Tarde – Parte 1: Recreio (MSP + 50 - 2010)
A narrativa de Mateus Santolouco apresenta as crianças no ambiente escolar, onde
todos temem a Mônica, e Cebolinha tenta subornar as crianças para que tentem dar um
susto na Mônica.
Nesta história, Jeremias tem um momento de fala, o personagem nega qualquer
possível favor a Cebolinha, mesmo em troca do “álbum completo do campeonato
blasileilo”.
Sessão da Tarde – Parte 2: Primeiro Período (MSP + 50 - 2010)
A história apresenta-se como uma continuação indireta da narrativa anterior, pelas
mãos de Rafael Albuquerque, Jeremias é retratado com uma das crianças que tem pavor
da Mônica.
Figura 68. Jeremias na História “Recreio” (2010).
140
Mônica por Romahs (MSP + 50 – 2010)
Nesta narrativa, a história gira em torno de um trauma que a Mônica sofre após
um tombo, e fica com medo. Jeremias aparece como parte de uma cena onde os meninos
estão jogando bola.
A lenda de Jeremiwazi (MSP + 50 – 2010)
Na edição publicada em 2010, segundo número da trilogia, Jeremias ganha uma
história onde se torna o protagonista, um herói que deseja salvar seu povo. A narrativa
Figura 69. Jeremias e Titi na história “Primeiro Período” (2010).
Figura 70. Franjinha, Cebolinha, Cascão e Jeremias. (2010).
141
dialoga com a identidade negra, pois se trata de uma lenda africana transmitida por seu
avô, e Jeremias dividi com seus amigos. A construção foi feita pelo artista André Diniz,
que já trabalhou com outras narrativas tendo a cultura negra como elemento central. Em
2010 Diniz lançou “O quilombo Orum Aiê”, e em 2011 a história “Morro da Favela”.
No início da história os garotos estão discutindo sobre qual o melhor herói,
Jeremias aparece e diz: “Humpf... Que heróis mais manjados! Aposto que vocês nunca
ouviram falar do meu herói preferido”. Jeremias em seu discurso questiona o padrão
tradicional de herói, e mostra aos colegas um herói que dialoga com sua tradição
identitária. Jeremiwazi é um ancestral de Jeremias, uma lenda passada por gerações em
contação de histórias. Nesta narrativa específica Jeremias com orgulho conta sobre uma
representação que apresenta significações especificas com sua família e
consequentemente sua identidade étnica.
Jeremiwazi representa a narrativa mítica e passa pela jornada do herói, ou seja,
alguém que arrisca ou dá a própria vida em favor de algo maior que ele mesmo
(SCHAPER, 2011). A chamada trajetória do herói é pautada em uma estrutura, onde
existe a partida, a iniciação e o retorno (CAMPBELL apud SCHAPER, 2011).
O personagem do conto lembra o que é compreendido nas histórias em
quadrinhos como o Messias, um nobre herói que se sacrifica em nome do altruísmo para
salvar os outros (KNOWLES, 2008).
Figura 71. Jeremias por André Diniz (2010).
142
Então, observa-se que Jeremwazi inicialmente “morre”, por ter engolido um
pedaço de osso de boi que ficou entalado em sua garganta, o que poderia ser
compreendido como uma espécie de partida, já que posteriormente o personagem retorna
de maneira épica da morte.
Enquanto o herói está “morto”, Kammapa, um monstro gigante se aproxima da
aldeia e engole todos os que vivam nela, exceto Jeremiwazi. O processo de iniciação, é
percebido quando o personagem retorna da morte, pega uma lança e vai atrás do monstro,
um longo caminho até cumprir seu objetivo.
Figura 72. A “morte” de Jeremwazi (2010).
143
Jeremiwazi encontra o monstro, é engolido por ele, e percebe que toda sua aldeia
ainda está no estômago do monstro. O personagem ajuda todos a escaparem, e derrota o
monstro concretizando o que poderíamos compreender como o retorno, pois, a partir
desse momento Jeremiwazi se transformou em herói, e é recompensado pela linda jovem
da aldeia.
Uma particularidade desta narrativa é que o personagem Cebolinha apresenta
um discurso em que questiona a posição do herói Jeremiwazi. Ao ouvir a história de
Figura 73. A Iniciação de Jeremwazi (2010).
Figura 74. O Herói Jeremwazi (2010).
144
Jeremias, Cebolinha compara a história com as narrativas que conhecia sobre os heróis,
e logo, aparentemente para ele, a história de Jeremias não se apresenta como possível.
Cebolinha se posiciona em quatro momentos:
1. “Mas que laio de helói é esse que mole no plimeilo quadlinho?”
2. O Helói moleu e todo mundo foi engolido. Não achei muito helóica essa histólia...
3. Plonto, quando tava ficando bom, o “Helói” moleu de novo...
4. Achei meio estlanha essa histólia... Difícil de acleditar num monstro devorador
que come tudo o que vê”.
Figura 75. Cebolinha questiona a História de Jeremias (2010).
145
“Fica quieto e escuta”, foram as palavras de Jeremias, depois de algumas
interrupções de Cebolinha. Os questionamentos de Cebolinha dialogam com uma visão
unilateral de heróis, onde qualquer narrativa com elementos distintos parece menos
razoável. Ou seja, a visão de Cebolinha, um símbolo da Turma da Mônica, mas conhecido
que Jeremias, reflete o pensamento mercantilista da indústria cultural, estruturado em
construções ideológicas que são mantidas, apresentando um herói clichê, e elaborado
principalmente nas formas do heroísmo das HQ’s norte americanas. No início da história
Cebolinha diz: “Meu helói plefelido é o supelomão”, o que poderíamos compreender
como referência ao Super-homem23. Logo, Jeremiwazi não se parece com o herói que faz
parte de seu imaginário, assim, não deve ser compreendido como real.
André Diniz ao construir essa história, e escolher entre o universo da Turma da
Mônica o personagem Jeremias rompe com os estereótipos massificados em torno de
personagens negros, e constrói uma narrativa que figura a representação da identidade
negra, ou seja, o autor mostra que a identidade dialógica do personagem é fluida, e não
deve ser vista como estática, imóvel, podendo assim ser essencial em uma narrativa.
Observa-se que, até a análise dessa história específica, Jeremias só teve uma outra
narrativa longa dentro do universo de Maurício de Sousa, ou seja, “Jeremim, o Príncipe
que veio da África” foi publicada em 1987, e entre a década de 1980 e 2010, não houve
outro momento em que uma história e toda sua construção estivesse baseada
especificamente em Jeremias. Portanto, nota-se que é possível deslocar a identidade
dialógica do personagem, para que esse apareça em diferentes cenários e posições,
entretanto, esse deslocamento não costuma ser representado de forma positiva, visto que,
entre 1960 e 2010, Jeremias é especificamente protagonista de apenas duas narrativas.
Cebolinha em: Nó (MSP 50 Novos artistas – 2011)
Em “Nó”, João Montanaro constrói uma narrativa pautada em Cebolinha, e
nas explicações psicológicas relacionadas ao fato de o personagem sempre querer roubar
23 Superman ou Super-homem é um super-herói fictício de histórias em quadrinhos, criado por Joe
Shuster e Jerry Siegel na década de 1930, sua primeira aparição foi na revista americana Action Comics,
que fazia parte da editora DC Comics.
146
o coelhinho e dar nó em suas orelhas. Jeremias aparece jogando bola com os amigos, sem
falas. O núcleo futebolístico das histórias da turma frequentemente reflete a presença de
Jeremias.
A Turma em: Dia de Pagamento no Bairro do Limoeiro (MSP 50 Novos artistas –
2011)
A história construída por Samuel Fonseca, evidencia o protagonismo do
personagem Zé Luís. Jeremias aparece em quatro momentos na narrativa, entretanto sua
fala se resume a: “Sei lá... Bem no melhor da festa...”. O personagem questiona o fato de
Cebolinha deixar a comemoração e ir embora.
Figura 76. Jeremias jogando bolas com os amigos (2011).
Figura 77. Jeremias e os amigos (2011).
147
O Dono da Lua (MSP 50 Novos artistas – 2011)
Os artistas Hector Lima e George Schall produziram uma história em que se o
Cebolinha se tornar o dono da rua pode causar alguma confusão, já que normalmente o
personagem não ocupa este cargo.
Nesta narrativa Jeremias e Humberto estão jogando bola com Bernardão, um
personagem que era utilizado no início da trajetória de Maurício de Sousa. Neste
momento aparece o personagem Louco. Jeremias alerta Humberto: “Hã, Humberto vamos
nessa, minha mãe tá chamando. Tchau Bernardão!”. E continua: “Sabia que jogar com
ele dava azar”.
Observa-se que para Jeremias a aparição de Louco não é algo positivo. Nessa
história, Jeremias apresenta seu ponto de vista sobre alguma questão específica, sugerindo
ao amigo que eles saiam da rua e voltem para casa. Outra questão pertinente, é o fato de
o personagem evocar “sua mãe”, outra prática pouco usual nas narrativas em que Jeremias
está presente.
Figura 78. Jeremias, Humberto e Bernardão (2011).
148
A Turma da Mônica por Will Leitte (MSP 50 Novos artistas – 2011)
O Ilustrador Will Leite apresenta uma espécie de painel, retratando a Turma da
Mônica com seus traços, entre os personagens está Jeremias.
O Primeiro Dia (MSP 50 Novos artistas – 2011)
O primeiro dia é uma história construída por Estevão Ribeiro e Leo Finocchi, a
narrativa se baseia no primeiro dia de aula de Cebolinha. A aparição de Jeremias se
resume a sua caminhada em direção a porta da Escola Municipal Maurício de Sousa.
Figura 79. Turma da Mônica por Will Leite (2011).
149
Uma Tarde de Outono (MSP 50 Novos artistas – 2011)
A narrativa apresenta um questionamento sobre a industrialização, a chegada de
prédios e a possível perda do Bairro do Limoeiro, já que a cidade está crescendo.
Franjinha e Jeremias enfatizam que são mais velhos, e que tem mais
responsabilidade “escola de manhã e curso técnico a tarde”. Jeremias está presente em
quatro momentos, e suas falas são: “Pode crer Franja”, em concordância com o amigo;
“Falando nisso, vamos nessa senão perdemos o ônibus...”, indicando suas
Figura 80. Jeremias indo a escola (2011).
Figura 81. Jeremias e Franjinha (2011).
150
responsabilidades; e “Falou moçada!”, evidenciando a diferença de idade entre ele e as
crianças (Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali).
Apesar de sua aparição se remeter a pequenos momentos, o personagem apresenta
um perfil responsável, outra prática incomum nas narrativas, pois, mesmo na análise
específica da Turma da Mônica Jovem (2008), em nenhum momento o personagem
evocou suas responsabilidades, ou o fato de ser mais velho que as crianças.
Dia em que voltei a ser Criança (Ouro da Casa – 2012)
O artista João Marcos apresenta uma história aparentemente baseada em sua
experiência ao fazer parte da Maurício de Sousa Produções. No final da História, o
desenhista apresenta os personagens da Turma da Mônica. Nesta ilustração, apesar de
aparecer apenas uma vez, Jeremias faz parte do núcleo central.
O Homem sem pressa (Ouro da Casa – 2012)
A narrativa proposta por Bruno Honda Leite, apresenta uma estrutura diferente de
histórias, como uma espécie de recortes misturando ficção com vida real. A história
apresenta a perspectiva de Horácio sobre o mundo. Jeremias tem apenas uma aparição.
Figura 82. Jeremias e a Turma da Mônica (2012).
151
A Turma da Mônica por 200 artistas
A análise objetiva sobre o material produzido pela Maurício de Sousa produções
onde outros artistas apresentaram sua maneira particular dos personagens de Maurício de
Sousa apresentou-se como um exercício interessante, pois, foi possível perceber que os
personagens não possuem uma identidade fixa, suas posições podem oscilar, dependendo
contexto sócio-cultural, ou seja, a identidade dialógica dos personagens pode ser
deslocada, logo, nesta análise, pontuou-se os deslocamentos do personagem Jeremias, e
as maneiras em que este produzia algum tipo de discurso, ou apenas funcionava como
parte do cenário.
A partir desta análise foi possível compor o seguinte quadro:
Personagem Jeremias (2009 – 2012)
MSP 50 (2009)
1 aparição
MSP + 50 (2010)
4 aparições
MSP 50 Novos
Artistas (2011)
6 aparições
Ouro da Casa
(2012)
2 aparições
Figura 83. Horácio observando Jeremias (2012).
152
Em 200 representações da Turma da Mônica, Jeremias apareceu 13 vezes, e em
apenas uma delas foi o protagonista. Uma questão curiosa a se destacar é que em “Ouro
da Casa”, no qual os artistas que trabalham no estúdio apresentaram as releituras da
Turma da Mônica, tendo em suas mãos a liberdade de criação, o personagem manteve-se
inexistente na maioria das narrativas, entretanto, na “MSP 50 novos artistas” Jeremias
apareceu 6 vezes. Nota-se também que, no primeiro projeto (MSP 50 – 2009) o
personagem aparece apenas uma vez.
Toda essa análise reflete um imaginário social, onde o negro é invisibilizado, ou
seja, as histórias em quadrinhos apresentam relações dialógicas com a sociedade. E dentro
dessa produção cultural, o protagonismo do personagem negro tornou-se uma exceção,
algo quase irreal como sinalizou o personagem Cebolinha na narrativa construída por
André Diniz. Devido a estes apontamentos, a observação sobre a representação do negro
nas histórias em quadrinhos apresenta-se como um exercício essencial, pois, a partir dos
resultados obtidos, será possível compreender que a construção do personagem negro nas
narrativas gráficas faz parte de um processo mercadológico, onde apesar dos
deslocamentos do personagem, suas posições são construídas de maneira subalterna, ou
se refletem ausências, onde o negro não tem necessidade de fazer parte da narrativa.
Histórias em Quadrões (2010)
Na década de 2000 os personagens de Maurício de Sousa saltaram das histórias
em quadrinhos e foram parar nas galerias de Museus. O projeto “Histórias em Quadrões”
fez parte de uma exposição que ficou em cartaz na Pinacoteca do Estado de São Paulo,
de outubro a dezembro de 2001. Os quadros apresentavam releituras das principais obras
da pintura brasileira e internacional.
Tudo surgiu no início da década de 80, quando visitei o Museu do Louvre. Lá,
deparei-me com crianças sentadas no chão, fazendo desenhos, que
reproduziam obras de artistas famosos. (Entrevista de Maurício de Sousa ao
site acessa.com, 2011)
A exposição composta de 47 obras, tinha como destaque a Mônica Lisa, que
relembra a imortal obra Mona Lisa de Leonardo da Vinci. Monet, Botticelli, Van Gogh,
153
Degas, Michelangelo, Toulouse-Lautrec, Renoir, Portinari, Almeida Júnior e Anita
Malfatti. A exposição também esteve presente no museu de Belas Artes no Rio de Janeiro,
de março a maio de 2002; no Conjunto Cultural da Caixa, em Salvador, de julho a
Setembro de 2002; em Curitiba, no Museu Metropolitano de Arte, de Setembro a
novembro de 2002 e em Brasília, no Conjunto Cultural da Caixa, de agosto a Setembro
de 2003.
.
As pinturas foram analisadas de maneira mais atenta devido a um catálogo que
saiu em 2010, pela editora globo. O personagem Jeremias aparece em duas
representações, a primeira (figura 81), chamada “A Independência da Turma” é uma
releitura da obra “Independência ou Morte” pintada por Pedro Américo entre 1886 e
1888. O protagonismo do personagem Jeremias aparece na segunda pintura, “O Primo
Mestiço de Jeremias”, é uma releitura da obra “Primo Mestiço” de Cândido Portinari,
pintada em 1934.
Figura 84. Jeremias em Independência da Turma (2010).
154
Em suma, “Histórias em Quadrões”, apresenta-se como mais uma plataforma
utilizada pela Maurício de Sousa Produções para popularizar seus personagens. Entre as
47 obras, Jeremias é representado em dois momentos, e em um destes o personagem é
protagonista de seu próprio quadro. Nota-se que dentro da compreensão das relações
dialógicas e dos deslocamentos da identidade dialógica do personagem, Jeremias torna-
se mestiço, ou seja, nem sua caracterização como negro é fixa, logo percebe-se que sua
posição continua a ser oscilante, e funciona de acordo com as articulações da Maurício
de Sousa Produções.
Lendas Brasileiras (2010)
A série “Lendas Brasileiras”, produzida em 2010 se assemelha ao formato
apresentado em Clássicos Ilustrados Turma da Mônica (2008), entretanto, as narrativas
pautam-se nos mitos brasileiros. Os livros foram lançados pela editora Girassol, e entre
as histórias, Jeremias torna-se protagonista em “O Negrinho do Pastoreio24”.
A narrativa também funciona como livro ilustrado, os personagens figuram as
páginas ao lado de textos que contam a história.
24 O Negrinho do Pastoreio é uma lenda afro-cristã muito contada no final do século XIX pelos brasileiros que defendiam o fim da escravidão, sendo muito popular na região Sul do Brasil.
Figura 85. Primo Mestiço de Jeremias (2010).
155
Vale ressaltar que “Negrinho do Pastoreio” é a terceira narrativa pautada no
personagem Jeremias, antes o personagem figurou como protagonista em “Jeremim, o
príncipe que veio da África” (1987) e “A lenda de Jeremiwazi” (2010). Portanto, percebe-
se que desde sua construção em 1960 até 2010, Jeremias tornou-se essencial em três
narrativas, em algumas outras como “Os Vingadoidos” (2013) e “Gamebusters” (2016),
o personagem faz parte do núcleo central da narrativa, entretanto, não protagoniza a
história sozinho, logo, esses três momentos devem ser compreendidos como importantes
para a trajetória do personagem, pois, apresentam relações dialógicas que rompem com
as construções rotineiras dos desenhistas e roteiristas. Entretanto, cabe mencionar
também, que tais narrativas só poderiam ser protagonizadas por um personagem negro,
ou seja, aparentemente, a identidade dialógica de Jeremias é reposicionada para o
protagonismo, apenas quando há uma necessidade específica de utilizar um negro na
história.
Figura 86. Jeremias é o Negrinho do Pastoreio (2010).
156
Mônica Toy (2013)
Em 2013, a Maurício de Sousa Produções lançou a web-série “Mônica Toy”, os
personagens da Turma da Mônica são apresentados em animações de 30 segundos,
sempre em situação cômica. As histórias são mudas, e apresentam alguns sons ambientes,
além da internet, a série também é veiculada nos canais TBS e Cartoon Network.
A série teve boa aceitação de pública e já está em sua quarta temporada. As
narrativas são pautadas apenas nos personagens Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali,
entretanto, já apareceram em alguns episódios Chico Bento (Dupla maluca, sô! – 4ª
Temporada, Episódio 05) e o próprio Maurício de Sousa (Mauricio 80, Especial de
aniversário 3ª Temporada, Episódio 06).
Monica Toy apresenta relações dialógicas com a cultura pop, apresentando em
seus episódios referências a filmes, eventos, ou seja, um diálogo com as relações sociais,
como é possível notar nos episódios Presentes curiosos (Especial de Natal 2015) e
Toylimpíadas (4ª Temporada, Episódio 17).
Figura 87. Jeremias em o Negrinho do Pastoreio (2010).
157
Observou-se então, que as narrativas são pontuais, e são utilizados personagens
específicos, ou seja, Jeremias não faz parte desta plataforma, levando em consideração o
sucesso da série, existe a possiblidade de outros personagens aparecerem futuramente,
portanto, não é possível dizer que Jeremias nunca participará desta série.
Edições Especiais
As narrativas produzidas por Maurício de Sousa Produções costumam ser
seriadas, isto porque a fabricação em edições faz com que o público acompanhe as
revistas, ou seja, cria-se um mercado específico. Entretanto, são lançadas também,
narrativas particulares, edições especiais que apresentam relações dialógicas entre os
personagens da Turma da Mônica e outros cenários culturais.
Dentro desta perspectiva, optou-se por observar algumas edições lançadas entre a
década de 2000 - 2016, verificando as posições da identidade dialógica de Jeremias, suas
representações e ausências. Ou seja, uma investigação sobre os espaços que o personagem
é inserido, sua funcionalidade, articulando tais narrativas com a temporalidade, num
quadro de interações distintas, dando atenção a construção e o deslocamento do
personagem dependerá das transformações subjetivas e objetivas que ocorrem na
Indústria Cultural, frente ao desenrolar dos eventos sociais. Ou seja, propor um tom
reflexivo, direcionando os estudos das histórias em quadrinhos a uma compreensão de
discursos que se articulam na nas narrativas. Logo, para tal, não se deve usar categorias
monolíticas e essencialistas, pois, a identidade flutua, se desloca, então, o caráter não fixo
da identidade torna instáveis as fronteiras.
O Mau é Negro
Em 2004, Maurício de Sousa lançou juntamente com Paulo Coelho um livro
ilustrado chamado “O Gênio e as Rosas”, onde alguns contos que circulam o mundo são
representados pelos personagens da Turma da Mônica. Entre as narrativas, uma que nos
chama atenção, é intitulada “Conversando com o Mal”, onde o Mal fica rondando o
guerreiro, esperando um momento em que este se enfraqueça para que seja derrotado,
entretanto, a astúcia do guerreiro faz com que Mal se canse e vá embora. Nesta história,
158
Cascão é o guerreiro da luz, e o personagem que representa o mal foi construído
especificamente para este conto.
O mal, um dos dois personagens negros do livro ilustrado (o outro é Jeremias),
reflete as relações dialógicas que influenciam os autores a produzirem tal narrativa. Por
que o Mal é negro? O conto apresenta de maneira negativa o personagem para as crianças,
não dialogando com todas as crianças que leem a Turma da Mônica, uma opção
equivocada, já que se trata de um conto, o personagem poderia ser construído com
qualquer cor, entretanto, optou-se pelo tom marrom, representando de maneira negativa
a identidade negra na história.
Em contrapartida, Jeremias aparece em 2 dos 62 contos, em “Olhando os Outros”,
Jeremias e toda a turma carregam sacolas, na frente estão as qualidades e atrás os defeitos.
Figura 88. Conversando com o Mal, 2ª edição (2010).
159
Levando em consideração o leque de personagens de Maurício de Sousa, um fato
curioso é que Jeremias é o 9º da fila, e que nesta narrativa, o personagem é apresentado
de maneira igualitária aos outros que também fazem parte da história, ou seja, Jeremias
participa da jornada da vida como todos os outros personagens.
Em “Por que deixar o homem para o sexto dia?”, um grupo de sábios se questiona
sobre a criação do homem, nesta narrativa Jeremias é um dos sábios, posição que o
personagem ainda não tinha ocupado nas histórias em que costuma aparece.
Figura 89. Jeremias em “Olhando os outros”, 1ª edição (2004).
Figura 90. Jeremias em “Por que deixar o homem para o sexto dia?”, 2ª edição (2010).
160
A análise sobre “O Gênio e as Rosas”, evidencia as relações dialógicas e o
imaginário social que funciona na construção dos personagens e narrativas. Observa-se
que nessa publicação específica Jeremias foi posicionado de maneira similar aos outros
personagens, e não foi apresentado de maneira subalternizada, postura considerada
insólita, já que o personagem, mesmo com sua identidade dialógica deslocada, funciona
em cenários característicos, com aparições e posições que se repetem.
Maurício de Sousa é homenageado, e Jeremias não é convidado
Em setembro de 2007, Maurício de Sousa lançou pela Panini Comics “Maurício
de Sousa - Biografia em Quadrinhos” A narrativa é inspirada em premiações de cinema,
onde os personagens muito bem vestidos, vão ao Cineteatro Limoeirão, e prestam
homenagens a Maurício de Sousa, contando sua trajetória desde a infância até a criação
da Turma da Mônica. É interessante pontuar que os personagens organizam a
homenagem, entretanto, em tal narrativa Jeremias não está presente.
Figura 91. Maurício de Sousa – Biografia em Quadrinhos. Panini Comics, 2007.
161
Observa-se que nesta história, evidencia-se a presença de personagens negros,
construídos especificamente para esta narrativa, entretanto, o único personagem negro
que está na história e já faz parte do universo de Maurício de Sousa é Ronaldinho Gaúcho.
A história apresenta certas “posições clichês” que personagens negros costumam
ocupar nas narrativas midiáticas, como por exemplo o papel de segurança, e o sambista.
Figura 92. Ronaldinho Gaúcho em Maurício de Sousa – Biografia em Quadrinhos. 2007.
Figura 93. O Segurança
162
O Destaque na narrativa, está na representação de Mário Cartaxo, o jornalista que
aconselhou Maurício de Sousa a continuar no jornal e melhorar seus traços, o personagem
deve ser entendido como uma representação positiva, pois é apresentado como alguém
influente na narrativa.
Em suma, o grande problema da narrativa, é a ausência do personagem Jeremias,
pois, nos dá a impressão de o fato de o personagem ser invisibilizado na maioria das
narrativas fez com que se tornasse invisível por completo. Por que Jeremias não está na
Figura 94. O Sambista
Figura 95. Mário Cartaxo e Maurício de Sousa
163
narrativa? Essa é uma questão difícil de responder com exatidão, entretanto, de acordo
com as análises propostas até então, nos parece que entre os deslocamentos que o
personagem sofreu, este foi deslocado para fora da narrativa.
MSP e as Grafic Novels
A série MSP 50 fez grande sucesso, e a partir da compreensão de mercado, e das
relações dialógicas que tornavam a Turma da Mônica um sucesso não apenas para
crianças, ou seja, a partir de novas releituras, Maurício de Sousa reconquistou antigos fãs,
e então, lançou o projeto Grafic MSP, que consiste em histórias dos personagens do
estúdio desenhadas e roteirizadas por artistas brasileiros com certo prestígio na indústria
de quadrinhos. O nome vem do termo Grafic Novel25. A primeira edição foi lançada em
2012, Astronauta – Magnetar, por Danilo Beyruth e Cris Peter. Até o presente momento
foram lançadas 12 histórias neste formato.
Em Turma da Mônica Laços (2013), Lu Cafaggi e Vitor Cafaggi, apresentam pela
primeira vez a turma em uma Grafic Novel, já que a primeira edição explorava o universo
das narrativas sobre o Astronauta. Os autores constroem uma história sobre o
desaparecimento de Floquinho, o cachorro de Cebolinha. A narrativa pontua a
importância da amizade, e mostra o início dos “laços” entre a turminha, roteirizando como
se conheceram.
Jeremias apresenta-se como um personagem que compõe o cenário, este não te
fala, mas alguns outros também são posicionados da mesma forma.
25 Grafic Novel, ou romance gráfico é uma espécie de livro, normalmente contando uma longa história através de arte sequencial (banda desenhada ou quadrinhos), e é frequentemente usado para definir as distinções subjetivas entre um livro e outros tipos de histórias em quadrinhos. O termo foi popularizado por Will Eisner.
164
Uma particularidade interessante no trabalho de Lu Cafaggi e Vitor Cafaggi, é que
pela primeira vez desde a construção inicial do personagem Jeremias, é apresentado um
esboço de sua composição estética, quando os autores ainda estavam pensando na maneira
que o personagem seria representado.
Figura 96. Jeremias em Turma da Mônica Laços (2013).
Figura 97. Esboço do personagem Jeremias por Lu Cafaggi e Vitor Cafaggi (2013).
165
Maurício de Sousa faz 80 anos
Em 2015, Maurício de Sousa completou 80 anos, e a Panini Comics publicou uma
história em quadrinhos chamada Maurício 80. A narrativa apresenta a trajetória de
Maurício de Sousa desde o nascimento até os dias de hoje, em uma mistura de ficção e
realidade. Maurício apresentado como personagem na história, revive todo seu passado,
relembrando os momentos mais importantes de sua vida.
A história é construída com uma série de relações dialógicas, entretanto, algumas
referências só são compreendidas por quem já conhece as histórias da Turma da Mônica,
como a primeira aparição da Mônica, do Bidu, e alguns outros personagens que nem são
mais utilizados no universo produzido por Maurício de Sousa.
O personagem Jeremias aparece de forma tímida, relembrando sua representação
da década de 1960, em uma referência a Mogi das Cruzes em 1941, época em que
Maurício tinha 6 anos, ou seja, pela narrativa, supõe-se que quando Maurício de Sousa
era pequeno, alguns meninos viviam brincando pelo bairro, e um deles era negro.
Uma parte interessante da narrativa é que em toda sua vida Maurício de Sousa foi
visitado por seis gênios da inspiração, são eles: Fantasia, Aventura, Terror, Ficção,
Juventude e Inspiração Filosófica. Todos os personagens foram construídos
especificamente para esta narrativa, e o personagem Aventura é um homem negro.
Figura 98. Jeremias, Titi e Humberto em Maurício 80 (2015)
166
O personagem Aventura surge quando Maurício de Sousa tem 14 anos, é o
segundo gênio da inspiração, e mostra a Maurício como é interessante viver uma aventura,
e a coragem necessária para conhecer mundos diferentes.
O Gênio da aventura é um personagem importante dentro da representação do
negro no universo da Turma da Mônica, pois, a narrativa mostra que a partir dele,
Maurício construiu universos além de Mogi das Cruzes, ou seja, sua aparição inicial como
personagem negro, funciona como uma representação positiva, a posição que este
personagem especifico ocupa, apresenta-se mais pontual do que as aparições recentes de
Jeremias.
Jeremias e a Discriminação Étnica
O que seria do mundo sem as cores, olha, com certeza teríamos um mundo
pálido, sem graça, sem brilho, sem alegria, não acham? Olha, as cores estão
presentes em todos os lugares... As cores estão presentes também nas pessoas,
tem gente que é branquinha como fantasma, e não estou falando do Penadinho,
tem gente moreninha cor de canela, amarelinha, vermelhinha, e são essas cores
que deixam as pessoas mais bonitas. (Sousa, 2009).
Em 2009 a Maurício de Sousa Produções publicou na internet um vídeo no intuito
de discutir questões relacionadas a discriminação étnica. No vídeo, inicialmente Maurício
de Sousa fala sobre a importância das cores, propondo um diálogo sobre a diversidade, e
então, o autor-desenhista conversa com o personagem Jeremias, pois este, tinha acabado
de sofrer preconceito.
Figura 99. O Personagem Aventura e Maurício de Sousa (2015)
167
Após o autor falar sobre a importância das cores, Jeremias chega e os dois
começam a conversar:
Jeremias: É verdade, mas não é bem assim Maurício
Maurício: Oi Jeremias, ué que carinha triste é essa?
Jeremias: Ah! Deixa pra lá
Maurício: Não! Não! Não! Agora eu quero saber Jeremias
Jeremias: Eu fui convidado pra festa da Carminha Frufru, sabe?
Maurício: Ah! Toda turminha foi convidada, Mônica falou que a Carminha tava toda
proza, mas você não foi na festa?
Jeremias: Eu fui, mas quando eu cheguei lá, o parente da Carminha não me deixou entrar
Maurício: Não deixou você entrar?
Jeremias: Ele disse que a festa não era pra gente da minha cor, e depois ficou contando
um montão de piadas
Maurício: Oh meu Deus! Preconceito. É tão feio esse negócio de preconceito Jeremias.
É tão errado.
Jeremias: Preconceito? É, eu sempre ouço falar, mas não sei direito o que é Maurício
Figura 100. Jeremias em Discriminação Étnica (2009).
168
Maurício: Preconceito é quando alguém faz um julgamento antecipado de outra pessoa
Jeremias, é quando alguém não gosta de você por causa da sua religião, da sua idade, da
sua cor. Ah! Mas peraí, eu vou mostrar uma história que vai explicar muito bem pra você
e pra turminha toda.
No primeiro momento da conversa é possível notar que Jeremias sofreu uma
atitude preconceituosa, talvez a primeira explicita, apesar de tal situação não ser
encenada, o personagem não entende o motivo da rejeição. Deve-se levar em
consideração que esta é a primeira narrativa que pontua tal questão de maneira mais clara
e evidente, em que o personagem diz o que sofreu e como passou pela situação, ou seja,
o personagem apresentou o discurso. Observa-se também que Jeremias não sabe o que é
preconceito, então Maurício explica para o personagem. Nota-se que como Jeremias
ainda é uma criança (mesmo sendo mais velho que Mônica, Cebolinha e os outros), torna-
se aceitável o fato de que nunca tenha se deparado com a questão do preconceito. E
observa-se também como o personagem é afetado pela negação de sua entrada na festa.
Maurício apresenta a animação “Os Azuis” (2009), em que em um dia qualquer,
Mônica acorda e sai para brincar, quando nota que todos os seus amigos
inexplicavelmente estão azuis. Inicialmente achando que é um plano infalível do
Cebolinha, a garota se surpreende ao notar que não só eles, mas todas as pessoas do
mundo estão azuis - menos ela. E o que parecia brincadeira vira um pesadelo quando
Mônica passa a ser hostilizada e perseguida apenas por sua cor. A narrativa se resolve
quando aparentemente Mônica foi teletransportada para uma outra dimensão, e então,
volta a sua realidade e encontra todos de sua cor habitual. Mônica feliz por tudo voltar ao
normal diz: “Gosto muito de vocês, de qualquer jeito, de qualquer cor”.
169
A história que tem a pretensão de discutir um tema sério, apresenta uma resolução
sem consistência, pois, a narrativa indica que apenas em outra dimensão haveria tal
preconceito, logo, a sociedade “real” não tem esse tipo de problema. Na verdade, ao
apontar a animação como interessante para se perceber este problema, Maurício de Sousa
em seu discurso, aponta que no universo criado por ele não há preconceito, apesar do fato
de Jeremias aparecer na animação com lábios característicos de representações dos anos
1970 -1980.
Depois da apresentação do vídeo Jeremias e Maurício voltam a conversar:
Figura 101. Os Azuis (2009).
Figura 102. Jeremias em “Os Azuis” (2009).
170
Jeremias: Puxa, mas é chato a gente se sentir assim
Maurício: É claro né, as pessoas preconceituosas magoam muito as outras pessoas
Jeremias: Nem me fale, mas será que dá para mudar isso Maurício?
Maurício: Bem, na verdade as pessoas deveriam valorizar seus traços físicos, sua cor,
conhecer sua origem, sua cultura, tudo isso é muito importante, são essas diferenças que
fazem a riqueza e a beleza de um povo.
Jeremias: Assim como a turminha né? A Mônica é dentucinha, a Magali é magrinha e
comilona, o Cascão é sujinho, o Cebolinha é quase carequinha e fala errado, e eu sou
negro.
Maurício: É isso mesmo Jeremias, na minha turminha por exemplo tem o Hiro, o
japonesinho, tem o indiozinho Papa-capim, tem o Nimbus, o Do Contra. E tem até o
pessoal da roça lá, do Chico Bento. Tá vendo como é bom ser diferente? E são essas
diferenças que nos tornam únicos. Já pensou se fossemos todos iguais?
No fim da história Mônica e seus amigos chegam e convidam Jeremias a voltar a
festa, pois a Carminha Frufru estava perguntando por ele, e o tal primo preconceituoso
estava impedindo a entrada de todos, até quase apanhar da Mônica por chamá-la de
dentuça. O discurso de Jeremias ao “aprender” sobre as diferenças é um tanto quanto
curioso, pois, ao perceber a diferença de cada um dos personagens cita características que
são compreendidas como negativas pelas crianças como por exemplo, ser sujo, dentuço,
e falar errado, ou seja, ser negro tem a mesma dimensão das outras características citadas?
Observa-se que o personagem citou referências próximas, e que sua interpretação
sobre o mundo é de uma criança. Entretanto, não há motivo para problematizar tal
questão, deve-se levar em consideração também, que nesta narrativa específica foi a
primeira vez que o personagem usou a expressão: “Eu sou negro”. Observa-se que mesmo
sendo criança, Jeremias entende que é negro, mas não compreendia o que era preconceito.
Ou seja, as narrativas construídas pela Maurício de Sousa Produções apresentam um
mundo diverso, com personagens que apresentam características pessoais, uma proposta
de que cada personagem tem uma identidade, entretanto, compreendendo que a
identidade é fluida, tal perspectiva apresenta-se como um discurso incoerente, pois, foi
171
constatado que qualquer personagem pode “tornar-se negro”, entretanto, Jeremias
costuma ser posicionado em narrativas em que apenas um negro poderia participar.
A Identidade (negra) de um Personagem
A construção da trajetória histórica de um personagem é um exercício que tem por
objetivo os perceber os aspectos dialógicos que fazem com que o personagem continue a
existir, e as diferentes posições que este ocupou desde que foi criado. A partir de tal
panorama, percebe-se a importância de refletir sobre as questões étnico-raciais
evidenciadas (ou não) nas histórias em quadrinhos, tendo como referência o campo social
que conduziu, no Brasil, a maneira que se localiza o negro dentro do campo de
representação, pois, a composição estética do personagem das HQ’s dialoga com outras
mídias. Verifica-se então, a partir de tal pesquisa, uma linearidade em torno dos espaços
que o negro pode ocupar no discurso midiático, os modos de produção e manutenção de
certos estereótipos, no caso de Jeremias, o súdito, o escravo, o invisível, aquele que não
tem o que dizer, ou será que não pode dizer? Tal, postura epistemológica propõe reflexões
específicas sobre a instauração de outras narrativas capazes de abordar dimensões
diferentes em torno da temática racial. Ou seja, não deve existir apenas uma forma de
emoldurar o outro. Logo, tal trabalho questiona posições, interpreta certos usos da
identidade dialógica de Jeremias como equivocadas, pois, os dados mostram as raras
exceções em que o negro é protagonista, dono de sua história.
Entre as relações dialógicas, nota-se nitidamente o papel da Indústria
Cultural, como responsável pela manipulação do personagem negro nos diferentes
domínios representacionais. Portanto, propõe-se a partir da leitura de diferentes histórias
da Turma da Mônica, uma análise crítica sobre os usos (e desusos) da identidade dialógica
que consequentemente servirá de pano de fundo para a discussão de questões atuais, como
por exemplo, a construção social da identidade negra nos meios de comunicação,
colocando em xeque as estruturas temporais e evitando que a identidade (narrativa e
negra) venha a ser interpretada em termos rígidos, naturalizados e permanentes.
Portanto, compreender o Jeremias como objeto de pesquisa é propor uma
análise sobre a maneira que o personagem negro é construído e articulado dentro das
172
histórias em quadrinhos, é refletir sobre minha própria condição, ou seja, quais referências
dialogaram com minha compreensão do que é ser negro?
Como leitor assíduo de histórias em quadrinhos, as memórias que se relacionam
com a presença de Jeremias nas aventuras da Turma da Mônica são esparsas e as vezes
incoerentes. Portanto, deve-se problematizar as coincidências na qual o negro é
submetido na sociedade brasileira nos diferentes momentos e histórias em que o Jeremias
está presente são produzidas e comercializadas. Denunciando os estigmas funcionais que
operam na construção, inserção e manutenção do personagem, propondo novas leituras e
formas de contextualização, evidenciando o status móvel do personagem, propondo
assim, um estudo analítico e consequentemente plural, no sentido de evidenciar as
utilizações do personagem (negro) Jeremias, as articulações e mecanismos gerados pela
Indústria Cultural com objetivo de produção e comercialização direcionada a obtenção de
lucros.
Observa-se então uma série de protagonismos específicos, como é possível notar
na figura26 abaixo, que propõe uma homenagem ao dia da consciência negra.
A imagem acima representa o poder cultural do personagem, como signo, que
dialoga com questões sociais. Neste caso, verifica-se a articulação do personagem com a
o Dia da Consciência Negra, ou seja, sua identidade negra foi evidenciada para que este
fosse compreendido como símbolo de uma data. Essa articulação não ocorre de maneira
ingênua, pois, o personagem da voz a lógica proposta pela indústria cultural, ou seja, a
26 Apesar de a imagem estar vinculada na internet não foi possível encontrar a data exata de sua construção, a datação de postagem encontrada foi Novembro de 2012.
Figura 103. Personagem Jeremias representando o Dia da Consciência Negra, 2012.
173
partir da inserção dessa imagem nos diferentes espaços midiáticos, Jeremias passa a ser
visto como importante para a Consciência Negra, ou seja, o acesso desse tipo de
informação geralmente é visto pelo público infantil, que associará diretamente tal imagem
ao dia 20 de novembro, possibilitando assim a Maurício de Sousa Produções veicular
produtos específicos para tal data, construindo e separando mercadorias para serem
lançadas especificamente no dia 20 de Novembro.
Então, todo o mapeamento proposto, notando as oscilações da identidade
dialógica do personagem Jeremias, funciona como um exercício de reflexão, e uma
proposta de reivindicação do lugar ocupado pelo negro, pois, o personagem negro, não
deveria ser utilizado apenas quando se precisa de um negro, suas invisibilidades, seus
discursos incoerentes, e suas representações subalternizadas tem sido notadas, e
evidenciar isso é exatamente a proposta de tal pesquisa, pois, a análise das diferentes
representações de Jeremias é um exercício que detém relevância, pois, a partir desta
construção inicial, poderá se questionar qualquer tipo de composição estética e discursiva
do negro independente do meio de comunicação que este for construído e inserido.
Que Negro é esse nas histórias em Quadrinhos?
O exercício de situar o personagem Jeremias no contexto sociocultural norteou
toda esta pesquisa, tendo como ponto de referência a maneira de pensar identidade negra
a partir das perspectivas de Stuart Hall, observou-se os aprisionamentos ligados a
construção da estética negra nos veículos midiáticos, e a dificuldade de escapar das
políticas de representação (HALL, 2006). Nesse sentido, observou-se que o personagem
Jeremias propõe significados, possui uma identidade dialógica, e que não se deve
observar tal objeto de pesquisa sem prestar atenção na maneira como este é conduzido,
pois tal significado pode ser arrancado de seu encaixe histórico, cultural e político e ser
alojado em outras categorias (idem, 2006). Nota-se então, a possibilidade de verificar as
posições e os deslocamentos do sujeito negro, propondo uma análise bakhtiniana.
A apropriação do conceito de dialogismo nos permitiu compreender a construção
histórica do personagem que apresentou diálogos com o cenário social desde sua criação
174
em 1960 até as narrativas contemporâneas27, levando em consideração o papel da
Indústria Cultural em todo este processo.
O negro representado nas HQ’s não se diferencia dos outros veículos midiáticos,
as articulações propostas por um sistema hegemônico construíram um imaginário onde o
negro foi subalternizado em diferentes plataformas. No entanto, se a representação
apresenta-se como uma figuração embaraçada (BARTHES, 2015), então, vale o exercício
de questionar, desconstruir, pois, observa-se um conjunto de práticas que remetem o
negro a um único papel, na tentativa de fixar este em camadas de estereotipagem, este é
um exercício de denunciar os significados produzidos, observando relações dialógicas e
possíveis praticas racistas em torno do negro.
Segundo Hall (2016), existem práticas centrais que produzem a cultura e seus
significados que são intercambiados, então, nos debruçamos sobre o sentido de cada
narrativa onde Jeremias foi encontrado, e investigamos os aspectos representativos de
cada imagem e discurso, pois, em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo
tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de
procedimentos (FOCAULT, 2014).
Dentro do campo produzido pela Maurício de Sousa produções Jeremias é um
personagem negro, e costuma ocupar somente este papel, existem oscilações, momentos
em que são possíveis notar que a identidade dialógica do personagem flutua, e se
encontra-se entre protagonismos específicos, coadjuvante e figurante, ou seja, certos
estereótipos pertencem a um contexto social ou histórico específico, que em novas
circunstâncias, desaparecem (SANTOS, 2015), entretanto, constatou-se que Jeremias se
torna presente quando “Precisa-se de um Negro”, ou seja, dentro da perspectiva de
indústria cultural, há formas típicas de práticas representacionais, então, há espaços
específicos de se utilizar o personagem negro. Nas palavras de Stuart Hall:
O significado “flutua”. Não há como mantê-lo fixo. Acontece que a tentativa
de “fixação” é o trabalho de uma prática representacional que intervém nos
vários significados potenciais de uma imagem e tenta privilegiar um deles.
(HALL, 2016. p. 143).
27 Em dezembro de 2016 a Maurício de Sousa Produções anunciou uma Graffic Novel do personagem Jeremias, que será construída pelos artistas Rafael Calça e Jefferson Costa. Foi possível entrar em contato com os autores, entretanto, por questões contratuais eles não puderam revelar detalhes sobre a arte ou o roteiro. A Graffic Novel será lançada em 2018.
175
Em suma, propondo o dialogismo de Bakhtin como arcabouço teórico, foi possível
apresentar diálogos entre as Histórias em Quadrinhos, o contexto sociocultural, a
indústria cultural, e a identidade negra, observando a construção, inserção e manutenção
do personagem Jeremias de Maurício de Sousa.
176
Conclusão
177
CONCLUSÃO
Os questionamentos em torno de representações típicas de personagens negros em
espaços midiáticos culminaram nesta pesquisa, cujo objetivo foi analisar as relações
dialógicas implicadas no personagem Jeremias, de Maurício de Souza Produções. Um
personagem negro que dentro do ponto de vista epistemológico nunca tinha sido levado
a sério, entretanto, a partir de Jeremias é possível ressaltar questões relativas as práticas
discursivas que aludem as identidades negras no Brasil.
Logo, a construção de tal trabalho, ao abordar um personagem se apresentou como
um desafio, entretanto, vale ressaltar o prazer de utilizar como referência histórias em
quadrinhos, pois, tal veículo midiático já fazia parte da vida deste pesquisador, mesmo
antes das experiências acadêmicas. Construir uma pesquisa pautada, em um personagem
negro, ainda hoje, é considerada postura insólita, devido ao número limitado de trabalhos
que se desenrolam sobre as relações étnico-raciais tendo como ponto de observação as
narrativas gráficas.
Entre conceitos pertinentes e leituras divertidas foi possível compreender o melhor
caminho para problematizar as posições ocupadas pelo personagem Jeremias ao longo de
seus cinquenta e seis anos de existência, possibilitando um exercício metodológico, no
intuito de problematizar posições frequentes de personagens negros na mídia, ou seja, se
era possível perceber estereótipos nas narrativas televisivas, cinematográficas e teatrais,
tais construções estéticas funcionavam nas histórias em quadrinhos?
Partindo deste pressuposto, levou-se em consideração a instrumentalização das
histórias em quadrinhos como bibliografia relevante para as ciências humanas e sociais,
sendo observadas como literatura, recurso pedagógico, e como fonte de informação e
significados, evidenciando seu papel histórico e negligenciando o status de subliteratura
ou material irrelevante.
Dentro de uma postura teórica, observou-se incialmente o status de Indústria
Cultural, verificando a maneira mecânica na qual são utilizados os veículos midiáticos, e
a posição capitalista impressa no mercado, para tal, verificou-se a construção dos
Syndicates, e sua atuação no cenário das histórias em quadrinhos. Logo, foi possível notar
de que maneira a lógica dos Syndicates foi inserida no cenário brasileiro, possibilitando
articulações similares a de países como Estados Unidos, e sendo utilizada posteriormente
178
por Maurício de Sousa na construção de todo um repertório cultural, conhecido
nacionalmente e internacionalmente como Turma da Mônica. A partir de tais perspectivas
surgiu a Maurício de Sousa Produções.
Observou-se então, cada passo do personagem Jeremias, construindo
periodizações onde foi possível averiguar os imaginários construídos e a manutenção da
estereotipagem, nos espaços onde o personagem foi aprisionado e evocado por ser negro.
Esse exercício analítico foi essencial para propor uma investigação sobre tal
personagem, pois, ao observar os períodos: “Era dos Esboços”, “Pré-Turma”, “Turma” e
“Pós-Turma”, foi possível mapear a presença de Jeremias desde a década de 1960 até as
narrativas atuais da Turma da Mônica. Portanto, Levou-se em consideração que a
construção de uma narrativa por parte da indústria cultural dialoga com a estrutura social,
nesse sentido, o que há, portanto, em relação a Jeremias e ao negro brasileiro, são
representações cambiantes de identidades igualmente provisórias.
Tal pesquisa evidencia a necessidade de enfrentamento em torno de práticas
racistas na sociedade brasileira e da questão da mídia majoritariamente negligenciar o
processo de representação identitária do negro em suas práticas discursivas. Propor um
inquérito sobre o papel de Jeremias nas narrativas gráficas permite pensar não só a relação
dialógica entre diversos discursos que deram, ou não, visibilidade ao negro no Brasil.
Para elucidar tais perspectivas optou-se por uma análise Bakhtiniana, porque
“Jeremias” consiste em um personagem que faz parte de uma dada prática discursiva –
representada pelas e nas HQs – aqui compreendida como eminentemente dialógica.
Então, não foi o caso, cabe enfatizar, de se conceber a identidade negra de Jeremias como
algo fixo, ou elemento essencializado pela intenção de um suposto autor: Maurício de
Sousa. Tal demanda seria equivocada, sobretudo porque quando se considera um
personagem (ou os temas a ele vinculados) como sendo estático, acaba por fixar-se na
mediação que uma pretensa materialidade do signo supostamente oferece, e assim perde
o dado analítico que seria o mais importante: as mudanças de sentido capazes de mostrar
as dinâmicas das transformações sociais.
Desse modo, ao se analisar algumas histórias representativas de quatro
periodizações distintas, verificou-se nuances racistas, representações que podem ser
parcialmente consideradas positivas, estereótipos e até processos de invisibilidade social
do negro, onde o personagem não tinha voz, ou simplesmente desaparecia da narrativa.
179
A identidade de Jeremias manteve dialogismos perceptíveis com os cenários
sócio-políticos, oscilando entre um presidente que propõe que todos são iguais e
personagens construídos nos moldes da blackface.
Por ser um trabalho que propõe um exercício analítico sobre histórias em
quadrinhos, optou-se por elucidar alguns momentos relevantes da pesquisa de forma
quadrinizada, onde este pesquisador torna-se um personagem de histórias em quadrinhos,
e de maneira narrativa apresenta momentos específicos da construção e das considerações
finais desta dissertação.
Em suma, tal prática apresentou-se como relevante para se colocar em pauta a
construção de personagens dentro das narrativas midiáticas, verificando as conotações
discursivas e estéticas utilizadas para posicionar o personagem negro, tal exercício nos
mostra que a sociedade contemporânea ainda aciona mecanismos de subalternidade e
invisibilidade em torno de personagens, que representam as identidades negras, omitindo
quaisquer tipos de protagonismos, ofuscando representações positivas, ou seja, o negro
dos quadrinhos é construído com referências de práticas racistas, onde persistem
tentativas de fixar atributos e discursos em torno da negritude.
Portanto, tendo em vista os dados obtidos nesta pesquisa, é possível responder:
Que negro é este nas histórias em quadrinhos? Este negro chama-se Jeremias, e foi
observado a partir de sua identidade dialógica, que oscilou entre estereótipos clássicos
em torno do negro, ou seja, narrativas que evidenciavam aspectos da África, sociedades
escravocratas, e profissões subalternizadas e protagonismos específicos onde o
personagem tornou-se agente secreto, caçador de fantasmas, e um herói. No entanto, as
representações cambiantes do personagem, ainda sim, fazem parte de uma estrutura
massiva, onde o negro é reproduzido com base em nuances estereotipadas, postura
construída e mantida pela mecânica da Indústria Cultural, sendo reproduzida, ainda hoje,
pela Maurício de Sousa Produções.
180
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