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ENSINO RELIGIOSO CONFESSIONAL NAS ESCOLAS PÚBLICAS

Uma análise empírico-teórica acerca de sua constitucionalidade em face dos princípios

da laicidade estatal e da liberdade e igualdade religiosas

Trabalho de Monografia Jurídica

apresentado ao Curso de

Graduação, como parte dos

requisitos para obtenção do título

de bacharel em Direito, na área de

Direito Constitucional, sob a

orientação do Professor-

Orientador Roberto Dias

(agosto/2011)

RESUMO

O presente trabalho se presta a analisar se o ensino religioso é passível de ser ministrado, nas

escolas públicas, na forma confessional, à luz do ordenamento jurídico posto. A aferição

acerca de sua constitucionalidade perpassa, preliminarmente, o exame do Texto

Constitucional, focada –especialmente - nos artigos 5º, inciso VI, artigo 19, inciso I e artigo

210, parágrafo 1º. Neste mister, o exame da constitucionalidade do ensino religioso

confessional nas escolas públicas, empreendido nesta pesquisa, faz-se, notadamente, sob o

âmbito da liberdade e da igualdade religiosas, assim como da laicidade Estatal e do próprio

ensino religioso, tal qual previsto na Carta Magna.

O estudo do tema ganhou contornos um tanto mais concretos com o ensejo de

questionamentos levados à apreciação do Supremo Tribunal Federal, por meio de Ações

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Diretas de Inconstitucionalidade, que, até o momento, não receberam qualquer tratamento por

parte dos ministros da Corte.

Desta feita, intentou-se nesta monografia (em um segundo momento), a partir da

concatenação do entendimento doutrinário a respeito da constitucionalidade do ensino

religioso confessional e do posicionamento manifestado pelo Supremo acerca da laicidade

Estatal e das liberdade e igualdade religiosas, mapear uma possível resposta às ADIs

impetradas.

Tendo em vista o cenário em que este instituto (ensino religioso confessional) está sendo

debatido, o trabalho - além de surpreendentemente concluir pela tendente atribuição de

constitucionalidade do ensino religioso confessional – propõe alguns questionamentos acerca

da própria atuação do Supremo Tribunal Federal e da posição política ocupada pelo órgão.

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SUMÁRIO

Noções Introdutórias e Andaimes do Estudo ......................................................................... 4

Tratamento conferido pelo Ordenamento Jurídico – principais diretrizes e análise

sistemática do cenário constitucional .................................................................................... 13

Constituição Federal de 1988 ............................................................................................... 13

A Declaração Universal dos Direitos Humanos ................................................................... 21

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional .............................................................. 23

O Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil ................................................................... 25

A Lei Estadual nº 3.459 do Estado do Rio de Janeiro .......................................................... 26

As Ações Diretas de Inconstitucionalidade – a materialização da controvérsia que

permeia o tema ........................................................................................................................ 28

ADI n° 3.268 – O Caso do Ensino Religioso Confessional nas Escolas Públicas do Rio de

Janeiro ................................................................................................................................... 29

ADI n° 4.439 – O Caso do Estatuto da Igreja Católica no Brasil ......................................... 34

A manifestação doutrinária acerca do ensino religioso no Brasil ...................................... 38

STF e jurisprudência constitucional - O prisma jurisprudencial acerca da laicidade

estatal e da liberdade religiosa e o possível entendimento conferido à questão do ensino

religioso confessional nas escolas públicas. .......................................................................... 47

Brinde final e convite à pesquisa ........................................................................................... 60

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 64

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4

Noções Introdutórias e Andaimes1 do Estudo

O presente trabalho se presta a analisar a polêmica questão acerca da compatibilidade

do ensino religioso confessional de matrícula facultativa ministrado nas escolas públicas com

a Constituição Federal, especialmente no que concerne à cláusula de Estado laico e à

liberdade religiosa, controvérsia esta que, inclusive se materializou em forma de Ações

Diretas de Inconstitucionalidade impetradas perante o Supremo Tribunal Federal em diversas

oportunidades, as quais serão, inclusive, analisadas no decorrer desta pesquisa.

A escolha do tema deu-se em função de sua importância interdisciplinar, que esbarra

em princípios morais, sociais, filosóficos e políticos - além de jurídicos – e, desde tempos

imemoriais, contrapõe valores intrinsecamente imbuídos na sociedade e em cada individuo

que a compõe, e, indubitavelmente, suscita grande debate que se encontra longe de ser

pacificado e definitivamente resolvido.

Para empreender esta jornada acadêmica, faz-se necessária, a priori, a explanação do

que aqui se convencionou chamar-se de “ensino religioso confessional” para que, em seguida,

se faça possível o perfeito entendimento da profundidade e da complexidade do tema, que,

impreterivelmente, envolve o estudo das constitucionalmente garantidas laicidade ou

laicismo2 estatal e liberdade religiosa, bem como do igualmente tutelado ensino religioso,

valor este que se encontra atualmente elevado à qualidade de valor integrante da formação

básica do cidadão.

Ensino religioso confessional é o ensino que se contrapõe àquele que é ministrado na

modalidade ecumênica. Desta feita, entende-se o primeiro como sendo o ensino conduzido de

maneira vinculada à determinada e específica linha religiosa3.

Neste diapasão, faz-se interessante, também, apontar que há entendimento doutrinário

no sentido de conferir ao termo confessional uma generalidade e abrangência que extrapola o 1 Andaimes é a expressão utilizada pela Professora Ana Lúcia Pastore, no curso de Metodologia e Lógica

jurídica, ministrado na Sociedade Brasileira de Direito Público (“SBDP”), para referir-se ao caminho percorrido

para se chegar às conclusões da pesquisa: são os andaimes da construção, que são retirados após a conclusão das

obras, mas que figuram como peças fundamentais para sua concretização. 2 Embora se reconheça que existam doutrinadores que entendam haver divergências conceituais entre as

acepções dos termos laicismo e laicidade, adotar-se-á, no presente trabalho, o mesmo significado para ambos os

referidos termos. 3 Acerca do assunto, conferir SANTOS. William Soares. Ensino Religioso em Escolas Públicas: Uma pesquisa

etnográfica. Dialogia, São Paulo, v. 8, n.1, p. 109-121, 2009

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sentido meramente religioso da palavra, compreendendo amplitude que se estende ao campo

ético e moral. Assim, qualificam-se como confessionais quaisquer medidas dos poderes

públicos que subscrevam conteúdos ético-morais, não somente de raiz religiosa, mas,

também, de raiz ideológica4.

Ademais do ensino confessional conforme acima aferido, a pesquisa abrangerá o

chamado ensino religioso interconfessional, definido tal qual a acepção conferida por

Deborah Diniz e Tatiana Lionço5 ao termo. Assim, pretende-se – também - analisar se o

ensino que prioriza valores partilhados por uma maioria de confissões religiosas guarda

respeito à Constituinte.

―Todo ensino interconfessional é também confessional em seus

fundamentos. A diferença entre os dois tipos de ensino estaria na

abrangência da confessionalidade: o ensino confessional estaria

circunscrito a uma comunidade religiosa específica, ao passo que o

interconfessional partiria de consensos entre as religiões, uma

estratégia educacional mais facilmente posta em prática pelas

religiões cristãs, por exemplo‖ 6.

De qualquer forma, o ensino religioso confessional (ou interconfessional, conforme o

caso) aqui abraçado, não deve ser confundido com o ensino teológico e desvinculado. Este

último compreendido como sendo aquele por meio do qual se leciona as bases éticas,

filosóficas e históricas das religiões, e as distinções e semelhanças dos cultos religiosos, sem,

no entanto, privilegiar o ensino de uma única corrente religiosa ou das correntes religiosas

majoritárias, e sem que haja caracterização de qualquer vinculo entre o Estado, provedor do

ensino, e tais correntes.

O estudo do ensino religioso confessional deve ser compreendido à luz do que

determina a Constituição Federal que dispõe sobre as diretrizes principiológicas que devem

nortear o sistema educacional do Brasil. Ademais, tal estudo não pode ser afastado de um viés

4 Para Andres Ollero: “Así, trás de señalar acertadamente que „cuanto digamos de lãs crencias religiosas y de lãs

confesiones vale también para cualquier ideologia, sistema filosófico o concepcion ética‟, se há apuntado que um

Estado puede ser laico o confessional tanto en relación con un credo religioso como con un credo no religioso”.

OLLERO, Andres. Laicidad Y Laicismo. México: Instituto de Investigaciones Jurídicas. Serie Estudios Jurídicos,

Num. 163, 2010. 5 DINIZ, Débora; LIONÇO, Tatiana; CARRIÃO, Vanessa. Laicidade e ensino religioso no Brasil. Brasília:

Unesco / Letras Livres / Unb. 2010, pág. 14.

6 DINIZ, Débora; LIONÇO, Tatiana; CARRIÃO, Vanessa. Laicidade e ensino religioso no Brasil. Brasília:

Unesco / Letras Livres / Unb. 2010, pág. 14

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prático que impreterivelmente envolve a questão da possibilidade de ensino religioso no

Brasil, qual seja, a própria existência de grande diversidade religiosa no País.

De acordo com o Censo 2000, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,

mais de 40 religiões diferentes são professadas pelos brasileiros (43, especificamente). Este

número não inclui aqueles que se declararam sem religião ou de religiosidade indefinida.

Além do dado estatístico, que revela a importância da existência de liberdade de

crença no Brasil, quando do empreendimento de análise acerca da constitucionalidade do

ensino religioso confessional deve-se, em primeiro momento, levar-se em consideração o

tratamento constitucional destinado à própria educação. De acordo com o entendimento

professado por José Afonso da Silva, ―a educação como processo de reconstrução da

experiência é um atributo da pessoa humana, e, por isso, tem que ser comum a todos. É essa

concepção que a Constituição agasalha nos arts. 205 a 214, quando declara que ela é um

direito de todos e dever do Estado‖ 7

Neste contexto, há que se apontar que para o presente estudo importa somente o

ensino religioso confessional nas escolas públicas, descartando-se, portanto, a análise acerca

da constitucionalidade das aulas ministradas nas escolas particulares que, de maneira

conceitual, não guardam vínculos de dependência com o Estado e que, em assim o sendo, não

constituem e não configuram base para a execução de políticas públicas.

O ensino aqui contemplado é aquele público, prestado pelo Estado em suas

instituições de ensino, tal como concebido pelo mencionado José Afonso, para quem:

“a preferência constitucional pelo ensino público importa que o

Poder Público organize os sistemas de ensino de modo a cumprir o

respectivo dever com a educação, mediante prestações estatais que

garantam, no mínimo: ensino fundamental, obrigatório e gratuito,

inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria;

progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino

médio; atendimento educacional especializado aos portadores de

deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; atendimento

em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade;

acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação

artística, segundo a capacidade de cada um; oferta de ensino noturno

regular, adequado às condições do educando; atendimento ao

educando, no ensino fundamental, através de programas

7 AFONSO DA SILVA, José. Curso Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 33ª Edição.

pag. 840

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suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e

assistência à saúde; conteúdo mínimo ao ensino fundamental, de

maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores

culturais e artísticos, nacionais e regionais” 8. (Destacou-se)

Conforme se pode aferir da passagem acima transcrita, o ensino aqui abrangido é

aquele entendido como parte de um processo fomentado, organizado pela Administração

Pública, processo este em que ela, Administração Pública, figura como um dos principais

atores, responsável por tornar efetivo o mandamento constitucional de acesso à educação.

Assim, cabe referir que importa - para esta pesquisa - o ensino religioso compreendido

como aquele inserto em uma sistemática regida pelo regime de direito público9. O ensino

religioso que constitui matrícula facultativa (ou até mesmo obrigatória) nas escolas privadas

não desperta a mesma apaixonada discussão. Isto se deve ao fato de a relação travada entre a

escola particular e o aluno (ou seu responsável) se dar na esfera puramente privada – mesmo

sendo a educação, por si só um tema de relevante interesse coletivo, sendo até mesmo

considerada como um dos direitos sociais, constitucionalmente garantidos, por meio da

expressa proteção conferida por seu artigo 6º10

.

Tendo sido tal ponto esclarecido, cumpre explanar, de maneira sucinta, os

“andaimes”11

do presente estudo, as bases fundantes das conclusões aqui apresentadas.

Conforme anteriormente citado, o tema do ensino religioso confessional, de matrícula

facultativa, nas escolas públicas, desperta grande debate, que se encontra longe de ser

pacificado. A doutrina se debruçou e se debruça sobre a questão, trazendo pensamentos e

conclusões nada homogêneos, o que contribui para a demonstração da vastidão e amplitude

do tema, e – mais – da complexidade e profundidade das discussões ensejadas pelo assunto.

Para contemplar o diálogo doutrinário havido em torno da polêmica acerca da

possibilidade de as escolas facultarem aos alunos - da rede pública de ensino - a instrução

8 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros Editores. 2005. pag. 790

9A respeito da dicotomia entre público e privado, interessante conferir: SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos

do Direito Público. São Paulo: Malheiros Editores. 4ª Ed. 6ª tiragem. 2005. págs. 138 e seguintes

10 Art. 6º da Constituinte: ―São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o

lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos

desamparados, na forma desta Constituição‖ (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 64, de 2010)

11 Conforme já referido, Andaimes é a expressão utilizada pela Professora Ana Lúcia Pastore, nas aulas de

metodologia e lógica jurídicas ministradas no curso Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito

Público para se referir ao caminho percorrido para a obtenção dos resultados e conclusões da pesquisa.

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religiosa confessional, dedicar-se-á um capítulo do presente estudo para a apresentação do

posicionamento da doutrina no que concernente à (in)constitucionalidade do ensino religioso

confessional nas escolas da rede pública.

Conforme já dantes referido, a controvérsia a respeito do tema se materializou em

Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ou simplesmente “ADI”, ou “ADIs”, quando no

plural) – especificamente duas - impetradas perante o Supremo Tribunal Federal. Nenhuma

delas, entretanto, recebeu qualquer tratamento por parte do Supremo até a presente data.

A primeira das mencionadas ADIs, distribuída em meados de 2004 e numerada 3.268,

foi promovida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação e questionava

dispositivos da Lei Estadual nº 3.459, de 14 de setembro de 2000, do Estado do Rio de

Janeiro. Sob o âmbito de um panorama geral, pode-se dizer que tal Lei Estadual previa a

possibilidade de instituição, para as escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro, de ensino

religioso confessional, ministradas por professores específicos, escolhidos de acordo com

critérios definidos na referida Lei.

A segunda ADI (de número 4439) - mais recente - foi interposta em 2010, pela

Procuradoria Geral da República, pleiteando a suspensão da eficácia do Decreto nº 7.107, de

11 de fevereiro de 2010, assim como a inconstitucionalidade do artigo 11 de seu anexo que,

de acordo com o entendimento manifestado pela Eminente Procuradora Débora Duprat, não

se coadunava com o princípio de laicismo Estatal e com o artigo 33, e seus parágrafos, da Lei

de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

Referido Decreto promulgou o Acordo entre o Governo da República Federativa do

Brasil e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil e previu, dentre

outros, um tratamento específico para o ensino religioso nas escolas.

Ambos, o Decreto nº 7.107 e a Lei Estadual nº 3.459, serão oportunamente analisados,

no presente trabalho, quando do exame aprofundado das citadas ADIs. A análise destes

documentos constituirá parte principal do presente estudo.

Importa, a esse respeito, destacar o importante papel que o STF desempenha no

deslinde da questão, atuando como “Guardião da Constituição”. Atualmente, devemos

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9

compreender a Suprema Corte dentro do chamado Fenômeno Constitucional12

. Dentro deste

cenário, a função performada pelo Supremo encontra-se bem descrita pelo Ministro Gilmar

Mendes, de cujo voto na ADIn n° 3510 se destaca o seguinte trecho para bem ilustrar a

condição da Corte Constitucional brasileira:

―Apesar dessa constatação, dentro de sua competência de dar a

última palavra sobre quais direitos a Constituição protege, as Cortes

Constitucionais, quando chamadas a decidir sobre tais controvérsias,

têm exercido suas funções com exemplar desenvoltura, sem que isso

tenha causado qualquer ruptura do ponto de vista institucional e

democrático. Importantes questões nas sociedades contemporâneas

têm sido decididas não pelos representantes do povo reunidos no

parlamento, mas pelos Tribunais Constitucionais. Cito, a título

exemplificativo, a famosa decisão da Suprema Corte norte-americana

no caso Roe VS. Wade, assim como as decisões do Tribunal

Constitucional alemão nos casos sobre o aborto (BVerfGE 39, 1,

1975; BverfGE 88, 203, 1993)”

Pode-se dizer que a última palavra a respeito de temas política e socialmente

relevantes, tal qual este acerca do ensino religioso confessional, acaba por ser sempre

proferida pelo Supremo. A este cabe, em última instância, a decisão a respeito de temas que

não se restringem à esfera unicamente jurídica.

Verificou-se, nos últimos tempos, inúmeras críticas dirigidas à Suprema Corte

brasileira, seja por sua atuação pró-ativa, as vezes até usurpando as funções que lhe foram

constitucionalmente atribuídas, seja por sua atuação “negativa”, quando a Corte não arca com

o papel de guarda da Magna Carta, se furtando a tomar determinadas decisões.

Certo é que, atualmente o Supremo desempenha papel determinante no destino de

questões que, muitas vezes, extrapolam o limite puramente jurídico. Tal Tribunal é visto,

inclusive, sob o foco de parte da doutrina, como um tribunal político justamente pela

complexidade interdisciplinar das questões definidas pela Corte Maior.

Neste sentido, pode-se dizer que o âmbito de alcance das decisões do STF abrange os

mais diversos segmentos da sociedade. Os efeitos das referidas decisões se estendem para

além do âmbito jurídico-constitucional e, por diversas vezes, definem os rumos dos debates

nacionais.

12

SUNDFELD, Carlos Ari. O Fenômeno Constitucional e suas Três Forças.

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Pensando no papel correntemente desempenhado pelo STF na atual ordem jurídico-

política, pretendeu-se aqui entender o possível tratamento conferido pela Corte Suprema à

questão do ensino religioso confessional, de matrícula obrigatória, nas escolas públicas.

Tendo em vista o silêncio – que perdura até o presente momento - do Supremo

Tribunal Federal acerca da questão (mesmo tendo sido este provocado a se pronunciar a

respeito do tema), tentou-se aqui prever um possível tratamento a respeito da compatibilidade

de matéria religiosa confessional nas escolas da rede pública de ensino com a Constituição

Federal.

Para tanto, fez-se um levantamento de todos os precedentes em que o Supremo

Tribunal brasileiro abordou a laicidade do Estado13

e a questão da liberdade religiosa. A partir

da leitura dos argumentos dos ministros nos diversos julgados encontrados, fez-se um

delineamento do possível entendimento que pode ser dado quanto à constitucionalidade da

confessionalidade do ensino religioso à luz da interpretação conferida pelo próprio Guardião

da Constituição.

Considerando-se que o julgamento da ADI 4.439 encontra-se atualmente na pauta do

STF, e que a ADI 3.268 não foi julgada, a previsão aqui apresentada não guarda qualquer

distanciamento temporal dos fatos e, portanto, reveste-se de juízos pautados na grande

repercussão gerada pelo tema abordado no presente trabalho. Assim, deve-se ponderar que as

conclusões e avaliações aqui feitas são prematuras e podem (e devem) ser futuramente

repensadas. Ainda assim, cabe salientar que as reflexões apresentadas estão longe de ser

inconseqüentes e irresponsáveis.

Por fim, para justificar a possibilidade de elaboração desta análise (também com

intuito de afastar que seja atribuída a esta pesquisa o caráter de “futurologia”) faz-se

interessante apontar a noção do que se adotou como “precedente” no presente trabalho. O

termo relação de precedente deve se entendido da seguinte maneira, tal qual explicitado por

Flávia Annemberg:

13

Para a composição da amostra de precedentes, foi empreendida pesquisa no campo “Busca de Jurisprudência”

do portal virtual do STF (http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp). Os seguintes

critérios de busca foram utilizados, intentando-se a maior abrangência possível de resultados: (i) “Estado Laico”;

(ii) Laicismo; (iii) Laicidade; (iv) “Liberdade Religiosa”; (v) Separação Estado Igreja; (vi) Deus; (vii) Ateu ou

Ateísmo; (viii) Religião; (ix) Religiosidade; e (x) “Igualdade Religiosa”. Importante salientar que não houve

qualquer corte temporal para o estabelecimento da amostra final de julgados.

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11

―(...) o termo relação de precedente não tem uma conotação de

vinculação direta entre os resultados. O termo diz respeito, na

realidade, à análise do processo de argumentação que foi

desenrolado em um caso tendo em vista o potencial de que ele venha

a surgir de forma semelhante no outro caso. Assim, pretendo

constatar a existência de uma lógica que possibilite a conexão entre

os casos por meio do tipo de discurso desenvolvido, seja ele jurídico

ou político‖14

.

Desta feita, entende-se que há uma relação lógica entre o que fora anteriormente, em

julgados passados, entendido como sendo “Estado laico” na visão do Supremo Tribunal

Federal, bem como o entendimento acerca da liberdade e da igualdade religiosa, e o atual

entendimento professado pelos ministros. Este entendimento será considerado como elemento

influenciador do possível tratamento a ser destinado à questão do ensino religioso

confessional nas escolas públicas.

Faz-se importante referir que o presente trabalho será – em grande parte – descritivo,

de maneira a apresentar contexto legal e constitucional em que o tema se insere, bem como

um panorama atual, jurídico-político, que envolve a questão do ensino religioso confessional

no Brasil. Ressalve-se que, embora o trabalho forneça, principalmente, uma apresentação do

cenário que abraça a polêmica no Brasil, não se desincumbiu de emitir eventuais opiniões

que, juntamente com a exposição factual e legal acerca do tema, tem por objetivo fomentar o

debate que já existe acerca da constitucionalidade do ensino religioso confessional no Brasil.

O caráter eminentemente opinativo do estudo revela-se, somente, a partir da

proposição de deslindes futuros acerca da controvérsia. Tais opiniões encontram-se,

entretanto, vinculadas ao entendimento já proferido pelo Supremo Tribunal Federal acerca da

laicidade Estatal, conforme já se aduziu anteriormente, buscando guardar relação de conexão

lógica entre o posicionamento já adotado pelo STF e aquele que se pretende prever.

14

ANNEMBERG, Flávia. A posição do Supremo Tribunal Federal nos casos de pesquisa com células-tronco

embrionárias e da interrupção da gravidez do feto anencéfalo. Existe relação de precedente entre eles?

Monografia apresentada à Sociedade Brasileira de Direito Público – SBDP, como exigência para conclusão do

curso da Escola de Formação do ano de 2008. Disponível no link

http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/581_Monografia%20Flavia.PDF.

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12

Mais uma vez, salienta-se aqui, que a presente pesquisa não ambiciona trazer

conclusões inquestionáveis ou definitivas, ensejando, até mesmo, o surgimento de mais

perguntas do que respostas a respeito da controvérsia.

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Tratamento conferido pelo Ordenamento Jurídico – principais diretrizes e análise

sistemática do cenário constitucional

Para o perfeito entendimento a respeito da questão, impossível não apresentar o

panorama legislativo constitucional no qual a controvérsia - acerca da possibilidade de se

lecionar matéria religiosa nas escolas públicas - está inserida. Para isso, analisar-se-á o

tratamento designado pela Constituição Federal ao tema da educação, bem como o tratamento

conferido às liberdades (mais especialmente à liberdade de crença) e o que a Carta dispõe a

respeito da desvinculação entre Estado e Igrejas de todos os tipos.

Adicionalmente, os dispositivos da Declaração Universal dos Direitos Humanos,

relevantes para o presente estudo, serão trazidos à tela, já que tal texto inquestionavelmente

representa um balizador principiológico para a interpretação de tudo quanto pertinente aos

direitos humanos, sendo que a matéria do ensino, da educação, deve ser compreendida como

conteúdo destes direitos humanos.

Analisar-se-á, ainda, a Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as

diretrizes e bases da educação nacional, dada sua inevitável pertinência temática.

Para o presente trabalho, importará, também, apresentar os atos normativos atacados

pelas Ações Diretas de Inconstitucionalidade retro citadas. Assim, o Decreto n° 7.107, de 11

de fevereiro de 2011, e a Lei Estadual nº 3.459, de 14 de setembro de 2000, do Estado do Rio

de Janeiro, serão aqui descritos.

Constituição Federal de 1988

A Magna Carta de 1988 trata, em seus artigos 205 e seguintes15

, do tema da educação

no Brasil.

15 Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a

colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da

cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de

ensino;

IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;

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V - valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com

ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas;

VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei;

VII - garantia de padrão de qualidade.

VIII - piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei

federal.

Parágrafo único. A lei disporá sobre as categorias de trabalhadores considerados profissionais da educação

básica e sobre a fixação de prazo para a elaboração ou adequação de seus planos de carreira, no âmbito da União,

dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e

patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

§ 1º É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei.

§ 2º O disposto neste artigo aplica-se às instituições de pesquisa científica e tecnológica.

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive

sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria;

II - progressiva universalização do ensino médio gratuito;

III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de

ensino;

IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade;

V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada

um;

VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando;

VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de

material didáticoescolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.

§ 1º - O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.

§ 2º - O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa

responsabilidade da autoridade competente.

§ 3º - Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar,

junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola.

Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:

I - cumprimento das normas gerais da educação nacional;

II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.

Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica

comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.

§ 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas

públicas de ensino fundamental.

§ 2º - O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas

também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.

Art. 211. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus

sistemas de ensino.

§ 1º A União organizará o sistema federal de ensino e o dos Territórios, financiará as instituições de ensino

públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir

equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica

e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios;

§ 2º Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil.

§ 3º Os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio.

§ 4º Na organização de seus sistemas de ensino, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios definirão

formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório.

§ 5º A educação básica pública atenderá prioritariamente ao ensino regular.

Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os

Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de

transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.

§ 1º - A parcela da arrecadação de impostos transferida pela União aos Estados, ao Distrito Federal e aos

Municípios, ou pelos Estados aos respectivos Municípios, não é considerada, para efeito do cálculo previsto

neste artigo, receita do governo que a transferir.

§ 2º - Para efeito do cumprimento do disposto no "caput" deste artigo, serão considerados os sistemas de ensino

federal, estadual e municipal e os recursos aplicados na forma do art. 213.

Page 15: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

15

Para o desenvolvimento do presente estudo, faz-se indispensável a análise mais

aprofundada do artigo 210, especificamente de seu parágrafo primeiro, a seguir transcrito:

―Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino

fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e

respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.

§ 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá

disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino

fundamental‖.

Durante quase toda a história republicana brasileira, o tema do ensino religioso foi

matéria prevista pela Constituição Federal, com exceção da Carta de 1891, a primeira das

Constituições da República. A partir do Estado Novo, com o Texto de 1934, a previsão de

ensino religioso sempre foi repetida nos enunciados constitucionais seguintes.

§ 3º A distribuição dos recursos públicos assegurará prioridade ao atendimento das necessidades do ensino

obrigatório, no que se refere a universalização, garantia de padrão de qualidade e equidade, nos termos do plano

nacional de educação

§ 4º - Os programas suplementares de alimentação e assistência à saúde previstos no art. 208, VII, serão

financiados com recursos provenientes de contribuições sociais e outros recursos orçamentários.

§ 5º A educação básica pública terá como fonte adicional de financiamento a contribuição social do salário-

educação, recolhida pelas empresas na forma da lei.

§ 6º As cotas estaduais e municipais da arrecadação da contribuição social do salário-educação serão distribuídas

proporcionalmente ao número de alunos matriculados na educação básica nas respectivas redes públicas de

ensino.

Art. 213. Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas

comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que:

I - comprovem finalidade não-lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação;

II - assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao

Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades.

§ 1º - Os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a bolsas de estudo para o ensino fundamental e

médio, na forma da lei, para os que demonstrarem insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas e

cursos regulares da rede pública na localidade da residência do educando, ficando o Poder Público obrigado a

investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade.

§ 2º - As atividades universitárias de pesquisa e extensão poderão receber apoio financeiro do Poder Público.

Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o

sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de

implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e

modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam

a:

I - erradicação do analfabetismo;

II - universalização do atendimento escolar;

III - melhoria da qualidade do ensino;

IV - formação para o trabalho;

V - promoção humanística, científica e tecnológica do País.

VI - estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno

bruto.

Page 16: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

16

Conforme se infere da leitura do artigo destacado, o Texto Maior prevê a possibilidade

de constituição do ensino religioso nas escolas públicas, desde que seja ele de matéria

facultativa e contanto que respeitadas as demais liberdades públicas, importando para o

presente, especialmente, a liberdade de culto religioso e a previsão do laicismo do Brasil,

valores adiante explicados.

Deve-se ponderar, ainda, que todos os artigos constitucionais citados no presente

devem ser entendidos de forma sistêmica, compreendidos como parte integrante do

ordenamento jurídico, tal como concebido por Norberto Bobbio. Bem assim, há que se tomar

por dito ordenamento aquele composto por normas de primeiro grau, normas de segundo

grau, normas-preceitos e normas-princípios.

Sob esta perspectiva, faz-se necessário conferir destaque ao artigo 205 da Carta Maior,

que estabelece ser a educação um dever do Estado, sim, mas – igualmente – um dever da

família, devendo esta zelar pelo atendimento do fim maior da própria educação, qual seja, o

de promover pleno desenvolvimento do indivíduo, almejando seu preparo para exercício da

cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Não menos importante, o artigo 206 do referido texto constitucional, estatui as bases

principiológicas que regem o ensino, dentre as quais não se pode deixar de mencionar – como

um importante highlight para a presente pesquisa – a garantia de pluralismo de idéias e de

concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas de ensino.

A respeito destes dois destacados mandamentos jurídicos – artigos 205 e 206 da Carta

Política – cabe um adendo doutrinário bastante pertinente, reproduzido do texto do eminente

Procurador do Estado de São Paulo, Nilton de Freitas Monteiro, que asseverou o quanto a

seguir:

―O artigo 205 da Constituição estabelece que a educação é direito de todos e

dever do Estado e da família, e que será promovida e incentivada com a

colaboração da sociedade. O ensino será ministrado com base em vários

princípios, um deles o princípio do pluralismo das idéias (art. 206, III) — trata-se

daquilo que, na Constituição Portuguesa, é chamado de não-confessionalidade de

ensino público. Reitere-se, aqui, que a palavra "confessional", embora tenha uma

origem vinculada a questões religiosas (retorno às grandes declarações de

princípios contidas nas "Confissões", de Agostinho, para garantir a fidelidade

Page 17: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

17

doutrinária pura do cristianismo, sem interferência racionalista), a palavra

"confessional", dizíamos, hoje pode ser empregada em sentido mais amplo,

abrangendo orientações religiosas ou orientações ideológicas‖16

.

Claramente os demais artigos constitucionais, em especial àqueles pautadores da

educação nas escolas brasileiras, influenciam na correta interpretação a ser dada ao tema do

ensino religioso facultativo nas escolas públicas. Não obstante, os artigos acima marcados

guardam maior pertinência com o tema aqui abordado, tendo sido, por isso, destacados.

Em continuidade àquilo referido acima, o ensino religioso nas escolas públicas

brasileiras deve, ademais, resguardar as demais liberdades constitucionalmente garantidas. A

primeira das referidas liberdades, a religiosa, encontra fulcro no artigo 5º da Carta

Constituinte, que trata dos direitos e garantias fundamentais de cada indivíduo. Seu inciso VI

assim dispõe:

―Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer

natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes

no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à

segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...)

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo

assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na

forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias‖.

À luz do caput do artigo em comento, deve-se compreender a liberdade de crença

como conteúdo do princípio da isonomia, um dos valores fundamentais de todo ordenamento

jurídico posto17

.

Vê-se, da interpretação do transcrito artigo VI, que a Carta Fundamental garante tanto

a liberdade de consciência, quanto a liberdade de crença. É importante referir que a garantia

da liberdade de crença assegura que qualquer religião poderá ser professada, e ninguém será

16

FREITAS MONTEIRO, Nilton de. Parâmetros Constitucionais do Ensino Religioso nas Escolas Públicas. O

texto encontra-se acessível na página virtual da procuradoria geral do Estado de São Paulo, por meio do link

http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista3/rev11.htm 17

Acerca do tema, vide o seguinte trabalho, em que os professores discorrem, de maneira didática e clara, acerca

das nuances do princípio da isonomia: DAVID ARAÚJO, Luiz Alberto e JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso

de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 4ª Edição. 2001. pág. 88 e seguintes.

Page 18: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

18

impedido de crer naquilo que bem entender. Igualmente assegurado é o direito de não crer em

nada. “Deflui, pois, da liberdade de consciência uma proteção jurídica que incluí os próprios

ateus e os agnósticos”18

Além destas – liberdade de crença e de consciência – o inciso em comento possibilitou

a liberdade de exercício de culto, o que significa dizer que pode tal liberdade ser exercida (a

princípio19

) em qualquer lugar, não sendo restringida a sua celebração nos templos destinados

especificamente a isto.

Saliente-se que tal dispositivo constitucional representa, por si só, uma grande

evolução histórica e social. Nem sempre se garantiu no Brasil a liberdade religiosa

(compreendendo as três liberdades acima referidas: culto, crença e consciência). A

Constituição de 1824 dispunha, em seu artigo 5º, ser a religião “Catholica Apostolica

Romana” a religião oficial do Império. As demais religiões somente eram permitidas em

cultos domésticos, sendo vedada qualquer manifestação ou exteriorização a elas

relacionadas20

.

Com o advento do Decreto n° 119-A, de 7 de janeiro de 1890, proibiu-se, de vez, a

―intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em matéria religiosa‖21

, assim

como consagrou-se a plena liberdade de cultos, extinguindo-se, ademais, o padroado, até

então vigente no Brasil.

A separação entre Estado e Igreja e a reafirmação de inexistência de religião oficial do

Brasil encontra-se consignada na redação do artigo 19 da Constituição Federal, que em seu

inciso I aponta o quanto a seguir versado. Esta é a chamada “Cláusula de Estado Laico” para

fins do presente trabalho:

―Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos

Municípios:

18

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 18ª Edição. 1997. pág.

190 19

Importante atentar para o fato de que o exercício de culto não pode ofender a moral e os bons costumes e deve

se coadunar com os demais mandamentos do ordenamento jurídico. à liberdade de culto, assim como qualquer

outro princípio, não pode adquirir valor absoluto. A esse respeito, conferir BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de

Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 18ª Edição. 1997. pág. 191 20

A respeito da evolução histórica e social da Constituição neste sentido, vide MORAES, Alexandre. Direito

Constitucional. São Paulo: Editora Atlas. 9ª Edição. 2001. pág. 71 21

Redação do preâmbulo do Decreto 119-A

Page 19: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

19

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los,

embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus

representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na

forma da lei, a colaboração de interesse público‖

Tal dispositivo, como se vê, configura-se como um dos princípios e uma das garantias

do próprio Estado Democrático de Direito. Não obstante, pode-se verificar antinomia aparente

quando em comparação com outros dispositivos da própria Constituição de 1988. Aí, mais

uma vez, se revela a importância de se proceder à análise sistemática de todo ordenamento

jurídico para se interpretar adequadamente a redação de cada um dos artigos que se encontram

em aparente conflito.

A esse respeito é possível indagar o motivo pelo qual a Carta estabelece a separação

entre Igreja e Estado e, ao mesmo tempo, garante como função do próprio Estado a

disponibilização de ensino religioso em suas escolas. Ainda, outras questões, neste mesmo

sentido, surgem acerca de qual o mais correto entendimento sobre a abrangência e, porque

não, acerca da própria aplicabilidade do laicismo Estatal, uma vez que a Constituinte garante

alguns tratamentos privilegiados às Igrejas.

Ainda que estes “tratamentos privilegiados” não constituam parte fulcral do tema deste

trabalho, faz-se relevante apresentá-los para o enriquecimento do debate sobre o ensino

religioso nas escolas da rede pública e, até mesmo, para contribuir para a tão reiterada análise

sistemática dos artigos constitucionais aqui apresentados como centrais para o entendimento

do objeto da presente pesquisa.

Neste sentido, porque não se perguntar o por quê de haver garantia constitucional da

separação entre Estado e Igreja e, ao mesmo passo, haver previsão constitucional de

assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva (conforme disposto

no art. 5º, VII)? Além disso, como a previsão de destinação de recursos públicos às escolas

confessionais e filantrópicas, em conformidade com lei que assim o preveja (art. 213), bem

assim a concessão de efeitos civis aos casamentos religiosos (art. 226, § 2º) e imunidade de

impostos de templos de qualquer culto (art. 150, VI, b) se coadunam com a Cláusula de

Estado Laico?

Page 20: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

20

Os questionamentos ficam ainda mais interessantes quando analisados sob o enfoque

do preâmbulo da Magna Carta brasileira de 1988. A Constituição fora promulgada “sob a

proteção de Deus”, conforme se lê no enunciado preambular constitucional, a seguir trazido à

baila:

―Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia

Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático,

destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a

liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade,

e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,

pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e

comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução

pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a

seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO

BRASIL‖

A doutrina muito divergiu acerca da “força normativa” do preâmbulo e de seu eventual

caráter vinculante22

. De fato, impossível não se perguntar qual o real significado impresso

pelo preâmbulo e a que título tal enunciado figura no texto constitucional.

A questão ganhou contornos (um pouco) mais bem definidos no Brasil quando o

Supremo Tribunal Federal enfrentou o assunto, na Ação de Direta de Inconstitucionalidade nº

2.076., cuja ementa encontra-se a seguir reproduzida. Nesta oportunidade, a Corte entendeu

não se tratar o preâmbulo de norma, conforme adiante se verifica:

―EMENTA: CONSTITUCIONAL. CONSTITUIÇÃO: PREÂMBULO.

NORMAS CENTRAIS. Constituição do Acre. I. - Normas centrais da

Constituição Federal: essas normas são de reprodução obrigatória na

Constituição do Estado-membro, mesmo porque, reproduzidas, ou

não, incidirão sobre a ordem local. Reclamações 370-MT e 383-SP

(RTJ 147/404). II. - Preâmbulo da Constituição: não constitui norma

central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de

22

A respeito da problemática, alguns dos maiores expoentes do direito constitucional contemporâneo já se

pronunciaram contrariamente à atribuição de caráter normativo ao preâmbulo constitucional. Neste sentido, vide

CANOTILHO J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991.

pág. 45; MELLO FILHO, José Celso. Constituição Federal anotada. 2 Edição. São Paulo: Editora Saraiva,

1986. pág. 20; BASTOS, Celso; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil. São

Paulo: Editora Saraiva. 1988. V-1, pág. 409 e seguintes. Em sentido contrário, entendendo pela atribuição de

valor normativo para o enunciado preambular da Constituição, vide: NASCIMENTO, Tupinambá Miguel

Castro. Comentários à Constituição Federal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. pág. 134. Ademais,

interessante notar, a respeito dos diversos posicionamentos acerca do caráter normativo do preâmbulo, o voto do

ministro Carlos Velloso na Adin nº 2.076/AC, da qual ele mesmo fora relator. Ainda, no campo jurisprudencial,

interessante destacar a decisão 71-44DC, de 16.07.1971, proferida pelo Conselho Constitucional francês que

atribuiu força normativa ao preâmbulo.

Page 21: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

21

reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força

normativa. III. - Ação direta de inconstitucionalidade julgada

improcedente23

‖ (Destacou-se)

Cumpre esclarecer que, ainda que adotemos o posicionamento compatível com o

entendimento jurisprudencial pacificado pelo STF, de que o preâmbulo da Constituição não

possui força normativa, não podemos nos eximir de mencionar que tal enunciado assinala a

matriz política da Constituição. É, como diria Alexandre de Moraes - apresentando os

ensinamentos dos doutrinadores Jorge Miranda e Juan Bautista Alberdi – um documento de

intenções do diploma constitucional, e se presta a duas finalidades básicas: fundamentar a

legitimidade de nova ordem constitucional e explicar as grandes finalidades da nova

Constituição24

.

Conforme se verifica deste breve apanhado de artigos e princípios constitucionais, a

Carta Magna, por si só, alberga diversas possibilidades de entendimento e suscita diversas

dúvidas acerca da acertada interpretação que deve ser dada à questão principal do presente

estudo. Afinal, pode a disciplina religiosa confessional, de matrícula facultativa, ser lecionada

nas escolas públicas, à luz da liberdade religiosa e da Cláusula de Estado Laico

constitucionalmente garantidas?

A Declaração Universal dos Direitos Humanos

Indubitavelmente este é um dos mais importantes textos normativos do século XX.

Digno de enaltecimentos por parte da comunidade jurídica e pela própria sociedade civil, a

Declaração Universal de Direitos Humanos representou um marco histórico de respeito à

dignidade humana desde 1948, quando de sua aprovação unânime pelos 48 países presentes

na Assembléia Geral da ONU.

23

STF – Pleno – Adin nº 2.076/AC – Rel. Min Carlos Velloso, decisão 15.08.2002 24

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e legislação constitucional. 5ª Edição. São

Paulo: Editora Atlas. 2005. pág. 119 à 121.

Page 22: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

22

A renomada professora Flávia Piovesan, citando Muylaert Antunes, bem ressalta que

“A Declaração dos Direitos Humanos se impões como ‗valor da afirmação de uma ética

universal‘ e conservará sempre seu lugar de símbolo ideal‖25

.

Já que aqui não cabe um aprofundamento delongado acerca de tal Declaração,

salienta-se, somente, que de acordo com o entendimento da mesma referida doutrinadora,

Flávia Piovesan,

“a Declaração se impõe como um código de atuação e de conduta

para os Estados integrantes da comunidade internacional. Seu

principal significado é consagrar o reconhecimento universal dos

direitos humanos pelos Estados, consolidando um parâmetro

internacional para a proteção desses direitos”26

Ainda, entende que mesmo não sendo a Declaração Universal de 1948 um tratado

internacional de direitos humanos, deve ser recebida pelo ordenamento jurídico como texto de

força jurídica obrigatória e vinculante27

.

Tendo em vista a noção acima exposta, acerca da representatividade da Declaração e

da proteção jurídica a ela atribuída, não se poderia deixar de mencionar o tratamento

dispensado pelo texto em comento à questão fulcral do presente trabalho. Neste sentido,

devem ser destacados os seguintes artigos do texto analisado:

―Artigo 2o

I) Todo o homem tem capacidade para gozar os direitos e as

liberdades estabelecidos nesta Declaração sem distinção de qualquer

espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou

de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou

qualquer outra condição‖

―Artigo 18 Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento,

consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de

religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou

crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância,

isolada ou coletivamente, em público ou em particular‖

25

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limond.

2002. pág. 145 26

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limond.

2002. pág. 155 27

Neste sentido, conferir: PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São

Paulo: Max Limond. 2002. pág. 154

Page 23: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

23

―Artigo 26

I) Todo o homem tem direito à instrução. A instrução será gratuita,

pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução

elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será

acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no

mérito

II) A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da

personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos

do homem e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a

compreensão, a tolerância e amizade entre todas as nações e grupos

raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas

em prol da manutenção da paz.

III) Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de

instrução que será ministrada a seus filhos‖

Tendo em vista que a Declaração dos Direitos Humanos configura-se como texto

principiológico de balizamento ético, que deve pautar o tratamento jurídico destinado a um e

outro assunto, nada mais justo do que o destaque dos “princípios” acima transcritos,

pertinentes à educação e às igualdade e liberdade religiosas. O intuito da apresentação de tais

artigos é fomentar o debate a respeito da possibilidade do ensino religioso confessional nas

escolas públicas, bem como melhor delimitar a “esfera jurídica” em que tal debate encontra-se

inserido.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

Um dos elementos norteadores das conclusões obtidas a partir da analisa do problema

enfrentado na presente pesquisa, é a Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, a Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional ou, simplesmente, “LDB”.

Referida Lei nº 9.394 estatui, em seu artigo 33:

―Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte

integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos

horários normais das escolas públicas de ensino fundamental,

assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil,

vedadas quaisquer formas de proselitismo.

Page 24: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

24

§ 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a

definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as

normas para a habilitação e admissão dos professores.

§ 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas

diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos

do ensino religioso‖

Conforme se verifica, a LDB assegurou como principio orientador do ensino religioso

o respeito à diversidade religiosa e vedou quaisquer formas de proselitismo. Cumpre ressaltar,

no entanto, que nem sempre foi assim.

A redação atual do dispositivo legal acima transcrito foi conferida pela Lei nº 9.475,

de 22 de julho de 1997. Anteriormente à promulgação desta referida Lei, a LDB dispunha

sobre a possibilidade de as escolas públicas oferecerem, como grade curricular facultativa, o

ensino religioso confessional ou interconfessional, na forma do anterior artigo 33.

―Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui

disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino

fundamental, sendo oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de

acordo com as preferências manifestadas pelos alunos ou por seus

responsáveis, em caráter:

I - confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou do seu

responsável, ministrado por professores ou orientadores religiosos

preparados e credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades

religiosas; ou

II - interconfessional, resultante de acordo entre as diversas entidades

religiosas, que se responsabilizarão pela elaboração do respectivo

programa‖.

Interessante notar a evolução normativa do dispositivo sub judice. A Lei nº 9.475

suprimiu qualquer menção ao caráter confessional (ou interconfessional) e, ainda, incluiu a

previsão de vedação a quaisquer formas de doutrinação pela escola pública, imprimindo um

caráter de maior neutralidade religiosa e de maior compatibilidade com a Cláusula de Estado

Laico.

Page 25: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

25

Neste sentido, não se pode deixar de ponderar que eventual estabelecimento de ensino

confessional poderia, ao menos a priori, ser considerado como “contra-evolutivo”, uma vez

que reverteria a mudança história e social que pautou a modificação do artigo 33 da Lei de

Diretrizes e Bases, de forma a fazer com que sua redação passasse a não mais fazer menção a

qualquer forma de confessionalidade (ou interconfessionalidade).

O Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil

Em 13 de Novembro de 2008, a República Federativa do Brasil celebrou, com a Santa

Sé, Acordo relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil. Tal acordo foi recebido

em nosso ordenamento jurídico pátrio, primeiramente por meio de Decreto Legislativo, de

número 698/2009, e, em seguida, promulgado pelo Presidente da República através do

Decreto nº 7.107, de 11 de fevereiro de 2010.

O Decreto, como um todo, movimentou a opinião pública, sendo objeto de inúmeras

críticas e comentários. Um dos pontos que mais apresentou divergência e polêmica foi o

artigo 11 de seu anexo.

―Artigo 11. A República Federativa do Brasil, em observância ao

direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da

pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino

religioso em vista da formação integral da pessoa.

§1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de

matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das

escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à

diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a

Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de

discriminação‖

Pode-se dizer – ao menos a princípio – que o Estatuto da Igreja Católica no Brasil

conferiu tratamento “inovador” em comparação com aquele apresentado pelos dispositivos

legais e constitucionais até agora analisados.

Page 26: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

26

Ao estabelecer, em seu parágrafo primeiro, o ensino religioso, católico e de outras

confissões religiosas, o artigo 11 do Decreto em pauta denomina uma religião (a católica)

dentre as muitas religiões professadas no Brasil – o que até então não tinha sido verificado

nos aqui reproduzidos artigos da Constituição Federal, da Declaração Universal e da LDB,

que – em momento algum – denotaram qualquer forma de estabelecimento ou citação de uma

única religião.

Para parte dos críticos, a menção à religião católica, pura e simplesmente, já denota

certo favoritismo que deve ser expurgado sob a égide da laicidade Estatal. Para outros,

entretanto, o Decreto não confere tratamento privilegiado, uma vez que em seguida garante ―o

respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as

outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação‖.

Haveria, assim, o estabelecimento do chamado ensino religioso confessional por parte

do Estatuto Jurídico da Igreja no Brasil? E, em havendo, deveria este ser tratado como

inconstitucional, uma vez que concedeu tratamento “diferenciado” daquele estabelecido pela

Carta Maior? Estas são questões que deverão ser enfrentadas pelo Supremo Tribunal Federal,

conforme adiante se discorrerá.

A Lei Estadual nº 3.459 do Estado do Rio de Janeiro

Inicialmente, cabe referir que o presente trabalho não se propôs a analisar eventuais

leis de diversos Estados ou Municípios que tratassem do tema. Assim, cumpre salientar que a

presente lei somente configura objeto do estudo aqui proposto por ter sido ela questionada

perante o Supremo Tribunal Federal.

A Lei Estadual nº 3.459 dispõe sobre o ensino religioso confessional nas escolas da

rede pública de ensino do Estado do Rio de Janeiro. Tal Lei, de autoria do Deputado Carlos

Dias, foi publicada em 15 de setembro de 2000 e foi alvo de grande repercussão midiática,

constituindo, conforme acima já referido, objeto de ADI interposta perante o Supremo.

Page 27: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

27

Logo em seu artigo 1º28

, a Lei Estadual estabelece a possibilidade de o ensino religioso

ser lecionado em sua forma confessional e – mais – disciplina a sua obrigatoriedade nos

colégios públicos do Rio de Janeiro.

Engraçado notar que, embora estabeleça o ensino religioso confessional nas escolas

públicas, a mesma Lei, no mesmíssimo citado artigo 1º, veda quaisquer formas de

proselitismo.

Além de estabelecer carga horária mínima da disciplina do ensino religioso29

e

estabelecer regras específicas de concurso público para os professores de ensino religioso30

, a

Lei Estadual nº 3.459 constrange, no artigo 2º31

, a atuação do professor de ensino religioso,

estabelecendo critérios arbitrários de escolha dos professores capacitados a ministrar aulas de

tal matéria.

Por fim, a Lei em apreço estatui, em seu artigo 3º32

, ser de atribuição específica das

autoridades religiosas a determinação do conteúdo do ensino religioso nas escolas públicas,

enaltecendo, inclusive, o desejável papel do Estado, que – de acordo com esta Lei Fluminense

– deverá apoiar integralmente o conteúdo determinado pelas autoridades religiosas

mencionadas na Lei n° 3.459.

28

Art. 1º - O Ensino Religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e

constitui disciplina obrigatória dos horários normais das escolas públicas, na Educação Básica, sendo

disponível na forma confessional de acordo com as preferências manifestadas pelos responsáveis ou pelos

próprios alunos a partir de 16 anos, inclusive, assegurado o respeito à diversidade cultural e religiosa do Rio de

Janeiro, vedadas quaisquer formas de proselitismo.

Parágrafo único – No ato da matrícula, os pais, ou responsáveis pelos alunos deverão expressar, se desejarem,

que seus filhos ou tutelados freqüentem as aulas de Ensino Religioso 29

Art. 4º - A carga horária mínima da disciplina de Ensino Religioso será estabelecida pelo Conselho Estadual

de Educação, dentro das 800 (oitocentas) horas-aulas anuais. 30

Art. 5º - Fica autorizado o Poder Executivo a abrir concurso público específico para a disciplina de Ensino

Religioso para suprir a carência de professores de Ensino Religioso para a regência de turmas na educação

básica, especial, profissional e na reeducação, nas unidades escolares da Secretaria de Estado de Educação, de

Ciência e Tecnologia e de Justiça, e demais órgãos a critério do Poder Executivo Estadual.

Parágrafo Único – A remuneração dos professores concursados obedecerá aos mesmos padrões

remuneratórios de pessoal do quadro permanente do Magistério Público Estadual 31

Art. 2º - Só poderão ministrar aulas de Ensino Religioso nas escolas oficiais, professores que atendam às

seguintes condições:

I – Que tenham registro no MEC, e de preferência que pertençam aos quadros do Magistério Público Estadual;

II – tenham sido credenciados pela autoridade religiosa competente, que deverá exigir do professor, formação

religiosa obtida em Instituição por ela mantida ou reconhecida. 32

Art. 3º - Fica estabelecido que o conteúdo do ensino religioso é atribuição específica das diversas autoridades

religiosas, cabendo ao Estado o dever de apoiá-lo integralmente.

Page 28: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

28

As Ações Diretas de Inconstitucionalidade – a materialização da controvérsia que

permeia o tema

Consoante já anteriormente aludido, a questão do ensino religioso confessional nas

escolas públicas constitui controvérsia que se materializou em forma de duas Ações Diretas

de Inconstitucionalidades impetradas perante o Supremo Tribunal Federal33

.

Interessante notar que o próprio canal escolhido para discutir a questão da congruência

da disciplina religiosa confessional nos colégios da rede pública, qual seja, o próprio STF, já

denota em si uma constatação curiosa. Os setores da sociedade civil passam cada vez mais a

perceber o Supremo como uma instância não somente decisória, mas também como um

“palco de visibilidade” para questões que envolvem os mais diversos âmbitos sócio-

organizacionais.

O que se denota é que a Corte passa a atuar politicamente, não estando adstrita tão

somente à esfera jurídica, estabelecendo-se, de fato, como definidor de algumas políticas

públicas – tal qual o estabelecimento de diretrizes para a educação nacional -, em vista da

inexecução (ou da execução ineficaz) de tais políticas pelos poderes eleitos, a quem

precipuamente incumbe o dever de efetivá-las.

Neste sentido, figura a ADI como verdadeira motriz de execução de políticas públicas,

não devendo tal motor ser compreendido como mero remédio constitucional. Sua propositura

– e nestes dois casos, inclusive – deve ser tida como importante material definidor das

estruturas mais básicas e basilares de toda uma ordem que muito importa à sociedade como

um todo.

Conclusivamente, deve-se enaltecer o papel democrático da Ação Direta, que cada vez

mais adquire importância que extrapola o caráter jurídico de instrumento que se presta a sanar

vícios legislativos, e atinge a função de “protesto”, por meio do qual, representantes das

minorias (na maior parte das vezes), demonstram seu descontentamento com a realidade

posta.

33

Cabe salientar, mais uma vez, que nenhuma das Ações Diretas de Inconstitucionalidade foi decidida pela

Corte. Assim sendo, deve ser feito somente um breve esclarecimento metodológico acerca da obtenção do

material pertinente para a análise acurada acerca das ADIs. O sítio eletrônico do STF (www.stf.gov.br)

disponibiliza a ferramenta “Petições ADI, ADC e ADPF”, que faz parte da opção “processos”, por meio da qual

se fez possível obter as petições iniciais já distribuídas.

Page 29: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

29

À luz deste entendimento, justifica-se a importância do estudo acerca da

materialização da controvérsia em forma de ADI, bem como do estudo empírico a respeito da

questão da constitucionalidade do ensino religioso confessional nas escolas públicas. Através

de constatações práticas, intenta-se chegar mais próximo de uma possível solução para os

chamados hard cases constitucionais34

.

Claro que as digressões teórico-doutrinárias são importantíssimas e contribuem muito

para o debate a respeito do tema. E é por isso que a análise acerca da questão será

desenvolvida em ambos os planos (teórico e prático, doutrinário e jurisprudencial), sem que

haja prejuízo ou desmerecimento de um ou de outro.

ADI n° 3.268 – O Caso do Ensino Religioso Confessional nas Escolas Públicas do Rio de

Janeiro

Conforme anteriormente se aludiu, de maneira rasa, a ADI n° 3.268 questionou,

perante o Supremo Tribunal Federal os dispositivos da Lei Fluminense n° 3.459/2000, Lei

esta que já fora oportunamente apresentada no presente trabalho, no tópico desenvolvido

acima.

Por meio da ADI em referência, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em

Educação – “CNTE”, impugnou os artigos 1º, 2º e 3º da Lei Estadual do Rio de Janeiro

(conforme já anteriormente explicados em capítulo anterior), por cabal violação aos artigos

5º, VIII. 22, XXIV, 37 caput e 210 da Constituição Federal, e formulou pedido de concessão

de liminar.

De acordo com a inicial, os comandos normativos impugnados (i) usurpam

competência legislativa da União35

, vez que lei de iniciativa estadual indevidamente

estabeleceu diretrizes e bases da educação nacional; (ii) violam o artigo 210 caput e § 1º da

Constituição, já que estabelecem a forma confessional de ensino religioso e atribui às

34

Acerca da classificação do tema do ensino religioso confessional nas escolas públicas como um hard case

constitucional, conferir: MARTEL, Leticia de Campos Velho. “Laico, mas nem tanto”: cinco tópicos sobre

liberdade religiosa e laicidade estatal na jurisdição constitucional brasileira, in Revista Jurídica. Brasília, v. 9, n.

86, págs. 11-57, ago./set., 2007. Disponível, também, no endereço eletrônico do Planalto do Governo, no link

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_86/Artigos/PDF/LeticiaCampos_rev86.pdf

35 Conforme dispõe o artigo 22 da Constituição Federal:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (...) XXIV - diretrizes e bases da educação nacional

Page 30: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

30

autoridades religiosas a definição de conteúdos a serem ministrados em sala de aula; (iii)

afrontam a Cláusula de Estado Laico ao estabelecerem insofismável aliança entre o Estado do

Rio de Janeiro e as entidades religiosas36

; e (iv) ferem o Princípio da Impessoalidade da

Administração Pública, traduzido pelo artigo 3737

da Magna Carta, à medida em que a Lei

atacada estabelece privilégios entre integrantes de específicos segmentos religiosos.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade ora em comento, embora não tenha sido ainda

julgada (mesmo tendo sido proposta no ano de 2004), teve grande repercussão, ensejando

debates interessantes que contrapuseram argumentos defensivos e combativos da

constitucionalidade da Lei Fluminense.

É relevante apontar que em virtude da complexidade e da grande discussão gerada em

razão do assunto, o relator, Ministro Celso de Mello, requereu a participação de amicus

curiae38

no processo. A Conectas Direitos Humanos e o Centro de Direitos Humanos – CDH,

instados a se manifestar nesta condição, se posicionaram em favor da declaração de

inconstitucionalidades dos artigos impugnados pela CNTE.

A justificativa da participação de amicus no processo, atenta para a abrangência e para

a dificuldade de resolução da controvérsia, e foi assim proferida pelo mencionado Ministro:

―a razão de ser que primordialmente justifica a intervenção do

"amicus curiae" apóia-se na necessidade de pluralizar o debate em

torno da constitucionalidade, ou não, de determinado ato estatal, em

ordem a conferir maior coeficiente de legitimidade democrática ao

julgamento a ser proferido, pelo Supremo Tribunal Federal, em sede

de fiscalização normativa abstrata‖39

36

Trecho retirado da Petição Inicial da ADI 3.268, disponível no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal. 37

De acordo com o caput do artigo 37 da CF, A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes

da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,

impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...)

38 A figura do amicus curiae representa intervenção de terceiros no processo de decisão da Ação de

Inconstitucionalidade, para auxiliar a Corte, fornecendo argumentos acerca da constitucionalidade ou da

inconstitucionalidade do dispositivo atacado. Esta intervenção é permitida, em conformidade com o artigo 7º, § 2

da Lei 9.868/99, cuja redação encontra-se a seguir transcrita: Art. 7o Não se admitirá intervenção de terceiros no

processo de ação direta de inconstitucionalidade. (...) § 2o O relator, considerando a relevância da matéria e a

representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no

parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades. 39

ADI 3268 MC / RJ - Rio de Janeiro. Relator(a): Min. Celso de Mello. Julgamento em 20.10.2004

Page 31: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

31

Dentre os argumentos mais relevantes, os amici curiae levantam que a

disponibilização do ensino religioso, na modalidade confessional, viola uma série de

mandamentos constitucionais, afrontando, em especial o artigo 19, I e o artigo 5º, incisos VI e

VIII. Ainda, apontam a incompatibilidade do ensino confessional com relação ao artigo 33 da

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, vez que a própria evolução do referido artigo

33, introduzida pela lei 9.475/1999, vem justamente sanar inconstitucionalidade anterior, que

previa a forma confessional de ensino religioso.40

Os amici classificam a Lei Estadual impugnada como uma forma de tornar o ensino

religioso – que, de acordo com a Conectas e o CDH, deve ser entendido como ensino de

cunho antropológico e filosófico – um meio de efetivação de catequese e arrebanhamento de

fiéis41

, constituindo-se verdadeira deformidade do Estado Democrático de Direito.

Neste contexto, afirmam os colaboradores da Corte, ser a Lei atacada um propulsor da

confusão indevida entre o divino e o secular, já que a propositura de ensino confessional, de

matéria obrigatória, nas escolas públicas geraria a subvenção de religiões, o que é vedado pela

Cláusula de Estado Laico, e promoveria violação à liberdade de crença e consciência, já que

estabeleceria relação de preferências entre credos e crentes a serem congratulados com as

aulas-culto de ensino religioso.42

O diploma atacado também violaria, na visão dos amici, o

artigo 19, inciso I, vez que promoveria a transformação do público-estatal em local de

pregação, cultos e liturgias.

Os autores do amicus curiae denunciam o que eles denominam de “paradoxo” gerado

pelo diploma. Neste sentido, explicam que a vedação expressa feita pela Lei a quaisquer

formas de proselitismo, em nada ameniza a clara afronta que esta promove à ordem

constitucional, e constitui, na realidade, uma hipocrisia legislativa tendo em vista que o

ensino confessional é, ele próprio, inerente ao proselitismo.

Apontam, ademais, para a inconstitucionalidade da Lei do Rio de Janeiro, pelo fato de

esta afrontar à liberdade de profissão e a igualdade resguardadas pelo Texto Maior,

40

Trecho extraído do corpo da peça processual produzida pela Conectas Direitos Humanos e pelo CDH,

disponível no endereço eletrônico do Supremo Tribunal Federal 41

Trecho extraído do corpo da peça processual produzida pela Conectas Direitos Humanos e pelo CDH,

disponível no endereço eletrônico do Supremo Tribunal Federal 42

Trecho extraído do corpo da peça processual produzida pela Conectas Direitos Humanos e pelo CDH,

disponível no endereço eletrônico do Supremo Tribunal Federal

Page 32: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

32

salientando que somente seriam aceitos para ministrar aulas na Rede Pública, os professores

que professassem determinada (ou determinadas) fé(s).

Adicionalmente, a Conectas e o CDH ressaltam o fato de a Lei Fluminense

estabelecer, como elemento qualificador dos professores habilitados a lecionar disciplina

religiosa confessional, o reconhecimento e credenciamento de tais professores pela autoridade

religiosa competente, nos termos da atacada lei. O estabelecimento deste critério, além de

vincular Estado e Igrejas, traz em si a necessária afronta à igualdade entre as religiões

professadas no Brasil, dado o simples fato de nem todas as religiões possuírem uma

autoridade religiosa.

A peça traz, ainda, interessantes considerações acerca das dificuldades de implantação

do ensino religioso confessional, tal qual concebido pela Lei questionada. Nesse sentido,

constituiria um problema prático-administrativo a disponibilização de ensino religioso

confessional para as mais de 40 religiões professadas no Brasil. Na visão dos colaboradores,

não sendo possível atender o ensino confessional a cada uma das mais de 40 crenças

religiosas - por não estar o Estado aparelhado para disponibilização de todas as manifestas

religiosidades -, haveria conseqüente violação dos citados incisos do artigo 5º.

Curioso notar que tal ADI, conforme já se referiu acima, não recebeu qualquer

tratamento por parte dos ministros do Supremo. A intervenção de terceiros – os amigos da

Corte – reafirma a profundidade da questão e confere força ao debate que se instaura no palco

no plenário, em que os ministros deveriam figurar como atores principais e, até agora, não o

fizeram. Denota, ainda, a urgência de definição acerca do assunto, definição tal que constitui a

função precípua dos juízes e que o Tribunal Maior está falhando ao não desempenhar.

Em consulta empreendida na home page da Assembléia Legislativa do Estado do Rio

de Janeiro43

, fez-se possível a constatação de que a Lei Estadual, que fora promulgada no ano

de 2000, e que até hoje figura como cerne da polêmica acerca da validade da modalidade de

ensino religioso por ela implementado, encontra-se ainda em vigor.

É interessante apontar que a Lei Estadual n° 3.459/2000 já havia sido questionada em

instância recursal anterior (“inferior”)44

. Na ocasião, o então deputado Carlos Minc atacou a

43

http://www.alerj.rj.gov.br/

44 Conferir, neste sentido o processo 0036642-70.2000.8.19.0000 (2000.007.00141), disponível para consulta no

site do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro http://www.tjrj.jus.br/scripts/weblink.mgw

Page 33: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

33

constitucionalidade da Lei Fluminense perante o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro,

sustentando que a forma confessional de ensino ensejaria indissociável proselitismo e

acarretaria intolerância religiosa, bem como atacou os critérios estabelecidos pela Lei quanto

à formação e admissão dos professores e a definição do conteúdo a ser lecionado.

Distribuído o pleito, tanto a Procuradoria do Estado quanto a Procuradoria de Justiça

manifestaram entendimento pelo não reconhecimento do pedido. Quando do julgamento da

representação por inconstitucionalidade, os desembargadores, por unanimidade, indeferiram o

pedido, acatando o entendimento dos Procuradores e posicionando-se em favor da

constitucionalidade da Lei que estabeleceu a forma confessional de ensino para as escolas

públicas do Estado do Rio de Janeiro45

.

O entendimento pela constitucionalidade, deu-se em virtude da proibição expressa

constante do enunciado normativo da Lei Fluminense a quaisquer formas de proselitismo e do

entendimento do termo confessional como não excludente do ecumenismo. Naquela assentada

o Tribunal de Justiça entendeu, também, que o fato de a Lei exigir credenciamento por

autoridade competente não feriria o respeito constitucional à diversidade religiosa,

asseverando que as agremiações que não possuem organização hierárquica formal, devem –

certamente – possuir estrutura organizacional que possibilita a indicação de alguém que faça

as vezes de autoridade religiosa.

Embora se possa dizer - a partir do exame dos votos – que os desembargadores

fizeram uma leitura simplória do termo confessional e julgaram a questão de maneira

descompromissada com os reais problemas que se verificavam na prática, em virtude da

adoção do ensino religioso confessional nas escolas públicas do Rio de Janeiro46

, a decisão

proferida traz à tona uma importante contribuição para o debate.

45 Tal decisão encontra-se assim ementada: Representação de Inconstitucionalidade contra dispositivos da lei

estadual n.º 3459/2000, que dispõe sobre o Ensino Religioso Confessional nas escolas da rede Pública de

Ensino do Estado do Rio de Janeiro - Argüição de vícios materiais e formais -- A expressão confessional nada

mais significa do que crença religiosa - O ecumenismo é forma de convivência e colaboração interconfessional,

em nada se opondo ao confessionalismo religioso - A lei, especialmente, em seu artigo 1º, preservou o princípio

fundamental da liberdade de religião. O artigo da Lei que se limita a indicar as condições necessárias para que

uma pessoa seja habilitada a ministrar aulas, dando preferência aos que pertençam ao Magistério Estadual, que

possuam habilitação específica, guarda consonância com a Lei Maior do Estado - Inexistência de qualquer

discriminação entre adeptos de, religiões diversas -- Acolhimento parcial da representação, quanto ao artigo 5º,

do Diploma impugnado, eis que criou função pública, independentemente de iniciativa do Governador do

Estado. (Ementário: 36/2001 - N. 32 - 22/11/2001 REV. DIREITO DO T.J.E.R.J., vol 51, pag 178) 46

Neste sentido, Letica Martel apresenta a seguinte conclusão quanto ao julgamento da representação de

inconstitucionalidade apresentado pelo deputado Carlos Minc: Ao passo que os especialistas em educação

Page 34: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

34

A partir da comparação entre o resultado da decisão proferida pelo TJRJ, que entendeu

pela constitucionalidade da Lei Estadual n° 3.459/2000, em relação aos argumentos

apresentados no amicus curiae, que levaram à conclusão de inconstitucionalidade da mesma

Lei, mais uma vez se verifica a falta de consenso entre as posições manifestadas acerca do

tema do ensino religioso confessional nas escolas públicas.

A contraposição de opiniões revela, antes de tudo, o terreno fértil em que a discussão

encontra-se inserida e o quão difícil é se chegar a qualquer conclusão acerca do assunto. Os

valores aqui ponderados inserem-se, sim, em um contexto público, coletivo, mas –

impreterivelmente – perpassam pela esfera privada, individual de cada ator que participa do

debate, já que a religião diz respeito ao foro íntimo de cada indivíduo, sendo quase que

impossível que cada debatedor se dispa de suas crenças e convicções mais arraigadas no

âmago do próprio ser – espaço este que é ocupado pelos valores confessionais de cada ser

humano.

ADI n° 4.439 – O Caso do Estatuto da Igreja Católica no Brasil

A Ação Direta de Inconstitucionalidade em apreço, numerada 4.439, foi proposta, em

30 de julho de 2010 pela Procuradora Geral da República, Debora Duprat, em face do Decreto

n 7.107, cuja evolução histórica e principais nuances já foram acima explicitados.

A dita afronta aos preceitos constitucionais se dá especificamente pelo artigo 1147

do

Estatuto da Igreja Católica no Brasil, que com o advento de sua promulgação por meio do

Decreto acima mencionado, passou a figurar como Anexo ao corpo do texto do ato normativo.

demonstram cruciais diferenças entre o ensino religioso confessional, interconfessional e não-confessional, os

julgadores consideraram a palavra confessional em um contexto léxico simplista (desvinculado, até mesmo, de

sentidos que lhe são conferidos juridicamente) e declararam a constitucionalidade da norma. Esse fato

demonstra um absoluto distanciamento dos problemas reais que estavam em pauta, pois toda a arquitetura legal

foi desenhada segundo uma leitura técnica da qual não seria possível desvencilhar-se. A ausência de maiores

discussões sobre a aplicação da lei sugere que os magistrados não estavam plenamente cientes do impacto e dos

desdobramentos futuros da sua decisão, o que leva a crer que os fundamentos adotados possam ser tarjados de

subminimalistas. Conferir: MARTEL, Leticia de Campos Velho. “Laico, mas nem tanto”: cinco tópicos sobre

liberdade religiosa e laicidade estatal na jurisdição constitucional brasileira, in Revista Jurídica. Brasília, v. 9, n.

86, págs. 11-57, ago./set., 2007. Disponível, também, no endereço eletrônico do Planalto do Governo, no link

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_86/Artigos/PDF/LeticiaCampos_rev86.pdf

47 ―Artigo 11

A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da

pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da

pessoa.

Page 35: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

35

A Procuradoria apresenta uma série de motivos pelos quais o texto impugnado deveria

ser considerado como contrário à Magna Carta, por afronta à liberdade de crença e

consciência e por desrespeito à laicidade Estatal. Não obstante a apresentação dos argumentos

em favor da inconstitucionalidade do artigo 11, a Procuradora Geral sugere que seja

concedida, pelo Supremo Tribunal, interpretação conforme a Constituição ao referido artigo.

O objeto principal contestado por Debora Duprat é a expressão ensino religioso,

católico e de outras confissões religiosas, que, de acordo com o entendimento da autora,

constitui estabelecimento indevido de caráter confessional ao ensino religioso, o que acaba

por ferir os preceitos constitucionais retro citados.

Assim sendo, a Procuradoria provê um relato acerca da laicidade do Brasil,

salientando que este princípio representa a possibilidade de o Estado adotar uma postura

bidirecional: salvaguardando tanto as diversas confissões religiosas existentes no Brasil de

qualquer intervenção indevida por parte do Estado, e, de outro lado, prevenindo qualquer

forma de influência proveniente de qualquer Igreja que tente afetar o Estado, protegendo a

necessária separação entre o poder secular e o democrático.

A laicidade compreendida na peça elaborada pela Procuradoria representa a adoção de

postura neutra por parte do Estado, de maneira que não haja favorecimento ou embaraço de

qualquer crença ou fé, sendo certo que a interpretação dada ao artigo 11 em comento deve se

coadunar com o contexto principiológico constitucional. Desta feita, deve ser levando em

consideração o fato de o Estado ser laico - neutro, bem como a garantia da liberdade de crença

e consciência e, de mesma forma, a relação com o princípio da igualdade.

A exposição feita pela Procuradoria na ADI 4.439, traz à tona não somente

questionamento de ordem jurídica acerca do tema, mas adicionalmente apresenta

preocupações eminentemente sociológicas que se verificam da prática do ensino religioso nas

escolas públicas do Brasil. Neste sentido, afirma ser tênue a linha de separação entre o

confessional e o não confessional e alerta para os perigos de um indesejável e inevitável

doutrinamento às crianças e adolescentes (que são mais facilmente influenciáveis pela figura

§1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina

dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural

religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de

discriminação‖

Page 36: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

36

do mestre e do professor), suscetível a acontecer mesmo quando em pauta o ensino religioso

facultativo, que dirá quando lecionado o ensino manifestamente confessional.

No cenário do questionamento acerca da constitucionalidade do Estatuto da Igreja

Católica no Brasil, faz-se bastante interessante a leitura do parecer da Comissão de

Constituição e Justiça e Cidadania (“CCJC”)48

, quando da aprovação do Acordo celebrado

entre a Santa Sé e a República Federativa do Brasil para o estabelecimento do referido

Estatuto.

Na oportunidade, a CCJC defendeu a constitucionalidade do Acordo e aprovou sua

conversão em Decreto Legislativo, alegando ser o Estatuto da Igreja Católica juridicamente

compatível com o ordenamento jurídico brasileiro, se coadunando com os princípios

constitucionais expressos e implícitos, além de possuir substrato de coerência lógica, bom

senso e razoabilidade.

Especialmente acerca do artigo 11 (que segundo a Procuradora Deborah Duprat

estabelece a confessionalidade do ensino religioso, violando assim a laicidade Estatal e a

liberdade religiosa), a CCJC profere o seguinte entendimento:

―Nesse sentido, por exemplo, o Acordo não atenta contra a

„liberdade de consciência e de crença‟ nem mesmo contra o „livre

exercício dos cultos religiosos‟, tal como estabelece o inciso VI do

art. 5º da Constituição. Pelo contrário, o Acordo consagra a

liberdade religiosa, a diversidade cultural e a pluralidade

confessional em nosso país, manifestando-se, aliás, contra qualquer

forma de discriminação (art. 11 do Acordo)‖49

(Destacou-se)

A CCJC reputa o Acordo como constitucional, uma vez que – de acordo com o parecer

– as diretrizes centrais do Estatuto em apreço preservam as disposições do ordenamento

jurídico acerca do caráter laico do Estado brasileiro, da liberdade religiosa e do tratamento

equitativo estabelecido no Brasil.

No entendimento prolatado pela CCJC, o Estatuto da Igreja Católica, e neste contexto

compreendido o ensino religioso católico, nada mais é do que a manifestação de um dos

48

Texto contido no Projeto de Decreto Legislativo n. 1.736, de 2009 (Mensagem 134/2009) 49

Texto contido no Projeto de Decreto Legislativo n. 1.736, de 2009 (Mensagem 134/2009)

Page 37: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

37

credos religiosos que tem lugar no País, sendo certo que a todas as outras religiosidades

também é permitida e franqueada a mesma manifestação, não havendo, por tanto, qualquer

afronta à garantia de pluralidade religiosa.

Neste sentido - por não constituir exclusividade da Igreja Católica a celebração do

Acordo, sendo permitida a qualquer outra confissão fazê-lo - haveria, aí sim, afronta à Magna

Carta, se houvesse recusa por parte do Estado brasileiro em receber o Estatuto, vez que não é

defeso ao Estado constranger a manifestação de qualquer crença e a própria negativa à

possibilidade de tal manifestação caracterizaria embaraço jurídico discorde com o caráter

laico do Estado.

Por fim, a Comissão de Constituição e Justiça faz um paralelo entre o Acordo

celebrado no Brasil com a Igreja Católica e a Lei Italiana que regulamenta a relação travada

entre a República Italiana – que também é constitucionalmente laica – e as Assembléias

Evangélicas de Deus, no que concernente ao estabelecimento do ensino religioso, tal qual

previsto no artigo 11 do Estatuto da Igreja Católica no Brasil.

De acordo com a comparação estabelecida, a CCJC esclarece que, tal qual

estabelecido na citada Lei Italiana, o ensino religioso católico no Brasil deve ser

compreendido como aquele respaldado pela liberdade de consciência de todos. Assim, o

ensino religioso católico a ser ministrado nas escolas públicas não deve dar espaço à causa de

efeitos discriminatórios, e, ainda, deve ser concedido a quaisquer alunos o direito de não se

valerem do ensino religioso.

Mais uma vez, a análise aprofundada da discussão ensejada na Ação Direta de

Inconstitucionalidade que questiona o ensino religioso estabelecido pelo Estatuto da Igreja

Católica no Brasil, imputado constitucional pela CCJC, transparece a intensa refrega que se já

havia instalado no campo doutrinário a respeito do tema e que não encontrou eco na

jurisprudência constitucional Brasileira.

Page 38: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

38

A manifestação doutrinária acerca do ensino religioso no Brasil

O estudo do posicionamento da doutrina a respeito do tema, antes de tudo, reiterou as

preocupações já aqui manifestadas: não há como chegar a qualquer conclusão sem se

considerar – principalmente – as garantias constitucionais à liberdade e igualdade religiosa e,

da mesma forma, a Cláusula de Estado Laico.

Estas preocupações constitucionais, elas mesmas, já configuram ponto controvertido

entre os diversos doutrinadores que se dispuseram a escrever sobre os temas das garantias de

liberdade e igualdade religiosa e de laicidade Estatal acima referidas.

Não é demais recapitular que a idéia de Estado laico, conforme já anteriormente se

referiu quando da explanação do panorama constitucional aplicável, ocupa uma dimensão

questionável e controversa para a compreensão da relação estabelecida entre Estado e Igrejas.

Talvez por ser esta noção tão debatida, a discussão referente à compreensão do significado

atribuído ao ensino religioso ainda esteja em curso.

Verificou-se que há relação lógica direta entre a maneira como são concebidos a

liberdade religiosa e o laicismo Estatal e a atribuição de constitucionalidade ou

inconstitucionalidade quanto ao ensino religioso confessional nas escolas públicas.

À luz dos citados princípios norteadores do entendimento acerca do ensino religioso

nas escolas públicas, fez-se possível classificar os doutrinadores estudados em três distintos

grupos, de acordo com os pensamentos por eles manifestados.

No presente estudo serão atribuídas as classificações e denominações a cada um dos

três grupos doutrinários acima referidos, que se julgou ser a mais acertada correlação entre

nome e conteúdo. Há que se ressalvar, porém, que a própria doutrina se incumbe de atribuir

nomes às diversas correntes doutrinárias que se apresentam acerca do tema do ensino

religioso, não sendo a própria classificação das distintas linhas de pensamento matéria de

consenso entre todos os doutrinadores.

Tendo isto sido esclarecido, cumpre ressaltar que aqui se convencionou subdividir a

doutrina, de acordo com cada uma das linhas de posicionamento emanadas, nas seguintes

correntes: negativa, positiva e neutra, sendo esta última a mais aceita pela doutrina e a que

parece fazer mais sentido no contexto histórico, jurídico e social brasileiro.

Page 39: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

39

A primeira corrente, a que no presente chamou-se de negativa, atribui rigidez tal à

separação entre Estado e Igrejas que defende que o único modo de a liberdade e a igualdade

religiosa serem de fato atingidas é através de adoção de uma postura negacionista por parte do

Estado. Neste sentido, ao Estado seria negado manter50

qualquer forma de cooperação com ou

reconhecimento de quaisquer Igrejas, ou de todas as Igrejas.

Neste contexto, caberia a adoção de uma postura omissiva, uma atitude “de não fazer”

por parte do Estado. Este abster-se-ia de qualquer pronunciamento acerca da esfera religiosa,

como garantia da igualdade entre as várias religiões, como se “desse as costas” ao fenômeno

religioso, que, inevitavelmente, faz parte dos valores sócio-culturais, justamente para não

privilegiar indevidamente qualquer culto em detrimento de outro.

À luz do entendimento professado por este grupo de pensadores, o ensino religioso

confessional deveria, de qualquer forma ser expurgado do ordenamento jurídico e o próprio

ensino religioso, por si só, poderia ser reputado como incongruente com os demais princípios

resguardados pela Constituição Federal.

À corrente que se contrapõe a esta outra aqui apresentada chamou-se positiva. De

acordo com tal entendimento, o Estado deveria reconhecer a existência da diversidade

religiosa e, intentando garantir a igualdade entre todas as confissões existentes, deveria

efetivamente empreender esforços, atuando proativamente, para esquiparar as condições de

cada credo.

50

Leticia de Campos Velho Martel (conforme referência já apresentada acima), traz o posicionamento

apresentado pelo MEC, acerca do ensino religioso na escolas públicas, posicionamento este que adota o que aqui

se referiu como negacionismo, enaltecendo separação rígida entre o Estado e Igrejas: “Vale lembrar que a

redação original do art.33 da LDB referia-se ao ensino religioso confessional e ao interconfessional. O texto

ora vigente não traz tal definição e exige que os conteúdos e a qualificação dos professores sejam fixados pelos

respectivos sistemas de ensino, ouvida entidade civil composta pelas diferentes denominações religiosas. O

Pleno do Conselho Nacional de Educação apreciou, em parecer homologado pelo Ministro da Educação, o

antigo art.33, concluindo que o ensino poderia ser confessional, ou seja, ministrado por lideranças religiosas na

escola, durante o horário letivo, desde que sem ônus para os cofres públicos. O pleno entendeu que, em razão

do art.19 da CF/88, não poderia o Estado ser onerado por tais aulas. Com a nova redação ofertada ao art.33,

mais uma vez manifestou-se o CNE, que considerou não ser de sua alçada manifestar-se sobre os conteúdos, eis

que especificamente atribuídos os diferentes sistemas de ensino, o mesmo valendo, dentro dos parâmetros

gerais, para a qualificação dos educadores. O excerto final do parecer, além de curioso, ilustra a magnitude do

problema: ―Esta parece ser, realmente, a questão crucial: a imperiosa necessidade, por parte do Estado, de não

interferir e portanto não se manifestar sobre qual o conteúdo ou a validade desta ou daquela posição religiosa

e, muito menos, de decidir sobre o caráter mais ou menos ecumênico de conteúdos propostos. Menos ainda deve

ser colocado na posição de arbitrar quando, optando-se por uma posição ecumênica, diferentes seitas ou igrejas

contestem os referidos conteúdos da perspectiva de sua posição religiosa, ou argumentem que elas não estão

contempladas na programação. Por estas razões, parece-nos impossível, sem ferir a necessária independência

entre Igreja e Estado, estabelecer uma orientação nacional uniforme que seria necessária para a observância

dos processos atuais de autorização e reconhecimento‖. BRASIL. MEC. CNE. Parecer nº05/97. BRASIL. MEC.

CNE. Parecer 97/99. Disponíveis em: http://portal.mec.gov.br/cne. Acesso em: dez.2006‖.

Page 40: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

40

Neste sentido, caberia ao Estado, em muitas vezes, não somente a simples

contribuição para o exercício de Igrejas, mas a própria prestação, a atuação efetiva do Estado

fazendo as vezes de Igreja, ou Igrejas.

No caso do ensino religioso, este seria prestado pelo próprio Estado, por meio, por

exemplo, de promoção de concurso público para ingresso de professores e definição do

conteúdo a ser lecionado nas aulas de ensino religioso, implicando – como já se disse – uma

atuação concreta do estado em prover o referido ensino, ainda que o ensino fosse

confessional, vinculado a uma, duas ou quantas Igrejas fossem necessárias, devendo o Poder

Público prover matéria relativa a cada confissão professada por cada um dos alunos, a medida

de sua demanda e em pé de igualdade para todas as religiões.

De mesma forma, para se coadunar com a liberdade de consciência, a adoção de tal

postura resguardaria o caráter facultativo de tal matéria e, por tanto, garantiria aos alunos

ateus ou agnósticos a possibilidade de não optarem por matricular-se em disciplina de ensino

religioso, caso esta fosse a opção por eles manifestada (ou manifestada por seus

representantes).

A última das três correntes e a que mais ganha adeptos (ao menos foi o que se aferiu

da amostra de doutrinadores estudados) e a aqui classificada como neutra, relativiza as duas

posturas acima expressadas51

. Reconhece certa rigidez ao princípio da separação entre Igrejas

e Estado mas, da mesma forma, reputa necessária uma colaboração entre as citadas esferas.

Pela separação “semi-rígida” aqui referida, presume-se que Estado e Religião não

possam estabelecer vínculo de aliança, mas que haja uma atenuação da separação entre eles,

51

Como exemplo desta corrente pode-se citar o Professor Alexandre de Moraes, para quem ―A Constituição

estabelece ser vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios (CF, art. 19) estabelecer

cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus

representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse

público. A República Federativa do Brasil é leiga ou laica, uma vez que há separação total entre Estado e

Igreja, inexistindo religião oficial. Observe, porém, que o fato de ser uma Federação leiga não a confunde com

os Estados ateus, pois o Brasil, expressamente, afirma acreditar em Deus, quando no preâmbulo constitucional

declara (...) Surge como verdadeiro corolário desse princípio a vedação constitucional de institucional de

impostos por parte da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, sobre templo de qualquer culto (CF, art.

150, VI, b)‖(MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e legislação constitucional. 5ª

Edição. São Paulo: Editora Atlas S.A. 2005. pág. 655). No mesmo sentido, cita-se alguns, tais quais: NERY

JUNIOR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria. Constituição Federal Comentada e legislação

constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. pág 372; MONTEIRO, Nilton de Freitas.

Parâmetros constitucionais do ensino religioso nas escolas públicas. Revista da Procuradoria Geral do Estado

de São Paulo, São Paulo: Centro de Estudos, nº 47/48. p. 191, jan./dez. 1997; Dom Fillippo Santoro, Bases da

Ética, in Núcleo, n. 7, dez./2003; MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional: direitos fundamentais. 3.

ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p.440. PORTUGAL

Page 41: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

41

tendo em vista que a própria Magna Carta alberga espaço para algumas “exceções” para a

regra geral de dissociação Estatal-religiosa.

Assim, a liberdade religiosa seria composta, concomitantemente, de uma dimensão

negativa e de uma dimensão positiva. Pela primeira, o Poder Público não poderia impor a

qualquer indivíduo a adesão compulsória da prática de qualquer religião, assim como não

poderia o Estado arrogar-se de impedir o exercício de qualquer credo.

Não obstante deva o Estado cumprir com esta vertente negativa, pode – e deve –

estabelecer relação de colaboração com as Igrejas. Neste sentido, deve a Administração

Pública incumbir-se de assegurar o exercício da religião, propiciando, de igual modo,

condições igualitárias de atuação para todas as confissões. Essa posição positiva adotada pelo

Estado denota o reconhecimento de uma dimensão social do fenômeno religioso, entendendo

o crente, também como cidadão e, em assim o sendo, suas necessidades religiosas convertem-

se em bem jurídico, o qual cabe ao Estado garantir – não de maneira ativa, mas de modo a

afastar quaisquer impedimentos que estejam ao seu alcance para propiciar, em condição de

igualdade para todas as confissões religiosas, a atuação das Igrejas.

De fato, a interpretação que mais parece guardar respeito ao ordenamento brasileiro é

aquela pela última corrente apresentada. De qualquer forma, o que parece teórica e

hipoteticamente razoável, nem sempre se apresenta facilmente aplicável na prática.

Interessante notar que, quase a totalidade dos doutrinadores estudados manifestou

grande preocupação com a rotina adotada nas escolas públicas que possuem como parte de

seu currículo o ensino religioso confessional.

Esta preocupação tem sido, inclusive, alvo de matérias jornalísticas e de editoriais e

pesquisas empíricas que são empreendidas com fins de averiguar como funciona, de fato, a

lição do ensino religioso nas escolas públicas. Ao fim, percebeu-se patente a distância abismal

entre o que se prenuncia doutrinariamente e o que ocorre na prática brasileira com relação ao

tema. Esta provocação, muito mais leviana do que testada, embora figure como um dos

pontos-chave para o bom entendimento acerca da constitucionalidade de tal modalidade de

ensino, não constitui (infelizmente) escopo do presente trabalho, motivo pelo qual não será

devidamente abordada. Ainda assim, sentiu-se necessário um pequeno adendo antropológico,

somente para – mais uma vez – enaltecer a complexidade e profundidade do assunto.

Page 42: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

42

Por fim, cabe ressaltar que com o advento da Lei Fluminense, atacada pela ADI 3.268,

já estudada na presente, houve grande manifestação doutrinária acerca de sua

constitucionalidade. Os pensadores da questão, de maneira unânime se demonstraram

contrários a referida Lei: a uma, pela própria atribuição de ensino religioso confessional de

matrícula obrigatória nas escolas públicas do Rio de Janeiro, com indevida afronta aos

princípios constitucionais; a duas, pela forma estabelecida de contratação de professores,

método adotado e definição de conteúdo a ser lecionado nas aulas de ensino religioso.

Como exemplo, tem-se Fábio Portela Lopes de Almeida52

, que a partir de uma

aprofundada análise acerca da Lei Estadual 3.459/2000 do Estado de Rio de Janeiro, bem

como do princípio da liberdade religiosa e da relação entre Estado e Igreja, pautada na

laicidade, entende que a Lei deveria ser reputada como inconstitucional.

Já a ADI impetrada pela eminente Procuradora Geral da República não ensejou

posicionamentos tão definitivos. O próprio Estatuto da Igreja Católica no Brasil dividiu

opiniões entre os mais diversos setores da sociedade.

O debate acerca desta polêmica deu-se, de modo mais específico, no campo

jornalístico, não havendo – ainda – produção doutrinária com enfoque exclusivo (ou

principal) na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.439. Talvez isso se dê em virtude de a

propositura de tal pleito ser tão recente e não ter tido, ainda, qualquer repercussão na Suprema

Corte.

Ainda assim, destacam-se aqui dois dos entendimentos contrapostos manifestados

acerca da questão suscitada na ADI, especificamente no que diz respeito à constitucionalidade

do artigo 11 do Estatuto da Igreja Católica. Para o primeiro dos destacados pensadores, Paulo

Ebret53

, tal artigo deveria ser entendido como inconstitucional, no sentido de que este

favorece, ao estabelecer que o ensino deverá ser católico ou de outras confissões, preferência

indevida manifestada pelo Estado a um credo específico.

A construção feita pelo autor, que leva à constatação de inconstitucionalidade do

artigo 11 ora em comento, permeia o tratamento conferido pela Constituição ao pluralismo

religioso, bem como enaltece as bases e diretrizes do sistema educacional como um todo, aí

52

ALMEIDA, Fábio Portela Lopes. Liberalismo político, constitucionalismo e democracia: a questão do ensino

religioso nas escolas públicas. Belo Horizonte: Editora Argvmentvum, 2008, v.1.

53 Disponível em http://jus.uol.com.br/revista/texto/17251/da-inconstitucionalidade-do-art-11-do-estatuto-

juridico-da-igreja-catolica-do-brasil (acesso em 3 de agosto de 2011)

Page 43: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

43

abrangendo, também, questões e valores morais e sociais, conforme se verifica do enxerto

abaixo transcrito.

Da análise do dispositivo ora transcrito, verifica-se que o chamado

Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil vinculou o ensino

religioso às doutrinas eclesiásticas professadas pelos distintos

segmentos existentes no País, primando, portanto, por um modelo

confessional em detrimento da forma ecumênica de magistério

daquela disciplina, a primar pelo ensinamento dos conceitos morais

que permeiam, de maneira unívoca, a totalidade das religiões.

Diante disso, formula-se a indagação: a forma confessional de ensino

religioso propalada pelo chamado Estatuto Jurídico da Igreja

Católica no Brasil estaria em conformidade com as pautas

axiológicas emanadas da Constituição Federal, em especial com as

diretrizes constantes dos artigos 206, III e 210, caput, da Carta

Magna, a pautarem a atividade educacional do Estado pelo

reconhecimento em torno do pluralismo de ideias e pelo respeito aos

valores culturais da população?

A importância ora conferida ao tema ganha relevo na medida em que

os aspectos a envolverem o ensino religioso transcendem a questão da

franquia às manifestações de fé no ambiente escolar, abrangendo,

para muito além desse tópico, a concretização do princípio

constitucional da pluralidade ideológica nos ambientes públicos, a

constituir a matriz do postulado do Estado Democrático de Direito e

da própria liberdade religiosa.

Dito em outros termos, ao tratar do ensino religioso nas escolas

oficiais de nível fundamental, não se está a pensar apenas na questão

atinente à liberdade de ministrar aos alunos uma ou outra doutrina

religiosa, mas sim no próprio atendimento ao postulado

constitucional da pluralidade ideológica, tão caro ao Estado

Democrático de Direito, e que ganha importância na espécie

justamente por envolver a veiculação de conceitos morais em

ambientes vinculados ao Poder Público e por este mantidos.54

Em sentido contrário destaca-se aqui a publicação de recente artigo “Um panfleto

anticlerical”, escrito pelo renomado Eros Grau, ministro recém aposentado do Supremo

54

Disponível em http://jus.uol.com.br/revista/texto/17251/da-inconstitucionalidade-do-art-11-do-estatuto-

juridico-da-igreja-catolica-do-brasil (acesso em 3 de agosto de 2011)

Page 44: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

44

Tribunal Federal. Neste, o professor ataca o pedido feito na Ação de Inconstitucionalidade em

pauta, atribuindo valor constitucional ao artigo 11 e ao Estatuto da Igreja Católica no Brasil

como um todo.

Aos olhos de Grau, “a ação direta de inconstitucionalidade contra o ensino religioso,

por ela patrocinada (PGR), é simplesmente imperdoável‖ uma vez que o enunciado do

referido artigo em nada inova na ordem jurídica, se coadunando integralmente com o que

dispõe a Lei de Diretrizes e Bases.

―Daí que, para que a Procuradoria-Geral da República pudesse ir ao

STF sustentar a inconstitucionalidade do acordo celebrado entre o

Brasil e a Santa Sé, teria de, por imposição de coerência, sustentar a

inconstitucionalidade da Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional‖55

.

É interessante notar que, a partir daí, o Ministro reconhece a delicadeza que permeia a

questão do próprio ensino religioso, tal qual garantido pela própria LDB. Ainda assim, ataca o

posicionamento da Procuradoria em impugnar o Acordo entre o Brasil e Santa Sé, já que, em

vista da inércia da PGR em atacar o ensino religioso nas escolas públicas, que perdurou

durante 14 anos de vigência da Lei de Diretrizes e Bases, a posição manifestada pela

Procuradoria Geral deveria ser reputada como anticlerical, levando-se em consideração a

identicidade dos preceitos enunciados pela LDB com relação àqueles definidos no artigo 11

do Estatuto da Igreja Católica no Brasil.

―A ação proposta pela Procuradoria-Geral da República aponta

contra o acordo Brasil/Santa Sé e é, de fato, um panfleto anticlerical.

Um panfleto no mínimo anticatólico.

Pois não há dúvida nenhuma de que a Constituição do Brasil garante

em sentido amplo a liberdade de ensino religioso. Leia-se o parágrafo

1.º do seu artigo 210: "o ensino religioso, de matrícula facultativa,

constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de

ensino fundamental".

Essa liberdade é, como se vê, entre nós plenamente assegurada: a

frequência é facultativa - os pais decidem a esse respeito, 55

Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,um-panfleto-anticlerical,685862,0.htm (acesso

em (01.03.2011)

Page 45: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

45

possibilitando, ou não, aos filhos formação espiritual - mas a

disciplina é obrigatoriamente oferecida a todos os alunos.

Isso é muito próprio à cultura nacional, que a Constituição, para ser

legítima, há de refletir. Somos plasmados, os brasileiros, também por

uma religiosidade bem nossa, ao ponto de Deus ser brasileiro e os

que aqui se proclamam materialistas em maioria não professarem o

ateísmo. A laicidade do Estado não significa inimizade com a fé‖56

.

A posição manifestada por Eros Grau neste artigo parece refletir a corrente neutra aqui

classificada, o que fica ainda mais evidente quando da leitura do seguinte trecho de seu

manifesto:

―A Constituição do Brasil garante amplamente a liberdade de ensino

religioso. É francamente avessa ao anticlericalismo. Promulgada

"sob a proteção de Deus", como o seu preâmbulo afirma, não reduz a

laicidade estatal a ateísmo. Proíbe ao poder público, é verdade,

estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-

lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes

relações de dependência ou aliança - ressalvada, na forma da lei, a

colaboração de interesse público (artigo 19, I). Mas seu artigo 213

autoriza expressamente o poder público a encaminhar recursos

públicos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas. Seu

artigo 150, inciso IV, b, assegura a imunidade dos templos de

qualquer culto à instituição de impostos e o parágrafo 2.º do seu

artigo 226 atribui efeitos civis ao casamento religioso, nos termos da

lei.

Nossa Constituição, como se vê, recusa o anticlericalismo e, no

parágrafo 1.º do seu artigo 210, garante a todos acesso ao ensino

religioso. Ensino religioso é ensino ministrado por professores

confessionais, observada a pluralidade confessional do País‖57

Assim, para o Ministro, a derradeira conclusão a que se chega é a de que atribuir

inconstitucionalidade ao artigo 11 do Estatuto da Igreja seria reconhecer que preceito

56

Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,um-panfleto-anticlerical,685862,0.htm (acesso

em (01.03.2011) 57

Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,um-panfleto-anticlerical,685862,0.htm (acesso

em (01.03.2011)

Page 46: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

46

constante da própria Magna Carta, parágrafo 1.º do artigo 210, está imbuído de vício de

inconstitucionalidade.

Page 47: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

47

STF e jurisprudência constitucional - O prisma jurisprudencial acerca da laicidade

estatal e da liberdade religiosa e o possível entendimento conferido à questão do ensino

religioso confessional nas escolas públicas.

Conforme já anteriormente referido, o presente trabalho propôs-se a analisar o

entendimento conferido pelos ministros do Supremo Tribunal Federal às garantias

constitucionais de liberdade e igualdade religiosas, assim como as colocações acerca da

laicidade do Brasil.

Esta estratégia de pesquisa deu-se, primeiramente, em função da verificação de que a

jurisprudência constitucional pátria, representada pela Suprema Corte brasileira, jamais se

debruçou sobre o tema do ensino religioso nas escolas públicas - muito embora tenha sido

provocada a se manifestar neste sentido.

Assim, tendo em vista o tratamento constitucional dado à questão, bem como a

produção doutrinária a respeito do tema, percebeu-se que a controvérsia que abraça a

(im)possibilidade de ser ministrado o ensino religioso confessional nas escolas da rede

pública está intrinsecamente relacionada aos princípios da pluralidade religiosa e da laicidade

do Estado.

Isso porque, consoante já se asseverou no capítulo anterior, a doutrina atribui

constitucionalidade (ou inconstitucionalidade) à referida forma de ensino como derradeira

conseqüência do entendimento atribuído ao artigo 19, I e ao artigo 5º, especialmente em seu

inciso VI. Daí a importância da análise dos princípios da laicidade Estatal e da igualdade e

liberdade religiosa, uma vez que estes se demonstraram ser o cerne da problemática

envolvendo o ensino religioso confessional nas escolas públicas.

Importante salientar que se reconhece (e até mesmo se concorda com) a existência de

fundamentadas críticas acerca da atuação do Supremo Tribunal, que se demonstra menos

como uma tribuna de cúpula, na qual as decisões são conjuntamente tomadas por seus

integrantes, que partilham de uma mesma ratio decidendi, e mais como um órgão constituído

por vozes dissonantes que, em diversas vezes, parecem até mesmo sequer se comunicar uma

com a outra.

Page 48: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

48

De fato, o Supremo Tribunal Federal apresenta processo decisório bastante peculiar,

sendo a ausência de uma racionalidade comum aos acórdãos apenas um dos vícios que

podem ser apontados acerca de tal processo decisório. Neste sentido, pode-se dizer que não há

uma “voz comum” que leve a apresentar qualquer posicionamento como um posicionamento

“da Corte”, já que, em última análise, não há uma unicidade nos votos dos ministros que se

reflita no acórdão58

.

Apesar do reconhecimento de tal vício, aqui, por uma questão metodológica,

considerou-se como passível de ser classificado como precedente qualquer voto que

considerasse em seu conteúdo questões relativas ao resguardo constitucional ao pluralismo

religioso e à laicidade Estatal. Neste sentido, argumentos de quaisquer ministros, que tenham

ou não gerado repercussão no voto dos demais ministros, foram aqui considerados como

possíveis delineamentos para um futuro eventual entendimento acerca da possibilidade de se

ministrar ensino religioso confessional nas escolas públicas.

Em linhas gerais, pode-se dizer que o posicionamento do Supremo acerca dos temas

acima suscitados se concatena com aqueles manifestados pela corrente doutrinária neutra, de

acordo com a classificação a esta atribuída na presente pesquisa.

Cumpre aqui, a esse respeito, trazer os principais pontos ressaltados pelos ministros,

pontos estes que contribuíram para que se pudesse chegar a esta conclusão, de que a visão da

Corte acerca da laicidade Estatal e da liberdade religiosa tende a concordar com a adoção de

uma postura de neutralidade estatal, devendo o Estado ser pautado por uma função negativa e

outra positiva.

O valor “negativo” que deve o Estado adotar encontra-se bem demonstrado pelo

Ministro Cezar Peluso, em seu voto proferido em sede do Habeas Corpus n° 82959, em que

ressalta o dever estatal de não fazer, de não estabelecer qualquer valor que ganhe caráter

impositivo a qualquer cidadão.

―Constituindo-se a República Federativa do Brasil em Estado

Democrático de Direito, laico, fundado na dignidade da pessoa

58

A respeito do assunto, Guilherme Forma Klafke, demonstra, com peculiar desenvoltura, os vícios no processo

decisório do Supremo Tribunal Federal, apontando como um deles a dificultosa definição de qualquer ratio da

Corte. KLAFKE, Guilherme Forma. Vícios no processo decisório do Supremo Tribunal Federal. Monografia

apresentada como conclusão de curso da Escola de Formação da SBDP, sob orientação de Henrique Motta Pinto.

São Paulo, 2010. Disponível em

http://www.sbdp.org.br/arquivos/monografia/164_Monografia%20Guilherme%20Klafke.pdf (acesso em

07.08.2011)

Page 49: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

49

humana e na tolerância para com cultos, crenças, consciência e

opinião, à medida que não prejudiquem direitos alheios, não pode o

direito positivo assumir, ou seja, impor coativamente aos cidadãos,

determinada concepção moral ou “de bons costumes”, nem muito

menos fazê-lo sob a ameaça de restrição a direito fundamental (...)‖59

(Destacou-se).

Neste mesmo voto, referido Ministro apóia sua concepção em posicionamento

doutrinário apresentado por Giovanni Ferrajoli, de cujo entendimento foi extraído o seguinte

trecho, que se apresenta interessante para o presente estudo.

―A secularização do direito e a laicidade do Estado baseadas na tese

metajurídica da separação do direito da moral, em virtude da qual o

direito positivo não somente é uma coisa diferente da moral, como

nem sequer deve reflectir uma determinada moral, proibindo um

comportamento como crime só porque é considerado pecado (...)

O direito e o Estado, em virtude deste princípio, não escarnam

valores morais e também não têm o dever de afirmar, apoiar ou

reforçar a (ou uma determinada) moral ou a (ou uma determinada)

cultura, mas apenas têm o dever de tutelar os cidadãos, garantindo os

seus direitos. o Estado não tem portanto de se meter na vida moral

dos cidadãos, defendendo ou impedindo estilos morais de vida,

crenças ideológicas ou religiosas, opções ou atitudes culturais. O seu

dever é apenas o de garantir a igualdade, a segurança e os mínimos

vitais. (...) É precisamente nesta sua neutralidade moral, ideológica

e cultural, e portanto na sua não invasão da vida privada das

pessoas a não ser para proibir condutas que prejudiquem terceiros,

que reside a laicidade do direito e do Estado liberal‖60

(Destacou-

se).

Ademais do caráter laico do Estado e de seu dever de ostentação de uma postura

negativa para com os indivíduos naquilo que concerne à sua esfera privada, o excerto acima

transcrito traduz, ainda, aquilo quanto já salientado no presente, a respeito de a

confessionalidade poder se referir a outras esferas que não somente à religiosidade.

O Ministro Peluso conclui sua exposição enaltecendo o caráter laico do Brasil e

salientando a necessidade de o Estado não se imiscuir na vida privada dos cidadãos, a não ser

59

HC 82959 / SP - São Paulo. Relator(a): Min. Marco Aurélio. Julgamento: 23/02/2006. Órgão Julgador:

Tribunal Pleno

60 FERRAJOLI, Giovanni. O ―bem jurídico‖ como problema teórico e como critério de política criminal. Trad.

De Heloisa Estellita. Revista dos Tribunais, v. 776, 2000, p.410, citado pelo Ministro Cesar Peluso, no Habeas

Corpus n° 82959

Page 50: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

50

em casos de comportamentos que prejudiquem terceiros, valorizando, em sua exposição, a

vocação pela indulgência para com as diferenças que marcam a cultura e alma brasileiras.

Corroborando o entendimento manifestado pelo Ministro, Joaquim Barbosa também

apresenta o primado da separação entre Igreja e Estado e a liberdade religiosa como fatores

determinantes para que o próprio indivíduo possa decidir sobre assuntos que respeitam à sua

esfera privada, pessoal, não sendo função do Estado definir ou impor determinado

comportamento que esbarre nesta autonomia individual, a não ser em casos em que esta

autonomia viole direitos concernentes à coletividade.

Para o Ministro Barbosa, a Magna Carta preserva a esfera íntima dos indivíduos, não

cabendo ao Estado - em nome da laicidade e do primado da autonomia privada – interferir em

suas convicções morais e religiosas. Desta feita, não poderá o Estado obrigar qualquer pessoa

a agir de maneira contrária aos seus valores e à sua religião61

.

O Supremo, ademais da postura negativa que deve ser adotada pelo Estado, também

consagra a postura positiva, o facere Estatal, conforme se verifica das palavras proferidas pelo

Ministro Gilmar Mendes, na decisão monocrática

―O que se deve promover é a livre competição no ―mercado de idéias

religiosas‖, expressão que, segundo Jônatas Machado, teria sido

cunhada com base no pensamento de Oliver Wendell Holmes e Stuart

Mill (MACHADO, Jônatas. Liberdade Religiosa numa comunidade

constitucional inclusiva; dos direitos da verdade aos direitos dos

cidadãos. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de

Coimbra, 1996, p. 176). Nesse contexto é que surgem as

mencionadas ações positivas do Estado em se tratando de matéria

religiosa, buscando-se afastar sobrecargas sobre determinadas

confissões religiosas, principalmente sobre as minoritárias, e

impedir influências indevidas no que diz respeito às opções de fé.

Vê-se, pois, que tais ações somente se revelam legítimas se pré-

ordenadas à manutenção do livre fluxo de idéias religiosas e se

comprovadamente não exista outro meio menos gravoso de se

atingir esse desiderato. Deve-se também ter o cuidado de que a

medida adotada estimule a igualdade de oportunidades entre as

61

ADI 3510 / DF - Distrito Federal: Relator(a): Min. Ayres Britto. Julgamento: 29/05/2008. Órgão Julgador:

Tribunal Pleno. Nesta oportunidade, o Ministro Joaquim Barbosa. A conjunção da laicidade do Estado e do

primado da autonomia privada conduz a uma importante conclusão: os genitores dos embriões produzidos por

fertilização in vitro, têm a sua liberdade de escolha, ou seja, a sua autonomia privada e as suas convicções

morais e religiosas respeitadas pelo dispositivo ora impugnado. Ninguém poderá obrigá-los a agir de forma

contrária aos seus interesses, aos seus sentimentos, às suas idéias, aos seus valores, à sua religião, e à sua

própria convicção acerca do momento em que a vida começa. Preservam-se, portanto, a esfera íntima reservada

à crença das pessoas e o seu sagrado direito à liberdade.

Page 51: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

51

confissões religiosas e não, ao contrário, seja fonte de privilégios ou

favorecimentos.‖62

(Destacou-se)

Faz-se relevante mencionar que, conforme bem salientado pelo ministro, a adoção de

uma postura positiva por parte do Estado somente deve dar-se de maneira proporcional, de

forma “residual”. Assim, somente se demonstrará razoável a atuação do Estado em casos nos

quais seja verificado não haver qualquer outro meio que, através dos mesmos esforços,

equacione os mesmo resultados.

Esta ponderação feita pelo Ministro em relação ao agir estatal positivo, denota, por si,

uma preocupação com as questões práticas e concretas de uma atuação positiva pelo Estado

no que se refere à possibilidade de ser estabelecida uma relação com qualquer Igreja. Esta

tensão também é apontada pelo Ministro Sepúlveda Pertence, consoante se verifica do trecho

a seguir trazido à baila.

―Há de ser o culto religioso uma atividade que o Estado não pode

estimular de qualquer forma; tem apenas que tolerar.

Todo favor dado, portanto, a instituições religiosas, há de estar

instrumentalmente ligado e, conseqüentemente adstrito, ao valor

constitucional que se vida a proteger, a liberdade de culto. Por isso,

a Constituição não o reuniu, num inciso só, instituições de assistência

social ou de educação com as instituições religiosas.

Para interpretar este § 4° do art. 150, realmente de difícil intelecção,

interpreto-o, na tensão dialética que, para mim, é grave, a que se

referiu o Ministro Celso de Mello, de forma a conciliá-lo com uma

regra básica do estatuto republicano, que é o seu caráter laico, que é

a sua neutralidade confessional (...)‖63

(Destacou-se).

Afere-se que, não obstante reconheça a possibilidade de um agir positivo por parte do

Estado, o Ministro Pertence manifesta sua preocupação quanto a tal agir, afirmando que este

deve dar-se a partir do resguardo ao caráter laico estatal, fazendo menção – ainda – à

neutralidade do Estado, como se quisesse enaltecer que, além de uma atuação positiva, o

Estado deve abster-se de qualquer imposição ideológica e religiosa, enaltecendo que a

atuação estatal deve ser limitada pela postura negativa, pelo non facere, do Estado.

62

MS 28960 MC / DF - Distrito Federal. Relator: Min. Gilmar Mendes. Julgamento: 08.09.2010 63

RE 325822 / SP - São Paulo: Relator(a): Min. Ilmar Galvão. Relator(a) p/ Acórdão: Min. Gilmar Mendes.

Julgamento: 18/12/2002. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Trecho destacado do voto do Ministro Sepúlveda

Pertence

Page 52: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

52

A neutralidade aqui referida, também se encontra presente no discurso prolatado por

demais ministros que compõe ou compuseram a Suprema Corte brasileira. Neste sentido,

destaca-se aqui o entendimento do próprio Ministro Gilmar Mendes que, em duas

oportunidades distintas, manifestou-se acerca do equilíbrio entre a atuação e a abstenção

estatal.

―não há dúvida de que o direito fundamental à liberdade religiosa

(art. 5º, VI, da Constituição) impõe ao Estado o dever de respeitar as

escolhas religiosas dos cidadãos e o de não se imiscuir na

organização interna das entidades religiosas. Trata-se, portanto, do

dever de neutralidade axiológica do Estado diante do fenômeno

religioso (princípio da laicidade), revelando-se proscrita toda e

qualquer atividade do ente público que favoreça determinada

confissão religiosa em detrimento das demais, conforme estabelecido

no art. 19, I, da Constituição.

É certo, porém, que a neutralidade axiológica por parte do Estado

não se confunde com a idéia de indiferença estatal. Em alguns casos,

imperativos fundados na própria liberdade religiosa impõem ao ente

público um comportamento positivo, que tem a finalidade de afastar

barreiras ou sobrecargas que possam impedir ou dificultar

determinadas opções em matéria de fé‖64

.

A indiferença estatal a que o Ministro se refere, que, de acordo com seu entendimento,

não deve ser adotada no Brasil, encontra-se presente em outro voto proferido por Mendes, em

que, a partir da comparação com o entendimento jurisprudencial norte-americano, o Ministro

indica a necessária distinção que se há de fazer entre o que é aplicável àquele cenário e o que

é adequado ao ordenamento jurídico brasileiro.

A distinção para a qual o Ministro chama atenção se dá, justamente, em virtude do

tratamento que a própria Carta Constitucional nacional confere a determinados

“relacionamentos autorizados” que podem ser estabelecidos entre Estado e Igreja.

Para parte da doutrina, estes “relacionamentos” configuram verdadeiras exceções65

constitucionais ao princípio da laicidade, à garantia conferida pelo artigo 19, I, e revelam o

necessário comportamento positivo que deve o Estado adotar em relação às Igrejas, sendo

64

STA 389 / SP - São Paulo: Relator: Min. Presidente Gilmar Mendes. Julgamento: 20.11.2009 65

FREITAS MONTEIRO, Nilton de. Parâmetros Constitucionais do Ensino Religioso nas Escolas Públicas.

Acessível na página virtual da procuradoria geral do Estado de São Paulo (www.pge.sp.gov.br/)

Page 53: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

53

certo que o tratamento indiferente com as igrejas não se afigura compatível com a questão

religiosa brasileira, inclusive em função do que a própria Constituinte prevê.

Neste sentido, o Ministro Gilmar Mendes explica o porquê de não se poder atribuir ao

sistema brasileiro o mesmo tratamento que é dado à separação entre Igrejas e Estado nos

Estados Unidos, justificando sua conclusão, justamente, com base nas hipóteses - previstas

pela a própria Carta Política de 1988 – em que o Estado favorece e incentiva as religiões.

―(...) devendo o Estado, em alguns casos, adotar comportamentos

positivos, com a finalidade de afastar barreiras ou sobrecargas que

possam impedir ou dificultar determinadas opções em matéria de fé.

Nesse sentido, não se revelaria aplicável à realidade brasileira as

conclusões a que chegou o Justice Black da Suprema Corte norte-

americana, no famoso caso Everson v. Board of Education, segundo

as quais a cláusula do estabelecimento de religião (―establishment of

religion‖ clause) prevista na Primeira Emenda à Constituição norte-

americana não estabeleceria apenas que ―nenhum Estado, nem o

Governo Federal, podem fundar uma Igreja‖, mas também que

―nenhum dos dois podem aprovar leis que favoreçam uma religião,

que auxiliem todas as religiões‖. Segundo Thomas Jefferson, a

referida cláusula deveria ser compreendida como a construção de

um “muro” entre Igreja e Estado (―erect a wall of separation

between Church and State‖).

Tal entendimento não se afigura, a priori, compatível com a nossa

Constituição, pois se revela contrária, até mesmo, à concessão de

imunidade tributária aos templos de qualquer culto (art. 150, IV,

―b‖), à prestação de assistência religiosa nas entidades civis e

militares de internação coletiva (art. 5º, VII), ou quaisquer outras que

favoreçam ou incentivem todas as religiões.

Por isso, é importante afirmar que, em nosso país, neutralidade

estatal não se confunde com indiferença, até mesmo porque,

conforme salientado por Jorge Miranda, „(...) o silêncio sobre

religião, na prática, redunda em posição contra a religião‟‖66

(Destacou-se)

Do universo de julgados estudado, pode-se aferir que quem melhor explorou o tema

acerca da laicidade estatal e da liberdade e pluralidade religiosas foi o Ministro Celso de

Mello, em sede da ADI nº 3.510, que trouxe à tona o assunto da constitucionalidade das

pesquisas com células-tronco embrionárias. O caso, de grande repercussão política e

midiática, teve a participação de amicus curiae e ensejou a realização de uma audiência

66 MS 28960 MC / DF - Distrito Federal: Relator(a): Min. Gilmar Mendes. Julgamento: 08.09.2010

Page 54: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

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pública na qual entidades da sociedade civil, dentre as quais a Confederação Nacional de

Bispos do Brasil - a CNBB, participaram e manifestaram sua opinião a respeito de questões

polêmicas que perpassavam, como tema fulcral, a questão do início da vida humana e do

momento em que esta se dá.

A CNBB posicionou-se contrariamente à constitucionalidade da realização das

pesquisas, por entender a vida sob a égide ético-religiosa, compreensão oposta àquela

prolatada pela parcela de cientistas que se manifestaram na ocasião.

Todos os ministros, na sessão plenária, adentraram a questão quanto à aceitação de

argumentos filosóficos e religiosos no âmbito do debate jurídico, explicitando, inclusive,

certas considerações interessantes sobre a laicidadade do Estado. Dentre as muitas colocações

importantes surgiram por parte dos juristas, merecendo relevo a introdução do voto da

Ministra Cármen Lúcia, que, de certa forma resume o tom que pautou o debate acirrado que

se deu na tribuna do STF naquele julgamento.

―Entretanto, as manifestações, dotadas – repito – de profunda,

legítima e compreensível emoção a envolver o tema e as suas

conseqüências sociais, não alteram, não desviam – nem poderiam – o

compromisso do juiz do seu dever de se ater à ordem constitucional

vigente e de atuar no sentido de fazê-las prevalecer.

Aqui, a Constituição é a minha bíblia, o Brasil, minha única

religião. Juiz, no foro, cultua o Direito. Como diria Pontes de

Miranda, assim é porque o Direito assim quer e determina. O Estado

é laico, a sociedade é plural, a ciência é neutra e direito imparcial. Por isso, como todo juiz, tenho de me ater ao que é o núcleo da

indagação constitucional posta neste caso: a liberdade, que se há de

ter por válida, ou não‖67

(Destacou-se).

Feita tal digressão, retoma-se as razões apresentadas pelo Ministro Celso de Mello

que, conforme já retro referido, foi quem mais aprofundadamente encarou o tema da laicidade

estatal e da pluralidade religiosa, em sede de jurisprudência constitucional.

O Ministro, tal qual seus pares já dantes mencionados, enaltece o caráter neutro que

deve ser dado ao Estado quanto à questão de sua relação com a religiosidade. A laicidade do

Estado, sob o prisma amparado pelo Ministro, é valorada como princípio fundamental da

67

ADI 3510 / DF - Distrito Federal: Relator(a): Min. Ayres Britto. Julgamento: 29/05/2008. Órgão Julgador:

Tribunal Pleno. Voto Ministra Cármen Lúcia

Page 55: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

55

ordem constitucional brasileira. Para Mello, a separação institucional entre Estado e Igreja

figura-se como algo imprescindível para viabilizar a liberdade religiosa.

Celso de Mello alerta para a necessidade de delimitação dos domínios próprios de

atuação e de incidência de cada um dos poderes, secular e espiritual, sendo certo que, ao

Estado será vedada qualquer atuação baseada em princípios teológicos ou em razões de ordem

confessional, em vista da laicidade do Estado. Finalmente, ressalva que nem mesmo os

dogmas consagrados por determinada religião considerada hegemônica no meio social

deverão ser apoiados pelo Estado68

.

O voto do Ministro Celso de Mello, conclusivamente, apresenta os pontos abarcados

pela doutrina e pelos ministros, qual sejam, a postura incentivadora, de um lado, e a posição

freadora, de outro, que caracterizam a neutralidade estatal – modelo mais adequado a ser

“encaixado” ao Estado laico brasileiro.

―A separação constitucional entre Estado e Igreja, desse modo, além

de impedir que o Poder Público tenha preferência ou guarde

hostilidade em relação a qualquer denominação religiosa, objetiva

resguardar duas (2) posições que se revestem de absoluta

importância: (1) assegurar, de um lado, aos cidadãos, a liberdade

religiosa e a prática de seu exercício, e (2) obstar, de outro, que

grupos fundamentalistas se apropriem do aparelho de Estado, para,

com apoio em convicções ou em razões de ordem confessional, impor,

aos demais cidadãos, a observância de princípios teológicos e de

diretrizes religiosas‖69

(Destacou-se)

Ainda a respeito do voto deste Ministro, faz-se interessante ressaltar a preocupação

por ele evidenciada acerca da aplicabilidade prática desta neutralidade. Esta parece ser uma

68

De acordo com as palavras proferidas pelo Ministro Celso de Mello na ADI n 3.510, Nesse contexto, e

considerado o delineamento constitucional da matéria em nosso sistema jurídico, impõe-se, como elemento

viabilizador da liberdade religiosa, a separação institucional entre Estado e Igreja, a significar, portanto, que,

no Estado laico, como o é o Estado brasileiro, haverá, sempre, uma clara e precisa demarcação de domínios

próprios de atuação e de incidência do poder civil (ou secular) e do poder religioso (ou espiritual), de tal modo

que a escolha, ou não, de uma fé religiosa revele-se questão de ordem estritamente privada, vedada, no ponto,

qualquer interferência estatal, proibido, ainda, ao Estado, o exercício de sua atividade com apoio em princípios

teológicos ou em razões de ordem confessional ou, ainda, em artigos de fé, sendo irrelevante – em face da

exigência constitucional de laicidade do Estado – que se trate de dogmas consagrados por determinada religião

considerada hegemônica no meio social, sob pena de concepções de certa denominação religiosa

transformarem-se, inconstitucionalmente, em critério definidor das decisões estatais e da formulação e

execução de políticas governamentais. 69

ADI 3510 / DF - Distrito Federal: Relator(a): Min. Ayres Britto. Julgamento: 29/05/2008. Órgão Julgador:

Tribunal Pleno. Trecho de voto do Ministro Celso de Mello

Page 56: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

56

das questões mais complexas e, ao mesmo tempo, determinantes no que se refere à questão da

constitucionalidade do ensino religioso confessional nas escolas públicas.

O entendimento explicitado pelo Ministro pode figurar como um dos cernes

norteadores para uma tentativa de resolução da controvérsia acerca da possibilidade de a

Administração Pública instituir ensino religioso confessional.

―O fato irrecusável é que, nesta República laica, fundada em bases

democráticas, o Direito não se submete à religião, e as autoridades

incumbidas de aplicá-lo devem despojar-se de pré-compreensões em

matéria confessional, em ordem a não fazer repercutir, sobre o

processo de poder, quando no exercício de suas funções (qualquer que

seja o domínio de sua incidência), as suas próprias convicções

religiosas‖70

(Destacou-se).

Essa preocupação prática também é apontada no discurso de outros ministros.

Sepúlveda Pertence, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 2.806, suscita a questão do

ônus administrativo em caso de o Estado privilegiar dias de guarda de determinadas Igrejas,

levantando a hipótese de ser desproporcional qualquer medida neste sentido.

―Pergunto: seria constitucional uma lei de iniciativa do Poder

Executivo que subordinasse assim o andamento da Administração

Pública aos ―dias de guarda‖ religiosos? Seria razoável, malgrado

fosse a iniciativa do Governador, acaso crente de alguma fé religiosa

que faz seus cultos na segunda-feira à tarde, que todos esses crentes

teriam direito a não trabalhar na segunda-feira e pedir reserva de

outra hora para o seu trabalho?‖71

Faz-se intrigante notar que o próprio Ministro, no decorrer de seu voto não apresenta

qualquer conclusão para a questão levantada que, de fato, não se apresenta como algo de

intelecção simplista.

O Ministro Gilmar Mendes, retoma no voto proferido em sede de Suspensão de Tutela

Antecipada n° 389, a pergunta feita por Pertence, para a qual apresenta a seguinte conclusão:

a providência (o privilégio conferido), além de se revelar, a priori, contrária ao dever do

70

ADI 3510 / DF - Distrito Federal: Relator(a): Min. Ayres Britto. Julgamento: 29/05/2008. Órgão Julgador:

Tribunal Pleno. Trecho de voto do Ministro Celso de Mello 71

ADI 2806 / RS - Rio Grande do Sul: Relator(a): Min. Ilmar Galvão. Julgamento: 23.04.2003. Órgão Julgador:

Tribunal Pleno. Trecho destacado do voto do Ministro Sepúlveda Pertence

Page 57: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

57

Estado de se portar de forma neutra perante o fenômeno religioso, coloca severos óbices à

atuação da Administração Pública.72

A partir do estudo da jurisprudência, consoante já anteriormente mencionado, fez-se

possível aferir que o posicionamento explicitado tende a reconhecer a constitucionalidade de

um agir positivo por parte do Estado, desde que resguardados os princípios expressos no texto

constitucional. Desta maneira, a atuação estatal, ainda que forneça privilégios a uma

determinada Igreja, não deve ser revestida de vinculação entre esta e o Estado, já que este –

por não poder subvencionar ou estabelecer aliança com quaisquer Igrejas – não poderá

privilegiar uma em detrimento de outras, mas sim poderá privilegiar uma e outras, tantas

quantas solicitarem esse facere estatal.

A manifestação jurisprudencial também se mostrou preocupada com a questão

administrativa que circunda a questão da implementação concreta de tal neutralidade estatal,

de maneira a fazer com que a prática resguarde os princípios constitucionais da igualdade e da

liberdade religiosa e com respeito ao laicismo estatal.

Possivelmente, caso o Tribunal seguisse o que até hoje entendeu acerca do artigo 19, I

e do artigo 5º, VI, o ensino religioso confessional seria permitido nas escolas públicas, desde

que garantida a todas as confissões brasileiras a possibilidade de ministrá-lo. Assim, o Estado

estaria assegurando a pluralidade religiosa e, de mesma forma, ao não impedir o ensino de

determinada religião, não estaria criando óbice à livre manifestação das crenças e

religiosidades que assim o quisessem fazer (já que caso o Estado impedisse a forma

confessional de ensino, poderia ser configurado como constrangimento à liberdade religiosa).

Neste contexto, pode-se dizer que o ensino religioso, por estar constitucionalmente

previsto, deve, quem sabe, ser equiparado às demais formas de “cooperação” entre Igrejas e

Estado, autorizadas pelo Texto Maior. Assim, a previsão contida no artigo 210, § 1º, enseja a

possível comparação entre o ensino religioso e a imunidade tributária, ou à assistência

religiosa às forças armadas, citadas diversas vezes nos julgados do Supremo, e entendidas

como exemplos de casos em que o Estado pode e deve (em virtude de seu caráter

constitucional) associar-se à Igreja.

Prospectivamente, cabe prever que o futuro do julgamento das Ações Diretas de

Inconstitucionalidade que tiveram como objeto o questionamento acerca do ensino religioso

72 STA 389 / SP - São Paulo: Relator: Min. Presidente Gilmar Mendes. Julgamento: 20.11.2009

Page 58: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

58

confessional nas escolas públicas – ADIs nºs 3.268 e 4.439 – serão julgados sob o âmbito da

neutralidade estatal delimitada pelo Supremo.

Parece pertinente referir que, ainda que o ensino religioso confessional nas escolas

públicas seja entendido como constitucional, a Lei Fluminense atacada na ADI 3.268, padece

de inconstitucionalidades tamanhas que, por si só, já fazem com que a Lei questionada seja

revestida de caráter inconstitucional. Não obstante possa o ensino confessional, por ela

previsto, ser passível de ser ministrado nas escolas públicas do Rio de Janeiro (desde que

garantidas as mesmas possibilidades para as demais religiosidades), a Lei definiu certos

critérios que não se coadunam com a Magna Carta, em esferas que não se restringem à

laicidade estatal e à pluralidade religiosa.

A previsão da obrigatoriedade da matrícula em ensino religioso, prevista no artigo 1º

da Lei Estadual 3.459, do Estado do Rio de Janeiro, afronta o artigo 210 da Constituição, que

justamente repudia o caráter obrigatório da matrícula, de forma, mesmo, a resguardar a

liberdade de consciência daqueles que não confessam nenhuma crença.

Bem assim, o processo de seleção de professores (por meio de concurso público) e o

credenciamento de tais professores (pela autoridade religiosa competente) revestem-se de

inconstitucionalidade patente, vez que vinculam o Estado à determinada Igreja e, ao mesmo

tempo, constrangem a liberdade religiosa e a pluralidade confessional existente no Brasil, em

vista do fato de nem todas as religiões serem organizadas e estruturadas de acordo com uma

hierarquia que viabilize a identificação de uma autoridade religiosa, de forma que a estas, não

poderia ser dada a possibilidade de cooperação estatal.

Desta feita, não restaria ao Supremo outra que não a decisão de julgar procedente o

pedido formulado pela CNTE na ADI n° 3.268, ainda que o Tribunal se utilizasse da mesma

linha de raciocínio que vêm imprimindo acerca da liberdade religiosa e do caráter laico do

Estado. A esse respeito, a inconstitucionalidade da Lei Fluminense deve ser declarada pelos

ministros, muito embora estes entendam ser possível a confessionalidade do ensino religioso

no contexto de modelo laico adotado pelo Brasil, já que a inconstitucionalidade da referida

Lei se manifesta em outras searas, que extrapolam a “mera” constitucionalidade do ensino

confessional.

A análise da ADI que questiona o ensino religioso tal como previsto no Estatuto da

Igreja Católica no Brasil, ao contrário, revela-se mais complexa. A inconstitucionalidade

Page 59: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

59

apontada pela Procuradoria, que se encontra na expressão ensino religioso, católico e de

outras confissões religiosas, parece não ecoar no Supremo.

O Supremo tende a sinalizar discordância à alegada inconstitucionalidade que decorre,

na visão da Procuradoria, do suposto benefício concedido à Igreja católica. Prevê-se que a

expressão impugnada será reconhecida como fomentadora de atuação positiva do Estado, sem

que, no entanto, tal agir seja reconhecido como contrário à ordem constitucional vigente, já

que o expresso enunciado outras confissões religiosas, denota a postura negativa estatal - de

não constringir a liberdade religiosa – enaltecida pela Corte, de tal modo que a demonstração

das duas posturas se coaduna com a neutralidade ostentada nos votos dos ministros.

Tal como já mencionado, a petição elaborada pela Procuradora Deborah Duprat revela

uma peculiar preocupação com o viés prático em que a questão encontra-se inserida. Talvez

este se configure como um ponto de tensão a ser debatido no plenário quando da apreciação

da ADI nº 4.439: como concatenar o ensino religioso confessional com os enunciados da

Constituição Federal, respeitadora da pluralidade religiosa brasileira, em cenários

sociologicamente preocupantes?

E aí, no âmbito da resolução de tal questão, mais uma pergunta se demonstra bastante

pertinente: caberá à Suprema Corte a definição quanto à constitucionalidade do assunto, tão

só? Ou deverá o Tribunal, tal qual tribunal político que vem demonstrando ser, verificar a

pertinência, a factibilidade e a razoabilidade de se implantar ensino religioso confessional nas

escolas públicas, em vista das questões sócio-culturais (e não eminentemente jurídicas) que

permeiam o tema?

Page 60: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

60

Brinde final e convite à pesquisa

A pesquisa aqui empreendida teve como desfecho a desconstrução das hipóteses

levantadas antes do início do estudo. Pensou-se ser impossível, em vista, especialmente, da

laicidade estatal e do mandamento expresso no artigo 5º, VI da Constituição Federal, a

previsão de ensino religioso confessional nas escolas públicas.

A princípio, antes do início da análise empírica e teórica a respeito do tema, concebia-

se a relação entre Estado e Igrejas de forma a entender tais poderes como se se posicionassem

opostamente, um de costas para o outro.

A rigidez do posicionamento inicial, de separação absoluta entre poder secular e poder

espiritual, configurava a manifestação da interpretação rasa da Magna Carta, adstrita, tão

somente, à redação do artigo 19 e do mencionado inciso do artigo 5º, de forma a tomá-los

isoladamente, sem maiores considerações acerca do sistema constitucional em que tais artigos

encontravam-se inseridos.

A partir da análise sistêmica do texto constitucional, considerado como um todo, fez-

se possível uma percepção mais acurada a respeito de todas as vertentes que ladeavam a

constitucionalidade do ensino religioso confessional nas escolas públicas.

O entendimento do posicionamento doutrinário majoritário, que contemplava a

neutralidade estatal e apontava para a semi-rigidez estabelecida pela Constituição Federal à

relação entre Igrejas e Estado, alardeou para outras questões que, até então, não tinham sido

ponderadas para a formulação da hipótese de inconstitucionalidade do ensino religioso

confessional.

Dentre estas questões, a que mais chama atenção, e a que figurou como um dos pontos

centrais da relativização do entendimento hipotético inicial foi a equiparação do ensino

religioso previsto na Carta Maior com os privilégios religiosos lá abarcados, tais quais a

imunidade tributária conferida aos templos e a assistência religiosa para as forças armadas.

Assim, passou-se a compreender o ensino religioso constitucional no âmbito de um sistema

em que a própria Magna Carta atribuía “relativizações” ao caráter laico do Estado brasileiro.

O estudo jurisprudencial somente acentuou o que já havia sido concluído: no contexto

da neutralidade estatal, pode o ensino religioso confessional ser ministrado nas escolas

públicas. A postura positiva e negativa que devem ser contempladas pelo Estado atuam como

Page 61: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

61

limites – uma para outra -, de forma a assegurar a impossibilidade de restrição às liberdade e

igualdade religiosas e, da mesma feita, de modo a garantir que todas as religiosidades possam

ser, de maneira equânime e eqüidistante, fomentadas e privilegiadas.

O que se pode dizer, no final da contas, é que ao cabo da pesquisa, e em consideração

às explicitações doutrinárias e jurisdicionais, o ensino religioso confessional, de matrícula

facultativa, ministrado nas escolas públicas pode ser considerado constitucional. Claro – mais

uma vez – que se deve fornecer as mesmas condições para que todas as crenças possam ser

igualmente beneficiadas com a possibilidade de lecionar sua confissão nas escolas da rede

pública de ensino.

Ainda assim, a possibilidade, por si só, não se apresenta suficiente para a resolução

definitiva acerca da controvérsia. Conforme restou demonstrado, uma das maiores

preocupações que se relacionam com o tema do ensino religioso confessional é a implantação

deste, de forma a resguardar a neutralidade aqui contemplada.

Dada a diversidade religiosa brasileira, seria imprescindível uma estruturação público-

administrativa muito bem pensada e eficiente para que o ensino religioso confessional se

desse de maneira adequada e que fossem respeitados os princípios constitucionais da laicidade

estatal e da liberdade religiosa.

Neste sentido, caberia perguntar se a própria Administração Pública teria estrutura

suficientemente equipada para promover iguais benefícios às mais de 40 religiosidades

manifestadas no Brasil, e se poderia o Poder Público arcar com os ônus e custos de se

empreender a mais ampla igualdade religiosa, no sentido mais abrangente de laicidade estatal,

de forma a se coadunar com a neutralidade aqui referida.

Tal análise, entretanto, perpassaria o estudo de outras questões que fogem à apreciação

jurídico-constitucional a que este trabalho se dispôs a fazer. O escopo do presente trabalho

abrangeu somente a questão jurídica que pauta o assunto. Infelizmente, por questão de corte

metodológico e pertinência temática com a finalidade a que esta pesquisa se presta, não foram

abordados os aspectos culturais, sociais e filosóficos (dentre outros) que, de maneira

inquestionável, contribuiriam muito para a análise do tema aqui proposto.

Deve-se apontar, no contexto de tais considerações que, não necessariamente a

verificação de possibilidade do instituto leva à conclusão de constitucionalidade de seu

emprego prático. Neste sentido, cabe frisar que não se revela uma relação de causa e

Page 62: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

62

conseqüência entre a declaração de possibilidade de uma questão e constitucionalidade de sua

implantação. Esta última prescinde da primeira. Entretanto, não é só porque algo é

considerado como possível que sua implantação prática conseqüentemente se verificará como

desejável ou, até mesmo, como constitucional.

O ensino considerado constitucional, necessariamente é aquele cujas condições são

dadas igualitariamente para todas as religiosidades, o que não se demonstrou ser uma

hipótese de simples concretização, se considerada a realidade brasileira. Muito pelo contrário.

Deve-se ponderar, assim, que qualquer privilégio concedido, única e exclusivamente para

uma determinada religião, não se afigura constitucional. Assim, o ensino religioso

confessional, para ser constitucional, deveria ser garantido para todas as confessionalidades.

O Tribunal, ao apreciar a constitucionalidade do ensino confessional, deverá,

impreterivelmente, pensar sobre balizas que limitem e determinem a atuação estatal e a

“associação” entre Estado e Igreja para que o ensino religioso seja, de fato, empreendido de

forma constitucional. Talvez, utilizando-se de uma ferramenta de ponderações, por meio do

princípio da proporcionalidade (ou de outro que se mostre igualmente eficaz), de forma a

aferir a razoabilidade da implementação de ensino religioso confessional nas escolas públicas,

o Supremo venha a defender a inconstitucionalidade do instituto, dada a sua impossibilidade

prática de se coadunar com os preceitos constitucionais resguardados.

Mais uma vez, cabe uma pergunta a respeito da própria atuação do Supremo. Tendo

em vista que tais balizas seriam necessárias para a perfeita concatenação do ensino religioso

confessional com as diretrizes constitucionais, caberia – mesmo – à Corte a determinação de

tais balizas? Neste sentido, deveria o Supremo decidir a questão sob o foco estritamente

jurídico – decidindo por sua constitucionalidade – ou caberia ao Tribunal uma análise

executivo-administrativa, dos custos e dos benefícios de adoção de tal modalidade de ensino?

Como se vê, a presente pesquisa acaba por suscitar mais perguntas à controvérsia

relacionada ao tema do que respostas.

Neste sentido, concluí-se, aqui, com a esperança – e com o convite - de que outras

muitas análises sejam empreendidas e contribuam para a questão não só da

constitucionalidade do presente tema, mas também para as particularidades acarretadas pela

adoção prática do ensino religioso confessional nas escolas públicas, revelando os resultados

positivos e negativos da implementação de tal ensino na rede pública, para que, enfim, se

Page 63: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

63

possa aferir se a confessionalidade do ensino realmente se coaduna com os valores

constitucionais, que se revelaram de extrema importância na visão teórica aqui apresentada.

Page 64: Ensino religioso confessional nas escolas públicas

64

BIBLIOGRAFIA

Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.076/AC. Rel. Min. Carlos Velloso. Julgamento:

15.08.2002. STF: Tribunal Pleno

ADI 2806 / RS - Rio Grande do Sul: Relator(a): Min. Ilmar Galvão. Julgamento: 23.04.2003.

Órgão Julgador: Tribunal Pleno.

ADI 3510 / DF - Distrito Federal: Relator(a): Min. Ayres Britto. Julgamento: 29/05/2008.

Órgão Julgador: Tribunal Pleno

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