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Federalismo e Identidade Nacional in Paulo Sérgio Pinheiro - Brasil Um Século de Transformações., São Paulo: Companhia das Letras., 2001.
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Federalismo e identid:1de nacional
De utopia das elites à prática democrática
Aspásia Camargo
1. Federalismo, federalismos
Desde que os líderes da Independência americana inventaram, no final do século XVIII , o
regime federativo para construir a unidade das treze colônias recém-emancipadas da Inglaterra , o
modelo consolidou-se como um sistema extra-europeu de organização do Estado, marcado pela
coexistência de duas soberanias: a da União, que detém o controle de algumas !unções comuns, e a
dos estados, isto é, das unidades federadas, que se ocupam do resto. Esta obra singular de
engenharia polít ica concretizou-se como uma vertente do Estado democrático, inicialmente nos
Estados Unidos, e depois no Canadá e na Austrália, estendendo-se também para as jovens
repúblicas latino-americanas no decorrer do século XIX.1
A origem colonial comum a esses países parece ter inicialmente estimulado a criação de
estruturas superpostas: uma centralizadora, herdada da antiga metrópole, e outra baseada nas
autonomias regionais e locais. Essas autonomias alimentavam-se de dificu ldades de comunicação
pré-existentes e de diversidades econômicas e culturais. Essa superposição ou coexistencia gerou
urna tensão pennanente entre as forças centrípetas da centralização e as forças centrífugas da
descentra lização, originalmente contidas no confronto paradigmático entre Hamilton e Jefferson .
Ao fazer um balanço da evolução do federa lismo no Brasi l do século XX podemos
constatar que, como nos Estados Unidos e em outras federações, prevaleceram as sístoles e
diástoles que o general Golbcry do Couto e Silva2 retratou e também muitos outros autores, como
um movimento pendular, típico da evolução política brasileira. Essa seria a patologia crônica de
um país continental que ainda não consolidou o seu processo de ocupação territorial e de
construção nacional. Urna das manifestações desta patologia, segundo o autor, seria o "buraco
negro" da ce111ralização, cujo controle escapa, muitas vezes, à própria auto1idade central. A outra
seria a fragmentação política e o fortalecimento do poder pessoal , por trás da mística da
descentralização.
1 K. C. Whcarc. Fl'd<'ml Gu,,emme//1. Londrcs/No\·a York/foronto. Oxford Univcrsitr Prcss. 1951 . '" Golbery do Couto e Silva. Co11)1111111rn polílica 11ncionnl: o poder executivo e geopolilica clu /Jrasil. Rio de Janeiro. José Olympio. l 1J8 I.
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O círculo vicioso consiste, na realidade, em procurar corrigir as di storções provocadas em
um dos extremos do c:011ti111111111, arrastando o sistema político para o extremo oposto, de forma
cíclica e repetitiva. Por trás de ambas as distorções, abriga-se o patrimonial ismo político, típico dos
grandes impérios, unidades políticas extensas e heterogêneas, representando politicamente forma s
embrionárias e rudimentares de federalismo. O federalismo, portanto, nada mais é do que uma
forma institucionalizada e superior de cooperação espacial entre a periferia e o centro.
O patrimonialismo alimentou tanto a uniformidade e as prebendas que geram a
centralização excessiva quanto os males da descentralização radical: o clientelismo e o nepotismo
e o mandonismo, típicos das chefias locais. Apesar das oscilações que variam no tempo, e que
revelam a maior força ou fraqueza do poder central o arranjo patrimonial não consegue sobreviver
plenamente sem a cumplicidade visceral entre um e outro. A rigor, forças centrífugas e centrípetas
são parte da lógica evolutiva tanto do patrimonial ismo quanto do federalismo e da própria história
das civilizações1.
O ponto relevante, tanto no caso do Brasil quanto de outros países em patamares
semelhantes, é avaliar em que medida, quando falamos de descentralização e de centralização,
estamos nos referindo ao .federalismo ou ao patrimrmialismo, o primeiro pressupondo urna forma
democrática e institucionalizada de organização do Estado, baseada na representação, o segundo
implicando formas tradicionais de poder, baseadas na interpenetração da esfera pública e da esfera
privada, em que são usadas as regras (instáveis) estabelecidas apenas como instrumentos de
cooptação, manipulação e barganhas pessoais no exercício do poder. Quando tais mecanismos
penetram uma ordem econômica, o mercantilismo prevalece, configurando relações de inteira
dependência entre a classe empresarial e a autoridade pública.
Outro atributo relevante do federalismo é a flexibilidade, isto é, a capacidade de resolver
tensões regionais dentro de um mesmo marco legal e político. A diversidade de arranjos e de
composições ligadas ao federalismo fiscal e à discriminação de rendas, à distribuição de
competências e à relação entre poderes constitui hoje um capítulo do "federalismo comparado",
composto de um amplo leque de situações que atestam a dimensão pra~málica. e não apenas
Jo11tri11ária do federalismo. Os movimentos pendulares permitiram ajustes e soluções para
1 O conceito de patrimonialismo. formulado por Max Weber foi brilh.mlcmcntc aplicado ao estudo histórico dos gmndcs impérios por Samuel Eiscnstadl. .. Los Sistemas Políticos de los lmperios ... Rcdsta dei Occidcntc. Madrid. 196<> (ed.inglcsa 1963). Raymundo Faoro aplicou o mesmo conceito parn intclprctar a formação do Estado Nacional brasileiro cm Os donos do poder. Porto Alegre. Globo. 1958.
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inúmeros problemas e dificuldades. A maleabilidade é, de fato, um predicado especial do regime
federativo que, no Brasil e em outros países, amorteceu os momentos de ruptura, permitindo a
negociação aberta ou velada entre as partes em litígio.
Apesar de todos os seus defeitos, o federal ismo brasileiro, em suas diferentes fases,
propiciou a construção de identidades regionais, cujo metabolismo foi bastante acelerado pela
gradual incorporação aos símbolos nacionais comuns. Um bom exemplo desse processo foi a
política de patrimônio, gerada pelo modernismo e um dos pilares da política de integração nacional
no Primeiro Governo Vargas.·1. As regiões, no Brasil , possuíam e ainda possuem densidades
culturais bem diversas, algumas delas tendo sido mais precocemente integradas ao centro do que
outras. É a história dessa integração que constitui um dos mais importantes capítu los iniciais de
construção do federalismo brasileiro.
Sem dúvida, o pecado original do federalismo brasileiro foi o regionalismo oligárquico,
que acabou debilitado por ciclos sucessivos de centralismo intervencionista, embora, como Fênix,
esteja sempre pronto a renascer das cinzas, cada vez que tem início um novo ciclo de abertura
política . Tais condições irão perdurar enquanto os bolsões de pobreza do mundo rural e urbano
!orem capazes de alimentar um eleitorado socialmente carente e politicamente passivo.
O lento enfraquecimento do regionalismo teve como resultado o gradual fortalecimento da
opção pelo federa li smo como instrumento democrático. Uma linha de continuidade importante ao
longo do século XX foi o reconhecimento jurídico-institucional do federalismo como modelo de
organização do Estado, princípio sempre renovado desde que a República o adotou no final do
sécu lo xrx. Distorcido na República Velha, questionado pelas ditaduras, coroado nos períodos
democráticos, o federalismo brasileiro adaptou-se às mais diversas circunstâncias, passando a ser
destaque obrigatório nas Constituições que se sucederam, inclusive nos períodos autoritários.
Juridicamente, o Estado Federal tornou-se peça de consenso entre os juristas e
legisladores, institucionalizando algumas regras e consolidando uma jurisprudência favorável à
convivência entre as unidades territoriais e o centro político. Outro indicador do consenso criado
em torno do federalismo é que na pauta (sempre freqüente) das reformas políticas nunca foi
incluída sua eliminação, o que não ocorreu com os outros dois pilares do pacto político que
derrubou o Império, a saber, o presidencialismo e a própria República.
1 Maria Cecília Londres da Fonseca. O patri1111i11io em proce.1:~o._Rio de Janeiro. Editora da I TIV-\IINC/ ll'IU t-:. 1997.
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Recentemente, em plebiscito realizado em 1993, o parlamentarismo e a monarquia
vo ltaram à ordem do dia como temas po lêmicos enquanto o federalismo tem permanecido como
consenso discreto. porém indiscutível. O fato se justifíca em runção dos bons serviços que
discretamente vem prestando como instrumento de integração territorial e de redução das
desigualdades regionais, seja em períodos autoritários, seja em períodos democráticos.
No entanto, é preciso esclarecer que raramente as reformas da tcderação foram objeto de
tratamento global ou exp li cito. A discreção deve-se certamente ao fato de que a questão permanece
sendo de extrema delicadeza e, em geral, decompõe-se em fatias menos indigestas, diluídas nas
pautas temáticas das políticas públicas. As zonas de sombra e os focos de dissenso em torno de
acordos tácitos que fortalecem a integração federativa são, em geral , habi lmente encobertos pela
estratégia do sil êncio. Este é o caso, por exemplo, do tema polêmico e perigoso das distorções
existentes na representação estadual na Câmara Federal dos Deputados, com a subrcpresentação de
São Paulo e a super-representação dos estados do Norte e do Centro-Oeste.
Mas, atinai, cm que circunstâncias recomenda-se o federa li smo como a solução
institucional mais adequada para fortalecer os Estados Nacionais e, atualmente, até mesmo os
blocos regionais? No curso da história moderna e contemporânea, o sistema federa li sta revelou-se
valioso, corno doutrina e corno prática, em países de grande território e/ou de arra igadas
diversidades culturai s e étnicas, caso dos Estados Unidos, Brasil, Canad á, Austrá li a, Alemanha e
Bélgica. As ex-colônias, as jovens nações em processo de ocupação territorial ou desigua lmente
povoadas, com grandes diferenças de renda e de infra-estrutura, beneficiam-se igualmente desse
tipo de regime que garante aos estados mais frágeis. por meio de um Governo Federal, um regime
tiscal comum e as competências necessárias para garantir investimentos na infra-estmtura e a
distribuição de renda necessária à equalização das condições de vida. É o .federalismo
c.·oooperat Í l 'O.
É importante observar que o separatismo e o autonomismo, em geral, originam-se ou de
regiões anexadas no passado, ou das províncias e zonas mais prósperas que não desejam dividir
com as demais os frutos de sua riqueza, os quais, dentro de suas fronteiras , se multiplicariam .
Tornemos como exemplos o Norte da Itália, a rica Catalunha, ou internamente, São Paulo durante a
República Velha e o atual Triângulo Mineiro. Em casos de aguda assimetria. como o do Brasil e do
Canadá, onde prevalecem extremas diferenças de renda e de distribuição populacional entre as
unidades federadas, este é o regime mais seguro para promover a redução das desigua ldades e a
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unidade política, pela uni formizaçào crescente das partes dissociadas. Nesses casos, reservar
recursos federais para tais finalidades é a melhor maneira de acelerar o processo de integração
nacional, tal como o foi percebido por Roosevelt durante a grande deprt:ssào norte-americana. A
União Européia, que é uma federação em construção. aplica em suas regiões mais pobres ou
periféricas recursos significativos, aliados ao planejamento regional, para fortalecer a unidade
política
O caráter distributivo do federalismo - do qual o melhor exemplo é a Alemanha com um
sistema de cqualização de renda inédito no mundo - coexiste, porém, com uma forte dimensão
competitiva, uma vez que a soberania partilhada com os estados e a autonomia de decisão
permitem que a federação se desenvolva como um verdadeiro laboratório de experiências
inovadoras e criativas. Um bom exemplo dessa competição oficial ocorre nos Estados Unidos,
onde o sistema dual de distribuição de competências entre o governo federal e os estados incentiva
o ./<'dera/ismo competitivo. É essa mescla de cooperação e de competição que oferece ao regime
federativo condições de dinamismo, flexibilidade e negociação das mais atrativas seja equalizando
e integrando, seja competindo e inovando no plano da legislação e das políticas públicas.
No limiar do século XIX , a tendência à regionalização e à redistribuição espacial do poder
vem induzindo muitos países unitários, sujeitos a graves tensões internas, a optarem por regimes
que caminham para o federalismo. A radicalização das autonomias cm troca de subordinação a
uma autoridade superior, configura um regime de soberanias partilhadas, como tem sido o a
evolução recente da Inglaterra das "devoluções" e da Espanha das "autonomias". Em países
"gigantes" como a Rússia e a China construir o federalismo é um esforço e um desafio. Para países
como o Brasil, em que prevalece a opção já centenária pela federação, as condições são bem mai s
vantajosas, uma vez que se fonalece a continuidade das regras conhecidas do jogo, apenas
buscando o seu aperfeiçoamento.
2. As sístoles e diástoles da Era Republicana: do federalismo oligárquico ao federalismo
democrático
Nos últimos cem anos o Brasil foi um extraordinário laboratório de experiências
federativas que assumiram as mais diversas modalidades e estilos. lnauguramos o século XX
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promovendo um pacto entre as elites com o frustrado transplante do federalismo americano para a
República recém-instaurada. O povo foi o expectador passivo dessas mudanças e assistiu
"bestializado"~ - na conhecida expressão de Aristides Lobo - à implantação de uma República que
marginalizaria as cidades e as populações urbanas, deslocando para o mundo rural a dinâmica da
vida política e partidária.
Testemunhando as grandes transformações que o país viveu neste período, o século
terminou promovendo um novo.federalismo demoaático, por meio de ampla mobilização social e
com um conteúdo próprio, original. Criou-se, de fato um federalismo trino, municipalista e
participativo, voltado para as ações em parceria entre a sociedade civi l e os três níveis de governo.
Nasceu, portanto, com a Constituição de 1988, um federalismo coopera/Íl'o, de novo tipo,
comprometido com a melhoria das políticas públicas, com a redução das desigualdades sociais e
com o fortalecimento da sociedade civil e da cidadania.
Entre a República Velha e a Nova República, situadas nos dois extremos do século XX,
houve um grande surto de progresso e um longo aprendizado democrático, cujas lições precisam
ser definitivamente absorvidas. A primeira delas é que começamos com uma experiência
malsucedida de descentralização, promovida pela Constituição de 1891 , que degenerou em
regionalismo exacerbado, produzindo um trauma que deixou marcas indeléveis na memória
politica brasi leira.
Em seguida, como compensação corretiva, caminhamos para um federalismo
centrali::ador, intervencionista e corporativo, cujo período inicial ( 1930- 1937) foi fortemente
marcado pelo conflito entre centralistas e federalistas. Que, afinal , desembocou no Golpe de 193 7.
O golpe foi, diga-se de passagem, silencioso\ longamente preparado pela lenta erosão das
lideranças estaduais descomprometidas com as reformas políticas que a nova elite decidiu
implantar. A queima das bandeiras estaduais, inaugurando o Estado Novo, foi o ponto culminante
desse descrédito que degenerou em hostilidade contra o símbolo máximo da autonomia federativa,
identificada com interesses menores que impediam o Estado de se reorganizar como o verdadeiro
promotor do desenvolvimento nacional e do progresso.
As mudanças no plano mundial enterraram a Era Liberal e promoveram o Estado
Corporativo, voltado para estimular a cooperação entre o capital e o trabalho. Para os intelectuais e
os reformistas da época, o.federalismo e a democracia eram a porta de entrada de um liberalismo
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caduco, por onde inevitavelmente penetravam os interesses mais retrógrados das ve lhas
oligarquias. Da mesma maneira, podemos dizer que a Social-Democracia que se expandiu pelo
mundo, como o trabalhismo da Era Vargas, centra li zou o poder e foi bastante avessa às polêmicas
e às doutrinas ligadas à federação . Nesse período, mais do que hostilizado ou rejeitado, o
federal ismo viveu, por toda parte, o anonimato do silêncio.
O Estado Novo deu ganho de causa ao centralismo mas aplicou, na pràtica um intenso
diálogo político com os estados e as regiões. Cooptou com habilidade as lideranças estaduais
dando poder de decisão aos seus interventores, mas sempre domesticando o regionalismo e
!orçando-o a se ajustar a novos patamares de centralização. Por isso, o Primeiro Governo Yargas
promoveu a capacidade administrativa das màquinas estaduais e, ao mesmo tempo, reconheceu
juridicamente e valorizou o município como meio de neutralizar o poder sempre mais ameaçador
dos interventores estaduais.
Politicamente. o Governo Vargas criou condições para que aqueles sátrapas. nomeados
pelo ditador, fossem o embrião de uma nova geração de políticos estaduais, mais próximos do
Governo Federal e das massas urbanas e, portanto, mais distantes do modelo oligàrquico da
República Velha. E foi o que de fato aconteceu com bom número de interventores que se
converteram em legítimos governadores no novo regime constitucional.
A contribuição maior da era Vargas foi ter incorporado simboli camente as regiões,
absorvendo no plano nacional suas especificidades e tratando-as como atores relevantes, seja
inseri ndo-as na dinâmica do processo político, seja acelerando seu desenvolvimento econômico.
Em muitos casos, utilizou-se de atores periféricos para ajudar a promover mudanças delicadas nos
centros mais sensíveis do poder. Assim fazendo, quebrou-se o poder monolítico da aliança São
Paulo-Minas e diversificou-se a interlocução regional, reincorporando o Nordeste e o Sul e
valorizando o Centro-Oeste e, até certo ponto, o Norte.
De modo geral, o longo ciclo desenvolvimcntista que ocupou a metade do século ( 1930-
1980), embora politicamente heterogêneo - com períodos descontínuos de ditadura e de
democracia - , foi ideologicamente avesso às formas tradicionais de democracia parlamentar e à
descentralização política e administrativa, sempre ligadas às reivindicações de um poder regional
de tipo oligárquico que parecia revigorar-se em períodos de abertura democrática, pela va lorização
" Aspásia Canrnrgo. coord .. O ~11/pe silencioso: m origem da Repúhlica cvrporati1·a. Rio de Janeiro. Rio fundo. t 989.
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do voto no mercado político e dos políticos tradicionais como mediadores na relação entre o
Governo Federal , os estados e municípios.
Para as elites estratégicas que comandaram o período, mais preocupadas com a eficácia do
desenvolvimento do que com a representação democrática, de cunho marcadamente tradicionalista
o regionalismo político continuava sendo um estorvo que retardava as reformas e exigia laboriosas
negociações, em geral bastante onerosas aos cofres públicos. Para os intelectuais desse período,
tanto no ciclo autoritário quanto no democrático, também o mais importante era o fortalecimento
do Estado Reformista , promotor do desenvolvimento com autonomia nacional e democracia socia l,
isto é, com a incorporação das massas ao processo político e a distribuição mais eqüitativa dos
frutos do desenvolvimento
Inevitavelmente, o federalismo democrático da Constituição de 1946 e da década de 1950
desembocou em conflitos agudos, tendo como pano de fündo o reformismo populista lid erado pelo
Poder Executivo contra o tradicionalismo das elites regionais sediadas no Congresso. Outro tipo de
tensão cristalizou-se, nos regimes democráticos, entre o Presidente e os principais governadores,
competidores permanentes e potenciais candidatos à Presidência .
O fato é que, nesse interregno, o Congresso sempre foi visto como loc11s privilegiado de
resistência às reformas e de representação dos interesses regionais, em contraposição ao poder
Executivo, representante direto da Nação e do Povo. Essas "forças ocultas", denunciadas pelo
presidente Jânio Quadros, quando contrariadas ou ameaçadas, em regime democrático, foram
capazes de derrubar presidentes e até mesmo regimes, como ocorreu em 1964.
No regime militar, de governadores e prefeitos de capitais nomeados, e de Congresso
aberto, porém vigiado, o país foi conduzido por um colegiado de generais que elegia o Presidente.
Ele era apenas o primus inta pares da corporação, periodicamente eleito. o quadro de uma
ditadura mitigada, rituais democráticos como esse tomaram o período bastante atípico se
comparado a outras manifestações de autoritarismo no continente e sobremaneira propicio para
composições e arranjos regionalistas e para estratégias semiíederativas faci litados pelo
funcionamento do Congresso.
Esses acordos coexistiram - e até mesmo se beneficiaram - com o casuísmo e o arbítrio
dos Atos Insti tucionais, sempre no quadro formal do federalismo centrali zador da Constituição de
1967. Este foi o caso, por exemplo, do chamado Pacote de Abril , que sutilmente reforçou a
representação do No1ie e do Centro-Oeste, no momento em que os militares precisavam ampli ar as
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suas bases no Congresso, ameaçados que estavam pelo oposicionismo crescente. Essa ampliação,
que permaneceu na Constituição de 1988, vem faci litando a integração política da Amazônia,
sobre a qual , para muitos, paira ainda a ameaça de desintegração territorial ou de separatismo.
No Brasil e no mundo. durante e o período em que prevaleceu no pais o modelo
desenvolvimentista, durante o qual predominou o Estado do bem-estar, a federação como sistema
de organização do Estado esteve fora de moda, passando pelo purgatório de ser identificada com o
liberalismo ultrapassado, com o caciquismo político e o poder do latifúndio, e com o privatismo e
o particularismo dos laços familiares, dos clãs políticos e dos interesses locais. Tida como incapaz
ele atender o interesse público, por um bom tempo foi posta na contramão do desenvolvimento e do
progresso.
Na década de 1980, tudo mudou. O modelo desenvolvimentista e o Estado corporativo
entraram em crise profünda, acompanhando o surto liberal que novamente se estendeu pelo
mundo. acelerando a expansão das empresas transnacionais, a integração dos mercados e o
ingresso dos países desenvolvidos na Era da Informação. Nesse contexto, a gestão descentralizada
das empresas e dos governos ganhou magnitude, generalizando-se por todos os continentes junto
com a promoção da sociedade civil e das organizações não-governamentais. Era o Estado
burocrático, promotor do desenvolvimento, transformando-se em Estado indutor e coordenador de
políticas públicas, cada vez mais submetidas à órbita da regionalização e do poder local .
Nos Estados Unidos da era Reagan surge o re,•ival da federação descentralizada, sufocada
por décadas de centralização. Inicia-se, nesse contexto, a pressão dos governadores para que o
Governo Federal lhes devolvesse inúmeras competências atropeladas pela sede de
intervencionismo central. Esse movimento, que ganhou proporções relevantes, foi estimulado no
Brasil pela luta contra o regime militar e pela abertura democratica. sempre favorável à
descentra lização política.
Mas, afinal , como tudo começou? E por que demorou tanto a se implantar o federalismo
brasileiro?
3. O federnlismo tardio: as origens utópicas e a construção do Estado
11
A idéia de transformar o país cm uma federação é das mais ant igas e não foi nada tãci l
torna-la realidade. Durante muito tempo o federa li smo reduziu-se a uma utopia que se confimdiu
com os di lemas que acompanharam o processo de formação da nacionalidade. Desde o in ício, o
idea l federativo empolgou as lutas regionais pela lndependência, mas acabou sendo relegado por
uma elite de letrados, formada em Coimbra, que temia os riscos de desintegração do antigo
terri tório colonial.
É certo que as diferentes províncias, muito distantes umas das outras, sempre se
comunicaram diretamente com a Corte portuguesa e ainda não reconheciam um centro naciona l de
poder. Foi feita, portanto, a opção inicial por um Império unitário, descartando o federa lismo e a
República que tanta instabi lidade política e guerras entre províncias vinham provocando na
América Espanhola.
O tema voltou a ordem do dia durante a Regência com a Reforma Consti tucional de 1934,
que propôs um projeto de criação no Brasil de uma monarquia federa l e constit ucional. O projeto,
aprovado pela Câmara mas rejeitado no Senado, provocou grandes debates entre os defensores do
federa li smo americano e os centralistas formados em Coimbra que chamaram a atenção para o
perigo de copiar instituições norte-americanas, como comprovava a desastrada experiencia do
México.
O mal, segundo Bernardo Pereira de Vasconcelos, não residia no federalismo em si mas
no estagio civi lizatório em que se encontrava o Brasil onde a consciência política da população era
ainda incipiente.7 Descentralizar, cm tais circunstâncias, poderia significar apenas entregar o poder
à tirania dos interesses privados dos grandes proprietários de terra, diante de uma população
inerme.
Nesse caso, cabia ao poder central defender o interesse público e a liberdade, e, ainda,
provocar a rotatividade do poder local por meio do exercício do poder moderador. Este modelo de
Estado que José Muri lo de Carvalho chamou de "pedagógico" seria ressuscitado posteriormente,
com argumentos idênticos ao que usou o Visconde de Uniguai : em tais circu nstâncias, é preciso
educar o povo, ensinando-o pouco a pouco a gerir os seus negócios.~
· José Murilo de Carvalho. ··Federalismo y Ccnlmlimción cn cl lmpcrio Brasilciio'" . in Marccllo Cunn.igani . coord .. Fetleralismos J.01i11on111ericanus: ,\/exlco, /Jrnsi l .• lrge111/1w. Fondo de Cullura Económica. México. 1993. ' Visconde de Umguai. l •.'11.mio sohn· o /Jire110 .- ltl111i11istrolivo. Imprensa Nacional. 1960 ( 1. cd. 1862 ). (fallando local de cdiçilo. Rio de Janeiro'!)
12
Mesmo assim, o Ato Adicional instituiu um modelo semi-federativo que. embora
impedindo a eleição dos presidentes de Província e a criação do poder Executivo municipal, e
mantendo o Poder moderador e o Senado vitalício, criou as Assembléias provinciais, a divisão da
recei ta fiscal e a eli minação do Conselho de Estado. A descentralização provocou um surto sem
precedentes de sublevações regionais e as guerras entre facções locais pelo controle dos espaços
políticos que se abriam .
Como observou o Conde de Suzannet ,'.I a unidade do Brasil era apenas aparente, todas as
pro\·íncias queriam a separação e seu sonho era uma república no estilo norte-americano. Mais
uma vez, o federalismo incipiente foi abortado: limitando o poder das Assembléias e dos juízes de
paz. recriando o Conselho de Estado, e criando uma just iça e uma polícia controladas pelo
Ministério da Justiça.
Fortaleceu-se, assim, o centralismo monárquico e o seu maior legado: a transformação da
antiga colônia, desarticulada em províncias estanques, em um Estado Nacional de fraca ,
capilaridade, mas dotado de forte embrião de identidade, em torno das riquezas e potencialidades
de um grande território. A identidade, nesse sentido, parecia mais virtual e simbólica do que real.
O debate sobre a federação retorna já no ocaso do Império e só depois que se tornou
evidente o fracasso do Estado demiurgo, cujas cumplicidades atávicas com a escravidão e com os
grandes proprietários de terra foram mais fortes do que o projeto precurso de preparar a Nação para
exercer as liberdades civis, condição si11e qua 11011 do autogoverno e das liberdades políticas.
Continuávamos, como havia alertado o Viscode de Uniguai, com a cabeça grande (a burocracia
central), mas com os braços e as pernas curtos (os governos provinciais e locais). Em 1877, 69%
dos funcionários públicos eram empregados do governo central. JO
O Manifesto Republicano de I 870 é a linha de demarcação política dos novos tempos,
preparando o terreno para o que seria, no momento oportuno, a grande bandeira da ('onstituição de
1891 : o federalismo e a descentralização. Desejosa de maior autonomia, a província de São Paulo
liderou movimento republicano e promoveu o federalismo extremado de Alberto Sales, que não
hesitou em anunciar que sua verdadeira pátria era paulista e que o separatismo poderia ser um mal
menor diante dos males da centralização. 11
'' José Murilo de Carvalho. op. c:it. 1" Idem. ihid .. p. 6-1.
11 Alberto Sales . ..J pátria pmtli.\ln , Brasília. Editora da UnO. 198:J .
13
Na tentativa de se livrar das amarras do estamento burocrático, São Paulo liderou o
descontentamento crescente com a uniformidade excessiva do centralismo imperia l, o seu furor
rcgulatório e sua ganância fiscal. Contra a tirania da centralização administrativa, a província se
insurgiu, desgostosa com a situação de ter de entregar ao poder imperial os impostos de exportação
arrecadados graças ao grande surto de expansão cafeeira.
Além do mai s, o dinamismo econômico da província baseava-se em uma população
imigrante e no trabalho livre que exigiam, por sua vez, um processo de modernização e de
investimentos mais vigorosos do que seria a disposição da elite imperial , comprometida com
velhas alianças nordestinas e fluminenses.
De fato, o deslocamento da agricultura cafeeira do Vale do Paraiba para o Oeste Paulista,
mais afastado do ambiente da Corte do Rio de Janeiro, provocou a desarticulação entre o poder
econômico e o poder político, desestabilizando a estrutura política do Império, e convertendo o
federalismo, não mais em tema subsidiário à implantação da República, mas no tema principal da
crise do Segundo Reinado, junto com as pressões abolicionistas.
De inimigo número um da unidade nacional , o pacto federativo converte-se, subitamente,
em seu grande aliado: consolidado o território, sem a oxigenação das províncias o império estaria
condenado, abrindo caminho ou à república ou ao separatismo, ou a ambos. Para os republicanos, a
condição da unidade era a descentralização. O ideal federativo então propalado retratava o velho
sonho, idealizado pelos diversos movimentos regionalistas fracassados, como a Revolução de
18 l 7, a Revolução Praieíra e outros.12
A crise final do Império nada mais fez do que reavivar um velho sonho de liberdade, mas
com novas roupagens, e bem alimentado por um pensamento critico inconformado com o contraste
existente entre a próspera ex-colônia inglesa do Norte e atrasada ex-colônia portuguesa do Sul.
Esta chocante diferença foi especialmente atribuída a· força da sociedade civil e do autogoverno, e
ao regime federativo que exige soberanias partilhadas e garante a autonomia dos estados.
Na segunda metade do século XIX, outras federações surgiram nos rastros da bem
sucedida experiência dos Estados Unidos, especialmente no Canadá e na Austrália. No Brasil,
intelectuais notáveis como Joaquim abuco e Rui Barbosa foram contaminados pelo vírus do
federalismo, mas nenhum foi mais vibrante e apaixonado que o político liberal Aureliano Cândido
1: Amaro Quintas, .-1 Ren,luçào de I li 17. 2. cd .. Rio de Janeiro. José Olympio. 198:i (Tese de doutora mento. 1939).
14
de Tavares Bastos, um dos raros intelectuais a assumir plenamente a causa do foderalismo e da
descentralização.
Em seu livro, A Província,u o escritor alagoano condena a escravidão e o unitarismo do
Império, engajando-se como militante na luta contra a tirania em defesa da liberdade. Padecemos,
dizia ele, de "apoplexia no centro e paralisia nas extremidades". O centralismo é ainda a "fonte
perene de corrupção". Leitor assíduo de Aléxis de Tocqueville, apaixonou-se como ele pelas
condições excepcionais de florescimento da democracia na América, ligada à idéia de sefl
government. à luta contra a tirania e ao pleno exercício da liberdade. Advogando o principio liberal
da "eterna luta da liberdade contra a força e do indivíduo contra o Estado", Tavares Bastos
postulava o combate à ignorància e o investimento maciço em educação, conferindo ao poder local
o seu gerenciamento. Para ele, a descentralização era parte inseparável do conceito de moderna
República.
Toda tutela prolongada produz infalivelmente uma certa incapacidade, e esta
incapacidade serve de pretexto para continuar a tutela indefinidamente. E ademais, estes
tutores que nos são impostos, donde saern7 Não saem do meio dessa população que
declarais radicalmente incapaz? [ ... ] Na estufa da centralização não se desenvolvem as
aptidões [ .. .. ] Sem a descentralização administrativa, o país esmorece sob a tirania da
uniformidade. (34)
A utopia americanista de Tavares Bastos coincide com o surgimento do Panido
Republicano e do espírito autonomista de São Paulo, tão bem representados pelo radicalismo
descentralizador de Alberto Sales. Assumindo a assimetria que tanto incomodava as elites do
Império, as elites republicanas defenderão, como Tavares Bastos, a tese de que o dinamismo e as
necessidades dos estados mais prósperos e modernos não podem ser ignoradas para adaptarem-se
às condições incipientes dos mais fracos. Autonomizar as regiões significava, portanto,
hierarquizá-las em função de suas condições de vida e de sua potencialidade e riqueza ..
Na defesa doutrinária da descentralização, Tavares Bastos acreditava que o sistema
federal "é um fato político do continente americano", marcado pela extensão do território, pelos
obstáculos naturais que conduzem ao isolamento e à independência das regiões. A dificuldade de
comunicação entre populações isoladas por tamanhas distâncias e obstáculos inacessíveis, a
15
fraqueza dos laços, o choque de interesses contraditórios, tudo concorreu para impossibi litar, nesse
continente, o unitarismo das monarquias européias.
O federalismo seria a base sólida das instituições democráticas e o fundamento para o
êxito das políticas públicas, pois é "essencial reconhecer no município e 110 departamento
autonomia legislativa e executiva quanto aos próprios negócios''. Tavares Bastos lamentava, ainda,
que a monarquia federativa . proposta em Reforma Constitucional pela Câmara dos Deputados, em
1831, tivesse sido suprimida pelo Senado 14 junto com o movimento descentralizador da regência
que promoveu também o Ato Adicional.
A mesma proposta de monarquia federativa foi encaminhada por Joaquim Nabuco para
salvar o Império, argumentando que a federação era parte de nosso ciclo evolutivo, interrompido
durante a Regência, pois o tamanho e a diversidade do país exigiam uma administração
descentralizada, mais próxima dos interesses e da · realidades locais. 15 Nabuco volta ao mesmo
tema com urgência. iemeroso de que a abolição recém-conquistada pudesse precipitar a queda do
Império e gerar três países distintos ao Sul. I (,
De fato, o "pai fundador" do federalismo brasileiro foi Rui Barbosa, político liberal do
Império que se tornou o principal artífice da Constituição de 1891 , além do mais importante
construtor e, posteriormente, crítico da República. Já em seu relatório de 1882. propõe a monarquia
federativa como modelo ideal de governo, para evitar as crises sucessivas que abalavam o Império .
Antes disso, já em 1880, no discurso em defesa da Reforma Eleitoral do projeto Saraiva,
afirma que
a base do nosso regime. a sua única base, é a democracia. Na administração dos nossos
interesses políticos, a soberania do povo é o alfa e o õmega, o princípio e o fim '.
Vinculando claramente a democracia à representação territorial , e ao espírito federativo,
acrescenta que o segredo da estabilidade monárquica "consiste em não pretender
superpor-se ao pais, nem tratar a nação como de potência a potência. 17
13 Aureliano ü indido de Ta,·arcs Bastos .. -1 provfucin: estudo sohre a desce111mliznçilo 110 Brasil . Rio de Janeiro. Garnier. 1870. 1 1 Idem. pp. 10. 14-5. 17. 27. ' José Murilo de C.m alho. " fl· c11 . 1'' Idem. p. 67.
1 • Rui Barbosa. l ::~c:ritos e discursos seletos. pp. 128-9. citado cm Ens.1io de Bolívar Lamounier ín l?ui IJnrhc,.m , Rio de
Janeiro. Nova í'ronteim. 1999. p. 8.1. (Ensaio é o nome do artigo'.1)
16
Como o demonstra Oolivar Lamounier, Rui foi , de fato, o único que levou às últimas
conseqüências, como teórico e como político, no curso de sua longa vida, a tão problemática
vinculação das idéias com a prática, do federalismo com a democracia e a liberdade.
Durante o ano crítico de 1889, foi o grande defensor de um regime federativo, tanto na
Imprensa quanto no interior do Partido Liberal. Dizia ele que "ou a Monarquia faz a Federação ou
a Federação faz a República''.1x Acreditava que a Monarquia não conseguiria sobreviver à dupla
pressão dos senhores de escravos descontentes e das províncias de São Paulo e do Rio Grande,
trazendo novamente á baila, agora em relação invertida, o velho tema do separatismo.
Medida em princípio essencialmente liberal , a federação é, ao mesmo tempo, nas
circu nstàncias atuais do país, uma reforma eminentemente conservadora. A Monarquia
unitária e centralizadora, vivendo parasitariamente da seiva das loca lidades, gerou, em
toda parte, o descontentamento, a desconfiança, o desalento, cujo derradeiro fruto é o
separati smo que, se nas províncias fracas ainda não se atreveu a formular-se como voto
geral, pronuncia-se franco e altanado naquelas das que vão chegando à opulência, quais
São Paulo e o Rio Grande do Sul , nos advertem de que o desenvolvimento econômico,
nas outras, longe de reconciliá-las com a centralização monárquica, virá, como naquelas,
despertar o mesmo movimento centrifugo, a mesma tendência desagregante, cujo
extremo, mas não longínquo resu ltado, seria transformar o Império numa justaposição de
Repúblicas débeis, inconsistente, desorientadas, entregues à porfia das ambições interiores
e exteriores. 19
Por diversas vezes declarou que somente aderiu ao golpe militar republicano quando se
convenceu que a Monarquia não abriria caminho ao federalismo . Um mês depois da proclamação
ela Republica. escreve Afonso Arinos que o Ministro Rui Barbosa havia afirmado em telegrama,
que a ruptura republicana havia sido gerada "pelas aspirações que o Ministério Ouro Preto
planejava esmagar", postergando a plena autonomia das províncias. Para Ouro Preto, os
presidentes de província deveriam ser eleitos em lista tríplice, como os senadores, submetidos à
escolha imperial. Rui, ao contrário, desejava a eleição dos executivos provinciaís.20
Empo lgado pela experiência norte-americana. implanta nos estados Unidos do Brasil o
.federalismo dual que rortalece os estados em detrimento tanto do Governo federa l quanto do
1~ José Murilo de Carvalho. op. cic .. p. 68.
19 Rui Barbosa. Cn111pa11has jnmnlisticas. in Bolivar Lamounicr. op. ci t. ' " lc/e111. ihicl.
17
municipal , cuja organização ficou inteiramente à mercê das decisões do poder estadual. Na Bahia,
por exemplo, todos os prefeitos eram nomeados pelo governador. 2 1 Outra caracterist ica da
Constituição de l 891 foi fortalecer as fünções do Congresso como ator protagõnico do poder
federal.
Tantas vezes acusado de sonhador e irrealista, e de ter criado uma foderação oligárquica
que levou o país à beira da desagregação, Rui foi também identificado como típico representante
das elites brasileiras que usou idéias importadas para tentar, cm vão, resolver os problemas do país .
O ideal ismo da Constituição de 1891, como argumentou Oliveira Viana, 22 seria parte de um
enxerto malsucedido de descentralização nos moldes americanos porque não levou cm conta nem a
cultura política nem a organização social ainda incipientes do país.
No entanto, o próprio Oliveira Viana reconhece que foi graças a Rui Barbosa que o
extremismo dos republicanos paulistas e gaúchos foi temperado pelo seu fundo monarquista e
nacionali sta . ·'Devemos- lhe, sem dúvida, esse serviço imenso. Ele conteve, com a sua autoridade
irrefragável, a evolução do regime federativo para a confederação - o que sign ificaria a
desintegração da grande pátria comum".21
Vitor Nunes Leal lembra ainda que Rui combateu energicamente, na Constituinte de
1890, as teses tributárias ultrafederalistas do castilhismo gaúcho, vaticinando o "desmoronamento
da federação nascente".2~ Corrigia-se, assim, a grande distorção do federalismo brasil eiro quando
comparado ao federalismo americano. Enquanto nos Estados Unidos. o pacto federativo nascia de
baixo para cima, resultante da agregação voluntária das doze colônias, no Brasil, ao contrário, a
federação nascia de cima para baixo, no proce so de desintegração do Estado Unitário . Esta
inversão histórica criou a situação singular (e o equívoco) de que o federalismo, no Brasil , é tido
como si nônimo perfeito de descentralização.
No pacto constitucional, Rui tratou de reverter estas tendências centrífugas, aproximando
o federalismo brasileiro de Hamilton e distanciando-o, tanto quanto possível, do espírito
descentralizador de Jefferson . Embora tenha defcndido a eleição do presidente pelos estados,
segundo a fórmula particular do Colégio Eleitoral americano, afinal rejeitada na Constituinte,
postulou também a tese federa li sta de que a descentralização administrativa dos Estados Unidos
:i Lamounicr. op. ai .. p. 92. :: Oti,·cira Viana. O idenlismo tln Co11stituição. (complc1ar dados) '
1 Oliveira Viana. !11s1it11içc,es pollricas brasileiras. citado por Bolivar Lamomúcr. op. dr .p. 84. : .i Vitor Nunes Leal. ( 'orcmelismo, e11xacla e voro. Silo Paulo. Alfa-Omega. 1986 ( 1. cd. 1949). citado Lmnounicr. op. r:i t.
18
não impedia que o pais fosse politicamente tão centralizado que ''nem as realezas européias a este
respeito o igualam". O fundamental é que, segundo ele, entre outras funções federais, a
Constituição garanta sua supremacia contra o particularismo dos estados.2~
Desde o início, o que parecia estar em jogo era a opção de construir ou não um Estado
Nacional de grandes dimensões territoriais, escapando à sina da fragmentação política que gerou
em outros países. nas mesmas circunstâncias, o caudilhismo político e as sangrentas disputas
locais. Não resta dúvida que, no curso da História, os impérios foram formas embrionárias de
federalismo , capazes de lidar, de forma baixamente institucionalizada, com a hcterogeineidade
cultural e a diversidade social comum aos extensos territórios.
Hoje, praticamente todos os países de grandes dimensões são federações ou quase
federações de conformação imperial. Em muitos casos, foi o poder aglutinador do colonizador que
gerou a integração de territórios política e culturalmente dissociados, como ocorreu na Índia, no
Canadá, na Austrália. A grande missão institucional do Segundo Reinado foi , portanto, promover
na ex-colônia um embrião de centro político que o colonizador não havia fomentado pelo temor de
alimentar os separatismos.
O imperador luso- rasileiro assumiu a tarefa de forjar para um grande território uma
mini ma estrutura de Estado, aplicando o Poder Moderador para apaziguar os partidos, garantindo a
fórceps sua rotatividade política. Sem conseguir domesticar o privatismo dos proprietários rurais,
amenizou os seus excessos, promovendo a capilaridade social . No momento seguinte, coube ao
regime federativo ousar o próximo passo, ampliando a rede de representação regional e
fortalecendo os braços e as pernas de um corpo desproporcional e carente.
O que os partidários da federação não previram é que o federalismo republicano fosse tão
cedo posto a tão duras provas, como o sentiu na pele Rui Barbosa, em primeiro lugar enfrentando
os militares que fizeram a República e seu unitarismo positivista, anti-regionalistase antiliberal.
Em seguida, vendo o poder em mãos das elites paulistas, pouco preparadas para lidar com os
demais estados e com um sistema partidário nacional ao mesmo tempo viciado e incipiente.
As guerras e sublevações que dominaram a década de noventa romperam definitivamente
o encanto com a República e exigiram a entrada em cena de alguns ilustres conselheiros do
lmpério que tomaram as rédeas da política externa, com o Barão do Rio Oranco. chegando
inclusive com Rodrigues Alves à presidência da República. O mais importante, porém, era a
:< Rui Barbosa. Cm11pa11ha.1"jomnli.wicas. p. 217. in Bolívar Lamounier. op. ci1 . p. R<,-7.
19
constatação de que, por cima da Constituição de 1891 , um grande acordo político precisava ser
promovido, para assegurar a sobrevivência da jovem República, economicamente desajustada e
politicamente à deri va.
Esta metammfo.,·e i11sti/11cio11al só foi conseguida após graves turbulências internas -
inclusive uma guerra civil no Sul entre federa listas e republicanos -, que abalaram a tcderaçào em
seus primeiros anos de vida, pondo em risco não apenas o regime republicano recentemente
implantado, como também a própria unidade nacional, ameaçada pelas divisões regionais e os
faccionai ismos políticos.
4. A República do possível: o regionalismo oligárquico e a integração territorial
A Co nstituição de 1891 , por influência americana, introduziu no Brasil a total liberdade
de legislação estadual, descv11trui11do a uniformidade conseguida no Império. Cada estado tinha
suas próprias regras eleitorais e seus códigos específicos, inclusive a liberdade de contrair
emprést imos internacionais, além do controle total sobre a polícia e a justiça, sob o comando dos
governadores e dos coronéis. Foi nas brechas deste impulso regionalista que, em pouco tempo,
engendrou-se um "federalismo caboclo" que se deformou e adaptou ao poder quase absoluto das
oligarquias que dominaram a primeira década do século .
O preço da estabi lidade política, obtida já no governo Campos Sa les, foi o sacrificio do
fedem/ismo democrálico tão sonhado por Tavares Bastos e Rui Barbosa. A distância entre a
realidade e a utopia, ou o pragmatismo e o sonho, é a mesma que separou Rui Barbosa de Campos
Sa les que, às voltas com uma grave crise financeira e institucional, descartou a possibilidade de
levar adiante uma Reforma Constitucional arriscada, e costurou um pacto oligàrquico durante o seu
governo ( 1898- 1902) para dar respaldo às reformas liberais e às negociações internacionais que lhe
permitiram sanear as finanças, contrair empréstimos e consolidar a hegemonia do setor cafeeiro .
O acordo favoreceu, como manda a lógica liberal, os estados mais ricos, que ganharam
autonomia para conduzir sua própria política, enquanto os mais isolados e pobres, mais
dependentes do governo, tornaram-se mais submissos. Confinando o coronelismo aos seus grotões
longínquos, o paulista Campos Sales habilmente recuperou o poder moderador do Presidente para
intervir no processo sucessório, tal como o Imperador o havia exercido no Segundo Reinado, mas
20
em troca delegou amplos poderes aos governadores, nos limites estritos de seus próprios estados.
Com as forças regionais fragmentadas, parecia possível domesticar os arroubos regionalistas
segundo a ve lha lógica do tlhú/e e/ impera.
Segundo a mesma lógica, regionalizou o partido oficial, cria ndo em cada estado os
famosos l'Rs, filhot es do Partido Republicano, cujos presidentes eram os próprios governadores.
Liberou o Congresso dos partidos nacionais inexpressivos, mas com forte capacidade de
rcssonància política . No Congresso, fortalecido pela Constituição de 1891 , assumiu a coordenação
do processo político por meio do rígido controle da Comissão de Verificação de Poderes,
encarregada de reconhecer a validade das eleições de cada candidato eleito, muitas vezes
contestada pelas oposições locais.
O pacto consistiu c 11 oferecer incondicional apoio aos candidatos indicados pelo
governador , troca de sua abdicação 1·,1 1 interferir c' i; 1 questões nacionais sob exclusivo controle
do presidente. Tratava-se, na realidade, de uma artimanha típica do patrimonialismo, que consiste
em criar ou forta lecer regras formais, as quais serão propositalmente relegadas, apenas a fim de
utilizá-las como objeto de barganha para que não sejam cumpridas. Esse principio de criar
dificuldades para vender facilidades fo i o ponto central do acordo entre os governadores e o
presidente, garantindo- lhe liberdade na condução política econômica e do processo sucessório .
"Um longo e flexível cordão estendia-se assim da União até os municípios, dando a ilusão da
menor di stància entre a nação e o governo e garanti ndo a segurança da unidade nacional". 26
Graças à intennediação engenhosa da "política dos governadores",27 o presidente
fortaleceu o poder público estadual, mas deixou os governadores livres para exercerem plena e
arbitrariament e o poder em seus domínios. Esta "invenção republicana",28 fruto de habilidade e
requinte, fortaleceu a legitimidade do Governo Federal e acomodou os interesses regionais que
invadiam o cenário nacional, desestimulando tanto os separatismos quanto o faccionalismo
w ngressual. Sem dúvida, a cooptação das forças regionais, fixando seus lim ites mas lhes
reforçando poderes, funcionou como muro de contenção para os conflitos particularistas que
dominaram a República em seus dez primeiros anos de vida.
:1, Paulo Mercadante. ,\ /ili tares e cil·is: a éiica e o co111pro111i.1·.m . Rio de Janeiro. Zah.ar. 197X. p. 1 ➔➔. citado por Lamounier. op. dt .. p. 88. ~- Campos Sales. Da propaKanda à prcsidh1cin. São Paulo. Laemmen. 1908. :w Renato Lessa .. -1 i11ve11çiio rep11hlicm1a Campos Sn/es: as hases e n decadencia tia l'ri111e1rn Repúhlicn /Jrosile,ra. São Paulo/Rio de Janeiro. 11 'i' F.RJ. 1988.
21
O federa li smo desfigurado que inaugurou o século xx foi , portanto. um mero agente
promotor e legitimador do regionalismo, variant e do patrimonialismo segundo a qual "os atores
regionais aceitam a ex istcncia do Estado-Nação, mas buscam o favori ti smo econômico e as
prebendas políticas da unidade política maior inclusive o risco de por em perigo o próprio regime
político". Enquanto o federa li smo é um modelo institucional de competências distribuídas entre
governo federa l e estados, o regionalismo é um modelo de trocas de favores entre a periferia e o
centro 21)
Na prática, o federalismo oliKárquic.:o hierarquizou a federação em estamentos regionais
bem definidos, estabelecendo diferenças entre os estados de primeira classe, os de segunda classe
(os grandes do Império) e os párias da federação . No primeiro nível estavam os três estados mais
ricos, que controlavam mais da metade da população e do Produto Interno 13ruto, inicialmente
sobre a hegemonia de São Paulo ( 1894- 1906), a seguir de Minas, mas daí por diante sob a
influência crescente do Rio Grande do Sul. Entre os de primeira classe, criou-se uma "aliança do
café com leite'' entre São Paulo e Minas Gerais, mas a partir de 19 1 O, sob a pressão do poder
crescente do Rio Grande do Sul girando em sua periferia.30
A integração do Rio Grande dentro da federação brasileira fo i outra aquisição impo11ante
da República Velha que permitiu a definição de um estilo próprio de governar, com a
continuidade do poder pessoal mas, também, com inovações nas políticas sociais sob a égide do
autoritarismo posit ivista do castilhismo. A integração se aprofundou a partir de 191 O, graças à sua
participação crescente no Governo Federal, por meio de ministérios impor1antes como o de Obras
Públicas e o da própria Fazenda .
A força motriz ideológica da integração foi a idéia de que o estado su li sta incorporou-se
ao Brasil por "opção própria" e que esse engajamento conferiu-lhe uma inserção privilegiada com
parte dentro do todo, permitindo-lhe desenvolver por um lado, profundas identidades regionais e,
por outro, um forte compromisso com o patriotismo e a identidade nacional. 31 Foi essa dupla
mili tâ ncia ideológica que permitiu ao Rio Grande arbitrar os graves confli tos regionais que
eclodiram em 1912 e, posteriormente, o conflito entre São Paulo e Minas nas eleições de 1929, que
arrastou o pais para a Revolução de 1930.
'9 Joseph L. L01·e ... Federalismo y Regionalismo cn Brasil 1 !IKlJ- I937" . in Marccllo Carmagnani. coord .. op. cit .. p. 18 1. 1'' Joseph L. LOl·e. Rio Cirande tio Sul mui rhe IJrazilinn Regio11alis111 /882- / 'JJO. Stanford. Stanford Univcrsi1~-Prcss. 197 1. '' Rubcn George Oli\'en .. ·l parre e o todo: a diversidade c11/r11ral nu IJraçi/ Nação. Petrópolis. Vo1.cs. 1992 .
22
Ideologia oficial em defesa de um ruralismo acanhado e que demonstrou ter pouca visão e
pouco futuro, o.federalismo oligárquico promoveu a descentralização, mas estiolou a sociedade e a
democracia, institucionalizando o caciqui smo e o clientelismo político. Provocou também
retrocessos importantes como a redução da participação política32 que excluiu os analfabetos e
diminuiu o eleitorado, mantendo a população durante quarenta anos, à margem do processo
político de decisão. Nas eleições sucessivas, e sem competição de candidatos, a participação
oscilava entre 1,5 e 3%. Na disputada campanha de 1930, esse resultado mal ultrapassou os 5%.
Essa foi a conseqüência da retirada do Poder Moderador exercido no Império, e que levou as
e le ições a serem apenas instrumentos para ratificação de candidatos previamente escolhidos.
A perpetuação das oligarquias no poder e seus métodos impiedosos acabaram gerando sua
lenta desmoralização, especialmente no Nordeste, onde cisões internas e protestos populares,
estimu lados pelo Governo Federal, culmi naram com as "derrubadas estaduais" entre 19 12 e 1913 .
A desestabilização oligárquica foi fruto da eleição de um militar gaúcho, o genera l Hermes da
Fonseca (1910-1914) para a Presidência da República nas eleições de 19 10, e contra o qual nasceu
a Campanha Civili sta de Rui Barbosa, denunciando as deformações jurídico-institucionais que o
levaram à oposição a Campos Sales, denunciando a República que ele mesmo ajudara a fündar .
Esse foi o primeiro sinal da grave ilegitimidade política dos acordos de Campos Sales e de
que o regime traira os seus ideais federativos e republicanos. As sucessões presidenciais seriam
dali para frente, como de làto já eram, o foco gerador do descontentamento intelectual e das crises
sucessivas que se agravaram nas eleições de 1922 e de 1930. A fraude eleitoral e as votações
unânimes, as famosas "degolas", bem como os "currais eleitorais "e o "voto de cabresto", em
alusão ao gado ungido pelo seu dono, apenas contribuíram para descaracterizar o e1hos
rep11h!ica110 que levou Rui Barbosa à militância frontal contra o regime.
Esse quadro foi-se agravando progressivamente, com o choque cultural entre o Brasil
rural atrasado e a sociedade urbana que se expandiu a partir da Primeira Guerra Mundial ,
mobilizando as classes médias, os intelectuais, os artistas, os políticos e os jovens militares - os
tenentes - que desestabilizaram o regime com as sedições armadas que entrecortararn toda a
década de 1920.
Nas regiões isoladas ou decadentes, o clientelismo alimentou bolsões de pobreza e a
marginalização do campesinato do processo político, prolongando sob outras formas o regime da
J: Maria Antonieta Pamhyba. ·· Participação política na República Velha". Dados. n. 7. Rio de Janciro, ll 'l'EIV.
23
exclusão social , de semi- escravidão e de analfabetismo. Foi esta a visão desoladora que tiveram
do interior do Brasil os revolucionários da Coluna Prestes, traumatizada pelo domínio oligárquico
e pela passividade e a ignorância da população brasileira. Nesse contexto, a competição eleitoral e
o voto universal , a liberdade de expressão e de organização, a divisão dos poderes e a proteção das
leis - todas estas práticas do federalismo democrático foram descaracterizadas por uma realpolitik
voltada para a perpetuação e reprodução das lideranças regionais e de seus centros de poder.
Além da farsa da verificação dos poderes, a carencia generalizada de instituições civis
independentes acabaram por afastar a Democracia da República e o Federalismo do Progresso. Foi
este compromisso atávico que levou as novas elites intelectuais emergentes, a partir ela Primeira
Grande Guerra, a renegar tanto o Federalismo quanto a Democracia, enterrando-os junto com a
crise final da hegemonia agrária e da monocultura cafeeira.
5. Os intelectuais demiurgos e a crise de identidade: quem .'iomos ,uh? Que república , ? e essa.
As crises políticas da República Velha e sua obsolescência não tardaram em reabrir, no
meio intelectual , o velho debate sobre a centralização e a descentralização, principalmente no qu
concerne às relações entre o Estado e a l\ação, mobilizando questões relativas à identidade
nacional , à conformação territorial e demográfica do país, à cultura política e à debilidade de corpo
socia l, sem esquecer a herança da colonização e da escravidão e o papel das elites e de suas
ideologias importadas como condutoras da "aventura política brasileira".11
No fundo deste debate residia a questão maior: saber as razões profundas de nosso
insucesso institucional e como superá-las definitivamente. Afinal, o que havia de permanentemente
errado conosco? Sem identidade social definida, e sem arcabouço cultural mais elaborado, o pais
sofria há muito o trauma de não conseguir definir suas próprias origens.
Redescobrir o Brasil significava, sobretudo, saber quem era afinal o brasileiro autêntico,
alguma espécie degenerada de caboclo ou mulato ou, na melhor das hipóteses, um europeu de
segunda classe, de origem portuguesa? Para muitos, o indispensável era aperfeiçoar a raça, cada
vez mais necessitada de embranquecimento, por meio de doses maciças de imigrantes.
'' A1.c,·cdo Amaral. il ave11111ra política do Brasil. Rio de Janeiro. José Olympio. 19'.15 .
24
O momento simbólico culminante que levou a uma psicanálise intelectual e coletiva da
identidade nacional foram as comemorações do Centenário da Independência, em 1922, que
propiciaram o balanço da colonização po11uguesa e o inevitável confronto entre a experiência do
Império e da República. nos últimos cem anos de vida independente. Pareceu significativa a
relação de ambigüidade com as datas magnas de 7 de setembro e 15 de novembro, ambas
competindo pelo privilégio de monopolizar o símbolo máximo da nacionalidade. Outro tema
sujeito a controvérsias é quem teria sido o verdadeiro construtor da pátria livre e soberana. 34
No esforço de redescobrir o Brasil , para muitos era preciso retornar às origens
po11uguesas: ''Pobreza intelectual, moral e material . inexistência de vida social e incapacidade
organizativa, eis o que nos teriam legado os colonizadores ao longo de três séculos de dominação",
dizia Capistrano de /\breu. Manoel Bonfim inspirou também Álvaro Bomi lcar, que se apropriou de
seu conceito de "parasitismo" para sintetizar o caráter da dominação portuguesa no Brasil. Outros,
como Tristão de Athayde, ressaltavam que D. Pedro I "tivera a intuição do sentimento nacional" e
por isso "fundara a Nação brasileira ao garantir a unidade territorial , ao impedir a "anarquia" que
acompanhara o processo de emancipação de outros países sul-americanos. O brado do lpiranga
teria sido o toque de .reunir para as forças que dispersamente lutavam pela emancipação":1~
As comemorações ensejam a revelação de uma unanimidade consagradora em torno da
escolha de José Bonifácio como patriarca da Independência, a começar pelos que já esboçavam um
pensamento autoritário que só vingaria na década de 1930. Os centra li stas o viam como um
brasi feiro autêntico, inspirador da Independência e defensor da ordem e da centralização que
rejeitara o " idealismo liberal" que acabou vingando na Constituição de 1891 .
Em tempos de forte turbulência republicana, o ano de 1922 converteu-se em marco
simbólico de grandes rupturas e da vontade de mudança. Eventos como a Semana de Arte
Moderna, o levante tenentista, a criação do Partido Comunista e ainda uma conturbada eleição
presidencial sepu ltaram simbolicamente a Velha República e inauguraram uma nova época. Nesse
contexto, a "entronização" definitiva do patriarca adquiriu enorme significado e foi , além do mais,
31 Marly Silva da Moitas. A :\ 'açrio.fnz cem nnos: n questão 11acio11al 110 cenrenârio dn Imlepe11clP11cia. Rio de Janeiro. Editora da fundação Getúlio V:irg:is. Cl'IXX'. 1992. ·" Idem. pp. 20- 1.
25
estimulada pela mobilização da intelectualidade paulista "como a lembrar que não era de hoje que
os paulistas governavam o Brasil".3<'
Retomando o legado da geração de 1870, essa nova da década de 1920 despontou
comprometida com a enorme tarefa de fundar a Nação, constrnindo o Estado, e de foi:jar a
identidade nacional. corroída pela mediocridade republicana que impedia o despertar do Brasil
moderno. Nesse processo, novas e velhas interpretações sobre as raízes da nacionalidade vieram à
tona., "buscando as continuidades e rupturas e recriando o país à altura do século xx".
Dizia Pontes de Miranda que ' 'precisamos demarcar as fronteiras do espirita nacional
como já se fixaram as do território". Para isso, a palavra de ordem de Ronald de Carvalho era "'
basta de fecundação artificial!". Alberto Torres foi o grande introdutor da tese, já antiga, de que
precisávamos combater o artificialismo de nossas instituições e tomar a república brasileira. A
necessidade de uma elite preparada e enérgica crescia na medida em que "a opinião pública não
existe e o povo foi incapaz de se organizar politicamente" .37 Criar a nação brasileira, eis o desafio
de que se incumbiu a intelectualidade dos anos vinte, procurando construir um novo projeto para o
Brasil
Por toda a parte. circulava a mesma pergunta: "Que República é essa?" e ecoavam as
palavras de Oliveira Viana: "Veio a República. Veio a Democracia. Veio a Federação. E logo se
levantou um sussurro de desapontamento [ ... ] esse desapontamento se acentuou com o tempo,
numa permanente desilusão [ ... ] Não era esta a Repúhlica de meus sonhos!". A desilusão da
geração de 1920 concentrou-se cm um conjunto significativo de publicações que fizeram o
réquiem da República Velha em A margem da histária da República.
Euclides da Cunha alertava, ainda na virada do século XX. que "esse paraíso de
medíocres" não poderia concretizar o sonho de uma nação ' 'civilizada e moderna". Em 1920, a
República não era mais para ninguém "aquele busto lindo de uma mulher firme no pedestal", mas
uma ''esfinge com um simples capuz de bico feito por um jornal velho".·1~ Rep11hlica11izar a
República, que segundo Alvaro Bomílcar só favorecia meia dúzia de indivíduos, era corrigir seus
vícios de origem, herdados da colonização portuguesa.
-'" Oliveira Viauna. ··o idealismo da Constituiç,io··. in Vicente Lidnio Cardoso, org .. ,i margem da 1/istária dn l?eptiblica. Rio de Janeiro. Editora Do Anuário do Brasil. 1924. in Marly Silva da Molla. np.cit ., p. 23. (verificar qual a fonte de onde foi rcti.rada a citação de Oliveira Vi:mna) ,- Idem. op. cit. -'~ Careta. 11-9-1920. citado por Marly Silva d:i Motta. op. cit .. p. 23.
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A primeira grande limitação estrutural e principal causa dos nossos males teria sido a
conformação territorial e a distribuição demográfica, apontadas como grave carência desde o
Império. Comenta Vicente Licínio Cardoso:
No Brasil, a terra é grande demais. Empequenece o homem; depois esgota-o. Não há
continuidade de seiva, não há ritmo de vida, não há seqüência de energia. Quando a
corrente deve vir com maior vigor e experiência, o veio seca Em um suceder de ciclos de
apogeu e decadência, não há seqüência, não há ordem: é por demais violento o atrito
passivo da simultaneidade de espaços vários e diferenciados dentro de um mesmo tempo
Não há pêndulo regulador que mantenha o equilíbrio; nenhum volante que se sustenha por
si mesmo. E, desse modo, o acelerado de alguns órgãos, em contraste com o movimento
retardado de outras peças do organismo, bem define a situação caótica do sistema por
inteiroJ9
Na mesma linha, Oliveira Viana argumenta que na maior parte do território as condições
sociais eram bastante adversas. Como em vastas regiões, ávidas de maior liberdade, não havia
ordem, nem justiça nem polícia, a autonomia política e a liberdade eram apenas o pretexto para
acobertar a "capangagem dos caudilhos que depunham prefeitos e autoridades com o mesmo
desembaraço com que os colhedores de borracha golpeavam à machadinha a casca das
seringueiras ... com o olho fito na América do Norte e na Inglaterra, nas belezas do selfwJVernment
e nas maravilhas da descentralízação".-w
Permeando essa antiga discussão sobre os diferentes brasis que não se relacionam e que
pulsam cm ritmos diversos, destaca-se "a inércia do meio" que confinava ao "ostracismo político"
lideranças e programas como os de Tavares Bastos, em 1870, de Rui Barbosa, em 1882, e a
proposta de Revisão Constitucional de Alberto Torres, em 1914. A razão desta mediocridade
devia-se ao atraso cultural e educacional da população, jà denunciado por Tavares Bastos e por
toda a geração de intelectuais que precedeu a Revolução de 1930. Licinio Cardoso, baseado em
números , atribuiu ao Império o " descaso, desatenção e jnépcia com que se protelou, sem
estimular, a solução dos problemas educativos das massas" .41
, ., Vicente Licínio Cardoso, ,-i margem da I li.~cória do /Jra.,11. São Paulo. Companhia Editora Nacional.! 938. col. Brasiliana ( 1. cd. l'J33). p. 198. (confirm;ir dados bibliográficos. Vcrnota 36) 11
' Oliveira Viana. l'roblemas de polí1ica obje1iva. São Paulo. Companhia Editora Nacional. 1 •no. p. 9~. 11 Cardoso. idem. p. 202.
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Cinqüenta anos depois, já no final dos anos vinte, a população, segundo o autor,
continuaria 70% analfabeta , tornando o país desprovido de um verdadeiro "corpo social". Cri ti car
apenas os homens, os regimes e as instituições é ignorar que as graves distorções deste corpo
social resultam "da insuficiência funcional de vários de seus órgãos para a dissecação da
precariedade orgânica de seus tecidos e sistemas" .
Para Oliveira Viana, faltava à população rarefeita e dispersiva "uma consciência política
desenvolvida, o sentimento real e lúcido de sua unidade regional e de seus interesses comuns".
Fa ltava .. ainda.
uma classe superior, suficientemente numerosa para assumir a direção integral daquelas
sociedades porque a verdade é que muitos estados do Norte e mesmo alguns do Sul se
ressentem ainda hoje da falta de uma aristocracia dirigente, que ainda não se havia
formado quando o improviso federativo os elevou, de repente, à condição de entidades
soberanas. É esta a causa primeira da estagnação em que estão mergulhados, senão da
desordem, da anarquia, da desorganização que os deprime e aniquila.
De nada adiantariam as grandes idéias como liberalismo, democracia, federa li smo,
importadas de fora , sem a presença de uma população mais educada, e de uma opinião pública
capaz de exercer a cidadania e a participação necessárias ao exercício da ordem republicana,
garantindo maior consistência tanto ao federalismo quanto à democracia.-1 2
' 'Um regime de descentralização sistemática, de fuga à disciplina do centro, de
loca li smo ou provincialismo preponderante, em vez de ser um agente de força e progresso
pode ser muito bem um fator de fraqueza e aniquilamento e, em vez de assegurar a
liberdade e a democracia, pode realmente resultar na morte da liberdade e da democracia."
Não é por acaso que - à falta de atores sociais relevantes e de partidos moldados por
interesses de classes, dotados de ideologias e de projetos modernizantes -, intelectuais como
Alberto Torres, Vicente Licínio Cardoso e Oliveira Viana•u tenham sido os principais porta-vozes
deste diagnóstico da Primeira República que configura, nas duas primeiras décadas do século, a
precariedade de um desenvolvimento político marcado pelo abismo social entre as elites e as
,: Cardoso. idem. p. 197 11 Alberto Torres. republicano histórico e e:--govemador do estado do Rio de Janeiro. ministro do Supremo Tribunal Federal. notabil izou-se como precursor das criticas contra a República Vcllha e por oferecer uma doutrina consistente de organização nacional que iria inspirar o mo\·imcnto tcncntista e intelectuais influentes. como Vicente Licinio Cardoso e Oli\'cira Viana. na denúncia contra a decadência oli g;írquica e a crise da nacionalidade. Cf. O problemn