ESCOLA DA MAGISTRATURA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA: UMA REALIDADE CONSOLIDADA NA
SOCIEDADE BRASILEIRA E RECONHECIDA PELO PODER JUDICIRIO, MAS
IGNORADA PELO PODER LEGISLATIVO
Renata Azevedo de Oliveira
Rio de Janeiro
2017
RENATA AZEVEDO DE OLIVEIRA
PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA: UMA REALIDADE CONSOLIDADA NA
SOCIEDADE BRASILEIRA E RECONHECIDA PELO PODER JUDICIRIO, MAS
IGNORADA PELO PODER LEGISLATIVO
Monografia apresentada como exigncia para
concluso do Curso de Ps-Graduao Lato
Sensu da Escola da Magistratura do Estado do
Rio de Janeiro.
Orientadora:
Prof Christiane Maria Coelho Moreira
Coorientadora:
Prof Nli Luiza C. Fetzner
Rio de Janeiro
2017
RENATA AZEVEDO DE OLIVEIRA
PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA: UMA REALIDADE CONSOLIDADA NA
SOCIEDADE BRASILEIRA E RECONHECIDA PELO PODER JUDICIRIO, MAS
IGNORADA PELO PODER LEGISLATIVO
Monografia apresentada como exigncia para concluso
do Curso de Ps-Graduao Lato Sensu da Escola da
Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.
Aprovada em ____ de _________________ de 2017 grau atribudo: ____
BANCA EXAMINADORA:
___________________________
Presidente: Prof. Des. Cludio Brando de Oliveira
Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro EMERJ
___________________________
Convidada: Prof Des. Katya Maria de Paula Menezes Monnerat
Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro EMERJ
___________________________
Orientadora: Prof Christiane Maria Coelho Moreira
Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro EMERJ
A ESCOLA DA MAGISTRATURA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO EMERJ NO
APROVA NEM REPROVA AS OPINIES EMITIDAS NESTE TRABALHO, QUE SO
DE RESPONSABILIDADE EXCLUSIVA DA AUTORA.
AGRADECIMENTOS
Ao meu pai, por possibilitar que eu me dedique aos estudos e busca pelos meus sonhos, e
por todo apoio, incentivo e pacincia.
minha me, minha irm e ao meu irmo, por todo carinho e incentivo.
Aos meus amigos e companheiros de jornada da EMERJ, com que dividi tantos momentos
desafiadores e realizaes.
A todos os professores da EMERJ, por todo conhecimento partilhado.
A todos os funcionrios da EMERJ, pela eficincia.
Ao Jos Renato Teixeira Videira, por toda sua ateno, compreenso e presteza.
Anna Dina Vinciguerra, por sua competncia e gentileza.
professora Nli Luiza C. Fetzner, por sua ajuda indispensvel concluso deste trabalho.
minha orientadora, Christiane Maria Coelho Moreira, por todo seu carinho, dedicao e
conhecimento, que tornaram essa pesquisa possvel.
Toda a sociedade procura acondicionar a
forma da famlia a suas necessidades e fala-se
em decadncia frequentemente para
estigmatizar mudanas com as quais no
concordamos.
Michelle Perrot
Os fatos no deixam de existir s porque so
ignorados.
Aldous Huxley
Quando o Direito ignora a realidade, a
realidade se vinga, ignorando o Direito.
Georges Ripert
Todas as vitrias ocultam uma abdicao.
Simone de Beauvoir
SNTESE
As famlias so construes sociais e culturais, que no seguem um modelo natural, exclusivo
e permanente, como foi defendido durante grande parte da histria da humanidade. Dessa
forma, trata-se de estruturas dinmicas, que esto em constante evoluo, que assumem
diversas formas, e das quais surgem vnculos que no advm apenas do matrimnio ou da
gentica, mas tambm do afeto; como ocorre na parentalidade socioafetiva. Nesse sentido, o
que se pretende com este trabalho demonstrar que a parentalidade socioafetiva uma
realidade consolidada na sociedade brasileira e reconhecida pelo poder judicirio, da qual
decorrem inmeras demandas; sobre as quais o judicirio tem que decidir, baseando-se quase
que exclusivamente nos princpios constitucionais, haja vista o vcuo legal gerado pela inrcia
do legislador brasileiro.
SUMRIO
INTRODUO ........................................................................................................................ 10
1. FAMLIA E PARENTALIDADE: CONSTRUES SOCIAIS E CULTURAIS .............. 14
1.1. Terminologias: famlia e parentalidade ........................................................................ 15
1.2. Evoluo das famlias: da pr-histria aos dias atuais ................................................ 17
1.3. Evoluo dos vnculos de parentalidade: o paradigma da consanguinidade ............ 25
2. EVOLUO DO DIREITO DE FAMLIA BRASILEIRO: CONSTITUCIONALIZAO
DO DIREITO CIVIL E O FIM DA DICOTOMIA DIREITO PBLICO X DIREITO
PRIVADO ................................................................................................................................ 28
2.1. Evoluo do direito de famlia brasileiro: da Constituio do Imprio do Brasil de
1824 at a Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 ................................ 28
2.2. Constitucionalizao do direito civil decorrente da promulgao da Constituio da
Repblica Federativa do Brasil de 1988 .............................................................................. 40
2.3. Democratizao da famlia decorrente da constitucionalizao do direito civil ....... 44
2.4. Princpios constitucionais aplicados na soluo das demandas resultantes das
relaes de parentalidade socioafetiva ................................................................................. 50
2.4.1. Princpio da dignidade humana ................................................................................. 50
2.4.2. Doutrina da proteo integral e princpio do melhor interesse da criana e do
adolescente .............................................................................................................................. 53
2.4.3. Princpio da solidariedade familiar ........................................................................... 57
2.4.4. Princpio da convivncia familiar .............................................................................. 60
2.4.5. Princpio da afetividade .............................................................................................. 62
3. FILIAO: QUEBRA DO PARADIGMA DO VNCULO DE PARENTALIDADE
EXCLUSIVAMENTE BIOLGICO E RECONHECIMENTO DO VNCULO
SOCIOAFETIVO .................................................................................................................... 67
3.1. Filiao biolgica ............................................................................................................ 70
3.2. Filiao socioafetiva ........................................................................................................ 72
3.2.1. Filiao decorrente do madrastio e do padrastio ....................................................... 77
3.2.2. Filiao decorrente da adoo .................................................................................... 81
3.2.3. Filiao decorrente das famlias homoafetivas ......................................................... 89
3.2.4. Filiao decorrente da reproduo assistida ............................................................. 92
3.2.4.1. Reproduo assistida homloga ............................................................................ 102
3.2.4.2. Reproduo assistida heterloga ........................................................................... 103
3.2.4.3. Gestao por substituio ...................................................................................... 106
3.2.5. Filiao decorrente da multiparentalidade ............................................................. 109
4. EFEITOS JURDICOS DA PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA: DIREITOS E
DEVERES IGUAIS AOS PROVENIENTES DA PARENTALIDADE BIOLGICA ........ 118
4.1. Extenso da parentalidade socioafetiva no que tange s relaes de parentesco ... 118
4.2. Alimentos entre parentes socioafetivos ....................................................................... 119
4.3. Guarda dos filhos socioafetivos ................................................................................... 121
4.4. Direito de visita dos filhos socioafetivos ..................................................................... 125
4.5. Direito sucessrio dos filhos socioafetivos .................................................................. 128
4.6. Direito previdencirio dos filhos socioafetivos ........................................................... 130
CONCLUSO ....................................................................................................................... 135
REFERNCIAS ..................................................................................................................... 138
10
INTRODUO
O presente trabalho tem como objetivo refletir sobre a parentalidade socioafetiva,
comprovando que essa uma realidade na sociedade brasileira, reconhecida pelo poder
judicirio; mas que, entretanto, no devidamente regulada e protegida pela legislao do
pas.
Demonstrar-se- que, embora a parentalidade socioafetiva seja uma realidade
consolidada, o ordenamento jurdico ptrio no a reconhece e a tutela de forma clara e efetiva,
o que gera muitas dvidas e incertezas; tanto na sociedade, quanto no judicirio. Dessa forma,
resta ao poder judicirio brasileiro encontrar a soluo para as inmeras questes decorrentes
da filiao socioafetiva que lhe so apresentadas, basicamente nos princpios constitucionais
aplicados no direito de famlia.
Nesse sentido, est pesquisa esclarecer como a Constituio da Repblica
Federativa do Brasil de 1988 foi responsvel por trazer uma nova viso da famlia, rompendo
completamente com o paradigma estabelecido. At esse momento, a famlia era socialmente
considerada e juridicamente tratada como uma instituio praticamente intocvel e
indissolvel; cuja manuteno deveria ser preservada a todo custo, ainda que em detrimento
da dignidade e da felicidade de seus integrantes. Dessa forma, era reconhecida apenas a
famlia tradicional; ou seja, aquela constituda pelo matrimnio entre uma mulher e um
homem, e sua prole em comum; hierarquizada, tendo o homem como o seu chefe, a quem a
esposa e os filhos deveriam se submeter; e que visava essencialmente perpetuao gentica
e patrimonial.
Entretanto, a partir da CRFB/88, essa viso ultrapassada e anacrnica de famlia
deixou de ser o nico modelo familiar reconhecido e protegido. Isso porque, a CRFB/88 prev
o princpio da dignidade humana, o qual responsvel por colocar o indivduo no centro de
11
todo o ordenamento jurdico brasileiro; o que, por si s, j impossibilitaria o status de
exclusividade dispensado famlia tradicional, j que nesse caso a instituio se sobrepe aos
prprios indivduos que a integram. Ademais, na mesma direo, a CRFB/88 prev os
princpios da solidariedade, da convivncia familiar e da afetividade, dentre outros; segue a
doutrina da proteo integral, estabelecendo o princpio do melhor interesse das crianas e dos
adolescentes; probe o tratamento discriminatrio dos filhos, tendo em vista a sua origem; e
prev e protege a diversidade familiar.
Assim, com a promulgao da Carta Magna de 1988, a famlia brasileira deixou de
seguir apenas um modelo e de ser tratada como um fim em si mesma; e passou a se originar
de uma pluralidade de formas e a ser tida como um instrumento de realizao e
desenvolvimento pessoal de cada um seus membros.
nesse contexto que se encontra a parentalidade socioafetiva, a qual advm das
relaes de afeto existentes entre mes, pais e filhos, sem que haja vnculo biolgico que os
una. Trata-se de uma nova conjuntura familiar, que deve ser tutelada pelo direito brasileiro,
mas que encontra um poder legislativo inerte e omisso em relao ao tema.
Nesse sentido, no primeiro captulo, comprovar-se- que a famlia e a parentalidade
so construes sociais e culturais; e que, portanto, no seguem um modelo natural, nico e
imutvel. Assim, deixar-se- claro que no decorrer da histria existiram diversos modelos
familiares, os quais esto em constante evoluo, e nos quais surgem vrias formas de
estabelecimento de vnculos de parentalidade.
No segundo captulo, ser mostrado como o direito brasileiro tem se desenvolvido ao
longo do tempo, de modo a acompanhar a evoluo da sociedade; ainda que de forma lenta e
pouco satisfatria, como ocorre hodiernamente. Sero trabalhados os fenmenos da
constitucionalizao do direito civil e da democratizao da famlia; bem como os princpios
constitucionais que tm sido a soluo encontrada pelo poder judicirio para dirimir os litgios
12
decorrentes da parentalidade socioafetiva que lhe so apresentados, haja vista a inrcia do
legislador.
No terceiro captulo, ser esclarecido que, a partir da CRFB/88, todos os modos de
estabelecimento da filiao, independentemente de se originarem de vnculos biolgicos ou
socioafetivos, devem ser reconhecidas e receber o mesmo tratamento do jurdico. Para tanto,
sero trabalhadas as vrias formas de filiao, que so: a biolgica, a homoparental e a
multiparental; a decorrente da adoo, do madrastio, do padrastio e da reproduo assistida.
No quarto captulo, ser demonstrado que a parentalidade socioafetiva gerar os
mesmos direitos e deveres que a biolgica, haja vista que ambas devem ser reconhecidas e
tratadas de forma isonmica. Nesse sentido, sero trabalhados vrios efeitos jurdicos da
parentalidade socioafetiva, quais sejam: a extenso da parentalidade socioafetiva no que tange
ao parentesco, a prestao de alimentos, a guarda dos filhos, o direito de visita, o direito
sucessrio e o direito previdencirio.
Ao final do estudo, buscar-se- comprovar que no merece prosperar qualquer
argumento capaz de colocar a parentalidade socioafetiva margem da sociedade e sem o
reconhecimento e a tutela claros e efetivos do ordenamento jurdico brasileiro. Demonstrar-
se- que os argumentos contrrios aos novos arranjos familiares e parentalidade socioafetiva
no encontram qualquer respaldo na atual realidade social do Brasil e no ordenamento
jurdico ptrio, e que se tratam apenas de ideias baseadas no preconceito, na falta de
informao e na dificuldade que muitos tm de respeitar diferenas e conviver com a
constante e ininterrupta evoluo social.
Para tanto, a pesquisa ser realizada seguindo o mtodo hipottico-dedutivo, tendo
em vista que a pesquisadora identificou um conjunto de proposies que so trabalhadas
como premissas na anlise do problema apresentado.
13
A abordagem do objeto deste estudo ser qualitativa, dessa forma a pesquisadora
pretende utilizar a bibliografia atinente ao tema trabalhado legislao, doutrina e
jurisprudncia a fim de sustentar os argumentos que corroboram a tese defendida.
14
1. FAMLIA E PARENTALIDADE: CONSTRUES SOCIAIS E CULTURAIS
O estudo sobre a famlia, os papis que seus integrantes assumem dentro dessa, e a
relao entre eles; demonstra que essa forma de estruturao da sociedade evoluiu de modo
bastante expressivo desde a pr-histria at os dias atuais. Essa evoluo se deu como
consequncia das inmeras mudanas sociais, ideolgicas, religiosas, polticas e econmicas,
pelas quais a humanidade passa.
Observa-se que as famlias constituem estruturas dinmicas, que surgem da
construo social e cultural de uma sociedade, em determinado lugar e poca; e no do mero
determinismo biolgico ou de paradigmas pr-estabelecidos. Assim, ao longo da histria,
mes, pais e filhos passaram a ocupar posies e a ter funes, obrigaes e prerrogativas
bastante diferentes dentro da famlia.
Rodrigo da Cunha Pereira1 aponta que Jacques Lacan j defendia em seu texto A
Famlia2 de 1938, que a famlia no se tratava de uma estrutura rgida formada simplesmente
por uma mulher, um homem e seus filhos; mas de uma estruturao psquica, em que cada um
de seus membros ocupa um lugar e uma funo; seja de me, de pai ou de filho. Logo, no
necessrio que exista qualquer vnculo biolgico entre os membros, para que se tenha uma
famlia; e a existncia de vnculo biolgico, por si s, no capaz de garantir que cada um
ocupe efetivamente seu lugar e exera sua funo. Nesse sentido, cabe ressaltar que mesmo o
vnculo biolgico foi mitigado at a CRFB/88, pois at ento os filhos biolgicos que no
fossem nascidos da relao matrimonial entre uma mulher e um homem no recebiam o
mesmo tratamento jurdico e social daqueles que nascessem no mbito da famlia tradicional;
o que felizmente no acontece mais nos dias de hoje.
1PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de famlia: uma abordagem psicanaltica. 3.ed. Belo Horizonte: Del Rey,
2003, p.13. 2Jacques Lacan escreveu o texto A Famlia para o tomo VII da Encyclopdia Franaise, o qual foi publicado no
Brasil com o ttulo Os Complexos Familiares.
15
Assim, ao longo do tempo, a famlia deixa de ser apenas uma instituio com vis
eminentemente patrimonialista e de perpetuao gentica; formada por uma mulher e um
homem, unidos exclusivamente pelo matrimnio, e pela prole em comum; marcada pela
inquestionvel autoridade paterna, qual esposa e filhos se subjulgam; e pelos papis pr-
definidos e inalterveis, atribudos a cada um de seus integrantes; e se transforma em um
ambiente de afeto, no qual seus componentes se desenvolvem, e onde a dignidade, a
individualidade e a busca pela felicidade de cada membro devem prevalecer.
Dentro dessa realidade de constante e ininterrupta evoluo familiar, surge a
parentalidade socioafetiva, responsvel por romper de forma evidente e definitiva com o
paradigma do determinismo biolgico originado do matrimnio; como sendo o nico meio de
estabelecimento dos vnculos entre mes, pais e filhos, do qual decorrero direitos e deveres
plenos.
1.1. Terminologias: famlia e parentalidade
O termo famlia vem do latim famulus que se refere ao senhor, seus dependentes e
seus servos. Danda Prado3 ensina que entre os chamados dependentes, incluem-se a esposa e
filhos. Assim, a famlia greco-romana compunha-se de um patriarca e seus fmulos: esposa,
filhos, servos livres e escravos.
Nesse contexto de famlia hierarquizada greco-romana, na qual no havia isonomia
entre a esposa e o marido, tem-se o termo pater familias ou ptrio poder4; o qual atribua ao
3PRADO, Danda. O que famlia? So Paulo: Brasiliense, 1995, p.56.
4Vale lembrar que a ideia de ptrio poder foi trazida pelo Cdigo Civil de 1916, o qual tratou do assunto entre os
artigos 379 e 395. A ideia de ptrio poder e de hierarquia entre os sexos somente foi afastada pela Constituio
da Repblica Federativa do Brasil de 1988, em seu art. 5, inc. I, in verbis: homens e mulheres so iguais em
direitos e obrigaes, nos termos desta constituio; e em seu art. 226, 5, in verbis: Os direitos e deveres
referentes sociedade conjugal so exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
16
marido e pai, a chefia da famlia. A esposa, os filhos, os servos e os escravos deviam
obedincia ao patriarca; o qual tinha, inclusive, poder de vida e morte sobre eles5.
Superando o entendimento de famlia hierarquizada, que tinha o marido/pai como
seu chefe, o que fere frontalmente o princpio da dignidade humana, dentre outros; e a fim de
seguir os ditames da CRFB/88, o Cdigo Civil de 2002 estabeleceu a isonomia entre mulheres
e homens, entre esposas e maridos; e substituiu a ideia de ptrio poder, pela de poder familiar,
a ser exercido igualmente pela a me e pelo pai em relao aos seus filhos6.
O termo parentalidade surge da necessidade de se ter uma expresso que se refira ao
papel e posio atribudos a mes e pais, no que tange s responsabilidades materiais e
afetivas em relao aos seus filhos; sem, entretanto, fazer qualquer aluso a gnero; haja vista
que o portugus no traz uma expresso dissociada da ideia de feminino ou de masculino,
para designar mes e pais. A lngua portuguesa atribui a esses a condio de pais, ou seja,
trata ambos pela palavra que designa o plural de pai. Da a necessidade do neologismo
parentalidade, para que seja possvel o estudo das questes sociais e jurdicas atinentes aos
vnculos parentais, sem que se esteja adstrito s limitaes que as especificaes de gnero
podem trazer.
H idiomas que, diferente do portugus, tm uma expresso para tratar de mes e de
pais sem fazer qualquer referencia a gnero. Como exemplo, o ingls possui o termo
parenthood; o francs, parentalit; e o alemo, elternschaft. O que se pretende, portanto,
investigar o papel que mulheres e homens assumem na condio daqueles que garantem apoio
material, afetivo e psquico aos filhos, independente do gnero de cada um.7
5SILVA JNIOR, Enzio de Deus. A possibilidade jurdica da adoo por casais homoafetivos. 5.ed. Curitiba:
Juru, p.51, 2011. 6O Cdigo Civil de 2002 trata do poder familiar entre os artigos 1.630 e 1.638.
7AMARILLA, Silmara Domingos Arajo. O afeto como paradigma para a parentalidade:os laos e os ns na
constituio dos vnculos parentais. Curitiba: Juru, p.23-24, 2014.
17
O psicanalista francs Paul-Claude Racamier8 foi o primeiro a sugerir os
neologismos parentalidade, parentalit; maternidade, maternalit; e paternidade, paternalit;
ao analisar os estudos sobre a experincia e o processo de se tornar me realizado pelos
psicanalistas anglo-saxes , G.L. Bibring e Th. Benedeck9. Primeiramente, Recamier sugeriu
o termo maternidade, para se referir ao conjunto dos processos psicoafetivos que se
desenvolvem e se integram na mulher por ocasio da maternidade; e ento, criou os outros
dois termos: paternidade e parentalidade.
1.2. Evoluo das famlias: da pr-histria aos dias atuais
Belmiro Pedro Welter10
esclarece que no possvel afirmar ao certo qual a origem
das famlias, mas que existem duas teorias que so as mais defendidas. A primeira seria a
matriarcal, que defende que a famlia se originou de uma realidade caracterizada pela
promiscuidade sexual, em que todas as mulheres pertenciam a todos os homens e que todos os
homens pertenciam a todas as mulheres.
Seguindo uma lgica oposta, h tambm a teoria patriarcal, a qual nega que a origem
da famlia se deu em um contexto de libertinagem sexual, defendendo que o pai sempre foi o
centro da estrutura familiar. Essa teoria seguida por Zierler, Starck, Darwin e Westmarck, os
quais entendem que o esprito exclusivista dos homens impossibilitaria a promiscuidade
defendida pela teoria matriarcal11
; assim, a famlia teria sua origem no patriarcalismo e na
8RACAMIER, apud AMARILLA, op. cit., p.23-24.
9SOLIS-PONTON, Letcia (Org). Ser pai, ser me: parentalidade: um desafio para o terceiro milnio.
Organizao da traduo Maria Ceclia Pereira da Silva. So Paulo: Casa do Psiclogo, 2004, p.2004. 10
WERLTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre filiao biolgica e socioafetiva. So Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003. p. 32-33. 11
PEREIRA, apud AMARILLA, op. cit., p. 28.
18
monogamia. Rodrigo da Cunha Pereira12
baseou-se no texto A Famlia13
de Lacan para
defender essa teoria:
A promiscuidade presumida no pode ser afirmada em parte alguma, nem mesmo
nos casos ditos de casamento grupal: desde o incio existem interdies e leis. As
formas primitivas da famlia tm os seus traos essenciais de suas formas acabadas:
autoridade, se no concentrada no tipo patriarcal, ao menos representada por um
conselho, por um matriarcado ou seus delegados do sexo masculino; modo de
parentesco, herana, sucesso, transmitidos, s vezes distintamente (Rivers) segundo
uma linguagem paterna ou materna. (...). Mas, longe de nos mostrarem a pretensa
clula social, veem-se nessas, quando mais primitivas so, no apenas um agregado
mais amplo de casais biolgicos, mas, sobretudo, um parentesco menos conforme
aos laos naturais de consanguinidade.
A teoria matriarcal, por sua vez, defendida principalmente por Frederich Engels e
parece ser a mais lgica, factvel e razovel. Engels valeu-se, sobretudo, do conhecimento
adquirido por Johann Jacob Bachofen, John Fergusson Mac Lennan e Lewis H. Morgan14
para explicar o surgimento da famlia e ensina que15:
A tolerncia recproca entre os machos e a ausncia de cimes constituram a
primeira condio para que se pudessem formar grupos numerosos e estveis, em
cujo seio, unicamente, podia operar-se a transformao do animal em homem. E,
com efeito, que encontramos como forma mais antiga e primitiva de famlia, cuja
existncia indubitvel nos demonstra a histria, e que ainda hoje podemos estudar
em certos lugares? O matrimonio por grupos, a forma de casamento em grupos
inteiros de homens e grupos inteiros de mulheres pertencem-se mutuamente,
deixando bem pouca margem para os cimes.
Regina Navarro Lins16
esclarece que na pr-histria, durante os milnios
compreendidos entre o perodo paleoltico e incio do perodo neoltico17
, os seres humanos
no faziam qualquer relao entre sexo e reproduo; e tampouco sabiam que os homens
tinham alguma funo na procriao. Acreditava-se que a fertilidade era uma caracterstica
exclusivamente feminina.
12
PEREIRA, op. cit., p. 15-16. 13
Ver notas de rodap n 1 e 2. 14
AMARILLA, op. cit., p. 25. 15
ENGELS, Friedrich. A Origem da famlia, da propriedade privada e do estado. Trad. Ruth M. Klaus. 4. ed.
So Paulo: Centauro, 2012. p. 35. 16
LINS, Regina Navarro. O livro do amor: da pr-histria renascena. V.1. 4.ed. Rio de Janeiro: Best Seller,
2013, p.19. 17
A pr-histria corresponde ao perodo anterior inveno da escrita. O paleoltico caracteriza-se pelo homem
nmade, que se alimentava basicamente de alimentos coletados e caados. O neoltico caracteriza-se pelo fato do
homem ter se tornado sedentrio, comeado a domesticar os animais e a desenvolver a agricultura.
19
A historiadora Riana Eisler18
esclarece que nessa poca, acreditava-se que o corpo da
mulher era um receptculo mgico capaz de gerar novas vidas, e de produzir leite para
alimentar esses novos seres humanos que somente ela era capaz de conceber; que no havia
submisso entre os sexos; que no existia a ideia de casal, e que toda mulher pertencia a todos
os homens, e todo homem, a todas as mulheres; que cada criana tinha vrias mes e vrios
pais, e que somente se conhecia a linhagem materna, j que sequer se sabia que os homens
participavam da reproduo humana.
Engels19
afirmava que as famlias consanguneas, que causam horror hoje por
denotarem a promiscuidade em que viviam os antepassados dos seres humanos, foram a
primeira etapa da famlia e desapareceu h muito, mesmo nos povos mais atrasados. Dentro
dessa realidade h muito superada, Engels identifica a chamada famlia punualana, que teria
sido a primeira a instituir a vedao ao incesto; excluindo pais e filhos e logo depois, tambm
os irmos, das relaes sexuais recprocas.
Sobre as famlias consanguneas Engels20 ensinou:
Nela, os grupos conjugais classificam-se por geraes: todos os avs e avs, nos
limites da famlia, so maridos e mulheres entre si; o mesmo sucede com seus filhos,
quer dizer, com os pais e as mes; os filhos destes, por sua vez, constituem o terceiro
crculo de cnjuges comuns e seus filhos, isto , os bisnetos dos primeiros, o quarto
crculo. Nessa forma de famlia os ascendentes, os pais e os filhos, so os nicos
que, reciprocamente, esto excludos dos direitos e deveres (poderamos dizer) dos
matrimnios. Irmos e irms, primos e primas, em primeiro, segundo e restantes
graus, so todos, entre si, irmos e irms, e por isso mesmo maridos e mulheres uns
dos outros. O vnculo irmo e irm pressupe, por si, nesse perodo, a relao carnal
mtua.
O pai da psicanlise, Sigmund Freud, tambm tratou da questo do incesto no seu
texto Totem Tabu de 1913-1914. Segundo Freud, o totem21
seria o antepassado comum de
determinado cl e seu esprito guardio, e todos aqueles que fizessem parte do mesmo cl;
estando, portanto, subordinadas ao mesmo totem; no poderiam manter relaes sexuais entre
18
LINS, op. cit., p. 19-20. 19
ENGELS, op. cit., p. 37-38. 20
Ibid., p. 36-37. 21
Os totens so normalmente um animal e raramente um vegetal, um fenmeno da natureza ou um objeto.
20
si22
. Assim, acredita-se que a vedao ao incesto teria sido a primeira lei, responsvel por dar
origem a todas as demais.
O tabu do incesto foi criado de forma a barrar a consanguinidade que era inevitvel
at ento, alm de fazer com que o grupo se relacionasse com outras tribos, e no se
restringisse apenas a um pequeno grupo de quarenta ou cinquenta pessoas.23
Gilberto Freyre24
, sem fazer referncia direta a Freud, mas seguindo seu
entendimento; analisou as ideias de incesto e de totem na formao da famlia brasileira em
sua obra Casa Grande Senzala, de 1933:
Fora da noo, embora vaga, do incesto, e da unilateral, da consanguinidade, havia
mais entre os indgenas do Brasil, como restrio ao intercurso sexual, o totemismo
segundo o qual o indivduo do grupo que se supusesse descendente ou protegido de
determinado animal ou planta no se podia unir a mulher de grupo da mesma
descendncia ou sob idntica proteo. Sabe-se que a exogamia por efeito do
totemismo estende-se a grupos mais distantes uns dos outros em relaes de sangue.
Esses grupos formam, entretanto, alianas msticas correspondentes s do
parentesco, os supostos descendentes do javali ou da ona ou do jacar evitando-se
tanto quanto irmo e irm ou tio e sobrinha para casamento ou unio sexual.
Segundo Lewis Henry Morgan25, o fim dos casamentos consanguneos resultou em
uma raa mais forte tanto fsica, quanto mentalmente; pois como consequncia dessa mudana
significativa de comportamento, os crnios e os crebros humanos cresceram de forma a
compreender a capacidade das tribos que se uniam.
Acredita-se que quando se iniciou a domesticao dos animais, os seres humanos
passaram a observ-los por longos perodos de tempo; o que os fez perceber, que as fmeas
somente produziam leite e geravam novos animais, quando havia machos no grupo.
provvel que tenha sido dessa forma que os seres humanos entenderam que as mulheres no
eram as nicas que tinham a caracterstica da fertilidade, e que os homens tambm eram
indispensveis reproduo humana.26
22
PEREIRA, op. cit., p. 16-17. 23
LINS, op. cit., p.22-23. 24
FREYRE, apud PEREIRA, op. cit., p. 21. 25
MORGAN, apud ENGELS, op. cit., p. 45. 26
LINS, op. cit., p.21-22.
21
O sedentarismo dos seres humanos, sua nova capacidade de produzir seus prprios
alimentos pela agricultura e pelo pastoreio, e artefatos de metais e de tecidos; gerou um
problema que a humanidade at ento no tinha enfrentado: de quem seriam essas riquezas
produzidas? E para quem elas deveriam ser deixadas com a morte do seu proprietrio?
provvel que inicialmente essas novas riquezas se tornassem propriedade de toda a tribo e
que, mais tarde, passaram a ser da famlia do proprietrio que morreu.
As riquezas produzidas pelos homens comearam ento a crescer mais que as
femininas, tendo em vista que eles podiam dedicar-se mais agricultura e ao pastoreio, pois
as mulheres eram limitadas pela gravidez, amamentao e criao dos filhos. Assim, o papel
do homem dentro da nova estrutura familiar fortaleceu-se e eles passaram a exigir que seus
filhos herdassem suas riquezas quando eles morressem, e essa nova situao levou ao fim das
chamadas famlias sindismicas27
, fundadas no matriarcado e no direito materno. O direito
hereditrio materno foi ento substitudo pelo direito hereditrio paterno,28
para tanto, foi
necessrio impor mulher a monogamia; caso contrrio, no seria possvel determinar a
linhagem paterna, capaz de garantir o direito hereditrio paterno. Como consequncia o
homem apoderou-se tambm da direo da casa; a mulher viu-se degradada, convertida em
servidora, em escrava da luxria do homem, em simples instrumento de reproduo.29
.
Nesse sentido, Luiz Roberto de Assumpo30
ensina:
A famlia era matrimonializada e patriarcal, com predomnio do homem, na
qualidade de chefe da famlia, com frreo poder marital, e a subordinao total da
mulher. O princpio da indiscutvel paternidade do marido da me era garantido pelo
domnio total sobre a mulher, que deveria ser casta e fiel a ele, podendo apenas
permanecer no lar. Fundava-se a monogamia, extinguindo-se quase todos os direitos
civis da mulher, equiparando-a aos filhos e alijando-a da sociedade.
27
Engels explica em seu livro A Origem da famlia, da propriedade privada e do estado, pgina 45, que as
famlias sindismicas eram matriarcais, fundadas no direito materno; onde uma mulher e um homem passaram
a formar um casal. Nessa famlia, deixa de existir o casamento por grupos; era permitida a infidelidade ocasional
masculina, mas mulher era imposta a fidelidade, e sua desobedincia era cruelmente castigada; o vnculo
conjugal era facilmente dissolvido por qualquer uma das partes, hiptese em que os filhos pertenciam
exclusivamente me. 28
ENGELS, op. cit., p. 52-56. 29
Ibid., p. 55. 30
ASSUMPO, apud AMARILLA, op. cit., p. 27-28.
22
Nessa nova conjuntura de patriarcalismo e de absoluta preponderncia do homem
sobre a mulher, surgiram a Legislao Mosaica, o Cdigo de Hamurabi e o Cdigo de Manu;
que eram legislaes com enfoque nitidamente religioso, e que estabeleciam a supremacia do
marido sobre sua esposa, do pai sobre seus filhos e do senhor sobre seus servos.31
Com o advento do Cristianismo, a Igreja Catlica apoderou-se das principais
manifestaes da vida de uma famlia: o nascimento, com o batismo; o casamento,
determinando que o matrimnio entre uma mulher e um homem era a nica forma de unio
entre duas pessoas capaz de formar uma famlia; a sexualidade das pessoas, impondo a
virgindade e castidade s mulheres e estabelecendo que o sexo somente pudesse ocorrer para
procriao e aps o casamento importante ressaltar que sempre foi dada maior liberdade
sexual ao homem, embora de forma dissimulada e velada, como ainda ocorre ; o
estabelecimento de famlias patriarcais, nas quais a esposa e os filhos deviam obedincia ao
marido/pai, que era o chefe da famlia; alm de condenar veementemente a dissoluo do
matrimnio, o sexo para o prazer, as relaes entre pessoas do mesmo sexo, e outras questes
que no eram convenientes aos seus interesses.
Dessa forma, a Igreja Catlica passou a regular toda a vida familiar dos indivduos;
estabelecendo regras rgidas, inquestionveis e imutveis, capazes de manter a estrutura
familiar intacta durante muito tempo, ainda que custa da dignidade e da felicidade de suas
integrantes.
Igreja sempre foi interessante que a famlia se mantivesse como uma instituio
forte, slida e intocvel; capaz de manter, por sua vez, o poder da prpria Igreja. Ou seja, a
Igreja se presta a manter a famlia fundada em uma estrutura inabalvel; ao passo que
famlia cabe manter o poder da Igreja, transmitindo de forma impositiva a f catlica aos seus
descentes.
31
AMARILLA, op. cit., p.28.
23
Essa dinmica ainda ocorre hodiernamente, sobretudo em sociedades menos
desenvolvidos em termos de educao, cultura, economia e tica, como a brasileira. Nessas
sociedades, a religio responsvel por estabelecer valores morais dogmticos e
inquestionveis que lhes so convenientes, impossibilitando que as pessoas os contestem e
desenvolvam seus prprios valores ticos como consequncia de suas prprias experincias e
pensamentos. Trata-se da eterna e incessante busca da Igreja pela manuteno e aumento de
seu poder, por meio da sustentao de uma sociedade patriarcal, fundada nas chamadas
famlias tradicionais; sobre a qual ensina Danda Prado32:
Numa sociedade pr-industrial, inconcebvel dissociar famlia e religio. Tanto no
plano social como no individual, tudo o que toca vida orgnica da famlia conta
com o apoio e controlado pela religio. Em troca, a instituio religiosa
sustentada pela famlia, (...), colaborando de forma primordial transmisso das
crenas, ao cumprimento das prticas religiosas, aceitao das punies impostas.
Dessa forma, a Igreja que tanto ou mais tradicional que a famlia, sacraliza as
principais manifestaes da vida familiar, como o nascimento, o casamento, a morte
etc., e condena (punindo conforme o caso) a interrupo da gravidez, o divrcio, o
exerccio livre da sexualidade etc. (...). Os deuses, com frequncia, apresentam um
modelo eterno e supremo de famlia extensa e patriarcal.
Observa-se que a Igreja Catlica, ainda hoje, insiste em ignorar todos os avanos
cientficos, tecnolgicos e sociais; que se intensificaram, sobretudo a partir do sculo XX; a
fim de manter a ideia anacrnica de famlia tradicional, to indispensvel manuteno do
poder eclesistico. Sobre esse progresso, Wilma Vivas33 esclarece que:
o advento da plula anticoncepcional e outros mtodos contraceptivos, a prpria
emergncia dos movimentos feministas (...), a virgindade rejeitada enquanto tabu ou
como pr-requisito para o casamento, a admisso da maternidade fora do casamento,
a evoluo da cincia e da pesquisa com a fecundao in vitro, a aceitao da mulher
no mercado de trabalho (...), a ocorrncia de mudanas quanto ao exerccio da
paternidade constituram-se como elementos balizadores ao direcionamento de um
novo olhar sobre a composio das famlias
Prevendo as inmeras mudanas pelas quais a famlia passaria, em decorrncia dos
muitos avanos cientficos alcanados pela humanidade no sculo XX, o visionrio jurista
32
PRADO, op. cit., p. 74. 33
VIVAS, apud JNIOR, Enzio de Deus Silva. A possibilidade jurdica da adoo por casais homoafetivos.
5.ed. Curitiba: Juru, p.53, 2011.
24
Joo Baptista Villela34 profetizou, no longnquo ano de 1979, a desbiologizao da
paternidade sobre a qual ensina que:
[...] cumpre estimar a importncia do chamado beb de proveta. (...). Mas como
corte profundo na continuidade sexo-reproduo, (...). A possibilidade de obter
gratificao sexual sem os riscos da gravidez e, j agora, a possibilidade inversa, de
promover a reproduo sem atividade sexual, com a fecundao in vitro, tendero a
paternidade rigorosamente um ato de opo. Antes, no se podia ter o sexo sem
aceitar, ao menos eventualmente, os nus da paternidade. (...).
Chegados plenitude desse novo estgio, os filhos, mais do que nunca, sero
experimentados no como salrio do sexo, mas como o complemento livremente
buscado e assumido de um empenho de personalizao, que lana suas razes nos
poderoso dinamismo transformacinal do homem, que o dom de si mesmo.
Pelo exposto, so notrias as modificaes pelas quais as famlias tm passado no
mundo e no Brasil, sobretudo nas ltimas dcadas. Assim, mesmo que ainda vivamos em uma
sociedade eminentemente misgina e patriarcal e com ndices alarmantes de violncia
domstica perpetrada principalmente pelo marido/pai contra sua esposa ou companheira e
seus filhos; as mulheres e os filhos no so mais subjugados ao marido e ao pai, como se
fossem propriedade ou inferiores; como ocorreu praticamente por toda a histria da famlia,
desde sua gnese; como esclarece Jorge Shiguemistu Fujita35
:
Na idade Ps-Moderna, a relao entre homem e mulher, no mbito da sociedade
conjugal e familiar, passou da subordinao da mulher ao conceito de coordenao
com o marido sendo certo que a verticalidade cede ideia de horizontalidade. Para a
captao de recursos necessrios ao seu dia a dia, o marido e a mulher demonstram a
necessidade de juntar as foras dentro do campo do trabalho. Assim, no mais existe
espao para a mulher ficar, no lugar conjugal, cuidando dos afazeres domsticos dos
filhos, enquanto o marido se preocupa com os ganhos necessrios para enfrentar as
despesas do casal e dos filhos.
Percebe-se, portanto, que os papis de mulheres, homens, crianas e adolescentes e
as relaes entre eles dentro da famlia sofreram inmeras mudanas ao longo da histria.
Especialmente nas ltimas dcadas, essas mudanas tm sido enormes e constantes; tornando
as relaes familiares cada vez mais igualitrias, pautados na dignidade humana, na
solidariedade, na afetividade, na parceria, no companheirismo e no respeito; observando
34
VILLELA, Joo Baptista. Desbiologizao da paternidade. Revista da Faculdade de Direito da UFMG 21,
Belo Horizonte, ano XXVII, p. 400-418, maio 1979. 35
FUJITA, apud AMARILLA, op. cit., p.31.
25
sempre a individualidade de cada um; e visando realizao pessoal e felicidade de cada
pessoa.
1.3. Evoluo dos vnculos de parentalidade: o paradigma da consanguinidade
A relao de parentalidade tambm sofreu muitas modificaes, sobretudo nos
ltimos anos, seguindo a relevante evoluo da famlia ao longo dos tempos. Rememora-se
que parentalidade, como j esclarecido, um neologismo que se refere relao entre as
mes, os pais e seus filhos, mas sem que se faa qualquer aluso a gnero, como ocorre com o
termo pais utilizado tradicionalmente.
Durante quase toda a histria da humanidade, considerou-se que a parentalidade
adivinha essencialmente das relaes de consanguinidade advindas da famlia tradicional;
havendo por parte da sociedade e do direito a explcita distino entre os filhos nascidos
dentro desse cenrio e fora dele; bem como entre os filhos biolgicos e os adotivos. Nesse
contexto, as relaes sexuais e amorosas fora do matrimnio entre pessoas solteiras ou
adlteras, no tinham qualquer relevncia jurdica e eram mal vistas pela sociedade; sobretudo
as relaes entre pessoas do mesmo sexo, as quais eram marginalizadas pela sociedade e pelo
direito.
Essa famlia tradicional, ainda to defendida como sendo a nica, pela Igreja e por
reacionrios, originou-se no Direito Romano, o qual determinava que o culto domstico36
deveria ser transmitido apenas ao filho homem, advindo do matrimnio. Considerava-se que
36
Silvia Ozelame Rigo Moschetta baseando-se nos ensinamentos de Fustel de Coulanges esclarece sobre a
importncia do culto domstico na famlia antiga, em seu livro Homoparentalidade: direito adoo e
reproduo humana assistida por casais homoafetivos, pgina 23, que: Antes de adorar deuses, os homens
adoraram os mortos; por isso, a religio dos mortos parece ter sido a mais antiga entre os seres humanos. A
adorao significava prestar culto, por meio do fogo sagrado. Foi a partir do culto aos antepassados, por meio de
adoraes, como o fogo, que a formao da famlia teve incio. A religio representou o principal elemento
constitutivo da famlia antiga; ou seja, pelo culto ao mesmo antepassado, surgiram as entidades familiares e, por
meio do casamento, a mulher abandonou o culto do lar paterno, para prestar culto ao antepassado a que o marido
pertencia. Os integrantes da famlia antiga eram unidos pela religio domstica e pelo culto aos antepassados,
que selavam a unio familiar.
26
tal tarefa no poderia ser transmitida s filhas e menos aos filhos ditos ilegtimos, que seriam
aqueles no advindos do matrimonio. Dessa forma, a famlia tradicional perpetuaria o poder e
a relevncia da Igreja ao longo de geraes e esta, por sua vez, regularia as relaes privadas e
familiares, de forma a mant-las imutveis e inabalveis; formando uma simbiose perfeita,
que prevaleceu durante sculos e tenta sobreviver nos dias de atuais.
Sobre essa famlia tradicional, Luiz Roberto Assumpo37
salienta ao tratar das
reflexes feitas por Andre Michel em Modle sociologiques de la famille dans ls socits
contemporanies. Archives de Philosophie du Droid, que:
A diviso de papis familiares no modelo de famlia tradicional, compatvel com o
descrito no cdigo de 1916, foi forjada, tendo como critrios sexo e idade. Isso deu
origem a vrias msticas que tinham por objetivo sensibilizar e consolidar o conjunto
dos papis existentes na famlia tradicional: a mstica feminina, que locou a mulher
num papel domstico e afetivo [...] definido de modo complementar quele do
marido; a mstica patriarcal, que atribui ao homem qualidades que o destacavam
por sua inteligncia, coragem e iniciativa, e que lhe gerava o respeito dos demais
membros da famlia; e a mstica familiar tradicional, decorrente da relao de ambos
e articulada sobre as ideias de complementaridade dos sexos.
Assim, o que estabelecia as relaes de parentalidade no era nem mesmo os
vnculos biolgicos na verdade, j que esses eram mitigados no caso dos filhos havidos fora
do matrimonio, e das filhas, que sempre foram tratadas com menos importncia e respeito que
os filhos; mas sim as regras que a Igreja Catlica entendia que seriam mais convenientes
manuteno de seu poder e proteo de seus interesses. Nesse sentido, Fustel de
Coulanges38
esclarece que:
O lao de sangue isolado no constitua para o filho, a famlia: era-lhe necessrio o
lao do culto. Ora, o filho nascido de mulher no associada ao culto do esposo pela
cerimnia de casamento no podia, por si prprio, tomar parte do culto. No tinha o
direito de oferecer o repasto fnebre, e a famlia no se perpetuaria por seu
intermdio.
37
ASSUMPO, apud AMARILLA, op. cit., p.39. 38
COULANGES, apud AMARILLA, op. cit., p.36.
27
No Brasil, o catolicismo deixou de ser a religio oficial apenas com a Constituio da
Repblica de 189139
, que finalmente secularizou o Estado Brasileiro, quando passou a ser
reconhecido juridicamente apenas o casamento civil e no mais a religioso. Essa importante
mudana poltica-jurdica possibilitou o reconhecimento da filiao natural dentro da famlia e
da sociedade no que tange a questes afetivas e patrimoniais, ainda que o Cdigo Civil de
1916 tenha regulado as relaes familiares sob a gide da religio e da discriminao.40
Sob a vigncia do Cdigo Civil de 1916 surgiram vrias leis esparsas responsveis
por regular as relaes familiares e privadas; de modo que, ainda que de forma lenta,
superficial e incipiente, as relaes familiares passassem a ser norteadas cada vez mais pela
dignidade, pela igualdade, pela liberdade de autodeterminao, pelo respeito e pelo afeto.
Entretanto, essa evoluo teve seu grande marco e consolidou-se apenas no final do
sculo XX, com a CRFB/88; quando mulheres e homens comearam a ser tratados de forma
isonmica, quando crianas e adolescente passaram a ser protegidos como sujeitos de direitos
e foi proibida qualquer forma de tratamento desigual entre os filhos, seja no plano afetivo, no
social ou no econmico. A partir de ento, os filhos advindos do matrimnio, adotivos,
adulterinos, incestuosos e naturais passaram a ser simplesmente, filhos; sem qualquer
adjetivao.
39
BRASIL. Constituio da Repblica dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. Disponvel em:
. Acesso em: 25 jun. 2016. Art. 72,
4: A Repblica s reconhece o casamento civil, cuja celebrao ser gratuita. 40
AMARILLA, op. cit., p.28.
28
2. EVOLUO DO DIREITO DE FAMLIA BRASILEIRO:
CONSTITUCIONALIZAO DO DIREITO CIVIL E O FIM DA DICOTOMIA
DIREITO PBLICO X DIREITO PRIVADO
O estudo da evoluo do direito de famlia brasileiro comprova que a legislao tem
sido modificada de forma bastante lenta e pouco satisfatria ao longo da histria. Entretanto,
aps a promulgao da CRFB/88, tornou-se ainda mais urgente que o legislador brasileiro no
apenas adapte a legislao atinente ao direito de famlia s necessidades sociais, mas tambm
prpria Constituio; pois se trata de uma legislao em muitos aspectos ultrapassada e em
dissonncia com os princpios constitucionais, como no que se refere parentalidade
socioafetiva.
2.1. Evoluo do direito de famlia brasileiro: da Constituio do Imprio do Brasil de
1824 at a Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988
A famlia do direito romano, como j foi esclarecido, era regida pelo princpio da
autoridade paterna; segundo o qual o pater familias era o chefe e a ele estavam subordinados
sua esposa, seus filhos e as esposas destes. O pater tinha direitos absolutos sobre os filhos e a
esposa; ele podia, inclusive, vender, imprimir castigos corporais e at mesmo matar seus
filhos; quanto esposa, poderia at mesmo repudi-la unilateralmente se assim o quisesse.
A famlia romana exercia um relevante papel nas esferas econmica, religiosa,
poltica e jurisprudencial; cabendo ao ascendente comum vivo e mais velho a administrao
29
do patrimnio familiar, oficiar o culto dos deuses domsticos41
, exercer o papel poltico e
dirimir eventuais conflitos.
Os romanos acreditavam que era indispensvel a existncia de affectio para que o
casamento fosse realizado e mantido, e que se essa desaparecesse, seria possvel a dissoluo
da unio. No entanto, o imperador Constantino no sculo IV, deu uma conotao crist
entidade familiar, que passou a ter que seguir o direito cannico, para o qual o matrimnio era
uma unio indissolvel. Os canonistas defendiam a ideia de que o matrimnio era um
sacramento e que como tal era realizado por Deus e no poderia ser desfeito pelos homens.
Nesse sentido h a expresso latina, quod Deus conjunxit homo non separat42
.
Assim, como foi explicado no primeiro captulo, na idade mdia a Igreja Catlica
passou a regular de forma exclusiva e expressa no apenas o casamento, mas quase todas as
questes atinentes s relaes familiares.
Nesse sentido, o direito de famlia brasileiro sempre foi fortemente influenciado
pelos direito romano, cannico e germnico; sendo notria a preponderncia do direito
cannico em decorrncia da colonizao portuguesa, o que se percebe pelas Ordenaes
Filipinas e pelo Cdigo Civil de 1916.
O processo de abandono do modelo tradicional de famlia, em direo ao modelo
eudemonista tem sido lento, mas constante. Logo, a estrutura familiar rgida,
matrimonializada, hierrquica, patrimonialista e que visa fundamentalmente procriao est
cedendo lugar ideia de que o que deve prevalecer so as relaes afetivas, ainda que essas
no coincidam com os vnculos biolgicos ou matrimoniais. Dessa forma, a desvinculao da
parentalidade em relao matrimonialidade e consanguinidade, um fenmeno recente; e
ainda polmico e controverso para os setores atrasados e reacionrios da sociedade, do
41
Ver nota de rodap n 36. 42
Expresso em latim que significa: o que Deus uniu o homem no separa.
30
parlamento e do judicirio; mas uma realidade, que a cada momento ganha mais
reconhecimento e proteo, como deve ser.
Essa evoluo da famlia brasileira intensificou-se na segunda metade do sculo
XIX, como consequncia da crescente migrao da populao rural para as cidades, quando se
passou a sofrer maior influencia da cultura dos colonizadores europeus. O modelo tradicional
de famlia predominou ainda por mais de um sculo; entretanto, a evoluo no sentido de se
dispensar tratamento isonmico entre os gneros, e de respeitar os filhos como sujeitos e no
como objetos de direitos, e independente de sua origem, nunca mais cessou.43
Sobre esse
avano, Silmara Domingos Arajo Amarilla44
ensina que:
O papel secundrio, submisso e de obedincia praticamente servil dos filhos ao pai,
como chefe do lar e detentor dos meios de produo e sustento, tambm passou a
sofrer os influxos do aumento do grau de instruo da prole, repercutindo
igualmente nesses novos rumos a emancipao econmica dos filhos, que,
dissociando-se do ambiente de produo domstico, alcanaram novos voos,
angariando outras perspectivas.
A reboque dessas ebulies sociais veio o Direito tentando, com os instrumentos dos
quais dispunha e diante do plexo de interesses titularizados pelos detentores do
poder poca, formatar esses movimentos renovatrios do arqutipo familiar.
Nesse contexto de constante progresso social e familiar, a legislao brasileira
tambm se modificou e tratou a famlia com maior ou menor relevncia e de formas distintas
ao longo da histria do direito brasileiro.
As duas primeiras Constituies Brasileiras, de 1824 e de 1891, tinham uma
tendncia individualista e liberal e por isso no tratavam muito do tema famlia. A primeira
abordou apenas questes atinentes famlia real e de forma bastante sucinta, em apenas 11
artigos. A segunda foi ainda mais concisa, tratando apenas do reconhecimento do casamento
civil, dispensando ao assunto somente o art. 72, 4; como decorrncia da separao entre o
Estado e a Igreja determinada pelo Decreto n. 119-A/1890.
Vale salientar, que o Decreto n. 181/1890, cujo autor foi Rui Barbosa, j determinava
que apenas o casamento civil fosse reconhecido no Brasil. Esse Decreto tratou ainda de outras
43
AMARILLA, op. cit., p.43-44. 44
Ibid., p. 44.
31
questes atinentes ao casamento, tais como: formalidades, impedimentos, oposio, provas,
efeitos, causas de nulidade e de anulao, posse de filhos e divrcio. Quanto ao divrcio
importante registrar que esse era responsvel apenas por permitir a separao de corpos, seja
por justa causa, seja por mtuo consentimento; mas no era capaz de dissolver o vnculo
conjugal45
.
Sob a gide da Constituio Brasileira de 1891, editou-se o Cdigo Civil de 1916 que
vigorou at o Cdigo Civil de 2002, o qual entrou em vigor no dia 11 de janeiro de 2003. O
CC/16 praticamente reproduziu o Decreto n. 181, tendo como diferena: o fato de substituir a
expresso divrcio por desquite, j que se tratava apenas da separao de corpos e no da
dissoluo do vnculo conjugal; e o reconhecimento apenas da famlia tradicional,
matrimonializada, patriarcal, hierarquizada, patrimonialista e que buscava a perpetuao
gentica.46
Silmara Domingues Arajo Amarilla47
esclarece que:
[...] a sociedade sobre a qual recai o contedo normativo do Cdigo de 1916 ainda
era basicamente rural, desempenhando a famlia de ento um papel ainda de
produo e mecanismo garantidor dos meios de sobrevivncia do grupo domstico.
(...) exercia o homem o papel de direo, administrando os bens comuns e exercendo
o direito de determinar at mesmo o domiclio do casal e, portanto, da famlia.
mulher competia o desempenho das funes de esposa e me, permanecendo
subserviente figura de procriadora e cuidadora, pesando-lhe ainda sobre os ombros
a castrao social, jurdica e moral garantia e salvaguarda de sua pureza e retido.
Logo, no havia isonomia entre a esposa e o marido, e entre a me e o pai; os filhos
eram considerados objetos e no sujeitos de direito; a famlia era criada exclusivamente pelo
matrimnio entre uma mulher e um homem, e tinha um objetivo eminentemente patrimonial e
de perpetuao gentica.
Era prevista uma estrutura familiar hierarquizada, em que o homem era o chefe da
famlia; e como tal, exercia de forma exclusiva o poder sobre seus filhos, por meio do ptrio
45
Ibid., p. 44-45. 46
Ibid., p.45. 47
Ibid., p.45.
32
poder; o qual lhe garantia o direito de determinar a vida dos filhos, podendo fazer inclusive
escolhas por eles, como no que tange a profisso que seguiriam e com quem se casariam.
O CC/16 diferenciava os filhos concebidos na constncia do casamento, os quais
eram chamados de legtimos; dos adulterinos, dos naturais, dos incestuosos e dos esprios,
que eram considerados ilegtimos. Havia ainda uma diferena de tratamento entre os filhos
biolgicos e os adotivos.
No que concerne ao aspecto patrimonialista, a famlia tradicional visa manuteno
do patrimnio dentro de um mesmo ncleo familiar, dessa forma o CC/16 dispensava
tratamento discriminatrio aos filhos no oriundos do matrimnio. Assim, a princpio, o
direito herana cabia apenas aos filhos biolgicos advindos do matrimnio; e mais tarde
passou-se a dar algum direito aos filhos adotivos e aos biolgicos originados fora desse
cenrio. Segundo Silmara Domingues Arajo Amarillha48
:
O timbre patrimonialista do modelo tradicional de famlia era igualmente
identificado a partir do tratamento assimtrico dispensado prole dita legtima e
ilegtima (...). Os filhos concebidos no mago desses consrcios informais, diante da
ausncia da legitimidade da relao mantida por seus pais, eram penalizados no s
sob o aspecto patrimonial deixando de ser-lhes assegurada qualquer assistncia
material, tampouco, o direito de herana -, mas tambm do ponto de vista afetivo,
negando-lhes frequentemente seus ascendentes a prpria condio filial. Situava-se,
pois, a prole reputada ilegtima em uma espcie de limbo afetivo, notadamente sob a
fronte paterna.
Percebe-se que o Cdigo Civil de 1916, reconhecia e defendia apenas a famlia
tradicional; e seu carter patrimonialista, patriarcal e com fim reprodutivo; o que perdurou
mesmo depois da CRFB/88. Foram necessrios cerca de 14 anos desde a promulgao da
CRFB/88, para que esse diploma legal fosse finalmente substitudo pelo Cdigo Civil de
2002.
Maria Berenice Dias49
ensina que:
O antigo Cdigo Civil, que datava de 1916, regulava a famlia do incio do sculo
passado, constituda unicamente pelo matrimnio. Em sua verso original, trazia
estrita e discriminatria viso de famlia, limitando-a ao casamento. Impedia sua
48
Ibid., p. 42. 49
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famlias. 10. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p32.
33
dissoluo, fazia distines entre seus membros e trazia qualificaes
discriminatrias s pessoas unidas sem casamento e aos filhos havidos dessas
relaes. As referncias feitas aos vnculos extramatrimoniais e aos filhos ilegtimos
eram punitivas e serviam exclusivamente para excluir direitos, na v tentativa de
preservao do casamento.
A Constituio de 1937 mais uma vez tutelou apenas a famlia tradicional, mas
trouxe como inovao, a possibilidade de os filhos naturais serem reconhecidos e elevados ao
mesmo status dos filhos ditos legtimos, como prev o art. 126,50
in verbis: Aos filhos
naturais, facilitando-lhes o reconhecimento, a lei assegurar igualdade com os legtimos,
extensivos queles os direitos e deveres que em relao a estes incumbem aos pais.
A Constituio de 1937 foi responsvel ainda, por determinar os deveres parentais
em relao prole; e por configurar o abandono moral, fsico ou intelectual dos filhos
crianas e adolescentes como falta grave;51
nos termos do art. 12752
.
Na esfera infraconstitucional, houve uma evoluo nesse perodo no que tange ao
tratamento dispensado famlia e parentalidade, com a edio da Lei n. 3.200 de 1941;
posteriormente alterada pelo Decreto-Lei n. 5.213 de 1943, que determinou que, in verbis: o
filho natural, enquanto menor, ficar sob o poder do progenitor que o reconheceu, e, se ambos
o reconhecerem, sob o do pai, salvo se o juiz decidir doutro modo, no interesse no menor.
O Decreto-lei n. 4.737/4253
, posteriormente regulado pela Lei n. 883/4954
,
determinava que os filhos havidos fora do matrimnio somente poderiam ser reconhecidos,
50
AMARILLA op. cit., p.47. 51
Ibid., p. 48. 52
BRASIL. Constituio dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937. Disponvel em: . Acesso em: 25 jun. 2016. Art 127 - A
infncia e a juventude devem ser objeto de cuidados e garantias especiais por parte do Estado, que tomar todas
as medidas destinadas a assegurar-lhes condies fsicas e morais de vida s e de harmonioso desenvolvimento
das suas faculdades. O abandono moral, intelectual ou fsico da infncia e da juventude importar falta grave dos
responsveis por sua guarda e educao, e cria ao Estado o dever de prov-las do conforto e dos cuidados
indispensveis preservao fsica e moral. Aos pais miserveis assiste o direito de invocar o auxlio e proteo
do Estado para a subsistncia e educao da sua prole. 53
BRASIL. Decreto-lei n. 4.737, de 24 de setembro de 1942. Disponvel em . Acesso em: 25 jun. 2016. Art. 1: O filho havido pelo cnjuge fora
do matrimnio pode, depois do desquite, ser reconhecido ou demandar que se declare sua filiao. 54
BRASIL. Lei n. 883, de 21 de outubro de 1949. Disponvel em: . Acesso em: 25 jun. 2016. Art. 1: Dissolvida a sociedade conjugal, ser permitido a
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del4737.htmhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del4737.htmhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1930-1949/L0883.htmhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1930-1949/L0883.htm34
por qualquer dos cnjuges, aps a dissoluo da sociedade conjugal; e ainda dispensava
tratamento desigual e discriminatrio no que tange s questes patrimoniais, considerando a
origem da relao de parentalidade entre me, pais e filhos55
. Dessa forma, filhos biolgicos
havidos fora do matrimnio, filhos adotivos e filhos adulterinos, por exemplo, no teriam os
mesmos direitos assistncia material e herana que os filhos biolgicos advindos do
matrimnio.
As Constituies de 1946 e de 1967 ratificaram a indissolubilidade do vnculo
matrimonial, previram o matrimnio como a nica forma legitima de originar a famlia, e
reconheceram os efeitos civis do casamento religioso,56
nos termos dos artigos 163, da CF de
1946 e 167, da CF de 1967.57
A Lei n. 883 de 1949 determinou que todos os filhos advindos de relaes
extramatrimoniais poderiam ser reconhecidos, desde que houvesse a mudana de status da
sociedade conjugal do ascendente pela morte, pelo desquite ou pela anulao do matrimnio,
nos termos do art. 1, in verbis: Dissolvida a sociedade conjugal, ser permitido a qualquer
qualquer dos cnjuges o reconhecimento do filho havido fora do matrimnio e, ao filho, a ao para que se
declare a filiao. 55
BRASIL. Lei n. 883, de 21 de outubro de 1949. Disponvel em: . Acesso em: 25 jun. 2016. Art. 2: O filho reconhecido na forma desta Lei, para efeitos
econmicos, ter o direito, a ttulo de amparo social, metade da herana que vier a receber o filho legtimo ou
legitimado. 56
AMARILLA op. cit., p.48-49. 57
BRASIL. Constituio dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946. Disponvel em: < http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46.htm>. Acesso em: 25 jun. 2016. Art 163 - A
famlia constituda pelo casamento de vnculo indissolvel e ter direito proteo especial do Estado. 1 - O
casamento ser civil, e gratuita a sua celebrao. O casamento religioso equivaler ao civil se, observados os
impedimentos e as prescries da lei, assim o requerer o celebrante ou qualquer interessado, contanto que seja o
ato inscrito no Registro Pblico. 2 - O casamento religioso, celebrado sem as formalidades deste artigo, ter
efeitos civis, se, a requerimento do casal, for inscrito no Registro Pblico, mediante prvia habilitao perante a
autoridade competente.
BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil, de 24 de janeiro de 1967. Disponvel em: . Acesso em: 26 jun. 2016. Art 167 - A
famlia constituda pelo casamento e ter direito proteo dos Poderes Pblicos. 1 - O casamento
indissolvel. 2 - O casamento ser civil e gratuita a sua celebrao. O casamento religioso equivaler ao civil
se, observados os impedimentos e as prescries da lei, assim o requerer o celebrante ou qualquer interessado,
contanto que seja o ato inscrito no Registro Pblico. 3 - O casamento religioso celebrado sem as formalidades
deste artigo ter efeitos civis se, a requerimento do casal, for inscrito no Registro Pblico mediante prvia
habilitao perante, a autoridade competente. 4 - A lei instituir a assistncia maternidade, infncia e
adolescncia.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46.htmhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46.htm35
dos cnjuges o reconhecimento do filho havido fora do matrimnio e ao filho a ao para que
se lhe declare a filiao.58
A Lei n. 4.121 de 1962, conhecido como Estatuto da Mulher Casada, foi responsvel
por devolver a capacidade mulher casada; que at ento tinha sua capacidade civil limitada
pelo matrimnio; tendo, por exemplo, que pedir autorizao ao marido para trabalhar; alm de
deferir-lhe bens reservados, e garantir-lhe a propriedade dos bens por ela adquiridos como
fruto de seu trabalho.
A EC n. 9/77 e a Lei do Divrcio (Lei n. 6.515/77), alterando a Lei n. 883 de 1949,
facilitou a dissoluo da sociedade matrimonial, o que certamente mitigou seu papel absoluto
e hegemnico no estabelecimento das relaes parentais e de suas consequncias sociais e
jurdicas. Trata-se da primeira lei que permitiu que qualquer dos genitores, mesmo que
casado, reconhecesse eventuais filhos extramatrimoniais; o que poderia ser feito apenas por
testamento cerrado. Determinou tambm, o tratamento isonmico entre os filhos
consanguneos, independente de sua origem.
Em 1984, sobreveio a Lei n. 7.250, responsvel por modificar a Lei n. 883/4959
de
forma a permitir que o cnjuge que estivesse separado de fato, h pelo menos cinco anos
contnuos, pudesse reconhecer os filhos havidos fora do casamento.60
No ano de 1988, foi promulgada a Constituio da Repblica Federativa do Brasil, a
qual certamente o marco no que tange ao tratamento jurdico brasileiro dispensado famlia
e a parentalidade, tendo em vista principalmente o disposto em seus artigos 226, 3 a 5 e
227, 661
e pelo fato de fundamentar-se no princpio da dignidade humana.
58
AMARILLA, op. cit., p.49. 59
BRASIL. Lei n. 7.250, de 14 de novembro 1984. Disponvel em: . Acesso em: 26 jun. 2016. Art. 1: O art. 1, da Lei 883, de 21 de outubro de 1949, que
dispe sobre o reconhecimento de filhos ilegtimos, acrescida do seguinte 2, transformando-se em 1 o atual
pargrafo nico: [...] 2 Mediante sentena transitada em julgado, o filho havido fora do matrimnio poder ser
reconhecido pelo cnjuge separado de fato h mais de 5 (cinco) anos contnuos. 60
AMARILLA, op. cit., p.50-51. 61
BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponveis em: . Acesso em: 26 jun. 2016. Art. 226. A famlia,
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htmhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm36
Pela primeira vez, todos os filhos independentes de sua origem, passaram a ter
tratamento isonmico em todos os aspectos; passou-se a tratar mulheres e homens de forma
igualitria; e a famlia tradicional matrimonializada deixou de ser a nica forma de constituir
uma famlia.62
Gustavo Tepedino63
pondera que a CRFB/88:
[...] consagrou, em definitivo, uma nova tbua de valores no ordenamento jurdico
brasileiro. O pano de fundo dos polmicos dispositivos em matria de famlia pode
ser identificado na alterao do papel atribudo s entidades familiares e, (...), na
transformao do conceito de unidade familiar que sempre esteve na base do
sistema. (...) do exame dos arts. 226 a 230 da Constituio Federal, que o centro da
tutela constitucional se desloca do casamento para as relaes familiares dele (...)
decorrentes; e que a milenar proteo da famlia como instituio, unidade de
produo e reproduo dos valores culturais, ticos, religiosos e econmicos, d
lugar tutela essencialmente funcionalizada dignidade de seus membros, em
particular no que concerne ao desenvolvimento da personalidade dos filhos.
Observa-se que a CRFB/88 foi inovadora ao afastar a exclusividade da famlia
tradicional, como sendo o nico modelo familiar reconhecido e tutelado pelo ordenamento
jurdico brasileiro; ao dispensar tratamento isonmico s mulheres e aos homens; ao atribuir
aos filhos a condio de sujeitos de direito, e no mais de objetos de direitos; por estabelecer
igualdade de tratamento entre os filhos, independente de sua origem; alm de colocar o
indivduo em uma posio preponderante em relao famlia, estabelecendo que essa deixa
de ser um fim em si mesma, e passa a ser um meio para o desenvolvimento de seus
integrantes. Nesse sentido Maria Berenice Dias64
ensina que a CRFB/88:
Instaurou a igualdade entre o homem e a mulher e esgarou o conceito de famlia,
passando a proteger de forma igualitria todos os seus membros. Estendeu proteo
famlia constituda pelo casamento, bem como unio estvel entre homem e
base da sociedade, tem especial proteo do Estado. (...) 3 Para efeito da proteo do Estado, reconhecida a
unio estvel entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua converso em
casamento. 4 Entende-se, tambm, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e
seus descendentes. 5 Os direitos e deveres referentes sociedade conjugal so exercidos igualmente pelo
homem e pela mulher. [...] Art. 227. dever da famlia, da sociedade e do Estado assegurar criana, ao
adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito vida, sade, alimentao, educao, ao lazer,
profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm
de coloc-los a salvo de toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso.
(...) 6 Os filhos, havidos ou no da relao do casamento, ou por adoo, tero os mesmos direitos e
qualificaes, proibidas quaisquer designaes discriminatrias relativas filiao[...]. 62
AMARILLA, op. cit., p.51. 63
TEPEDINO, apud AMARILLA, op. cit., p.53. 64
DIAS, op. cit., p. 32.
37
mulher e comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, que
recebeu o nome de famlia monoparental. Consagrou a igualdade dos filhos, havidos
ou no do casamento, ou por adoo, garantindo-lhes os mesmos direitos e
qualificaes. Essas profundas modificaes acabaram derrogando inmeros
dispositivos da legislao ento em vigor, por no recepcionados pelo novo sistema
jurdico.
Seguindo os novos ditames estabelecidos pela CRFB/88 foi editado o Estatuto da
Criana e do Adolescente em 1990, Lei n. 8.069/90, que determinou em seus artigos 4, 20 e
2165
que dever da famlia, da sociedade e do Estado garantir s crianas e aos adolescentes o
respeito ao direito que eles tm vida, sade, alimentao, educao, ao esporte, ao
lazer, profissionalizao e cultura; que no deve haver mais qualquer forma de tratamento
discriminatrio em relao aos filhos, tendo em vista sua origem; que o poder familiar, em
substituio a antigo ptrio poder, deve ser exercido de forma isonmica pela me e pelo
pai.66
Importante apontar que a Lei n. 12.010/09 responsvel por alterar o art. 25, do Estatuto
da Criana e do Adolescente67
, estabelece que famlia no apenas aquela originada da
conjugalidade, mas tambm, a advinda dos laos afetivos; legitimando mais uma vez a
possibilidade jurdica de reconhecimento e tutela da parentalidade socioafetiva.
Em 11 de janeiro de 2003, entrou em vigor o novo Cdigo Civil em substituio ao
de 1916. Entretanto, um cdigo que de certa forma j nasceu velho, pois seu projeto original
de 1975, antes mesmo da Lei do Divrcio que de 1977. Assim, acabou pro sofrer inmeras
65
BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponvel em: . Acesso em: 26 jun. 2016. Art. 4 dever da famlia, da comunidade, da sociedade em geral e do
poder pblico assegurar, com absoluta prioridade, a efetivao dos direitos referentes vida, sade,
alimentao, educao, ao esporte, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade
e convivncia familiar e comunitria. Art. 20. Os filhos, havidos ou no da relao do casamento, ou por
adoo, tero os mesmos direitos e qualificaes, proibidas quaisquer designaes discriminatrias relativas
filiao. Art. 21. O poder familiar ser exercido, em igualdade de condies, pelo pai e pela me, na forma do
que dispuser a legislao civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordncia, recorrer
autoridade judiciria competente para a soluo da divergncia. 66
AMARILLA, op. cit., p.52. 67
BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponvel em: . Acesso em: 26 jun. 2016. Art. 25. Entende-se por famlia natural a comunidade formada pelos
pais ou qualquer deles e seus descendentes. Pargrafo nico. Entende-se por famlia extensa ou ampliada aquela
que se estende para alm da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes prximos com os
quais a criana ou adolescente convive e mantm vnculos de afinidade e afetividade.
38
modificaes para se adequar aos novos paradigmas impostos pela CRFB/88, dentre os quais
se destaca o princpio da dignidade humana, que deve nortear todo o sistema jurdico
nacional.68
Ressalta-se que o CC/02 reconheceu que o parentesco no se origina apenas das
relaes de consanguinidade e que os direitos oriundos da filiao independem de sua
origem.69
Maria Berenice70
, no que tange famlia e parentalidade no contexto ps-
CRFB/88, entende que:
Talvez o grande ganho tenha sido excluir expresses e conceitos que causavam mal-
estar e no mais podiam conviver com a nova estrutura jurdica e a moderna
conformao da sociedade. Foram sepultados dispositivos que j eram letra morta e
que retratavam ranos e preconceitos, como as referncias desigualitrias entre o
homem e a mulher, as adjetivaes da filiao, o regime dotal, etc.
Em 2006, foi editada a Lei Maria da Penha, Lei 11.34071
, que visa a proteger as
mulheres contra a violncia domstica e familiar que lhes causa morte, leso, sofrimento
fsico, sexual ou psicolgico, e dano fsico, moral ou patrimonial; das quais tantas foram e
ainda so vtimas dentro de seus prprios lares brasileiros. Trata-se de uma lei que seria
impensvel h algumas dcadas, tento em vista a sociedade brasileira que ainda misgina e
violenta, mas que j foi infinitamente mais.
68
DIAS, op. cit., p.33. 69
AMARILLA, op. cit., p.53. 70
DIAS, op. cit., p.33. 71
A Lei Maria da Penha traz esse nome em homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes, a qual foi vtima de
violncia domstica, perpetrada por seu marido por cerca de seis anos, que aps mais de uma tentativa de
assassin-la, acabou por deixa-la paraplgica; e como tantas mulheres vtimas de violncia domstica e familiar,
que sentem medo, vergonha e at culpa pelo que sofrem; denunciou o marido que a agredia, apenas aps a
segunda tentativa de assassinato, por eletrocusso e afogamento. Ele ento foi julgado, e condenado pena de
recluso por 19 anos, tendo cumprido apenas dois em regime fechado. Maria da Penha, inconformada com o
descaso da sociedade e do Estado, em conjunto com o Centro de Justia pelo Direito Internacional e o Comit
Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) apresentou denncia Comisso
Interamericana de Direitos Humanos da OEA. O governo brasileiro, ento, apenas aps sofrer muita presso por
movimentos internos e internacionais que apoiavam os protestos contra as violaes dos direitos de mulheres no
mbito domstico, constitui o pelo Decreto n 5.030/03, um grupo de trabalho interministerial, cujos trabalhos
resultariam na Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006. (LEISTER, Margareth Anne; FERRAZ, Anna Cndida da
Cunha; ALVIM, Mrcia Cristina de Souza (Org.) Evoluo dos direitos da mulher no Brasil a Lei Maria da
Penha: comentrios Lei n 11.340, de 07 de agosto de 2006. Osasco: EDIFIEO, 2014).
39
A Lei Maria da Penha foi tambm responsvel por ampliar o conceito de famlia,
levando em considerao no apenas os laos consanguneos, mas tambm os de afeto, em
seu art. 5, II, in verbis: no mbito da famlia, compreendida como a comunidade formada
por indivduos que so ou se consideram aparentados, unidos por laos naturais, por afinidade
ou por vontade expressa. Conclui-se que se trata de uma lei que prestigiou a vontade como
meio para a formao dos vnculos familiares, admitindo a possibilidade de uma famlia ser
tambm formada por afinidade, por afeto, e no apenas por vnculos biolgicos e
matrimoniais.72
Outra lei que tambm evidenciou a grande mudana de perspectiva acerca das
relaes familiares trazida pela CRFB/88, a Lei n. 11.924/09, conhecida como Lei Clodovil.
Trata-se da lei responsvel por acrescentar o 8 ao art. 57, da Lei de Registros Pblicos73
, de
forma a permitir que enteadas e enteados adotem os nomes de suas madrastas e padrastos nos
casos em que existir um motivo relevante; sem que tenham que abrir mo do prprio apelido
de famlia. Essa possibilidade demonstra a tendncia que se tem de cada vez mais respeitar,
valorar e proteger as relaes advindas nica e exclusivamente da vontade dos indivduos, e
do afeto que existe entre eles. Nesse sentido ensina Silmara Domingues Arajo Amarilla74
:
Desempenhando o nome papel relevante no processo de edificao identitria, uma
vez que situa determinado indivduo em determinado grupo familiar, o fato de este
grupo se tornar com o tempo e diante das vicissitudes da vida mais amplo, complexo
e multifacetado naturalmente implica uma transformao de seu significado e de seu
lugar na ordem simblica, encontrando-se, pois, o aludido regramento em estreita
sintonia com a realidade da famlia contempornea.
72
AMARILLA, op. cit., p.53. 73
BRASIL. Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Disponvel em: . Acesso em: 26 jun. 2016. Art. 57. A alterao posterior de nome, somente por
exceo e motivadamente, aps audincia do Ministrio Pblico, ser permitida por sentena do juiz a que
estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandado e publicando-se a alterao pela imprensa, ressalvada a
hiptese do art. 110 desta Lei. (...) 8o O enteado ou a enteada, havendo motivo pondervel e na forma dos
2o e 7o deste artigo, poder requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de
famlia de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordncia destes, sem prejuzo de seus
apelidos de famlia. 74
AMARILLA, op. cit., p.54.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/40
Por fim, vale destacar que de modo a manter a CRFB/88 atualizada e em consonncia
com as constantes mudanas pelas quais o Brasil passa nas mais variadas esferas, aplica-se a
chamada mutao constitucional; por meio da qual possvel fazer uma releitura do texto
constitucional luz da sociedade brasileira no momento da sua interpretao.75
A mutao constitucional, como ensina Anna Cndido da Cunha Ferraz76
pode ser
percebida quando: h um alargamento do sentido do texto constitucional, aumentando sua
abrangncia para que possa alcanar novas realidades; imprime-se sentido determinado e
concreto ao texto constitucional; modifica-se interpretao anterior, imprimindo-lhe novo
sentido, atendendo evoluo da realidade constitucional; h a adaptao do texto
constitucional nova realidade social, que no existia no momento da elaborao da
Constituio; preenchem-se, por via interpretativa, lacunas do texto constitucional.
O exemplo mais emblemtico da aplicao da mutao constitucional dentro do direito
de famlia brasileiro foi certamente o julgamento da ADI 4.277 e da ADPF 132, em que se
permitiu o reconhecimento das unies homoafetivas como entidade familiar; por meio da
releitura do art. 226, 3, da CRFB/88.77
2.2. Constitucionalizao do direito civil decorrente da promulgao da Constituio da
Repblica Federativa do Brasil de 1988
A promulgao da Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 foi
responsvel por transformar significativamente e como nunca antes a viso que se tinha do
direito privado; e, em especial, do direito de famlia no Brasil com a ideia de
constitucionalizao do direito civil.
75
MARTINS, Flvia Bahia. Direito Constitucional. 2. ed. Niteri: Impetus, 2011, p.68. 76
FERRAZ, apud MARTINS, op. cit., p.68-69. 77
MARTINS, op. cit., p.69.
41
A CRFB/88 determinou a diversidade de modelos familiares e rompeu completa e
definitivamente com a exclusividade do modelo de famlia tradicional. Estabeleceu que a
famlia deve ser pautada na igualdade entre gneros, proibindo qualquer diferena de
tratamento entre a esposa e o marido, entre a me e pai, os quais passaram a ter os mesmos
direitos e os mesmos deveres; o que levou substituio do ptrio poder pelo poder familiar,
que deve ser exercido igualmente pela me e pelo pai. Modificou tambm sobremaneira o
tratamento dispensado aos filhos, os quais passaram a ser tratados como sujeitos de direitos e
no mais como meros objetos de direitos; alm de afastar qualquer classificao ou tratamento
discriminatrio entre eles, levando em considerao a sua origem. Nesse sentido, esclarece
Silmara Domingos Arajo Amarilla78
:
O pendor humanista externado pela Constituio Federal de 1988 implicou o
fenmeno de constitucionalizao do direito civil (...), o que se pretendeu foi
alocar o indivduo como centro e cerne do sistema jurdico-positivo,
sobrevalorizando o sujeito de direitos em relao ao objeto.
[...].
O impacto dessa matriz constitucional conferida famlia e experincia, vivncia e
exerccio da parentalidade dialoga com a desvinculao das figuras paterna, materna
e filial de uma estrutura rgida e preconcebida, ordenada pelos elos biolgicos ou
concebida artificialmente pelo emprego das presunes legais, partindo a
identificao dos vnculos parentais daquilo que os qualifica em sua essncia.
Assim, a CRFB/88 atribuiu famlia uma funo social diversa da que tinha a
famlia tradicional de outrora, tutelada pelo CC/16, a qual visava eminentemente
perpetuao do patrimnio e dos genes. A partir de ento, passou-se a reconhecer a famlia
como um instrumento, um meio pautado no afeto; onde seus integrantes podero se
desenvolver, tendo sua dignidade e sua individualidade respeitadas; e no mais uma
instituio tida como um fim em si mesma, que deveria se sobrepor aos seus integrantes.
Gustavo Tepedino, Maria Celina Bodin de Moraes e Heloisa Helena Barboza79
ensinam que:
78
AMARILLA, op. cit., p.66-67. 79
BARBOZA, MORAES e TEPEDINO, apud AMARILLA, op. cit., p.63-64.
42
[...] reconhecendo embora a existncia dos mencionados universos legislativos
setoriais, de se buscar a unidade do sistema, deslocando para a tbua axiolgica da
Constituio da Repblica o ponto de referncia antes localizado no Cdigo Civil.
Se o Cdigo Civil mostra-se incapaz at mesmo por sua posio hierrquica de
informar com princpios estveis, as regras contidas nos diversos estatutos, no
parece haver dvida de que o texto constitucional poder faz-lo, j que o
constituinte, deliberadamente, atravs dos princpios e normas, interveio nas
relaes de direito privado, determinando consequentemente, os critrios
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