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Marcelo Mazotti
As EscolasHermenêuticas
e os Métodos deInterpretaçãoda Lei
AManole
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As Escolas Hermenêuticas e os
Métodos de Interpretação da Lei
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Marcelo MazottiGraduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.Aperfeiçoou-se em Direito Público pela Universidade de Coimbra,
Portugal.Vencedor do Prêmio Itaú Prof. Silas R. Gonçalves pelamonografia “Hermenêutica e métodos de interpretação da lei”.
Atualmente é professor da Faculdade Anhanguera e mestrando naFaculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USR E advogado e
membro da comissão de Direito Constitucional da OAB-SP
As Escolas Hermenêuticas e osMétodos de Interpretação da Lei
Manole
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Copyright © 2010 Editora Manole Ltda., por meio de contrato de coedição com o autor.
Minha Editora c um selo editorial Manole.
Projeto gráfico e editoração eletrônica: Departamento editorial da Editora ManoleCapa: Dep artam ento de arte da Editora Manole
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
________________________ (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) _____________________
Mazotti, Marcelo
As escolas herm enêu ticas e os méto dos de interpr etação da lei / Marcelo Mazotti. —
Barueri, SP : Mi nha Editora, 2010.
ISBN 978-85-98416-9 0-8
1. Direito - Filosofia 2. Direito - Metodologia
3. Hermenêutica (Direito) I. Título.
09-07518____________________________________CDU-340.132.6 ______________________
índices pa ra catálogo sistemático:
1. Herm enêu tica jurídica : Direito 340.132.6
2. Interpretação jurídica : Direito 340.132.6
Todos os direitos reservados.
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Printed in Brazil
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DEDICATÓR IA
Dedico esta obra ao meu estimado mestre e
amigo Luís Rodolfo A. de Souza Dantas, que me
iluminou durante meus primórdios acadêmicos,
ensinando-me a olhar para o Direito e para a vida
como quem olha para si mesmo.
Mmha sincera gratidão.
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“ Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.”
Ricardo Reis
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Sumário
Apresentação..................................................................................IX
Prefácio.........................................................................................XIII
Introdução....................................................................................XVII
Capítulo I - O que é a Hermenêutica?................................................ I
1. Or igem da palavra e s ignificado............................................................................. 1
1.1. Hermenêutic a com o dizer ....................................................................................3
1.2. Hermenêutica co mo explicar ...............................................................................5
1.3. Hermenêutica com o traduzir .............................................................................7
2. Hermenêutica, interpretação, compreensão, explicação e aplicação - traços
particulares.........................................................................................................8
3. Lógica, retórica e hermenêutica...........................................................................12
4. Escolas hermenêuticas e a hermenêutica jurídica............................................17
Capítulo 2 - Escolas Hermenêuticas..................................................191. Escola bíblica........................................................................................................... 19
2. Escola filológica.......................................................................................................20
3. Schleiermacher e a hermenêutica universal........................................................21
4. Escola histórica........................................................................................................24
4.1. A consciência histórica e a simpatia universal em Dilthey............................27
5. Escola fenomenológica ......................................................................................... 29
5.1. A compreensão do ser........................................................................................ 29
5.2. O mundo da vida em Husserl............................................................................315.3. Martin Heidegger e a hermenêutica ontológica existencial....................... 34
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VIII As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
5.4. O horizonte do tem po e a projeção interpretativa preconceituosa do ser
na fenomenologia de Gadamer................................................................... 38
6. Paul Ricoeur e os sistemas de in te rp re ta ção.....................................................42
Capítulo 3 - Herm enêutica Jurídica................................................................... 44
1. O problema da identificação e escolha dos métodos interpretativos ........44
2. O estado de direito, o ideal do justo e o raciocínio judiciário em diálogo
com a hermenêut ic a .....................................................................................46
3. Método gramatical ou literal ............................................................................... 53
4. Método exegético e o espírito do legislador .......................................................55
5. M étodo lógico-s istemático .................................................................................. 59
6. A analogia e as in terpre tações extensiva e restrit iva........................................63
7. Método histórico....................................................................................................68
8. Método teleológico................................................................................................72
9. Escola da livre pesquisa (libre recherche) e o método científico....................75
10. Método sociológico..............................................................................................77
11. Escola do direito livre (Freies Rechts)...............................................................78
12. A tópica jurídica em Theodor Viehweg........................................................... 87
13. A lógica do razoável de Luis Recaséns Siches..................................................93
Capítulo 4 - Estudos In terpreta tivos Ju ri sp rude nc iai s.................................98
1. A união homoafetiva - REsp n. 820.475/RJ..................................................100
2. A gratuidade do ensino público super ior e as taxas de matrícula - RE n.
500.171-7/GO.............................................................................................104
3. A Emenda Consti tucional n. 15/96 e a criação de municípios brasileiros -
ADIn n. 2.240/BA......................................................................................112
C onclusão...............................................................................................................I 18
Referências Bibliográficas..
/
Indice Alfabético-remissivo
120
123
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Apresentação
A presente obra nasceu de um grupo de estudos formado por acadêmicos
de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie sob o manto intelectual
do professor Luis Rodolfo A. de Souza Dantas, cujo objetivo primordial era
responder a mais simples questão: o que é hermenêutica?
Durante os anos de graduação, nas mais diversas disciplinas, constante
mente o aluno se vê diante de inúmeras interpretações da lei, sem que, contu
do, haja um compromisso intelectual por parte dos intérpretes em discutir os
fundamentos de tais interpretações.
Para alguns, o Direito é uma ciência neutra, imparcial e até mesmo matemática, na qual impera o falso argumento de que “a lei é a lei”, e o texto legis
lativo deve ser automaticamente aplicado. O comando é simples, direto e não
aceita questionamentos.
Outros preferem pensar o Direito como “o domínio do justo”, sustentando
a existência de um elo inquebrantável entre a moral e a legislação positivada.
Para essa concepção, em certa medida ingênua e romântica, uma determinada
interpretação da lei é sempre correta quando o sentido alcançado é justo; pois
a justiça é o valor maior do Direito, devendo prevalecer em toda situação. Jádizia a velha máxima: “se tiveres que optar en tre a justiça e a lei, opta pela pri
meira!” O problema em que esbarram, contudo, é o de definir exatamente o
que é o “jus to” e o “injusto”, uma vez que as próprias leis são criadas com essa
finalidade.
De qualquer modo, sejam por essas ou po r outras razões aqui não expos
tas, pudemos notar durante os anos de graduação que as interpretações da lei
eram justificadas, na maioria dos casos, de forma insuficiente ou tendenciosa.
Ciente de que a atividade hermenêut ica estava presente em todas as disci plinas do curso e que não poderia estar presa a arbitra riedade dos intérpretes,
ou resumir-se a um joguete de especulações efêmeras, tornou-se tarefa daquele
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X As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
grupo descobrir o que era a hermenêutica, o que, ao final, revelaria também
como opera a realização do Direito em si.
Falar em interpretação não é apenas especular acerca de teorias abstratas.
Antes, é o próprio modo com que o Direito se manifesta e concretiza-se nas
relações sociais e na atividade jurídico-decisional.
Nos pr imeiros anos do novel séc. XXI, após inúmeros eventos e debates,
os trabalhos desenvolvidos pelo grupo de estudos instigaram ainda mais a mi
nha curiosidade e meu prazer pelos estudos hermenêuticos. O encontro da
interpretação com a lógica, a retórica e a filosofia foram essenciais para que se
promovesse uma compreensão daquilo que seria a he rm enêutica como uma
das chaves operacionais do Direito.
Após esse primeiro momento de abertura e posicionamento crítico, pas
sou-se a um estudo analítico e calcado principalmente nas obras clássicas in
ternacionais, o que me revelou, com certa decepção, a superficialidade com que
o tema vinha sendo tratado pela doutrina jurídica nacional, ainda arraigada
em pressupostos reducionistas daquilo que é a atividade interpretativa.
Com o términ o do grupo de estudos, encetei uma monografia que ade n
sasse os temas pesquisados e que pudesse articular as relações existentes entre
os métodos interpretativos da lei e a hermenêutica filosófica. Sem ter a pretensão de esgotar o assunto, algumas obras elementares foram estudadas, assim
como analisadas as correlações das escolas filosóficas com a doutrina jurídica,
a fim de revelar a origem dos diversos métodos de interpretação.
Verificou-se então que a filosofia promovia uma abertura do horizonte
hermenêutico para além da atividade de interpretação textual e que o olhar
interpretativo não deveria estar apenas no texto, mas também no sujeito-in-
térprete.
Nesse ponto, houve uma guinada substancial nos trabalhos. O reconhecimento de que o intérprete também é parte integrante do universo herme
nêutico e responsável direto pelo resultado interpretativo alcançado cham ou a
atenção para uma pesquisa de fundo acerca dos preconceitos e das ideologias
presentes no próprio intérpre te e como elas inf luenciam na in terpretação.
Aquela simples e modesta pergunta sobre o que é hermenêutica passou
a exigir um cuidado especial na medida em que demandava a compreensão
de conceitos lingüísticos, históricos e ideológicos que, muitas vezes, passavam
despercebidos, devendo ter seus com ponentes clarificados a fim de se encontrar com maior precisão e densidade aquilo que era a atividade hermenêutica.
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Apresentação XI
Promovi um a releitura de todos (ou quase todos) os métodos interpre tati
vos jurídicos a fim de confrontá-los e revelar seus substra tos e mitos inerentes.
Minha pergunta passou de “o que é hermenêu tica?”, para “quais são os mé to
dos interpretativos e por que escolher um em d etrimento de outro?”
Ao final de anos de t rabalho e prazerosa pesquisa, compreendi que a ati
vidade judiciária no pós -mo derno desconfia e indaga-se constantemente sobre
o verdadeiro sentido das leis, a fim de tornar justa e legítima a aplicação da
norma interpretada ao caso concreto.
Todavia, para se alcançar o conteúdo da norma, é preciso realizar uma
leitura hermenêutica que promova a escamoteação dos véus lingüísticos e
ideológicos que cobrem o ordenamento jurídico e os próprios métodos inter
pretativos, especialmente quando verificamos a existência de preconceitos que
cercam a formação humana e histórica do hermeneuta, contaminando-se a
apreensão do conteúdo textual.
Por isso, optei por escrever a obra de um modo que, inicia lmente, resgata a
semântica originária do vernáculo “herm enêu tica”, desde a sua origem no mito
grego Hermes, até as acepções mais modernas do vocábulo, confrontando-o
sempre com seus pseudossinônimos e encontrando seus pontos de contato
com a lógica e a retórica.A partir disso, trilhei um intenso esforço histórico-filosófico para loca
lizar as escolas que estruturaram a hermenêutica na modernidade, partindo
dos embriões da escola bíblica no séc. XVII, passando pela filologia, pela his
toriografia e pela fenomenologia, sempre com uma análise sistemática de seus
pr incipais precursores: Schleiermacher , Husserl, Heidegger, Gadamer e, mais
recentemente, Paul Ricoeur.
No terceiro capítulo, investiguei o modo como a hermenêutica se inseriu
no raciocínio jurídico e, por meio dos métodos interpretativos, buscou solucionar as aporias judiciárias de adaptação (aplicação) do texto legal aos litígios
judiciais.
No úl timo capítulo, procu rei verificar com o os métodos in terpreta tivos
estavam sendo empregados nos principais Tribunais Superiores brasileiros,
selecionando alguns leading cases que comprovassem ou refutassem as conclu
sões da pesquisa teórica realizada.
Ao final, encerrei os estudos consciente de que mais do que meros proce
dimentos e regras instrumentais, os métodos hermenêuticos revelam em seusubstrato as verdadeiras ideologias que fo rmam o intérprete, com suas visões
acerca do Direito, do Estado, do político e das axiologias do justo.
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XII As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
Tal pesquisa, após ser concluída em forma de monograf ia, teve a honra de
ser contemplada com o primei ro lugar do prêm io “TGI Itaú - Professor Silas
Rodrigues Gonçalves” da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo
em novembro de 2006. Dita menção, faço eu apenas para agradecer minha
nobre e amada alma mater que, com muita seriedade e dedicação, instiga o
trabalho de pesquisa de seu corpo discente e promove o academicismo como
poucas em terras brasilis.
Deixo aqui, em homenagem a essa instituição de ensino que me é tão que
rida, um breve versículo insculpido em seus muros que marcou a minha vida
como acadêmico e como cidadão:
“conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”
Jo 8. 32
Marcelo Mazotti
agosto de 2009.
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Prefácio
Luís Rodolfo de Souza Dantas1
Extremamente honrado fiquei com o convite para prefaciar a obra As Es
colas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei, do professor Marcelo
Mazotti. O autor, de maneira densa e acessível, produz iu importante cont ribui
ção às letras jurídicas, ao enfren tar as problemáticas atinentes aos mecanism os
de interpretação, aplicação e integração do direito, por meio de investigação
percuciente das pr incipais caracterís ticas das mais marcantes escolas herme
nêuticas e hermenêutico-jurídicas. Nesse sentido, não se furtou o auto r a assu
mir posicionamentos que rivalizam com tendências hermenêuticas lastreadas
nas tradições de estrito legalismo ou dogmatismo, ao afirmar em determina
dos momentos do trabalho uma forma de compreensão do direito assimilável
ao que denominei em ou tro contexto de “hermenêutica plural”.
A expressão acima transcrita, longe de querer instaurar uma nova con
cepção de hermenêutica jurídica, pretende tão somente sintetizar o que diag
nostiquei como opção por parte de determinados estudiosos e operadores do
direito - sobretudo do período pós-Segunda Guerra Mundial - de modos deinterpretação e aplicação do direito de caráter não sectário, mas abertos a for
mas de complementaridade entre métodos de interpretação outrora conside
rados antagônicos.
1Mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professor da Faculdade de Direito e do curso de pós-graduação em Direito Empresarial da
Universidade Presbiteriana Mackenzie. Chefe do Núcleo Temático de Filosofia e Teoria Geral doDireito da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Autor e coautor de
ensaios e livros, como Hermenêutica Plural (Martins Fontes, 2002) e coordenador da obra Justiça
Plural (Manole, 2006). Advogado.
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XIV As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
De fato, exemplifico o que acabei de afirmar com os postulados mais re
levantes da Escola da Exegese, do séc. XIX. Para essa escola, tão fortemente
vinculada aos valores liberais-burgueses plasmados na legislação francesa da
época napoleônica, os princípios da legalidade e da separação de poderes eram
concebidos como verdadeiros dogmas a serem ortodoxamente observados.
Destarte, na fase pós-absolutista da história política francesa, a interpretação
literal constituía pa ra os juristas dessa escola o procedim ento pelo qual o intér
prete desentr anharia a vontade do legislador da expressão juríd ica, impedin
do-se qualquer forma de entendimento que ultrapassasse ou ficasse aquém da
estrita interpretação normativa.
Desse modo, o exegeta - mo rmente o magistrado - não teria condições,
assim pensavam os adeptos da escola, de macular a legalidade, ao servilmente
compreender o direito à luz da suposta vontade ou mesmo intenção de um le
gislador onisciente, pelo fato de haver produzido um direito (v.g., Código Civil
francês de 1804) que conteria em si todas as respostas para as problemáticas
jurídicas de ontem, hoje e amanhã. Assim, a ideologia polí tico-jurídica dessa
escola tinha na interpretação literal o meio pelo qual a controvérsia judicial
concreta e atual deveria ser sintonizada a uma vontade pretérita, mesmo que
em prejuízo da solução mais justa ou equân ime para o litígio.Embora a Escola da Exegese tenha por vezes considerado a possibilidade
de utilização excepcional do método lógico-jurídico de interpretação, imperava
a defesa da interpretação gramatical do direito como mecanismo que, em ter
mos kantianos, não produziria enten dimen to novo, mas analiticamente apenas
extrairia o significado contido nas palavras da lei. Portanto, qualquer out ra for
ma de compreensão cujo significado ficasse além ou aquém dos significantes
verbais seria considerada espúria, mesmo que fosse mais fiel à equidade.
Sem querer aqui esgotar a análise de outras importantes característicasdessa escola, tomo a liberdade de elegê-la como destacado paradigma de um
tipo de mentalidade jurídica identificadora exclusivamente do direito com a
lei, que em momentos históricos distintos receberá outras roupagens, todas
a apresentar em comum o que Miguel Reale tantas vezes criticou: o reducio-
nismo normativista.
Esse fenômeno, embora não obrigatoriamente atrelado ao processo literal
de interpretação, como bem demonstram as concepções hermenêutico-jurídicas
de Hans Kelsen, contidas em sua clássica obra Teoria pura do Direito, veda um pluralismo hermenêut ico que tem - tal com o Luiz Recaséns Siches assim enten
dia - o mund o da vida como ambiente onde a normatividade está inscrita.
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Sumário
Capítulo 12 - Contratos Marítimos............................................................133Intr odução.......................................................................................................133Contratos de afretamento marítimo........................................................... 133
Estadias e sobre -e st ad ia s.............................................................................. 134Cont rato de transporte marítimo de carga ...............................................134
Conhecimento de transporte marítimo (B/L).................................... 135Funções e características do B/L........................................................... 135B/L nominativo e “à ordem” ................................................................ 136Conhecimento limpo e conhecimento sujo........................................ 136Cláusula de reserva .................................................................................136Sujeitos do B/L.........................................................................................137Frete maríti mo.........................................................................................138
Questões para discussão................................................................................139
Capítu lo 13 - Jurisdição M arít ima.............................................................140Introdução.......................................................................................................140Águas na cionai s............................................................................................. 140Tribunal Marítimo.........................................................................................141
Jurisdição.................................................................................................. 142Competências e atribuições...................................................................142O processo perante o Tribunal Marítimo..........................................143Penalidades e efeitos do processo e das decisões proferidas
pelo Tribunal M arítim o......................................................................143Questões para discussão............................................................................... 144
Referências Bibliográficas............................................................................. 145
índice Remissivo............................................................................................ 148
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Introdução
Quando o jurista enceta seu trabalho matinal, a primeira pe rgunta que ele
faz ao abrir o seu código é: o que quer dizer a lei? Qual é o seu sentido? O que
ela exige, obriga, impõe?
Estudar uma no rma não é simplesmente proceder ao encontro da vontade
do legislador (emissor), pelo jurista (receptor), em u ma superfície textual uní-
voca. Mais do que representar um mandame nto preciso e determ inado, a lei é
fixada em um medium essencialmente polissêmico, ambíguo e histórico, que
é a linguagem humana.
Na seara jurídica , além da imprecisão ineren te à linguagem, os sentidosdos termos utilizados na lei adquirem uma conotação técnico-científica que
muitas vezes confunde-se e confronta com o seu uso vulgar, emb araçando ain
da mais a investigação de seu conteúdo semântico.
Por isso, hodiern amente, realiza-se um a separação entre o texto da n orm a
e o conteúdo normativo, uma vez que a lei pensada abstratamente como um
ente jurídico ideal pode não encontrar uma manifestação lingüística precisa e
adequad a para revelar seus mandamen tos, valores e fins.
Além do mais, o trabalho do jurista não se resume a descobrir o sentidoda lei em razão de sua p rofund idade lingüística ou a buscar a vontade do legis
lador que a emanou. A lapidação da no rma revela-se em um labor incansável
e tortuoso de pesquisa que sempre se remete a maior aporia do Direito: o que
é a justiça?
A lei não é simplesmente um comando que visa a uma determinada con
duta. É, além de tudo, a forma mais primitiva e criativa do ho mem de estabele
cer e desenvolver a com unid ade dent ro de parâm etros de justiça e equidade.
Há um elo indissolúvel entres as leis, o Direito, o Estado e a Justiça, quese querem ver concretizados no plano da realidade por meio dos enunciados
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XVIII As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
normativos. Afinal de contas, para que servem as leis e o Direito senão para
promover a igualdade e a dign idade dos homens em sociedade?
O problema é que não há um consenso em relação ao mo do de se mate ria
lizar tais ideais em uma sociedade multi facetada e recheada de interesses diver
gentes. Apesar da concordância no plano axiológico abstrato, isso não ocorre
na sua tradução para a pragmática, tornan do o Direito um campo de disputa.
Assim, de um lado, há a atribuição legal do Poder Legislativo em elaborar
as leis. De outro, o Poder Judiciário deve vigiar e atuar no cumprimento de
las. E, alheio às instituições estatais, os cidadãos são os detentores originários
dos legítimos interesses, mas sua pluralidade infinita acaba por inviabilizar um
projeto polí tico único que respeite todas as suas sensibil idades.
Podemos visualizar então um quadro no qual uma ciência lingüística im
precisa, inserida em um contexto polí tico-sociológico confli tante, é o meio es
colhido para a realização de um valor indecifrável, a justiça.
Como resolver tamanha problemática?
É com esforço hercúleo que o jurista, face a tais adversidades, busca incan
savelmente a preservação do Direito e da paz social por meio dos ens inamentos
da hermenêutica.
Para lograr êxito em seu labor, foram criados diversos métodos interpreta-tivos ao longo dos séculos que prop un ham a mais eficiente instrum ental idade
para clarificar os sentidos da lei e com preendê- la da melhor fo rm a possível.
O estabelecimento de um cânon de regras direcionou os intérpretes,
cada qual em seu tempo, sob determinada ótica historicamente justificada.
Leis foram positivadas e decisões judiciais foram formuladas tendo-se em
vista os ditames dos critérios de interpretação. Mas então surgiu a pergunta:
qual é o melhor método hermenêutico? Qual conduz ao real encontro com
a verdade?Em nossa pesquisa, pudemos encontrar mais de uma dezena de métodos
que se diziam legítimos a alcançar o posto maior na hipotética escala hierár
quica dos métodos hermenêuticos. Porém, nenhum deles explicava o porquê.
Decidimos então investigar profundamente cada um para que pudésse
mos c i o final proferir um juízo de valor sobre esses, vislumbrando encontrar
verdades e equívocos, pontos de convergência e de complementaridade e, an
siosos pelo encontro científico com o original, desatar os nós presentes na in
terpretação.
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Introdução X IX
Qual foi o nosso espanto quando, para além desse impulso pretensioso,
depara mo-no s com um elemento que até então não era evidenciado ou posto
em xeque: a figura do intérprete.
Tomando a hermenêu tica como um sistema de regras e critérios objetivos,
o intérprete esconde suas reais intenções sob esse véu de imparcial idade e mera
instrumentalidade. Mal sabíamos que a interpretação, longe de ser um m étodo
científico e puramente racional, está recheada de ideologias e fetiches que a
todo momento determinam a compreensão, direcionando-a a um projeto de
valores e fins camuflados pelo hermeneuta .
Ficam assim os juristas de braços atados frente a uma situação que não
podem escapar: a lei não subsiste sem a at ividade interpretat iva, mas seus mé
todos estão corrompidos ideologicamente.
Somente uma pesquisa de fundo sobre a hermenêutica, realizada desde a
origem do vernáculo, passando pelas escolas filosóficas e jurídicas uma a uma,
poderá nos mostrar como trabalha r com essa ciência indispensável ao juris
ta, sem que mergulhemos nas armadilhas do reducionismo e nas ilusões da
imparcialidade que, pouco a pouco, vão se revelando como um complexo e
intrincado sistema de afirmação de valores e preconceitos.
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CAPITULO
O Que é a Hermenêutica?
I . Origem da palavra e significadoAs raízes da palavra hermenêutica provêm do verbo grego hermeneuein
e do substantivo hermeneia, ambas relacionadas com o mito do deus grego
Hermes (Mercúrio na tradição romana). De acordo com a mitologia, Hermes
era o filho de Zeus incumbido de levar a mensagem dos deuses do Olim po aos
homens, uti lizando-se de suas velozes asas para a execução de tal tarefa.
O mais interessante, entretanto, era que o deus mensageiro deveria tr adu
zir e interp retar as mensagens dos deuses para os mortais, um a vez que a línguade um era inacessível ao outro. Sendo assim, Hermes acabou por inventar a
escrita e a linguagem para aperfeiçoar a com unicação en tre eles.
A mitologia grega é extremam ente simbólica para revelar-nos a semântica
originária do vernáculo que estudamos. Ao deus Hermes não cabia a tarefa
pura e simples de transmitir ou repassar a mensagem divina, ao contrário , de
veria ele realizar um papel ativo em sua tarefa, devendo tr ans form ar algo inin
teligível em inteligível, compreensível.
De acordo com Richard E. Palmer1, a dita transformação ocorreria em trêsdimensões: na enunciação, na explicação e na tradução.
Uma mensagem, quando emitida, está assentada em um médium (escrita,
fala, imagens etc.) e exigirá do receptor uma percepção tal que recepcione o
dito conteúdo da melhor forma possível. Quer dizer, aquilo que foi expresso
exigirá do receptor uma verdadeira tradução da mensagem para que este possa
captar o conteúdo daqui lo que se declarou. Nesse caso, a tradução não se refere
especificamente a uma atividade de cognição de um a língua estrangeira, como
se utiliza corriqueiramente o termo. Antes, refere-se à transferência, à trasla-
1 Hermenêutica, p.24.
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2 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
dação do conteúdo de algo que foi manifestado em um medium e ali está sedi
mentado, para a esfera de conhec imen to do receptor, utilizando-se dos códigos
de linguagem que sua inteligência alcança.
Além disso, tal conteúdo deverá ser explicado na medida em que a com
preensão do sent ido não se dá de forma direta e clara. Ainda que a linguagem
parta de uma convenção de sentidos en tre os homens, o fato é que diversos
sentidos são ambíguos, dúbios e tal convenção se faz apenas de m odo superfi
cial, já que não há um acordo absoluto do sentido específico de todos os te rmos
e orações. Se isto ocorresse, seriamos hábeis a elaborar um dicionário preciso e
perfeito que dispensaria defini tivamente a in terpretação.
Neil MacCorm ick nos re lembra uma interessante si tuação em que a men
sagem e os símbolos utilizados são claros e precisos tanto para o emissor qu an
to o receptor. Todavia, o próprio contexto da mensagem provoca a dúvida.
Se eu vejo u m s inal de “não fum ar” na sa la em que es tou en trand o e apago o
m eu c igarro antes de en trar nessa sa la , eu de m ons tro co m preen der o s inal e agi r
de acordo com ele . Sem qu alquer e lem ento de d úvida ou tenta t iva de resolver essa
dúv ida, eu imed iatam ente ap reen do o que é necessário. ( ...)
[ . . . ] pode haver uma ocasião particular em um encontro no qual se falemmuitas l ínguas em que eu es te ja t ra jado formalmente (usando um smokingy
como se fala em francês). E o sinal de não fumar pode estar escri to em inglês
(no smoking). Então , eu poder ia pa ra r por um m om ento pa ra m e pe rgun ta r s e o
s inal exige que eu m ude de rou pa e vis ta algo men os form al , em vez de me abs ter
de fumar. Pensar acerca dessa dúv ida e resolvê- la op tand o de form a razoável po r
um a das visões do que o texto exige é “inte rpr etar” [ . . .] .2
Em outro aspecto, quando se transmite uma mensagem, pode-se inter pretá- la de modo a conferi r uma “performance” à enunc iação da mesm a, re
cheando-a de estilizações particulares, como um músico faz diante de uma
partitu ra.
Alcança-se assim, três dimensões fundamentais e estruturais da palavra
hermeneia conforme nos ensina Palmer. Estudemo-las separadamente.
2 Retórica c o estado de direito>p. 161-2.
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O Que é a Hermenêutica? 3
l.l. Hermenêutica como dizer
O primeiro sentido de hermeneuein é exprimir, afirmar ou dizer. Tal fun
ção está estritamente relacionada com a tarefa de Hermes em dizer aos homens
as mensagens do Olimpo.
Interessante constatar que o vocábulo grego está próximo da forma lati
na serrno (dizer), e que ambas as expressões foram largamente utilizadas pela
Igreja Católica na Idade Média. A função maior do sacerdote sempre foi a de
anunciar as Escrituras Sagradas, proclamar a palavra de Deus a todos os ho
mens e convertê-los ao catolicismo.
Note-se que dizer uma palavra não é o mesmo que explicar ou debater a
mesma. A tarefa sacerdotal era nitidamente a de se utilizar da vivacidade da
linguagem oral para proferir belos e emocionados sermões, a fim de provocar
a adesão das massas aos dogmas da fé cristã. Não se deve olvidar que segundo
os ditames da Igreja Católica, a própr ia razão divina era vista com o inacessível
aos olhos dos mortais, cabendo a estes o papel de meros ouvintes dos sermões
profer idos pelos homens legi timados por Deus.
A sacralidade das palavras do Senhor não era acessível aos ouvidos dos
mortais, singelos pecadores que lhe deviam submissão. Somente os sacerdotes,representantes do Senhor na terra, conseguiam alcançar os ditames sublimes
dos Céus por meio das Escrituras e da oração, podendo assim, comunicar aos
homens a Sua vontade.3
A posição de passividade absoluta do receptor aqui é clara e manifesta,
não havendo espaço para indagação, dúvida ou suspeições. Aquilo que era dito
deveria ser encarado como verdade incontestável e absoluta, já que aquele que
dizia era o Deus Todo-Poderoso.
Por sua vez, as artes humanas, em especial a música e as artes cênicas,sempre se utilizaram da hermenêutica para o fim de interpretar um texto e
conferir-lhe uma performance, um estilo.
Quando um maestro se depara com um a sinfonia de Mozart, obviamente
não a executará de forma mecânica, lendo a pa rtit ura como quem lê números.
O uso de diversas técnicas musicais permitirá ao maestro intensificar deter
minado trecho, relevar outros e exaltar a qualidade de certas harmonias que
conferirá à execução um estilo próprio.
3 Nota-sc que, aqui, tamb ém se encontr a a atividade da tradução ao lado do (lizeryda mesma for
ma como deveria Hermes traduzir as mensagens dos deuses do Olimpo aos mortais.
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4 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
O mesmo se poderá dizer de um ator que tem em sua frente uma peça de
Shakespeare. Como dizer todas aquelas palavras mortas em um a folha de papel?
Somente o recurso à interpretação o permitirá escolher uma forma de atuar e
não outra.
Isso nos remete a uma questão interessante: não é verdade que enquanto
lemos parece que ouvimos vozes interiores? E quando lemos um romance poli
cial não nos parece que a voz nos guia de forma diferente de quando lemos um
jornal? E a leitura de um diálogo? As vozes dos que dialogam não são distintas?4
Isso nos remete à questão da inseparabilidade do sentido de um texto das
entoações auditivas confer idas pela sua leitura. Ler e ouvi r provocam sensações
extremamente diferentes.
De acordo com Palmer, enqu anto a escrita imortaliza uma obra e confere-
lhe estabilidade para as gerações vindouras, expressar um a ob ra confere ao in
térprete um espaço aberto de infinitas possibilidades de atuação que atribuem
vida ao texto, provocando sensações distintas nos ouvintes conforme a perfor
mance realizada.
Pode-se ler a Odisséia de Homero com grande exaltação e orgulho, como
pode-se chorar constantemente os in fo rtún ios aos quais o heró i se submete . O
certo é que ler a Odisséia nunca será igual a ouvir a Odisséia.Segundo o au tor em análise “escrever uma língua é 'um a alienação da lín
gua' relativamente à sua vivacidade - é um Selbstentfremdung der Sprache - um
autodistanciamento da fala”5. O recurso à escrita é carente em termos de ex
pressão emocional, por isso, toda vez que se lê, ut il izamos as vozes interiores
para recuperarm os aquela força perdida da expressão oral.
Para os juristas, tal aferição é verificada cotidianamente nos fóruns ao se
defender u ma causa. A distância que existe em termos de expressividade e viva
cidade entre um recurso de apelação escrito e um a sustentação oral é enorm e,mesmo que não levemos em consideração os recursos retóricos de cada um
deles, o que agravaria tal distância.
Sendo assim, o mu ndo da escrita e o mu nd o da fala encont ram seus limi
tes e suas qualidades próprias que não podem ser ignorados. A perform ance de
um discurso pode revelar muito mais do que o texto o faria. Ou não será assim
que os políticos conseguem convencer o eleitor mesmo quando se utilizam
unicamente de lugares-comuns?
4 p a l m e r , Richard E. Hermenêutica, p.27-8.
Ibidcm, p.26.
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O Que é a Hermenêutica? 5
1.2. Hermenêutica como explicar
Essa é a utilização moderna e mais usual da palavra hermeneuein , que se
refere ao ato de determinar e clarificar o sentido de algo.
Segundo alguns autores, encontramos o primeiro uso da palavra herme
nêutica na obra de J. C. Danhauer , publicada em 1654: Hermenêutica sacre sive
methodus exponemdarum sacrarum litterarum . O teor da obra se referia aos
métodos de interpretação da Bíblia que, como veremos posteriormente, foi a
forma precursora da Hermenêutica.
É sabido que antigamente, a Igreja Católica, para bem organizar e auxiliar
na difusão do Texto Sagrado, escrevia obras de exegese bíblica nas quais se in
seriam comentários sobre suas passagens, determinando explicitamente quais
eram as verdades divinas de cada uma delas.
Esse modelo exegético, aos poucos, foi dando espaço a métodos que pri
vilegiavam formas mais racionais de interpre tação de textos, com critérios de
terminados (filológicos, históricos etc.), que surgiram principalmente com os
filósofos protes tantes e com o Aufklarung (iluminismo) alemão.
Embora a exegese bíblica estivesse vinculada a uma interpretação orien
tada à afirmação de dogmas religiosos, importa destacar a necessidade de se pensar e refletir sobre um texto, de modo a perceber-lhe o real conteúdo .
A compreensão de uma obra nunca se dá de modo evidente. Apreender
um a mensagem denota um esforço de lapidação das palavras e de suas articu
lações que envolve o auto r do texto (com suas intenções e sentidos originários),
o contexto em que se dá a comunicação (como e onde se compreende) e o
próprio intérprete, com toda sua carga cul tura l de pré-concei tos e expectativas
já formuladas em seu pensamento antes mesmo da leitura.
O simples verso de Shakespeare: “Ser ou não ser: eis a questão!” pode provocar (e sempre provocou) um universo infinito de interpretações respaldadas
em origens semânticas, contextualizações históricas da obra, análise das pai
xões do autor, até e lucubrações filosóficas existencialistas, niilistas, psicanalíti-
cas etc., que buscam explicar seu sentido da forma mais verdadeira possível.
A busca do sentido, aliás, é algo que sempre inquietou a mente dos hermeneu-
tas. Qual o sentido que se busca: aquele que o autor quis imprimir? O sentido que a
força do texto possui em si? Ou o sentido da verdade que o texto proporciona?
É importante verificar que encont rar o sentido não é o mesm o que enco ntrar a verdade. Na maioria dos casos, estamos a procurar o sensus orationum
e não a veritas dos textos. Isto porque quem transmite uma mensagem pode
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6 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
estar cometendo um equívoco, contando uma mentira ou apenas realçando
um estilo. Senão vejamos:
O poeta é um fingidor.
Finge tão com pletamen te
Qu e chega a f ingir que é dor
A do r qu e deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na do r li da sen tem bem ,
N ão as duas que ele teve ,
Mas só a qu e eles não têm .
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse com boio de corda
Qu e se cham a o coração.6
Em seu aclamado poema, Fernando Pessoa nos descreve de forma magistral o espírito e as dores que movem os poetas em seus labores literários. Mas
seriam mesmo os poetas fingidores? Estariam os mesm os fingindo ao escrever?
Ao ser poeta, Fernando Pessoa não estaria fingindo o próprio fingimento? Ou
o sabor e o deleite que os versos nos provocam estão no encontro de sentimen
tos com o Belo, mais do que com a veracidade do descrito?
Emb ora o cam po das artes seja mais aberto e interpretativo que os demais,
a mesma questão se apresenta naqueles campos do conhecimento nos quais a
verdade é o seu própr io escopo, mas que em seu sentido absoluto (da verdade),talvez nunca se alcance.7Isso nos relembra a dicotomia filosófica entre o apa
rente e o verdadeiro que é sempre utilizada para justificar um pensamento em
detrim ento dos demais.
6 p e s s o a , Fernando. Ficções do interlúdio, m a r t i n s , Fernando Cabral (org.), p. 100.
7Nietzsche ressalta o impulso tirânico da filosofia em busca da verdade: “A vontade da verdade,
que ainda nos fará correr não poucos riscos, a célebre veracidade que até agora todos os filósofos
reverenciaram [...]. O problema d o valor da verdade apresentou-se à nossa frente - ou fomos nós
a nos apresen tar d iante dele?M. Mais adia nte ,“Reconhecer a inverdade como condição de vida: istosignifica, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos de valor; é uma
filosofia que se atreve a fazê-lo se colocando, apenas po r isso, além do bem e do ma l'’. Além do bem
e do mal: prelúdio a uma filosofia dofuturoy p.9-11.
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O Que é a Hermenêutica? 7
As próprias escolas hermenêuticas que se formaram ao longo dos séculos in
cutiram aos métodos pregressos o caráter de aparência do sentido que aquele po
deria alcançar, ao passo que o novo método criado t inha ao lado de si a verdade.
Não cabe à hermenêutica determ inar o que é a verdade e o que é equívoco.
O sentido enco ntrado deve ser justificado ora pela intenção do autor, ora pela
forma como o intérprete analisa e enxerga o conteúdo. Há quem se refira ainda
à força própria do texto, como se esse possuísse vida autônoma face aos sujei
tos criadores e interpretativos, conferindo significado a si mesmo.
A discussão é extensa e será feita em momentos op ortu nos , sempre dentro
do que cada escola hermenêutica propõe. O que se torna claro é que a inves
tigação dos sentidos de um texto significa incursionar em esferas subjetivistas
mais do que em estruturas objetivas como se poderia supor. O encontro de
dois mun dos (autor e intérprete) proporciona um ambiente de descoberta ex
trem amente frutífero do qual surgiria o novo ou um reencontro revelador com
o velho, de modo a contribuir para o caráter humano e dinâmico de nosso
aprendizado.
1.3. Hermenêutica como traduzir
A função de traduzir um texto torna-se explícita quand o se trata da co m
preensão de uma língua estrangeira. É o que Herm es fazia quando traduz ia as
mensagens divinas para a linguagem dos homens.
Entretanto, pode-se dizer que há tradução mesmo quando texto e intér
prete dominam o mesmo idioma.
Não há di ferença estrutural de apreensão do conteúdo de um discurso
quando ele é escrito em língua materna ou estrangeira. Todo idioma, inde
pendente de sua denominação, é um repositório cultura l que nos remete acertas qualificações, por exemplo, históricas e regionais. Entender o subst rato
de det erm inad o idioma, seus vocábulos e suas expressões próprias, é essen
cial na tarefa da compreensão.
Em Memórias do subsolo, de Dostoiévski, o personagem principal nos diz
em suas tortuosas e ásperas elucubrações que: “na terra russa não existem im
becis, isto é no tór io ; é nisso que nos di st ingu imos de todas as demais terras
alemãs.”8
8 Memórias do subsolo, p.59.
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8 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
Nesse caso, o termo terras alemãs tratava-se de uma expressão popular da
Rússia oitocentista, cujo s ignificado seria o de terras estrangeiras, como nos re
lata o tradu to r em nota de rodapé. Grave equívoco seria o de considerar o texto
em sua literalidade, sem considerar as peculiaridades históricas da linguagem
utilizada pelo autor.
É interessante também l embrarm os do personagem de quadrin hos criado
por Goscinny e Uderzo - Asterix, o gaulês. Em suas aventuras com o compa
nheiro Obelix, não raro eles se deparavam com tropas romanas que, ao ver os
bravos gauleses e cientes da surra que levariam destes, exclamavam com grande
pavor: “Por Júpiter!!!”.
Os amedrontados soldados romanos utilizavam tal expressão para mani
festar seu pedido de socorro ao seu deus maior, Júpiter (Zeus na tradição gre
ga), como quem pede misericórdia ao único que pode salvá-los do infortún io.
Em razão de tal elemento histórico, deveríamos traduzir, em um mun
do ocidental majoritariamente cristianizado, os clamores romanos por: “Meu
Deus!” ou “Salvai-me Jesus!”? Ou a expressão “Por Júpiter!” é suficiente para
expressar o discurso romano e toda a carga emotiva?
As questões da tradução, vistas nos exemplos anteriores, fornecem-nos
elementos extremamente ricos para a compreensão de um discurso, estrangeiro ou não, atendo-se sempre às significações que o uso de uma língua pode
possu ir dentro de seu amplo universo de comunicação .
2. Hermenêutica, interpretação, compreensão, explicaçãoe aplicação - traços particulares
A hermenêutica, de um modo geral, sempre foi vista como sinônimo de inter
pretação, compreensão. Poucos são os autores que se atentam aos traços diferencia-dores dos vocábulos e que buscam uma definição própria para cada um deles.
Desde a Antiguidade, os autores empregavam o termo interpretação para
se referirem à análise de textos e à investigação de sent idos de um discurso em
geral. Se verificarmos o sentido desse substantivo nos dicionários modernos,
ele nos conduzi rá às ideias de: explicação ou declaração do sentido de algo; re
presentação de teatro; execução de uma música. Já o termo intérprete, por sua
vez, além de se referir àquele que realiza a interpretação é tam bém quem traduz
algo de um idioma para outro.9
9 f e r r e ir a , Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2.ed. Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1986.
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O Que é a Hermenêutica? 9
Ora, os sentidos encontrados de interpretação são os mesmos que dis
corremos ant erio rmente em relação à hermenêutica: dizer, explicar e traduzir.
Qual seria a diferença entre ambos?
Ao que tu do indica, o vocábulo hermenêutica , apesar de ter raízes na Anti
guidade, apenas começou a ser utilizado recentemente, a part ir do surg imento
dos estudos de interpretação bíblica no séc. XVII. Sua utilização seria pratica
mente a mesma do termo interpretação, como sinônimos, indicando a ideia
fundamental de clarificação de sentido de um texto.
Dessa forma, vários autores conceituam a hermenêutica como a arte de
interpretar, ou como a ciência cujo objeto é a determinação do sentido de um
texto. A verdade é que hermenêutica e interpretação possuem um substrato
semântico comum que faz referência a dizer, explicar e traduzir.
Não poderíamos deixar de citar que, ao longo do desenvolvimento das
escolas hermenêuticas, cada uma delas emprestou um sentido próprio ao vo
cábulo em questão. Asseverar que a hermenêutica de Schleiermacher é a mes
ma de Husserl seria um erro crasso. Entretanto, não se deve olvidar que existe
uma raiz comum que une as diversas correntes hermenêuticas, na medida em
que as indagações filológicas, históricas, fenomenológicas, entre outras, sem
pre buscam alcançar o sent ido de um discurso, cada qual com sua metodologia próp ria.
Assim, tanto aquele que busca nas origens históricas de um evento, como
quem explora as intenções da mente de um autor, está sempre ao encalço de
um sentido.
Hodiernamente, em virtude da grande quantidade de escolas e méto
dos que se formaram, alguns autores, principalmente aqueles da área ju
rídica, passaram a conceber a hermenêutica como uma ciência que visa à
sistemati zação dos método s de int erp ret ação 10, con ferin do à mesma umcaráter organizador das técnicas existentes, na busca de um estudo mais
racionalizado.
10 Segundo Carlos Maximiliano» “a hermenêu tica é a teoria científica da arte de inte rpre tar” e a
“hermenêutica jurídica tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para
dete rminar o sentido e o alcance das expressões do Direito”. Hermenêutica e aplicação do Direito,
p. 13. Já para Luís Roberto Barroso, “A Herm enêu tica jur ídica é u m domín io teórico, especulativo,cujo objeto e a formulação, o estudo e a sistematização dos princ ípios e regras de interpretação do
Direito”. Interpretação e aplicação da Constituição: fun damentos de um a dogmática constitucional
transformadora, p. 103.
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10 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
Não esposamos tal dou tr ina. Para nós, tan to o te rmo hermenêutica quanto
interpretação podem ser utilizados como sinônimos na seara jurídica, uma vez
que, no campo do Direito, a utilização de ambas se refere a uma pesquisa de sen
tido da norma, sem maiores conseqüências teóricas e dogmáticas daí advindas.
Por outro lado, o mesmo não ocorre 110 campo da filosofia. Ao longo de
décadas, diversas escolas hcrmenêuticas-filosóficas distinguiram interpreta
ção, hermenêutica, compreensão e explicação, sendo necessário o rigor con
ceituai.
O romantismo alemão, por exemplo, considerava que a compreensão era
própria das ciências do espíri to (Geisteswissenchaften), enquanto a explicação
estava ligada às ciências da natureza ( Naturw issenchaften ). O filósofo francês
Paul Ricoeur nos expõe tal distinção, dizendo que a explicação, para aquela
doutrina, referia-se à compreensão de fatos observáveis, causas e efeitos, leis
gerais e processos hipotético-dedutivos. A compreensão, por out ro lado, impli
cava exper imentar um outro sujeito, tom ar conta to com essa alteridade em um
fenômeno comunicat ivo.11
Para Ricoeur, esses conceitos não devem ser levados ao extremo, isolando
uma atividade da outra. De acordo com seus estudos, a compreensão se con
substancia na unidade intencional do discurso (ênfase no locutor) e a explicação na estrutura analítica do mesmo (ênfase na enunciação). Dessa forma,
apesar de expressarem polos distintos, compreensão e explicação trabalham
dialeticamente no processo da interpretação.
Um outro traço conceituai deve ser traçado em relação ao termo com
preensão, cujo sent ido está ligado à ideia de percepção e entendimento de algo,
isto é, o modo como o sujeito apreende determinado objeto e o toma para
si. Não faremos aqui uma digressão à gnoseologia para verificar a precisão
dos mom entos de compreensão e os de interpretação da mente humana, masconstataremos com Gadamer que a interpretação se revela como uma forma
explícita da co mp reensão12, ou com o diz Richard Palmer, dá ênfase ao aspecto
discursivo13.
11 c o s t a , Miguel Stadler Dias da. Sobre a teoria da interpretação de Paul Ricoeur , p.42.
Nas palavras do au to r alemão: “o r oman tism o reconheceu a unidade interna de intelligere e ex-
plicare. A interpretação não é um ato posterior e ocasionalmente complem entar à compreensão.
Antes, compreender é sempre interpretar, c, por conseguinte, a interpretação e a forma explícitada compreensão. [...] Esses três momentos devem perfazer o modo de realização da compreen
são.” Verdade e método I: traços fundamentais de um a hermenêutica filosóficay p.406.
13 Hermenêutica, p.30.
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O Que é a Hermenêutica?
Mas ainda há um quarto vocábulo: a aplicação. Nessa, a ideia de concre-
tude se faz presente de forma incisiva, denotando algo que deve ser trazido ao
mundo real, em contraposição àquilo que reside e permanece no pensamento.
O termo aplicação foi utilizado, sobretudo , nas escolas hermenêut icas jurídicas,
referindo-se a uma interpretação que não se restringiria apenas a pensar, refletir
ou teorizar um entendimento acerca de um texto legal. A lei, expressa no orde
namento jurídico e discutida em um processo, deve sempre conduzir a um a de
cisão concreta, isto é, a um a sentença judicial que aplica a no rm a em questão.
Todavia, embora o termo pareça estar longe das esferas subjetivas da com
preensão e da interpre tação, a fenomenologia tra tou de aproximá-los para des
crever a aplicação como um mom ento fundamental da própria compreensão,
no que foi seguido pelas correntes jurídicas mais modernas.
Isso porque a pretensa separação absoluta entre o interpre tar e decidir
concretamente não pode se perpetuar. O pensamento moderno, apoiado
na filosofia e no desenvolvimento da psicologia e da psicanálise, é cons
ciente de que o pen sar é direciona do pelos interesses do indivíduo , ou seja,
quando ele busca compreender um discurso, ele o faz com vistas a alcançar
algo.
Essa prede term inarão do sujeito em querer saber algo para algo condiciona o processo interpretativo. Trata-se das expectativas e dos preconceitos do
sujeito intérprete.
Qu an do alguém faz a leitura de um texto, antes m esm o de iniciá-la, já terá
realizado inconscientemente algum juízo de valor sobre o mesmo, seja por
que já conhece o autor ou o assunto, seja porque mantém uma expectativa de
sentidos sobre ele, como quem diz: quero ouvir “isto” nesta leitura, ou preciso
resolver “tal” problema.
Isso é ainda mais claro quan do se trata da hermenêu tica jurídica. Quan doum juiz interpreta um caso e aplica uma lei, não o faz pela mera análise fac
tual e sua correspondência normativa. Ao se debruçar sobre uma lide, todo e
qualquer juiz já possui uma enorme carga de pré-conceitos e expectativas, que
se traduzem em seu modo de enxergar o justo, em seu aprendizado teórico,
suas ideologias, sua experiência prática etc., que influenciam no modo como
alcançará a decisão.1'1
11Ver a esse respeito, o texto de Eduardo C. B. Bittar, “Hans Georg Gadamer: a experiência herme
nêutica e a experiência jurídica”. In: b o u c a u l t , Carlos Eduardo de Abreu & r o d r i c í u e z , José Rodri
go (orgs.). Hermenêutica plural: possibilidades jusfilosóficas em contextos imperfeitos , p.181-201.
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12 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
A aplicação, apesar de parecer um momento posterior e alheio à com
preensão, guarda com esta uma relação dialética desde o início.
Assim, evidenciam-se as peculiaridades existentes entre interpretar, expli
car, compreender e aplicar, demonstrando que há um fio condutor que as une
no singular movimento interpretativo que o sujeito faz com o texto na busca
pelo entender .
3. Lógica, retórica e hermenêutica
Na med ida em que tomamos contato com uma ideia, u m texto ou mesm o
um objeto material, estamos a percebê-lo e compreendê-lo por meio de juí
zos mentais que nos conduzem à expressão (clarificação) daquilo que estamos
captando.
Nesse sent ido pouco rigoroso de nosso “entender as coisas”, as ciências ló
gica, retórica e hermenêu tica se entrelaçam e coabitam muitas vezes o mesmo
espaço, ainda que cada uma possua seu objeto de estudo específico.
Esses ramos do conhecimento se inserem dentro do conceito amplo de
filosofia que é gênero de todas as espécies em questão. Vale dizer, sob o manto
da busca do conhecimento não se pode isolar uma ciência da outra, mas apenas indicar quais pontos as tornam distintas, de modo que as mesmas não se
excluam, mas se complementem.
Em relação à lógica, tom ada aqui, inicialmente, em seu sent ido tradicional
de estudo dos modos como se realizam os juízos de pensamento e suas cone
xões, as distinções poderiam ser observadas de forma clara, principalmente
em razão da óptica nitidamente formalista e instrumental que lhe conferiu
Aristóteles.
Para o mestre estagirita, a lógica se constitui em um método que leva à pureza do pensar e à certeza da retidão do raciocínio alcançado. Tal método se
traduz no silogismo. O modelo da premissa maior, premissa menor e conclu
são cond uz a uma certeza que permite ao homem pensar melho r.15
A compreensão, estudada pela lógica clássica, está relacionada a um modo
ideal de raciocínio, o qual apon ta o cam inho (método) que o pensam ento deve
realizar para tornar-se válido. Nota-se, aqui, que o escopo da lógica silogística é
a validade do pensamento e não a verdade daquilo que se infere.
15 Exemplo: premissa maior: as árvores têm folhas; premissa menor: o eucalipto e uma árvore;
conclusão: o eucalipto te m folhas.
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O Que é a Hermenêutica?
O m odelo dedutivista e studad o po r Aristóteles está alicerçado sob um
p rim um veru m inquestionável, impe dindo qualquer indagação de conteú
do a seu respeito. Um silogismo evidentemente falso, sob o ponto de vista
da realidade, pode ser perfeitamente válido como raciocínio lógico. Por
exemplo:
Premissa maior: As bananas têm asas.
Premissa m eno r: João é uma bana na.
Con clusão: João tem asas.
A lógica em si, não explica o que são bananas , porque elas têm asas e nem
quem é João. Ela apenas ensina suas conexões lógico-formais.
Sendo assim, nesse sentido de lógica formal, pouco temos a relacioná-la
com a hermenêutica, já que aquela não se atenta para o conteúdo do que foi
discorrido, mas apenas para as conexões formais dos enunciados.
Somente a partir das perspectivas da lógica moderna, como a lógica do
razoável ou as lógicas do concreto, poderemos aproximá-la com os aspectos
fundam entai s da hermenêutic a de entender e torn ar claro.16
A ciência jurídica, diga-se de passagem, por muito tempo foi estudadacomo um modelo silogístico puramente formal, no qual a lei se consubstan
ciaria na premissa maior, a lide, na premissa menor e a sentença judicial, na
conclusão. Exemplo:
Premissa m aior: art . 121, CP: “M atar alguém.”
Premissa men or: Carlos ma tou Maria.
Con clusão: Carlos com eteu o crim e do art . 121 do CP.
O trabalho do operador do Direito, nesse caso, seria extremamente me
cânico, na medida em que apenas teria de aplicar um preceito previamente
estabelecido e inquestionável à sua situação fática correspondente, gerando as
respectivas conseqüências jurídicas previstas na lei.
Não tardou para se pe rceber que o labor jud icial não pode ser reduz ido
a esta atividade formal. Primeiramente, porque a conexão entre o fato e a
16 Em seu conceito de Lógica, Alaôr Caffé Alves salienta sua perspectiva formal e material, tratando de harmonizá-las: “Definição: lógica é a ciência das leis ideais do pensamento e a arte ou
técnica de aplicá-las corretamente, a indagação (busca) e a demonstração da verdade.” Lógica:
pensamento formal e argumentação: elementos para o discurso jurídico , p. 134.
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14 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
regra jurídica não é tão simples de se realizar como se supunha. A comple
xidade da realidade e dos sujeitos não permite que a lei preveja em minúcias
caso a caso, ainda mais quando a primeira tem a forma tradicional de uma
hipótese.
Assim, a premissa menor é muito mais rica e dinâmica que a premissa
maior, impedindo que haja uma correspondência perfeita entre ambas.
Um segundo ponto é que a consciência moderna permitiu que se inda
gasse sobre a validade da lei, isto é, sua legalidade ou inconstitucionalidade.
A premissa maior, a qual deveria ser um prim um verutn , deixa de sê-lo já que
pode ser questionada no Poder Judiciário. O cr itér io do justo e da legalidade se
entrelaçam para pe rmi tir uma maior discussão a respeito das decisões legisla
tivas, fazendo com que a lógica tradic ional e a aplicação silogística tenham seu
valor relativizado na área jurídica.
A retórica, por sua vez, sempre trilhou traços mais íntimos com a inter
pretação, havendo um campo comum no qual ambas interagem.
A arte re tórica iniciou-se na Sicília grega, por volta de 465 a.C., e tem sua
origem nos embates judiciários que se travavam naquela época sem o auxílio
dos advogados (profissão inexistente até então) . Com o as pessoas necessitavam
de se defender de alguma forma, foi editada uma obra que visava a ofereceraos litigantes alguns artifícios oratórios e argumentativos, que os levassem a
convencer os julgadores sobre sua inocência ou a dem ons tra r a culpa alheia. O
filósofo Córax (cuja obra descrita leva seu nome) define retórica, pela primeira
vez, com o criadora de persuasão.17
O conceito foi largamente utilizado pela doutrina sofista, a qual influen
ciada pelo relativismo pragmático de Protágoras (“o homem é a medida de
todas as coisas”) pregou, durante décadas, que ao sujeito não cabia conhecer a
verdade, mas apenas a sua verdade. Vale dizer: as coisas somente são na formacom o cada hom em as veem, não há verdade pura e absoluta.
Seguindo o raciocínio de Protágoras, uma vez que cada um, em sua indivi
dualidade, formula um juízo sobre algo, a única forma do outro compartilhar a
mesma opinião é por meio da retórica, a qual visa persuadir pelo discurso.
Tais pretensões eram claramente contrárias aos ideais platônicos filo
sóficos. De acordo com o mestre grego, o corpo humano seria um túmulo
que guardava as reminiscências da Verdade, somente encontrada no mun
do inteligível (o mu nd o das verdades imutáveis). A única fo rma de se livrar
17 r e b o u l , Olivier. Introdução à retórica, p.2.
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O Que é a Hermenêutica?
desse corpo mundano e atingir tais Verdades seria por meio da filosofia e
da dialética.
Longe de tentar convencer alguém a respeito de suas crenças e pensamentos, a
dialética objetivava, de uma forma nobre e elevada, conduzir o homem à verdade,
por meio de um diálogo justo e aberto, cujas contradições deveriam ser expostas
claramente e cooperativamente, sem o intuito de se encontrar vencedores.
Para Platão, a retórica somente seria utilizada para justificar discursos ló
gicos inferiores, já que a verdade alcançada pela dialética é sempre evidente e
sua superio ridade t riunfa sofre qualquer sofisma.
Aristóteles, posteriormente, viria a conciliar a nobreza platônica com o
pragmatism o sofista, na medida em que não concebeu a retórica com o uma for
ma de dominação e opressão pelo discurso, mas sim como uma arte de se defen
der - e de defender aquilo que é verdadeiro. Sendo os valores relativos, estes não
podem ficar desprotegidos dos discursos tirânicos, em vez disso, os bons valores
precisavam de fortes argumentos para não sucumbirem em um embate.
Desse modo, Aristóteles efetuou diversos estudos que levam a uma efi
ciente retórica condutora de uma persuasão positiva. Obviamente, o mestre
estagirita também fez questão de diferenciar a arte retórica e seus diversos
campos de aplicação, já que os argumentos utilizados dentro de um discurso judic iário possui funções e pe rsonagens diferentes daquele travado por filó
sofos; seus escopos, inclusive, não são os mesmos, modificando claramente a
intenção do retor e como ele se comporta.
Hodiernamente, a retórica foi conceituada como a arte de persuadir pelo
discurso18ou, na auto denom inada Nova retórica , de Chaim Perelman e Lucie
Olbrechts-Tyteca, como “o estudo das técnicas discursivas que permitem pro
vocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhe apresentam ao
assentimento”19.Pode-se perceber assim que, apesar de todos os séculos de distância entre
a retórica originalmente desenvolvida na Sicília grega e aquela do séc. XXI20, o
cerne desta arte continua a ser a persuasão.
18 Ibidem, p.XIV.
19 Tratado da argumentação: a nova retórica, p.4.
20 Vale ressaltar que com o cientificismo, Descartes passou a repudia r a retórica , pois a considerava
como a arte de falar empolado. O raciocínio cartesiano rigorosamente demonstrativo conduziria
à verdade das coisas, que não perm itiria nem m esmo o argumenta r, tal a evidência e força da con clusão encontrada. Somente com Perelman, no pós-modernismo, e com o relativismo retórico,
foi possível o reencon tro com os term os “verossim ilhança’' e “plausibilidade>>, em contrapos ição a
busca ferrenha do perfeito pelo racional .
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As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
O que teria então em comum a hermenêutica com a retórica? Em que a
persuasão seria assimilada com a interp re tação e a compressão? Seria preciso
entender para persuadir? Ou pelo contrário, somente se consegue persuadir
por meio de uma clara compreensão do assunto?
A resposta quem nos dá é Oliver Reboul, em sua obra Introdução à retóri
ca. De acordo com o filósofo francês, a retórica possui quatro funções: persua-
siva, heurística, pedagógica e he rmenêu tica.21
Em breve síntese, a função persuasiva estaria ligada à ideia de convencer
um auditório por meio de recursos racionais e emotivos. A heurística estaria
preocupada com a descoberta dos argum entos , con fe rindo um caráte r de cria
tividade e originalidade ao retor, o qual deveria desenvolver seus raciocínios de
forma clara e coerente (função pedagógica).
Por fim, resta o caráter hermenêu tico explicitado pelo próprio autor:
A le i fund am ental da re tór ica é que o o rad or - aquele que fala ou escreve
para convencer - n un ca está sozinho , exprim e-se sem pre em conco rdânc ia com
outro s oradores o u em oposição a e les, sem pre em função de ou tros discursos .
Ora, para ser persuasivo, o orador deve compreender os que lhe fazem face,
captar a força da retórica deles, bem como seus pontos fracos. Esse trabalho deinterpre tação é fe ito por todos de m od o mais ou m enos espon tâneo. [...]
Para ser bom orador, não basta saber falar; é preciso saber também a quem
se está falando, compreender o discurso do outro, seja esse discurso manifesto
ou latente, detectar suas ciladas, sopesar a força de seus argumentos e sobretudo
captar o não di to.
[...] N ão se ensin a m ais re tó ric a co m o arte de p ro du z ir dis cursos, m as c om o arte
de inte rpr etá -lo s [...].22
Nesses moldes, a hermenêut ica se torna uma tarefa essencial do retor, que
deve sempre interpretar o discurso e seu auditório para poder persuadir de
forma mais eficiente.
Isso é evidenciado, por exemplo, na seara jurídica criminalista, em que
o bom advogado deve fazer uma leitura prévia do corpo de jurados antes de
iniciar a defesa do acusado. O uso de um discurso cientificista e puramente
21 Introdução à retórica, p.XVII-XXI.
22 Ibidem, p.XVIII-XIX.
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O Que é a Hermenêutica?
técnico terá pouca adesão caso o auditório seja formado por indivíduos com
pouca formação escolar. Portanto, o uso de parábolas , ilustrações e ditos po
pulares certamente surt irá mais efeito, dado o conhecimento mais próximo e
mais acessível.
O contrário ocorrerá, caso se trate de uma demanda altamente técnica e
especializada, por exemplo, uma ação de cartel em determinado setor da eco
nomia. Os argumentos técnico-econômicos terão supremacia sobre os de cará
ter emocional, que pouca força exercerão sobre o julgador.
Assim, com preender um auditório a pa rtir de seus preconceitos e valores
é uma tarefa fundamenta l para a adesão deste. A situação econômica, histórica
e social do sujeito é fundamental na formação de seus juízos, e o retor deverá
trabalhá-los a seu favor.
Logo, a interpretação em âmbito retórico reside na exigência de se entender
a quem se dirige e como se dirigir a este ente, tendo em vista a adequação de argu
mentos e posturas que serão realizadas em função da análise hermenêutica.
As correlações lógicas, retóricas e hermenêuticas podem muito bem ser
estudadas cooperativamente de modo a propiciar um estudo filosófico supe
rior, permitindo uma melhor compreensão das ideias e do sujeito em si. Pro
cedendo desse modo, adquirirá o indivíduo maior precisão e retidão em suatarefa na busca do conhecimento.
4. Escolas hermenêuticas e a hermenêutica jurídica
Ao que tudo indica, a hermenêutica se iniciou no seio da Igreja Católica
Medieval, a par tir dos comentários realizados pelos eclesiásticos para clarificar
o sentido das passagens das Sagradas Escrituras (muitas vezes obscuros para o
leigo). Não tardou para que outros ramos do saber descobrissem a utilidadedas técnicas de interpretação, fato este que promoveu o desenvolvimento de
diversas escolas hermenêuticas no período moderno.
Restou evidenciado que a interpretação é uma necessidade natural do ser
humano, independente daquilo que está em exame, em razão de seu próprio
caráter discursivo. Encont rar sentidos e atribuir significados é uma atitude rea
lizada a cada mo men to, jun tam ente com o nosso pensar. Foi só preciso que os
exegetas bíblicos construíssem técnicas com tal finalidade, para que os estu
diosos das demais áreas as transformassem em instrumentos aplicáveis à sua própria disciplina.
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18 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
Por uma questào metodológica, partiremos das escolas hermenêuticas
filosóficas para, posteriormente, examinarmos os métodos interpretativos da
lei no campo do Direito. O uso da hermenêutica jurídica tardou um pouco
a aparecer já que os códigos legais mod ernos surgiram somente após a Revo
lução Francesa (final do séc. XVIII) e, mesmo assim, muitas vezes possuíam
disposições expressas que proibiam a interpretação das leis.
Durante muitos anos, as doutrinas liberais exigiram a separação absoluta
entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Não podia haver influência
de um sobre o outro, sendo a independência uma regra de ouro para o sistema.
Somente mais tarde percebeu-se que a hermenêutica poderia auxiliar o
Poder Judiciário, que já não era um poder isolado, mas trabalhava harmoni-
camente com o Legislativo. A lei não era mais um texto claro que expressava
uma rígida vontade parlamentar, mas uma disposição normativa que deveria
ser compreendida pelos juizes para melhor solucionar uma lide e concretizar
os ideais de justiça da sociedade.
Além do mais, o uso da hermenêutica nas ciências jurídicas não só favo
receu o estudo das leis, como também revelou uma faceta importante e vivifi-
cante da hermenêutica antes pouco percebida: a aplicação.
Tradicionalmente, havia uma clara preocupação com os processos com preensivos e interpretat ivos dos textos, não se a tentando à d imensão da aplica
ção. Seu crédito foi apenas descoberto devido à própria finalidade do sistema
jurídico, que é c riar e aplicar a lei. Veremos em momento oportuno a relevân
cia de tal fato.
Sendo assim, na Era íModerna, as experiências hermenêut icas das diversas
escolas passaram a se influenciar constantemente, criando um ambiente mul-
tidisciplinar e permi tindo enorm es avanços em seus estudos.
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CAPÍTULO 2
Escolas Hermenêuticas
I . Escola bíblicaOs estudos de interpretação da Bíblia foram os primeiros a utilizar o ter
mo hermenêutica para descrever a atividade de investigação de sentido a partir
do estudo de um texto. Não se deve olvidar, todavia, que os clássicos já haviam
pensado em formas de se apreender o sentido de um discurso, mas davam a
isto o nome de interpretação, e, muit as vezes, a estudavam ju nto com a poesia
e a retórica.
A Escola Exegética, por sua vez, criou uma forma de leitura da EscrituraSagrada que se diferenciava dos modelos conhecidos em seu tempo: o uso de
comentários reais (exegese).
Devido a esse fato, alguns autores acreditam que deva ser feita uma se
paração técnica fundamental ent re a hermenêutica e a exegese. Isto porque,
apesar da prim eira ter originado a segunda, o modelo exegético se realiza por
meio de comentários, ao contrário da hermenêutica que se traduz em méto
dos e técnicas de interpretação (revelação de sentido). Para esses estudiosos,
a criação de instrum entos que pe rmitem interpretar é claramente diverso daquilo que se considera meio, mas na verdade se constitui com o fim. Em outra s
palavras, não se pode ria confundir a técnica de interpretação, com o texto já
interpretado.
A diferença entre a exegese bíblica e a hermenêutica moderna se origina
somente com o Iluminismo, principalmente na Alemanha, onde a influência
das correntes protestantes e o racionalismo criaram um ambiente propício
para a criação de uma herm enêutica mais vinculada à ideia de ciência, de mé
todo, conforme exporemos adiante.Entretanto, não se pode dizer que a exegese bíblica não tivesse uma di
mensão metodológica, já que os comentá rios realizados eram efetuados - e
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20 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
assim deveriam ser feitos a parti r da leitura literal do texto (sensus literalis)
de forma que se pudesse clarificar as verdades divinas.
Por outro lado, não se tratava de encontrar um sentido para o texto, de
forma livre e independente. A atividade exegeta possuía um scopus definido: a
justif icação dos dogmas da Igreja a partir das Sagradas Escrituras.
O intérprete sacro estava então totalmente desprovido de liberdade para
descobrir os sentidos das passagens bíblicas. Mesmo quando eram estudadas
as parábolas - cujas metáforas tornam a atividade hermenêutica mais aberta e
especulativa -, o resultado final deveria sempre traduzir uma unidade dogmá
tica incontesti.
A busca por essa unidade se transformou em um princípio interpretativo
sobre o qual Lutero se debruçou densamente. De acordo com o teólogo, cada
passagem individual da Bíblia deveria ser entendida em relação ao todo do
Livro (contextus), de forma a revelar uma unidade de sentido para o qual todas
as passagens individuais se direcionavam (scopus). Desta forma, o particular
conduzia e justificava o geral, e vice-versa.
Este movimento circular passou a ser conhecido posteriormente como
círculo hermenêutico, e, até hoje, provoca inúmeras discussões acadêmicas dada
sua estrutura.1A Escola da Exegese bíblica, rigorosamente falando, não criou um método
hermenêutico propriamente dito, tomado aqui no sentido de um sistema de
regras e proced imen tos para a interpretação de um texto. Entretanto, revelou a
necessidade de torn ar claras passagens textuais consideradas obscuras, de difí
cil entendimento para os leitores (no caso, os fiéis), alertando os racionalistas
do séc. XVIII que algo deveria ser feitos para que suas obras também fossem
corretamente interpretadas e compreendidas.
2. Escola filológica
As portas abertas pela teologia bíblica permitiram que inúmeros intelec
tuais do período racionalista-iluminista buscassem um método que permiti
ria um maior entendimento das obras clássicas, relidas avidamente naquela
época.
1Vale ressaltar que este problema já era conhecido pelos rctores gregos, cientes da relaçüo que
deveria haver entre o “ind ividual” e o “tod o” no discurso.
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Escolas Hermenêuticas 21
Nesse particular , a exegese bíblica era frus trante para tais fins, vez que sua
pecul ia ridade finalística em justif icar dogmas não permitia seu uso nas artes
profanas. Outrossim, não era conveniente tratar a he rmenêuti ca de uma forma
universal, já que os próprios teólogos consideravam que a prática interpretati-
va deveria ser reservada aos textos sacros.
Sendo assim, para esses intelectuais sedentos de interpretação, o estudo da
filologia passou a ser a chave-mestra. A ciência das línguas, da semântica dos
vocábulos, das regras gramaticais, da morfologia etc. se demonstrou como a
forma mais racional possível de se alcançar o sentido de um texto.
Pode-se dizer que aqui ainda não se trabalha com uma ciência da inter
pretação no sent ido rigoroso do termo. As doutrinas não estão claramente
definidas e os filólogos se comunicam com os teólogos com certa frequência.
Os primeiros buscam um conjunto de regras gerais de uma exegese filológica,
passível de ser aplicada em todas as obras do gênero humano. Os segundos
(teólogos), ainda permanecem firmes em sua tarefa de desvendar a Escritura
Sagrada e unificar o saber ao redor da fé cristã.
3. Schleiermacher e a hermenêutica universal
Somente com Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher, filósofo alemão do
final do séc. XVIII e início do XIX, a hermenêutica é concebida como um pro
cedim ento universal que visa a interpreta r qualquer tipo de texto, independen
te da ciência a que está adstrito seu conteúdo.
Os pressupostos filosóficos de Schleiermacher que permitem desenvolver
a hermenêutica como u ma ciência, residem na ideia de que no diálogo entre os
homens, a estranheza (Fremdheit ) é um a constante, na medida em que a carga
de vida e as experiências particulares constroem os seres humano s diversos umdos outros.
A existência do eu e do outro sempre implica essências diversas que, ao
comunicarem-se , estarão inevitavelmente expressando seus eus diversos. Nesse
processo interpessoal , o mal-entendido ocor re com grande probabi lidade . Isso
nos conduz à ideia primitiva de que compreender significa entender uns aos
outros.
A particularidade do eu e do tu tem grande influência na doutrina de
Schleiermacher que, contrariando a ordem iluminista da existência de umarazão pura e superior, considera o discurso à luz da subjetividade e do psicolo-
gismo de seu autor. Não há um a razão m aior e única que guia a compreensão,
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22 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
mas somente um modo de enxergar que cada autor se expressa a partir de sua
individualidade.
Desse modo, o filósofo alemão constrói o conceito de hermenêutica uni
versal (allgemeine Hermeneutik)y uma ciência que busca metodologicamente
a consciência do tu , tendo em vista a resolução de estranhezas e mal-entendi-
dos.
Pela primeira encontramos a ideia de um conjunto de regras (método)
que leva ao entendimento. A hermenêutica não é mais vista em razão de seu
resultado interpretativo (o sentido aferido), mas como uma metodologia que
conduz a este.
E podemos então nos perguntar: e como funciona este método? Como
ele resolve a compreensão do tuyse o mal-entendido é inevitável entre os ho
mens?
Para responder a estas perguntas, Schleiermacher desenvolve uma teoria
hermenêutica alicerçada em dois pilares: a interpretação gramatical e a inter
pretação psicológica, ou seja, visa a uma le itura do texto do ponto de vista de
sua estrutura semântica e gramatical, como investiga o sentido que o autor
quis ali imprimir.
Devemos nos lembrar de que, em Schleiermacher, o ideal da razão absoluta já foi quebrado. Estamos diante de um iluminismo romântico de tradição
alemã, no qual a objetividade é expulsa em favor da subjetividade.
Sendo assim, o processo compreensivo não pode ser reduzido à estrutu
ra objetiva do discurso (texto), mas deve contemplar, outrossim, sua estrutura
subjetiva (vontade do autor). Na hermenêutica universal, tudo aquilo que nos é
dado objetivamente somente pode ser considerado como uma medida que nos
conduz ao pensamento originário do autor.
A função da interpretação psicológica é justam ente a de retroceder a gênese da mente do tu e encont rar ali o entendimento. “Todo ato de compreensão é
a inversão de um ato do discurso, a reconstrução de um a construção.”2
Verifica-se assim que há uma superioridade do sujeito em relação à obra,
já que esta serve apenas como estrutura estética. Isso fica ev idenciado quando
imaginamos uma pintura: ela nos fornece diversos elementos, como tonali
dade de cores, luz, posição dos objetos etc., que nos permite deduzir diversos
sentidos acerca daquilo que está exposto.
2 g a d a m e r , Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica,
p.259.
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Escolas Hermenêuticas 23
Para Schleiermacher, entretanto, esta dedução não é uma operação válida.
Somente podemos deduzir do quadro aquilo que o autor quis dizer com ele,
ainda que não haja um a correlação perfeita entre sua ideia e a obra concretiza
da. Além do mais, compreender um discurso significa alcançar o sentido que o
autor lhe propôs, e não a sua verdade científica.
O ato criativo originário é a busca que a hermenêutica deve traçar. A mente
do autor é o reduto do entendimento e tudo aquilo que foi expresso, somente
conta como estrutura estética.
Entretanto, a interpretação psicológica não trata da diferença fundamen
tal que há entre a produção artística e a não artística, não sendo aquela aplicá
vel a ambas.3
Isso porque a produção artística implica uma dose de genialidade e de
originalidade do autor, não em termos de qualidade do construído, mas em
relação à exclusividade e particularidade da produ ção e, dado esse caráter au
têntico, o artístico não poderá ser apreendido por meio de regras como o não
artístico. Uma vez que o autor desenvolveu sua obra de forma livre, é ele mes
mo quem cria as regras e define os padrões. Somente ele explica a si mesmo,
ainda que a filologia conseguisse alcançar algum sentido.
Sendo assim, a compreensão do discurso artístico necessita daquilo queSchleiermacher chama de adivinhação, ou seja, todo aquele que visa a entende r
o artístico precisa de uma congenialidade para alcançar o sentido. O originário
só é compreensível pelo cooriginário.
Isso somente é possível, pois apesar da estranheza do tu ser fundamental,
também há dentre os homens u ma carga de experiências comum que os apro
xima e os torna aptos a compreenderem uns aos outros. A partir do m omento
em que possuímos um pouco do outro dentro de nós, somos capazes de utili
zarmos processos comparativos para tentar adivinhar o que esse outro diz. Acongenialidade, conforme referimos, será então uma forma de transformação
do eu no tu.
É nesse ponto que a experiência hermenêutica se torna universal, pois
apesar de toda estranheza, há também familiaridade entre os homens, o que
provoca um entendimento comparativo ao que é comum, e adivinhatório ao
que é particular.
Tais estranheza e familiaridade existentes no discurso nos colocará nova
mente diante do círculo hermenêutico, em que se tem um vicioso raciocínio
Ibidem, p.259-60.
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24 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
circular (antes retratado na relação do individual e o todo). Para Schleierma-
cher, a compreensão deve mover-se dentro deste círculo, formado por uma
relação dialética entre o todo e as partes. O retorno de uma parte a outra é
fundamental para que se amplie cada vez mais tal círculo e aprofunde-se a
compreensão.
4. Escola histórica
Com o desenvolvido da filologia e da hermenêutic a românt ica, a historio
grafia encontrou bases sólidas para trabalhar metodologicamente o seu tema
central: a história universal. Seus estudos se alicerçam na pesquisa das correla
ções existentes entre os fatos históricos individuais, de forma que estes viabili
zem uma compreensão integral da história.
Trata-se de investigar o chamado grande livro da vida, cujo saber não pode
ser reduzido ao estudo de momentos particulares, pois estes não se explicam
em si mesmos. Ao contrário, é necessário que os fatos históricos estejam ali
nhados de forma a propiciar uma visão da história como um todo, uma vez
que um conforma o outro. Esta integração deve feita de acordo com a clássica
relação do todo e da parte, já estudada pelo romantis mo no círculo hermenêu tico.
Dessa forma, a historiografia assume uma posição hermenêutica na me
dida em que realiza essa mediação entre o passado factual-individual e o todo-
histórico, descrevendo e interpretando suas relações dialéticas.
A partir de tal concepção, o estudo de um texto não pode mais ser com
preendido unicamente por meio de seus vocábulos que acabam por limitar
semanticamente os sentidos possíveis, nem ao menos como uma investigação
psicológica da produção originária do autor. O sent ido do texto deverá serextraído por meio de sua análise metodológica com os nexos históricos mais
amplos, que justificarão as razões de seu existir como tal. O texto é visto como
uma parte, que deve ser lida em razão de um todo (história), dada a relação de
concordância e coerência que os permeia.
Entretanto, ocorre uma problemática de cunho lógico: ao estudarmos o
todo da história não estamos nos aven turando em algo que se constrói a cada
dia, a cada momento? O agora e o porvir imedia to não se tornam históricos a
partir de suas ocorrências?A história não possui a mesma conclusividade que se encontra na relação
do filólogo com o texto, em que existe um campo de sentidos limitados. Como
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Escolas Hermenêuticas 25
é possível interpretar algo que ainda nâo está definido, que se transforma a
cada dia em algo novo? Como compreender o constante devir ?
Frente a tal obstáculo, Wilhelm Dilthey assevera que a história deve ser
estudada em unidades relativas, ou seja, delimita-se um campo de atuação
hermenêutica que concentre uma unidade de sentidos próprios. Dentro dessa
unidade, serão encontrados conceitos e chaves que somente podem ser escla
recidos dentro de seus próprios critérios de valor, mas que não se distanciam
completamente das outras unidades, já que há um a experiência comu m a to
das elas: a vida.
Da mesma forma que o eu e o tu possuem estranheza e familiaridade, as
unidades relativas da história explicam a si mesmas e também conversam entre
si, formando a história universal.
Todavia, não podemos esquecer que as relações entre as unidades não
surgem acidentalmente, nem ao menos poderiam se estabelecer sem um algo
aglutinador que as unissem solidamente. De acordo com Ranke, este “algo” se
traduz em nexos existentes entre os fatos históricos que, por meio de seus su
cessos ou fracassos, tenham alcançado êxito em conferir ao porvir u m sentido
de efeito duradouro.
Segundo Ranke, tais nexos históricos são “cenas de liberdade”4. São espíritos originais e livres que, em dete rminado m om ento histórico, exteriorizam-se
com o auxílio da força e adquir em significado duradouro.
A associação entre força e liberdade constrói um quadro que não se resu
me ao efêmero, mas que se prolonga no tempo modificando e transforman
do a realidade. Estudar a história significa estudar os jogos de forças que nela
atuaram e ainda atuam, estando elas constantemente a provocar as alterações
fundam entai s àquilo que se chama vida.
Prolongando o raciocínio, pode-se dizer que a história adquire um substrato de continuidade na medida em que essas forças somam-se cada vez que
se manifestam. Vale dizer: estando a história sempre em desenvolvimento, as
forças atuantes das cenas cie liberdades vão sendo depositadas no grande livro
da vida e, ali, permanecem umas com as outras, construindo-se uma tradição
cada vez maior.
É nesse ponto que Droysen faz sérias objeções ao pensamento de Ranke.
Para o primeiro, há um erro metodológico nas considerações desse continuum ,
1 r a n k e , Weltgeschichtey IX, p.XIV apud g a d a m e r , Hans-Georg. Verdade e método I: traços funda
mentais de uma hermenêutica filosófica, p.278.
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26 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
pois uma vez que foram estabelecidas un idades histór icas de sentido, e elas sào
qualitativamente heterogêneas, não é possível efetuar um a simples soma entre
as duas. A ideia da cont inuidade é muito mais formal do que material, já que
os conteúdos não podem ser aglutinados.
Dessa forma, deve-se reconhecer a unidade histórica-universal como re
lativa, sendo apenas uma representação que não impo rta um conteúdo m eto-
dologicamente correto.
Ademais, todo aquele que observa a história está também participando
dela ativamente, já que todo indivíduo está inserido em determinada tempo-
ralidade. Conforme expusemos, o fato de o objeto e o sujeito serem homogê
neos faz com que o pensar sobre o outro seja, na verdade, um pensar sobre
si mesmo, e vice-versa. Deste modo, o sentido de continuidade é visto mais
como uma pré-disposiçâo do pensamento em alcançá-la, do que pela própria
aferição dos fenômenos que ocorrem. É a própria história que busca tal sen
tido, pois, ontologicam ente falando, a história está determ inada pelo saber de
si mesma.
Em outro m omento, Droysen também discorda de Ranke no que se refere
à ideia de história universal como cenas de liberdade. De acordo com Droysen,
a liberdade é um impulso constante dentro dos homens e não possui valorapenas em momentos excepcionais. Para ele, o que mov imenta a história são os
chamados poderes éticos, que se encon tram naqueles indivíduos que se elevam
até os grandes objetivos comuns da vida hum ana e deles participam.
A força ética tam bém possui um substra to valorativo de liberdade, mas o
que se salienta aqui é que o sujeito, em seu atuar na realidade, não está simples
mente expressando sua liberdade singular, mas atuando conjuntamente com o
mundo ético formado pelo coletivo, o que lhe dá a expressividade necessária
para o devir. Nesse momento, surgirá um problema herm enêutico na medida em que
tais manifestações éticas e libertárias encontram reduto no interior de cada
indivíduo. É apenas no íntim o de cada um que po dem os encontrar o verdadei
ro espírito que guiou a força ética. Como bem expressa o vocábulo, em nossa
vida material, tomamos contato apenas com as manifestações de tais forças,
que são imperfeitas face ao ontológico. Cabe então ao historiador, por meio
da hermenêutica, promover uma leitura das exteriorizações dos fragmentos
da tradição, a fim de alcançar o sentido verdadeiro da história universal e seus poderes éticos e libertários.
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Escolas Hermenêuticas 27
4.1.A consciência histórica e a simpatia universal em Dilthey
As relações entre a hermenêutica e a filosofia histórica alcançaram seu
apogeu em Wilhem Dilthey (1833-1911). O mestre alemão não só promoveu
estudos densos sobre a herm enêut ica na linha historiográfica, como ainda lan
çou as bases para o pensamento fenomenológico moderno, realizando uma
conexão epistemológica entre essas duas escolas que marcariam visceralmente
os estudos do hom em e da interpre tação no século seguinte.
Em um primeiro momento, Dilthey situa a hermenêutica como funda
mento das ciências do espírito (Geisteswissenschaften) em oposição às ciências
naturais ( Naturwissenschaften). Segundo o filósofo, é imperativo distinguir às
ciências passíveis de um racionalismo demonstrativo, como a física e a sua possi
bilidade de comprovação causai, daquelas ciências em que tal inteligência não é
viável dado que seu conteúdo é fatalmente complexo e relativo, como a filosofia
e a literatura.
Sendo assim, a hermenêut ica somente se presta ao estudo das Geisteswis
senschaften., na med ida em que realiza a compreensão das expressões da vida do
homem. As Naturwissenschaften, por o utro lado, não necessitam ser interpreta
das, mas sim plesmente explicadas. Trata-se de um a distinção teórica marcantena dou trina de Dilthey, pois separa abissalmente a explicação da compreensão,
colocando a primeira em um plano de elucidação da natureza e a segunda
com o apreensora do espírito hum ano s e suas manifestações.
Ainda que tal distinção seja radical e não tenha vigorado de form a incon-
testada até os dias atuais, o fato é que Dilthey promoveu um apro fundamento
dos estudos hermenêuticos ao colocá-lo como base das ciências do espírito
e, consequentemente, desenvolvendo uma metodologia interpretativa da alma
do hu ma no e das concepções do mundo.Como um filósofo da vida, Dilthey acreditava que não se podia pensar
por meio de conceitos ou categorias externas à vida, assim como não se pode
colocar o raciocínio em um plano supostam ente superior, separado e afastado
dela. Em sua obra Teoria das concepções do mundo , o mestre alemão dem ons
tra como toda a tentativa de se desenvolver um sistema filosófico absoluto e
imutável sucumbiu em razão da ambição de se colocar o pensamen to acima da
realidade, como se ele pudesse dar um salto metafísico para além do humano ,
divinizando a atividade racional.A própria história se incumbiu de demonstrar como as concepções do
mundo são efêmeras e relativas. Desde a época das campanhas de Alexandre, o
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28 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
Grande, a vida colocou aos olhos dos gregos uma diversidade de novos povos,
culturas, costumes e religiões que despertaram o ceticismo e a dúvida qu anto a
certeza do saber absolu to filosófico.5
O conhecimento histórico é fundamental na medida em que relativiza o
saber e anula toda pretensão de validade universal que a filosofia e, por conse
qüência, a hermenêutica, busca conferir ao pensamento. Nas palavras do autor:
Perante o olhar que abarca a Terra e todo o passado esvanece-se a validade
abso luta de qu alqu er form a singu lar de vida, de consti tuição, rel igião ou filosofia.
Por isso, a formação da consciência histórica destrói mais radicalmente do que o
p a no ram a do an tagon ism o dos sis te m as a fé n a vali dade univ ersal de qua lqu er
f ilosof ia que ten ha p re tendid o expressar a conexão cósmica de m od o conv incente
me diante u m a conexão de conceitos .6
O relativismo histórico imposto por Dilthey importa aceitar que a vida
não é somente um a exteriorização de atos que podem ser interpretados. Antes,
a vida é uma dimensão de sentido interior do ser humano pois, a partir do
mo me nto em que este se insere na vida, com ela com unga e co-habita, confor
mando-a e conformando-se, de modo a suspender a relação sujeito-objeto.Para realizar a leitura da vida é preciso tam bém ler a si mesmo, haja vista
que somos aquilo que a vida nos faz; esta última, por outro lado, é apenas
aquilo que nós concebemos como tal. Esta relação dialética exige que a leitura
hermenêutica não se faça em termos de uma simples compreensão, mas de
uma autocompreensão.
Nesse pon to, importante frisar que para Dilthey o ser é histór ico e, por
isso, a autocompreensão não se faz a partir da introspecção (olhar sobre si
mesmo), mas sim, por meio da leitura histórica do homem. Para interpretá-lonão se deve olhar inte rnamente, mas sim, olhar para toda a temporal idade em
que o ser está inserido a fim de extrair-lhe um sentido.
Historicidade, nota-se bem, não é sinônimo de passado. O olhar histórico
ressalta o caráter temporal e relativo do horizonte em que o indiv íduo se insere,
mui to mais do que a referência a acontecimentos pretéritos.
Desse modo, a metodologia herm enêutica de Dilthey exige uma inte rpre
tação dos horizontes em que se inserem os sujeitos, para que, com a relativiza-
5 d i l t h e y ,Wilhem. Teoria das concepções do m undoy p. 15.
6 Ibidem, p. 110.
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Escolas Hermenêuticas 29
ção das diversas visões de mundo, possa-se selecionar os melhores e mais fortes
sistemas de pensamentos, sem conferir-lhes, contudo, o adjetivo de absolutos.
Sem embargos, a fim de que o hermeneuta abandone as concepções de
vida a que está preso, de modo a debruçar-se livremente sobre o universo da
experiência histórica, é preciso que se utilize da simpatia universal, cujo term o
se relaciona com a ideia de que a compreensão livre de desejos e preferências
somente pode se dar por meio da sabedoria do amor.
A simpatia (uma forma de amor) é um a condição fundamental do conhe
cimento e, consequentemente, da interpretação. Aquele que ama está aberto
para novos conhecimentos e novas experiências, não se re traindo para o es
tranho de mo do a fechar-lhe as portas e negar passagem. A simpatia universal
permite uma herm enêutica livre onde vicejam sent idos autênt icos desprovidos
de preconceitos.
Uma vez que a interpretação deve ser guiada para a compreensão do ho
mem (ser histórico), deve-se tom ar cuidado com os limites que seu horizonte
lhe impõe, rejeitando ou admi tindo posições em razão das qualidades morais e
sent imentai s que, ao fim e ao cabo, estão inexoravelmente ligadas à sua relativa
concepção de vida. Por isso a importância do caráter de abertura e liberdade
que propicia a simpatia universal.O próprio círculo hermenêutico de Dilthey é histórico e assim deve ser
tratado. O sentido do todo somente pode ser aferido a partir do sentido das
partes, cada qual apresentando sua ind ividual idade histórica. Sendo assim,
cada experiência da vida pode proporcion ar um sentido ao todo, dem ons tran
do que o sentido não se faz de modo aritmético e calculista como se fosse uma
soma de partes. Apenas um evento, em toda a sua densidade de significados, é
capaz de alterar o sentido do todo e expandir-se sobre as partes.
Desse modo , a relação todo e parte possui a mesma es trutu ra que a com preensão e a autocom preensão, lançando as bases para uma pesquisa de cunho
ontológico que será o traço fundamental da fenomenologia moderna.
5. Escola fenomenológica
5.1. A compreensão do ser
As indagações propostas pela historiografia e pela filosofia em termos deum a hermenêutic a da autocom preensão e superação das tradições do tempo,
somente pud eram ser mais bem elaboradas com o surgimento da fenomeno-
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30 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
logia. Iniciaremos seus estudos com a doutrina do mestre alemão Husserl, na
qual se enco ntram os questionam entos fundadores dessa disciplina, para então
procede rm os às lições de Heidegger e Gadamer.
Traremos à tona apenas as linhas mestras desses estudiosos, que reputa
mos com o referências indispensáveis a qualquer estudo fenomenológico, mes
mo porque o assunto é denso, tortuoso e não poderia ser tratado de forma
analítica em razão do espaço e dos objetivos desta obra.
Ressaltamos que, em nosso trabalho, os estudos da fenomenologia buscam
dem onst rar como a hermenêutica abandona definitivamente o seu conceito de
método para adquirir um conceito de compreensão do ser.
Não mais se vislumbra uma técnica ou um conjunto de regras a serem
aplicadas a um discurso a fim de extrair-lhe uma razão. A busca do sentido,
na fenomenologia, adquire um valor muito mais profundo, na med ida em que
supera a dicotomia sujeito e objeto, em que o p rimei ro lança um olhar sobre o
segundo e retira-lhe determinadas propriedades.
O que está em jogo na fenomenologia não é busca do sentido real, origi
nário ou essencial de algo a parti r da interpretação que o sujeito faz desse algo,
atrib uindo-lhe sentido de forma predicativa. A investigação fenomenológica é
ontológica, pois busca responder à questão do sentido do ser visto em sua pró pria existencialidade, não como sinônimo de realidade, de uma coisa que está
no mundo e pode ser empiricamente constatável. O ser (não como um ente,
mas como existência) manifesta-se no mundo em que vivemos por meio das
coisas que aqui estão postas (o ar, a terra, o hom em , a cadeira etc.). Entre tanto ,
este ser reside em uma dimensão out ra que não esta nossa realidade palpável,
e somente pode ser alcançada por meio de uma fenomenologia que busque o
ontológico.
Resumindo: na fenomenologia, o sentido do ser não é trabalhado como osentido de algo que é, mas sim o próp rio é.
Portanto, o compreender do sujeito se torna um compreender-se, pois o
hom em e o seu ato de compreensão tam bém “são” e deverão ser compreendidos.
O compreender volta sobre si mesm o para realizar a sua próp ria compreensão.
É como se sujeito e objeto se fundissem em uma relação original em que o
sujeito passa a ser também objeto e interpreta-se.
Conforme dissemos, escusaremo-nos de apresentar integralmente as
doutrinas dos autores citados e lançaremos apenas os pensamentos fundamentais de cada autor que reputam os necessários para os fins desta obra. Pois,
na fenomenologia, a relação entre as escolas hermenêuticas e os métodos in-
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Escolas Hermenêuticas
terpretativos nâo é direta, já que os estudos fenomenológicos não visam um
método de atribuição de sentido a um discurso (como é próprio da interp re
tação jurídica), mas investiga o sentido do próprio ser, conforme exporemos
a seguir.
5.2.0 mundo da vida em Husserl
Em suas investigações fenomenológicas, Husserl (1859-1938) esteve sem
pre em busca da resposta que solucionasse as indagações do modo como as
coisas se davam no m undo. O filósofo alemão estava ciente de que as expe riên
cias que os homens realizam na vida se dão de uma forma que lhes propor
cionam um sentido peculiar, mas que poderiam também lhes fornecer outros
sentidos, caso ocorressem de modo diverso.
A posição do ser humano no mundo em conexão com os seus objetos
exteriores se perfaz de uma forma diferente para cada consciência, ou seja, há
uma universalidade ideal de modos como as coisas podem ser experimentadas
sem que uma tenha o mesmo sentido que a outra e, ainda, sem que nenhuma
delas experimen te necessar iamente o real dessas coisas.
Essa problemática é o terreno fértil sobre o qual trabalha Husserl, formulando u ma fenomenologia orien tada para a investigação dos mod os subjetivos
como as coisas se dão.
Essa tarefa herm enêutica perscru ta a ontologia do ser não como ele foi ex
perimentado pela consciência, mas como ele é em sua consti tu ição originária.
Esse é um problema-chave para a compreensão, pois a parti r do m om ento em
que se investiga algo, está a se investigar a respeito de um a coisa que, de a lguma
forma, já possui um sentido atribuído, u ma vez que já foi experim entado an te
riormente, ou o está sendo pela primei ra vez sob determ inadas circunstânciasque lhe determ inarã o um sentido específico.
Face a essa prisão de temporalidade circunstancial em que o ser que com
preende encontra -se, a única forma de at ingi r a fenomenologia da consti tu ição
é por meio da desvinculação de toda posição do ser, o que lhe permite enxergar
a subjetividade transcendental dos entes.
Alcançar este universo de sentido originário implica uma consciência tal
que supere toda a posição temporal da intencionalidade, pois toda consciência
possui uma vida, e toda vida possui seus horizontes . A pa rtir do momento que aconsciência vê o modo como as coisas se dão den tro de um horizonte, este mes
mo delimita-o e atribui-lhe sentido, inviabilizando o ontológico originário.
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32 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
Usemos as palavras de Gadamer para explicar esse raciocínio husserlia-
no:
O fato de que, em tudo, Husser l tenha em vis ta o “desempenho” da sub
jetiv id ade transcenden ta l corresponde sim p lesm ente à ta refa da in vesti gação fe-
nom enológica d a cons t ituição. Mas o que caracter iza seu verdadeiro propós i to é
que ele não fala mais da consciência e nem cia subjetividade, mas de “vida”. Ele
quer pos ic ionar-se a lém da a tual idade da consciência temporal , e mesmo além
da potencia l idade da cointenção, re t roceden do a té a universalidade do produzir ,
a única capaz de m ed ir a universalidade do prod uzido , is to é, do q ue ela cons ti tui
sua validade.
[...]A ref lexão transcenden ta l , que deve suspend er toda val idez de m un do e toda
al teridade dada de antemão , deve pensar-se a si m esm a com o abarcada pelo m u n
do da vida . O eu que reflete sabe que vive sob determinações teleológicas funda
men tadas sobre o m un do da v ida .7
Verifica-se assim a necessidade de se compreender esse mundo da vida
(Lebenswelt ) como o solo prévio de toda experiência, o todo em que vivemosenquanto seres. Esse mundo é essencialmente histórico, e dentro de sua histo-
ricidade possui seu horizonte.
Nesse sentido, o Lebenswelt torna-se um tema fundamental da filosofia
husserliana, na medida em que propõe um reposicionamento do pensamento
filosófico ocidental oprimido pelo desenvolvimento positivista e naturalista da
idade moderna.
Seguindo a divisão anteriormente proposta por Dilthey entre Naturw is-
senschaften e Geisteswissenschaften , pode-se dizer que o tempo de Husserl éfortemente marcado pela predominância das ciências naturais que visavam a
tudo fundamentar sob uma ótica empírica e objetivista.
Na obra Die Krisis der europaischen Wissenschaften um die Transzen-
dentale Phànomenologie8, Husserl expõe como o pensam ento hu m an o m o
derno, vislumbrado com as conquistas tecnológicas e científicas, abando
nou o pensar crítico e reflexivo filosófico para apoiar-se em uma razão
7 g a d a m e r , Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica fúo$óficay
p.331-3.- Referente ao tema, pode-se encontra r no Brasil a obra trad uzida por U rbano Zilles A crise da
hum anidade européia e a filosofia.
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Escolas Hermenêuticas 33
matemática, reduzindo o saber à cientifização da técnica. Nas palavras de
Jovino Pizzi:
De fato, ao longo dos últ imos séculos, a ciência aplicou-se em confirmar
sua pos ição hegem ônica , dand o a entend er que seus recursos ser iam indubi tavel
me nte suf ic ientes para a autoco m preensão s istemát ica e abran gente da real idade.
[.. .] Esse m on op ólio acaba sub sti tuin do a reflexão fi losófica pelo estud o dos fatos
empír icos , interpre tados m etodológica e c ient if icamente , con form e os padrõe s da
p ró p ria ciê ncia.9
Visa-se com isso, a retirar do conhecimento seu aspecto ético e político,
aniquilando a subjetividade do hum ano e pregando u ma intencionalidade do
agir que já não possui cun ho moral, mas está adstrita a uma relação natura l de
causa-efeito.
Para a corrente naturalista, a biologia e a física explicam o modo como o
mundo funciona, conferindo-lhe uma validade científica absoluta, provada e
dem ons trad a faticamente, torn and o inútil a crítica especulativa filosófica. Des
sa forma, instala-se uma crise no pensamento europeu, na medida em que se
reduz a filosofia aos parâmetros científicos:
A controvérs ia em torn o da a t ividade f ilosóf ica chega ao seu apogeu qu and o
a Filosofia passa a aderir a uma racionalidade cognitivo-instrumental , apoiada
nu m proc edim ento f ís ico-mateinático. Este proc edim ento é cons iderado com o “a
Filosofia prim eira”, ign ora nd o sua função crí tica. O p osit ivism o reflete, nesse caso,
um a “sociedade que nã o tem m em ória e nem tem po p ara ref lexionar; à sua luz , o
aspe cto calcu lista sub stitui a ver dad e”10.
Contrariando a mentalidade da época, Husserl apresenta um conceito de
Lebenswelt que entrelaça o mundo objetivo com o mundo subjetivo, investi
gando o todo que perfaz a experiência humana não se permitindo um racio-
nalismo unilateral.
O m un do da vida é, portanto , o ponto de partida para a investigação feno-
menológica que explica a subjetividade e determina a objetividade. Esse m un
do não pode ser encerrado em um positivismo naturalista, nem ao menos se
9 O mundo da vida: Husserl e I laber mas, p.29-30.
10Ibidem, p.32.
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34 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
orientar para um subjetivismo psíquico; ele é fenomenológico pois precede a
toda conceituação metafísica e científica.11
O Lebenswelt se configura como um todo que não pode ser reduzido ou
fragmentado p or um a ou o utra visão científica parcial. Representa todo o con
texto experiencial da vida e, dessa forma, é um local compa rtilhado p or todos
onde se desenvolve o sujeito dentro de um horizonte comum de intersubjeti-
vidade social.
Assim, a pesquisa fenomenológica trilha o caminho para encontrar esse
solo de realização do sujeito no mun do, sem se apegar a uma dou trin a cientí
fica preconceituosa que não alcança ontologicamente o sentido desse encont ro
de mundo e vida, fundamental para a hermenêutica do ser.
5.3. Martin Heidegger e a hermenêutica ontológica existencial
É preciso mui to cu idado ao se estudar Martin Heidegger (1889-1976). Sua
pesquisa fenomenológica é extensa e baseada em uma filosofia analítica, o que
impede um resumo preciso de seu pensamento. Em Heidegger, o reducionis-
mo pode fatalmente levar ao equívoco e qualquer tentativa de síntese é, no
mínimo, temerária. Mesmo porque a terminologia heideggeriana é específica,isto é, diversos vocábulos são reformulados ao longo de sua obra a fim de lhes
conferir um sentido que somente são compreensíveis à luz de seu próp rio p en
samento, assim como é o Dasein, a existência, a temporalidade, o ser no mun do
etc.
Além disso, é parte de sua concepção que a com preensão ontológica do ser
abra possibilidades de sentido que exigem sempre uma nova compreensão, ou
seja, a compreensão é permanente na medida em que não há um sentido ori
ginário alcançado e de term inad o que cessa a atividade de pesquisa ontológica.A fenomenologia sempre libera novos horizontes que deverão ser novamente
interpretados.
Por isso mesmo, em escritos posteriores à obra primeira e fundamen
tal, Ser e Tempo (Sein und Zeit)l2y Heidegger apresenta uma virada de seu
pensamento, chegando-se a considerar os filósofos modernos a exis tência de
um Heidegger I e Heidegger II, fato este negado por aqueles que acreditam
que a própria abertura constante dos horizontes do sentido do ser implicam
11Ibidem, p.70-1.
12 h e i d e g g e r , Martin. Ser e tempo: parte 1.
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Escolas Hermenêuticas 35
tal virada, o que não nega a estrutura primária e fundamental da obra Ser e
Tempo1-.
Sendo assim, estudaremos Heidegger somente naqui lo que é o gérmen de
sua doutrina, a pergunta p rimei ra que conduz toda a sua obra, ou seja: o que é
o ser ? O que significa ser? Qual é o sentido do ser?
Nas investigações fenomenológicas, fica clara a busca pela compreensão
da essência do ser, em contraposição à análise das aparências. Essa tarefa in-
vestigativa é própri a da ontologia, e por isso mesmo, a fenomenologia deve ser
entendida como um conceito de método. A fenomenologia é a via de acesso
para se determ inar aqui lo que consti tu i a ontologia , sendo que esta só pode ser
entendida em função daquela.M
Entendido isso, Heidegger verifica que o term o fenomenologia é co mpos
to por outros dois: fenômeno e logos. De um a man eira costumeira, a tradução
poderia ser dada como ciência dos fenômenos, mas faltaria aqui uma análise
mais profunda que realmente explicitasse o con teúdo desses termos e conferis
se um valor conceituai mais autêntico.
O entendimento de logos não provoca grandes dúvidas. Apesar de seu uso
polissêmico em Platão e Aristóteles, seu sent ido básico é discurso, o que quer
dizer: aquilo que deixa e faz ver. Essa concepção originária sofreu mutaçõesem suas diversas traduções ao longo de séculos de filosofia, chegando aos dias
atuais com a conotação de razão.13
Isso porque somente o discurso é que permi te perceber, discutir e emitir
juízos sobre aqui lo que se discorre, podendo, portanto, ser chamado de razão.
A despeito da história vernacula r do logosyo que nos interessa - e é funda
mental - é entender o que é o fenômeno . O que ele é? O que expressa? Com o
que se relaciona? O que contradiz?
A palavra fenômeno é um a derivação do verbo grego mostrar-se, que estárelacionado com parecer, aparecer, fazer ver. Isso demonstra que o fenômeno
é aquilo que se mostra, aquilo que se faz ver em si mesmo, uma revelação de
conteúdo ontológico. Todo fenôm eno corresponde à máxima: “às coisas em si
mesmas!”16
Entretanto, não se pode deixar que o fenômeno seja confund ido po r aqui
lo que é aparência ou pela manifestação. Apesar dos significados próximos na
13 d u b o i s , Christian. Heidegger: introdução a um a leitura , p . 13.11 h e i d e g g e r , Martin. Ser e tempo: parte i , p . 6 6 .
15Ib idem, p.62-3.
16Ibidem , p.58-61.
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Escolas Hermenêuticas 37
Essa atitude hermenêutica deve ser diferenciada daquela metodologia
trad icional . De acordo com o filósofo francês Chr ist ian Du bo is19, na análise
de Heidegger, a compreensão é imprópria ou própria. Será imprópria quando
com preender a parti r do que se faz, do que se diz. Será própria quando se refe
rir a si e permitir um a abertura verdadeira. A analítica existencial na busca do
sentido do ser deverá rompe r com a compreensão imprópr ia, a fim de possibi
litar a abe rtur a de si mesma.
A hermenêutica , portanto, é a lógica da ontologia fenomenológica, já que
o existir é compreender e explicitar.
Em Heidegger, conforme dissemos, a compreensão implica sempre uma
abertura para uma nova compreensão, o que nos remete ao chamado círculo
hermenêutico. Entretanto, em Ser e Tempo> esse círculo não atua de uma forma
viciosa como a estrutura tradicional desenvolvida pelos autores clássicos em
que “o todo d ete rmina as partes e as partes dete rminam o todo ”.
Aqui, o círculo é concebido de uma forma peculiar pois, de acordo com
o filósofo alemão, o correto posicionamento da questão dentro desse círculo
hermenêu tico permite alcançar possibilidades de conhecimento que não o tor
nam vicioso e desde que a compreensão não se faça apoiada em concepções
prévias.20Tais pré-conceitos estão inseridos inevitavelmente na própria tempo-
ralidade do ser. Aquilo que entendemos como ser está determina do a partir
do horizonte do tempo que age como determinação ontológica da subjetivi
dade. A obra Ser e Tempo pode, sob certo aspecto, ser anunciada como “ser
é temp o”.
Essa compreensão, em razão da temporalidade , permi te a quebra de pré-
conceitos e a aber tura de sentidos do ser. A aber tura então efetuada - dent ro
de certa temporalidade -, permitirá uma nova quebra que explicitará outroshorizontes, e assim sucessivamente.
Nesse sentido, a filosofia de Heidegger se apoia na tempora lidade do ser
e na sua autocompreensão. Esses pilares são apenas alguns daqueles que per
19 Heidegger: introdução a uma leitura , p.37.
20 h e i d e g g e r , Martin. Ser e tempo: parte i , p.210: “Esse círculo de compreensão não é um cerco emque se movimentasse qualquer tipo de conhecimento. Ele exprime a estrutura-prévia existencial,
pr óp ria da pré-sença. O círculo não deve ser rebaixado a um vitiosunu mesmo que apenas tole
rado. Nele se esconde a possibilidade positiva do conhecimento mais originário que, de certo, só pode ser apreendida de modo au tênt ico se a interpre tação t iver com pr eend ido que sua p rimeira ,
única e últim a tarefa é de não se deixar guiar na posição prévia, visão prévia e concepção prévia,
por conceitos ingênuos e ‘chutesV'
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38 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
fazem o pensamento da obra do autor e não refletem, de modo algum, um
resumo de sua ob ra.21
Ser e Tempo deve ser lido e relido minuciosamente. N ão se pode ter pres
sa nem anseio em encontrar conceitos diretos e concisos, pois eles não estão
presentes na analít ica fundamental. Sua análise é descritiva e não conceituai.
Como nos ensina Christian Dubois, a obra toda de Ser e Tempo visa a respon
der a questão do sentido do ser, sem, contudo, resolvê-la. Sua ideia é justamen
te a de ab rir possibilidades.22
5.4. O horizonte do tempo e a projeção interpretativa
preconceituosa do ser na fenomenologia de Gadamer
Já pud em os analisar que Husserl e Heidegger conceberam a herm enêutica
com o um a forma de se atingir a ontologia do ser, com respaldo em um a inteli
gência da dimensão histórica e suas implicações fenomenológicas.
O alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002) insere-se dentro dessa linha
filosófica, evidenciando em sua obra-p rima, Verdade e Método (Wahrheit und
Methode)yos pressupostos para toda experiência interpretativa, quais sejam: o
horizonte temporal a que todo indivíduo está submetido pela sua existênciadentro de dado momento histórico, e o modo como isso influencia na sua
formação de hábitos, costumes e preconceitos.
Pode-se verificar isso na atividade da interpretação. Quando o homem se
coloca diante de um texto, sua postura não é a de olhar para o objeto, pura e
simplesmente. O ser que interpreta projeta-se sobre o texto para ali perceber
sentidos e deles se apropriar. Neste movimento, suas intenções e sensibilidades
de vida que possui como ser histórico não se desligam automaticamente para
que a neutralidade frente ao texto seja absoluta. Ao contrário, o projetar-se trazem si uma densa formação histórica do sujeito, e é com ela que o indivíduo
interpreta.
Visamos nesse capítulo apenas a marcar algumas peculiaridades do pensamento heideggeria-
no que possuem ligação com aquilo que estudamos na nossa obra hermenêutica (por exemplo,
compreensão, temporalidade e círculo hermenêutico ). Por esta razão, não efetuamos, proposita
damente, o estudo de conceitos fundamentais como o Daseiti (“pré-sença”, “ser-aí”), o “ser-no-
mun do ”, a “cura”, “a morte ”, o “ser-à-nião”, sem os quais não se pode compreender in tegralm entea obra do autor. Ficamos apenas com alguns aspectos do pensam ento do autor, aqueles que nos
são mais imediatos face aos propósitos traçados, sem negar a parcialidade de tal decisão.
22 d u b o i s , Christian. Ikidcgger: introdução a uma leitura , p. 10.
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Escolas Hermenêuticas 39
Quando o faz dessa forma, o intérprete fatalmente insere em sua com preen
são os preconceitos e as expectativas próprias de sua formação histórica:
Quem qui se r l e r um tex to rea l i za sempre um pro je ta r . Tão logo apareça
um sent ido no t ex to , o in té rpre te pre l ine ia um sent ido do todo . Na tura lmente
que o sen t ido som ente se man i fes ta porq ue q uem lê o t ex to l ê a pa r t i r de de te r
m inad as expecta tivas e na perspect iva de um sent id o de term inad o.23
Essa condição natural do intérprete exige que se tome consciência dessa
atividade indutora de sentidos que realizam as nossas expectativas. Sem isso,
não há como se falar em liberdade de interpretação, e o texto se transfo rma em
uma extensão do leitor.
Por isso se faz necessário o reconhec imento da alteridade do texto, ou seja,
por meio da leitura, o in té rpre te deve compreender o outro como uma indivi
dualidade e não afirmar inconscientemente, ali, as convicções do eu.
Novamente es tamos dian te da problemática do círculo he rmenêut ico,
dessa vez, expressa na relação entre o projetar-se e o reconhecer a alteridade.
Esse estar no outro sem que o outro passe a ser o eu representa um m om ento es
trutu ral da própr ia ontologia da compreensão, e a partir dela devemos sempreretomar nossas investigações.
A questão que se coloca então é: como se compreender esse círculo sem
cair em u m solipsismo infinito?
Essa é uma indagação fundamental para a compreensão. Para Gadamer, a
resposta está no reconhecimento de que toda interpretação é preconceituosa.
A ideia de preconceito e suas implicações é essencial para a práxis inter-
pretativas, por isso, veri fiquemos detidamente as lições do autor:
Uma anál ise da his tór ia do concei to mostra que é somente na A u fk làn m g
que o conceito de precon ceito recebeu o matiz negativo que agora possui. Em si
mesmo,“preconce i to” (Vorurteil) que r dizer um juízo ( Urteil) que se form a antes
do exame def ini t ivo de todos os momentos determinantes segundo as coisas em
ques tão. No procedimento da jur isprudência , um preconcei to é uma pré-decisão
ju rídica , an te s de ser baixada u m a sentença defi nit iv a. Para aquele que partic i
pa da d isp u ta ju dicial, um preconceit o dess e tipo represen ta ev identem ente u m a
23 g a d a m e r , Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundame nta is de uma hermenêutica filosófica,
p.356.
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40 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
redução de suas chances. Por isso, pre ju dic e , em francês, tal como prae iiidicu im>
s ignif ica tam bém s implesmen te pre juízo, desvantagem, dano. Não obs tante es ta
negat ividade é apenas secund ária . A conseqüência negativa repousa jus tam ente
na valide / posit iva, no valor prejudicial de um a pré-decisão, tal qual o de qu alqu er
precedente .
Preconceito não significa pois , de modo algum, falso juízo, uma vez que
seu conceito perm ite que ele possa ser valorizad o posit iva ou n egativam ente. ( .. .)
Existem préjugés legitimes . E videntemente isso passa m ui to dis tante dos sensores
de nossa l inguagem atual . O term o alemão Vorurteil (p reconce i to) - a ss im com o
o termo francês pré jugé mas de m od o a inda m ais pregna nte - parece ter sido
restringido, pela A ufk là rung e sua crí tica religiosa, ao significado de juízo não fu n
dam entad o.24
Ao se pregar a extinção de todos os preconceitos, o que o racionalismo
criou foi um verdadeiro preconceito do preconceito. É imperioso que se ad
mita as diferenças entre os preconceitos válidos (que expressam corretamente
a verdade) e aqueles obstaculizadores dos raciocínios, que conduzem ao mal
entendido.
Não há como se imaginar um indivíduo cr iado dentro de um ambientehistórico sem que sua formação desenvolva formas preconceituosas de pensar.
É imp orta nte reconhecer a naturalidade e fatalidade dessa constatação, e aliado
a isso, tomar consciência de que os preconceitos, mais do que pré-juízos da
realidade, constituem a própria ontologia do ser.
Pensar hermeneuticamente torna-se mais do que uma atividade meto
dológica voltada ao subjetivo, mas uma tarefa de mediação do ser com os seus
preconceitos e sua tempora lidade. Ê na hermenêutica que o compreender tor
na compreender-se e o indivíduo encontra-se com sua tradição. Essa ação dointérprete consigo mesmo é um momento ontológico fundamental da com
preensão. Vejamos o raciocínio do autor:
Desse modo, o sent ido de per tença, is to é, o m om ento da t radição no c om
p o r ta m e n to h is tór ico -herm enêu tico , re ali za-se atr avés da co m un id ade de p re
concei tos fundamentais e sus tentadores . A hermenêut ica precisa par t i r do fa to
de que aquele que quer compreender deve es tar vinculado com a coisa que se
14Ibidem, p.360-1.0 tradutor escreve em nota de rodapé que o termo Vorurteil cm alemão signi
fica literalmente juízo prév io e, por isso, todas as conotações jurídicas e conceituais.
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Escolas Hermenêuticas 41
expressa na t ransmissão e ter ou a lcançar determ inada conexão com a t radição a
pa r t ir da qual a transm issão fala. Por o u tro la do, a consciê ncia he rm enêu tica sabe
que não pode es tar vinculada à coisa em ques tão ao modo de uma unidade in
ques t ionável e natura l , com o se dá na com unid ade in interrup ta de um a t radição.
Existe realm ente u m a pola rida de en tre fam iliaridade e estranheza, e nela se baseia
a tarefa da h erm enêu tica. [ ... ] Ela se desenrola en tre a estranhe za e a familiaridade
que a t radição ocupa ju nto a nós , ent re a obje t ividade da dis tância , pensada his
tor icamente , e a per tença a um a t radição. Esse entrem eio (Z w ischen) é o verdad eiro
lugar da hermenê utica.
(...]
Essa pos ição intermediár ia onde a hermenêut ica deve ocupar seu pos to
mostra que sua tarefa não é desenvolver um procedimento compreens ivo mas
esclarecer as condições sob as quais surge com preen são.25
Esse esclarecer de condições só é possível quando o ser admite sua vincu-
lação a determinada tradição e, a partir daí, busca uma distância temporal de
sua realidade histórica.
Essa ação permite ao intérpre te fil trar os seus preconcei tos e identificá-los
dentro de seu universo, sejam eles produtivos ou indesejáveis.A questão que nos apresenta é como alcançar essa distância temporal se a
ela somos n atura lmente inconscientes?
Para Gadamer, essa clarificação de temporalidade aliada à exigência her
menêutica de suspensão de todo pré-juízo tem a estrutura da pergunta. É por
meio da pergunta que mantemos em aberto diversas possibilidades de senti
dos, e, só a partir disso, podemos identificar nossos preconceitos. Quem pensa
bem, pergunta bem.
Essas indagações a respeito da distância temporal e da percepção de horizonte com o auxílio da pergunta levam àquilo que o filósofo alemão chamou de
“consciência da história efeitual”. Isso que dizer que aquele que lê a história, lê com
olhos de quem participa historicamente de determinado momen to e, por isso, deve
estar atento à sua condição, sob pena de se amarrar em seu próprio horizonte.26
Consequentemente - e conclusivamente -, o mestre realça que a consciên
cia da história efeitual possibilita que se crie uma situação hermenêutica do
25 Ibidcm, p.390-1.
26 De acordo com filósofo alemão, o horizonte é “o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o
que pod e ser visto a par tir de de terminado pon to”. Ibidem, p.399.
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42 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
horizonte do presente que dialogue com a tradição, revelando os hábitos de
linguagem e preconceitos, identificando-os positiva e negativamente em um
novo horizonte histórico. Essa atividade, diga-se de passagem, é infinita.
Nota-se que há uma similar idade entre o solipsismo inte rpre tativo encon
trad o por Heidegger e o de Gadamer. O que impo rta, em essência, para ambos
os autores, não é o resultado de sentido encontrado a part ir da inserção do in
térprete no círculo hermenêutico, mas a sua postura filosófica ali dentro, reco
nhecendo o fórum da tradição histórica de sua formação (seja pela linguagem,
seja pelos preconceitos) e ampliando seus horizontes a cada momento .
6. Paul Ricoeur e os sistemas de interpretação Nas décadas poster iores, Paul Ricoeur (1913-2005) se afasta da Escola Fe-
nomenológica - sem deixar de ser, por ela, influenciado -, e resgata um a de
finição hermenêutica mais próxima da sua intenção histórica originária: “Por
hermenêutica ent endemos a teoria das regras que governam u ma exegese, quer
dizer, a interpretação de um determinado texto ou conjunto de sinais suscetí
veis de serem considerados como textos.”27
É claro que não estamos diante daquela interpretação primitiva e inocentedos primórdios. Paul Ricoeur efetua um profundo es tudo da fenomenologia e das
teorias modernas da linguagem (com imersões na psicanálise), partindo do ponto
de que existem dois polos dialéticos nas manifestações lingüísticas: a referência
(acerca do quê do discurso) e o sentido (o quê do discurso).
Todavia, não há necessariamente um a correlação perfeita entre a referên
cia e o sentido, podendo haver apreensões distintas sobre um e outro, tanto
em função da imperfeição da linguagem quanto pela falibilidade do emissor
ou do receptor do discurso. De acordo com Miguel Stadler Dias da Costa: “aexperiência que se transmite a outro na comunicação não é a experiência en
quanto vivida mas sim enquanto significação, como sentido que se extrai da
esfera privada e se torna público.”28
A linguagem é o processo no qual uma impressão se torna expressão por
meio da função referencial. O problema do discurso está na relação que sua
estrutura mantém com a verdade do evento extralinguístico, que pode sofrer
distorções durante a passagem do evento ao significado. Por isso, é impres
J7 r i c o e u r . Paul apud p a l m e r , Richard E. Hermenêutica, p.52.
28Sobre a teoria da interpretação de Paul Ricoeur, p. 18.
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Escolas Hermenêuticas 43
cindível realizar uma transcendência da linguagem sobre si mesma, a fim de
alcançar aquilo sobre o que se diz, ou seja, a referência.
Essa operação dialética entre evento e significação é a principal atividade
da hermenêutica, cujo objeto de estudo são os símbolos unívocos e os equívo
cos. Os primeiros possuem sentido único, enq uan to que os segundos têm m úl
tiplos significados, e é nestes que a hermenêutica deve atuar com mais agudez.
Entretanto, ainda que determ inados símbolos possuam, aparentemente, um
sentido coerente, sendo tomados pelo sujeito como símbolos unívocos, na verda
de, podem estes ocultar um sentido mais profundo, de alguma forma mascarado,
cujo conteúdo deverá ser encontrado por meio dos sistemas interpretativos.
Essa investigação do obscuro, do não aparente, conduz Ricoeur aos ensina
mentos de Nietzsche, Marx e Freud, encontrando neles uma filosofia comum
de desconfiança da superfície, e até mesmo da realidade. Os estudos desses
filósofos refletem um esforço de desmitificação de nosso conhecimento por
meio da suspeita, da dúvida.29
Ricouer faz largos estudos de Freud, pois encon tra ali uma psicanálise que
desconfia da consciência hu mana a todo tempo, por meio de seus mitos e suas
ilusões. O estudo da psicanálise é necessário já que a busca da racionalidade
implica a destruição dos processos inconscientes da mente e, para isso, precisamos da psicanálise para desmascará-los, principalmente, pela leitura dos
sonhos e por lapsos de linguagem.
Diante dessa busca da quebra do conhecimento superficial da realidade,
utilizando-se do pensar por meio da suspeita, Ricoeur considera que não há de
se falar em um métod o exegético universal que promova a consecução dessa ta
refa. Há sim diversas teorias, às vezes separadas e opostas, mas sempre relativas
a um mesmo sistema de regras de interpretação .30
Esse sistema é importante, pois permite a validação - ou não - da infinidade de interpretações que o sujeito pode promover. Não se pode dizer que os
métodos são iguais, e que todos os resultados são legítimos. Ricoeur utiliza uma
lógica de probabilidades, subjetiva, não empírica, e essencialmente argumentat i-
va para realizar um arb itramento dos sentidos e alcançar um acordo sobre eles.
Logo, o círculo herm enêutico será sempre progressivo, nunca vicioso, pois
os sentidos inválidos são retirados de seu campo de dialeticismos, e o solipsis-
mo infinito não ocorre.
- 9 p a l m e r , Richard E. Hermenêutica, p.53.
30 Ibidem.
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CAPÍTULO 3
Hermenêutica Jurídica
I. O problema da identificação e escolha dos métodosinterpretativos
Estudar e classificar as escolas jurídicas hermenêuticas não é uma tarefa
fácil. De um lado, lidamos com regras formais de interpretação da lei pura
mente instrumentais e, de outro, analisamos os substratos ideológicos e filosó
ficos que dete rmin am os sentidos da norm a.
As escolas interpretativas não surgem independentes das concepções de
just iça e de Estado contemporâneas à sua época, pelo contrário, refletem claramente as ideologias que revestem o Direito em cada m om ento de seu desen
volvimento histórico e nele se amarram firmemente.
Tivemos a oportunidade de verificar que a interpretação é recheada de
preconceitos que limitam as possibil idades de sent ido do sujeito dentro de seu
horizonte, sendo que a aplicação dos métodos interpretativos não afasta a par
cialidade do leitor.
Dessa forma, é fundamental não tratarmos a hermenêutica como simples
regras de interpretação, ainda que assim tenha sido concebida po r determinadasdoutrina s em tempos pretéritos.
Em razão disso, apresentamos nos subcapítulos seguintes uma classifica
ção de métodos hermenêuticos que, apesar de não negar a classificação da do u
trina tradicional, a estas não se resume, identificando as ideologias e os mitos
conform adores de sua razão.
Refutamos dessa forma as leituras reducionistas da interpretação na me
dida em que estas não reconhecem os alicerces da hermenêu tica jurídica, prin
cipalmente, as teorias do Estado - com ênfase na separação dos Poderes -, e asconcepções do justo.
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Hermenêutica Jurídica 45
Obviamente poderíamos citar diversos outros ramos do conhecimento
que influenciaram na construção da hermenêutica jurídica, como a história,
a sociologia, a psicologia, a psicanálise etc. Entretanto, em virtude do espaço e
da densidade que nos permite este traba lho de pesquisa, opta mos por nos ater
mais significativamente a estas duas linhas de pesquisa, o Estado e a Justiça (a
última vista como o valor maior a ser alcançado pelo Direito).
É o desenvolvimento histórico dessas duas concepções que direcionará
de forma patente a interpretação do julgador no momento de sua expressão
maior: a decisão judiciária.
Apesar de não ser o único momento interpretativo, é na sentença do juiz
que podemos encontrar concretamente qual o significado atribuído ao texto e
qual a fundamentação proposta pelo intérprete.
É interessante notar que o mesmo texto abre-se para uma pluralidade de
métodos que lhe atribuem sentidos distintos, sendo que na sentença o juiz de
verá esclarecer qual o métod o empregado e fundamentá-lo. Daí a importância
do m om ento decisório.
Realizar a compreensão da lei é uma tarefa árdua. Entretanto, mais árduo
é optar dentre diversos sentidos e excluir interpretações que são justificáveis
em função de um método racional.Entretanto, são poucos aqueles que conseguem realizar tal tarefa. A maioria
das decisões emprega os métodos interpretativos de forma acidental, sem revelar
quais são os critérios utilizados para escolher uma interpretação e afastar outra.
Em foce de diversos sentidos, qual deles escolher? Qual método devo pri
vilegiar e qual devo excluir? O abandono de um sentido significa que seu mé
todo interpretativo subjacente não é legítimo?
Tais questões são vitais para a compreensão da hermenêutica, mas acabam
sendo pouco tratadas no discurso judiciário. As decisões são comumente realizadas de forma inconscientes, velando seu real fundamento e atribuindo ao
méto do acidentalm ente aplicado a razão única da decisão. É como se o julgado
fosse um ente totalmente neutro (mito da imparcialidade do juiz) e não reali
zasse qualquer ato de vontade discricionário na escolha do método .
Sendo assim, cumpre-nos revelar o que está por trás da eleição de um
méto do e identificá-lo no discurso de form a aberta e consciente.
Em virtude dessas ponderações, traremos no próximo subcapítulo uma
análise geral do raciocínio e das ideologias judiciárias que influenciaram demodo significativo a hermenêutica jurídica desde a publicação do Código
de Napoleão, em 1804, até os dias atuais.
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46 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
Após essa sucinta pesquisa, desenvolveremos os métodos interpretativos
propriamente di tos e suas propostas de investigação do sentido da lei, sempre
fazendo remissão constante ao momento histórico em que se inserem e seus
substratos de compreensão.
Buscamos, dessa maneira, uma pesquisa não reducionista que evidencie
as influências ideológicas e filosóficas da hermenêutica, mas reflitam ao mes
mo tempo sua operacionalidade pragmática no campo da interpretação da lei.
A problemática acerca da identificação e escolha do métod o não é uma questão
fácil que apresenta uma resposta simples e direita. Antes, cabe-nos analisar o
que está em jogo para podermos tirar as conclusões ao final da obra.
2.0 estado de direito, o ideal do justo e o raciocínio judiciário em diálogo com a hermenêutica
Conforme verificamos no ponto anterior, a hermenêutica surgiu no séc.
XVII por meio dos intérpretes da Bíblia e desenvolveu-se pelos séculos, resul
tando em diversas escolas interpretativas.
No âmbito dos es tudos jurídicos, porém, o ponto de part ida já não pode
ser o mesmo, pois a interpretação das leis surge como um a disciplina do Direito a partir da formação do Estado Moderno, em especial, em virtude da con
cretização da do utr ina da separação dos Poderes após a Revolução Francesa e a
publ icação do Código de Napoleão.
O Poder Legislativo estaria encarregado de elaborar as leis; o Executivo,
de gerir os negócios públicos por meio delas; e o Judiciário, deveria aplicá-las
quando fosse chamado. Nota-se que existe um vínculo de interdependência
entre os três Poderes, alicerçado no primado do Direito (leia-se leis).
Todos os Poderes devem respeito à nor ma jurídic a que est rutura e fun damenta o Estado Moderno. Por isso, toda vez que se falar em hermenêu
tica, deve-se pensar também na própria concepção de Estado e como este
admite a atividade interpretativa da norma, já que a última estará delimi
tada pelo campo de atuação disponível pelas próprias bases que sustentam
o Estado.
O que aconteceria com um a nação marcada pela rigidez de sua separação
dos Poderes, se um magistr ado decidir, ao interp retar a lei, que pode executar
por si mesmo uma obra pública? Como ficaria o Estado se o Poder Judiciáriolegislasse?
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Hermenêutica Jurídica 47
Dessa forma, a hermenêutica jurídica nâo atua livremente na tarefa de
investigação de sentido da no rm a.1Está sempre condicionada e limitada. O que
não ocorre na hermenêutica filosófica, a qual é livre na investigação de sentidos
e somente está restrita pelos próprios pressupostos em que se assenta.
Ao lado dessa questão está o ideal do justo que é a razão primeira das aglo
merações sociais em torno do Estado (ainda que isso não se repita sempre).
Como lecionava Aristóteles, não é apenas para viver jun to que o homem criou
o Estado, mas para bem viver juntos.2
A problemática em torno do ideal do justo é que os mais diversos senti
mentos inerentes à condição hum ana - desde o mais cauteloso uso consciente
da razão até as mais explosivas paixões inconscientes -, repercutem na sua co n
formação e, consequentemente, são traduzidos em normas de regulamentação
da sociedade.
Se o indivíduo se coordena em uma comunidade política e uma de suas
finalidades, dentre outras, é a de preservar o justo, é natural que as leis devam
fazer referência àquele valor primeiro, caso contrário, estarão em desacordo
com a fundação da sociedade. Este ju sto , porém, não é algo conceituável e ple
namente racionalizável, ficando à mercê da subjetividade de cada ente social.
O psiquismo no Direito é tão relevante que o médico e psicanalista inglêsDonald Woods Winicott considera ser um dos papéis da lei expressar os senti
mentos inconscientes de vingança de uma sociedade.3
Essas considerações, longe de serem impertinentes ao nosso trabalho, re
fletem a íntima conexão das escolas hermenêuticas com a consciência ética e
polí tica de um povo em um dado momento histórico.
1Relerinio-nos, aqui, à herm enêu tica que é aceita pelo discurso oficial do Estado na atividade do
Poder Judiciário. Isso porque, não raro, o método interpretativo desenvolvido de forma especulativa pela doutr ina não é acolhido pelas magistraturas que, muitas vezes, estão presas às limitações
de cunho legal ou até mesmo ideológicas, considerando seu espaço de atuação dentro do âm bitodos Poderes Estatais.2 A política > p.53.
3 YVinnicott, na obra em questão, desenvolve suas pesquisas no âmbito do tratamento da delin
qüência e da punibilidade “[...] É impossível fugir ao princípio de que a função precípua da lei
é expressar a vingança inconsciente da sociedade. É muito possível a qualquer delinqüente indi
vidual ser perdoado, no entanto, isso não impede a existência de um reservatório de vingança e
também de medo que não podemos nos permitir ignorar [...). É possível que, se os sentimentos
de vingança da sociedade fossem plenamente conscientes, a sociedade pudesse admitir o trata
men to do delinqüente como doente, mas grande parte da vingança é inconsciente, de modo quese deve levar per manen tem ente em conta a necessidade de se manter a punição em vigor, em certa
medida, mesm o quando ela é inútil no tratam ento do delinqüente”. “Com entários sobre o Report
o f the comm itteepunishrnent in prisons and borstals” p.2Ü7-13.
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48 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
Mesmo que muito se tenha feito ao longo dos anos para se desvencilhar
o Direito das paixões humanas e do subjetivismo - tratan do-o como u m ente
absolutamen te imparcial e científico na defesa da justiça tud o o que se con
seguiu provar foi o inverso: não há Direito sem moral e a conseqüente consa
gração de valores que conduzam ao sentim ento de justiça.
Além dessa fatalidade axiológica, é interessante constatar que as correntes
mais radicais, ilustradas pelo formalismo positivista de um lado e o subjetivis
mo do outro, batalharam ferrenhamente durante décadas pela concretização
de sua doutrina sendo que, ao mesm o tempo, realizaram um a tarefa comum de
afirmação do Dire ito e respeito das leis pela sociedade.
Independente do método hermenêutico utilizado e do sentido da lei al
cançado, será sempre afirmado que existe uma lei e que esta deve ser respeita
da.
A própria existência da interpretação jurídica revela o primado da lei, pois
se esta não fosse soberana, as decisões judiciárias poderiam ser dadas ao livre
arbítrio, sem justificações respaldadas no sistema normativo.'1
Todavia, esse primado adquire, muitas vezes, um caráter simplesmente
formal. Isto ocorre na medida em que o intérprete, por meio da abertura de
sentidos promovida pela hermenêutica, é capaz de articular resultados inter pretativos que se distanciam do enunciado normat ivo , porém, pela metodolo
gia aplicada, são justificáveis.
O trabalho da hermenêutica jurídica, sob esta óptica, revela uma faculdade
de se alterar o sentido da no rm a sem que se perca de vista o primado do Direito
e se negue a força da lei. Em razão disso, em muitos momentos , a hermenêutica
se transforma em um meio de manipulação ardil, cujo único intuito é a preser
vação de ideologias contraproducentes à busca do justo.
O professor Warat em seu livro Introdução ao Direito demonstra densamente como cada escola hermenêutica foi responsável pela proliferação de
discursos ideológicos, e o m esmo tentaremos most rar no subcapítulos seguin
tes. O que nos interessa agora, além de relacionar cada método interpretativo
com estas fontes ideológicas e éticas, é fornecer um quadro geral, apoiado
em Perelman, que ressalte essas características ao longo do desenvolvimento
4 Lembramos que o magistrado, ao decidir um caso, deve fundamentá-lo, obrigatoriamente, em
razão de uma norma, especificando qual o artigo da lei que permitiu tal julgamento. É curiosonotar que a exigência de menção ao artigo de lei prom ove algumas situações esdrúxulas em que o
magistrado acaba buscando sentidos longínquos e remotíssimos da nor ma a fim de fundam entar
sua decisão com base cm u m art igo de lei.
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Hermenêutica Jurídica 49
das escolas de interpretação, partindo-se da Revolução Francesa até os dias
atuais.5
De acordo coin Chaim Perelman6, o raciocínio judiciário passou po r três
fases: a primeira , com a Escola da Exegese que surge concomitante ao advento
do Código de Napoleão; a segunda, são as concepções funcionalistas, teleoló-
gicas e sociológicas do Direito; e a terceira etapa ocorre quando o positivismo
jur íd ico é quebrado após a Segunda Guerra Mundia l, e o pós-modernismo se
instala na hermenêu tica. Analisemo-las pari passu.
Após a Revolução Francesa (1789), a burguesia e as classes mais desfavo
recidas da sociedade clamavam pela instalação de um regime político que em
nada lhes lembrassem os pavores e opressões do Ancien Régimen. A resposta a
essa perturbação estava nos ideais iluministas que pregavam a instituição de
poderes polí ticos que freassem os espíri tos mais autor itários , viabil izando um
governo democrático e justo.
Surgem as obras clássicas de Locke7e Montesquieu8pregando a separação dos
Poderes. Pela distribuição de tarefas e de prerrogativas, o Estado estaria protegido
da tirania. Ao Poder Legislativo foi conferida a função de representar o povo em
sua integralidade, não mais vinculando à vontade da lei ou à vontade de um ser
soberano. A supremacia passou a estar no colegiado, e não no individual.Ao Poder Judiciário, por sua vez, carecedor de tal representatividade de
mocrática direta, foi incumbida a tarefa de aplicar a lei aos litígios concretos.
Admitindo-se que o povo reside no Parlamento, os juizes nada poderiam fazer
que cont rariasse as vontades legislativas, pois estariam atuando em desfavor cia
soberania popular. Com esse espírito, o Código de Napoleão é publicado em
1804 e ju nto com este nasce a Escola da Exegese.
Segundo essa doutrina, o papel do juiz estava restrito a reconhecer na lei
a vontade do legislador e aplicá-la ao caso concreto. O juiz não elabora, nãoquestiona, não investiga a lei, apenas a aplica, como em um sistema dedutivo.
O apego aos primados iluministas que ecoavam nos quatro cantos da
Europa transformaram a lei em uma espécie de mito, uma expressão maior
5 Estamos cientes de que a atividade interpretativa estava presente no seio do Direito Romano e
sobre ela estudos foram realizados e muitas máximas permanecem até hoje. Entretanto, dada a
distância conceituai de Estado, separação de Poderes, Poder Judiciário e outros, desenvolvidos na
Era Moderna, optam os po r restringir nossa pesquisa.
0 Lógica jurídica: nova retórica.
' Cf. Dois tratados sobre o governo; e The second treatise on civil government.
s De Pesprit des lois, v . 1 e 2. Ver tam bém a respeito: c a n o t i l h o , J. J. Gomes. Direito constitucional
e teoria da Constituição, p.579-82.
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50 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
da razão inquestionável, a qual deve ser firmemente respeitada e preservada.
O brocardo romano dura lex, sed lex retoma seu valor e denota a vontade de
se estabelecer uma ordem jurídica desprovida de paixões e subjetividades, cujo
único referencial permitido é a lei mesma.
Essa ordem exige que o juiz admita sua tarefa como a de mero reconhecedor
e aplicador da lei ao caso concreto, sem qualquer necessidade de interpretação ou
investigação criativa. O corpo jurídico é tido como um sistema formal axiomático,
aos moldes da geometria, no qual só há espaço para a tarefa dedutivo-silogística.
Nesse contexto, encontramos o advento de métodos que se coadunam
com tal modo de pensar, a saber: o exegético, o literal (ou gramatical), e em
certo sentido, o lógico-sistemático.
Essas escolas encontram na hermenêutica um a leitura rasa do texto, a qual
não permite interpretações que fujam do âmbito das intenções legislativas ori
ginárias, preservando seu espírito e sua vontade.
O legislador, imbuído de soberania, formula regras de conduta em signos
unívocos, coerentes e completos, em que o juiz apenas deduz racionalmente a
lei à realidade dos fatos que lhe é exposta, sem ao menos poder se questionar a
respeito da justiça e sensatez da decisão alcançada.
Essa fidelidade estrita ao espírito do legislador e apego à letra da lei durou até os finais do séc. XIX, quando a dout rin a jurídica começa a questionar
este modelo silogístico formal, que não resolve as situações não legisladas, ou
aqueles que foram, mas geravam dúvidas em sua aplicação. A completude do
sistema falhara, e era preciso reconhecer tal fato.
Ainda que se buscasse uma solução na sistematicidade dos códigos ou
numa vontade presumida do legislador, as lides no judiciário apresentavam
um a complexidade e uma diversidade não encontradas em qualquer manifes
tação remota do espírito legislativo que conferisse uma orientação à decisão.Além do mais, o julgador se encontrava em uma posição extremamente
delicada, pois o art. 4o do Código de Napoleão considerava como culpado de
denegação de justiça o juiz que se recusasse a julgar sob o pretexto de silêncio
da lei. Como cumprir tal mandamento se a lei era imperfeita e incompleta?
Com o preencher as lacunas se a interpretação era proibida?
Foi sendo cada vez mais sentida pelos juristas a impossibi lidade do legislador
regulamentar todas as condutas humanas e relações sociais, e aqueles passaram a
formular meios alternativos de se encontrar uma decisão à matéria lacunosa. Nesse momento, passamos à segunda fase do raciocínio judiciário, no qual a Es
cola Histórica de Savigny reconhece que a lei não é um axioma estático aos moldes da
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Hermenêutica Jurídica 51
geometria, mas antes, uma construção cultural e histórica da sociedade que quer ver
seus anseios expressos na legislação. Dado o dinamismo das relações sociais, não há
que se falar em uma ordenação imóvel, alheia aos interesses coletivos, pois isso afron
tava a própria concepção de soberania popular que ia se reformulando aos poucos.
Desse modo, a quebra do mito do legislador foi sendo realizada lentam en
te, principalmente por intelectuais que não estavam vinculados aos movimen
tos revolucionários franceses de forma tão intensa. É nos pandectista alemães
que encon tram os u ma compreensão progressiva da lei9, baseada em um a dog
mática jurídica fortemente influenciada pela concepção de usos e costumes
presentes no Di reito Romano.
Reconhecer o costume como fonte primária do Direito foi a porta de entra
da para as escolas sociológicas, as quais também pregavam a necessidade de se
encontrar, na consciência do povo, a vontade verdadeira e legítima da lei - em bo
ra sua base não fosse a história da nação, mas suas valorações contemporâneas.
Junto a esses movim entos desenvolveu-se a Escola Teleológica ou funcio-
nalista do Direito, na qual se verificou que toda norma possui um fim, isto é,
ela é produzida para alcançar determinado resultado pragmático. Há que se
investigar a finalidade que guia a elaboração legislativa e encont rá-la na n orm a
independente de seu enunciado. Neste pon to já se pode tirar duas conclusões: a primeira se refere ao modo
como o arrimo à vontade do legislador e o apego à letra da lei foram gradativa-
mente se transformando em uma concepção de substratos valorativos da coletivi
dade; a segunda demonstra que os métodos interpretativos vão se inserindo pouco
a pouco no labor jurídico, visando sempre a encontrar os significados da norma.
Pensar a lei em sua função teleológica e em sua origem histórica permitiu
a abertura do intérprete cios significados ocultos da norma , estudados de um a
maneira lógica, racionalizada e científica. Os valores e princípios em si, como justiça e dign idade humana, ainda não podem ser traba lhados como justif ica
ção de um a decisão, embora o jurista já perceba que existe algo além do texto, e
que este algo representa um conteúdo axiológico daquilo que é o Direito.
Por fim, o terceiro e último momento do raciocínio judiciário está inti
mamente ligado a um fato histórico que forneceu as provocações necessárias a
um a revolta jurídica: a Segunda Gue rra Mundial.
r f a i .e , Miguel. Lições preliminares de Direito , p.284.0 mestre ainda ensina que o termo pandectista “resulta do fato de, nessa obra de prodigioso lavor analítico e sistemático, terem os juristas
alemàes remontado, criadoramente, aos ensinamentos do Digesto, ou Pandectas, que, como devem saber, é a coleção de textos de Direito Rom ano organizada pelo Imperado r Justin iano”.
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52 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
Em 1939 inicia-se uma das maiores campanhas militares da história, em
que, a extrema direita, liderada pelo nazismo alemão, trava sangrentas batalhas
com os países Aliados, resultando em milhões de m ortos e feridos. Além disso,
o hor ror dos campos de concentração atormen ta o mundo , escandalizado com
as atrocidades que se cometeu em favor da ideologia de predomínio de uma
raça e o extermínio dos impuros.
A comunidade jurídica, por sua vez, questiona-se como o primado da ra
zão - a lei - , poderia ter legitimado tal regime, conferindo-lhe sustentação legal
e validade. Como pôde o Direito ter consentido com tais regimes cruéis e in
tolerantes? Que m é este Direito que justifica o nazismo e o fascismo? Devemos
aceitar tal Direito?
Na medida em que as leis regulam tais regimes polí ticos, os jur istas acor
dam para o fato de que a lei, vista objetivamente, é apenas um texto, e como
texto, pode dissertar sobre qualquer coisa que está ao alcance da linguagem e
da criatividade do intérprete.
A doutr ina positivista vigente à época, fortemente apegada à objetividade
da norm a, ao cientificismo, e ao afastamento das referências ao Direito Natural
como via de acesso aos valores transcendentais, transformou-se em um dos
responsáveis po r esses Estados justificados pela lei.Havia a necessidade de se promove r o reencontro do ordenamen to jurídico
com o ideal do justo , com um a ordem de valores que não permitisse que o Direi
to aceitasse e legitimasse um Estado daqueles moldes.
O trauma causado pela Segunda Guerra Mundial foi aos poucos sendo trans
formado em doutrinas que promoviam releituras do Direito Natural dos sé cs.
XVII e XVIII, pretendendo-se combater a frieza do positivismo, e permitindo ao
juiz uma guarda última do justo que a ele antes não era confiada. Entre escolher
uma regra de Direito e uma regra de justiça, deve-se sempre optar pela segunda.Uma significativa reação foi realizada por Theodor Viehweg, filósofo ale
mão que desprezava a ordem jurídica baseada em um modelo axiomático-de-
dutivo, e pregava o retorno aos estudos tópicos, para pensar a decisão judicial
com o o encont ro do justo no caso concreto.
Foi também de grande importância a positivação dos chamados princí
pios jurídicos e o desenvolvimento dos direitos e garant ias fundamentais do
homem. Por meio desses enunciados abertos e claramente axiológicos, ao juiz
é facultado flexibilizar os ditames legais e adequá-los de forma razoável às lides,sem se esquecer dos valores superiores que dete rminam o ord enamento jurídi
co, em especial, a dignidade da pessoa humana.
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Hermenêutica Jurídica 53
Assim, enco ntram o-nos em um mom ento em que a atividade herm enêu
tica é indispensável. O sistema jurídico reconhece, hoje, que da lei deve-se ex
trair o significado que lhe é mais justo ao caso concreto, mas não o diz exata
mente como fazê-lo, daí a importância do intérprete.
A concepção pós-moderna de abertura e flexibilização permitiu ao ho
mem não se cegar frente às reais dificuldades de se julgar sensa tamente um caso
concreto, mas também o atirou em um a luta perpé tua de visões retóricas.
Mais do que nunca, deparamo-nos em uma hermeneutização do Direito,
em que todo o sistema jurídico deve ser interpretado a fim de que o sentido mais
razoável e justo da norma sejam filtrado e reconhecido como o sentido válido.
E quem pode dizer o que é jus to e razoável?
3. Método gramatical ou literal
Com o advento da Revolução Francesa em 1789, derruba-se o opressivo regime
monárquico absolutista que incomodava as aspirações burguesas e deixava à men
dicância a extensa maioria da população francesa. Era preciso então se assegurar de
que o Estado e suas estruturas políticas não ficassem vulneráveis a ação de elemen
tos arbitrários e individualistas, de forma a valorizar a democracia e a igualdade.A forma encontrada de se proteger o novo sistema estava na soberania das
Assembleias Legislativas. Por meio de um corpo plural, eleito pelos cidadãos
e que decidia por vontade da maioria, os espíritos mais autoritários se enfra
queceram e não conseguiriam, p or meio das Assembleias, realizar sua vontade
senão pelo voto da maioria.
O papel de elaboração da lei, guardado às Assembleias, foi então sacrali-
zado sob o manto da salvação do homem em face ao poder despótico. As leis
refletem toda esta luta em prol do coletivo, e o povo adere religiosamente assuas determinações.
Isso condiz com o que se chamou de culto à lei, expressão iluminista
cunhada, principalmente, com o advento do Código de Napoleão, em 1804,
obra máxima da racionalidade humana e salvaguarda de toda a nação.
Entretanto, não devemos nos olvidar, que a valorização da lei pressupu
nha também mecanismos de preservação e manutenção da mesma, de modo
que os ideais revolucionários não sucumbissem.
Para esses fins, a interpretação representava uma ameaça frente ao Código Napoleônico. Uma ciência que não se reverenciasse resoluta às novas regula
mentações jurídicas era vista com extrema desconfiança pela sociedade írance-
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54 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
sa, que temia ali uma volta ao absolutismo. Além do mais, por que haveria de
se realizar uma investigação subjetiva e personalista do texto legal, se a norma
e o Direito expressavam fielmente a Razão?
A obra do legislador, perfeita e completa, não pode ser interpretada, che
gou-se a afirmar. A verdade residia na sua leitura objetiva, cuja clareza fornecia
todas as fe rramentas necessárias às soluções das lides.
Dessa forma, foi desenvolvido o método interpretativo gramatical - com
clara influência da Escola Bíblica - , no qual se buscava o sentido literal do tex
to. O Código Francês, assim como as Escrituras Sagradas, eram obras divinas,
e como tais, não podiam ter seu sentido alterado. Ao homem, cabia apenas a
percepção do texto tal como ele se apresentava.
No limite, permitiam-se as considerações de ordem sintática, morfológica
e semânticas do enunciado da norma. De acordo com a corrente gramatical, a
linguagem era apenas um medium de comunicação, sendo imparcial e objetiva
em sua essência.
As análises filológicas da lei pregavam ainda a univocidade dos termos
empregados nas expressões legais. Escondiam que a semântica nem sempre é
exata e que, muitas vezes, o mesmo vocábulo possui sentidos diversos.
Em adição, o desenvolvimento da ciência do Direito provocou o surgimento de uma linguagem própria. Houve uma adaptação da linguagem or
dinária às necessidades particulares da ciência jurídica. Os termos, portanto,
poderiam ter um sent ido comum e outro científico.
Surge, então, uma dúvida: como propagar a univocidade dos signos em
face da multiplicidade de sentidos dos termos legais?
Obviamente, aos olhos do iluminista, não se poderia admitir que o le
gislador era dúbio, nem ao menos dar espaço às investigações interpretativas
subjetivistas. Como resolver esse conflito? Uma concepção mais democráticado Direito, diria que a lei deve ser extraída da sociedade e, consequentemente,
afirmar sua linguagem, valorizando o sentido com um dos termos.
Todavia, o que ocorreu foi justamente o inverso. Por meio da ideia de
cientificismo e a sua conotação de racionalidade e superioridade, criou-se um
mecanism o de controle de sentidos da no rma, expresso em seu uso técnico.
Isso quer dizer, conforme nos leciona Warat, que o apelo ao técnico per
mitiu “referendar como legitimável somente aqueles usos da linguagem prove
nientes de prát icas insti tucionais específicas” ,0.
10 Introdução ao Direito, p.67.
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Hermenêutica Jurídica 55
O método gramatical oculta o trabalho subjetivo do intérprete ao pregar
a suficiência da lei e a remissão ao técnico. Esconde que há um ato de vontade
do sujeito ao interpretar o sistema normativo e tratá-lo como um ente claro
e unívoco cuja cientificidade garante a aplicação justa da lei e a soberania das
Assembleias Legislativas.
4. Método exegético e o espírito do legislador
Já analisamos em que medida a Escola Literal propõe uma leitura do texto
normativo a partir das concepções napoleônicas de autossuficiência das leis e
respeito absoluto ao objetivamente estabelecido.
O método exegético concorda com todas essas premissas, com a parti cu
laridade de que reconhece como válido o sentido da norm a obt ido pela inves
tigação do espírito do legislador.
Cumpre-nos ressaltar ser corriqueiro o uso dos termos interpretação li
teral, gramatical ou exegética, para significar o mesmo método. A maioria das
obras jurídicas brasileiras traz a inte rpretação exegética como sinôn ima da lite
ral (ou gramatical) e trata, separadam ente, daquilo que se chama de espírito do
legislador (mens legislatoris) em oposição ao espírito da lei (mens legis). Não esposamos tal classificação. Optam os por trabalhar a mens legislatoris
dentro da Escola Exegética como assim o faz Warat, dada a coerência histórica de
sua doutrina que trata aquela como um desenvolvimento do método gramatical.
Tanto no Direito vigente à época do séc. XIX, quanto na religião, buscava-
se conhecer a vontade da Autoridade Suprema por meio dos textos. No Direito,
estar-se-ia diante da vontade da Assembleia Legislativa (e do legislador em par
ticular). Na religião, ninguém menos do que Deus.
Por isso, há uma distinção entre o método gramatical com seu apego aosenunciados literais da lei e o método exegético que apura a vontade do legisla
dor, sem imped ir que os dois dialoguem (talvez daí o tr atamento igualitário e,
às vezes, confuso dado pela maior parte da dout rina ).
O próprio método gramatical deve ser utilizado como um estudo intro
dutório filológico da no rma que, a fim e a cabo, permite reforçar as descobertas
das intenções legislativas. Dessa forma, o papel do intérprete se torna um in
vestigar psicológico do ente abstrato comp reend ido como legislador.
Aqui a filosofia de Schleiermacher se encaixa como uma luva para aqueles que acreditam que o discurso só pode ser compreendido pela digressão à
mente de seu autor.
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56 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
Trata-se de um raciocínio, no mínimo, tentador, pois visa à conservação
da vontade original do sujeito em seu discurso. Ora, se tal mensagem foi pro
ferida por determinado autor, nada mais honesto do que preservar o sentido
desejado por aquele que a emanou!
Todavia, há que se considerar diversas circunstâncias em que tal correla
ção não é satisfatória.
Em primeiro lugar, precisamos notar que, muitas vezes, o legislador é
omisso em determinadas situações, sendo que a remissão ao seu pensamento
não será útil.
Em um segundo momento, teríamos de admitir que, se a intenção do
legislador é onde reside o sentido da norma, então o enunciado legal não é
perfeito e pode es tar equivocado, o que promoverá o afastamento do método
literal e a quebra do culto à lei.
Um terceiro raciocínio exige que se estabeleçam critérios de pesquisa da
subjetividade, caso contrário, a hermenêutica não será um método, mas pura
discricionariedade do intérprete.
Por fim, seria necessário determinar quem exatamente deveria ter a sua
vontade interpretada, haja vista que o Parlamento é composto por u ma plura
lidade de m emb ros e cada um possui suas próprias intenções.Além do mais, o método exegético, apesar de seu nobre ideal, como todos
os outros métodos, não é isento de uma postura ideológica que visa à afirma
ção de determ inado valor.
De acordo com W ara t11, a ideologia que reina no método exegético é a
afirmação dos interesses da burguesia, a qual ascendeu socialmente com a Re
volução Francesa e passou a ocupar as cadeiras do Parlamento. A preservação
de seu pod er só pode se realizar quando se atribui ao legislador (leia-se burgu e
sia) toda a validade de sentidos da lei, e a mais ninguém. Na práxis ju rídica , o problema que essa metodologia acabou tendo que
enfrentar foi referente à identificação de quem é especificamente legislador,
quem deve ter o seu espírito descoberto.
Os trabalhos de elaboração da norm a implicam um a complexidade e di
versidade de atos intencionais que não se resumem a uma vontade única e
geral. A experiência moderna de Carlos Maximiliano nos mostra como isto
ocorre:
11 Ibidem, p.69.
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Hermenêutica Jurídica 57
Em um a das forjas da lei, no Par lamento, composto, em regra , de duas C âm a
ras, fundem-se opiniões múltiplas, o conjunto resulta de frações de ideias, amal-
gamadas; cada representante do povo aceita por um motivo pessoal a inclusão de
pala vra ou frase, v isando a um obje ti vo par ticu lar a que o m esm o se pre st a; há o
acord o apa rente, resultado de profu nda s contradiçõe s. Bastas vezes a redação final
resulta imprecisa, ambígua, revelando-se o produto da inelutável necessidade de
transigir com exigências pequ enina s a fim de conseguir a passagem da ideia prin
cipal.
Se descerem a exum ar o p ensam ento d o legislador, perder-se-ão em um bá-
ra to de dúvidas maiores a inda e m ais inextr incáveis do q ue as resul tantes do co n
texto. Os mot ivos que ind uziram alguém a pro po r a le i, pod em não ser os mesm o
qu e levaram ou tro s a aceitá-la [. . .].12
Essa concorrênc ia de vontades e intenções não pe rmite o encontro com o
sent ido unívoco, o que fragiliza a metódica exegética.
Em posição oposta se coloca Neil MacCormick, professor da universidade
de Edinburgo, para quem a busca da tnens legislatoris não se consubstancia em
explorar um ente abstrato e imaginário, mas tentar compreender quais foram
os traços deixados faticamente pelo labor legislativo que pe rmitem extrair umainterpretação.
Q uan do a intenção do Parlamen to es tá em ques tão, isso inclui re la tór ios de
certas comissões, trabalhos de certos comitês e coisas do gênero que identificam
um cer to desvio e propõem poss íveis remédios para e le . A “ intenção do Parla
m ento ” exerce um papel adequa do na interpre tação das leis não p orqu e cons ista
em um es tado m enta l próp rio a a lguém e passível de ser descoberto, que é capaz
de explicar com especial autoridade as palavras usadas em um certo sentido. Aocontrário, é porque o legislador edita as leis em vernáculo, usando um registro
particu lar; p o rque a to s racionais de le gis la ção se ap resentam ju n tos de u m a form a
coerente , tanto internam ente qu anto em re lação ao res to do s istema jur ídico .13
Historicamente, no Brasil Império, a Lei da Boa Razão obrigava os ma
gistrados a suspenderem o julgamento, quando em presença de controvérsias
acerca de um dispositivo, e se dirigissem ao Regedor para que ele efetuasse uma
12 Hermenêutica e aplicação do Direito , p.5.
13 Retórica e o estado de direito , p. 182.
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58 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
interpre tação autêntica e válida.14Tal situação, apesar de sua lógica interna, no
presente desenvolvimento da separação dos Poderes e seus contornos constitu
cionais, faz-se tota lmente inviável.
Até mesmo porque , o Legislativo hodierno é extrem amen te plural, rechea
do de fisiologismos partidários e negociações de interesses que não permitem,
na maioria dos casos, uma célere legislação a respeito de um determinado
tema. Muitas vezes, não há ambiente político para a votação de uma matéria,
não podendo o Poder Judiciário aguardá-los para a resolução da lide.
Confo rme se analisará na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal bra
sileiro, já houve casos recentes em que o magistrado esperou por dois anos a p ro
dução legal de uma omissão legislativa vintenária, sem obter qualquer êxito.13
Uma criação que surgiu com arrimo na Escola Exegética foi o chamado
método genético. Trata-se da avaliação dos trabalhos legislativos prévios, atas
de reunião de comissão, discursos no Parlamen to e preâmbulos que explicam
os fundamentos da norm a em questão.
Apesar de constituir elemento interessante de interpretação, o método
genético promove uma confusão entre o espírito do legislador e a história da
lei, sendo de difícil precisão teórica. Muitos doutrinadores não consagram tal
método em suas classificações, muitas vezes inserindo seu raciocínio dentro da pesquisa da mens legistoris ou no método histórico.
Conforme já vimos, é extremamente difícil (quando não impossível) re
conhecer o sentido da lei a partir da pesquisa dos documentos e pronuncia
mentos dos legisladores e seus debates travados. A pluralidade de intenções
aliada aos acordos políticos realizados para a promulgação da lei impedem o
intérprete de precisar o sentido da norma com base em tais dados. Além do
mais, a arena política é recheada de intenções obscuras e de negociações, o que
esconde a real vontade do parlamentar. Não se deve menosprezar , ent retanto, que o material legislativo prévio
representa uma vasta composição de ideias que auxiliam, eventualmente, na
interpretação do texto normativo.
14“O Código Civil do Uruguai preceitua que, em surg indo dúvidas sôbre a interpretação ou apli
cação dos textos, o comuniquem os tribuna is ao Poder Executivo, a fim de que êste inicie peran te
as Câmaras uma exegese autêntica, ou novas disposições sobre o assunto; entretanto, nem por
isso ficam os magistrados libertados do dever impreterível de decidirem matéria da sua compe
tência, apesar do silêncio, obscuridade ou insuficiência das leis, representam , expõem a necessidade do reméd io legislativo; mas nao suspendem o julgame nto (arts. Io e 15).” m a x i m i l i a n o , Carlos.
Hermenêutica e aplicação do Direito, p.68-9.
Ver capítulo 4, item 3.
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Hermenêutica Jurídica 59
Conforme pudemos verificar, a busca da interpretação autêntica resulta
na consagração de um ente abstrato que supostamente teria o direito de dizer
o legítimo e o ilegítimo. Entretanto, este ente inexistente não passa de uma jus
tificação dos anseios de uma classe determinada que arroga para si a validade
dos sentidos legais, não permitindo que tendências opostas se coloquem às
suas pretensões.
A proteção da mens legislatoris resulta no primado da submissão do intér
prete aos di tames classistas dos parlamentares, os quais, dotados da soberania
popular, ac redi tam ser os ún icos aptos a dizer o Direito.
Peter Hãberle, em sua obra Hermenêutica constituc ionall6, prega a demo
cratização da interpretação constitucional na sociedade aberta e plural, ba
seada no reconhecimento de que todo aquele que vive a Constituição é seu
intérprete, não podendo ser admitido um sistema fechado de entes legítimos
a promover a sua interpretação. Deve-se encarar o tema da Constituição e da
realidade constitucional, favorecendo uma metodolog ia voltada ao atendimen
to do interesse público e do bem-esta r geral .17
Não teceremos detalhes a respeito da tese habérl iana, mesmo porque ela
exige o aprofundamento das teorias constitucionais, entretanto, esposaremos
sua ideia de que o texto legal não pode ter a sua interpretação legitimada porapenas um ente ou alguns entes, quando, na verdade, a realidade demonstra
que diversos intérpretes serão afetados por ela e suas opiniões podem ser úteis
para o alcance da melhor decisão.
Concluímos assim que, mais uma vez, a pretensa criação de um método
imparcial e equânime (o exegético) se revelou como uma forma de manuten
ção do status cjuo, a partir da mentalidade conservadora de manter o sistema
jur íd ico tota lmente at re lado ao Parlamento e inibindo qualquer a to criativo de
entes externos à política legislativa.
5. Método lógico-sistemático
Os pressupostos da Escola da Exegese resultaram na aceitação pelo in
térprete do culto à lei, tanto em razão de seu valor gramatical quanto pela
possibil idade de sua condução à mens legislatoris. Os métodos criados propor
16 A Hermenêutica constitucional — A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição
para a interpretação pluralista e “procedim ental” da Constituição.
17Ibid em,p .l2.
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60 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
cionaram o desenvolvimento de um sistema jurídico suficiente para solucionar
um a grande parte deis lides judiciais.
Entretanto, dois problemas persistiam na legislação: a existência de lacu
nas, vista como uma situação não legislada e que exige uma decisão; e as an
tinomias, em que uma norma dispõe de modo contraditório a outra sobre o
mesmo assunto.
Quando um cidadão necessita saber qual conduta tomar, o ordenamento
jurídico não pode deixar de apresentar uma resposta, sob o argumento de que
o legislador nada dispôs sobre aquilo especificamente. Isso daria ao indivíduo o
poder de decidir o que fazer, deixando o Direito ao livre-arbítrio dos homens e
enfraquecendo o Poder Legislativo.
Da mesma forma, não pode a legislação apresentar mais de uma regula
mentação com impactos incompatíveis para a mesma situação jurídica, sob
pena de term os um confli to entre as próp rias normas e a conseqüente quebra
da unidade e força do ordenamento como um todo.
O método lógico-sistemático visa justamente a resolver esses dois pro
blemas e a manter a int egridade e coerência da legislação, na medida em que
exige uma interpretação de cada norma particular em conjunto com o todo
do ordenamento. No caso da lacuna, a metodologia lógico-sistemática visará a encontrar uma norma no ordenamento que a preencha sob uma ótica
pragmática. Já na antinomia, a metodologia avaliará as leis incompatívei s e
excluirá uma delas.
A leitura do Direito como um sistema lógico exige que cada artigo de lei
esteja em consonância com o ordenamento como um todo. A despeito de seu
conteúdo ser válido ou não do ponto de vista formal, o artigo só será aplicável
se estiver em h arm on ia com as demais disposições legais, caso contrário, outro
artigo igualmente válido, mas mais adequado e coerente, será aplicado.Isso nos remete à velha orientação retórica discursiva, na qual a parte con
forma o todo, e o todo conforma a parte. A relação dialética entre ambos exige
do intérprete um aprofundamento de sentidos e uma pesquisa nos substratos do
ordenamento para aferir se há, ou não, uma ru ptu ra que torne a norma incom
patível.
Ressalta-se que a incompatibilidade é própria das antinomias, pois, ao
contrário do que se comumente propaga na doutrina, as antinomias não se
referem a uma dupla regulamentação em sentidos diversos, trata-se, antes,da existência de uma verdadeira incompatibilidade, como bem leciona Pe
relman:
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Hermenêutica Jurídica 61
Diremos que es tamos, num s is tema de di re i to, diante de uma ant inomia
quando, em relação a um caso específico, existem no sistema diretrizes incom
patíveis , às quais não se pode confo rm ar-se s im ultaneam en te , se ja po rqu e im
põem dua s obrigações em sentido oposto, se ja p o rq u e um a p ro íbe o que a o u tra
p e rm ite e não é poss ív el se co n fo rm ar a u m a sem vio lar a ou tra . As an tinom ias,
ass im com preendidas , não dizem respei to ao verdadeiro ou ao fa lso, não af i rmam
s imul taneamente duas propos ições cont rad i tór ia s , mas consi s tem em um a no r
ma única ou v ár ias no rm as cuja apl icação conduz, em dada s i tuação, a di re t rizes
inco m patív eis.18
Tendo-se em vista o problema das antinomias , diversas regras de interpre
tação foram criadas, positivadas nos códigos e enraizadas na cultura jurídica,
com o fito de resolver problemas práticos com o auxílio de regras simples e
claras: lei posterior derroga lei anterior, lei especial prevalece sobre lei geral, a
lei mais benéfica prevalece em favor do réu, entre outras.
Aparentemente, essa leitura lógico-sistemática resolveria os problemas da
antino mia elencando critérios objetivos para o afastamento de um a norm a em
favor de outra. Se uma lei diz que mata r cachorros é permitido, e outra, poste
riormente, estabelece o crime daqueles que matarem cachorros, basta aplicaro critério temporal para afastar a primeira e mais antiga e favorecer a mais
recente.
Todavia, a objetividade e imparcialidade que pre ssupõem as considera
ções do tipo temporal, hierárquica e outras não são suficientes para resolver
todas as situações de conflito entre normas, mesmo porque nem sempre há
um escalonamento de valores entre elas. Pode ocorrer, por exemplo, de uma
lei mais nova ser editada em contradição à outra mais antiga que lhe é hie
rarquicamente superior. Nesse caso, qual critério favorecer? A hierarquia oua cronologia?
Ainda que se estabelecessem regras das regras de interpretação, o fato é
que as conexões sistemáticas existentes entre as normas de um ordenamento
jur ídico não obedecem a razões puramente formais. Nem sempre o conteúdo
das leis permite estabelecer critérios precisos de qualificação e mediação, o que
permitiria comparar umas com as outras.
Isso ocorre, principalmente, com as legislações do pós-Segunda Guerra que
foram inundadas de preceitos principiológicos e axiológicos, inviabilizadores
18 Lógica jurídica: nova retórica>p.54.
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62 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
de qualquer modelo sistemático e objetivo de interpretação. O pós-moderno
é recheado de aberturas e flexibilizações que não permitem o enquadramento
estrito da lei dentro de critérios formais orientados pela lógica tradicional.
Como resolver o conflito entre duas normas que fazem referência a dois
valores legítimos? Como sopesá-los e afastar um se ambos são válidos e positi
vados no ordenamento?
Podemos imaginar uma situação em que uma propriedade rural impro
dutiva é invadida por famílias para realização de cultura de subsistência. No
caso em tela, devemos valorizar a lei que reconhece a propriedade privada,
retirando as famílias, ou aquela que determina a função social da propriedade,
permitindo sua instalação? E o pr incípio da solidariedade, se aplica?19
Nessa es te ira , Robert Alexy em sua obra Theorie der Grundrechte20>
promoveu uma leitura do Direito a partir de duas ideias-chaves: primeiro,
há de se diferenciar a norma do enunciado da norma; segundo, as normas
a partir de seu conteúdo material podem ser divididas em regras e princí
pios.
As regras são norm as que são cumprida s - ou não -, em sua integralida-
de.21Por exemplo, se a lei determina a obrigação t ribu tár ia do cidadão de pagar
impostos, ao fazê-lo, concretiza-se a norma integralmente. Se o indivíduo nãodeclarar o imposto, a norma não foi concretizada totalmente. As regras são
cumprida s ou não. Não há meio termo.
Em havendo conflitos entre regras, pode-se resolvê-los pela aferição da
validade de cada uma das regras ou determinando-se que uma é a exceção
da outra. Por exemplo: uma lei reza que não é perm itido nadar em lagos. Pos
teriormente, edita-se uma lei que permite a realização de provas profissionais
de natação nos lagos. Há uma ant inom ia no caso em tela? Não, se enxergarmos
a segunda como a simples exceção da primeira. Nesse campo , Alexy faz menção ao uso das máximas jur íd icas como m o
dos de solução de conflitos, conforme já vimos. Por exemplo, lex posterior de-
rogat legi priori , lex specialis derogat lexgenerali etc.
19O exemplo é simples e não trata de detalhes que podem auxiliar a resolver o caso, nem analisa
a legislação específica acerca do tema. Utilizamos o exemplo não como referência à realidadelegislativa brasileira, mas apenas porque ilustra de form a clara e didática os conflitos normativos
que podem advir de determinada situação.
20 a l e x y , Robert. /\ the oryo f constitutional rights. A obra foi traduzida para o português pelo professor Virgílio Afonso da Silva com o título de Teoria dos direitos fundamentais e publicada pela
Malheiros.
21 Ibidem, p.48.
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Hermenêutica Jurídica 63
Os princípios, por sua vez, sâo normas que exigem sua máxima realização
dadas as possibilidades legais e factuais.22 O princíp io da dignidade hum ana,
por exemplo, nunca será plenamente concretizado, caso contrário, o mundo
será perfeito. Todavia, é exigida a realização de tal princípio dentro das possi
bilidades jur íd icas e factuais.
Quando houver conflito entre princípios entra em cena a aplicação da
proporcionalidade. Não entrando em detalhes da teoria de Alexy, a proporcio
nalidade implica um sopesamento dos princípios em jogo, e deverá estabelecer
um a relação de precedência entre eles em razão das circunstâncias particulares
do caso concreto. Tal relação de precedência, nas circunstâncias específicas, to
mará a forma de uma regra que favorecerá a aplicação de um dos princíp ios.23
Em out ro caso, sob um diferente contexto, a ordem de prevalência dos prin cí
pios poderá ser alterada.
A doutrina de Alexy, trabalhada aqui de forma singela, demonstra que o
método lógico-sistemático não pode estar adstrito a uma visão formal da lei,
pois o conteúdo da norma exige um avanço sobre o subjetivo para dali se ex
trair a racionalidade e coerência do sistema.
Outrossim, devemos nos lembrar que estamos estudando aqui uma sis-
tematicidade embasada na resolução de antinomias. O problema, entretanto,não se resume a elas, mas se estende sobre o conceito de lacuna e pode tamb ém
se confundir com a ideia do justo. Pergunta-se: o Direito justo não é lógico?
Não negamos que o método lógico-sistemático seja válido quando pro
põe uma leitura da parte com o todo e, nessa dinâmica, viabilize a coerência.
O ideal de um Direito harmônico e integral é legítimo e de bom grado. O
que se verifica é que a estrutura da norma, como a conhecemos hoje, exige
uma releitura daquilo que se considera como conexão-lógica entre os manda
mentos legais. Somente assim será possível imaginar um ordenamento amploe equilibrado, sem cair nas armadilhas ideológicas da completude do Direito
existentes no passado.
6.A analogia e as interpretações extensiva e restritiva
O sentido primeiro do termo analogia é o de semelhança, similitude. Na
doutrina jurídica tradicional, costuma-se tratar a analogia como u m procedi
21 Ibidcm, p.47.
23 Ibidcm, p.54-5.
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64 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
me nto lógico21que visa a preencher um a lacuna legal, por meio da aplicação de
um a no rma que regulamenta um a situação semelhante.
Nesse sentido, Maria Helena Diniz conceitua a analogia como uma forma
de integração de lacunas “que consiste em aplicar a um caso não contemplado de
modo direto ou específico por uma norma jurídica, uma norma prevista para uma
hipótese distinta, mas semelhante ao caso não contemplado”25.
O emprego da analogia no Direito exige um a dup la investigação: prime i
ro, realiza-se a comparação entre a situação de fato não legislada e aquela que
possui uma norma reguladora; pos teriormente, examina-se a ratio juris desta
norma e a sua pertinência à situação lacunosa. Há, portanto, uma avaliação
de cunho empírico aliada a um juízo valorativo acerca do possível tra tam ento
jur ídico idêntico das situações.
Ilustrativamente, podemos imaginar uma placa afixada em um parque
com os dizeres “proibido pisar na grama”. Se em dete rmin ado espaço do gra
mado começam a crescer rosas, poder-se-á facilmente interpretar, analogica-
mente, que não se deve pisar nas rosas também, pois há uma relação de simi
litude entre a grama e a rosa para os propósitos da razão da norma que é a
preservação do ja rdim.
A similitude exigida pela analogia está vinculada tanto às característicasdaquilo que é comparado (grama e rosas), como também à razão de existência
da norma (preservação do jardim), aplicável às situações em exame.
Se, em vez de tomarmos as rosas que nascem no parque, verificarmos que
ali existe um coqueiro adulto, a analogia será inviável dada a própria incapaci
dade física de pisar em um coqueiro de larga proporção (ainda que seja deseja
da a preservação do coqueiro no jardim).
Por outro lado, caso comece a nascer capim no gramado, a relação
de similitude que se quebra não é a das características dos objetos passíveis de aplicação da norma, uma vez que capim e grama são próximos em
termos botânicos. O que se quebra no caso em tela é a similitude da razão
24 Utilizamos o termo lógico no caso em tela com o sentido de coerente, inteligente, não intentando
vinculá-la a uma lógica em sentido estrito. A anotação é válida uma vez que é tortuoso na doutrina o
pos icionamento da analogia, seja no campo hermenêutico, retór ico ou lógico. Alguns a tratam como
uma forma de argumentação, outros como um raciocínio lógico, e outros, por fim, a inserem junto a
hermenêutica. De nossa parte, haja vista a vinculação deste trabalho aos métodos de interpretação da
lei e a própria positivação dos diplomas legais de que a analogia é uma forma de interpre tar a norma,optamos por inseri-la nos capítulos referentes aos métodos, o que não quer dizer que não reconheça
mos seu papel persuasivo-retórico ou sua relação com a lógica.
25Compêndio dc introdução ã ciência do Direito, p.457.
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Hermenêutica Jurídica 65
da norma (ratio juri$)> pois não é benéfico para a preservação do parque a
permanência do capim.
Nesse aspecto, apresentamos uma visão da analogia estr itamente ligada ao
seu uso no Direito, haja vista que, na retórica moderna, a analogia é avaliada
apenas em função da similitude das relações existentes entre os elementos do
discurso (qualificados como foro e tema), e não dos elementos em si.
Um exemplo clássico de analogia está presente nos textos de Aristóteles:
“Assim como os olhos dos morcegos são ofuscados pela luz do dia, a inteligên
cia de nossa alma é ofuscada pelas coisas mais na turalm ente evidentes.”26
Como bem se pode observar, a analogia aqui existente é entre duas rela
ções: a dos olhos do morcego com a luz solar, e a do intelecto humano com
as coisas naturais. Independe neste caso a similitude entre luz solar e coisas
naturais, assim como olhos do morcego e intelecto humano.
Tal peculiaridade não invalida o que mencionamos anteriormente, posto
que a analogia é tratada de forma diferente nos diversos campos do saber. Os
juristas, pa rticularm ente, in fluenciados pelos códigos modernos, enxergam a
analogia como um método interpretativo das lacunas a partir da pesquisa da
ratio existente na norma e das características dos fatos em exame.
Quando o art. 4o da Lei de In trodução ao Código Civil27reza que as lacunasda lei poderão ser solucionadas com o recurso à analogia, determina, explicita
mente, que ao detectar uma omissão, o jurista poderá preenchê-la a partir do
previsto em uma situação similar. Trata-se de um expediente interpretativo.
A retórica moderna, apoiada em Perelman, assevera que a analogia só
ocorre entre realidades heterogêneas, por exemplo, elementos do mundo fí
sico e do mundo sensível, dificilmente podendo ser encontrada dentro da
mesma disciplina. Segundo tal retórica, não haveria analogia na interpreta
ção da lei dada que as situações comparadas pertencem ao mesmo domíniodo saber.28
Para o fim a que se destina este trabalho, notadamente os métodos
interpretativos jurídicos, não esposaremos a posição de Perelman, dada a
especificidade de seu sistema de classificação de argumentos e a própria
exigência do Direito que positivou o uso da analogia como um método
interpretativo.
26 Metafísica , Liv, 993 b apuei p f .r k l m a n , Chaim. Lógica jurídica: nova retórica, p.424.27 “Quand o a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os
princípios gerais do direito.’'
28 Lógica jurídica: nova retórica, p.426-7; e r e u o u l , Oliver. Introdução ã retórica, p. 186.
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66 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
Posto isso, retornando ao uso da analogia jurídica, sua aplicação exige
duas condições: primeiro, o reconhecimento de uma lacuna; segundo, a exis
tência de uma situação similar normatizada.
A part ir do m om ento em que tais condições estão presentes, o uso da ana
logia se faz quase que de forma espontânea (às vezes até inconsciente), tendo
em vista o imaginário do jurista que privilegia o mítico primado da igualdade
jur ídica e o da ident idade da razão.
O raciocínio é simples: se a lei exige uma determinada conduta em tal
situação, porque exigiria uma cond uta diversa em u ma situação semelhante?
O que está em jogo é a própria racionalidade do Direito como um todo,
já que não se pode conceber uma justiça desigual nos casos em que a ratio
ju ris é idêntica. Aqui, aplica-se o secular brocardo romano: ubi eadem legis
ratio ibe eadem legis dispositio (onde impera a mesma razão, impera a mesma
decisão).
Desse modo, a força da analogia vincula-se aos ideais de igualdade e racio
nalidade que habitam 110 imaginário do jurista, alocando-se em uma dimensão
idealista de um Direito justo e imparcial.
Entretanto, assim como toda moeda possui duas faces, a mesm a mola que
impulsiona a analogia também pode enfraquecê-la.De acordo com Olivier Reboul,“A analogia é sempre um pouco redutora ,
no sentido de anular tudo o que a relação exclui [...]. É desse mo do que se pode
refutar a analogia. Contesta-se que a semelhança de relações seja uma prova:
comparação não é razão”29.
Isso se torna claro em virtude da quebra do princípio da identidade na
aplicação da analogia. No m om en to em que se reconhece que dois objetos são
similares, também se reconhece que tais objetos são distintos. Se há distinção
entre eles, porque tratá-los como iguais?É a partir desse m om en to que passaremos a uma leitura da analogia sob o
enfoque retórico, em especial em vir tude de seu caráter persuasivo.30
Se tivermos duas situações idênticas, a pura subsunção lógico-formal da
mesma lei bastará a ambas. Por outro lado, se as situações forem próximas,
parecidas, teremos que realizar um juízo de ponderação para saber se efetiva
mente a similitude é tal que justifique o emprego da mesma lei.
29 Introdução ã retórica, p. 186.
30 A rejeição que fizemos da classificação de Perelman para os fins deste trabalho jurídico, não
implica que seja negada a natureza retórica da analogia.
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Hermenêutica Jurídica 67
Dito juízo nào se apresenta aos olhos do sujeito como um método na
forma como é proposto pela he rmenêuti ca clássica. Ao contrário, o juízo ava-
liativo será retórico na med ida em que deverá justificar e dem ons tra r persuasi-
vamente po rque um a situação é similar a outra e merece o mesm o tra tamento
legal, quando diversos fatores são distintos.
Suponhamos que exista a norma A aplicável ao caso B e C seja lacunoso.
Se B tiver as características x, y, w e z e C tiver as características x yy, p e z, será
justificável a aplicação de A ao caso C? Ainda que a maior ia dos elementos seja
igual, será que p e w não podem representar um traço essencial de sua natureza
que os torne diametralmente distintos?
O juízo avaliativo será necessário para o inté rprete d em ons tra r e conven
cer acerca da adequação da analogia proposta, haja vista que, no limite, ne nh u
ma situação é idêntica a outra, p ode ndo elas ser mais ou menos similares.
Uma outra questão interessante ocorre quando se confronta a analogia
com a interpretação extensiva. Na prática, ambas são confundidas com fre
quência em razão da imprecisão terminológica com que são tratadas.
A interpretação extensiva é aquela em que os termos de uma nor ma têm o
seu sentido ampliacio, abarcando uma situação que aparentemente não estava
contida em seu sentido primeiro. É o contrário do que ocorre na interpretaçãorestritiva em que os termos do enunc iado normativo devem ser vistos de forma
precisa e taxativa.
Tomemos como exemplo uma lei hipotética que isenta de pagamento de
tributos os automóveis de motor 1.0, 1.4 e 1.8. Nesse caso, como ficariam os
veículos 1.6?
Se tomarm os em conta a interpretação restritiva, os automóveis 1.6 esta
rão categoricamente excluídos da isenção proposta já que não constam do rol.
Porém, se empregarmos a analogia ou a interpretação extensiva alcançaremoso resultado inverso, isto é, os automóveis 1.6 deverão ser isentos de tributos
pois estão em situação similar a dos demais veículos do rol.
Sob esses primas qual é então a diferença entre empregar a analogia e a
interpretação extensiva se o resultado é o mesmo?
A problemática aqui reside em distinguir o procedimento que estende o
sent ido da lei para um a situação lacunosa e aquele que aplica um a lei a um caso
similar lacunoso. As duas operações são próximas e, por isso, alguns dout rina-
dores afirmam que a inte rpretação extensiva é uma espécie de analogia.Em sentido contrário, favorável à distinção, o jurista italiano Francesco
Ferrara afirma:
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68 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
A analogia dist ingue -se da interpre tação extensiva.
De facto, uma aplica-se qua ndo um caso não é contem plado por u m a disposição
de lei, enquanto a outra pressupõe que o caso já está comp reendido na regulam enta
ção jurídica, en tran do no sen tido de um a disposição, se bem qu e fuja à sua letra.
A interp retaçã o extensiva não faz mais do q ue re con struir a vontad e legisla
tiva já existente, para uma relação que só por inexacta formulação dessa vontade
pare ce exclu íd a; a analo gia , pelo contrá rio , est á em presença d u m a lacuna, d u m
caso não p revenido, para o q ual nã o existe um a vo ntad e legislativa, e proc ura t irá-
la de casos afins corr espo nd ente s.31
A distinção é válida mas encontra obstáculos. Não é fácil determinar
qu ando um sent ido fazia parte da vontade legislativa e deixou de constar na lei
por equívoco e, por outro lado, quando houve uma omissão desejada. Afinal de
contas, entraremos no tortuoso campo da mens legislatoris e da mens legis.
No exemplo que demos an te riormente, pod emos considerar que os auto
móveis de motor 1.6 não constavam da norma por pura falha legislativa, ou,
eventualmente, pode o legislador ter optado por não inseri-los no rol pois havia
uma razão para tal. Imaginemos, por exemplo, que tais veículos são fabricados
com componentes do exterior e que o governo possui razões políticas para preservar a indústria nacional. Isso seria um fator razoável para excluir tais veículos
da lista de isenção, sem, contudo, violar o prim ado da isonomia jurídica.
Dessa forma, percebe-se que a analogia e a interpretação extensiva se to
cam e, muitas vezes, não permitem uma identificação precisa a respeito do
raciocínio empregado. Isso não implicará prejuízo para o intérprete, dado que
as conseqüências são geralmente as mesmas e a utilização de uma ou outra fica
à margem de sua discricionar iedade e conveniência .32
7. Método histórico
A Escola Histórica nasceu na Alemanha pré-unificada sob os ensinamen
tos de Savigny, para quem o Direito só poderia ser explicado a par tir da história
do povo que o construiu.
“In terpretação e aplicação das leis”, p. 162-3.
32 É o que pode ocor rer no camp o do direito penal brasileiro no qual a analogia é proibida, masa interpretação extensiva não o e de forma clara, havendo grandes debates na doutrina acerca do
tema. Por outro lado, o Código de Processo Penal admite, expressamente, a interpretação exten
siva e a aplicação analógica em seu art. 3o.
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Hermenêutica Jurídica 69
O fato de a Alemanha somente ter publicado seu primeiro código em
pr inc íp ios do séc. XX, conferiu a seus es tudiosos uma visão menos legalista do
que aquela apresentada pelos franceses da Escola Exegética.
O Direito Romano, largamente estudado pelos alemães, influenciou deve
ras a valoração que estes concederam aos usos e costumes como fonte do Di
reito. É a história de um povo que constrói e atribui sentido ao sistema jurídico,
não podendo este se descolar daquele.
O Direito, assim como o Estado, somente são explicados e justificados a par
tir da História que prescinde a ambos. Os costumes, mais do que meros hábitos,
traduzem a consciência coletiva da Nação que se quer ver refletida nas leis.
Quebra-se o fetiche do legislador como único ente autênt ico para falar em
nome da Nação. Seu discurso não é mais visto como lógico e perfeito, sendo
necessário o recurso a outras fontes para se revelar o Direito. A completude
do código vai aos poucos sendo percebida como uma tarefa inexequível face à
complexidade da vida.
Dessa forma, o método histórico prega um retorno do homem às suas
tradições para nelas encontrar o sentido de sua existência atual. É preciso en
contrar qual é o fio condutor que nos transporta do passado ao presente e nos
conduz ao futuro. Existe uma lógica, uma razão pela qual as coisas são de umaforma e não de outra, e este fundamento é histórico e deve ser evidenciado.
Na medida em que o passado dialoga com o presente, faz-se necessário
realizar um juízo acerca da razão existente na criação legislativa pretérita e sua
adequação ao caso presente. A edição de uma lei sempre ocorre em um mo
mento cronológico anterior à sua aplicação e, portanto, deve-se investigar se
há uma linha histórica que sustenta estes dois momentos no tempo. Se não
houver, a aplicação daquela lei não fará mais sentido, pois sua razão originária
já não é mais apropriada.Essa linha histórica, na doutr ina de Savigny, deveria ser entendida de acor
do com os sentimentos coletivos da Nação, os quais explicam e justificam o
sentido do Direito.
Apesar dos avanços aferidos por tal método, não se pode dizer que ele
tenha desamarrado a hermenêutica de seus traços exegéticos. Como já disse
mos, a percepção histórica permitiu a introdução de um novo elemento inter-
pretativo, mas ainda não deixava que este se instalasse como uma força livre e
criativa, como sua dou trin a faria supor.Há uma comunicação muito forte entre as Escolas Exegéticas e Históri
cas, quando ambas concebem a interpretação como uma atividade realizável
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70 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
somente por meio do texto legal. A História, por mais que tenha significativa
importância, deverá ser encontrada unicamente pelo texto da lei, e nunca além
dele.
O próprio pai da escola, Savigny, considera que a hermenêutica deve ser
realizada por meio dos métodos literal, sistemático e histórico. A força do texto
exegético, portanto, continua presente, o que se perde é a força do legislador
com o única fonte autêntica de interpretação da lei.
Essa é a zona c inzenta a que se referiu Perelman, quando ressalta que nessa
escola ainda não há uma verdadeira liberdade e um novo raciocínio jurídico,
embora progressos existam.
O magistrado então, ao se deparar com a lei, deverá efetuar sua in terpre
tação literal e promover um diálogo desta com os sentimentos coletivos da
nação. Os valores do povo, seus usos e costumes, são razões de existência da lei
e devem ser tomados em consideração na investigação hermenêutica.
De acordo com Warat, existe aqui uma troca de fetiches. O que para a
Escola Exegética é o recurso à vontade do legislador, na Escola Histórica é
a remissão ao espírito do povo.
Desde logo se percebe que a base histórica d a escola é ideológica. Os fenômenos jur íd icos são pro dutos de um de te rmini sm o causa i, pensado i lusor iamente
com o o m elhor cam inho pa ra a comp reensão do presente e do passado . Por ou t ra
par te , os aspecto s so cia is não sã o expli cados po r seus dete rm inan tes , m as rela
cionados metaf is icamente com o espír i to de um povo. A grande preocupação da
escola não é a de com preen der os confl itos sociais em um determ inad o m om ento,
mas l igá-los repressivamente com o passado. Assim o Direito é algo natural que
deve ser captado por a tos da intuição ( ideológica) . Daí porq ue os par t idár io s do
m étodo his tór ico cons iderarem que a le i não é jur isprud encia lm ente con s t ruída ,mas co mpreendida pe lo ju iz a pa r t ir do métod o h i s tór ico , ún ico adequad o p a ra
tal fin alida de.33
A ideologia do recurso à história impõe um determinismo e uma amarra
ao juiz que não pode contrariar os sentimentos coletivos do povo. O Direito
ainda é desprovido de qualquer poder de transformação, não pode atuar ati
vamente 110 construir da Nação, deve apenas aguardar o andar dos tempos e
reconhecer os usos e costumes que se formam no seio da sociedade sem a sua
33 Introdução ao Direito, p.73.
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Hermenêutica Jurídica 71
interferência. O método histórico apresenta uma postura passiva e nào ques
tiona as bases estruturais da norma, ainda as admitindo como texto que deve
ser aplicado.
Um passo mais imp ortante foi feito pelas concepções históricas de cunho
evolutivas. Para esse método, comumente chamado de histórico-evolutivo, a
lei elaborada deve aco mp anh ar as evoluções da sociedade. O conteúdo de uma
norma não deve apenas estar ligado ao passado que o prende e o determina,
deve antes, estar ligado à história que se constrói ao longo do devir.
Aparentemente, esse método revolucionaria a percepção hermenêutica,
porém, também aqui havia um apego ao texto da lei que lhe impunha limites à
atividade de reconhecimento das mudanças sociais. Ainda que a nor ma deves
se ser entendida sob o prisma da consciência coletiva, a reverência à semântica,
à sintaxe, enfim, à filologia, criava empecilhos de ordem lingüística para a pes
quisa de sentidos da norma.
Os ideais da Escola Histórica foram trazidos para os códigos modernos
por meio da in terpretação da lei com apo io nos usos e cos tumes. Isso não sig
nifica a consagração do método propostos por Savigny, com todas as suas pe
culiaridades, apenas admite-se a importância da historicidade do Direito e a
construção de valores culturais de uma nação ao longo dos anos. No direito brasileiro, a Lei de Introdução ao Código Civil em seu art. 4o prece itua que:
“Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os
costumes e os princípios gerais do direito.” Nota-se que o magistrado apenas
deve investigar os usos e costumes quando houver lacunas na lei, não o pod en
do fazer quando houver legislação expressa a respeito do tema.
A decisão judicial, vista sob o pr isma da jurisprudência, foi creditada por
muitos doutrinadores como uma das mais importantes tarefas da metódica
histórica, asseverando estes que a investigação das decisões judiciais conduz àapreensão dos m ovimentos de sentidos da historicidade da lei.
Apesar do raciocínio ter validade, isso é uma distorção da doutrina ori
ginária da escola de Savigny, na medida em que confunde a História com a
decisão jurídica em determinado momento temporal. Uma decisão do tribunal
não se confunde com os sentim entos coletivos da Nação a que o mestre alemão
fazia referência, ainda que possa haver uma coincidência eventual entre elas.
Tudo nos parece ser influência dos teóricos do sistema da common law, em
que se verifica uma certa confusão entre o histórico e o judicial, haja vista aconstrução do Direito desprovido de uma extensa codificação e apoiada nos
precedentes.
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72 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
Acreditamos, por fim, que a existência e o reconhecimento do históri
co são largamente difundidos e aceitos dentre a comunidade jurídica. Não há
como se negar valor aos usos e costumes, à tradição, aos precedentes judiciais
e trabalhos legislativos prévios.
Todavia, há uma dificuldade contemporânea em aliar o fórum da tradi
ção em que o homem se insere aos rápidos movimentos do pós-moderno. A
remissão ao passado é vista, muitas vezes, como uma amarra à evolução da
humanidade , ao passo que o mo der no se constrói com um a velocidade tal, que
não é possível prever a solidez de suas est rutu ras axiológicas.
É preciso que haja um diálogo mediado pelo intérprete, sem que este caia em
uma dicotomia reducionista que enxerga a decisão como uma opção entre passa
do ou futuro. Importante, nesse ponto, é enxergar os laços históricos e reconhecer
os movimentos éticos como proposto por Dilthey e Ranke, não se apegando aos
argumentos jur ídicos superficiais que refletem ideias precárias e frágeis.
8. Método teleológico
Nos finais do séc. XIX, o jurista alemão Rudol f Von Iher ing escreveu as
obras Der Kampf ums Rechte e Der Zweck im Recht' \ nas quais realiza uma incisiva crítica ao m odelo lógico-dedutivo e apresenta uma concepção de Direito
com forte apego à finalidade de suas normas.
De acordo com Ihering o Direito nasce da luta cotidiana que a sociedade
trava em seu interior, sendo a lei uma conquista árdua do homem que visa à
preservação da paz no seio da com unidade.
Desse modo, o Direito deve ser concebido a partir de sua realização práti
ca, do resultado que visa a produzir empiricamente. Contrapõe-se assim à or
dem de comandos abstratos que impregnava o pensam ento jurídico vinculadoà Jurisprudência Conceituai.
A norma jurídica não é um fim em si mesma, mas uma disposição que
conduz a uma finalidade. Esta finalidade, no limite, é sempre a da preservação
social.
A edição de uma lei não é um fenômeno ao acaso. Tudo aquilo que se faz
no Parlamento, faz-se com vistas a um resultado pragmático, um a conseqüên
cia no plano social. O texto legal é apenas uma referência para o intérprete que
deve encontrar em seu enunciado a razão prática que originou a elaboração
34Entre nós traduz idas como A luta pelo Direito e A finalidade do Direito por diversas editoras.
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Hermenêutica Jurídica 73
legislativa. Caso a interpre tação da lei não alcance tal fim, então o Direito será
ineficaz.
Para a teoria de Ihering, um componente que condiciona a teleologia da
lei são as condições sociais existentes em d eterminado mo me nto histórico. Por
exigir uma aplicação legal atrelada aos efeitos concretos na realidade, a inter
pretação deveria necessariamente conhecê-las, sendo elas de três tipos: extraju-
rídicas, jur ídicas e mistas.35
Posteriormente, com base no método teleológico, surgiu a Escola da Ju
risprudência de Interesses, cujo expoente maior foi Philipp Heck, jusfilósofo
alemão que abraçou a concepção jurídico-pragmática.
Para essa escola, o Direi to é cons tru ído para a concretização de interesses,
vistos estes como desejos e aspirações existentes na sociedade. Desse modo,
toda no rm a também possui um interesse em seu bojo, sendo trabalho do juris
ta realizar um a hermenêutica de cunh o metodológico histórico que encontre o
sentido que orientou a lei, não como um a vontade subjetiva do legislador, mas
como seu elemento prático determinante , seu interesse causai.36
Todavia, constatou Heck que o encontro do interesse normativo e sua
aplicação pura e simples em determinada situação jurídica pode representar
um grave equívoco. Por isso, o papel do julgador passa a ser o de realizar umaconciliação entre os interesses presentes na norma e aqueles que estão em jogo
na disputa entre as partes. A decisão do magistrado deve se atentar à lei, mas
também aos interesses individuais dos litigantes, estejam eles ligados a fatores
econômicos, artísticos, culturais, religiosos, ou qualquer outro.
O jurista Pound, por sua vez, trabalhou densamente o sent ido da teleologia
sob um a perspectiva da sociologia empírica. Descobrir a finalidade da lei é uma
atividade relacionada a critérios empíricos verificados nos efeitos sociais prag
máticos. As necessidades e vontades da sociedade devem ser saciadas na legislação, a qual não pode ficar refém de especulações que impeçam a sua eficiência.
Essa concepção de fundo da norma é salutar para uma concepção de Di
reito como regulador e transformador social. O atuar pragmático da norma
deve produzir resultados, caso contrário, não passa de letra morta.
Dizer que há um fim na norma, significa ressaltar que existe um núcleo
de vontades e aspirações dentro dela que escapam muitas vezes ao texto. Se
' Para maiores detalhes ver: f e r r e ir a , Nazaré do Socorro Conte. Da interpretação ã hermenêutica jurídica: uma leitura de Gadamer e Dworkin.
36 p e s s ô a , Leonel Cesarino. A teoria da interpretação jurídica de Emilio Bett i: um a contribuição à
história do pensamento jurídico moderno, p.26-9.
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74 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
tom arm os o exemplo já utilizado da placa “não pise na grama”, podemos nos
perguntar: qual a sua finalidade? Para que existe tal no rma? Qual a sua razão
prática?
A resposta mais provável para tal pergunta é a de que a ordem imposta
visa à preservação da grama, não perm itindo que ela seja pisoteada e destruída
pelos transeuntes . Dentro dessa sua finalidade, pe rguntamos: será ilícito pisar
na grama para cortá-la e irrigá-la?
Nesse caso, reconhecendo que a teleologia da norma é da manutenção do
jard im, o corte e a ir rigação auxil iam tal consecução prática, não devendo ser
considerada como ilícita.
Até os dias atuais, o método teleológico goza de bom prestígio dentre os ma
gistrados que não se eximem de invocá-lo constantemente. A própria legislação
moderna contemplou a utilização de tal recurso hermenêut ico. Dentre nós, a Lei
de Introdução ao Código Civil reza em seu art . 5o que: “Na aplicação da lei, o juiz
atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum ”.
Apesar da vinculação do mé todo teleológico a valores nobres com o a pre
servação social e bem comum, nota-se que os conceitos de pragmaticidade e
finalidade expõem seu caráter político-interpretativo, na m edida em que a ve
rificação empírica de determinada norma sugere sua função transformadorana sociedade, cujas conseqüências e resultados dete rminam seu sentido.
A dificuldade que o método teleológico não responde é a problemática em
se encontrar uma forma de qualificar ou quantificar o interesse social que está
em jogo. As implicações políticas que o método teleológico traz em seu bojo
permitem que d eterminada in terp re tação seja considerada válida em nome das
necessidades da sociedade.
Ora, ninguém irá negar que a lei efetivamente deve cumprir sua função
social. Mas que interesse social é esse? Quem é essa sociedade? Quem determina o que ela quer?
Toma-se constantemente o interesse próprio como se fosse o de toda a
sociedade, e isso requer que o magistrado esteja atento àquilo que Ferdinand
Lassale cham ou de “fatores reais de poder que regem uma nação”37, caso co n
trário, o Direito estará refém de uma luta entre setores sociais recheados de
finalidades pretensamente jurídicas e pretensam ente coletivas.
<7 A essência da Constituição, p. 17. Em sua investigação sociológica sobre o Direito e Constituição,Lassale conclui que a Lei Fundamental de um país está relacionada aos fatores de poder que a tuam
em sua construção, sendo que, dada a diversidade de classes e interesses, vence sempre aquele que possui a maior força.
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Hermenêutica Jurídica 75
9. Escola da livre pesquisa (libre recherche) e o métodocientífico
Nas úl timas décadas do séc. XX, o jur ista francês François Geny constru iu
uma doutrina que visava a estabelecer, de forma razoável, uma integração en
tre os ditames da Escola da Exegese e as indagações propostas pelo método
histórico-evolutivo.
Geny cautelosamente reconheceu que o trabalho do intérprete ocorre
dentro de uma dinâmica aparentemente inconciliável: o Direito que deve a
tudo legislar, mas não consegue, e o juiz que não pode se esquivar de julgar
nem pode ser criativo.O mestre francês busca nas filosofias da natureza do homem a resposta
pa ra essa problemática . O Direito deve ser pensado junto com a filosofia, a
moral, a religião e a ideia de justiça, por isso o jusnaturalismo possui especial
relevo em sua doutrina, que se assenta na necessidade de se pensar a lei como
uma criação racional do homem que visa a organizar a realidade fática com
valorações axiológicas e ideológicas.
Reconhece Geny a existência de uma dimensão subjetiva na formulação
das normas. Inclusive, sua formação pessoal na fé católica o leva a crer que oDireito deve, outrossim, ser legislado conforme a vontade divina.
Não se tra ta de se conceber a lei com o um instrumento da fé, mas antes,
reconhecer que a moral subjetiva está presente na atividade hermenêutica , seja
qual for o agente interpretativo.
De acordo com o mestre francês, o Direito é formulado sob duas bases:
o dado (le donné ), e o construído (le construit). O primeiro consiste em todo o
universo objetivo da existência humana inserido na natureza. O construído,
por sua vez, é uma cr iação que se faz sobre os pressupostos do dado.A norma jurídica, vista dessa forma, significa a constatação de uma reali
dade fática que exige a inserção de valores humanos para daí se emanar uma
estrutura legal.
A pesquisa sociológica é um trabalho cie pressuposto da criação da norma
que deve identificar e recortar da realidade aquilo que será concedido um juízo
de valor, podendo este ser feito com remissão à moral, aos costumes, à religião,
entre outras fontes.
As concepções de Geny só não se tornaram revolucionárias porque , aliadaà sua doutrina sociológica e ideológica, ele se mostra extremamente cauteloso
quando se trata de interpretação da lei. Para ele, o trabalho do jurista é aplicar
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76 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
a norma jurídica da forma como ela está positivada, sem recurso à pretensa
vontade do legislador, nem às considerações histórico-evolutivas de se adaptar
a no rma aos ambientes sociais em formação.
A lei possui den tro de si um com ando fundamental que pode ser verifica
do po r meio da hermenêutica. O mé todo exegético, principalmente, diz aquilo
a que a norma se propõe (voluntas legis), e somente esta vontade é legítima.
Entretanto , sabe Geny que o Direito possui um a eterna inferioridade frente às
ciências da natureza, haja vista não conseguir estabelecer um sistema fechado,
completo e unívoco de conhecimento. Sendo assim, quando o intérprete se
deparar com uma lacuna no ordenamento, deverá primeiro aplicar os métodos
sistemático e histórico para que a unidade do ordenamento seja mantida.
A lei é exponenc ialmente a primeira e ma ior fonte do Direi to e assim deve
ser preservada, colocando-se em um segundo plano as demais fontes formais
(costumes, jurisprudência , dout rina e tradição) e informais (as concepções de
razão, mora l e Direito Natural).
Todavia, não encontrando o juiz resposta no sistema legal dedutivista e
suas fontes formais, deve o mesmo realizar uma livre pesquisa em torno dos
dados racionais e ideais. Por meio da investigação da moral, o juiz poderá for
mular um preceito que determine a solução do caso concreto. Trata-se de um aatividade legislativa restrita a um microcosmos do ordenamen to: a lacuna.
Cada fenôm eno socia l - diz Geny - já t raz em s i mesm o, no seu próp rio
desenvolvimento, a razão de ser de sua no rm a. O social , no seu bojo, con tém em
esboço a solução juríd ica que lhe é própr ia. A regra de direito não é algo de arb i
trário, imposto pelo legislador, mas, ao contrário, algo que obedece a uma ratio
iurisy o que quer dizer, à razão natural das cousas. A natureza das cousas implica
a apreciação de vários elementos, demográficos, econômicos, históricos, morais ,religiosos etc. O jurista, quando a lacuna é evidente, transforma-se, dessa forma,
em um pesqui sador do Di re ito , pa ra de te rminar a norm a próp r ia concernente ao
caso concreto, de co nfo rm idad e com a ordem geral dos fatos.38
O método científico, como é chamado o trabalho de pesquisa livre do Di
reito, representa um significativo avanço para a ciência jurídica na medida em
que trabalha com duas dimensões: o valor da lei e sua estabilidade, e a função
da ideologia e da mora l conscientemente inserida no Direito.
38 r e a l e , Miguel. Lições preliminares de Direito, p.287.
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Hermenêutica Jurídica 77
O que Geny não percebeu em sua teoria foi que as duas dimensões por ele
analisadas, a lei estrita e as valorações extrassistemáticas, não conseguem ser
tratadas de um a forma estanque como a proposta. A hierarquização do recurso
ao gramatical em superioridade ao ideológico, não funciona a partir de uma
avaliação objetiva da lei.
As lacunas que se encontram no ordenamento, muitas vezes não se referem
à ausência de uma norma aplicável ao caso concreto, mas sim, a um a desaprova
ção de cunho valorativo que impede o intérprete de aplicar tal dispositivo.
As ideologias não atuam apenas como forma de se complementar ou
preencher os espaços vazios da lei, atuam antes na própr ia elaboração desta e
determinam o sentido da interpretação.
A importância da escola de Geny redunda mais na conscientização que
este promoveu das dimensões do discurso jurídico, do que em sua ousadia em
aplicá-las livremente.
Tanto é que a contemporaneidade, tendo concebido o trabalho da livre
pesquisa como uma investigação herm enêutica da lei - e não só das lacunas
do Direito -, ainda se questiona até que pon to se deve favorecer o formalismo
legal ou deixar o intérprete se guiar por posições éticas. O Direito é Lei ou é
Moral? Lei e Moral são conciliáveis em um texto? No mesmo sentido, a dúvida fundamental da ob ra de Geny se tr ansfor
mou em um a das maiores indagações da ciência jurídica: como alcançar o Di
reito além da lei, mas por meio da lei?
10. Método sociológico
O surgimento da sociologia trouxe ao debate jurídico novos elementos
de pesquisa da estrutura normativa, emprestando à metodologia jurídica ouso das ferramentas de investigação sociológica: observação, experimentação,
comparação de dados etc.
O esforço do jurista Diguit (influenciado por Max Weber e Durkheim) vai
ao encontro do Direito com a realidade fática e a força dos movimentos sociais.
Eu sou daqueles - diz Diguit - que pensam que o di re i to é m ui to m enos a
obra de um legis lador que o pro du to con s tante e espontâneo dos fotos. As leis po
sitivas, os códigos, po de m subsist ir intactos em seus textos rígidos; pou co im po rta;
pel a força das co isas, sob a pressão dos fa to s e das necessid ades práticas se form a
constan temen te ins t i tuições jur ídicas novas . O texto é sempre o mesm o, mas fica
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78 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
sem força e sem vida; ou então , med iante um a exegese sutil se lhe dá u m sentido e
um con teúd o n os quais não havia pensado o legis lador quan do escreveu.39
Na realidade social encon tra -se um repertór io de dados que dão sent ido a
norma, independente das intenções legislativas ou até mesmo do texto da lei.
0 culto à no rm a deve ser substitu ído pelo culto à realidade social, pois é nesta
que se produz o discurso jurídico.
Em contraposição à livre investigação da escola francesa, o método socio
lógico não transcende as dimensões metafísicas para encontrar uma resposta
interpretativa à lei. As normas jurídicas são extraídas do plano est rito do social,
referenciáveis por meio de constatações empíricas.
De acordo com Diguit, o Direito pode ser resumido ao fato social como
unidade completa de dados que perm ite deduzir a lei. Não adm ite o sociólogo
que tais dados sejam avaliados em term o de valores, ressaltando que o trabalho
jur íd ico deve ser o de buscar nos métodos sociológicos a assimilação da justiça
com o dado real, nunca como um conteúdo valorativo subjetivo.
Essa empirização do Direito foi relativizada por Hariou, para quem a so
ciologia auxilia o labor jurídico, em vez de determiná-lo por meio do positivis
mo sociológico radical.Trabalhar o fato social é tarefa primordial do jurista que pretende conce
der à sua nor ma um sentido de validez democrática. Miguel Reale, em sua obra
Teoria Tridimensional do Direito, constatou que o Direito deve ser compreen
dido em três aspectos: normativo, fático e axiológico, e que estes não estão
separados um dos outros, mas coexistem numa unidade .40
A doutrina que o método sociológico desenvolveu foi fundamental para
desper tar os juristas a uma dimensão de pesquisa da realidade não muito clara
anteriormente. O que se tornou inviável, por outro lado, foi o uso isolado demétodos de experimentação na ciência do Direito, o que rapidamente foi tido
pela doutrina como impraticável frente ao conteúdo ético das leis.
1I. Escola do direito livre (Freies Rechts)
O movimento de base sociológica que se expandia na Europa provocou
um grande impacto na mentalidade jurídica internacional, agora, consciente
39 w a r a t , Luis Alberto. Introdução ao Direito , p.78.
40 Teoria tridimensional do Direito, p.64-5.
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Hermenêutica Jurídica 79
da vinculação do Direito com a realidade social e perante uma nova estrutu ra
normativa.
Outrossim, a Escola da Libre Recherce ecoava por meio dos ensinamentos
de Geny, cujo sopro de romantismo científico dava asas cada vez maiores ao
operad or jurídico.
Foi nesse quadro que Erlich e Kantorowicz desenvolveram a chamada Es
cola do Direito Livre (Freies Rechts) na qual, em linhas gerais, pregavam a li
berd ade do julgador para , mediante um caso concreto, buscar no Direito Livre
a decisão mais justa, podendo a mesma estar de acordo ou não com os ditames
do Direito estatal vigente.
Dada a importânci a de tal Escola - que se refletirá principa lmen te qu an
do da análise dos métodos hermenêuti cos utilizados pela jurisprudên cia m o
derna -, deteremos-nos um pouco mais neste tópico e analisaremos deta
lhadamente o pensamento de Kantorowicz. Em sua obra Der Kanip f um die
Rechtswissenchaf? \ publicada em 1906 sob o pseudô nim o de Gnaeus Flavius,
Hermann U. Kantorowicz descreve com lucidez e agudo poder crítico sua
concepção de Direito, comba tendo de form a assaz os mitos e ideais falaciosos
que habitam a ciência do Direito e a interpretação jurídica, pregando uma
visão transparente e honesta das verdadeiras relações e intenções existentesentre o intérprete e a lei.
Primeiramente, Kantorowicz chama a atenção para o ideal megalomaníaco
do Direito de a tudo querer legislar e a tudo querer resolver. Descreve o autor,
ironicamente, a frágil e ingênua situação do jurista que, fechado em seu escritó
rio e sentado de frente a seu ostentoso código, é subitamente chamado a resolver
um caso. Com o virtuosismo de um mestre, realiza espontaneamente uma dedu
ção lógica entre os ditames da obra estatal e o conflito existente e pronto! Caso
resolvido!42A situação narrada descreve um clássico mito presente no imaginário da
comunidade jurídica, existente em função mesma da sua criação. O próprio
Direito nasce a partir da ideia fundamental de um instrumento regulador das
relações sociais, o que exige um corpo legal de normas que contenha a previsão
abstrata de todas as situações passíveis de ocorrerem nesse meio social, assim
como a solução para os eventuais conflitos oriundo dessas relações.
41 Utilizamos a tradução para o italiano, k a n t o r o w i c z , Hermann U. La lotta per la scienza dei
Diri tto .42 Ibidem, p.57.
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80 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
Entretanto, sabido é que tal pensamento não passa de um ideal persegui
do pelo legislador mas que nunca foi e nunca será realizado plenamente. Isso
po rque , como já vimos, o Direito não consegue a t udo legislar, dada a finitude
e falibilidade do homem em face da infinitude do universo que o circunda. A
imprevisibilidade de algumas situações, assim como as mutações das relações
sociais e de suas valorações subjetivas, provocam imprecisões no o rde name n
to jurídico que somente são preenchidas ao longo do tempo, nunca de forma
espontânea e imediata.
Kantorowicz, nesse ponto, traça um paralelo entre a jurisprudência e a
teologia ortodoxa, concluindo que a primeira se encontra historicamente sob
forte influência da segunda, dada a sacralidade e perfeição conferida a seus
respectivos livros sagrados (código e Bíblia, respectivamente), cuja expressão
provém da mais alta, jus ta e inquestionável autoridade (naquela o legislador,
nesta, Deus).43
Dessa forma, o autor alemão crê que é dever do jurista reconhecer a
finitude e imperfeição do Direito estatal, assumindo, por decorrência lógica,
a existência de suas lacunas. Kantorowicz se coloca em clara oposição aos
ditames cio famigerado art. 4o do Código Civil francês que permite a conde
nação do juiz por negação de justiça caso este se recuse a julgar em razão dosilêncio da lei.44
Ao mesmo tempo em que sustenta a imperfeição do Direito estatal, Kan
torowicz reconhece a existência de um out ro Direto, aquele que resolveu cha
mar de Direito Livre (Freies Rechts). Em sua concepção, o Direito Livre é uma
releitura do Direito Natural no séc. XX, uma vez que se opõe ao Direito estatal
de contornos formal e legalista.
Nesse ínterim, o mestre faz ques tão de afastar sua doutrina dos au tores
jusna tura lis tas clássicos como Pufendorf, Wolff e Beccaria.45 Ent re tanto, não é preciso ao enunciar qual seria o conteúdo e onde exatamente residiria a fonte
de seu novo Direito Natural , o Direito Livre. Escreve o autor:
II via ggia to re in paese stra niero si fa m ili a r izza con la língua , com la storia ,
com VartCy com gli usi e coi costu m i dei popolo: però n essuno sogna nean che d i apri-
re soltanto i suo i codici. Essi vivon o t u tti secondo il libero -D irittoy secondo quello
43 Ibidem, p. 123.44 Art. 4o: “Le juge, qui refusera de juger, sou pretexte du siletice, de Vobscurité ou de Vinsufisance de
la loi, pourra être pousuivi comme couplable de déni de justice.”
La lotta per la scienza dei Dirittoy p.74.
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Hermenêutica Jurídica 81
che la n orm a di coloro che li circondano od il loro giud izio individ ua le fa apparire
D ir it to /.../.
Per tal mo do il libero-D iritto afferm a la sua possente sfera d yazion e e vive indi-
penden te da quel lo statale. M a non cosi ques to da quello. II l ib ero -D ir it to è il terreno
dal qua le nasce il D iritto-statale [...].46
Verifica-se que o Direito Livre, segundo Kantorowicz, não se confunde
com o Direito positivo, devendo o segundo ser extraído do primeiro. Tendo
em vista a integralidade da obra e o excerto em especial, somos levados a crer
que para o autor, a par de sua imprecisão conceituai, o Direito Livre habita no
próprio corpo da comunidade de homens, confundindo-se com seus valores,
costumes e as regras que daí advêm.47
Verificada a existência de um Direito anterior e fonte do Direito estatal,
cum pre ao jurista, e mais especificamente ao julgador, buscar as soluções dos
litígios tanto no seio do Direito estatal quanto, primordialmente, no seio do
Direito Livre, sob pena de cometer equívocos e injustiças.
Sendo assim, como se dá a relação entre Direito estatal e Direito Livre? Pode
haver contradição entre eles? Qu ando um deve prevalecer sobre o outro?
Para Kantorowicz, a verdadeira justiça está no Direito Livre. Ali residetoda a carga axiológica e ética da comunidade. Se o Direito estatal refletir o
Direito Livre, será também justo. Entretanto, há casos em que a norma estatal é
injusta e outros em que o legislador simplesmente se omitiu, deixando vazios.
Como resolver tais conflitos e lacunas?
Seguindo a dou trina clássica, a interpretaç ão jurídica é a disciplina apta
a solucionar tais problemas, destarte, o autor alemão passa a estudar os di
versos métodos interpretativos, em especial a analogia, a teleologia, a busca
Ibidem, p.79-80. Tradução livre do autor: “O viajante em país estrangeiro se familiariza com
a língua, com a história, com a arte, com os usos e costumes do povo, mas nenhum sonha, aomenos , em a brir o seu código. Esses vivem todos em conformidade com o Direito Livre, segundo
aquilo que a norma daqueles que o circundam ou o seu juízo individual faz parecer Direito [...].
De tal modo , o Direito Livre afirma a sua poten te esfera de ação e vive independenteme nte da que
le do Estado. Mas não o contrá rio. O Direito Livre é o terreno no qual nasce o Direito estatal.”
47 Quando o texto fala do Direito como ju ízo individual, para nós, está a se referir a manifestaçãoda norma da comunidade por meio de um de seus entes. É como se um ente da comunidade
(indivíduo) necessariamente expressasse o pensamento de toda a comunidade. Tal conceituação,
trazida à tona h odiernam ente, sofre sérias críticas em razão do elevado pluralismo da m ode rnida de, sendo difícil crer que haja efetivamente um Direito reconhecível no “espírito coletivo” de um
povo, cu jo c on teúdo resultaria do somatório dos “espíritos individuais”, ou, ainda, cujo conteúdo
pudesse ser enco ntrad o em cada expressão de cada “esp írito individual”.
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82 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
do espírito do legislador e as interpretações restritivas e extensivas. Ao fi
nal de sua pesquisa, conclui que, no momento da interpretação, aquilo que
conduz o intérprete a um determ inado resultado (enco ntro de sentido) não
é a razão ou a lógica dos métodos, mas a vontade e o interesse do próprio
intérprete.
A solução alcançada interpretativamente não é uma conclusão lógica de
um método racional, mas sim, uma vontade desejada pelo intérprete. Caso
contrário, como se justificaria a utilização da interpretação restritiva em de
trim ento da extensiva? Por que o intérprete escolhe uma ou outra? Quais seus
critérios? Se por definição, ambas levam a resultados díspares, por que solucio
nar o caso por meio de uma e não de outra?
A lucidez e o ceticismo com que Kantorowicz trata dos métodos interp re
tativos são exemplares para o desenvolvimento do Direito até então.
O autor chega a afirmar, ao discorrer sobre a interpretação teleológica,
que é fraudulenta a introdução da finalidade sob a máscara da teleologia pois
trata-se de uma ficção que não possui valor científico, já que esconde uma
mentira a serviço de falsos métodos ou interesses prát icos.18
O interesse do intérprete possui assim papel crucial na doutrina do Di
reito Livre. Segundo este, as interpretações destinam-se sempre a afirmar uminteresse específico, um querer do intérprete camuflado sob racionalidades
aparentemente lógicas (os métodos) que, ao final, podem alcançar resultados
que cont radizem, inclusive, à própria p roposição interpretada.
De acordo com o autor, o Direito não pode conviver com tais ins tru me n
tos falaciosos que m ascaram as vontades do sujeito. Os métodos interpretativos
devem ser rechaçados pelo julgador.
Sendo assim, surge então a pergunta: como resolver as lacunas e antino
mias da lei?Para o mestre alemão, uma vez detectada a lacuna, o indivíduo deve
proceder a uma dogmática livre, p rocurando a resposta no seio da Freies
Rechts.
Em um primeiro momento, deve o julgador pesquisar se há solução no
direito consuetudinário. Caso este não apresente resposta suficiente deve pr o
ceder a uma razoável ponderação do caso como se legislador fosse, atingindo
uma decisão com base em seu senso de justiça ( Rechtsgefiihl).49
48 La loíta per Ia scienza dei Dirittoy p. 102.
49 Ibidem, p . 138.
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Hermenêutica Jurídica 83
É nesse momento que se torna célebre a doutrina da Escola do Direito
Livre, justamen te p or pregar a liberdade do julgador em proferir uma decisão
com base em sua própria consciência.
Talvez por isso, prevendo já as críticas que sofreria, Kantorowicz lança
seu raciocínio derrade iro: é correto dizer que o Direito Livre prega o recurso
à própr ia consciência do juiz para sentenciar e, isto, consequente mente , pode
levar à arbitrariedade e insegurança. Todavia, não é igualmente correto que,
tal com o as coisas estão, já não há a mesma a firmação da vontade do julgador
de forma camuflada por meio dos métodos interpretativos? O juiz já não
julga conforme sua própria convicção manipulando interpretativamente as
leis?50
Destarte, segundo Kantorowicz, não há que se mergulhar nos métodos
hermenêut icos, mas sim, buscar, de fo rma transparente e clara, a decisão mais
justa dentro do corpo do Direito Livre.51
Em um a das últimas linhas de sua obra, o auto r proclam a a síntese de seu
movimento em tons proféticos:
Verra, cosi, an che il temp o in cui il giu rista non p iii avrá bisogno di abbordare
la legge com finz ion i, e d interp retazio ni artifiziose e costruzion i, pe r estorquene una norma , la quale potrà essere indep end entem ente trovata, dalla sua volontà, sve-
gliata a vita in divid ua le.52
A postura ética do intérprete é fundamental para o autor alemão, pois
somen te o julgador honesto e transparen te de suas próprias convicções, estará
ciente de suas responsabilidades e apto a amadurecer o debate jurídico, cont ri
buindo para o desenvolvimento secular do Direito.
Por fim, prega que o juiz deve sempre estar vigilante para que a sua decisão praeter legem não se transforme em decisão contra legem. Apesar de sua
dou trin a libertária, Kantorowicz é sensato o suficiente para reconhecer o valor
do respeito à lei, determinando que os ditames da norma devem sempre ser
50 Ibidem, p. 140.
51 Ibidem, p. 141. “£ preferibile avvicinarsi alia giusta meta per la via diritta, anzichè per viottoli tortuosi, difjicil, pericolosi, sleali.”
32 Ibidem, p. 153. “Virá, assim, o tempo em que o jurista não mais necessitará abordar a lei comfingimentos e interpretações artificiosas, e construções para extrair-lhe um a norm a, a qual p o
derá ser encontrada inde pendentem ente, de sua vontade, acordada para a vida individual” (tra
dução livre do autor).
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84 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
observados, só podendo a lei ser quebrada em casos excepcionais em que haja
necessidade e manifesta injustiça unanim emente reconhecida pelos julgadores
de um t ribuna l.53
Como bem se pode observar, a doutrina de Kantorowicz não é radical
como se divulga. Suas considerações são ponderadas e refletidas, tendo como
pri sma fu ndamental a honestidade do ato de julgar e a busca da justiça.
A transparência do operador é fundamental para o desenvolvimento do
Direito e, sem esta qualidade, ele nunca se tornará consciente da responsabili
dade que suas decisões trazem, prejudicando a busca do justo.
Interessa notar que o mesmo raciocínio desenvolvido por Kantorowicz
permeia o am biente da retórica modern a, ainda que com traços diferentes.
De acordo com o professor emérito de Direito da Universidade de Edim-
burgo, Neil MacCormick , as in terpretações sempre trazem dentro de si algum
valor ou objetivo velado. A aplicação de cada uma dessas formas de interpreta
ção gera argumentos , mais ou menos aceitos ou razoáveis, que devem favorecer
para que o in té rpre te faça uma escolha em detrimento de out ra .
Ainda que reconheça que cada argumento tenha mais ou menos força, o
fato é que a decisão sobre qual o sentido correto é sempre uma decisão subje
tiva do intérprete. Nas palavras do professor:
[ ...] Por detrás da interpre tação l ingüística repou sa u m objetivo de preservar
a clareza e a precisão da l ingu agem legislativa e um princíp io de justiça que p roí
be a recons trução jud ic ia l re troativa das palavras escolh id as pelo legis la dor. Por
t rás da interpre tação s is têmica repousa um princípio de racional idade fundado
no valor da coerência e da integr idade de todo o s is tema jur ídico. Por t rás da in
terpretação te leológico-avalia tiva repousa o respeito po r u m a de m and a de razão
práti ca [.. .]. N o fina l o que deve pre vale cer é u m a questão que en volve sabedo ria prátic a e
senso de jus tiça nas c i rcuns tâncias par ticulares de um a d isputa p ar t icular re la tiva
a um a legislação específica.54
Mesmo que haja diversas peculiaridades que não nos permi te estabelecer
um paralelo preciso entre o pensamento de Kantorowicz e MacCormick, pod e
mos afirmar que seus estudos demo nst ram que, em última instância, a escolha
Ibidem, p. 139-40.
M Retórica e o estado de direito , p. 184-5.
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Hermenêutica Jurídica 85
do sentido do texto se dá de forma subjetiva, baseada principalmente no senso
de justiça de cada um. Não é a lógica intrínseca do a rgumen to que lhe confere
validade, mas sim, o reconhecimento do indivíduo de que tal argumento está
em consonância com a sua justa consciência.55
Retornando para Escola do Direito Livre, ao lado dos ensinamentos de
Kantorowicz, está a dou trin a do jurista Erlich para quem, em aper tada síntese,
a interpretação da lei significa uma compreensão sociológica do Direito que
investiga o sentimento do justo na realidade social. A decisão judicial deve se
mirar para a consecução deste fim, independente da norma jurídica.
Conforme visto e reafirmado por Erlich, a legislação não alcança a regu
lamentação de todo o universo de condutas e fatos sociais e, acima de tudo,
pode não corre sponder às necessidades verificadas na praxisyem contraposição
às elucubrações políticas de parlamentares. Quando do seu encontro com a
lacuna, deve o intérprete realizar um juízo de valor que preencha este vazio,
conferindo segurança à sociedade.
A atividade do hermeneuta aqui é infinita. Pela primeira vez, nota-se a
existência de um juiz manifestadamente livre e criador para encontrar a me
lhor decisão ao caso concreto. O apego à pnvcisycomo a verdadeira reveladora
das necessidades de normatização, confere ao magistrado o poder de legisladorno âmbito da lide in casu.
A Escola do Direito Livre, conforme as linhas mestras de Kantorowicz e
Erlich, não passou despercebida na doutrina sem sofrer críticas.
A par das alegações de radicalismo e arbitrariedade que lhe foram con
feridas ao longo dos anos (alegações estas muitas vezes superficiais e injustas,
muito mais de cunho alarmista do que científico), percebe-se que se olharm os
densamente para tal escola, o mito do legislador perde toda a sua força para
ser substituído pelo fetiche do juiz justo. Vislumbra-se a figura de um julgadorcomo um ente imparcial que buscará aplicar a lei sempre pautando-se pelos
ditames da ética, da moral e dos anseios sociais.
A figura do legislador, muitas vezes desgastada e odiada pelo labor político, é
substituída por aquela de um carismático juiz que busca, acima de tudo, o justo.
Todavia, ao demonstrar o uso ideológico dos métodos interpretativos, o
Direito Livre se esquece de não ser o magistrado livre de convicções pessoais
S3 Advertimos para o fato de que MacCormick não prega o afastamento da in terpretação nemmesmo se filia remotamente à Escola do Direito Livre. Seus estudos estão engajados no campo
da retórica (da qual a interpretação é 11111 dc seus mome ntos de acordo com sua dou trina), sendo
certo que a simetria feita é restrita aos termos proposto s.
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86 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
e alheio aos anseios de setores sociais, a ponto de verificar o justo sem inter
ferências ideológicas próprias. Além do mais, não é o magistrado conhecedor
de toda a realidade social, a fim de poder extrair dali a decisão que seja mais
equânime aos olhos de sua comunidade (se é que tal consenso possa existir).
A finalidade extrema da Escola do Direito Livre é alcançar uma sinonímia
entre juiz e justo, ainda que de uma forma mais ou menos radical de acordo
com cada autor. Afinal de contas, não deve o Direito ser justo acima de tudo?
Não é para isso que existe?
A Escola do Direito Livre acorda os intérpretes para esta dimensão apa
gada das leis pela Escola Exegética e o Estado Liberal. Entretanto, não se pode
olvidar que a insegurança jurídica e o excessivo subjetivismo, em que a Freies
Rechts mergu lhou o Direito, expressavam uma necessidade de equilíbrio entre
o Direito Positivo e o Direito Natural.
Desprezar a atividade legislativa e não se conformar aos ditames da lei
significa desestruturar todo o alicerce do Estado de Direito e a separação de
poderes.
Nos EUA, a liberdade que o Poder Judiciário se arrogou foi tão grande
que se chegou a qualificá-lo de ditadura dos juizes. No Brasil, o movimento
chamado Direito Alternativo representa, em certa medida, um retorno à Escola do Direito Livre quando reconhece o papel criativo do magistrado e a sua
vinculaçâo à justiça mais do que ao Direito estatal. O movimento iniciado, a
par de suas críticas, reflete menos a ir responsabi lidade judicial e mais uma va
lorização do justo face ao formalismo jurídico.
A discussão que se trava, e se carrega até hoje, é justamente entre os li
mites do legal e do justo. Quando o legal representa efetivamente o justo? Se
não houver concordância entre eles, qual deve prevalecer? Quem é apto para
ju lgar se o legal é justo? Será o juiz o único intérpre te legítimo para avaliar estacorrelação? E os Poderes Executivo e Legislativo? Ficarão eles reféns do Poder
Judiciário?
Nessas indagações, é a hermenêut ica quem possibil ita a com preensão de
fundo do discurso jurídico, deixando o intérprete numa posição mais cônscia
dos sentidos possíveis que pode atribuir ao caso. Essa atribuição, todavia, já
não é um reflexo de caráter lógico da hermenêutica, mas um juízo de valor que,
como pre tendem os demonstrar, insere-se no Direito por meio de ideologias ve
ladas na pretensa in strum enta lidade e imparcialidade do ato interpretativo.36
36 Kantorowicz já percebera tal relação de camuf lagem de sentidos pelos métodos já 110 início do
séc. XX. Entretanto , sua dou trina refere-se à vontade e ao interesse do inté rprete quando, hodier-
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Hermenêutica Jurídica 87
12. A tópica jurídica emTheodorViehweg
O método axiomático-dedutivo e o positivismo jurídico enfrentaram
grande insatisfação por parte da do utr ina alemã no início da década de 1950.
Mais precisamente em 1953, no ano em que é publicada a obra Topik u nd Ju-
risprudenz, de Th eodor Viehweg, a qual se insere dent ro da linha vanguard ista,
pregando um retorno ao estilo tóp ico-retór ico dos gregos e deixando de lado o
raciocínio lógico-formal para a resolução das lides.
Segundo Viehweg, as discussões jurídicas devem ser vistas como eternos e
infindáveis debates acerca da aporia da justiça, isto é, devem tentar r esponde r a
mais basilar das questões do Direito: o que é ju sto7.A fim de respondê-la, não basta se estabelecer um sistema dedutivo de
raciocínio nos moldes dos códigos modernos, comp rovadamente insuficientes.
Na medida em que tal sistema está al icerçado sob uma premissa maior (lei),
se esta estiver equivocada ou for omissa, a conclusão estará necessariamente
comprometida. É preciso, portanto, empregar um outro raciocínio que esteja
livre dessas amarras, um pensar problematizador que busca no caso concreto
resolver o que é justo hic et nunc (aqui e agora).
Nessa linha, a j urisprudência deve ser concebida como um procedimento de discussão de problemas, no qual a inventio e os topoi (pontos de vis
ta), devem predominar frente às premissas do tipo axiomática que amarram
a decisão e não permitem alcançar aquilo que é mais razoável e justo no caso
concreto.
Era preciso quebrar o modelo crítico-racionalista do sistema jurídico que
ainda predominava na Europa no séc. XX, visto com grande apreço pelo seu
ideal de acuidade e precisão. Seu ponto de partida era sempre um prim um
verutriy uma verdade absoluta, aceita por todos e que permitia deduzir logicamente as respostas possíveis. Dessa forma, não havia manobras de liberdade
ao intérprete, o qual devia apenas investigar a veracidade da premissa maior
fundam ental e, a par tir dela, realizar as deduções silogísticas necessárias.
Para Viehweg, esse raciocínio conduz necessariamente a uma degenera-
ção do humano, pois inviabiliza a criatividade e a reflexão do jurista que deve
curvar-se às conexões lógico-formais das premissas.
namente, p or meio do desenvolvimento da ciência e principalm ente da psicanálise, podem os efe
tuar a inserção de elementos do inconsciente do sujeito, traba lhar com a ideia de mitos e fetiches,
assim como dissecar as ideologias de uma forma mais precisa do que na época do autor alemão.
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88 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
Por outro lado, o mé todo retórico se insere nos domínios da argumentação,
um a técnica de pensar livre que opera com a maior ou menor verossimilhança
da conclusão alcançada. Busca-se um argumento sensato, razoável, ponderado,
cuja aceitação, por parte dos sujeitos participantes do discurso, qualifica-o como
a melhor decisão. A imaginação e a criatividade são levadas aos seus expoentes
maiores pois não há limites e bases estabelecidas a priori ao pensamento.
No campo jurídico, há uma constante pre tensão de se alcançar um sistema
legislativo completo que permita a dedução das decisões judiciais, sem se ne
cessitar de recursos extrassistemáticos para resolver os casos concretos. Assim
se fez desde os primórd ios da Escola Exegética até o positivi smo mode rno , com
algumas poucas doutrinas discrepantes.
Viehweg é acintoso em suas críticas qu an do verifica que a ênfase posta so
bre o sistema no mode lo dedutivista conduz uma seleção lógica de problemas
que este pode resolver. Sendo a dedução u ma operação formal, todo raciocínio
e conclusão desenvolvidos devem guardar consonância com o prim um verum ,
só podendo extrair sentidos dent ro de seus limites.
O Direito, visto como um g rande sistema axiomático, nega prestação juris-
dicional a diversas pretensões legítimas de justiça, única e exclusivamente por
que dito sistema (desenvolvido na forma do ordenamento jurídico) não consegue extrair de suas premissas (leis) uma solução adequada ao caso concreto.
Por outro lado, quan do se coloca a ênfase no problem a, permite-se que o
jur ista escolha qual é o método que melhor so luciona aquele caso. Não há uma
vinculação prévia a um sistema hermético e rígido, mas sim, abertura para
aquele que lograr um a decisão justa prática.
Dessa maneira, o único modo de realizar o Direito é por meio de um
pensamento tópico, cujo ponto de partida é o problema. Mas o que configura
um problema?
Se si da il nom e de prob lema , e ciò è sufficiente ai nostri fin i>a qualsiasi ques
tione che comenta apparentem ente piü di um a risposta e si pressupone in modo ne
cessário un a com preension e pr ow iso ria y alia cu i st régua un qua lche cosa appaia in
generale siccome qu estione che va presa sul serioygiu stam en te si andrà p oi alia ricerca
di u m a risposta come soluzione.57
51 v i e h w e g , Theodor. Tópica e giurisprudenza, p.32. A tradução italiana do alemão não é totalmen
te clara, sendo que op tamos pelo seguinte texto: “Se se dá o nom e de problema , e isto é suficiente
às nossas finalidades, a qualquer questão que aparentemente permita mais de uma resposta e
pressuponha-se, necessariamente, um a compreensão provisória, na me dida de algo tomado em
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Hermenêutica Jurídica 89
Posteriormente, Canaris apresenta a ideia de que o problema é uma ques
tão cuja resposta não é clara de antemão, e Juan Antonio Garcia dou trin a que
problema é uma ques tão, mas com várias alternat ivas para seu tratamento, ca
bendo ao sujeito uma eleição entre elas que redunde na solução.58
A despeito de uma conceituação apurada, podemos perceber que o Di
reito é uma ciência repleta de problemas, na medid a em que suas formulações
não preenchem de forma clara todo o campo de sua disciplina, dando espaço à
indagação. Isso ocorre pois o âmbi to de atuação da jurisdição - que é a própria
vida dos homens -, é sempre mais dinâmico e complexo do que a legislação
presente no ordenamento.
A tópica, extremamente voltada à práxis, revela que o Direito, como um
sistema axiomático, é imperfeito e lacunoso, demons trando assim a necessidade
de um raciocínio tópico pelos juristas, concebido como uma técnica dei pensiero
che è indirizzata verso il problema.59
Viehweg considera que sua doutrina não está a desenvolver um método,
mas sim uma arte, um estilo de pensamento que não se prende a determinadas
regras fixas que atrofiam a criatividade do jurista, nem possui a natureza de um
processo lógico rigorosamente verificável. A tópica, sob influência da retórica,
busca a solução verossímil, mais aceita entre os sujeitos do discurso, e para talfim, não há como se estabelecer critérios de validação cientificamente objetivos.
Dessa forma, tendo visto que o melhor modo de se realizar o Direito é
por meio da tópica, e esta atua pelo pens ar problemático, como se solucionam
efetivamente os conflitos?
A resposta está nos topoi. Segundo a tradição aristotélica, tratam-se de
“punti di vista impiegabili in molti sensi, accetabili generalmente, che vengono
adoperati a favore ou contro ciò che è opinabile e che possono condurre al vero”60.
Configuram-se assim como a rgumentos utilizados na discussão de um problema, visando a alcançar a solução deste.
O encontro do sujeito com os topoi se dá a partir da inventioy a criação
livre de juízos, cujo limite é o próprio imaginário do sujeito e a aceitação do
argumento pela comunidade que os analisa.
sua generalidade como uma questão levada a sério, consequentemente se desenvolverá uma pes
quisa para a solução da reposta” (tradução livre do autor).
58 l e i t e , Georgc Salomão. Interpretação constitucional e tópica juríd ica, p.56.59 v i e h w e g , Theodor. Topica e giurisprudenza, p.31. A tópica seria uma “técnica de pensamento
direcionada ao problem a”.
60 Ibidem, p.20. Os topoi seriam “pon tos de vista empregados em diversos sentidos, aceitos geral
mente, que são adotados a favor ou con tra aquilo que se opina, e que possa conduzir a verdade”.
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Hermenêutica Jurídica 91
law as regras de direito são extraídas a partir do tecido factual que é colocado
perante o juiz. Não há vinculação prévia silogística, mas apenas uma verificação
de precedents (questões análogas já suscitadas e decididas) e a equity, princípio
orientador da justiça com base nos costumes locais e na sensibilidade social.
A obra Common law e tradition civiliste, dos au tores Fairgrieve e Watt, ofe
rece u ma análise sintética e densa das diferenciações de cunh o epistemológico,
lógico e filosófico entre esses dois grandes sistemas do direito moderno. Se
gundo tal obra, no direito romano-ge rmânico “le message épistémologique que
diffuse le droit codifié est que la connaissance du droit [...] sacqu ier t néanmoins à
travers celle des catégories organisées et des propositions abstraites”6'.
Por sua vez, a common law “se pense comme Jlux, étroitement dépendant
des fa its dont il syindu it sans ordre apparent ”62, “nest ni ordre ni raison abstraite
mais expérience”6*. Conclui, em síntese, que “ Le common law est pragmatique
et conséquentialiste là oü le droit codifié fa it appel au x principies abstraits et au
raissonnement déd uct if 64.
Dessa forma, percebe-se a similaridade da tese esposada por Viehweg com
o raciocínio predominante na common law. A própria qualificação de hermét ico
que é dada pelo autor alemão ao sistema dedutivo confirma-se por Fairgrieve e
Watt quando proferem que existe uma ambição no direito codificado de consagrar um código da “razão universal”65, parceiro da ideologia iluminista e do
sistema de dominação presente na Europa continental nos séculos passados.
A razão codificada se apresenta, portanto , como um a razão apa rent emen
te neut ra e justa mas que apenas reforça o etnocent rism o e um obstáculo ideo
lógico ao conhec imento “do ou tro”66.
É por isso que a acuidade e a estabilidade que o sistema dedutivo de
monstrava foram tomadas por Viehweg como um atrofiamento da inteli
gência. Nessa perspectiva, o pensar tópico concede um a maio r liberdade ao
61 Common law e tradition civilest> p.25. “A mensagem cpistemológica que divulga o direito codi
ficado é que o conhecim ento do direito [...] se adquire po r meio daque las categorias organizadas
e proposições abstratas” (tradução livre do autor).
62 Ibidem, p.24.“se pensa como um fluxo, intimamente dependente dos fatos de onde é induzido
sem ordem aparente” (tradução livre do autor).
63 Ibidem, p.25. “não é nem ordem nem razão abstrata, mas experiência” (tradução livre do autor).
6-1 Ibidem, p.27.“a common law é pragm ática e consequencialista, ao passo que o direito codificado apela para os princípios abstratos e o raciocínio dedutivista” (tradução livre do autor ).
65 Ibidem, p.34.
66 Ibidem, p.36.
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92 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
sujeito, mas ao m esm o tem po, exige dele uma formação mui to mais ampla a
fim de que ele descubra os argumentos possíveis dentro do contexto do caso
concreto.
Por isso mesmo, suas ideias foram recepcionadas na comunidade jurí
dica com grande cautela e receio, tomando cuidado para que o Direito não
se transformasse em uma anarquia-argumentativa desprovida de qualquer
controle.67
Institucionalmente, pode-se dizer que a tópica foi rejeitada pelo Direito,
mas o mesm o não pode se considerar quando se avalia o raciocínio jurídico de
senvolvido após a Segunda Guerra Mundial. É certo que as posições extrema
das de Viehweg foram relativizadas - assim como tod o o Direito no p ós- mo
dernismo -, mas o que é importante destacar, é que a inserção dos princípios
nos ordenamentos jurídicos exige cada vez mais um pensar tópico-retórico,
que conduz a um sopesamento de valores na aplicação desses princípios de
caráter aberto e flexível.
O dogmatismo tradicional não preza a resolução de controvérsias em
que haja a predominância de normas de cunho axiológico. Os valores, mes
mo diante do cientificismo moderno , ainda não conseguiram ser conceituados
nem revelar seu conteú do ontológico. Nessas indagcições, a retórica, vista como mediadora de juízos de valor,
confere ao operador de Direito mais do que lugares-comuns ou uma arte de
persuasão. Permite, sim, o difícil traba lho de valoração de argumentos e p rin
cípios elementares na atividade jurídica hodierna.
Compactuamos com a necessidade de se estabelecer algo fixo, rígido, que
expresse os sentimentos de segurança e estabilidade que exigem um Estado de
Direito. Entretanto, a busca do justo, a mais legítima teleologia da lei, não se
amolda plenamente a esses parâmetros de inflexibilidade, o que concede umespaço para atuação da dialética e da retórica.
Perelman foi sábio ao nos m ostra r tais desafios e virtudes do pensamento
tópico mo derno . Recorremos às palavras do mestre:
67 Segundo o mestre português J. J. Gomes Canotilho: “A concretização do texto constitucional a
partir dos topoi merece sérias reticências. Além de poder conduzir a um casuísmo sem limites, a in
terpretação não deve partir do problema para a norma, mas desta para os problemas. A interpretaçãoe uma atividade normativamente vinculada, constituindo a constitutio scripta um limite ineliminável
(Hesse) que não admite o sacrifício da primazia da norma em prol da prioridade do problema (F.
Mliller).” Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 1.212.
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Hermenêutica Jurídica 93
O recurso aos tópicos jur ídicos não se opõe nem um pou co à ideia de um
sistema de direito, mas, antes, à aplicação rígida e irrefletida das regras de direito.
Permite, ao contrár io, o desenvolvimento de argu m entos jur ídicos , de controvér
s ias , em que, tendo s ido evocados todos os pontos de vis ta , poderá ser tomada
um a decisão po nde rada e sa tis fa tória . C om o a segurança jur ídica é um dos valores
centrais no direito, que contribui para o respeito das regras de direito, dos prece
dentes, dos costum es e hábitos sociais, os pa rt idário s dos tópico s jurídicos jamais
pode m perder de vis ta os inconvenientes da in certeza em m até r ia de dir eit o. D o
me smo mo do, como um a com unidade reg ida por regras de d i re i to é , ao mesm o
temp o, um a com un idad e l ingüís tica, supor-se-á que os term os ut il izados nos tex
tos legais deverão ser entendidos em um sent ido com um ente aceito, a me nos que
razões especiais justifiquem que dele nos afastemos.
Se é verdade que, graças aos tópicos jurídicos, o juiz dispõe de maior l iber
dade na interpretação dos textos legais , tornados mais flexíveis , essa l iberdade,
em vez de condu zir a arbi trar iedade, au m enta os meios inte lectuais de que o juiz
dispõe na busca de um a solução razoável, aceitável e equitativa.68
13. A lógica do razoável de Luis Recaséns Siches
Os movimentos contrários ao dedutivismo jurídico iniciados nos finais
do séc. XIX e consolidados após a Segunda Guerra Mundial, estavam expe
rimentando a tópica de Viehweg como uma revolução ao pensamento tradi
cional quando, quase que concomitantemente, depararam-se com a lógica
de Siches.
O mestre da lógica do razoável insistia na insuficiência do raciocínio físi-
co-matemático para a resolução dos conflitos legais, argumentand o que sendo
o Direito e as norma s jurídicas reguladores da vida hum ana , não poder iam elesserem interpretados por métodos que não respeitassem a lógica do próprio
hum ano , cuja materialidade valorativa e histórica é fundamenta l.
A lógica matemática apenas estabelece conexões formais, nexos causais
existentes nos fenô meno s da natureza, os quais o ser hum an o conhece e ex
plica por meio da relação causa-efei to . Conforme já vimos em Paul Ricoeur,
esta explicação não é suficiente para se interpretar as ciências do espírito
(história, filosofia, psicologia etc.) que trabalham em uma dimensão axio-
lógica.
68 Lógica jurídica: nova retórica, p. 130.
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94 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
As leis da física, da geometria, e de todas aquelas ditas ciências da natureza
apenas conhecem os fenômenos e não permitem uma compreensão de sentido
daquilo que se analisa.
O Direito, por outro lado, ao reger as relações dos seres hum anos , apresen
ta em suas normas uma densidade axiológica e histórica que exige do sujeito a
realização de juízos valorativos subjetivos que realçam o aspecto hermenêutico
do Direito.
A norma jurídica não possui natureza formal e nem c i o menos pode ser
reduzida a uma estrutura objetiva. Ao contrário, seu conteúdo está intima
mente ligado ao subjetivismo daqueles que ela rege: “ Una norma jurídica es un
pedazo de vida humana objetivada /.../ para compreenderia cabalmente, debe-
remos analizarla desde el punto de vista de la índole y de la estructura de la vida
human a.”69
A única forma de efetuarmos essa compreensão é por meio de um a lógica
material, uma lógica que lide com sentidos do ser humano , que perceba o que
são meios e fins e realize um balanceamento entre eles, apreenda as significa
ções da tradição e, por fim, possa apresentar uma decisão razoável.
Somente uma lógica do tipo vital e histórica consegue compreender o con
teúdo axiológico da lei e do Direito, realizando a correta transladação do conteúdodo texto da norma até a resolução do caso concreto. Esta operação não segue a
fórmula matemática de averiguação de nexos causais conforme já se pregava, com
maior timidez, desde Savigny.
A lei, como pedaço da vida humana objetivada, deve seguir também a
lógica do humano em sua interpretação e aplicação, pois tal lógica apresenta
um raciocínio que trabalha com o ambíguo, o dialético, o paradoxal, como é
próprio da at ividade de encontro de sent idos da norma jurídica.
Cuando experimento que los métodos de la lógica tradicional son incapaces de
darme la solución correcta de un problema jurídico, o que me llevan a un resultado
inadamisible, fren te a esos métodos no opongo un acto de arbitrariedad , un capricho,
sino que opongo un “razonamiento ” de un tipo diferente, qu e es precisamen te el que
nos po ne en co ntacto coti la solución correcta. Ese razo na m iento qu e nos hace enco n
trar lo que buscamos, la solución correcta, la solución justa, es la razón aplicable al
caso. [...]
69 s i c h e s , Luis Recaséns. Nueva filosofia de la interpretación dei Derecho, p. 132. “Uma nor ma jurí
dica é um pedaço de vida hum ana objetivada [...] para com preendê-la precisamente, deveremos
analisá-la do ponto de vista da índole e da estrutura da vida hu man a” (tradução livre do autor).
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Hermenêutica Jurídica 95
Esa ra zó n ju ríd ic a m ate ri al hab ra de ser a l f in y al cabo una especie d e la razón
vita l e h istórica .70
Siches acredita que, historicamente, o imperia lismo da razão matemática
tenha se instalado no Direito, em virtude de sua promessa em c um pri r alguns
dos maiores fins da atividade judiciária: a certeza, a imparcialidade e a estabi
lidade.
Ressalta, entretanto, que além desses valores, existe a necessidade maior e
incontestável da realização da justiça, que muitas vezes exige o desenvolvimen
to e a alteração das concepções jurídicas existentes.
De acordo com o filósofo, a lógica matemática, além de não permitir uma
aferição adequada e compreensiva como a lógica do razoável, ainda traz consi
go uma estabilidade rígida e mórbida, própr ia dos cadáveres que já não mais se
aventuram pelos novos caminhos que a vida nos oferece a cada dia.71
A ideia de Direito e vida é fundamental e decisiva para a doutrina de Si
ches. Não há que se falar de um sem o outro, e mais: não há como separá-los.
O processo de individualização e aplicação da lei é visto como um reviver da
norma, dando-lhe um sentido que pode, ou não, ser similar àquele que ante
riormente lhe haviam conferido.Mas o mais importante: trata-se de encon trar no conteúdo legal uma vali
dade viva e edificante de justiça de acordo com cada caso concreto.
Mas e a interpretação? Co mo ela é realizada pela lógica do razoável?
Para o autor, desde há m uito tempo, os juizes já interpretam razoavelmen
te a lei, sem ao menos darem-se conta disso. Os métodos hermenêuticos não
possuem validade e legitimidade per si como sistemas teóricos de pensamento.
Não se deve preferir a um ou outro método a priori, nem estabelecer hie
rarquias e privilégios entre eles. O direcional do juiz deve ser sempre a decisão justa, equânime, razoável. É este o objetivo do Poder Judiciário.
Nesse sentido, qualque r método que satisfaça tais pretensões pode ser uti
lizado como justificativa da decisão alcançada.
70 Ibidem, p. 129-30. “Qu ando verifico que os m étodos da lógica tradicional são incapazes de me
dar a solução correta de um problema jurídico, ou que me levam a um resultado inadmissível,
frente a esses métodos não op onh o um ato de arbitrariedade, um capricho; antes, oponho um ra
ciocínio de um tipo diferente, que é precisamente aquele que nos põem em contato com a solução
correta. Esse raciocínio que nos faz enc ontrar o que buscam os, a solução correta, a solução justa,é a razão aplicável ao caso. Essa razão jurídica material deve ser, ao fim e ao cabo, uma espécie da
razão vital e histórica” (tradução livre do autor).
71 Ibidem, p.279-81.
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96 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
Inclusive, Siches prega uma posição favorável ao raciocínio indutivo e de
apelo à sensibilidade do julgador. O uso do razoável, diga-se de passagem, não
encontra claras delimitações e conceituação na obra do autor, mas encontra-
se na obra sempre associada à sensibilidade do justo que o intérprete possui.
Os próprios métodos herm enêuticos fun cionam apenas como justificadores a
posteriori de tais percepções axiológicas subjetivas.72
Frente a una determinada situación singular no podemos saber de antemao,
es decir, antes de haber realizado una análisis a fondo de esa situación, cual sea el
método interpretativo aconsejable. Por el contrario , para fo rm anos una ideia sobre
el proced imiento de interpretación que deb am os aplicar a un caso concreto, es me-
nester que a ntes haya mo s logrado for m a m os el juicio que con sideramos correcto, es
necesario que haya mo s antecipado m enta lm ente el fallo qu e estim am os justo. Y en-
tonces es solo a posteriori, es decir, después de h aberm os for m ad o ese juicio y cua ndo
descubrimos cuál és el procedimiento m enta l que nos condujo a dicho juicio.7'
A fatalidade inerente à doutrina de Siches está em tornar o Direito tão
polissêmico e paradoxal como a própria visão de vida que o mesmo possui. Em
um a de suas passagens, busca contornar tal problemática garan tindo que a lógica do razoável não visa a que o juiz passe por cima do ordenam ento jurídico
ou desconheça a validade formal das normas. Pretende apenas que o intérprete
conheça m elho r o conteúdo do Direito positivo.74
Essa forte tensão entre a concepção do Direito como justiça material e a
sua necessária objetivação na norma não encontra traços precisos na obra do
filósofo. Pretende o autor, mais do que encontrar a harmonia perfeita, tornar
consciente um raciocínio de valores que até então se fazia desapercebidamente.
/2 Nota-se que há unia semelhança entre Siches e Kantorowicz na medida em que ambos asse
veram que o julgador, primeiramente, estabelece a sua decisão baseado em seu subjetivismo e
na “ideia do justo” para, posteriormente, encontrar um método interpretativo que o legitime
e justifique.
73 s i c h h s , Luis Recaséns. Nueva filosofia de la interpretación dei Derecho, p. 174. “Frente a uma de
terminada situação singular não podemos saber de antemão, isto é, antes de ter realizado uma
análise de fundo dessa situação, qual o método interpretativo aconselhável. Pelo contrário, para
formarmos uma ideia sobre o procedimento de interpretação que devemos aplicar a um caso
concreto, é mister que antes tenhamos alcançado formar o juízo que consideramos correto, é
necessário que tenhamos antecipado mentalmente a decisão que consideramos justa. E então,somente a posteriori, isto é, depois de termos formado este juízo, é quando descobrimos qual é o
procedim ento mental que nos conduziu a tal juízo” (tradução livre do autor) .
74 Ibidem, p. 169.
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Hermenêutica Jurídica 97
Siches é extremamen te feliz ao ressaltar a necessidade de um a lógica volta
da para os valores, que não esteja presa à certeza e à validade positivista e ma te
mática. A lógica do razoável é uma obra per tinente e edificante, cujos alicerces
foram instalados, mas não c laramen te definidos e delimitados.
Quando o autor se pergunta: “;que quiere decir eso de la csolución satisfac-
toria\ ±en qué sentido? Satisfactoria, ide que?” Sua resposta é:“satisfactoria desde
el pu nto de vista estimativo, desde un punto de vista de valoración. Satisfactoria
de lo que el orden jurídico considera como sentim iento de ju st ic ia ”75
Podemos perceber que o razoável a que Siches se refere não possui parâ
metros definidos, não está direcionado ou objetivado por qualquer critério que
não seja o seu fim mesmo. O razoável está amarrado àquilo que cada pessoa
entende como tal, o que deixa a atividade lógica presa à formação do ser hu m a
no dentro de sua tradição e temporalidade histórica.
Siches deu um passo saudável e impor tan te (mas pouco rigoroso) ao rein-
terpretar a lógica jurídica, permit indo ao juiz, de forma consciente, libertar-se
das amar ras do raciocínio matemát ico do séc. XIX, e direcionar a sua atividade
ao justo e ao razoável.
75 Ibidcm, p. 175. “O que quer dizer isso da ‘solução satisfatória? Em que sentido? Satisfatória de
quê?’ Satisfatória de um ponto de vista estimativo, de um ponto de vista de valoração. Satisfatória
daquilo que a ordem jurídica considera com o sen timento de justiça” (tradução livre do autor).
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CAPÍTULO 4
Estudos Interpretativos Jurisprudenciais
Após a pesquisa analítica acerca dos métodos interpretativos da lei, nada
mais vital do que realizar uma leitura de cun ho pragmático de tais métodos em
consonância com a jurisprudência dos Tribunais. Vale dizer, se é verdade que,
teoricamente, a hermenêutica se apresenta como um intrincado complexo de
meios de aferição de sentidos da lei, será que esta dimensão tamb ém é encon
trada nas interpretações realizadas pelo Poder Judiciário? Ou será que o labor
empírico oferece aspectos outros que não os abordados pela doutrina?
É importante ressaltarmos esses questionamentos pois o Direito, numa
acepção lata de sistema de normas que rege uma sociedade, não pode apresentar uma lógica e uma dogmática que se descole da realidade e vigore apenas no
imaginário dos juristas e acadêmicos. Como bem reza a doutrina norte-ame-
ricana, devemos orientar o Direito mais em u m sentido de law in action do que
law in books.
Nesse compasso, a le itura da juri sprudência é fundamental para se ave
riguar como os magistrados têm interpretado a lei e se ela se amolda nos pa
râmetros metodológicos propostos. Poderíamos, evidentemente, pesquisar a
hermenêu tica sob a ótica da atividade dos advogados, promotores, pareceristase outros que atuam juridicamente. Todavia, é nas sentenças e acórdãos que
encon tramos, de forma cristalina, as diversas interpretações que medeiam de
terminado tema e, principalmente, encontramos a justificação do porquê da
preferência por um sent ido da lei e não por ou tro.
O juiz, como ente imparcial, está livre para optar entre as diversas ver
tentes hermenêuticas, devendo, inclusive, fundamentar em termos jurídicos a
razão de sua decisão. Esse momento de esclarecimento é de extrema valia para
os estudos hermenêuticos, pois nele poderemos comprovar os juízos interpretativos realizados, tornando mais fácil o acesso aos elementos subjetivos que
nortearam o decisum.
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Escudos Interpretativos Jurisprudenciais 99
Foi com grande prazer que, além de encon tra rmo s um cam po fértil e vasto
de interpretações nas fundamentações de votos e acórdãos, também encontra
mos um a rica fonte de pesquisa nos debates travados entre os magistrados d u
rante as votações. Os diálogos entre mem bros dos Tribunais revelam, de forma
contundente, razões que, muitas vezes, não estão presentes em seus votos, mas
indicam os verdadeiros motivos que levaram a determinada decisão. Isso é sa
lutar para que se possa desmascarar a ativideide hermenêutica preconceituosa e
arbi trária que se esconde por detrás das cortinas dos métodos interpretativos.
Além da questão referente ao subjetivismo do intérprete, também preci
samos indagar se a própria atividade de decisão judicial, esta árdua tarefa de
sopesamento entre a abstração legal e a realidade fática não exige uma lógica
própria que não é encontrada nos livros.
A aplicação do Direito é um terreno fértil e complexo, muitas vezes asso
ciado metaforicamente a um lamaçal, o que, apesar da conotação negativista
e pouco honrosa, reflete corretamente como é difícil se mover e se adensar no
mesmo até encontrar uma base sólida. Isso se faz mais presente na jurispru
dência dos Tribunais Superiores. O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tri
bunal de Justiça têm a com pe tênc ia consti tucional de avaliar, respectivamente,
a constitucional idade e a legalidade das leis, tanto sob uma ótica pragmática docaso concreto quanto abstrata da lei em tese.
Essa competência amplia veementemente o horizonte hermenêutico, de
modo mais agudo, em relação à Corte Constitucional brasileira que lida com
direitos e garantias fundamentais do cidadão como a liberdade, a dignidade
da pessoa huma na e a igualdade, ou seja, direitos de conteúdo inconceituáveis
teoricamente e cuja concretização é sempre conflituosa.
Já se propôs que a atividade hermenêutica no Supremo Tribunal Federal,
em razão mesma dos direitos e princípios fundamentai s que investiga, é de umtipo especial, ou seja, que ali há uma metodologia diversa e que não se aplica
aos demais Tribunais. Não esposamos esta ideia. É certo que a matéria passiva
de interpretação na Corte Constitucional possui características próprias e, por
isso, exige um estudo particular. Todavia, como veremos a seguir, os métodos
interpretativos são instrumentos colocados à mão de qualquer intérprete, isto
é, valem para qualquer campo ou ramo do Direito, não podendo ser conside
rados específicos em razão do objeto em análise.
O fato de o Supremo Tribunal Federal interpretar a Constituição Nacional, cujo conteúdo muitas vezes assume características abertas e programáticas,
não torna o seu labor hermenêutico diferente das demais Cortes, ao contrário,
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100 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
reforça ainda mais as dimensões subjetivas e retóricas encontradas nos méto
dos interpretativos. Vale dizer que na jurisprudência do Supremo nâo há uma
hermenêutica diversa, mas uma hermenêutica mais aguda e evidente. Isso se
aplica também aos estudos feitos em relação ao intérprete. Qua lquer magis tra
do, independente da Corte em que atua, está sujeito às descobertas fenomeno-
lógicas em relação ao horizonte histórico, comunidade de preconceitos, entre
outros temas abordados. Não importa a autoridade judiciária que interpreta,
mas a mera colocação do sujeito como intérprete.
Sendo assim, para verificarmos como se inserem os métodos interpre tati
vos e as escolas hermenêuticas na concretização da lei, selecionamos algumas
juri sprudências dos Tr ibunais que acredi tamos demonstrar de forma rica e
condensada as relações encontradas em nossos estudos anteriores, revelando
tanto a importância dos métodos no auxílio ao encontro do sentido, quanto
a necessidade da leitura do sujeito intérprete dent ro dessa atuação, desnu dan
do-o de suas vinculações pessoais e preconceituosas.
I .A união homoafetiva - REsp n. 820.475/RJ1
O debate acerca do reconhecimento dos relacionamentos homoafetivos pelo Estado tem-se arrastado durante alguns anos nos tribunais brasileiros.
Nosso intui to neste capí tu lo é fornecer apenas o contex to jur ídico em que
se insere tal questão e realizar uma análise de como os tribunais a têm interp re
tado. Não visamos - de forma alguma - , realizar um juízo de valor a respeito
da questão de fundo, isto é, acerca da legalidade ou não da união homoafetiva.
Analisaremos e debateremos apenas os métodos interpretativos utilizados para
a decisão do caso.
Nossos estudos se orientarão pelos votos e acórdão profer idos no REsp n.820.475/RJ, de relatoria do limo. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, julgado em
02.09.2008. Nâo se trata do pr imeiro acórdão a tocar no tema, nem o mais ino
vador, mas nele pode se encont rar de forma condensada as diversas variantes
interpretativas que se firmaram na jurisp rudênc ia ao longo dos anos.
Historicamente, a união estável foi reconhecida pela Constituição Federal
de 1988 no seguinte dispositivo: art. 226, § 3o “Para efeito da proteção do Es
tado, é reconhecida a união estável entre o hom em e a mulher como entidade
familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
1STJ, Recurso Especial n. 820.475/RJ, rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, j. 02.09.2008.
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Estudos Interpretativos Jurisprudenciais 101
Em seguida, a Lei n. 9.278/96 regulamentou a relação prevista no supra
citado artigo: art. Io “É reconhecida como entidade familiar a convivência du
radoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com
objetivo de constituição de família”
Por fim, o Código Civil recepcionou a no rma constitucional nos seguintes
termos: art. 1.723. “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre
o hom em e a mulher, configurada na convivência pública, cont ínua e dur ad ou
ra e estabelecida com o objetivo de constituição de família”
Com base nessa legislação, durante muitos anos, diversos juizes e desem
bargadores não conheciam dos pedidos de reconhecimento de un ião estável
homoafetiva por entenderem que tal pedido era juridicamente impossível,
dado o teor da legislação que expressamente determina a união estável entre “o
homem e a mulher”.
Essa decisão de cunho processual era acampada por uma interpretação
literal da norma que afastava de seu âmbito de aplicação os casais que não
se configuravam como “homem e mulher”, aferição esta que se dava apenas a
partir da análise do gênero (masculino/ feminino ). Uma vez que a lei utilizava
a expressão “homem e mulher”, estariam afastadas as demais possibilidades
como “ho mem e home m” e “mulher e m ulhe r”2. No caso dos autos em análise, tanto o juízo de primeiro grau quanto o Tri
bunal de Justiça do Rio de Janeiro entenderam dessa forma e não conheceram
do pedido. Vale dizer, não enfrentaram o direito material, pois consideraram
que processualmente estavam impossibilitados.
Em sede de recurso especial, tal alegação foi afastada, en ten dendo os mi
nistros, por maioria, que a legislação em questão não devia ser vista de m odo
a impedir que o juiz conhecesse da causa em função da ausência de amparo
legal. Ao contrário, ele deveria reconhecer a existência de uma lacuna na leie preenchê-la.
A falta de disciplina normativa das relações homoafetivas deixou de ser to
mada como um óbice ao conhecimento da prestação jurisdicional para ser vista
como um a lacuna da lei que deveria ser sanada.3
2Excluímos de nossa apreciação o juízo valorativo dos gêneros sexuais e a pluralidade de formas
que ele toma na sociedade mo dern a (transexuais, pansexuais, travestis etc.), pois o caso em ques
tão não contempla tal debate e, porque, po r ora, a ordem jurídica nacional exige que o cidadão sedeclare como “h ome m” ou “mulhe r” o que só perm ite as possibilidades tratadas.
3Voto do Min. relator, p. 9: “Nota-se que há um ma u hábito, de alguns juizes, de indeferir reque
rimen tos feitos pelas partes dizendo que o fazem ‘por falta de amparo legal'. Ao se interpre tar tal
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102 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
Então surg iu a questão: como preencher esse vazio legislativo?
Ora, po r meio da hermenêutica! E diversas interpretações vieram à tona.
O limo. Min. relator entendeu, primeiramente, que os dispositivos em
análise apresentavam um a permissão legal expressa à união estável entre o h o
mem e a mulher, o que não queria dizer que eles proibiam a união entre casais
do mesmo sexo.
Tratou-se da utilização do argumento a contrario sensu, ou seja, a reali
zação da interpretação inversa. Dito argumento se fundamenta na máxima de
que “aquilo que a lei não proíbe, é permi tido”4. Sendo assim, toda vez que um a
norma diz alguma coisa, aquilo que ela não diz pode ser considerado como
uma pretensão legítima, ainda que haja um a incompatibilidade lógica.
Sob este aspecto, o argumento a contrario sensu é temerário, e seu uso
é visto com ressalvas pela doutrina. Sua aplicação indistinta exigiria que o
legislador normatizasse sempre aquilo que é permitido e aquilo que não é
permitido, mesmo que um fosse conseqüência natural do outro . O legisla
dor seria obrigado a construir uma legislação-espelho, descrevendo o com
portamento exig ido e tornando exp licitamente proibido o comportamento
contrário.
Sendo assim, as dúvidas que o argumento a contrario sensu esconde são:o legislador, ao não prever expressamente determinada situação, o fez porque
efetivamente não previu tal hipótese (lacuna)? Porque sabe, conscientemen
te, que ao não legislar, está permitindo o comportamento? Ou porque sabe,
conscientemente, que há uma incompatibilidade lógica com uma situação já
prevista no ordenamento e, port anto, a legislação é dispensável?
Como bem se pode ver, a resposta à pergunta deve inevitavelmente in
vestigar o espírito do legislador, fazendo remissão à interpretação da Escola
Exegética (pesquisa da tnens legislatoris). No caso da união homoafetiva , deveríamos nos perguntar se o consti
tuinte, ao prever a união entre heterossexuais, simplesmente deixou uma la
cuna no ordenam ento em relação aos homossexuais ou op tou p or não prevê-
expressão como querendo significar que o indeferimento se deu por não haver previsão legal
daquilo que se requereu, a decisão obviamente estará a contrariar o disposto 110 art. 126 do CPC,
pois, em tal caso, o ju iz deixará de decidir por haver lacuna na lei. A lacuna da lei não pode jam ais
ser usada como escusa para que o juiz deixe de decidir, cabendo- lhe supri-la pelos meios de integração da lei (Alexandre Freitas Câmar a, Lições de Direito processual civil, 10. cd., v. 1, p.30).
1Art. 5o, II, CF/88: “Ninguém será obrigado a fazer 011 deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei."
7/25/2019 Escolas Hermenêuticas e a Interpretação Da Lei
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Estudos Interpretativos Jurisprudenciais
la por acreditar que ali havia uma proibição lógica. Tal resposta só pode ser
encontrada na mens legislatoris com todas as dificuldades inerentes ao proce
dimento.
Todavia, regressando ao voto do recurso em tela, não foi só esse o argu
mento despendido pelo Min. relator. Aliás, o mesmo costuma ser utilizado
mais para fundamentar o reconhecimento de uma lacuna na lei e afastar a
questão processual do que para legitimar a união homoafetiva.5
De fato, a interpretação que fundamenta a decisão é aquela que se baseia
no uso da analogia com binada com u ma metodologia teleológico-sistemática.
O voto do limo. Min. Luis Felipe Salomão, que acompanha o relator, con
sidera que em virtude do art. 4o da Lei de Introdução ao Código Civil6, “ad
mite-se a integração mediante o uso da analogia, a fim de alcançar casos não
expressamente contemplados, mas cuja essência coincida com outros tratados
pelo legislador”7.
Dessa forma, aos olhos do intérprete, a união estável entre homossexuais
e heterossexuais é igual em sua essência, o que perm ite a aplicação do instituto
a ambos, desde que preenchidos os requisitos legais.
Os votos não são minuciosos a ponto de descrever exatamente o que é
similar e o que é distinto na união estável em razão do sexo de seus membros, bem como não apresen tam qual a “essência” de tal ins ti tuto que permite o seu
reconhecimento para todos os gêneros de casais.
Todavia, o que se pode inferir, a par tir de alguns trechos, é que os julga
dores consideraram, em prim eiro lugar, o prisma da dignidade hum ana cons
titucional que deve nortea r todo o ordenam ento jurídico e, em segundo lugar,
a est rutura e requisitos impessoais presentes no inst ituto da união estável que
permitem a sua conformação ao casal independente de sua opção sexual, o
que revelaria sua essência (p. ex., o dever de respeito mútuo e a convivência pública e d uradoura).
Em outro aspecto interpretativo, partindo-se de uma metodologia siste
mática do ord enamento jurídico, consideraram os magistrados que o art. 5o da
Lei de Introdução ao Código Civil8exige do juiz o atendimento aos fins sociais
5 Fls.7-9.
6 “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os
pr incípios gerais do Direito.”7 F1.34.
s “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem
comum.”
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104 As Escolas Hermenêuticas e os Métodos de Interpretação da Lei
a que se presta a lei no momento de sua aplicação, sendo de interesse social o
reconhecimento jurídico da situação de fato exposta nos autos.
Assim sendo, o limo. Min. relator, acompanhado dos Ministros Luis Fe
lipe Salomão e Massami Uyeda, conheceu do recurso e deu-lhe provimento
determ inando o prosseguimento do feito nas instâncias ordinárias. Vale dizer,
não houve o reconhecimento direto da união homoafetiva dos requerentes,
apenas afastou-se a alegação de impossibilidade jurídica do pedido do juízo de
primeiro grau , para que este analise novamente o caso e sentencie no âmbito
do direito material.
Por outro lado, vejamos os votos divergentes vencidos.
De acordo com os Ministros Aldir Passarinho Júnior e Fernando Gonçal
ves, a hipótese homoafetiva em questão não foi contemplada na no rma (método
literal) e, preservando-se a separação dos Poderes, o Judiciário nada pode fazer.
Em um segundo momento, opinam que a norma constitucional exige se
xos opostos para a configuração da união estável, não podendo a legislação
infraconstitucional ser interpretada de modo a afrontar a Magna Carta.9Res
saltam que para se declarar a união estável entre homossexuais é necessária
uma alteração da Constituição, e não uma interpretação da legislação infra
constitucional que altere seu sentido.Desse modo, combina-se o método literal com o sistêmico de modo a
realçar a superioridade hierárquica da norma constitucional e invalidar a in
terpretação da norma infraconstitucional que a contraria.
Tais argumentos, entretanto, somente foram acolhidos pela minoria, de