ESCOLAS RURAIS MULTISSERIADAS: DESAFIOS QUANTO À
AFIRMAÇÃO DA ESCOLA PÚBLICA DO CAMPO DE QUALIDADE
Salomão Mufarrej Hage – ICED/ UFPA
Resumo
O artigo reflete sobre as escolas do campo, destacando os desafios para assegurar o direito
à educação pública de qualidade aos sujeitos do campo. Ele foi construído a partir do
acúmulo adquirido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação do Campo na
Amazônia tem, desde em 2002, com a realização de pesquisas financiadas que investigam
as escolas multisseriadas, que se constituem na forma predominante de atendimento à
escolarização dos sujeitos do campo nos anos iniciais do Ensino Fundamental, e de forma
menos expressiva na educação infantil, reunindo estudantes de diferentes etapas e séries
em uma mesma sala de aula sob a regência de um único professor. Entre os resultados
apresentados nesse artigo, evidenciamos que as escolas multisseriadas são marcadas por
um grande paradoxo, que se manifesta, em um aspecto através da infraestrutura precária
de funcionamento dessas escolas, revelando o descompromisso com que tem sido tratada
a escolarização obrigatória ofertada às populações do campo; e em outro, por meio das
situações criativas que se efetivam no cotidiano das ações dos professores, desafiando as
condições adversas que configuram a realidade dessas escolas.
Palavras-chave: Educação do Campo, Escolas Multisseriadas, Políticas Educacionais.
O Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação do campo na Amazônia –
GEPERUAZ há doze anos investiga sobre a educação do campo, dando destaque para os
desafios que as escolas públicas do campo enfrentam para assegurar o direito à
escolarização nas pequenas comunidades onde os sujeitos do campo vivem, trabalham e
produzem a sua existência.
Esses estudos têm contribuído para que possamos observar, acompanhar e
dialogar com as professoras e professores que atuam nessas escolas, identificando as
condições precárias em que uma grande parte delas funciona, como também o esforço
empreendido pelos professores e estudantes nessas escolas para superar as condições
adversas que configuram a realidade educacional nelas existente.
Nossos estudos têm se realizado predominantemente na Amazônia paraense e se
ampliado com as experiências acumuladas com a nossa participação em redes que
congregam e mobilizam representantes dos movimentos sociais populares do campo,
pesquisadores das universidades públicas e setores do poder público responsável pela
gestão educacional, em nível estadual, regional e nacional, para pautar a Educação do
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Campo na agenda atual da sociedade brasileira, no âmbito das políticas públicas, como
direito inalienável e já assegurado na legislação educacional vigente.
O GEPERUAZ participa ativamente das atividades do Movimento Paraense por
uma Educação do Campo, que através do Fórum Paraense de Educação do Campo,
assume o compromisso de mobilizar instituições, organizações e movimentos sociais,
universidades e poder público para promover a implementação de políticas e práticas
educacionais que afirmem as identidades culturais e garantam o direito à educação das
populações do campo.
O GEPERUAZ participa da Rede UNIVERSITAS que congrega pesquisadores
do GT Política de Educação Superior da ANPEd e objetiva selecionar, organizar e avaliar
a produção científica sobre educação superior no Brasil, através da realização da Pesquisa
Políticas de Expansão da Educação Superior no Brasil, Integrando o no subprojeto 7,
que investiga “A expansão da Educação Superior no Campo”, com o apoio do
INEP/CAPES;
O GEPERUAZ integra o Observatório da Educação Superior no Campo, que
envolve os programas de pós-graduação em educação da UnB, UFS, UNIFESPA e
UFPA, na realização de estudos e pesquisas sobre os programas e as políticas públicas de
formação em Educação Superior direcionados aos grupos e populações rurais, com o
apoio do INEP/CAPES;
O GEPERUAZ integra a rede de pesquisa nacional que investiga A presença de
Paulo Freire nos sistemas públicos de ensino, coordenada pela Cátedra Paulo Freire da
PUC de São Paulo, envolvendo pesquisadores das diversas regiões brasileiras e das
seguintes universidades: UFSC, UFRN, UFPE, UFPB, UFPA, USP, URGS, UEPA e
UFSCAR, que objetiva analisar a influência de Paulo Freire nos sistemas públicos de
ensino do Brasil, com o apoio do CNPq.
A partir de 2014, o GEPERUAZ assume a coordenação, no Estado do Pará, do
Programa Escola Terra, das Águas e da Floresta da Amazônia Paraense, que realiza a
formação permanente e acompanhada dos professores que atuam nos anos iniciais do
Ensino Fundamental nas escolas das pequenas comunidades rurais e quilombolas,
subsidiando-os para a organização do trabalho pedagógico numa perspectiva
interdisciplinar.
O acúmulo adquirido com essas experiências, que combinam a pesquisa, a
intervenção, o ensino e o compromisso assumido com a militância política, tem
oportunizado a constatação de muitas questões relevantes que envolvem as problemáticas
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
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que permeiam as escolas públicas do campo, e na impossibilidade de abordar todas as
questões nesse artigo, gostaríamos de destacar duas que nos parecem ser cruciais para
uma melhor compreensão dos desafios que essas escolas enfrentam para assegurar o
direito à educação pública de qualidade aos sujeitos do campo.
A primeira trata do reconhecimento de que grande parte das escolas públicas que
oferecem Educação Básica aos sujeitos do campo é multisseriada, envolvendo uma
complexidade de aspectos que implicam em sua existência e atuação, constituindo-se na
forma predominante de atendimento à escolarização dos sujeitos do campo nos anos
iniciais do Ensino Fundamental, e de forma menos expressiva, na educação infantil,
realizando o atendimento dos estudantes “encostados” que acompanham seus irmãos mais
velhos, e nos anos finais do ensino fundamental, reunindo estudantes do sexto ao nono
ano numa mesma sala de aula, alternando a participação dos professores que ministram
os diversos componentes curriculares.
A segunda pretende ressaltar que as escolas rurais multisseriadas são marcadas
por um grande paradoxo, que se manifesta, em um aspecto através da infraestrutura
precária e do abandono em que uma grande parte dessas escolas se encontra, revelando o
descompromisso com que tem sido tratada a escolarização obrigatória ofertada às
populações do campo; e em outro, por meio das situações criativas e inovadoras que se
efetivam no cotidiano das ações educativas pelas professoras e professores, desafiando as
condições adversas que configuram a realidade existencial dessas escolas.
Os dados do próprio MEC, extraídos do Censo Escolar de 2011 indicam que nesse
ano existiam 13.758 (18,05%) escolas do campo com até 15 estudantes e 146.658 (2,3%)
estudantes matriculados; 43.986 (57,70%) escolas do campo com até 50 estudantes e elas
possuíam 1.050.608 (16,7%%) de estudantes matriculados; 58.473 (76,71%%) escolas do
campo com até 100 estudantes e elas possuíam 2.081.541 (33,1%) de estudantes
matriculados; e 17.756 (23,29%) escolas do campo com mais de 100 estudantes e elas
possuíam 4.212.344 (66,9%) de estudantes matriculados. Desse contingente, 54.405 são
escolas com turmas multisseriadas no Brasil, as quais representavam 71,37% das escolas
do meio rural. Nelas atuavam 70 mil docentes e estudavam 1.436.667 (22,8%) estudantes
nos anos iniciais do Ensino Fundamental.
Em termos regionais, das 95.402 turmas multisseriadas existentes no Brasil, o
Nordeste brasileiro, nesse mesmo ano, possuía mais da metade das turmas multisseriadas
existentes no país, 55.212 turmas (57,87%), sendo a Bahia o Estado que possuía o maior
número de turmas do país, 16.324 turmas (17,11%), seguido do Maranhão, que possuía
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12.825 turmas (13,44%). A Região Norte, em segundo lugar, possuía 21.833 turmas
multisseriadas (22,88%), sendo o Pará, o estado que possuía o maior número de turmas
da região, 11.709 turmas (12,27%), seguido do Amazonas, que possuía 5.914 turmas
(6,19%). A Região Sudeste, na sequência, possuía 10.983 turmas (11,51%), sendo o
Estado de Minas Gerais o que possuía o maior número de turmas da região, 7.194 Turmas
(7,54%), seguido do Espírito Santo que possuía 1.568 turmas (1,64%). A Região Sul
possuía 4.585 turmas (4,8%), sendo que o Rio Grande do Sul, o Estado que possuía o
maior número de turmas da Região, 3.206 turmas (3,36%), seguido do Paraná que possuía
699 turmas (0,73%). A Região Centro Oeste possuía o menor número de turmas
multisseriadas do país, 2.789 turmas (2,93%), sendo o Estado de Mato Grosso, o que
possui o maior número de turmas da região 1.592 (1,66%), seguido de Goiás que possui
637 turmas (0,66%).
As escolas multisseriadas são marcadas pela heterogeneidade, ao reunir em uma
única sala de aula estudantes de diferentes idades, por vezes até gerações, diferentes
séries, ritmos de aprendizagem, alfabetizados e não alfabetizados, sob a responsabilidade
de um único professor ou professora, por isso são denominadas de unidocentes. Elas
localizam-se nas pequenas comunidades rurais, especialmente naquelas que se encontram
muito distantes das sedes dos municípios, onde a população a ser atendida na escola não
atinge o contingente definido pelas secretarias de educação para formar uma turma por
série, sendo por isso, em alguns casos denominadas de escolas isoladas. E por atenderem
estudantes de diferentes etapas de escolarização, educação infantil e anos iniciais do
ensino fundamental, são por isso também denominadas de multi-etapas.
A grande maioria das escolas rurais multisseriadas não são reconhecidas pelos
sistemas públicos de ensino, por não preencherem os requisitos necessários para
autorização de seu funcionamento, e em vista dessa situação, essas escolas funcionam
como anexas à escolas de maior porte, localizadas em distritos rurais de maior densidade
populacional ou nas sedes dos municípios, em um sistema popularmente denominado de
polarização, onde um pequeno grupo de escolas funciona vinculado a uma escola polo,
que assegura às mesmas a possibilidade de funcionamento, concentra a documentação
escolar e também os recursos advindos do financiamento escolar, e em alguns casos,
possui uma coordenação pedagógica para apoiar o trabalho docente que se efetiva nas
escolas polarizadas.
Essas múltiplas situações apresentadas dificultam o fornecimento de dados mais
precisos quando acessamos as informações do Censo Escolar do INEP, pois a depender
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
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das respostas fornecidas pelos gestores das escolas no momento de preenchimento do
formulário, teremos um cenário mais ou menos representativo da realidade das escolas
multisseriadas, ou seja, das reais condições em que essas escolas funcionam, e dos
desafios que enfrentam os educadores para desenvolver o seu trabalho docente e os
estudantes para estudar nessas escolas.
Essa situação em si é muito problemática, e se torna ainda mais preocupante
quando compreendemos que as escolas multisseriadas se constituem na única alternativa
para os sujeitos do campo estudarem nas comunidades em que vivem, ficando por isso
expostos a um conjunto de situações que não favorecem o sucesso e a continuidade de
seus estudos, evidenciando inclusive, o descumprimento da legislação vigente que já
aponta marcos operacionais da qualidade da educação básica nas escolas do campo.
(CNE/ CEB. 2002; 2008)
Em termos de infraestrutura e de condições de funcionamento, muitas escolas
multisseriadas não possuem prédio próprio e funcionam na casa de um morador local, do
professor ou em salões de festas, barracões, igrejas, etc. Em muitos casos, os prédios não
são apropriados para o funcionamento de uma escola, pois são muito pequenos, ou
carecem de ventilação, iluminação, cobertura e piso adequados; encontrando-se em
péssimo estado de conservação, com goteiras, remendos e improvisações de toda ordem,
causando risco aos estudantes e professores que neles estudam ou trabalham.
Muitas escolas multisseriadas não possuem água encanada, não possuem
laboratório de informática, internet, biblioteca, refeitório, quadra de esporte, etc. O
Próprio Ministério da Educação, com base nos dados do Censo Escolar do INEP
reconhece, que do total de escolas existentes no campo, 53.250 (67,5%), não possui
ProInfo, 68.651 (90,1%) não possui Internet, 71.759 (94,1%) não possui Internet Banda
Larga, 11.413 (15,0%) não possui Energia Elétrica, 7.950 (10,4%) não possui Água
Potável e 11.214 (14,7%) não possui Esgoto Sanitário (INEP, 2011). De certeza, a maioria
dessas escolas são multisseriadas e encontram-se localizadas nas pequenas comunidades
rurais mais afastadas das sedes dos municípios, onde a infraestrutura é sempre mais
precária. A maior parte delas possui somente uma sala de aula, onde se realiza as
atividades pedagógicas e todas as demais atividades envolvendo os sujeitos da escola e
da comunidade, carecendo de outros espaços importantes como: refeitórios, banheiros,
sala para os professores, local para armazenar a merenda ou outros materiais necessários.
O número de carteiras que essas escolas possuem nem sempre é suficiente para
atender a todos os estudantes matriculados; o quadro de giz ou os vários quadros
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existentes na sala de aula encontram-se deteriorados, dificultando a visibilidade dos
alunos, os livros didáticos que chegam nessas escolas ainda não são aqueles específicos
para os anos iniciais do ensino fundamental, produzidos no âmbito do Programa Nacional
do Livro Didático – PNLD Campo e a carência de materiais pedagógicos é muito
frequente, enfim, são muitos os fatores que evidenciam as condições existenciais
precárias dessas escolas, que não estimulam os professores e os estudantes a nelas
permanecerem ou sentir orgulho de estudar em sua própria comunidade, fortalecendo
ainda mais o estigma da escolarização empobrecida e abandonada que tem sido ofertada
no meio rural, e forçando as populações do campo a deslocar-se para estudar na cidade,
como solução para essa problemática.
É interessante notar que essa mesma precarização evidenciada nas escolas
multisseriadas, resultante do pouco investimento na qualidade de ensino no meio rural
por parte dos gestores públicos; associada à existência de um número extenso de escolas,
à ideia de dispersão de localização das mesmas e ao atendimento reduzido do número de
estudantes por escola, terminam sendo utilizados como argumentos decisivos para esses
mesmo gestores tomarem a atitude de fechar indiscriminadamente essas escolas ou
turmas e investirem na política de nucleação dessas escolas vinculada ao transporte
escolar, como estratégia mais frequente para a superação dessas mazelas.
Os dados a seguir apresentados, nos ajudam a evidenciar o resultado da atitude
dos gestores públicos quanto ao fechamento das escolas ou turmas multisseriadas no
Brasil e nas regiões brasileiras. Em 1997 existiam 150.594 turmas rurais multisseriadas
em todo o Brasil, em quanto em 2011, esse quantitativo se reduz para apenas 95.402
turmas, evidenciando o fechamento de 55.192 turmas em um período de 14 anos. Em
termos regionais, essa situação apresenta variações, por exemplo: na Região Nordeste,
em 1997 havia 63.948 turmas rurais multisseriadas, enquanto que em 2011, o quantitativo
de turmas reduziu para 55.212, tendo sido fechadas 8.736 turmas nesse mesmo período.
Na Região Norte, em 1997, havia 22.946 turmas multisseriadas, e em 2011, esse número
reduziu para 21.833 turmas, tendo sido fechadas 1.113 turmas no período. Na Região
Sudeste, em 1997 havia 37.858 turmas rurais multisseriadas, enquanto em 2011, esse
quantitativo reduziu para 10.983 turmas, tendo sido fechadas 26.875 turmas nesse
período. Na Região Sul, em 1997 havia 19.003 turmas rurais multisseriadas, enquanto
esse quantitativo reduziu-se em 2011 para 4.585 turmas, tendo sido fechadas 14.418
turmas nesse período; e na Região Centro Oeste, em 1997 havia 6.839 turmas rurais
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multisseriadas, enquanto em 2011 esse quantitativo reduziu para 2.789 turmas, tendo sido
fechadas 4.050 turmas nesse período. (INEP, 1997; 2001).
Essa situação específica levou o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
a lançar em nível nacional a campanha “Fechar Escola é Crime” com o objetivo de
discutir e denunciar a situação do fechamento das escolas principalmente no campo e
mobilizar comunidades, movimentos sociais, sindicatos, enfim toda a sociedade para se
indignar quando uma escola for fechada e lutar para mudar esta realidade.
A campanha denuncia o dado alarmante de que em 2002, segundo o Censo Escolar
do INEP, existiam 107.432 escolas no território rural, e em 2011, o número desses
estabelecimentos de ensino reduziu-se para 76.229, significando o fechamento de 31.203
escolas no meio rural, em uma realidade onde a maioria das escolas que existem estão em
condições precárias. Ao mesmo tempo, a campanha conclama a sociedade brasileira para
assumir a educação pública enquanto um direito de todos os trabalhadores, indicando que
a nossa ação deve ser local, visto que a maioria das escolas fechadas pertence à rede
municipal, mas sem perder de vista que devemos responsabilizar e fazer o Ministério da
Educação dar respostas sobre o fechamento de escolas, exigindo o não fechamento de
escolas e dando condições para a construção de novos estabelecimentos. (MST, 2012).
A pressão do Movimento Nacional de Educação do Campo levou a presidente
Dilma Rousseff no dia 27 de Março de 2014, a sancionar a Lei nº 12.960 que altera a
LDB no 9.3940/1996, para fazer constar a exigência de manifestação de órgão normativo
do sistema de ensino e da própria comunidade local, para o fechamento de escolas do
campo, indígenas e quilombolas, passando o Art. 28 da referida Lei a vigorar acrescido
do seguinte parágrafo único: “O fechamento de escolas do campo, indígenas e
quilombolas será precedido de manifestação do órgão normativo do respectivo sistema
de ensino, que considerará a justificativa apresentada pela Secretaria de Educação, a
análise do diagnóstico do impacto da ação e a manifestação da comunidade escolar.”
(Brasil, 2014).
Sabemos que a legislação por si só não é capaz de impedir o avanço desastroso da
política de nucleação vinculada ao transporte escolar que tem sido efetivada no âmbito
dos sistemas estaduais e municipais de educação, em consonância com as orientações da
gestão pública, que se assentam na relação custo/benefício como princípio definidor da
aplicação dos recursos públicos em todas as esferas administrativas e em todos os setores
sociais. Contudo, essa legislação pode servir como instrumento importante para que as
pequenas comunidades rurais possam acionar o poder público quando intencionar
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 304045
promover o fechamento indiscriminado das escolas rurais e a transferência dos estudantes
para escolas localizadas em comunidades rurais mais populosas (sentido campo-campo)
ou para a sede dos municípios (sentido campo-cidade).
De fato, precisamos nos posicionar claramente e com indignação quando
acessamos os dados oficias do INEP indicando o deslocamento imposto de 48% dos
alunos dos anos iniciais e 68,9% dos alunos dos anos finais do Ensino Fundamental para
as escolas localizadas no meio urbano em todo o país, problema esse, que se agrava à
medida que os alunos vão avançando para as séries mais elevadas, onde mais de 90% dos
alunos do campo precisam se deslocar para as escolas urbanas para cursar o Ensino Médio
(INEP, 2002). Se adicionarmos a esses dados, as dificuldades de acesso às escolas do
campo por parte dos estudantes e dos professores, as longas distâncias e o tempo gasto
por eles neste deslocamento, muitas vezes sem a alimentação adequada, as condições de
conservação e o tipo de transporte utilizado, as condições de tráfego das estradas,
concluímos que a saída do local de residência, ou seja, a mudança da sua comunidade
rural para um distrito, vila ou sede municipal, torna-se uma condição para o acesso à
escola, uma imposição e não uma opção dos estudantes do campo.
A esses fatores estruturais, acresce a sobrecarga de trabalho dos professores que
atuam nas escolas rurais multisseriadas e a instabilidade no emprego, muito comum entre
os professores que atuam no meio rural brasileiro, uma vez que nas escolas multisseriadas
um único professor pode atuar em até sete séries concomitantemente, reunindo estudantes
da pré-escola e dos anos iniciais do ensino fundamental em uma mesma sala de aula. Esse
isolamento acarreta uma sobrecarga de trabalho ao professor que se vê obrigado nessas
escolas ou turmas a assumir muitas outras funções, além das atividades docentes, ficando
responsável pela confecção e distribuição da merenda, realização da matrícula e demais
atividades de secretaria e de gestão, limpeza da escola e outras atividades na comunidade,
atuando em alguns casos como parteiro, psicólogo, delegado, agricultor, líder
comunitário, etc.
As atividades de estudo ou formação que temos realizado com os professores das
escolas ou turmas multisseriadas têm nos oportunizado a compreensão de que grande
parte deles é servidor temporário e por esse motivo contratados e destratados
continuamente, como resultado de um expediente administrativo legal, requerido pelas
exigências da administração pública atual, omitindo-se o fato de que nessa situação
específica, esses professores deixam de receber suas férias e o décimo terceiro salário e
ficam vulneráveis a uma série de constrangimentos pessoais ao terem que “implorar”, de
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 304046
vereadores, prefeitos e seus familiares, ou outras pessoas influentes na política local, e
em especial nas secretarias de educação, o referendo para sua lotação nas escolas a cada
ano letivo, assegurando com isso a apenas a permanência temporária no cargo, e
implicando numa intensa rotatividade, em que os professores são forçados a mudar
constantemente de escola e/ou de comunidade em função, de seu “maior” ou “menor”
prestígio junto à gestão pública local e da configuração da lotação das escolas a cada ano
letivo.
Essa realidade estapafúrdia tem implicações diretas quanto à organização do
trabalho pedagógico efetivado pelos professores das escolas ou turmas multisseriadas e
terminam por aumentar as angústias sentidas por esses docentes quando expostos a
situações dessa natureza, até certo ponto humilhantes, degradantes e mesmo ilegais, se
considerarmos o conjunto de referências estabelecidas nas legislações educacionais em
vigência que abordam a educação do campo e indicam parâmetros para a oferta da
educação básica de qualidade nas escolas do campo em nosso país.
Os estudos por nós realizados têm revelado que os professores das escolas rurais
multisseriadas enfrentam muitas dificuldades e desafios para organizar seu trabalho
pedagógico em face do isolamento que vivenciam e do pouco preparo para lidar com a
heterogeneidade de idades, séries, ritmos de aprendizagem, entre outras que se
manifestam com muita intensidade nessas escolas ou turmas. Sem uma compreensão mais
fundamentada desse processo, muitos professores e professoras do campo organizam o
seu trabalho pedagógico sob a lógica da seriação, desenvolvendo suas atividades
educativas referenciados por uma visão de “ajuntamento” de várias séries ao mesmo
tempo, que os obriga a elaborar tantos planos de ensino e estratégias de avaliação da
aprendizagem diferenciadas quanto forem as séries com as quais trabalham, envolvendo,
em determinadas situações, estudantes da pré-escola e ensino fundamental
concomitantemente.
Sob essa lógica, é muito comum presenciarmos na sala de aula de uma escola ou
turma multisseriada os docentes conduzirem o ensino a partir da transferência mecânica
de conteúdos aos estudantes, sob a forma de pequenos trechos, como se fossem retalhos
dos conteúdos disciplinares, extraídos dos livros didáticos a que conseguem ter acesso,
muitos deles bastante ultrapassados e distantes da realidade do meio rural, os quais são
repassados através da cópia ou da transcrição no quadro, utilizando-se da fragmentação
do espaço escolar com a divisão da turma em grupos, cantos ou fileiras seriadas, como se
houvesse várias salas em uma, separadas por “paredes invisíveis”.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 304047
Os professores nessas situações se sentem ansiosos, inseguros e demonstram
insatisfação, preocupação, sofrimento e, em determinados casos, até desespero ao
pretenderem realizar o trabalho da melhor forma possível e ao mesmo tempo, se sentindo
perdidos, impotentes para cumprir as inúmeras tarefas administrativas e pedagógicas que
têm que dar conta ao trabalhar em uma escola ou turma multisseriada, carecendo de apoio
para organizar o tempo e o espaço escolar, numa situação em que se faz necessário
envolver até sete séries concomitantemente.
Esses professores também se sentem pressionados pelas secretarias de educação,
quando definem encaminhamentos padronizados no que se refere à definição de horário
do funcionamento das turmas e ao planejamento e listagem de conteúdos, ou quando
adotam determinados “pacotes” ou programas educacionais oriundos de fundações, de
empresas privadas ou organizações não governamentais que prometem o
desenvolvimento de soluções pedagógicas e tecnológicas inovadoras, a partir da
imposição de determinados modelos de conduta, associados à rotinas pedagógicas rígidas
a serem assumidas pelos professores, retirando-lhes a autonomia e impondo-lhes a
intensificação do trabalho, como requisitos para superar os graves problemas que
enfrentam a educação brasileira na atualidade.
A todas essas situações que envolvem a complexidade e a precarização da
estrutura das escolas rurais ou turmas multisseriadas numa perspectiva mais ampla, e do
trabalho docente numa perspectiva mais especifica, os professores que atuam nessas
escolas não têm, de forma alguma, assumido uma atitude passiva, indiferente, ou mesmo
descompromissada com relação a sua prática pedagógica em sala de aula e ao trabalho
educativo desenvolvido no interior das pequenas comunidades rurais, ao contrário, eles
têm resistido a essas adversidades e reagido de forma a utilizar sua experiência acumulada
e criatividade para organizar o trabalho pedagógico com as várias séries ao mesmo tempo
e no mesmo espaço, adotando medidas diferenciadas em face das especificidades de suas
escolas ou turmas.
Nos estudos que temos realizado, procuramos resgatar a memória e a história de
vida das professoras e professores que atuam nas escolas multisseriadas, coletando
depoimentos e narrativas orais através de entrevistas, por compreender que os sujeitos
constroem sua performance a partir de inúmeras referências; entre elas estão sua história
familiar, sua trajetória escolar e acadêmica, sua convivência com o ambiente de trabalho,
sua inserção cultural no tempo e no espaço; e, provocar que ele organize narrativas destas
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
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referências, segundo Maria Isabel da Cunha (2005) é fazê-lo viver um processo
profundamente pedagógico.
Nesses estudos, temos constatado que as situações vivenciadas pelas professoras
e professores das escolas multisseriadas em seu conjunto, têm provocado reações
múltiplas no chão da escola, incluindo a resistência à seriação, quando agem de forma a
utilizar sua experiência acumulada e criatividade para organizar o trabalho pedagógico
com as várias séries ao mesmo tempo e no mesmo espaço, adotando medidas alternativas
e diferenciadas em face das especificidades de suas escolas ou turmas, que terminam por
reinventar a organização de sua ação pedagógica no interior dessas escolas.
As professoras e professores utilizam diferentes alternativas na organização de
seu trabalho docente, envolvendo o planejamento e seleção dos conhecimentos, a
organização dos estudantes das diferentes séries no interior da sala de aula, o uso do
quadro de giz e as metodologias de ensino, para viabilizar a condução das atividades
pedagógicas e oportunizar a aprendizagem aos estudantes, e com isso, aos poucos vão
minando os pilares da seriação, que se assentam na fragmentação do tempo, do espaço e
do conhecimento. Em grande medida, essas alternativas são originárias das experiências
e histórias de vida dos docentes adquiridas com os anos de atuação nas escolas
multisseriadas ou nas formações em que participam promovidas pelas redes de ensino,
que em geral, não pautam as questões relacionadas à dinâmica das escolas rurais
multisseriadas em seus conteúdos.
Assim, ainda que os professores continuem utilizando o modelo seriado urbano
de ensino, de forma predominante, como paradigma de organização do trabalho
pedagógico nas escolas multisseriadas, mesmo sem compreender claramente as
referências que configuram esse paradigma e seus desdobramentos; a partir dos processos
formativos em que participam e com as experiências adquiridas em suas práticas
pedagógicas nas escolas multisseriadas, de forma pouco referenciada, esses mesmos
professores vão criando suas formas de resistência e desenvolvendo estratégias que
indicam sinais de transgressão do modelo seriado urbano de ensino.
É certo que uma mudança dessa natureza, para se materializar e apresentar os
resultados significativos em termos da qualidade de ensino que almejamos deve se
constituir paulatinamente, com muito diálogo e reflexão, envolvendo os professores como
todos os demais segmentos da escola, com estudos e pesquisas sobre as condições
existenciais e as possibilidades de intervenção que atendam às peculiaridades locais das
escolas e suas comunidades, aproveitando o que de positivo os sujeitos envolvidos com
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essas escolas têm conseguido realizar através de sua prática criadora e inventiva, de sua
capacidade de inovar, de fazer diferente mesmo quando as condições materiais, objetivas
e subjetivas são muito desfavoráveis e as limitações e carências são muito profundas.
Referências
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Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 304050