Estratégias familiares e redes de sociabilidades formadas por fabricantes de cal na
freguesia da Ilha do Governador (Rio de Janeiro, século XIX)
JUDITE PAIVA SOUTO∗
1. Introdução
Situada na parte ocidental da Baía de Guanabara e conhecida atualmente por abrigar o
Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim, a freguesia de Nossa Senhora da Ajuda da
Ilha do Governador, na segunda metade do século XIX, estava dividida em seis fazendas ou
seções: Freguesia, Fazenda de S. Bento, Fazenda da Bica, Fazenda Amaral, Fazenda da
Ribeira ou Juquiá e Fazenda da Ponta do Tiro até Cocotá. (ANEXO I)
Embora esta divisão possa sugerir larga produção de gêneros agrícolas, o professor da
instrução primária Antônio Estevão da Costa e Cunha, em relato manuscrito datado de 1870,
ressaltou que não havia na Ilha do Governador grandes extensões de terras produtoras e que
apenas uma pequena parte da população se dedicava à lavoura. Segundo ele, uma das
principais atividades desenvolvidas na freguesia era a fabricação de cal, cuja produção
descreve detalhadamente.
Consultando o Almanak Administrativo Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro –
periódico anual que circulou entre 1844 e 1914, com informações variadas sobre autoridades
políticas e organização administrativa, jurídica, política, social, religiosa e cultural da
sociedade brasileira –, percebemos que até 1883 não se recenseavam as lavouras da freguesia,
possivelmente pela sua inexpressividade.
Por outro lado, as referências às fábricas são frequentes. Em 1878, por exemplo, foram
recenseadas quinze unidades produtoras de cal, duas de telhas e tijolos e uma de formicida. Os
fabricantes de cal pareciam ter alguma projeção local. Neste mesmo ano, dos sete eleitores da
Ilha, 4 eram caieiros. Destes, dois eram parentes: Francisco Antônio Bittencourt e Manoel
Leite Bittencourt.
Para melhor analisar os interesses e a rede de sociabilidade formada por estes
proprietários, vejamos alguns dados acerca da produção de cal na província do Rio de Janeiro
durante o século XIX.
2
2. A atividade caieira no período oitocentista
Dentre as diversas referências a fortificações, igrejas e edificações oficiais em pedra e
cal, encontramos um importante registro da produção deste material de construção por Jean
Baptiste Debret. Integrante da Missão Artística Francesa de 1816, o pintor dedicou uma de
suas pranchas à representação do fabrico de cal de concha. (Anexo II)
A gravura de Debret apresenta uma edificação envolta por vegetação em praia
aparentemente pouco habitada, dois barcos de um mastro e sete trabalhadores ocupados em
diferentes afazeres. À esquerda três homens se encarregam do transporte da lenha; ao lado,
ainda à esquerda, um operário dispõe a madeira amontoada em círculo em um terreiro. No
centro, outros três homens, com água na altura da cintura, munidos de uma grande barra,
aparentando cerca de 5 metros de comprimento, raspam o fundo da baía e à direita em uma
ponta oposta da praia, em terreno ligeiramente elevado, um grande volume de vapor ocupa a
imagem.
Ao comentar a produção, Debret confirma o predomínio da cal fabricada a partir de
conchas em relação à produzida a partir de pedras e acrescenta que de longe era possível
avistar os vapores levantados por aquela produção nas ilhas da baía da Guanabara.
As fases representadas correspondem ao processo descrito tanto pelo já mencionado
professor Costa e Cunha quanto pelo engenheiro civil José Américo dos Santos. Havia
primeiramente a coleta das conchas, depois a calcinação em fornos e em seguida a mistura
com água. Sua comercialização era realizada na Corte e na capital da província, Niterói. O
pessoal necessário incluía um feitor ou administrador e 8 a 30 operários que normalmente
eram escravos do fabricante.
O número de caieiras na Ilha do Governador era bastante expressivo principalmente se
comparado ao quantitativo de outras freguesias da província. Tomando-se os dados do
Almanak para o ano de 1861, período de maior quantitativo de fábricas na Ilha, a freguesia de
Nossa Senhora da Apresentação de Irajá possuía apenas 1; a de Senhor Bom Jesus do Monte
de Paquetá, 10; a freguesia de São Lourenço e a freguesia de São Gonçalo da Vila de Niterói,
3 cada uma e a freguesia de Nossa Senhora da Assunção de Cabo Frio apresentava 2.
3
Desta forma, tratamos de uma indústria que foi registrada por um dos mais famosos
artistas do oitocentos e que parece ter tido um de seus polos mais importantes na freguesia da
Ilha do Governador. Os proprietários de fábricas de cal se faziam presentes em diversas
esferas da vida pública: integravam associações, irmandades religiosas, eram nomeados para
cargos públicos e disputavam eleições. Passemos às considerações acerca das relações
estabelecidas por alguns deles e de sua atuação no âmbito local.
3. Os fabricantes de cal e sua rede de sociabilidade
Nossa abordagem terá como objeto a família de Francisco Antônio Bittencourt, juiz de
paz e fabricante de cal, bem como a de Manoel Barbosa da Silva, cavaleiro da Ordem da
Rosa, juiz de paz e subdelegado. Trataremos das alianças estabelecidas por seus membros
através do casamento e das estratégias para adquirir prestígio social. Assim, analisaremos
aspectos da biografia de Francisco Antônio Bittencourt e de seus filhos, Manoel Leite
Bittencourt, fabricante de cal, fiscal municipal, inspetor de quarteirão e Francisco Pereira
Bittencourt, fabricante de cal, fiscal, intendente municipal e subdelegado; bem como Manoel
Barbosa da Silva, sogro deste último.
3.1 Francisco Antônio Bittencourt
Francisco Antônio Bittencourt foi juiz de paz (1883-1886), fiscal da municipalidade
(1861-1864), proprietário de fábrica de cal na Ribeira (1858-1887) e de uma casa de secos e
molhados na praia do Zumby. Faleceu em 24 de dezembro de 1885 com 71 anos. Seu
inventário foi aberto em 30 de dezembro de 1885, tendo tramitado na 1ª Vara de Órfãos e
Sucessões. Deixou 22:480$930 (vinte e dois contos, quatrocentos e oitenta mil, novecentos e
trinta réis), dos quais, após pagamentos de dívidas e gastos com o próprio inventário,
19:345$330 (dezenove contos, trezentos e quarenta e cinco mil trezentos e trinta réis) foram
divididos entre seus herdeiros. (TABELA 1)
4
Dentre as pessoas com quem manteve negócios, estava Bernardo José Serrão1, juiz de
paz, subdelegado, inspetor de quarteirão, fabricante de sabão, responsável por reforma na
Capela do Carmo, proprietário de um teatro no Jequiá, proprietário de terras na Ilha, incluindo
o terreno que Francisco Antonio Bittencourt havia arrendado a 300 mil réis ao ano.
TABELA 1: Composição da fortuna (em mil-réis) acumulada por Francisco Antonio Bittencourt (1885)
Ativos Avaliação
Dinheiro, moedas e letras 5:768$480 Joias 156$000
Utensílios, móveis, ferramentas, roupas 698$450 Barcos, canoas, e redes 2:528$000
Madeiras e máquina a vapor 530$000 Escravos 2:000$000 Imóveis 7:700$000
Adiantamento de herdeiras 3:100$000 Total 22:480$930
Em seu inventário foram arrolados, entre outros, 12 bens de raiz, imóveis construídos
em terreno arrendado na freguesia da Ilha. Um deles estava ocupado com caieira a qual parece
ter tido relevância nos rendimentos de Francisco Antônio Bittencourt, tendo em vista os dados
constantes em seu inventário (Tabela 2).
TABELA 2: Rendimentos (em mil-réis) de Francisco Antonio Bittencourt (1886)
Ativo Valor
Valor obtido na venda da
cal no tempo do
inventariante.
1:282$000
1 Serrão foi homenageado com o nome de uma rua que atravessa os bairros Zumbi e Ribeira, na Ilha do Governador.
5
Dinheiro recebido de uma
dívida 7$000
Cal vendida no mês de
janeiro. 470$000
Aluguel de casas até o mês
de fevereiro. 157$000
Neste inventário, percebemos que durante o primeiro ano de tramitação do inventário
houve renda de 1:282$000 (um conto, duzentos e oitenta e dois mil réis) referentes à venda de
cal, além dos 470$000 (quatrocentos e setenta mil réis) com a venda no mês de janeiro. Note-
se que o valor obtido com a venda de cal em janeiro foi maior que o dobro da renda obtida
com aluguel de casas, 157$000 (cento e cinquenta e sete mil réis).
Considerando-se a ausência de menção a instrumentos relacionados à lavoura e os
valores obtidos em suas diferentes atividades, inferimos que, Francisco Antônio Bittencourt
tinha na produção de cal sua maior fonte de lucro pelo menos em seus últimos anos.
O fabricante de cal buscou se integrar na sociedade por mecanismos diversos, a
exemplo do polêmico convênio da cal. Seus 27 associados residiam em freguesias situadas na
baía de Guanabara: 3 eram fabricantes de freguesias da cidade de Niterói, 9 na freguesia da
ilha de Paquetá e 15 na Ilha do Governador. Diversas foram as denúncias divulgadas na
imprensa acerca desta associação. Criada para assegurar a venda do produto, seus dirigentes
foram acusados de beneficiar apenas alguns membros e de cobrar preços exorbitantes.
Além disso, participou de subscrição popular, aberta em 1854 na Ilha, para a
confecção da estátua equestre de D. Pedro I. Cabe dizer que dos 15 signatários 13 eram
fabricantes de cal, numa demonstração da atuação deste grupo no local. Também integrou
comissão nomeada pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro para arrecadar donativos para a
festa da independência ao lado do filho Francisco e do sogro deste, Manoel Barbosa da Silva.
Como não deixou testamento, a herança foi partilhada entre seus seis herdeiros, dentre
eles Manoel Leite Bittencourt e Francisco Pereira Bittencourt. Atentemos para o destino de
alguns dos bens: Manoel Leite Bittencourt recebeu o estabelecimento de cal, a máquina a
6
vapor e os prédios da praia do Zumbi. Francisco Pereira Bittencourt ficou com imóvel na
praia do Cabaceiro o valor referente ao serviço dos escravos e um barco.
Francisco Antônio Bittencourt deixou bens que foram aproveitados por seus filhos.
Pereira Bittencourt, à época do falecimento de seu pai, já era fabricante de cal, de modo que a
caieira ficou para seu irmão, Manoel, tendo este levado à frente a atividade da fábrica. A
partir desta herança e dos vínculos sociais que estabeleceram puderam se projetar na
sociedade local. Passemos aos herdeiros de Antônio Bittencourt.
3.2 Manoel Leite Bittencourt
Filho de Francisco Antônio Bittencourt, Manoel Leite Bittencourt residiu na Ribeira.
Foi fiscal municipal (1879-1883 e 1888), fabricante de cal (a partir de 1883) e inspetor de
quarteirão (1875-1878 e 1881).
Ocupar o cargo de inspetor de quarteirão significava ter autoridade sobre pelo menos 25
“fogos” e estar sob a direção de um subdelegado. Dentre suas atribuições estava a expedição
de passes para aqueles que quisessem ir a outro distrito, a declaração de boa conduta, o relato
de casos de varíola, a fiscalização de policiais e principalmente a manutenção da ordem. Para
tal deveria evitar motins, vozerios, reunião de escravos, a presença de bêbados, a
mendicância, a chamada vadiagem e a prostituição, no intuito de assegurar os “bons
costumes” (GRAHAM, 1997).
No Diário Oficial da União de 23/03/1890 consta o expediente da Intendência
Municipal referente ao requerimento de “Manoel Leite Bittencourt, para fábrica de cal na Ilha
do Governador. – Junte o conhecimento do haver pago a licença do anno passado”.
Interessante notar que Manoel dá continuidade à produção de cal após a morte de seu pai,
fazendo uso da herança recebida.
Em 1912 consta que “O general Souza Aguiar, Inspector da 9ª região, autorizou Sr.
Manoel Leite Bittencourt, presidente da sociedade de tiro n. 105, com séde na ilha do
Governador, a fazer funccionar a linha de tiro construida por conta da mesma sociedade”. 2
2 DOU, 29/12/1912, Seção 1, p. 14. A Linha de Tiro estava situada nas proximidades do Rio Jequiá, a leste do Morro do Matoso.
7
Além dos cargos públicos ocupados e da presidência da Sociedade de Tiro, Manoel
Bittencourt também foi vice-presidente do bloco carnavalesco desta ilha, denominado
Amantes da União, tendo sido mencionado no jornal O Suburbano por ocasião do aniversário
de sua filha, o que demonstra uma inserção na chamada “boa sociedade”.
3.3 Francisco Pereira Bittencourt
Francisco Pereira Bittencourt, irmão de Manoel Leite Bittencourt, casou-se com
Antônia Barbosa da Silva, filha de Manoel Barbosa da Silva. Após o matrimônio, Antônia
assumiu o nome de seu esposo e passou a se chamar Antônia Barbosa Bittencourt. Desta
união tiveram dois filhos naturais da Ilha e batizados na mesma localidade.
Pereira Bittencourt residiu no Jequiá, praia do Cabaceiro, onde manteve um engenho de
cal. Foi substituto (1882-1885) e subdelegado de polícia (1886), secretário da municipalidade
(1874-1878) e secretário da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz de Nossa
Senhora da Ajuda da Ilha do Governador, da qual seu sogro era provedor.
A nomeação de membros da família Bittencourt para determinados cargos públicos
parecia estar estreitamente relacionada com o vínculo de parentesco. Francisco, o pai, foi
fiscal da municipalidade; dez anos depois seus filhos também o foram. Se o período entre o
exercício daquele e destes parece longo, observemos a proximidade dos irmãos: Francisco
esteve ligado ao cargo de 1874 a 1886, tendo sido suplente do irmão Manoel por quatro anos
(1879 a 1883).
Os irmãos também ocuparam cargos da polícia, disputaram eleições e foram membros
de associações. Manoel foi inspetor de quarteirão de 1875 a 1881. No ano seguinte, seu irmão
assumiu como substituto do subdelegado (1882 a 1885), e como titular do cargo (1886).
Ademais, ambos foram escolhidos eleitores em 1878, nomeados para a comissão de
alistamento e revisão eleitoral em 1895 e foram sócios em fábrica de formicida na freguesia,
numa demonstração da solidariedade entre os dois.
Em trinta de outubro de 1892, Pereira Bittencourt elegeu-se membro do Conselho
Municipal, tornando-se o primeiro intendente da Ilha. O Conselho começou a legislar a partir
de dezembro de 1892, data de sua criação (Lei nº 85, de 20/09/1892) e a ele cabia, juntamente
8
com a Prefeitura, a administração da municipalidade. Dentre suas atribuições estava a
organização anual do orçamento da cidade, o estabelecimento e a regulamentação da instrução
pública, mercados, vias urbanas, fábricas, impostos, obras, compra de imóveis, entre outras
(TORRES, 2012). Antes de chegar ao cargo, este fabricante de cal aliou-se a um personagem
de prestígio da Ilha do Governador: Manoel Barbosa da Silva, cavaleiro da Ordem da Rosa.
3.4 Manoel Barbosa da Silva
Manoel Barbosa da Silva residiu no Morro da Tapera, foi eleitor (1867-1875), exerceu
os cargos de juiz de paz (1862-1864 e 1873-1884), suplente de subdelegado (1861-1883) e foi
agraciado com o título de cavaleiro da Ordem da Rosa. Considerando que eleitores e juízes de
paz eram escolhidos através do voto, vemos que o sogro de Pereira Bittencourt possuía uma
nada desprezível rede de apoio político na freguesia.
A indicação de Pereira Bittencourt para o cargo de subdelegado da polícia pode ter sido
resultado de seu vínculo com Manoel Barbosa, uma vez que o cavaleiro da Ordem da Rosa
esteve ligado a ela por mais de dez anos. Chefes de polícia, delegados e subdelegados eram os
principais agentes dos presidentes provinciais para o fornecimento de informações políticas.
Não raro buscaram esses cargos públicos “para exercer autoridade extra e estender favores,
isenções e proteção aos apadrinhados”. (GRAHAM, 1997, p. 87)
A boa relação entre Manoel Barbosa e seu genro se expressou em diversas
circunstâncias. Além de terem participado, em 1885, da já mencionada comissão de
arrecadação de donativos para a festa da independência; em 1878, Manoel foi presidente e o
genro mesário da junta de qualificação dos votantes da paróquia. Do mesmo modo, enquanto
Barbosa era provedor da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja matriz da freguesia,
Pereira Bittencourt era seu secretário.
Segundo o Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz de
Nossa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador, registrado em 1898, o provedor era o que
possuía maior destaque, pois era ele “o primeiro representante da Irmandade e nessa
9
qualidade preside a todos os atos públicos e particulares da mesma”.3 Entre suas atribuições
estava “regular todos os despachos da Irmandade”, “propor negócios à discussão” e “manter a
ordem”. Além disso, em caso de empate nas votações era seu o “voto de qualidade”.
Ademais, como afirma Mariza de Carvalho Soares, as irmandades no Brasil
apresentaram um perfil específico. Segundo a autora “em cada paróquia é instituída uma
Irmandade do Santíssimo Sacramento, que, incentivada pelas autoridades eclesiásticas, é a
preferida das elites da cidade”. (SOARES, 2000, p. 136-137). As irmandades se
responsabilizavam por boa parte dos principais eventos públicos da cidade como cortejos
festivos e fúnebres.
Manoel Barbosa da Silva, ocupante dos mais importantes cargos na Freguesia de Nossa
Senhora da Ajuda e detentor de honrarias, faleceu em sua casa naquela localidade, em onze de
agosto 1884. Seu inventário foi aberto em vinte e oito de junho de 1886 e tramitou perante a
4.ª Vara de Órfãos e Sucessões do Rio de Janeiro, tendo como inventariante Margarida
Barbosa da Silva, sua esposa. Seus herdeiros foram Pedro Barbosa da Silva; Antonia Barbosa
Bittencourt, casada com Francisco Pereira Bittencourt; Maria Isabel Pinheiro; Mercedes
Barbosa da Rocha, casada com o professor Antônio Hilarião da Rocha e Manoel Barbosa da
Silva Júnior. 4
Dentre os bens inventariados de Manoel Barbosa da Silva estavam uma casa construída
em terreno de foreiro na praia da Tapera, pertencente ao fabricante de cal Manoel Rodrigues
Pereira Alves, e 5 escravos domésticos. 5
Seu genro, Francisco Pereira Bittencourt, parece não ter sido o único a escolher esta
família para estabelecer aliança através do matrimônio. O professor Antônio Hilarião da
Rocha também se casou com uma filha daquele subdelegado. Apesar de não ter deixado
grande fortuna, parecia deter um status privilegiado na localidade.
Isso pode ser compreendido através da visão de João Fragoso e Manolo Florentino os
quais demonstraram que a organização social possuía uma lógica que não se limitava à
riqueza e tampouco se explicava exclusivamente por fatores econômicos (FLORENTINO & 3 A mesa da irmandade era composta por dezessete irmãos, que poderiam ocupar um cargo de Provedor, 1 de Vice-Provedor, 1 de Secretário, 1 de Tesoureiro, 1 de Procurador, 5 cargos de Sub-Procurador e 7 de Mesário. 4 Maria Isabel Pinheiro era casada com Antônio José de Souza Pinheiro e Manoel Barbosa da Silva Júnior com Arminda Monteiro Barbosa da Silva. 5 Durante o inventário a escravidão foi abolida pela Lei Áurea (1888), acarretando a redução do montante a ser partilhado que já não poderia incluir o valor de cinco escravos.
10
FRAGOSO, 2001). Manoel Barbosa da Silva não foi senhor de terras ou de grande número de
escravos, mas ocupou cargos significativos como juiz de paz, provedor da Irmandade do
Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador e
além disso, detinha o título honorífico de cavaleiro da Ordem da Rosa.
Seu filho, Pedro Barbosa da Silva, era conhecido como capitão Barbosa6 e tinha suas
atividades como delegado amplamente divulgadas e apoiadas pelo jornal O Suburbano, cuja
direção era de seu cunhado, o professor Antônio Hilarião da Rocha.
4. Considerações finais
A relação entre a família de Francisco Antônio Bittencourt e Manoel Barbosa da Silva
pode ser compreendida a partir da tese de que poder econômico não significava
necessariamente possuir prestígio social. Manoel Barbosa da Silva não figurava entre os
proprietários da freguesia da Ilha do Governador, mas apresentava bom desempenho em
eleições, ocupava importantes cargos públicos e recebera título honorífico.
Conforme sustentou Sheila de Castro Faria, a família influenciava no status e na
classificação social, por isso a cuidadosa escolha do cônjuge fazia parte das estratégias
familiares (FARIA, 1995). Francisco Pereira Bittencourt ao casar-se com a filha de Manoel
Barbosa da Silva observou esse mecanismo. Procurou manter-se próximo ao sogro, atuando
na mesma irmandade religiosa e em comissões locais, tendo sido bem sucedido em sua
carreira política, uma vez que alcançou o Conselho Municipal em 1892.
Os vínculos entre a parentela também foram uma importante estratégia social. Os
irmãos Francisco Pereira Bittencourt e Manoel Leite Bittencourt atuaram de maneira solidária
na freguesia, como fabricantes de cal, sócios em produção de formicida, eleitores, integrantes
da polícia local, havendo ocasião em que o primeiro foi suplente do segundo no cargo de
fiscal da municipalidade.
Em suma, verificamos que houve uma busca dos integrantes da família Bittencourt por
fortalecer vínculos entre si e com figuras detentoras de prestígio social, formando uma
6 Em sua homenagem, foi este o nome que recebeu uma das ruas do bairro do Cocotá, na Ilha do Governador.
11
verdadeira rede de sociabilidade e solidariedade em que todos os membros tinham vantagens
a computar.
5. Referências
5.1 Fontes
Almanak Administrativo Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro. 1844-1889. Disponível em:
http://www.crl.edu/brazil/almanak. Acesso em: 12 de outubro de 2011.
Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz de Nossa Senhora da
Ajuda da Ilha do Governador da Freguezia de Nossa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador
(1897-1898). Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro – AR 364.
O Cruzeiro, 19/01/1878.
CUNHA, Antônio Estevão da Costa e. Notícia descritiva da Ilha do Governador. 1870.
Arquivo Nacional. NP – Diversos Códices da Antiga SDH, Cód. 807, vol. 3.
Diário Oficial da União, 29/12/1912, Seção 1, p. 14.
Diario de Notícias, 10/07/1885. Acervo Fundação Biblioteca Nacional.
Debret, Jean Baptiste, 1768-1848. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Tome II.
Paris: Firmin Didot Fréres, Imprimers de L’Institut de France, 1835. Diponível em:
http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00624520#page/1/mode/1up. Acesso em: 12 de
maio de 2013.
Gazeta da Tarde, 17 de abril de 1895.
12
Inventário de 1886: Manoel Barbosa da Silva (falecido) e Margarida Barbosa da Silva
(inventariante). Acervo Museu da Justiça Estadual do Rio de Janeiro.
Inventário de 1885: Francisco Antonio Bittencourt (falecido) e Manoel Leite Bittencourt
(inventariante). Acervo Museu da Justiça Estadual do Rio de Janeiro.
O Suburbano: órgão dos interesses locaes. Ilha do Governador, 1900. (nºs 1 a 14 e 16 a 19).
Acervo Fundação Biblioteca Nacional.
Correio Mercantil, 24 de julho de 1872. Acervo Fundação Biblioteca Nacional.
SANTOS, José Americo dos. Revista de Engenharia. Ano II, nº 1. 15 de janeiro de 1880. p. 4-
7. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=709743&pasta=ano
187&pesq=jose americo dos santos +cal. Acesso em: 12 de maio de 2013.
SANTOS, Noronha. Corographia do Distrito Federal. Rio de Janeiro: Benjamin de Aguila
Edictor, 1907.
5.2 Referências bibliográficas
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UFRJ, 1997.
FARIA, Sheila Castro. Fortuna e Família em Bananal no século XIX. IN: CASTRO, Hebe
Maria de Mattos & SCHNOOR, Eduardo (Orgs.). Resgate: uma janela para o oitocentos.
Rio de Janeiro, Topbooks, 1995.
FLORENTINO, Manolo & FRAGOSO, João. O arcaísmo como projeto: mercado
atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
13
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do Estado Imperial. Rio de
Janeiro: Acces, 1994.
SCHUELER, Alessandra. Professores primários como intelectuais da cidade: um estudo
sobre produção escrita e sociabilidade intelectual (Corte imperial, 1860-1889). Revista
de Educação Pública. Universidade Federal do Mato Grosso, n. 17, 2008.
SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e
escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
TORRES, Rosane dos Santos. Filhos da pátria, homes do progresso: o Conselho
Municipal e a instrução pública na capital federal (1892-1902). Rio de Janeiro: Arquivo
Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2012.
ANEXO I
14
A freguesia de Nossa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador (RJ) em 1870, segundo o professor Antônio Estevão da Costa e Cunha.
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