ETNOMATEMÁTICA NUM PROJETO INTERDISCIPLINAR
Adriano Fonseca1
Eixo Temático: Etnomatemática e as relações entre tendências em educação matemática
Resumo: Este artigo tem como finalidade apresentar um projeto de extensão em andamento (período
2011-2013), que busca ser interdisciplinar e que se configura num trabalho de caráter
etnomatemático desenvolvido numa escola pública estadual de Araguaína/TO. Contando com
a participação de professores e alunos do Ensino Médio, esta ação de extensão, vinculada a
um projeto de pesquisa iniciado em 2009, contempla: a formação continuada dos professores
envolvidos, pertencentes às diversas áreas do conhecimento; o estudo do Programa
Etnomatemática pelos professores; a pesquisa e o estudo da realidade cultural do/pelo grupo
social pesquisado – uma turma de alunos; a compreensão das relações e contribuições entre o
conhecimento etnomatemático acadêmico e o conhecimento etnomatemático do grupo social.
Para que os objetivos propostos neste projeto fossem alcançados, adotou-se o trabalho a partir
de alguns temas relacionados com a realidade cultural dos alunos. O primeiro destes temas,
definido pelos alunos, a saber, a matemática dos deficientes físicos, foi investigado e estudado
pelo próprio grupo, em colaboração com os professores, na condição de representantes da
“outra cultura”. Os resultados do estudo e investigação deste tema foram sociabilizados em
sala de aula, que se constitui como um espaço sociocultural, e não somente de transmissão de
um único conhecimento.
Palavras-chave: Educação Etnomatemática; Conhecimentos Etnomatemáticos; Cultura;
Ensino e Aprendizagem; Interdisciplinaridade.
Introdução
Em 2007, iniciei um trabalho de pesquisa etnomatemático, que considera que uma
turma de alunos possui um conhecimento próprio, conhecimento este que foi e é construído
no meio ambiente no qual está inserido, e que contempla três dimensões principais: ambiental,
social e cultural2. Os primeiros resultados estão contidos em Fonseca (2009). Mas, à medida
que pesquisamos, muitas outras questões vão surgindo. Como o tempo de um trabalho de
Mestrado é bastante limitado, percebi a necessidade de dar continuidade ao trabalho que
iniciei. Esta continuidade se configurou na elaboração e desenvolvimento de um projeto de
extensão e pesquisa junto à uma turma de Ensino Médio do Centro de Ensino Médio Paulo
Freire situado na cidade de Araguaína – Região Norte do Tocantins. Este projeto se configura
1 Professor Assistente do Curso de Licenciatura em Matemática da Universidade Federal do Tocantins - Campus
de Araguaína. E-mail: [email protected]. 2
Estas dimensões estão situadas/relacionadas no espaço e tempo em que a ação pedagógica acontece.
como uma ação vinculada ao projeto de pesquisa Formação de Professores de Matemática:
sala de aula como um espaço sociocultural dentro de uma postura etnomatemática3.
Tendo como objetivo principal mostrar como o professor ou futuro professor da disciplina
Matemática pode fazer, de modo que a sala de aula se torne um espaço sociocultural, espaço
este onde os alunos são considerados como seres culturais, que possuem uma cultura própria,
um conhecimento etnomatemático próprio, quando do desdobramento para o projeto de
extensão a ser desenvolvido na escola, outros objetivos relacionados a este foram definidos.
Dentre eles destaco dois: 1. a partir de uma releitura do cotidiano, fazer com que os
conhecimentos etnomatemáticos – do grupo, do professor e da escola – interajam entre si de
modo que possam contribuir para uma melhor compreensão da realidade, buscando também
compreender as ticas de matema do grupo social pesquisado; 2. que os alunos possam
perceber que a matemática escolar não é a única forma de conhecimento etnomatemático,
mostrando que todos os grupos socioculturais possuem um conhecimento etnomatemático do
qual se utilizam para resolver, refletir e explicar situações do dia a dia.
Buscando subsídios na teoria etnomatemática, este artigo tem a finalidade de
apresentar um trabalho interdisciplinar realizado numa escola de Ensino Médio, que está a se
desenvolver com a participação dos professores e de uma turma desta escola, sendo que
alguns resultados parciais também serão apresentados.
Solo Teórico e Metodologia de Pesquisa
A questão cultural está muito em voga, considerado até, por muitas pessoas, inclusive
do meio científico, como um modismo. O antropólogo Marshall Sahlins (1997), percebendo a
situação pela qual a cultura estava passando, escreve que
No mercado anglófono atual [isto já em 1997], como se sabe, o termo
“cultura” está em liquidação. Ele é usado para categorias e grupos sociais de
todo tipo e qualidade. […] Hoje não é fácil dizer se tudo isso deprecia o
conceito antropológico de “cultura”, como poderia parecer, ou se na verdade
o fortalece. Contudo, assim como a sociologia tem sobrevivido aos usos
populares de “sociedade”, e como a economia tem sobrevivido a todas as
evocações legais de seu tema de estudo, a antropologia provavelmente não
precisa ter medo da febre atual da “cultura”. (SAHLINS, 1997, p. 65)
Podemos dizer que hoje, início da segunda década do século XXI, a Etnomatemática
também não precisa temer o que muitos consideram como “modismo” a questão cultural e a
3
Este projeto, de caráter trienal (2009-2012), se encontra cadastrado junto à Pró-Reitoria de Pesquisa da UFT.
própria Etnomatemática4. Não podemos tratar a cultura de outros povos, de outros grupos
sociais, de outras classes sociais, como algo sem relevância científica, considerando que
apenas nós, brancos, ocidentais, “civilizados”, desenvolvidos tecnologicamente, podemos
construir conhecimento científico válido. D'Ambrósio (2006, p. 51) chama nossa atenção
enquanto educadores matemáticos com relação à importância do domínio de várias
etnomatemáticas, afirmando que isto “[...] oferece maiores possibilidades de explicações, de
entendimentos, de manejo de situações novas, de resolução de problemas. É exatamente assim
que se faz boa pesquisa matemática [...]”. Mesmo que esta fala de D'Ambrósio se refira à
pesquisa, posso dizer que numa proposta pedagógica, considerar duas ou mais
etnomatemáticas para uma melhor compreensão da realidade é essencial.
Poderíamos nos perguntar: Por que considerar duas ou mais etnomatemáticas?
Somente a matemática acadêmica ou escolar não supre toda a compreensão da realidade?
Creio que a resposta para estas perguntas está na própria compreensão do que seja
etnomatemática.
Indivíduos e povos têm, ao longo de suas existências e ao longo da história,
criado e desenvolvido técnicas de reflexão, de observação, e habilidades
(artes, técnicas, techné, ticas) para explicar, entender, conhecer, aprender
para saber e fazer como resposta a necessidades de sobrevivência e de
transcendência (matema), em ambientes naturais, sociais e culturais (etnos)
os mais diversos. Desenvolveu simultaneamente, os instrumentos teóricos
associados a essas técnicas e habilidades. Daí chamarmos o exposto acima
de Programa Etnomatemática. (D'AMBRÓSIO, 2006, p. 46)
Não se trata de uma proposta para substituir na grade curricular a matemática
acadêmica ou a matemática escolar por outra(s) matemática(s)5, mas sim, reconhecer “[...] na
educação a importância das várias culturas e tradições na formação de uma nova civilização,
transcultural e transdisciplinar.” (ibid., 2005, p. 46). Portanto, precisamos considerar que o
domínio de várias etnomatemáticas pode contribuir para uma melhor compreensão da
realidade, compreensão esta que gera construção de conhecimento científico, com enfoque
interdisciplinar.
Deste modo, o foco deste artigo é apresentar um projeto pedagógico com enfoque
interdisciplinar cuja estrutura e funcionamento se fundamenta nas teorias da Etnomatemática,
tendo como preocupação principal sobre qual/como seria a dimensão pedagógica desta. Creio
4
apud D'AMBRÓSIO (2005), p. 9-11. 5 Costa (2003, p. 213-215) também nos alerta quanto a esta compreensão errônea sobre os propósitos da
Etnomatemática.
que não há nenhum pesquisador etnomatemático que não considere a importância pedagógica
da Etnomatemática. Assim como D'Ambrósio reforça em todos os seus trabalhos sobre
Etnomatemática que a mesma possui óbvias implicações pedagógicas, Ferreira (2009, p. 56),
também considera que talvez o mais importante pilar da Etnomatemática seja sua ação
pedagógica, inclusive fazendo um importante alerta a todos os pesquisadores etnomatemáticos
sobre um possível desencantamento do mundo pelo modo como realizamos nossos trabalhos.
A pesquisa, de caráter qualitativo, apresenta metodologia de investigação de cunho
etnográfico, considerando o que André (1995, p. 28) explica sobre o fato de que a etnografia
precisou ser adaptada às pesquisas educacionais. Neste tipo de pesquisa, compreende-se que
não é possível manter uma neutralidade e uma objetividade fria por parte do pesquisador, mas
busca-se compreender o outro na interação, no diálogo simétrico, no respeito para com o
grupo social pesquisado. Segundo Marli André, é através “[...] basicamente da observação
participante [que] ele [pesquisador] vai procurar entender essa cultura, usando para isso uma
metodologia que envolve registro de campo, entrevistas, análises de documentos, fotografias,
gravações.” (ANDRÉ, 1995, p. 37). Quanto a isto, a pesquisadora mexicana Elsie Rockwell,
também explica que a observação cuidadosa e o registro minucioso numa investigação
etnográfica tem a finalidade de “[...] conocer lo desconocido, documentar lo no documentado,
escuchar y ver al ‘otro’.” (ROCKWELL, 1987, p. 8), para posteriormente analisar, pois “[...]
los registros de campo sólo son útiles en el proceso de construcción de conocimientos si se
integran en un sistemático análisis cualitativo, etnográfico.”6 Mesmo que a realidade que
investigo é conhecida, outro desafio enquanto pesquisador é fazer o estranhamento da
realidade escolar, para melhor poder compreender o que num primeiro momento fica oculto a
nossos olhos.
O projeto Releitura do Cotidiano: um olhar etnomatemático
Atualmente, na condição de educador-pesquisador e formador de professores, novas
preocupações do ponto de vista educacional e de pesquisa perpassam nossas investigações.
Diante disto, o projeto que está em andamento, intitulado Releitura do Cotidiano: um olhar
etnomatemático, desenvolvido no Centro de Ensino Médio Paulo Freire7 da cidade de
Araguaína – Região Norte do Tocantins, configura-se como uma ação de extensão vinculada
6
Ibid., p. 18. 7 Situada na região central da cidade, a escola conta com um quadro de servidores composto por 37 docentes e
31 técnicos-administrativos, atendendo atualmente 1.160 alunos distribuídos da seguinte forma: 1ª Série - 435
alunos; 2ª Série - 346 alunos; 3ª Série - 379 alunos. Todos os alunos são advindos de bairros da zona urbana.
ao projeto de pesquisa Formação de Professores de Matemática: sala de aula como um
espaço sociocultural dentro de uma postura etnomatemática.
Portanto, nesta ação de extensão, busca-se mostrar a importância do conhecimento
cultural tanto para o próprio grupo que o constrói – considerando que este conhecimento é
validado por aqueles que o utilizam – e também para a sociedade em geral, além de
compreender como ocorrem os processos de geração, organização intelectual e social e a
difusão deste conhecimento. A compreensão destes processos, definidos por Ubiratan
D'Ambrósio desde 1990, e identificados por Knijnik (2006), se configura como o próprio
objeto de estudo do Programa Etnomatemática.
Considerando a dimensão política da Etnomatemática, descrita por D'Ambrósio (2005)
uma preocupação quando da aplicação do projeto, era como apresentá-lo à escola, de modo
que a adesão tanto dos professores quanto dos alunos não fosse algo imposto ou aceito sem
uma devida compreensão sobre as reais intenções ou pretensões do pesquisador. Esta questão
remete a uma busca pela vivência dos ensinamentos de Scandiuzzi (2007):
Para mim, posso dizer que educar deixará livre o educando para escolher o
seu caminho, dentro das curiosidades e dos desejos que o façam ir em busca
de mais conhecimentos, que podem ser obtidos por meio do diálogo
simétrico, sem imposição, sem desejos de acrescentar algo mais, como se
fôssemos sabedores de um conhecimento que tem algo mais. (ibid., p. 72)
[…] a postura de educador deve excluir toda auto-suficiência, dialogar com
igualdade, aceitar a diferença e a alteridade, deixar que seja o outro que se
defina, aceitando uma autoleitura que se baseia na própria identidade. (ibid.,
p. 78)
Deste modo, várias ações preliminares foram necessárias: apresentação de duas
palestras, uma sobre Etnomatemática8
e
outra
sobre o projeto de extensão9. Aderiram
inicialmente ao projeto 6 (seis) professores, a saber: dois com formação em Matemática, um
com formação em Matemática e Filosofia, um com formação em Física e dois coordenadores
pedagógicos, um com formação em Geografia e Matemática e outra com formação em
História10
. O próximo passo foi apresentar o projeto à turma, uma 2ª Série do Ensino Médio,
buscando também a adesão voluntária de todos. Felizmente houve a adesão total. Esta fase de
apresentação e adesão ao projeto durou três meses – março/2011 a junho/2011.
8
Palestra realizada em 25/03/11 com a presença de todos os professores de todas as áreas. 9
Palestra realizada em 11/05/11 com a presença dos professores de todas as áreas. 10
Vinculado a este projeto de extensão, temos um TCC de uma graduanda do curso de Matemática, que está
investigando especificamente a participação e contribuição neste/deste projeto para estes professores.
Com relação à proposta do projeto, que tem como característica principal a
interdisciplinaridade, o trabalho desenvolvido consiste no estudo e investigação de temas
relacionados com a realidade dos alunos, buscando contemplar principalmente os aspectos
ambientais, sociais e culturais. A definição dos temas ocorreu a partir de um levantamento
junto aos alunos sobre práticas e situações que fazem parte da realidade cultural a que
pertencem e que poderiam ser posteriormente problematizadas. Depois de identificadas estas
práticas e situações (temas de estudo e investigação), ficou definido juntamente com os
professores envolvidos no projeto, que cada tema seria trabalhado em um semestre letivo.
Vale ressaltar que encontros periódicos são realizados entre pesquisador e professores para
estudo e discussão teórica sobre Etnomatemática.
Duas questões não poderiam deixar de ser analisadas neste trabalho: a mudança de
postura tanto do professor quanto do aluno.
Quanto ao aluno, que geralmente nas aulas tradicionais tem a função de um
“receptáculo vazio” que deve receber/assimilar um conteúdo transmitido por um outro que
reconhecidamente detém (ou deveria deter) o domínio de um conhecimento formal, científico,
no trabalho ora desenvolvido não poderia ser concebido como tal. Na verdade, o protagonista
em qualquer trabalho etnomatemático é o próprio grupo social investigado. Neste, não seria
diferente. Ao buscar estudar e investigar fatos ou fenômenos de sua própria cultura, os alunos
precisam atuar como pesquisadores. Surge aí a figura do aluno-pesquisador, que precisa ter na
ação pedagógica/educativa uma postura diferente do que comumente lhe é identificada.
Passando de receptor passivo para investigador atuante, numa dinâmica de aprendizagem que
ultrapassa os limites da sala de aula e os muros da escola, proporcionando uma (re)construção
do conhecimento etnomatemático do/pelo grupo social.
Como disse anteriormente, o professor é identificado tradicionalmente como aquele
que detém com exclusividade um conhecimento formal científico, e que enquanto “ducador”
tem a função de conduzir os alunos ao “verdadeiro conhecimento”. D'Ambrósio (1990, p. 52)
critica fortemente isto, dizendo que a “ducação” “[...] que leva ao domínio de uma bateria de
conteúdos é o mecanismo classicamente adotado para subordinar comportamentos e modelá-
los para servir, sem qualquer crítica, a uma ordem preestabelecida.” No trabalho ora
desenvolvido, esta postura não tem espaço. De professor-ducador, que filtra e processa a
realidade para os alunos, passa a configurar o professor-orientador, ou, como prefiro dizer,
aquele que representa a cultura escolar, detentor de um conhecimento científico-acadêmico
dentro da área de conhecimento de sua formação, que se apresenta como um “outro”,
representante de uma outra cultura diferente da cultura do grupo social pesquisado, cuja
função geral será a de contribuir para a construção de conhecimento etnomatemático dos
alunos e sua própria, e cuja função específica, a de orientar os alunos no que tange aos
processos e técnicas de investigação. Tudo isto remete ao que D'Ambrósio (1996, p. 89)
considera como currículo dinâmico:
[…] O currículo, visto como estratégia de ação educativa, leva-nos a facilitar
a troca de informações, conhecimentos e habilidades entre alunos e
professor/alunos, por meio de uma socialização de esforços em direção a
uma tarefa comum. Isso pode ser um projeto, uma tarefa, uma discussão,
uma reflexão e inúmeras outras modalidades de ação comum, em que cada
um contribui com o que sabe, com o que tem, com o que pode, levando seu
empenho ao máximo na concretização do objetivo comum.
Para que esta dinâmica curricular pudesse ser contemplada no projeto, de modo a
contemplar uma compreensão holística da realidade, a turma de alunos se organizou em cinco
subgrupos, sendo que cada um ficaria responsável por um determinado aspecto temático –
vale lembrar que cada subgrupo contou com a participação de um dos professores envolvidos
no projeto.
Esta busca por uma educação etnomatemática está de acordo com as palavras de
Scandiuzzi (2009, p. 18):
Educar etnomatematicamente é trabalhar a “holicização” dos seres humanos,
é aceitar as diferentes realidades e as inteligências múltiplas de cada ser
humano em seus grupos diversos e como agem em suas diferenças.
Nesse sentido, a etnomatemática aponta que educar não é somente apresentar
problemas contextualizados, uma vez que a contextualização depende de
fatores vivenciais do grupo e estes nem sempre são os do educador. Não é
apenas dar exemplos para motivação, pois o grupo já se sente motivado em
seu cotidiano para dar conta de seus problemas – a própria realidade que os
envolve gera expectativas na busca de soluções. Também não é tratar apenas
do cotidiano, pois as relações intra e intergrupais exigem muito mais.
Alguns resultados parciais: o tema a matemática dos deficientes físicos
Estando o projeto Releitura do Cotidiano: um olhar etnomatemático em
andamento, mais especificamente na sua fase onde os temas estão sendo investigados e
estudados, a pesquisa a qual este projeto se vincula está na sua fase de coleta de dados. Mas,
mesmo não dispondo de resultados advindos de uma análise mais sistemática dos dados, irei
neste item descrever algumas situações decorrentes do trabalho com o primeiro tema: a
matemática a favor dos deficientes físicos (trabalho na APAE de Araguaína) – que durante o
desenvolver das atividades passou a ser indicado como a matemática dos deficientes físicos.
Do ponto de vista da pesquisa, até o momento, a coleta de dados realizada pelo
pesquisador ocorreu por meio de observação participante, notas de campo, relatórios e
questionários realizados/respondidos pelos alunos, material das apresentações dos grupos,
levantamento documental da escola.
Interessante que cada subgrupo buscou uma identificação própria: temos então o grupo
As Exatas, o grupo Alfa, o grupo Mazembeiros, o grupo Beta β (ou βeta) e o grupo Os Six.
O grupo Mazembeiros investigou na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais
(APAE) duas oficinas: a de tecelagem e a de pintura. Na coleta de dados realizada pelo grupo,
utilizaram tecnologia de captação de vídeo e áudio (filmadora), onde o grupo elaborou um
pequeno documentário estruturado por meio de entrevista e registro das atividades realizadas
pelos alunos da APAE nestas oficinas. Segundo relatório apresentado o grupo compreendeu
que
A etnomatemática tem como essência o dia-a-dia essa é a relação entre a
realidade sociocultural e a matemática estar imbutida em cada passo do
nosso cotidiano, os conhecimentos adquiridos nesta pesquisa foram além de
matemáticos, foram conhecimentos socioculturais, do nosso cotidiano, a
diferenciação do modo de ser estudada a matemática.
Quando da apresentação do trabalho em sala, o grupo relatou que os alunos da APAE
não sabem/conhecem os conteúdos que são estudados na escola tradicional, mas que
trabalham com conceitos matemáticos nas suas práticas. Alguns destes conceitos observados
foram: reta (a linha imaginária utilizada para ir de um lado a outro da tela onde está a se fazer
o tapete); unidade de medida (a medida dois dedos corresponde à largura de cada faixa do
tapete); figuras geométricas (pinturas em tela); espaço e plano (tela da pintura);
proporção/figuras semelhantes (reprodução ampliada ou reduzida em tela de um objeto em
tamanho real). Estas observações surgiram durante a apresentação e debate, de modo que
ambos os conhecimentos – dos alunos, do professor e do pesquisador – contribuíram para a
compreensão do conteúdo temático.
O grupo As Exatas investigaram como ocorre a alfabetização matemática –
numeramento – na APAE. Na coleta de dados realizada pelo grupo, utilizou-se de observação,
registro de campo e captação de imagens (fotografias). Deste trabalho o grupo chegou à
conclusão de que
Sendo essencialmente empírica, a compreensão do tema proposto foi obtida
mediante alguns conhecimentos (etno)matemáticos, entre os quais podemos
destacar: a contextualização (aplicação dos conhecimentos matemáticos em
âmbitos diversos); a interdisciplinaridade (ruptura com a fragmentação do
conhecimento, vinculando-o à realidade educacional) e a socialização
(contato direto com a problemática e/ou dificuldades do tema).
Durante a apresentação do trabalho em sala, após uma breve explanação sobre
etnomatemática, o grupo relatou que a aprendizagem na APAE ocorre mediante a percepção, a
repetição constante de informações, a indução de acertos, a interdisciplinaridade. Também foi
discutido sobre acessibilidade, métodos artesanais de ensino, ou seja, os materiais concreto-
pedagógicos são na sua grande maioria artesanais.
O grupo Alfa investigou o caso de um aluno do CEM Paulo Freire que apresenta
deficiência congênita nos membros inferiores, mas que consegue se locomover sem auxílio de
equipamentos. A coleta de dados ocorreu mediante entrevista, sendo a mesma apresentada
para os demais colegas da turma. Durante a apresentação, o grupo focou a discussão na
vivência de uma pessoa com necessidades especiais, considerando principalmente o aspecto
social, ou seja, a relação desta com a sociedade. Como contribuição para o grupo, indicaram
que
[…] nos fez ver como a realidade e a sociedade não aceitam abertamente os
deficientes em seu convívio social, em qualquer lugar ou mesmo na vida
pessoal. Mas que ao mesmo tempo, certas pessoas, muito poucas não veem
nenhum tipo de problema de ter por perto um deficiente tanto porque não são
diferentes de nós, algumas vezes são melhores que muitos.
Com relação aos conhecimentos etnomatemáticos construídos, os conceitos de
distância, trajetória e espaço, assim como questões de acessibilidade e resolução de problemas
foram identificados:
Conhecimentos Etno Matemáticos foram estudados durante o
estudo/investigação do tema foi a de uma distância de um lugar para o outro
que o deficiente tem que passar, pois não é em todos os lugares que ele pode
andar, tem também, por exemplo, uma escada, que é muito difícil de passar,
então cada um tem um jeito próprio de subir ou de descer, mas em outros
casos não podem passar pela escada.
A apresentação do grupo Os Six focou informações gerais sobre inclusão. A dinâmica
da apresentação se deu através de uma exposição de slides contendo imagens e informações
sobre inclusão, de forma alternada, sendo que após isto, o grupo fez uma breve explanação
sobre as informações dos slides.
Quanto à apresentação do grupo βeta, fizeram um breve relato sobre alguns
procedimentos e materiais concreto-pedagógicos utilizados na APAE para o ensino de alunos
com deficiência múltipla, dentre os quais se encontram aqueles com deficiência intelectual
acompanhada de deficiência visual. O grupo verificou que a aprendizagem destes alunos
ocorre com o auxílio do braile, “[...] onde eles conseguem ler com as mãos, e sabem definir o
que está lendo e pegando. [...]”11
.
Sendo a primeira etapa do projeto, algumas dificuldades/problemáticas surgiram
durante o desenvolvimento dos trabalhos. Uma delas foi com relação à própria compreensão
por parte dos professores com relação à sua participação no projeto. Diante da proposta deste
projeto que se apresentou como algo novo, incomum, os professores tiveram dificuldade em
compreender seu papel como orientadores, como representantes da cultura escolar – em
especial da cultura da matemática escolar, cujo conhecimento etnomatemático contribuiria
com o conhecimento etnomatemático dos alunos (e vice-versa) e com a construção,
desconstrução e reconstrução de conhecimento por todos os envolvidos. Tanto que esta
dificuldade refletiu no acompanhamento não constante do grupo a que estavam vinculados.
Isto foi evidenciado pelos próprios professores e também pelos alunos, de modo que em
alguns de seus relatos e também quando da apresentação dos trabalhos, foi perceptível a
necessidade de orientação quanto ao que fazer. Na verdade, esta foi a dificuldade-chave de
ambos, professores e alunos: “O que/como fazer?”, “O que o pesquisador espera que
façamos?”, “Será que estamos fazendo direito?”. Estes foram alguns questionamentos dos
alunos que um dos professores participantes do projeto trouxe para mim após a apresentação
do primeiro grupo (Mazembeiros). Esta ruptura com a forma tradicional de ensinar e
aprender, que considera como conhecimento único e válido a matemática escolar, fez com que
todos, de certa forma, ficassem confusos, devido o próprio deslocamento dos lugares próprios
tanto do professor quanto dos alunos12
.
Dificuldades, situações inesperadas, incertezas, situações que fogem ao controle estão
sujeitas a ocorrer, mas, que também precisam receber do pesquisador a devida atenção e
análise.
11
Transcrição do relatório do grupo. 12
Este deslocamento está tratado no item anterior.
Considerações Finais
Compreender uma teoria em todas as suas nuances não é tarefa fácil. Elaborar e
desenvolver uma proposta de aplicação desta teoria na prática se revela uma tarefa mais
complexa ainda. Buscar manter o controle da relação coerente entre as atividades propostas
com os objetivos, com o referencial teórico que fundamenta o trabalho, com aquilo que se está
a dizer com o que se está a fazer, é uma tarefa árdua. Mas, observei que a cada vivência
realizada (positiva ou não), a cada proposta desenvolvida, propiciaram momentos de reflexão
teórica e prática, buscando compreender melhor a teoria através da prática e, também,
aperfeiçoando esta a partir de uma melhor compreensão da teoria. Entende-se este
aperfeiçoamento como uma aproximação cada vez maior, do ponto de vista qualitativo, entre
a prática e a teoria.
Neste sentido, para o estudo e investigação do segundo tema que se iniciou neste
segundo bimestre/2012, algumas alterações foram necessárias, dada a avaliação tanto dos
professores e alunos, quanto do pesquisador. Dentre elas, a decisão dos professores e alunos
de que apenas mais um tema seria explorado, ao invés de dois como havia sido definido
inicialmente, considerando sempre a realidade escolar que se apresenta. Outra mudança,
apresentada pelo pesquisador, foi quanto aos aspectos temáticos serem definidos pelos
próprios grupos e não mais pelos professores juntamente com o pesquisador. Mas, estas
questões e os resultados finais desta pesquisa serão discutidos e divulgados em trabalhos
futuros.
Desta primeira experiência do projeto Releitura do Cotidiano: um olhar
etnomatemático, considero que é possível desenvolver um trabalho interdisciplinar, mais
ainda, intercultural, de modo que ocorra a construção, desconstrução e reconstrução de
conhecimento por ambas as culturas envolvidas. Os resultados e análise parciais apresentados
podem evidenciar esta possibilidade. Considerar que o professor como orientador, como
representante de uma cultura que não é superior às demais, e que o aluno enquanto
investigador de seu próprio cotidiano local e global, de modo que seus conhecimentos não
sejam vistos como prévios, incompletos, possam desenvolver juntos um trabalho que
extrapola os muros escolares e que concebe a sala de aula como espaço sociocultural, trabalho
este em que se produz conhecimento novo que renova ambos os conhecimentos dos
envolvidos, num intercâmbio cultural pacífico, harmonioso, promovido através de um diálogo
simétrico.
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