FAINC – FACULDADES INTEGRADAS CORAÇÃO DE JESUS
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA – HABILITAÇÃO EM ARTES
CÊNICAS
STANISLAVSKI + BRECHT
AS RELAÇÕES E APLICAÇÕES DOS MÉTODOS EM UMA MONTAGEM TEATRAL
RODRIGO JOSÉ GUERGOLET
SANTO ANDRÉ, 2011
RODRIGO JOSÉ GUERGOLET
STANISLAVSKI + BRECHT
AS RELAÇÕES E APLICAÇÕES DOS MÉTODOS EM UMA MONTAGEM TEATRAL
Trabalho de Conclusão de Curso como
exigência parcial para obtenção de
título de licenciado em Educação
Artística, com habilitação em artes
cênicas. Sob a orientação da Dra.
Daniele Pimenta
Santo André, 2011
BANCA EXAMINADORA
Prof. Valdo Rechelo
______________________
Prof. Fernando Thomaz
______________________
Orientadora: Prof. Dra. Daniele Pimenta
_________________________________________
Agradecimentos
À Doutora Daniele Pimenta pela atenciosa
orientação e conselhos.
À Professora Solange Dias pela
dedicação e direção no processo prático.
Aos meus colegas que me
acompanharam e contribuíram de uma
forma ou de outra em meu processo de
pesquisa
A Milena Del Santo Rosa e minha família
pela paciência e atenção enquanto
escrevia.
“Com o que se ocupa Lady Macbeth no ponto culminante de sua tragédia? Com o mero ato físico de lavar uma mancha de sangue em sua mão”.
Konstantin Stanislavsky
SUMÁRIO
1. Introdução ..................................................................................................... 1
2. Construções de personagens ..................................................................... 5
2.1. Elementos estruturantes ................................................................... 6
2.2. Stanislávski e o método das ações físicas ........................................ 8
2.3. O gesto e a ação segundo Brecht .................................................. 11
2.4. Stanislávski e Brecht, diferentes visões .......................................... 15
3. Relato de Processo: Aplicações Práticas ................................................ 20
3.1. O primeiro contato .......................................................................... 20
3.2. Experimentando o método das ações físicas ................................. 22
3.3. Desconstrução ................................................................................ 23
3.4. Iniciando as idéias de relações brechtianas ................................... 24
3.5. Brecht e Stanislávski ....................................................................... 30
4. Aplicações dos métodos e suas relações com outras técnicas ............ 32
4.1. Dupla Cômica ................................................................................. 32
4.1.1. Commedia dell´arte ........................................................... 33
4.1.2. Palhaços ........................................................................... 34
4.2.. Triangulação .................................................................................. 35
4.3. As inter-relações ............................................................................. 37
4.4. Stanislavski + Brecht ...................................................................... 38
4.4.1. O método das ações físicas e o gestus ............................. 43
5. Conclusão ................................................................................................... 53
Referências Bibliográficas ............................................................................ 59
6. Anexos ........................................................................................................ 61
6.1. Texto: Sacra Folia de Luiz Alberto de Abreu .................................. 61
RESUMO
O principal objetivo da presente pesquisa é registrar e compreender a
trajetória do processo teatral de “SACRA FOLIA”, mais especificamente na
composição da personagem, Matias Cão, assim como compreender e
aprofundar as técnicas utilizadas nos métodos dos mais consistentes teóricos
do teatro, Konstantin Stanislavski e Bertold Brecht.
Na primeira parte veremos os elementos que estruturam a composição
de uma personagem. Posteriormente veremos como Stanislavski estrutura as
ações físicas em seu método das ações físicas, seguido do mesmo conceito
estruturado por Brecht, com uma visão diferente do mestre russo, mais focada
em questões didáticas e políticas, precedido por uma análise das diferentes
visões de ambos os teóricos.
O processo da montagem é relatado calcado nas teorias apresentadas,
sendo organizado de forma que os dois métodos pudessem se relacionar,
levando em conta que os teóricos em questão (Stanislavski e Brecht) são vistos
como opostos.
1-INTRODUÇÃO
Há muito tempo venho fazendo reflexões sobre a arte em várias de suas
linguagens, e observando que os principais termos utilizados são “conceito
artístico” e “composição”. A grande questão é o que significam realmente estas
palavras?
O principal elemento para a arte contemporânea, em todas as vertentes,
artísticas é o conceito, que segundo o dicionário1 é:
“1 Aquilo que o espírito concebe ou entende; ideia;
noção. 2 Expressão sintética. 3 Símbolo, síntese. 4 A mente,
o entendimento, o juízo. 5 Reputação. 6 Consideração.
7 Opinião. 8 Dito engenhoso; máxima, sentença. 9 Conteúdo
de uma proposição; moralidade de um conto. 10 Parte de uma
charada em que se define a palavra
inteira. 11 Sociológico: Termo que designa uma classe de
fenômenos observados ou observáveis. 12 Lógico: A ideia,
enquanto abstrata e geral”.
Ou seja, a opinião que temos sobre algo ou alguma coisa, e que na obra de
arte deve estar presente impreterivelmente, mesmo que o conceito seja não ter
conceito algum.
Para entender o uso do conceito e quem é o autor da obra (seja cênica,
plástica ou musical), é necessário observar as diferenças entre obras e materiais,
por exemplo, nas artes plásticas o artista usa seus materiais e suportes para
compor uma obra e comunicar um conceito. Assim, Pablo Picasso em sua obra
“Guernica”, usou diversos materiais para composição das figuras/imagens
pintadas, a quem quisesse ver, o horror e as deformações que a segunda guerra
mundial significava para ele. Usou tinta e técnica para transpor um conceito, uma
ideia.
Já na dança, área de minha experiência, nota-se que muitas vezes o artista
que constrói o conceito e produz a obra é o coreógrafo, e os bailarinos acabam
1 http://michaelis.uol.com.br/ acessado no dia 14/02/2011
2
sendo apenas instrumentos da criatividade de outro. Uso como exemplo os balés
de repertório como "bodas de Aurora”, o qual conta a história da “Bela
adormecida”. Este balé foi criado em 1890 pelo coreógrafo Marius Petipa, em
parceria com o compositor Peter Ilich Tchaikovsky, e vem sendo readaptado e
reproduzido no passar dos anos até os dias atuais. Neste caso, no que concerne
à dança, o artista e compositor é Marius Petipa e os bailarinos são instrumentos
da sua obra.
No início dos estudos em teatro percebi que, em muitos lugares, o teatro
seguia pelo mesmo caminho, sendo então, o diretor e o dramaturgo os
compositores, fazendo dos atores instrumentos da obra.
Atualmente podemos ver muitos grupos usando novos métodos de
interpretação e montagem, nos quais o ator se torna compositor ativo da obra. O
presente trabalho, com suporte nos mais significativos teóricos do teatro,
Konstantin Stanislavski e Berthold Brecht, visa traçar o processo de composição
de uma personagem, na montagem de uma peça.
Há um pensamento comum de que o ator “incorpora” a personagem, por
meio da memória emotiva, ou do estudo minucioso da psicologia da personagem,
todavia, nas teorias teatrais nota-se que o teatro é técnico, o ator em cena não “é”
e nem se sente como a personagem, e sim deve usar técnicas corporais e vocais
para compor sua personagem, não deixando de ser o ator, mas sim, comunicando
o que deseja.
Segundo Stanislavski, no livro “A criação de um papel”, seu professor
Tórstov alegou que “qualquer que seja o papel interpretado por um ator, ele deve
sempre atuar por própria conta, sob sua própria responsabilidade (...) sentimentos
vivos, só o próprio ator pode dar a personagem (STANISLAVSKI, 1984: 228)”.
Todavia, em que momento da montagem de um espetáculo teatral o ator
se torna artista, sendo este termo aqui usado como aquele que concebe a obra?
Quando o ator deixa de ser ferramenta de trabalho do diretor e do autor da peça?
É apenas em trabalhos ligados ao improviso que o ator compõe a comunicação
geral da obra?
3
Todas estas questões levaram a um questionamento principal: em quais
momentos e por que o ator utiliza suas experiências pessoais e criatividade na
personagem, impondo sua marca “pessoal” na obra?
É neste questionamento que se calca o estudo das minhas escolhas, como
ator, para a personagem de um texto já pré-definido, com base em teorias de
interpretação e construção de personagem.
Conforme afirma BERTHOLD (2010:01) “O teatro é tão velho quanto a
humanidade. Existem formas primitivas desde os primórdios do homem”, mas só
veio a ter regras e técnicas escritas no ocidente com os gregos, passando por
diversas modificações e revoluções no passar dos anos, sendo profundamente
estudada por diversos teóricos, em diferentes períodos do tempo.
Podemos citar nomes como Stanislavski, Grotowsky, Eugenio Barba,
Bertold Brecht, entre outros que estudaram profundamente a criação e construção
de uma personagem que mais condizia com os conceitos necessários para
fundamentar as ideias que difundiram no período em que viveram e,
normalmente, se contrapondo aos movimentos teatrais correntes do mesmo,
procurando novas formas de comunicar-se por meio do teatro. Assim como
também temos teóricos mais específicos em determinadas áreas, como Laban,
Delsarte e Dalcroze, que focaram seus trabalhos em outros termos (gestos
expressivos, codificação e ampliação da poética corporal e ritmo musical e teatral,
respectivamente).
Levando em consideração estas variáveis, é possível afirmar que na
construção da personagem o ator seja capaz de controlar as técnicas de
interpretação e composição de que tem conhecimento, incluindo também neste
processo criativo suas experiências pessoais (memória emotiva, memória
sinestésica e memória visual) por diferentes experimentações na mesma obra.
Diante de tantas técnicas diferentes, e das novas pesquisas relacionadas à
composição da personagem, assim como a toda arte teatral, qual o caminho que
o ator pode percorrer para compor seu personagem e expressar o que deseja por
meio da interpretação?
No presente trabalho serão analisadas técnicas especificas de composição
de personagem, bem como livros referentes a técnicas de encenação. Valendo-se
4
destes conhecimentos, pretende-se estabelecer relações entre essas técnicas em
um processo de montagem teatral no qual o ator-pesquisador interpretará a
personagem Mathias Cão do texto “Sacra Folia” (ABREU, 1996), identificando
dois aspectos relevantes. O primeiro refere-se aos tipos de escolhas feitas pelo
ator, embasadas puramente em técnicas dos teóricos Brecht e Stanislavski. E,
posteriormente, reconhecer as escolhas influenciadas pela experiência cênica e
sua própria história pessoal. Com isso, faz-se necessário estabelecer maneiras
pertinentes para potencializar essa composição, estabelecendo relações
significativas entre os dois planos.
5
2. CONSTRUÇÕES DE PERSONAGENS
No estudo acadêmico e prático do teatro ouvimos constantemente o termo
“construção da personagem”, e outros termos semelhantes como “apropriação do
papel” e “laboratório”. Até mesmo para pessoas não inseridas no universo teatral
estes termos parecem comuns, principalmente após a popularização da televisão
e do cinema.
A obra de arte produzida na linguagem cênica tem como principal elemento
“a personagem”, termo este que já deixa implícito, no senso comum, o ator
“fingindo” ser outra pessoa baseando-se em um texto, em seu corpo e voz. No
entanto há outros elementos que constituem a obra teatral, música, iluminação,
espaço cênico, cenografia, entre outros. Há também obras teatrais sem estes
elementos, e quando isto acontece, a opção faz parte da linguagem do trabalho,
porém toda obra teatral deve possuir personagem, mesmo que este seja
representado por bonecos, sombras, feixes de luz, objetos etc. e não
necessariamente por um ator.
Existe uma gama de teóricos, que discorrem sobre como construir uma
personagem, como Konstantin Stanislavski, Bertold Brecht, Eugenio Barba,
Éttienne Decroux e Meierhold, os quais, apesar de não serem análogos em seus
trabalhos, contribuíram imensamente para o trabalho do ator, como também
muitos que colaboraram para o teatro mesmo pertencendo a outras vertentes
artísticas como, por exemplo, Rudolf Laban, Pina Bausch, Isadora Duncan, entre
outros.
Quando BRECHT (1987:135) discorre sobre as transformações de sua
época e as mudanças na sociedade, a qual é fruto de uma geração científica, ele
questiona qual será a atitude dessa nova geração em relação à natureza e à
sociedade, quanto à criação teatral e, então, afirma que:
“Essa atitude é de natureza crítica. Perante um rio, ela
consiste em regularizar seu curso; perante uma árvore
frutífera, em enxertá-la; perante a locomoção, em construir
6
veículos de terra e de ar; perante a sociedade, em fazer uma
revolução.”
Assim como Brecht, estes teóricos citados procuravam uma mudança no
seu campo de atuação, o teatro, e nesta linha focaram suas pesquisas para
encontrar um teatro que, naquele período, seria mais verdadeiro segundo as suas
convicções, criando técnicas e teorias utilizadas até hoje pelos mais diversos
grupos de teatro, estudantes e teóricos contemporâneos, como BONFITTO (2009:
xx) que diz na introdução de seu livro “O ator-compositor”:
“Parece-me importante o desenvolvimento de uma reflexão
que aborda questões técnicas sobre o ator, a partir do
aprofundamento do conceito de ação física. A busca de
reconhecimento e sistematização do percurso que envolve tal
conceito (...).”
A personagem é o elemento principal da encenação, então, para que o
espetáculo tenha uma qualidade técnica apurada é necessária uma boa
composição de cada personagem, tendo em vista que no teatro todas as
personagens podem exprimir um ou mais conceitos (no sentido de opinião ou
ideia como citado na introdução) enriquecendo artisticamente o espetáculo.
2.1. ELEMENTOS ESTRUTURANTES
Segundo Matteo Bonfitto no livro “O ator compositor” há uma série de
elementos que possibilitam o ator a compor, não só uma personagem, mas
também todas as ações desta personagem no trabalho cênico. Quando citamos
elementos estruturantes, nos referimos aos elementos que estruturam a
composição do ator em cena, quanto à montagem da personagem.
7
Para possibilitar a composição da obra, devem-se observar alguns
parâmetros importantes. Assim como os artistas plásticos, os músicos e os
bailarinos necessitam de materiais para compor suas obras (pincéis, instrumentos
musicais e sapatilhas, por exemplo) e dominá-los com maestria, o ator deve
conhecer e estar atento a todas as possibilidades do corpo, que é seu primeiro
material de trabalho e o mais importante. O autor afirma que com o corpo
(material primário) o ator pode acionar o material secundário (ação física) e o
terciário (ritmo e aspecto ético).
“(...) o corpo entendido como unidade psicofísica, pode ser
definido como material primário, pois é nele que os materiais
secundários e terciários estão contidos, e será sobre ele que
tais materiais atuarão; a ação física será o material
secundário (...) o ritmo e o aspecto ético são aqui
classificados como materiais terciários, pois são
procedimentos e/ou elementos constitutivos da ação física (...)
(BONFITTO, 2009: 20)”
Assim podemos analisar o corpo como elemento principal, e verificar as
escolhas do ator observando quais técnicas se adequam mais a sua composição,
considerando os vários teóricos que contribuíram para o desenvolvimento do ator
em cena, partindo desses materiais e elementos.
Os materiais que estruturam o trabalho do ator para compor sua
personagem são o corpo, a ação, o ritmo e o aspecto ético, como observado no
trabalho de Bonfitto (calcado em diversos teóricos).
O corpo é o principal elemento para a composição da personagem já que é
seu principal material em cena (entende-se corpo como todos os aspectos físicos,
incluindo a voz), seguido da ação física movimentando o corpo e dando sentido
para o mesmo. Contribuindo para o desenvolvimento da ação física há o “ritmo”
conceito este inserido no universo teatral com um sentido de andamento da obra,
o ator pode pensar antes de efetuar uma ação por minutos ou, como na comédia
popular, desenvolver todas as ações de forma rápida. Há também um aspecto
8
ético que, segundo BONFITTO (2009:13), é profundamente ligado a dedicação do
ator com o trabalho, bom professores, respeito e amor a sua arte, referências
estas buscadas no teatro japonês, mais especificamente no Kandensho2.
Todos estes materiais se relacionam com os outros elementos na cena
como música, o espaço, o figurino, a iluminação e até a palavra.
O conceito de ação física pode ser divergente entre os teóricos e por este
motivo BONFITTO (2009:10) afirma que há diversas maneiras de se definir a
palavra e o conceito de ação física, no entanto preferiu se calcar (assim como no
presente trabalho), na ideia de STANISLAVSKI, que melhor traduz o conceito
como um elemento de estruturação para a composição da personagem,
pensando exclusivamente no trabalho do ator.
Vale lembrar que o método das ações físicas de STANISLAVSKI integra
diversos fatores corporais como forma, ritmo e voz, sendo que não será o único
teórico utilizado neste estudo.
2.2. STANISLAVSKI E O MÉTODO DAS AÇÕES FÍSICAS
Stanislavski3, em sua trajetória, partiu dos moldes já estabelecidos de sua
época e culminou no desenvolvimento de uma técnica própria utilizada
freqüentemente por diversos grupos. Sua inquietação com os padrões
estabelecidos, assim como o encontro com Dântchenko4, resultaram na fundação
escola do “Teatro de Arte (ou Artístico) de Moscou”, lugar onde, livre para
pesquisar, iniciou suas experimentações.
2 O livro da transmissão da flor, uma espécie de manual para mestres e atores japoneses.
3 Konstantin Siergueieivitch Alexeiev (adaptação do russo) conhecido também como Konstantin
Stanislavski (1863 – 1938), desenvolveu um método de composição de personagem e interpretação descritos em diversos livros como, Minha Vida na Arte (1989), A Construção da Personagem (1970), A Preparação do Ator (1964), entre outros. 4 Vladimir Ivânovitch Niemiróvitch-Dântchenko (adaptação do russo) conhecido somente como
Dânchenko (1858 – 1943), foi um grande colaborador de Stanislávski, juntos fundaram o “Teatro de Arte de Moscou”, depois da saída de Stanislávski Dânchenko fundou uma escola que continua ativa até os dias de hoje.
9
O mestre Russo começa a criar suas técnicas desenvolvendo a linha de
forças motivas, que para ele tinha como base três conceitos para a criação das
personagens: o sentimento, a mente e a vontade. O mestre Russo acreditava que
o trabalho do ator deveria partir de dentro pra fora, ou seja, do sentimento que era
despertado por meio da memória emotiva.
A memória emotiva é baseada em experiências pessoais para referenciar
os sentimentos ou emoções buscados, ou seja, o ator utiliza seu repertório
pessoal de sensações e emoções para “emprestá-las” à personagem na
comunicação com o público. Com o decorrer do tempo este método de
Stanislavski foi se desenvolvendo até resultar no método das ações físicas.
O mestre Russo passou a ter novas experiências, como no Estúdio de
Ópera do Teatro Bolshoi, quando teve contato com atores cantores, acentuando
assim a importância do ritmo, citada por Dalcroze (músico que desenvolveu uma
didática focada em ritmo). Amadurecendo essa ideia do ritmo, Stanislavski a
aplicou em suas experiências, chegando a um novo método. BONFITTO
(2009:24) afirma que “a partir da experiência com o estúdio Ópera, Stanislavski
iniciará a formulação do método das ações físicas, termo plenamente utilizado
durante a montagem de Tartufo, de Molière”. O desenvolvimento deste método se
deu a partir do momento em que Stanislavski percebeu a importância do
movimento na atuação.
“A atriz que interpreta Lady MacBeth deve se ocupar e se
deixar estimular pela execução do ato de lavar-se. Nesse
sentido, ela não deve buscar emocionar-se, mas sim
concentrar-se em como lavará as mão, podendo variar e
experimentar várias possibilidades de combinação entre
alguns elementos constitutivos dessa ação física: o ritmo com
o qual executa a ação pode variar internamente ao lento-
veloz, a intensidade com a qual uma mão toca a outra pode
ser constante ou variar internamente ao fraco-forte”
(Stanislávski apud BONFITTO, 2009:26).
10
Ao fazer isto a atriz em questão usa essa ação física variada para acionar
internamente um sentimento que transparece na comunicação com o público,
tendo em vista que se ela lavar sua mão utilizando uma ação lenta e fraca, seu
corpo, assim como seu rosto e voz, vai formar-se na visão da plateia com uma
aparência de tristeza, já se a ação é forte e veloz vai estabelecer-se uma
sensação de raiva, ódio ou angústia. Segundo BONFITTO (2009:26) Stanislavski
disse em seu livro “Manual do ator”: “Com que se ocupa Lady MacBeth no ponto
culminante de sua tragédia? Com o mero ato físico de lavar uma mancha de
sangue em sua mão.”
No livro “A criação de um papel” Stanislavski utiliza a narrativa para contar
alguns processos teatrais de sua carreira, havendo um capítulo especifico para a
criação da vida física de um papel, narrando como o seu mestre Tórtstov fazia em
seus ensaios, especificamente seus diferentes métodos, no tempo em que
Konstantin ainda era um simples estudante de teatro.
“Prosseguindo em nossa busca de uma forma direta, material,
intuitiva, de abordar inteiramente uma peça e um papel –
disse Tórtstov – Vamos deparar com um novo e inesperado
método, que recomendo à atenção de vocês. O seu sistema
baseia-se na estreita relação das qualidades interiores com as
exteriores, pretende ajudá-los a sentir o papel, criando uma
vida física pra ele (STANISLAVSKI, 1984:145)”
A personagem, para uma construção eficiente, segundo Tórtstov, deve ter
uma vida física e psíquica, que como veremos posteriormente acaba fazendo
parte, ou mesmo sendo uma reação destas duas estruturações, sendo assim,
pediu que os alunos fizessem um improviso (o que na época era incomum) da
peça Otelo de Willian Shakespeare.
Seus alunos, inclusive Stanislavski, ficaram atônitos diante da proposta,
questionando a superficialidade da interpretação sem texto e, nesse momento,
segundo STANISLAVSKI (1984:146) seu mestre respondeu: “A coisa mais difícil
11
de fazer, talvez, é executar os objetivos físicos mais simples, como o faria um ser
humano de verdade”.
Após essa lição os alunos tentam, com esforço, executar as ações, sempre
sem sucesso, quando Tórtstov afirma que os atores têm que ser também seus
próprios diretores para encontrar uma verdade em seus papéis, e, quando isto for
feito, encontrarão ações físicas reais que resultarão em ações psicológicas e,
conseqüentemente, em uma personagem real física e psicologicamente. Vale
lembrar que esse livro foi escrito antes da estruturação do método das ações
físicas, desenvolvido em 1938, próximo à morte do mestre russo. BONFITTO
(2009:24)
2.3. O GESTO E A AÇÃO SEGUNDO BRECHT
Podemos afirmar que Brecht e Stanislavski são os mais comentados entre
todos os teóricos do teatro, e por isso os mais significativos, tendo em vista que
ambos criaram métodos de interpretação consistentes que são utilizados em
diversas escolas até os dias atuais.
Devemos levar em consideração os períodos em que viveram ambos os
teóricos e suas implicações: enquanto Stanislavski vivia em um período de
reestruturação do teatro, Brecht já tinha o mestre russo como referência, em um
período em que o mundo estava na iminência de uma guerra, pois Bertold Brecht
é alemão e viveu no desenvolvimento do Nazismo, refugiando-se em diversos
países para evitar a guerra.
Há um texto de Brecht, para rádio, chamado “O Voô sobre o oceano”, que
o autor escreveu em honra do piloto alemão Lindbergh, que viajou sobre o
oceano, façanha esta inédita até então.
O texto hoje é encontrado com uma carta de liberação dos direitos autorais,
desde que quem o utilize substitua, em todo o texto, o nome do piloto por “O
aviador”, isto porque Lindbergh foi um piloto nazista alguns anos depois de sua
façanha, o que mostra a posição política e humanista do mestre alemão.
12
Mesmo naquele momento acreditava que o teatro tinha uma função
principal, o divertimento.
“O teatro consiste na apresentação de imagens vivas de
acontecimentos passados no mundo dos homens que são
reproduzidos ou que foram, simplesmente, imaginados; o
objetivo dessa apresentação é divertir. Será sempre com esse
sentido que empregaremos o termo, tanto ao falarmos do
teatro antigo como do moderno. (BRECHT, 1978:127)”
Mesmo quando o teatro atinge uma função de conscientização social ou
conscientização do próprio sentimento do espectador, sua função ainda é divertir,
no momento em que o teatro deixa de atingir este propósito, deixa de ser teatro
para Brecht, autor este que escreveu muitas peças de fundo didático (entendendo
didático como aperfeiçoamento de um pensamento crítico). Apesar de diversão,
na nossa cultura, ser relacionada ao riso ou à alegria, divertimento é relacionado
mais amplamente a algo que dê prazer, o que, para Brecht, também inclui a
busca pelo conhecimento e a reflexão sobre qualquer assunto. Entretenimento,
em geral, diverte os homens, sendo assim, mesmo uma conversa, uma piada ou
uma reflexão profunda, já valem como entretenimento.
Há uma discussão corrente entre as diferenças entre os métodos
stanislavskiano e brechtiano, alegando de forma incisiva que o primeiro método
trata do interior do ator, e o segundo do exterior, como elemento de composição,
porém é correto afirmar que, quando se trata do método das ações físicas e do
conceito de gestus de Brecht, a diferença está na relação entre as personagens.
Diferente do que se pensa Brecht não era contrário a Stanislavski, ao menos não
de todas as formas e em todas as conceituações.
“As ações físicas – para usar o termo de Stanislavski – não
servem somente para construir realisticamente o papel:
tornam-se o ponto de orientação essencial para o papel [...]
Isso deve ser pensado e estudado em profundidade porque
13
se trata de um passo absolutamente essencial. (Brecht apud
BONFITTO, 2009:68)
O ator produz o “gesto social” ou “gestus”, e este recurso pode ser usado
para produzir um efeito de estranhamento do ator para com a personagem,
utilizando para isto também as relações entre os homens, e por isso também
definido “gesto social”. Enquanto para Stanislavski as ações físicas são utilizadas
para qualquer tipo de gesticulação, para Brecht o gesto social é usado para
comunicar algo relevante para peça, sendo que esta diferença se torna importante
como conceito. BONFITTO (2009:65)
Não faz parte do gestus olhar para a plateia, porém olhar para a plateia ou
para outra personagem procurando um olhar raivoso ou de pessoa miserável, já
que isto mostra uma diferença no estado da personagem causada por um evento
exterior a ele, seja outra personagem ou por uma seqüência de acontecimentos.
Por este motivo Brecht define o gestus não apenas como a relação de uma
personagem com a outra e sim para com todos os elementos da peça, pode haver
um gestus da música, da cenografia, do texto, entre todas as outras coisas que
podem compor uma peça teatral.
A tradução de Fiama Pais Brandão do livro “Estudos sobre teatro”, de
Brecht, citado abaixo, não emprega o termo gestus, utilizado para falar sobre
gesto para o mestre alemão, como fazem diversos teóricos que falam sobre o
assunto e diferenciam o gesto (para Brecht, gesticulação) e gestus (ação física
que embute um discurso ou posicionamento em relação a outros elementos da
peça ou personagens). No entanto, a explicação de Brecht, abaixo transcrita
segundo a tradução de Pais, define bem o termo:
“Chamamos de esfera do gesto, aquelas a que pertencem as
atitudes que as personagens assumem em relação umas às
outras. A posição do corpo, a entonação e a expressão
fisionômica são determinadas por um gesto social; as
personagens injuriam-se mutuamente, cumprimentam-se,
instruem-se mutuamente, etc. Às atitudes tomadas de homem
14
para homem pertencem, mesmo, as que, na aparência são
absolutamente privadas, tal como a exteriorização da dor
física (...). A exteriorização do “gesto” é, na maior parte das
vezes, verdadeiramente complexa e contraditória, de modo
que não é possível transmiti-la numa única palavra; o ator,
nesse caso, ao efetuar uma representação necessariamente
reforçada, terá de fazê-lo cuidadosamente, de forma a nada
perder e a reforçar, pelo contrário, todo o complexo
expressivo. (BRECHT, 1978:155)”
Para o artista Alemão o ator deveria ter, em um primeiro momento,
impressões iniciais e superficiais sobre a personagem a ser trabalhada, usando
essas impressões para levantar suas dúvidas e reconhecer as contradições e
características. No segundo momento o ator deveria se aprofundar no estudo da
personagem, procurando identificações e estranhamentos, passando para a
última fase de composição que é o distanciamento, em que o ator procura ver a
personagem como a sociedade, o público e os outros atores a veem, usando as
dúvidas e os reconhecimentos como ferramentas para a produção do gestus.
(BONFITTO, 2009:65).
Podemos afirmar que, para o mestre alemão, o gesto informa a ação, ou
seja, para Brecht a ação física é tão importante quanto para Stanislavski, é
essencial em ambos os estudos, sendo que podemos afirmar que, apesar de os
conceitos propriamente serem diferentes, os métodos podem se complementar
em um trabalho mais aprofundado do ator, deixando a composição, tanto da
personagem quanto da cena, mais equilibradas técnica e emocionalmente.
“O ator não é frio, ele também manifesta sentimentos, mas não
necessariamente os mesmos das personagens (Brecht apud BONFITTO,
2009:66).”
2.4. STANISLAVSKI E BRECHT, DIFERENTES VISÕES.
15
Há uma discussão corrente entre teóricos do teatro e entre grupos que
utilizam diferentes linguagens, em relação as técnicas desenvolvidas por
Konstantin Stanislavski (1863 – 1938) e pelo alemão Bertold Brecht (1898 –
1956), contemporâneos por 40 anos, sendo Stanislavski 35 anos mais velho que
Brecht. Nesta parte do trabalho vou mostrar as relações e diferenças entre ambos
os teóricos.
Como já citado anteriormente (em 2.3) Brecht afirma que as ações físicas
de Stanislavski deviam ser amplamente estudadas. Nas escolas e grupos de
teatro há uma comparação, assim como em vídeos5 e debates que afirmam que
estes teóricos são opostos. Mas é correto fazer esta afirmação? Até que ponto um
não influenciou o outro? Principalmente quanto Stanislavski influenciou Brecht, já
que este iniciou seu campo de pesquisas (no Teatro de Arte de Moscou) um ano
antes do nascimento do mestre Alemão.
Em seus escritos, como em “A criação de um papel”, Stanislavski mostra
fases da composição da personagem, sob seu ponto de vista, e tais fases se
aproximam imensamente das fases no trabalho de Brecht.
Para o mestre alemão, como vimos, o ator deveria obter, em primeiro lugar,
os registros das primeiras impressões, na primeira leitura e no primeiro ensaio,
em seguida, em um segundo momento, deveria se aprofundar na personagem
buscando identificações e estranhamentos com suas experiências pessoais e, por
último, usar todos esses elementos para o desenvolvimento do gestus, por meio
de um distanciamento, procurando entender como o público, os outros atores e a
sociedade irão ver a sua personagem.
Stanislavski afirma que as primeiras impressões têm, também, uma
importância essencial para o desenvolvimento da composição da personagem,
como veremos a seguir:
“As primeiras impressões têm um frescor virginal. São os
melhores estímulos possíveis para o entusiasmo e o fervor
artístico, duas condições de enorme importância no processo
5 Oficinas Culturais na TV – Teatro, Produzido pela TV Cultura, São Paulo, 1994
16
criador. (...) As primeiras impressões são... sementes. Sejam
quais forem as variações e alterações que o ator possa fazer
à medida que avança em seu trabalho, ele muitas vezes é tão
atraído pelo profundo efeito de suas primeiras impressões,
que quer se apegar ao papel, como este se desenvolve. (...)
Como, na linguagem do ator, conhecer é sinônimo de sentir,
ele, na primeira leitura de uma peça, deve dar rédeas soltas
às suas emoções criadoras.” (STANISLAVSKI, 1984:20,21)
Esta passagem é o primeiro capitulo do livro “A Criação de um Papel”, que
é seguido por uma análise do papel, designado pelo mestre russo como o
segundo passo.
Brecht afirma que o ator deveria, no segundo momento focar seu trabalho
em uma pesquisa para se aprofundar no papel. Para isso deveria analisar cada
ponto e cena de sua personagem, procurando entendê-la profundamente e
descobrir em que momento há identificações e estranhamentos com ela, em
todos os seus aspectos.
Muito semelhante com a procura de Stanislavski por uma análise do papel,
separando em estudo das circunstâncias externas da personagem, dar vida as
circunstâncias externas, criação das circunstâncias interiores e uma avaliação dos
fatos, o que nada mais é do que um aprofundamento do papel.
“O segundo passo, nesse grande período preparatório, é o
processo de análise. Pela análise o ator passa a conhecer
melhor o seu papel. A análise é, também, um meio de
familiarizar-se com a peça toda, pelo estudo das suas partes.
Como num trabalho de restauração, a análise calcula o todo
fazendo viver vários dos seus segmentos.
A palavra análise tem, geralmente, uma conotação de
processo intelectual. (...) em arte o sentimento é que cria (...)”
(STANISLAVSKI, 1984:24)
17
Segundo estas citações, os processos dos dois teóricos são similares em
diversos aspectos, obviamente existem discordâncias entre os dois mestres do
teatro, porém isto se deve mais às diferenças quanto ao objetivo cênico e
comunicativo do espetáculo.
Segundo Iná Camargo Costa, Brecht não tinha problema algum com o
método de Stanislavski e todo o seu trabalho, e até mesmo afirma que o mestre
alemão foi assistir à montagem dirigida por Stanislavski de “Corações ardentes”
de Ostrovski, em 1955 (o espetáculo foi montado originalmente em 1926) e achou
que o espetáculo manifestava toda a grandeza do mestre russo. Isto ocorreu
quando Brecht ostentava 57 anos, e Stanislavski, ao dirigir a peça, tinha 63 anos.
Iná Camargo Costa afirma também que:
“Dentre as referências a Stanislavski datadas por Brecht, uma
das mais recuadas é de 12 de setembro de 1938, em seu
Diário de trabalho (1973). Ali Brecht registra que num jornal
alemão editado em Moscou, o Deutsche Zentral-Zeitung, o
culto a Stanislavski (cujo cadáver nem esfriou) vai de vento
em popa. Polemizando com seus sacerdotes, aos quais
chama de murxistas6, Brecht observa que no “método” a
razão não é suprimida – longe disso, é um mecanismo de
controle. Por exemplo, quando Stanislavski pede a um ator
que a expressão seja justificada, ele quer ver a razão no
palco. (...)
O maior interesse desta entrada do diário é a clara
demonstração de que o problema de Brecht não é
Stanislavski propriamente dito, mas a mistificação que teve
início quando da adoção do realismo socialista como palavra
de ordem stalinista para as artes em 1934, programa no qual,
no âmbito da encenação teatral, coube a Stanislavski, malgré
lui même, o papel de profeta, por assim dizer. Note-se,
entretanto, que as „sagradas escrituras‟ dessa religião só
6 Esse termo é um trocadilho com a palavra alemã murksen, que significa trabalhar mal.
18
começaram a ser publicadas quando o culto já entrava em
declínio até mesmo no âmbito oficial, não propriamente por
acaso.”7
O que deixa claro o problema de Brecht com o realismo socialista imposto
por Stalin e não a Stanislavski propriamente dito. Podemos citar mais algumas
frases de Brecht a favor de Stanislavski, principalmente quando se trata do
método e da eficácia do realismo, do método das ações físicas e do súper
objetivo de Stanislavski, assim como muitas outras em que Brecht afirma que o
fanatismo por Stanislavski é prejudicial ao teatro, ou que deveriam estudá-lo com
mais afinco e organização, no entanto deixemos essas citações para identificar as
diferenças reais entre os dois teóricos.
É claro que mesmo com as similaridades mostradas entre os métodos e
pensamentos dos dois teóricos, existem diferenças em seus métodos e técnicas,
já que, como citado, eles buscavam um objetivo diferente em seus próprios
trabalhos. O gestus, o distanciamento, são técnicas Brechtianas, assim como o
método das ações físicas, a linha de forças motivas, são meios Stanislavskianos.
No entanto, afora estas questões, a maior diferença talvez seja que
Stanislavski buscava uma renovação cênica quanto aos métodos utilizados até
então, os quais resultavam em gestos estereotipados e pouca aproximação com a
realidade, procurando também envolver os compromissos éticos, culturais e
nacionais de seu país. Já Brecht buscava entreter o público por meio da reflexão,
buscando temas principalmente sociais, como podemos ver nas obras
dramatúrgicas do mestre alemão.
Para Stanislavski o realismo era o principal foco, enquanto, para Brecht
este era apenas um caminho para a reflexão.
Como ficou entendido, Brecht acreditava no método de Stanislavski,
principalmente quando se trata do método das ações físicas, usando-o como um
complemento de seu próprio método. Pouco se sabe da opinião do mestre russo
quanto ao mestre alemão, considerando que aquele faleceu 18 anos antes de
7 COSTA (2002:53,54)
19
Brecht e diminuiu suas atividades 10 anos antes de sua morte, em decorrência de
um ataque cardíaco8, tendo Brecht, então, apenas 30 anos.
“O que Brecht apontou como possível complementaridade
entre o seu sistema e o de Stanislavski, em relação ao
trabalho do ator, aparece para quem trabalha com
dramaturgia numa simples superposição das análises que
ambos fizeram do Otelo de Shakespeare. Detalhe decisivo:
Brecht tomou a de Stanislavski como ponto de partida.”
(COSTA, 2002:58)
8 COSTA (2002:50)
20
3. RELATO DE PROCESSO: APLICAÇÕES PRÁTICAS
Assim como citado na introdução, este trabalho tem como etapa prática a
montagem do espetáculo “Sacra-Folia”, com texto escrito por Luís Alberto de
Abreu, sob direção da Prof. Ms. Solange Dias9 e auxilio técnico, vocal e corporal
da Prof. Dra. Daniele Pimenta10. A peça foi apresentada nos dias 2, 3, 4, 6 e 7 de
junho de 2011 pelos alunos do 7º semestre de Artes Cênicas das Faculdades
Integradas Coração de Jesus (FAINC).
Neste momento do trabalho serão relatados os estudos e reflexões feitos
durante o desenvolvimento do processo criativo de montagem da peça “Sacra
Folia”, frisando os aspectos pertinentes a este trabalho.
Vale lembrar que o dramaturgo desta peça, Luís Alberto de Abreu, tem
características próprias de escrita que influem muito na atuação e na composição
da personagem, sua maneira de escrever sugere como o papel pode ser
composto por meio de rubricas, diálogos nas cenas e até mesmo na acentuação
como pode ver no texto em anexo11.
3.1. O PRIMEIRO CONTATO
No início dos ensaios muita coisa foi discutida e definida, como linguagem
dramática, linha cenográfica e de figurino, assim como alguns elementos
importantes para a composição da personagem.
Como primeiros parâmetros, excluindo o texto em si, os atores
(principalmente os responsáveis por Matias Cão e João Teité) foram instruídos a
9 Professora dos cursos de Licenciatura em Educação Artística, habilitação em Artes Cênicas e da
Pós-graduação em Teatro nas “Faculdades Integradas Coração de Jesus”, e diretora do “Teatro da Conspiração”. 10
Professora dos cursos de Licenciatura em Educação Artística, habilitação em Artes Cênicas e da Pós-graduação em Teatro nas “Faculdades Integradas Coração de Jesus”, além de atriz e diretora da “Cia PICNIC de Teatro” 11
(vide texto anexo)
21
não caracterizar o sotaque a ponto de torná-los “clichê”, levando em consideração
que as duas personagens são nordestina e mineira, respectivamente.
Já no ensaio do dia 15 de fevereiro de 2011 foi definido o local das
apresentações (uma creche com rampas, elevações e escadas), definindo
também que a peça teria um momento processional12 e outro frontal. No primeiro,
o público teria de se locomover de um local para outro (espaços bastante
próximos) para ver as cenas, já na parte frontal os espectadores se posicionariam
em um espaço preparado para tal e assistiriam as cenas como se estas fossem
apresentadas em palco italiano.
A explicação de todo o processo é apenas porque isto contribuiu muito na
composição da personagem estudada (Matias Cão), e para todas as
personagens. A topografia do espaço cênico, assim como as condições da
estrutura dramatúrgica, influem diretamente nas ações físicas das cenas e,
conseqüentemente, nas personagens.
A tentativa inicial era fazer a personagem de forma intuitiva, com as
informações já estabelecidas, para começar um domínio do ritmo pois, segundo
Stanislavski, “não poderá ter domínio do método das ações físicas se não se
domina o ritmo. De fato cada ação física é intimamente ligada a um ritmo e é
caracterizada por ele. (Stanislavski apud BONFITTO, 2009:34)”.
O ritmo é a maneira como o tempo é dividido e, no caso de “Sacra Folia”
(ABREU, 1996), é um ritmo mais rápido e dinâmico, a coisas acontecem sem que
a plateia tenha tempo de se distrair com qualquer outra coisa.
O primeiro a elaborar um conceito de ritmo foi DALCROZE:
“A consciência de ritmo é a faculdade de representarem-se
cada sucessão e cada reunião de frações de tempo em todos
seus matizes de rapidez e energia. Tal consciência se forma
mediante repetido exercícios de contração e descontração
muscular em qualquer grau de energia e rapidez”. (Dalcroze
Apud BONFITTO, 2009:11)
12
O teatro com forma processional é citada por BERTHOLD (2010:208,209), como uma característica da idade média, em que o público assistia a seqüência de cenas à medida que se movimentavam.
22
De acordo com este pensamento podemos afirmar que este objetivo foi
alcançado, visto que a cena desenvolvida nesse dia, feita em uma escada, foi
desenvolvida e segundo as observações da diretora “Solange Dias”, o ritmo foi
encontrado.
A cena era a primeira aparição da dupla principal da montagem, Matias
Cão (Rodrigo Guergolet) e João Teité (Rafael Nascimento), que tinha como
enredo uma briga, em que, Matias está bravo com João por este ter vendido uma
jegue que era o sustento de ambos.
3.2. EXPERIMENTANDO O MÉTODO DAS AÇÕES FÍSICAS
No dia 22 de fevereiro de 2011, todas as cenas foram novamente
ensaiadas e apresentadas e muita coisa foi descoberta, pois em um trabalho
cênico cada ensaio tem como uma das funções o surgimento de novas
possibilidades.
A base física do objeto de estudo (Matias Cão, a minha personagem), é
uma personagem nordestina, no entanto, procurei uma linha de construção
situada entre o nordestino realista e aquele que mora no imaginário coletivo e, por
este motivo, neste novo ensaio as formas intuitivas foram deixadas de lado,
procurando “gatilhos” que desencadeassem um resultado interessante. Esse
método foi buscado seguindo as observações de BONFITTO (2009:34), que
afirma que o método das forças motivas de Stanislavski se desenvolveu até o
método das ações físicas.
O método das forças motivas mostra que o ator deveria recorrer às suas
lembranças pessoais, tanto emocionais quanto sensoriais, para desenvolver uma
cena de forma convincente. Por exemplo, se a personagem vê uma morte em
cena, o ator deve lembrar-se de uma situação similar e da sensação causada,
para, então, desenvolver a cena. Já no método das ações físicas o ator deve
23
pensar em como fazer esta cena em forma de ação, por exemplo, na situação
anterior ele vai planejar por onde a personagem deve andar e que movimentos
uma pessoa nesta situação faz, com que intensidade e peso, usando essas ações
físicas como uma cadeia que resultará na expressão facial e até mesmo na
aproximação e representação do sentimento, este é o “gatilho” nesse caso.
Entendendo essas fases dos métodos citados, procurei uma forma corporal
de observação, projetando sutilmente a bacia para frente, apontando os pés para
fora (en dehors, na linguagem da dança) e delineando um pouco o queixo para
frente. Esta mudança facial acionou uma voz diferente, a qual foi estimulando o
corpo a se adaptar à mesma, compondo uma forma que deve ser a base da
personagem para demais estudos.
Pensar nestas bases físicas me deixou desconcentrado quanto ao texto, a
busca por uma forma prejudicou minha precisão com a fala, o que resultou em um
ritmo diferente do buscado, como observou no final do ensaio a diretora Solange
Dias.
Contudo, a intenção de construção da personagem partindo do corpo, a
partir do método das ações físicas, realmente funcionou, os “gatilhos” parecem
uma cadeia de reações, sendo que uma ação “arma” a outra ação, resultando em
várias ações físicas conjuntas.
3.3. DESCONSTRUÇÃO
No ensaio do dia 16 de março de 2011 acabei por perder todo o trabalho
anterior, por uma tendência à construção instintiva do trabalho de interpretação.
Todas as escolhas feitas com base em teorias já citadas foram perdidas por um
processo de acomodação na forma da personagem. Um dos métodos escolhidos,
o Método das ações físicas de Stanislavski, exige um pensamento próprio para
cada cena, e era nessa linha que a montagem vinha sendo feita até então.
24
Para que as cenas se desenvolvam é importante uma porção de elementos
na montagem, neste caso especifico o conhecimento e memorização do texto, a
disposição de todas as personagens e o espaço físico onde será apresentada a
peça, já que a mesma será apresentada em uma escola de educação infantil,
utilizando as mudanças de nível do solo, as colunas e as paredes como
elementos cênicos.
No dia 16 de março de 2011 alguns dos atores não compareceram ao
ensaio, prejudicando assim a montagem da cena e a linha de pensamento quanto
às ações da cena (levando em consideração que quando um ator faz a
substituição, a cena tem que ser quase reelaborada no próximo ensaio com o ator
definitivo no papel), o que fez com que eu tivesse uma maior dificuldade para
preparar as ações físicas, mudando então o método de interpretação e fazendo a
personagem perder muitas de suas características.
No entanto com o decorrer dos ensaios, observando essas modificações,
acabei percebendo que podia utilizar esta deficiência do grupo de uma forma
positiva, já que ficaria mais fácil de comparar as diferenças que apareciam de
acordo com o ator que interpretava a mesma personagem, este estudo de relação
entre as personagens e suas diferenças é relacionada a Brecht como veremos a
seguir.
3.4. INICIANDO AS IDEIAS DE RELAÇÕES BRECHTIANAS
Com novos estudos sobre Bertold Brecht e seu conceito de ação social,
busquei nesse momento verificar a relação entre as personagens e reestruturar-
me corporalmente, em função dos problemas apresentados no ensaio anterior.
Lembrando da proposta inicial da personagem, tentei voltar a um corpo
menos exagerado, voltando a formas mais sutis e, conseqüentemente, deixando-
o mais a vontade nas cenas, buscando um sotaque nordestino mais natural.
25
Observando um amigo do interior da Bahia percebi algumas diferenças na
maneira de falar, baseada em silabas tônicas e em diferentes usos da letra “R”,
principalmente, por exemplo, ao falar a palavra “verde”, o sotaque faz com que a
silaba “ver” deixe de ser a mais forte da palavra transferindo a silaba tônica para o
“de”. Observei também a diferença na posição da língua para a pronúncia da letra
R que, em São Paulo, é pronunciada com a parte frontal da língua, na Bahia usa-
se uma vibração no palato.
“O ator apodera-se da sua personagem acompanhando com
uma atitude crítica as suas múltiplas exteriorizações; e é com
uma atitude igualmente crítica que acompanha as
exteriorizações das personagens que com ele contracenam e,
ainda, as de todas as demais. (BRECHT, 1978:155)”
Entendendo como exteriorização o que o público absorve da personagem,
observei da forma mais minuciosa possível as relações das outras personagens
com a minha personagem, buscando um ritmo e um entendimento maior de como
os outros atores o enxergam.
O estudo das relações teve muitos fatores positivos, para o maior
entendimento da própria personagem, possibilitando-me perceber o quão
importante se torna “Matias Cão” para Boracéia, Herodes, e o Diabo, quando
estes descobrem que ele é o responsável por guiar a sagrada família pelas terras
do Brasil.
Houve um problema já recorrente e citado nestas reflexões, a ausência de
alguns atores importantes para contracenar, como a atriz que interpreta Boraceia,
mulher de Herodes, que devido a um acidente machucou seu joelho e estava
fazendo exames, sendo substituída temporariamente por um homem.
Mais uma vez calcando-me nas experiências anteriores tentei fazer com
que este problema se tornasse positivo, mesmo que a peça não evoluísse de
maneira geral, ao menos para o estudo da personagem, já que as relações entre
as personagens se alteravam com esse obstáculo, mostrando novas
possibilidades de interpretação, assim como novas possibilidades de ações
26
físicas (Stanislavski), já que a personagem em questão foi substituída por um
homem, diversificando as possibilidades de jogo pela menor fragilidade física
masculina.
Houve também um objeto novo para agregar às relações, uma cadeira de
rodas que seria usada e fixada devido ao problema no joelho da atriz, tornando-se
um adereço do espetáculo e mudando as possibilidades de ação física com a atriz
e com o objeto, trazendo uma nova poética para uma personagem que muito
contracena comigo.
Já no dia 29 de março houve um ensaio geral com todas as cenas
montadas até então, que no meu caso eram apenas duas, “Uma estranha
anunciação” e “Falso encontro e Vero desencontro”. Esse ensaio foi efetuado pela
professora de expressão corporal e vocal Daniele Pimenta, que queria observar o
desenvolvimento do espetáculo de acordo com as suas disciplinas.
Para a composição de Matias Cão usei, como já proposto anteriormente,
os conceitos Brechtianos. Em uma rápida análise das fases de composição de
personagem segundo Brecht, o primeiro momento já havia sido feito - as
impressões iniciais e superficiais -, assim como já havia também me aprofundado
quanto aos estranhamentos e identificações com a personagem que, como já foi
descrito, são duas fases de composição para Brecht. Era hora de utilizar outro
ponto de vista e tentar entender como os outros atores, a sociedade e o público
veriam minha personagem, para comparar minhas impressões pessoais iniciais
com estas e, a partir disto, alterar ou acrescentar detalhes à minha personagem.
No entanto isto ficou para outro momento porque:
“No que diz respeito ao processo de construção das
personagens, Brecht o concebeu em três fases: a primeira, na
qual o ator busca registrar as primeiras impressões, dúvidas e
o reconhecimento das contradições da personagem; a
segunda, que diz respeito ao mergulho do ator no processo
de identificação com a personagem; e a terceira, que é
quando o ator busca ver-se de fora, do ponto de vista da
27
sociedade, intervindo dessa forma sobre a construção feita na
fase anterior.” (BONFITTO, 2009:65)
Se não cito todas as minhas reflexões sobre a personagem estudada é por
que a maioria delas tem um caráter extremamente pessoal e subjetivo, porém
mostro o resultado das reflexões de uma forma mais concreta, normalmente os
pensamentos seguem uma lógica deveras confusa o que os torna impossíveis de
descrição minuciosa.
Neste ensaio procurei entender os resultados obtidos de meus estudos
práticos e teóricos, todavia essa análise foi difícil, pois desde o início o processo
geral foi focado no desenvolvimento do “ritmo” do espetáculo, portanto, havia algo
estranho: as relações entre as personagens pareciam quase não existir.
O que era um ponto positivo para as pesquisas iniciais (as substituições já
citadas), apareceu então como um grande problema, já que a relação em cena,
dos atores que estavam nos ensaios anteriores com os que se inseriram
posteriormente, eram ínfimas, não havia “apropriação” na cena, ao meu
entendimento pareciam várias interpretações individuais com personagens e
textos aleatórios, abolindo o ritmo e as marcas do espetáculo.
De maneira geral todos os atores envolvidos, assim como a professora,
observaram todas estas dificuldades, sendo que isto impossibilitou a terceira fase
para a construção da personagem segundo Brecht. Houve também muitas
ressalvas quanto a dicção, projeção de voz, estrutura física e outros pontos.
No dia 30 de março tive um ensaio com os interpretes de João Teité e
Mateúsa, (Rafael Nascimento e Luciana Cruz) para aprofundamento da cena e
estudo do texto, momento este que aproveitei para experimentar o terceiro
momento da composição Brechtiana: a busca pelo distanciamento e o
estranhamento quanto a minha personagem, analisando como o público e como
os outros atores enxergavam minha personagem a partir do gestus.
“(...) Gestus é elemento concretizador do efeito de
estranhamento (...) Brecht refere-se ao “gesto” não como
sendo um recurso ligado somente ao corpo do ator, mas
28
como um conceito aplicável a outros elementos do
espetáculo: o “gesto” da música, o “gesto dos figurinos, do
texto... Ele diferencia, neste sentido, “gesto” e “gesticulação”.
(BONFITTO, 2009:65)
Minha percepção quanto a como as outras personagens viam Matias Cão,
é que ele era visto como um sujeito esperto (não muito inteligente) e
empreendedor quando está com João Teité, sendo que este o vê da mesma
forma, mas acredita-se mais esperto ainda. Já Mateúsa o vê como alguém bonito
e especial, sem levar em conta o intelecto e missão de Mathias Cão, já que o
interesse dela é apenas o de arrumar casamento (e por este motivo dificulta um
pouco a relação, se “faz de difícil”), o que eu estranhei, já que não o via
exatamente desta forma, e ainda tinha mais uma questão, como faria esta relação
quando houvesse figurino, música, cenário etc...?
Notei que é muito difícil este distanciamento, assim como imaginar como as
outras personagens vêem a sua própria personagem, já que estas impressões
citadas são também minhas próprias impressões de como as outras personagens
o vêem.
Mais tarde, no mesmo dia, houve um ensaio de todas as cenas já
desenvolvidas, quando resolvi não fazer novas experiências, mas apenas
observar o desenvolvimento das cenas e refletir sobre os resultados dos estudos
Brechtianos na prática. A conclusão foi que houve sucesso nesta composição, eu
entendi minha personagem.
Matias Cão tem dois interesses em sua vida, os quais são:
Dinheiro:
“MATIAS CÃO – E a ajuda é prá enfrentar o demo, é? E onde
é que se pede dispensa? Tenho pé-chato, sou arrimo de
família! (João Teité retorna e, ao perceber o anjo, põe-se a
ouvir às escondidas.)
GABRIEL – Dessa luta ninguém tem dispensa.
MATIAS CÃO – E o que é que eu ganho?
29
GABRIEL – Muitas riquezas e o reconhecimento do Todo-
Poderoso!
JOÃO TEITÉ – Fernando Henrique Cardoso! O Matias deve
ter feito um negocião com o governo federal!
MATIAS CÃO – E o que é que eu tenho de fazer?”13
E mulheres:
“MATIAS CÃO – Todo mundo aqui pertence à família?
BORACEIA – Menos aquela escrava imprestável!
MATIAS CÃO – Se for jogar fora eu quero, viu?
BORACEIA – Isso não serve pra nada
MATIAS CÃO – Sempre serve! Uma vez consegui uma
igualzinha a essa, por um canivete, numa feira de troca!
(Mateúsa dá-lhe um cascudo) Isso, bate em quem você vai
gostar! Amacia a carne que você vai alisar!
MATEÚSA – (Boquiaberta pela surpresa, tenta falar mas a
voz não sai.) Se o senhor me deixar, assim, sem graça outra
vez eu não sei o que eu faço!
MATIAS CÃO – Quer sugestão?”14
Motivos estes que Matias Cão coloca acima de qualquer outro objetivo,
fazendo com que seja capaz de atravessar todo o Brasil, que é algo que faz
contraponto com João Teité, que diz:
“HERODES – Posso fazer um trato.
JOÃO TEITÉ – Poder, até pode. Se eu vou aceitar vai
depender do que vem daí pra cá.
HERODES – Dou tanto dinheiro que você não vai conseguir
contar nem gastar.
13
Uma estranha anunciação (vide texto anexo) 14
Falso encontro e vero desencontro (vide texto anexo)
30
JOÃO TEITÉ – Não quero. Primeiro que não gosto de contar
dinheiro. E pra que serve o dinheiro que não se gasta?
BORACEIA – Que é que quer? Mulheres?
JOÃO TEITÉ – Só gosto de um tipo de mulher: boa
cozinheira!
BORACEIA – Gosta de comida!
JOÃO TEITÉ – De qualquer tipo raça e cor!”15
Matias Cão também é um sujeito bondoso que faz de tudo para ajudar e
não machucar ninguém. Utilizo como exemplo sua relação com a Sagrada
Família, na qual ele supera até mesmo o medo, que também é uma das suas
grandes características.
3.5. BRECHT E STANISLAVSKI
Nos ensaios dos dias 6, 13, 20 e 27 de abril de 2011, começa a fase final
desta composição de personagem. Matias Cão já tem uma estrutura psicológica,
uma estrutura vocal, uma forma corporal estabelecida, uma delimitada relação
com as outras personagens e com o ator que o interpreta.
Porém o espetáculo ainda estava em processo de montagem, o que não
impedia que eu utilizasse ainda o método das ações físicas de Stanislavski,
enquanto fazia as marcações de cena e de movimentos, usando as ações físicas
para encontrar os sentimentos em cada momento das cenas. Mas essa etapa não
permitiu que me aprofundasse ainda mais no gestus geral da peça, pois a mesma
não estava completa. Então, o que restou fazer nesse momento foi aperfeiçoar
algumas técnicas não aprofundadas neste trabalho, como projeção de voz,
marcações de cena e texto, e aguardar o término dos ensaios para analisar os
resultados.
15
De seqüestro, andanças e negociações (vide texto anexo)
31
No dia 04 de maio de 2011 a montagem geral da peça foi concluída, sendo
que, a partir desse momento, iniciei a aplicação do gestus e mantive o método
das ações físicas, melhorando o trabalho de interpretação e não mais de
montagem da personagem; descobrindo um pouco mais sobre a mesma;
entendendo que a personagem deve ser pensada em cada momento, cena a
cena; focando minhas observações em minhas escolhas pessoais envolvidas nas
técnicas estudadas.
32
4. APLICAÇÕES DOS MÉTODOS E SUAS RELAÇÕES
COM OUTRAS TÉCNICAS.
Como já visto anteriormente, comecei o trabalho de construção da
personagem pelas primeiras impressões, seguindo os preceitos de Stanislavski e
de Brecht, e segui experimentando o método das ações físicas de Stanislavski,
etapa esta na qual descobri um pouco mais sobre a personagem e de como eu
poderia compor minhas estratégias de cena, assim como acionar meu corpo para
comunicar o sentimento ou sensação necessária.
No terceiro momento, acidentalmente, a personagem foi desconstruída,
causando o efeito de distanciamento. Posteriormente, para recuperar o trabalho,
aprofundei-me nas intenções de Matias Cão, passando pelos processos de
análise (segundo Stanislavski) e do método de desconstrução, distanciamento e
aprofundamento (segundo Brecht).
Como resultado de todas as etapas, consegui apropriar-me da
personagem, entendendo pequenas sutilezas de suas intenções durante a peça,
percebendo suas prioridades e objetivos na peça toda. Por fim, trabalhei esses
objetivos em cada cena, buscando relações com as aplicações práticas do
método das ações físicas e do gestus, no processo teatral pesquisado.
Há, porém, alguns outros conceitos necessários para o entendimento das
etapas, que estão incluídos na linguagem do texto, assim como na linguagem
escolhida pelo grupo. São estes: dupla cômica, triangulação e ritmo da comédia.
4.1. DUPLA CÔMICA:
O conceito de dupla cômica é bem presente em muitas referências de
filmes, seriados e peças de teatro, como o Didi e o Dedé dos “trapalhões”, João
33
Grilo e Chicó do “Auto da compadecida” de Ariano Suassuna, o Gordo e o Magro
do cinema americano, entre outros.
Tivemos contato com essa linguagem, muito presente na obra de Luís
Alberto de Abreu, em uma oficina ministrada pelo colega e ator Edu Silva16.
Baseada em jogos, experiências e pesquisas, a oficina foi ministrada durante o
período de preparação para o inicio do processo de montagem.
4.1.1. COMMEDIA DELL´ARTE:
Dupla cômica é um conceito que tem referências em todas as formas de
comédia ocidental, no entanto, teve destaque na Commedia dell´Arte, uma forma
teatral que desenvolveu-se no inicio do século XV. Uma linguagem que
permaneceu popular até meados do século XVIII e que tem como característica
principal a improvisação rápida, baseada em tipos e com esquemas básicos de
conflitos. Antes das apresentações os atores combinavam o plano de ação do
espetáculo, organizavam ou retomavam um canovaccio (roteiro) calcado em
intriga, desenvolvimento e solução, utilizando personagens com características
marcantes e fixas (tipos), contudo os detalhes e o texto eram deixados para o
improviso, usando este recurso para aproveitar tudo que estivesse ao redor,
lançando mão de piadas, trocadilhos, jogos, assim como todas as habilidades que
aqueles atores possuíam.
Os atores da Commedia dell´Arte, se especializavam em tipos específicos,
sendo os que interessam ao conceito de dupla cômica o Zanni, o Pantallone e o
Dottore, que tinham sempre uma relação similar. Segundo BERTHOLD
(2010:353),
16
Pedro Eduardo da Silva, diretor, ator, clown, iluminador e arte educador, de São Bernardo do Campo, artista e pesquisador desde 1981. (www.artehumus.blogspot.com.br acessado 03/06/2011)
34
“O Zanni geralmente aparece em parelha. É esperto e
malicioso, ou bonachão e estúpido e, em ambos os casos,
glutão. (...) Pantallone, o senil, rico e desconfiado mercador
de Veneza, o Signor Magnifico (...) O Dottore de Bolonha, luz
erudita de todas as faculdades”
Geralmente o Pantallone ou o Dottore eram levados a situações
complicadas pelo criado Zanni, em que acabavam se dando mal, assim como o
próprio Zanni que, na melhor das hipóteses, acaba ganhando algo para comer.
4.1.2. PALHAÇOS
Posteriormente, no século XIX, os palhaços circenses fixaram o conceito
de dupla cômica com os nomes de Branco e Augusto, que não têm exatamente a
mesma função da Commedia dell´arte, entretanto manteve as mesmas bases. O
branco tem como característica ordenar planos, contar histórias e tentar resolver o
problema, enquanto o Augusto, de alguma forma, põe por terra os planos do
Branco, normalmente por meio de trapalhadas, ingenuidade ou falta de
inteligência.
BOLOGNESI (2003: 103,104) afirma que 1864 teve destaque na história
dos palhaços:
“O ano de 1864, na França, teve destaque nessa história, pois
trouxe ao circo a liberdade do uso da palavra. Com isso,
criaram-se as entradas dialogadas que apresentam uma
tensão cômica entre o Clown Branco e o Augusto.
Nas entradas, de um modo geral, o Clown branco antecipa ao
público, ou a um terceiro palhaço, a realização de uma tarefa
extraordinária, ou mesmo se propõe a narrar uma história
qualquer. Seu intento é continuamente perturbado pelo
35
Augusto que, nesse caso, surge como o desordenador dos
planos do Clown Branco. (...) A dupla pode ser mais ou
menos amigável e, nesse caso, o recurso cômico é
dependente das trapalhadas do Augusto. A dupla no entanto,
pode apresentar um Clown autoritário e um Augusto
atordoado, vítima das ordens de seu opressor.”
Na montagem objeto de nossa pesquisa a personagem calcada no Branco
é Matias Cão e, o Augusto, João Teité.
Vale lembrar que a diretora Solange Dias e a preparadora vocal e corporal
Daniele Pimenta, orientaram os atores para que tivessem seu foco não apenas no
conceito de dupla cômica como também no ritmo da comédia popular e na
“triangulação”. Já vimos o conceito de ritmo (2.1), no entanto a triangulação ainda
não foi comentada.
4.2. TRIANGULAÇÃO:
Esta técnica é usada para maior comunicação com o público, e consiste
em um triangulo comunicativo, ou seja, o ator é uma das pontas que deve
interpretar e se relacionar com as outras duas pontas que são os outros atores
em cena e o público.
Trata-se de um conceito desenvolvido no circo-teatro, teorizado e aplicado
pelo elenco do grupo teatral Mambembe, sob orientação de Carlos Alberto
Soffredini, que, nos anos de 1970 pesquisou nos circos da cidade de São Paulo,
especialmente no Circo-Teatro Bandeirantes, encontrando elementos essenciais
do teatro popular, segundo afirma Rubens de Souza Brito:
“Ao menos, assim foram compreendidas as aulas pelos atores
e atrizes do Mambembe: Flávio Dias, Rubens Brito, Ednaldo
36
Freire, Calixto de Inhamuns, Douglas Salgado, Sérgio
Rossetti, Artelino Macedo, Suzana Lakatos, Eunice Mendes e
Simone Miranda (substituída por Rosi Campos).
O elenco descobre, ainda, que havia um “suporte”, um tipo de
“estrutura” que formatava, a partir da interpretação, o próprio
espetáculo.
Tratava-se daquilo que o grupo viria a denominar de
triangulação (...)
A triangulação nas peças circenses é explícita e executada
com muita naturalidade. O espetáculo se desenvolve de forma
a incluir a plateia no jogo cênico, especialmente nas
comédias; nos dramas se observa o mesmo fenômeno,
embora a técnica triangular se atenue em benefício da
objetivação da “dramaticidade” do enredo.
Alguns atores se destacam pelo domínio e precisão no
emprego da triangulação. No Circo-Teatro Bandeirantes,
destacava-se “Chico Biruta”, um “descendente legítimo dos
commicci dell‟arte”. Com ele e seus parceiros, o elenco do
Mambembe aprendeu e sistematizou o jogo cênico
desenvolvido através da triangulação, técnica utilizada em D.
Quixote (1976) e em seus dois espetáculos seguintes, O
Diletante (1977), de Martins Pena, e Farsa de Inês Pereira
(1977), de Gil Vicente.” (BRITO, 2006:80, 82)
Soffredini, explica o conceito:
“O público é o vértice de maior peso do triângulo. É o
CUMPLICE, na representação. É o CENTRO dela. É para ela
que se CONTA a história, portanto ele é o dono dessa
história. Muitas vezes ele conhece dados dela que ou um ou
os outros dois vértices do triângulo (os atores) desconhecem.
Ele conhece o caráter e a intenção de cada personagem, uma
37
vez, que cada ator ao entrar em cena, deve ter como meta
REVELAR o seu personagem, a intenção dele e, é claro, a
sua ação dentro da ação (história). A partir dessa
CUMPLICIDADE com o público, dessa CENTRALIZAÇÂO
nele, dessa DOAÇÂO a ele da ação (história e representação)
é que se estabelece a base do jogo teatral. Os gregos já
sabiam disso. E as velhas peças românticas abriam margem
para esse jogo através do A PARTE, que, em última análise, é
a forma tosca, a partir da qual, elaborando, nós chegamos ao
processo do TRIÂNGULO.” (Soffredini, 1980:4 Apud NININ,
2009:21,22)
4.3. As inter-relações
O próprio Brecht já falava do contato com o público em sua época. Em sua
obra teórica ele afirma que o contato com o público se dá por meio da empatia.
Segundo o mestre alemão “A noção de quarta parede que separa ficticiamente o
palco do público (...) tem que ser naturalmente rejeitada, o que, em principio,
permite aos atores voltarem-se diretamente para o público.” BRECHT (1978: 20).
Na primeira aparição de Matias Cão (na cena Uma estranha anunciação)17,
eu me apropriei das primeiras impressões do papel, pois a cena tem o ponto
positivo de trazer a dupla cômica, Matias cão e João Teité atuando juntos sem
interferência de nenhum outro personagem.
Explicados os conceitos solicitados pela direção do espetáculo, os
objetivos de cena ficaram mais claros, levando em conta que os elementos
essenciais da Comédia Popular Brasileira influenciaram essas primeiras
impressões e, consequentemente, o nosso instinto para a interpretação acabou
sendo guiado.
Estabelecendo a relação entre teoria e prática, as primeiras impressões
contribuíram para a construção da personagem na montagem como um todo, não
somente na cena.
17
Vide texto em anexo.
38
STANISLAVSKI (1984:20) afirmou que, para o ator:
“As primeiras impressões são... sementes. Sejam quais
forem as variações e alterações que o ator possa fazer à
medida que avança no seu trabalho, ele muitas vezes é tão
atraído pelo profundo efeito de suas primeiras impressões,
que quer se apegar a seu papel, como este se desenvolve.”
Nessas primeiras impressões notei, como descrito (3.1.), diversas formas
(físicas) que trouxeram à personagem conteúdos psíquicos e intelectuais,
segundo o método das ações físicas, por meio dos “gatilhos” dos gestos.
Naquele momento utilizei a figura do nordestino (característica básica e
marcante da personagem) que mora no imaginário popular Brasileiro18, como
base das improvisações gestuais, buscando a forma mais apropriada para a
triangulação, o ritmo de comédia e para o desenvolvimento da dupla cômica.
4.4. STANISLAVSKI + BRECHT
No decorrer dos ensaios, com a fixação desses conteúdos e,
principalmente, do texto, iniciei um trabalho voltado aos conceitos que Brecht
buscou no teatro chinês e desenvolveu em seu método, os quais são
denominados identificações e estranhamentos, partindo de uma análise
aprofundada do papel para descobrir as empatias e os estranhamentos do ator
para com a personagem.
Stanislavski também fala dessa fase do processo de construção,
fundamentando seu processo de análise (2.4.), afirmando que o ator deve
18
Considerando que a referência do imaginário popular é a televisão, que em seus programas de humor mostra uma figura estereotipada, minha busca foi por um tipo que mesclasse essa figura com o nordestino real, buscando a referência televisa para uma comunicação imediata com o público.
39
analisar diversas circunstâncias para a composição da personagem, por exemplo:
o tempo presente da personagem na montagem é o que importa para o mestre
russo, no entanto, não existe presente sem passado. (STANISLAVSKI, 1984:32)
No método, Stanislavski acredita também que devemos imaginar as
circunstâncias externas que envolvem a personagem e, nesse processo, cria-se
empatia pela personagem.
A similaridade entre os métodos de Stanislávki e Brecht para por ai,
Stanislavski ainda descreve a linha de forças motivas, a qual busca uma
idenficação do ator para com a personagem, enquanto Brecht defende os
estranhamentos.
O mestre alemão afirma que:
“O ator, em cena, jamais chega a metamorfosear-se
integralmente na personagem representada. (...) Numa,
representação em que não se pretenda uma metamorfose
integral, podem-se utilizar três espécies de recursos para
distanciar a expressão e a ação da personagem
representada:
1. Recorrência à terceira pessoa.
2. Recorrência ao passado.
3. Intromissão de indicações sobre a encenação e de
comentários.” (BRECHT, 1978: 81,82)
Considerando essa passagem fiz um roteiro das ações da personagem nas
cenas, buscando os objetivos, como sugere STANISLAVSKI (1984:24) em seu
livro “A criação de um papel”, buscando também utilizar o recursos que Brecht cita
e descobrindo os objetivos da personagem em cada ação da cena. Os objetivos
podem ser diversos em uma cena, cada ação física da personagem sugere um
objetivo, como exemplificamos a seguir na cena19 da primeira aparição da dupla
cômica Matias Cão e João Teité na montagem:
19
Uma estranha anunciação (vide texto em anexo)
40
No primeiro momento Matias procura punir Teité pela venda de um jegue:
“MATIAS CÃO – Eu vou lhe pegar, lhe arrear e lhe vou colocar no lugar do jegue, condenado! JOÃO TEITÉ – Eu só tive um pouco de azar. Isso acontece
todo dia com qualquer investidor da bolsa de valores!
MATIAS CÃO – Venha cá!
JOÃO TEITÉ – Então não me bate!
MATIAS CÃO – Não bato, se você me explicar porque rifou o
jegue!”
Matias, nesse trecho da cena tem como objetivos, além dessa punição,
reaver seu dinheiro.
“MATIAS CÃO – E onde está o lucro? Onde está o jegue?
JOÃO TEITÉ – Problemas de marketing: a imagem do
produto não correspondeu às expectativas do consumidor.
Tive de baixar minha expectativa de lucro e vendi cada
número a vinte centavos.”
O superobjetivo é o que define a condução da montagem e, em Sacra
Folia, para algumas personagens, inclusive para Matias Cão, o superobjetivo é
salvar o menino Jesus dos vilões Herodes, Boraceia e o Diabo.
Segundo Stanislavski:
“Nesse íntimo dos centros, nesse âmago do papel, todos os
demais objetivos da partitura convergem, por assim dizer,
para um único superobjetivo. Este é a essência interior, a
meta que abrange tudo, o objetivo de todos os objetivos, a
concentração de toda a partitura do papel, de todas as suas
unidades máximas e mínimas.” (STANISLAVSKI, 1984:90-91)
41
Na mesma cena, para surpresa de Matias Cão, aparece um anjo que
claramente o incita ao superobjetivo principal da montagem:
“GABRIEL – Exatamente. E é por isso que precisamos de
ajuda. Pra fugir dos soldados de Herodes, a Sagrada Família
fugiu para o Egito e acabou se perdendo. Tanto andaram sem
rumo que vieram bater por essas bandas do Brasil. E, agora,
Herodes, seus soldados e o próprio Demônio estão
perseguindo o menino-Deus.
MATIAS CÃO – E a ajuda é prá enfrentar o demo, é? E onde
é que se pede dispensa? Tenho pé-chato, sou arrimo de
família! (João Teité retorna e, ao perceber o anjo, põe-se a
ouvir às escondidas.)
GABRIEL – Dessa luta ninguém tem dispensa.
MATIAS CÃO – E o que é que eu ganho?
GABRIEL – Muitas riquezas e o reconhecimento do Todo-
Poderoso!
JOÃO TEITÉ – Fernando Henrique Cardoso! O Matias deve
ter feito um negocião com o governo federal!20
MATIAS CÃO – E o que é que eu tenho de fazer?
GABRIEL – Guiar a Sagrada Família de volta ao Egito. E
depois levá-la, sã e salva, para Belém.
MATIAS CÃO – Ichi! Um estirão! Esse Egito deve de ser um
par de léguas prá lá de Goiás, que é o lugar mais longe que
eu conheço. Não dá prá soltar algum adiantamento pelos
serviços a serem prestados?
GABRIEL – Só pagamos no final do trabalho feito. Você
encontra a Sagrada Família na praça aí perto. E, rápido, que
não temos tempo a perder.
MATIAS CÃO – Num minuto estou lá. (Saem.)”
20
Referência de 1997 ano em que o texto foi escrito. Na atualização para o contexto de 2011, Fernando Henrique foi substituído por Barack Obama, presidente dos Estados Unidos da América.
42
Utilizei algumas referências textuais para definir os objetivos da
personagem, no entanto muitas vezes o desenrolar da cena e as ações físicas
durante o processo incitam o ator a definir objetivos por si mesmo.
“GABRIEL – É que nasceu uma criança. (Matias olha
espantado.)
MATIAS CÃO – Que mal lhe pergunte mas por um acaso...
assim... bem intencional, a criança é sua?”
Nesta pequena passagem o anjo informa Matias do nascimento de uma
criança, o objetivo original dessa passagem é descobrir se a criança é filho do
anjo, contudo decidi alterar esse objetivo, e agi como se Matias quisesse
descobrir se o filho é seu, estimulando, assim, além da curiosidade, o medo.
Após a fase das primeiras impressões, passei para a segunda fase de
composição de personagem, como sugere BRECHT (1978: 82), “1. Recorrência à
terceira pessoa. 2. Recorrência ao passado, 3. Intromissão de indicações sobre a
encenação e de comentários.”, nesse ínterim busquei minhas empatias e
estranhamentos com Matias Cão.
Esse processo de empatias para Stanislavski é chamado de processo de
análise, e não deixa de ter similaridades com o método de Brecht, com a
diferença de procurar apenas identificações com a personagem, e não
estranhamentos.
Essa parte da análise necessita que o ator busque encontrar essas
diferenças e identificações, e para isso deve-se pensar em parâmetros muito
pessoais e subjetivos, e por este motivo é muito difícil descrevê-los precisamente.
4.4.1. O MÉTODO DAS AÇÕES FÍSICAS E O GESTUS
43
A ação física e o gestus são dois conceitos distintos.
As ações físicas são usadas durante cada momento da peça, definindo o
desenho no espaço, a velocidade, a intensidade com que o ator se move.
Por exemplo, quando Matias Cão encontra João Teité na estalagem:
“JOÃO TEITÉ – Por acaso o seu José... Matias! Que
surpresa! Que coincidência! Que inesperado prazer!
MATIAS CÃO – Não posso dizer a mesma coisa!
JOÃO TEITÉ – Mas podia mentir igual eu!
MATIAS CÃO – Que é que está fazendo aqui?
JOÃO TEITÉ – Estou guiando a Sagrada Familia pra Belém!
MATIAS CÃO – Ah!, Seu traste! Então você pegou meu
contrato?!
JOÃO TEITÉ – Negócios! Enquanto você estava tratando
com intermediários, aquele anjo, fui conversar diretamente
com o cliente!”
Nesse trecho na montagem, Matias Cão e João Teité fazem poses com
referência aos filmes de faroeste do cinema americano, pernas abertas, mãos no
revólver, e toda forma física de ambos os atores acabam por modificar-se por
alguns instantes.
Há diversas ações físicas, o movimento dos dedos nos revólveres, a
maneira de andar com a ponta dos pés virada para as laterais do ator, a
inclinação com a cabeça levemente para frente, entre outras; no entanto para que
essas ações sejam gestus elas devem ter implícito um conteúdo político,
emocional, que mostre as relações dos homens em sociedade, no caso o
enfrentamento de ambos.21
21
O gestus é melhor explicado quando o discurso é mais político, como na cena do prólogo II, A matança dos inocentes: há um tecido vermelho que é carregado representando sangue, esse é o gestus do cenário, um elemento que traduz um conceito relacionado a atitude do homem em sociedade (Matias Cão não participa dessa cena).
44
Entender conceitualmente estes termos e métodos foi uma árdua tarefa, no
entanto aplicá-los à cena é um processo ainda mais trabalhoso, vale lembrar, que
essa montagem teve prazos apertados para sua conclusão, por este motivo
algumas das reflexões e experiências para a composição de Matias Cão foram
feitas individualmente, sem que houvesse outros atores do grupo. Mesmo assim,
os estudos das ações físicas foram eficientes e consegui começar a aplicá-los.
Pensei nas ações para funcionarem como “gatilhos” da interpretação, como
citado no capítulo 3.1., usei a ação para trazer a tona expressões físicas e
emocionais e comunicar, a quem assiste, o sentimento contido nos objetivos da
personagem.
Nossas emoções criadoras necessitam de ações físicas para comunicar os
desejos, anseios e objetivos da personagem. Segundo STANISLAVSKI (1984:65)
“O objetivo é a isca para as nossas emoções”, e produz as ações físicas. O
gestus também é produzido por meio dos objetivos e principalmente do
superobjetivo.
Como exemplo do resultado obtido, utilizo uma cena22
da montagem em
que Matias Cão encontra as personagens Boraceia e Herodes (vilões), e Mateúsa
(mulher que lhe atiça o interesse). Matias entra na cena procurando a sagrada
família (José, Maria e o Menino Jesus, que já foram ludibriados e levados por
João Teité), quando é agredido por Boraceia, que está muito brava por não
encontrá-los. Ao saber do objetivo de Matias eles o enganam, passando-se pela
sagrada família, nesse meio tempo o interesse dele por Mateúsa já é evidenciado.
“BORACEIA – Se eu botar a mão em um, estrago tanto o
couro que médico nenhum vai dá jeito. (Segura Matias cão,
que entra.)
MATIAS CÃO – Vote! Quem pode me acode, gente!”
A ação física é de fuga, rápida e precisa, com o corpo retesado dirigindo-se
ao público, com a intenção de comunicar medo, surpresa e auto-preservação.
22
Falso encontro e vero desencontro, vide texto em anexo.
45
Quando Matias se dirige à plateia para pedir que estes o acudam da vilã, ele usa
um olhar que, junto com as ações físicas contidas no corpo, compõe um gestus,
já que mostra a inferioridade do nordestino pobre, perante a mulher de um rei.
O gestus, portanto mais que uma ação física, pode ser um olhar, desde
que comunique a relação dos homens em sociedade.
“Nem todos os gestos são sociais. A atitude de espantar uma
mosca não é um gesto social [...] O gesto de trabalhar é
definitivamente social, porque toda atividade humana dirigida
para a dominação da natureza é um empreendimento social,
e um empreendimento entre homens. (BRECHT apud NETO,
2009:3).
No seguinte trecho23 houve uma mudança que influiu no gestus e nas
ações físicas de toda a montagem:
“BORACEIA – Quem é você?
MATIAS CÃO – (Assustado.) Quem a senhora quer que eu
seja?
BORACEIA – Está brincando com a minha cara?
MATIAS CÃO – Não, dona, estou levando muito a sério.
BORACEIA – Acho que vou lhe partir a fuça.
MATIAS CÃO – Não faz isso, dona, que vou ser obrigado a
reagir e aí vou apanhar mais ainda. Faz de conta que não me
viu que eu faço de conta que nunca estive aqui!”
Inicialmente Matias tem medo de Boraceia e tenta fugir, as ações físicas
escolhidas são de ficar distante na primeira frase, tremendo as pernas e o corpo
(lembrando que é uma comédia), aproximar-se na segunda frase, em posição de
enfrentamento, com as mãos na cintura e a encarando, chegando à ùltima frase,
em que arrasta Boraceia para longe e tenta fugir. Vale lembrar que, como já
23
Falso encontro e vero desencontro. (vide texto anexo)
46
citado, Boraceia foi interpretada, em todos os ensaios, sentada em uma cadeira
de rodas, já que a atriz teve um problema no joelho, no entanto, às vésperas da
estréia da peça, foi decidido descartar a cadeira que impossibilitava diversas
ações, e a atriz já estava recuperada.
Neste caso, houve uma modificação nos elementos da cena, Matias não
arrastaria mais Boraceia para então fugir, optando por falar sua frase atrás da
atriz e correr, então, da mesma forma. É importante citar que a cadeira dava às
personagens uma diferença de planos, a personagem Matias tinha que olhar para
baixo para falar com Boraceia, a qual possui diversos gestus que comunicam uma
superioridade, e a diferença de planos deixava a comunicação destes gestus
confusa.
Com a abolição do uso da cadeira de rodas os gestus puderam ser
reconstruídos.
“BORACEIA – Pra onde está indo?
HERODES – De onde veio?
MATEÚSA – Você já tem companheira? (Todos se voltam
para Mateúsa.) Cada um pergunta o que lhe interessa, uai!
MATIAS CÃO – Vim aqui para encontrar uma sagrada
família.”
Neste momento da fuga, no qual estas perguntas são feitas, havia ações
físicas escolhidas que foram modificadas no decorrer dos ensaios, devido às
relações com as outras personagens e suas próprias escolhas de ações físicas
(como já vimos no processo de Brecht (3.4.).
Inicialmente, quando Mateúsa faz sua pergunta, a escolha era por um sutil
olhar, que se transformou em um quase beijo, seguido de uma fuga, para que
Mateúsa não fique mais em seu campo de visão, já que Matias tem medo de ela
“ser encrenca”, pois ela foi encontrada junto com as pessoas que o agrediram.
Essa escolha foi feita devido à abordagem de Boraceia: no inicio do trecho a atriz
diz essa frase agressivamente (efetivamente agrediu Matias no início) e a escolha
47
da atriz que interpreta Mateúsa foi de entrar na frente de Matias para perguntar se
tem companheira. Nesse caso ele fez a escolha já descrita.
Em outro trecho da peça24 vamos analisar o objetivos, as relações da dupla
cômica, as ações físicas e o gestus contidos na montagem:
“MATIAS CÃO – Quebro-lhe em dois, parto-lhe em três,
descadeiro-lhe os quartos, lhe mando pros quintos, seu peste!
JOÃO TEITÉ – Vamos resolver nossas diferenças como
pessoas maduras, Matias! Precisamos entrar num acordo!
MATIAS CÃO – Eu bato e você chora, eu surro e você grita,
eu entro com a vara e você com o lombo, seu filho...
JOÃO TEITÉ – (Cortando.) Não pode falar palavrão em auto
de Natal!
MATIAS CÃO – (Pausa. Raciocina e emenda.)... de mulher
sobre a qual pesam suspeitas de contumácia em relações
licenciosas e ilícitas com inúmeros desconhecidos!
JOÃO TEITÉ – Ô, doido, Matias! Esse essa foi boa, esse é
Matias Cão, por isso que é meu sócio, sabe, a gente tem uma
empresa juntos... 25
Todas as ações físicas são voltadas a bater em João Teité, o qual, por sua
vez, tem ações físicas de fuga, tentando ludibriar seu parceiro.
Há uma parte importante na qual Matias Cão é interrompido por João Teité
quando vai usar um xingamento; Matias re-elabora o xingamento, fazendo-o
parecer algo “culto”; João Teité entra em uma postura de aproximação, dizendo
que Matias é muito inteligente; este acaba por aceitar os elogios, esquecendo-se,
por um instante, de seu objetivo.
O próximo trecho é o momento de uma punição por algo que acontece no
passado (imediato mas fora do contexto da peça), a venda de um jegue de Matias
Cão, usado em uma companhia de transportes na qual são sócios. Essa é a
24
Uma entranha anunciação, vide texto em anexo. 25
Modificação no texto original feita durante os ensaios.
48
primeira aparição da dupla na montagem, deixando subentendido que os dois têm
um histórico de vida juntos, que João Teité (Augusto) sempre estraga os planos e
por isso é punido por Matias Cão (Branco).
MATIAS CÃO – (Interrompendo) Venha cá!
JOÃO TEITÉ – (Como criança.) Só vou se você falar que não
me bate!
MATIAS CÃO – Venha cá que estou mandando!
JOÃO TEITÉ – Então não me bate!
MATIAS CÃO – Maldita hora em que lhe pus como sócio de
minha companhia de transporte!
JOÃO TEITÉ – Sua, não, nossa!
MATIAS CÃO – Agora não é nem minha, nem nossa! Você
deu sumiço no único jegue que a gente tinha.
JOÃO TEITÉ – Questão de opinião! Eu fiz um investimento!
(Matias ameaça pegar Teité, que corre.)
MATIAS CÃO – Eu vou lhe pegar, lhe arrear e lhe vou colocar
no lugar do jegue, condenado!
JOÃO TEITÉ – Eu só tive um pouco de azar. Isso acontece
todo dia com qualquer investidor da bolsa de valores!
MATIAS CÃO – Venha cá!
JOÃO TEITÉ – Então não me bate!
MATIAS CÃO – Não bato, se você me explicar porque rifou o
jegue!”
49
Figura 1: Matias Cão (Rodrigo Guergolet) e João Teité (Rafael Nascimento) - Exemplo de dupla cômica, o Branco que age como chefe e
o Augusto que age como serviçal, a ação física de Matias é um gestus que mostra a relação entre as personagens. (Foto de Nicolas Rossini
Rezende)
O gestus, nessa cena, mostra dois sujeitos na mesma situação social, no
entanto, Matias tem um patamar de chefe de João Teité, o qual por sua vez age
como serviçal (figura 1), lembrando o conceito da dupla cômica contido nos tipos
Zanni e Pantallone da Commedia dell´Arte (4.1.1)
Outro exemplo que lembra os tipos da Commedia dell´Arte, é:
“MATIAS CÃO - Não sei o que pode ter acontecido, dona
Boraceia.
BORACEIA - Pois trate de saber!
MATIAS CÃO - Eles vão ter que passar por aqui, dona
Boraceia!
BORACEIA - Há uma semana que estamos aqui e nem sinal
da Sagrada Família!
MATIAS CÃO - Daqui a pouco eles chegam.
BORACEIA - Como é que sabe?
50
MATIAS CÃO - (Irritado.) Se eles não chegarem a história
não anda! Mas que vontade desmedida é essa, dona
Boraceia?
BORACEIA - Não, lhe interessa! Vai procurar, achar e me
trazer essa família aqui, hoje! Do contrário...
MATIAS CÃO - Do contrário...?
BORACEIA - Deixo para a sua imaginação o que vai lhe
acontecer! (Sai furiosa. Matias fica imaginando o que lhe pode
acontecer. Espantado, passa o dedo em riste no pescoço;
dramático, golpeia a mão fechada sobre o peito, como se
cravasse um punhal no coração; horrorizado, passa a mão
fechada sobre o abdômen, como se fizesse haraquiri e
finalmente inicia um gesto de castração que interrompe e
começa a soluçar. Entra Mateúsa)”. 26
No entanto, neste caso o Zanni (Augusto), é Matias Cão e o Pantallone
(Branco) é a Boraceia. Este é mais um exemplo em que o gestus mostra o
contraponto entre Matias, pobre e fraco, e Boraceia, o patrão rico e superior.
Temos de dar atenção à inversão de papéis quanto à dupla cômica, Matias é o
Branco na principal dupla cômica da peça (Matias Cão e João Teité), no entanto
ele acaba por ser Augusto, com Boraceia.
As ações físicas são diversas: inicialmente a escolha para Matias era de
ser pego por Boraceia no instante em que ela afirma que ele tem de achar
imediatamente a Sagrada Família, e ela o puxava para baixo até que ele
estivesse no chão, mostrando a superioridade de força da vilã, no entanto as
ações mudaram com a saída da cadeira de rodas, fazendo com que ele
terminasse a cena em pé.
26
Cena 4 – a trama desfeita. Vide texto em anexo
51
Figura 2: Matias Cão (Rodrigo Guergolet), Boraceia (Suzana Mendonça) e Herodes (Thiago Aparecido), na cena em que Boraceia
pega Matias pelo braço - Ação física pertinente a dor, gestus de superioridade de Boraceia para com Matias (Foto de Elen
Domingues).
A nova escolha, de acordo com a relação de ambos, foi de não ir mais para
o chão, porém, quando Boraceia encosta em Matias ele sente uma dor imensa,
usando um movimento forte e pontual partindo do abdômen (figura 2), para dar
essa impressão, utilizando os “gatilhos” do método das ações físicas para
comunicar essa dor, que é também um gestus que anuncia a superioridade da
vilã sobre o pobre Matias.
Vale citar também um pequeno trecho que tem exemplos claros de ação
física, gestus, dupla cômica, triangulação e ritmo da comédia:
“GABRIEL – Preciso de sua ajuda.
MATIAS CÃO – Chi!!! Para um anjo precisar de ajuda de
Matias Cão só pode estar metido em enrascada das grossas.
Diga lá.”27
Neste pequeno trecho, o anjo, mais próximo da plateia e olhando-a, afirma
precisar da ajuda de Matias, o qual, por sua vez, vai olhando diretamente pra ele
e se aproximando. Tirando seu olhar do Anjo Gabriel, e dirigindo-o ao público, diz
27
Cena 1 – Uma estranha anunciação (vide texto anexo)
52
que o anjo deve estar em uma enrascada. Nesse momento houve a triangulação:
Matias, uma ponta do triângulo, relaciona-se com o anjo, outra ponta do triângulo
e, posteriormente, com a última ponta, a plateia.
Ao dizer: “Chi!!!” Matias cão balança sua mão, com a palma voltada para o
seu próprio corpo na altura de seu peito, em uma ação física que indica uma
preocupação irônica, quanto ao anjo precisar de sua ajuda.
Em seguida coloca sua mão como se falasse em segredo apenas para a
plateia e não mais para o anjo (triangulando): “Para um anjo precisar da ajuda de
Matias Cão só pode estar metido em uma enrascada das grossas”.
Essas duas ações físicas podem ser classificadas como gestus, por estar
contida nelas a relação inicial de Matias com o anjo e sua opinião sobre como é
visto pela sociedade: Matias está subestimando sua capacidade por causa de sua
condição social. Fica claro também, por meio dessas ações, que o anjo é o
Branco da cena e Matias o Augusto. Essa passagem é bem ágil, de acordo com o
ritmo estabelecido para a comédia popular.
Estes pequenos trechos mostram o árduo, entretanto bem sucedido
trabalho na aplicação dos métodos dos grandes mestres, Konstantin Stanislavski
e Bertold Brecht, afirmando ainda a eficiência de seus métodos quando
trabalhados em conjunto em um processo teatral, mesmo partindo de uma
dramaturgia e linguagem muito diferentes dos padrões vivenciados por esses
importantes nomes do teatro mundial.
53
5. CONCLUSÃO
O presente trabalho buscou articular questões teóricas e práticas, em um
processo de montagem teatral formal, trazendo à luz algumas maneiras eficientes
de construção da interpretação teatral a partir da seleção e somatória de
expedientes de duas fontes distintas.
Konstantin Stanislavski e Bertold Brecht criaram métodos de interpretação
e composição de personagens que são usados até hoje em diversas escolas,
companhias e grupos de teatro, além disso, são, ainda hoje, referências muito
significativas na área, motivo de serem minha escolha para compor a base teórica
deste trabalho.
O russo Konstantin Stanislavski criou em sua vida um método conhecido
como linha de forças motivas, que consiste em iniciar a composição da
personagem por meio do sentimento, força e vontade, passando por diversos
processos até resultar em uma ação física que, efetivamente, comunique ao
público as intenções da personagem. Esse método é amplamente usado no
mundo, inclusive no Actors Studio28, entretanto, o mestre russo desenvolveu
(relativamente próximo a sua morte), a partir da linha de forças motivas o método
das ações físicas, o qual propõe o contrário: o ator parte da ação física para
desenvolver uma interpretação que expresse as intenções da obra e do
personagem.
Por outro lado Bertold Brecht, ator, dramaturgo e teórico do teatro alemão,
criou um método que consiste em um estudo aprofundado e analítico da
personagem, passando por alguns passos calcados em uma análise das
primeiras impressões que o ator tem da personagem, seguido por uma busca por
estranhamentos e afinidades com a mesma, resultando em gestus. Como já
vimos o gestus é uma ação física, no entanto, nem toda ação física (do método de
Stanislavski) é um gestus.
Entretanto, mesmo notando as diferenças dos métodos de ambos os
autores, conclui-se que suas teorias têm diversos pontos similares, portanto
28
Importante associação de atores americanos que refina e ensina o método de Stanislavski (linha de forças motivas). Muitos dos mais famosos atores do cinema americano como Al Pacino, Johnny Depp, Julia Roberts, Nicolas Cage e Robert De Niro estudaram lá.
54
podem ser perfeitamente trabalhadas por um ator no mesmo processo, desde que
este entenda o seu objetivo de composição, para melhor usar as técnicas.
Stanislavski defendia, por boa parte de sua vida, a transmutação do ator na
personagem, o que, para Brecht, não fazia sentido, talvez por buscar um teatro
mais político. Contudo, no método das ações físicas, fica clara a “nova” opinião de
Stanislavski quanto a esse tema, já que ele afirma que fazer a ação traz a tona
expressões que comunicam ao público o sentimento pretendido, sem que o ator
tenha sentido ou passado por uma situação similar.
Além disso, Brecht era 40 anos mais jovem que Stanislavski, suas
aspirações teatrais eram diferentes: o mestre russo buscava encontrar uma forma
de interpretação que mais se aproximasse da realidade, enquanto o mestre
alemão buscava uma maneira de se comunicar com público, ensinando-o por
meio da reflexão. Talvez a grande diferença não esteja em seus métodos e sim
em seus objetivos finais.
Essas considerações teóricas estenderam-se para a prática, demonstrando
a possibilidade de utilizar os dois métodos no mesmo processo teatral.
A montagem de “Sacra Folia” mostrou mais um desafio para a aplicação
dos métodos: essa obra, do dramaturgo brasileiro Luís Alberto de Abreu, está
classificada como “Comédia Popular Brasileira” e tem características próprias de
uma linguagem construída a partir de um ritmo adequado e dos conceitos de
triangulação e dupla cômica.
Estes desafios serviram para mostrar que os métodos são aplicáveis em
diferentes linguagens teatrais, desde que exista um ator interpretando uma
personagem e, mais que isto, eles podem coexistir respeitando as diferenças e as
similaridades de ambos como um complemento para uma técnica mais completa.
As questões levantadas neste trabalho relacionam-se aos métodos, mas
também à aplicação prática dos mesmos e às considerações pessoais do próprio
ator. O ator que segue cegamente as indicações do diretor, sem dar sugestões ou
sem criar em seu personagem sua própria comunicação, não é um artista pleno e
sim uma ferramenta de outro artista. Os métodos possibilitam que o ator execute
todas as indicações do texto e do diretor, porém, com um estudo mais
55
aprofundado sobre Brecht e Stanislavski, percebe-se que o ator deve ser parte
predominantemente participativa e criativa na obra.
O ator é participativo e criativo na obra teatral desde que esta forma de arte
surgiu. No entanto, os estudos teóricos do teatro normalmente são calcados em
referências do teatro formal, o qual, em muitos períodos, desenvolveu-se com a
supremacia do texto e do diretor, em detrimento da contribuição criativa do ator.
Ao passo que, assim como na Commedia dell´arte os próprios atores inventavam
a dramaturgia, improvisando com base em um roteiro, isto acontece nos gêneros
populares do teatro dito não oficial, desde de os primórdios do teatro.
As formas teatrais contemporâneas têm como principal preceito a
participação e criação do ator, como, por exemplo, o teatro colaborativo que
segundo, ABREU (2004:1)
“Isso significa que busca prescindir de qualquer hierarquia
pré-estabelecida e que feudos e espaços exclusivos no
processo de criação são eliminados. Em outras palavras, o
palco não é reinado do ator, nem o texto é a arquitetura do
espetáculo, nem a geometria cênica é exclusividade do
diretor. Todos esses criadores e todos os outros mais
colocam experiência, conhecimento e talento a serviço da
construção do espetáculo de tal forma que se tornam
imprecisos os limites e o alcance da atuação de cada um
deles.”
O processo colaborativo é o processo de montagem de um espetáculo no
qual todos os envolvidos (diretor, dramaturgo, atores, e mesmo cenógrafos,
iluminadores e figurinistas), fazem proposições de cenas de acordo com diversas
referências que podem ser propostas pelo grupo. Essas proposições são testadas
em sua totalidade, apreciadas, criticadas e construídas e é a partir desse
processo que nasce uma dramaturgia.
Vale lembrar que a peça “Sacra Folia”, objeto de nosso estudo, foi criada
por Abreu em um processo colaborativo com a “fraternal companhia de artes e
56
malas artes”, sendo o método muito usado pelas mais significativas companhias
de teatro em São Paulo.
Segundo NININ (2009:30): “Luís Alberto de Abreu, nos trabalhos com a
Fraternal Cia. de Arte e Malas-Artes e na elaboração de seus textos
dramatúrgicos, em caráter colaborativo, utiliza-se deste conceito.”
O presente trabalho tem como sugestão o fomento da ideia de que a arte
tem de ser regida com responsabilidade, e as artes cênicas não devem ser
banalizadas com interpretações não fundamentadas conceitualmente e
tecnicamente, assim como não devem ser frias e desprovidas de participação de
todos os envolvidos no processo.
Na montagem de “Sacra Folia”, muito da experiência pessoal do ator foi
incluída na personagem, como pudemos ver29, ao buscar a figura do nordestino
em suas referências anteriores e na escolha das ações físicas pertinentes, por
exemplo, na forma corporal de Matias Cão.
Poderia ter escolhido diversas formas, coluna reta, pés voltados para frente
e paralelos, para comunicar superioridade, já que a personagem utiliza como
recurso muitas falas supostamente cultas, e variar esta forma quando está em
contato com personagens que o rebaixam, ou então, poderia ter escolhido os
ombros, os joelhos e os pés projetados para frente, com movimentos lentos e a
bacia e cabeça projetadas para o chão, compondo assim uma aparência sempre
cansada, no entanto, as escolhas feitas, joelhos flexionados, pés voltados para
fora (en dehors), a bacia projetada para frente e os movimentos rápidos, foram as
escolhas assumidas, por comunicarem uma personagem ativa e possibilitar a
mudança do gestus e das ações físicas de acordo com as necessidades da cena.
(figura 3).
29
Capítulos 3.6. e 3.6.1.
57
Figura 3: Mateúsa (Luciana Cruz) e Matias Cão (Rodrigo Guergolet) - Exemplo da forma corporal escolhida para
Matias Cão. (Foto de Nicolas Rossini de Rezende)
Muitos conceitos e ideias são passados ao público pela personagem por
escolha do ator, usando as técnicas dos autores estudados para potencializar a
comunicação do entendimento que o próprio ator teve do texto de Luís Alberto de
Abreu, das discussões do coletivo e da direção.
A responsabilidade do ator é principalmente com o público, no entanto é
importante frisar que o teatro é uma atividade coletiva, mesmo em um monólogo
muitas pessoas se envolvem para que a obra seja executada, é muito importante,
para o bom desenvolvimento da personagem que o ator considere as opiniões do
diretor e dos seus companheiros de cena. Brecht indica em seu método que se
estude as relações das personagens e observe os outros atores, para conseguir o
efeito de distanciamento.
A arte é vista como subjetiva em todas as suas vertentes, no entanto, ficam
claras as técnicas e procedimentos envolvidos em um trabalho de qualidade.
Muito pode e deve ser pesquisado destes grandes autores e da prática desses
processos, afinal os desafios encontrados na “comédia popular brasileira”, são
58
diferentes dos desafios encontrados nas inúmeras e diferentes linguagens
teatrais.
Portanto, o corpo e a ação física (inclusive quando ela é um gestus) são
ferramentas importantes para a construção da personagem, e deve-se respeitar
um aspecto ético, como afirma BONFITTO (2009), além disso, não existe uma
maneira padrão de se compor uma personagem e, sim, técnicas que ajudam
nesse processo, as quais devem ser utilizadas de forma consciente e
aprofundadas.
59
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABREU, Luís Alberto. Comédia Popular Brasileira: Burundanga; O anel de
magalão; Sacra Folia; O panturião. São Paulo, Siemens, 1996.
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. 4ªedição, tradução: Maria Paula
V. Zurawsky; J. Guinsburg, Sérgio Coelho e Clóvis Garcia. São Paulo,
Perspectiva, 2010
BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços, 1ª edição, São Paulo, Editora UNESP,
2003
BONFITTO, Matteo. O ator compositor. São Paulo: Perspectiva, 2009
BRECHT, Bertold. Estudos Sobre Teatro. 1ª edição, tradução Fiama Pais
Brandão. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1978.
_______, Teatro completo em 12 volumes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
NININ, Roberta Cristina. Projeto comédia popular brasileira da fraternal
companhia de arte e malas artes (1993-2008): trajetória do ver, ouvir e
imaginar. 2009, 174, Mestrado, UNESP – Instituto de artes.
STANISLAVSKI, Konstantin, A criação de um papel. , tradução: Pontes de Paula
Lima. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1984
____________, Konstantin , Manual do ator. 2ª edição, São Paulo, Martins
Fontes, 2001
____________, Minha vida na arte. , tradução: Paulo Bezerra. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1989
ARTIGOS
ABREU, Luís Alberto de. Processo Colaborativo: Relato e Reflexões sobre uma
Experiência de Criação. Cadernos da ELT. ELT, Santo André, 2004
BRITO, Ruben de Souza. O Grupo de Teatro Mambembe e o Circo-Teatro. In
Sala Preta. São Paulo: ECA/USP. nº6, p.79-85, 2006
COSTA, Iná Camargo. Aproximação e distanciamento: o interesse de Brecht por
Stanislavski. In Sala Preta. São Paulo: ECA/USP. nº2, p. 49-60, 2002
NETO, Francisco de Assis Gaspar. O gesto entre dois universos: a noção de
60
gestus no teatro de Bertold Brecht e no cinema dos corpos de Giles
Deleuze. In Revista Científica. Curitiba: FAP, v.4, n.1 p.1-15, jan./jun. 2009
SITES
Portal Uol: http://michaelis.uol.com.br/ acessado no dia 14/02/2011
Portal da Cia Arte Húmus: www.artehumus.blogspot.com.br/ acessado 03/06/2011
FILMES
A BELA DO PALCO “COMPLEAT FEMALE STAGE BEAUTY”. Dirigido por
Richard Eyre e escrito por Jeffrey Hatcher. Holliwood, EUA, 2004, 1 DVD
de vídeo (110min), color.
OFICINAS CULTURAIS NA TV. Dirigido por Sérgio Zeigler e Philippe Barcinski
com roteiro de Beto Moraes, Braulio Mantovani, Cláudia Dalla Verde e
Felipe Doctors. São Paulo: TV Cultura, Brasil, 1994.
61
6. ANEXOS
6.1. TEXTO: SACRA FOLIA DE LUIZ ALBERTO DE ABREU
Não poderíamos deixar de especificar qual o contexto da peça e sua
história nesta montagem, levando em consideração é à base das pesquisas para
o desenvolvimento deste estudo. O texto a ser encenado foi retirado do livro
“Comédia Popular Brasileira; O Anel de Magalão; Sacra Folia; Panturião”30 que é
um livro publicado com os três textos do título porém foi impresso por uma
empresa privada (Siemens), o que não o disponibiliza para venda, por este motivo
decidimos reproduzir o texto na integra assim como escrito no livro.
Vale lembrar que o texto não se mantém igual durante a montagem, sendo
adaptado de acordo com as necessidades do grupo.
As personagens
Aqui há especificações de que ator do grupo citado faz cada personagem,
para facilitar a leitura do desenvolvimento do processo prático:
João Teité – Rafael de Oliveira Nascimento
Matias Cão – Rodrigo José Guergolet (Ator Pesquisador)
Maria – Monique Juliana Pereira
José – Danilo de Souza Conceição
Gabriel – Thiago Moellas Nicoletti
Assistente de Gabriel 1 – Suzana Rossini Rezende
Assistente de Gabriel 2 – Fernanda Guerra
Herodes – Thiago Aparecido Miranda
Boracéia – Suzana de Oliveira Mendonça
Mateúsa – Luciana Cristina Cruz dos Santos
Demônio – Orlando de Souza
30
ABREU, Luiz Alberto. Comédia Popular Brasileira; O Anel de Magalão; Sacra Folia;
Panturião. São Paulo: Siemens, 1996.
62
Assistente de Demônio – Mariana Benjamin Mendonça
Pedro Eduardo Silva – Direção de ator e Iluminação
Márcio Genuíno - Sonoplastia
SACRA FOLIA
Prólogo I
Com o público já no saguão, o anjo Gabriel, com as devidas asas e
auréola, abre as portas do teatro e anuncia com voz entoada como um arauto.
GABRIEL – Sacra Folia! Vinde ver um respeitoso e risonho auto de Natal que
recorda as peripécias da Sagrada Família no tempo em que andou por Goiás,
Minas e Paraíba! Sacra Folia! Vinde ver a luta entre o arcanjo São Gabriel e o
demo aqui nas terras do Brasil! Sacra Folia! Vinde ver e acompanhar, contritos e
horrorizados, o episódio da matança dos inocentes! E vinde rir e cantar de alegria
como triunfo final de Maria, José e do menino-Deus! Sacra Folia! Vinde, oh, vinde!
(Anjo vira-se e conclama o público a acompanhá-lo. Canta “oh, Vinde” juntamente
com os outros atores, vestidos como personagens de O Anel de Magalão, que se
dispõem em vários pontos do teatro. Atores cantam agitando fitas até que todo o
público se acomode.)
Vinde, oh, vinde todos
Aqui em Belém
Já nasceu o menino.
Cantemos amém!
Rompem as aleluias ao nascer da aurora.
Ao nascer da aurora.
63
Abram vosso riso,
A partir de agora.
Na aridez no mundo,
Um galho floresceu.
O galho é Maria
E a Flor é Deus.
A estrela-guia
Já cruzou o céu,
Clareando a noite,
Desvendando o véu.
Sorriso de sol,
Água cristalina,
Orvalho da noite,
Centelha divina.
O menino-Deus
Que agora nos acena.
Está entre nós,
Vale a vida a pena.
GABRIEL – Respeitável público!
Desculpai minha ousadia
De pedir neste momento
Seu maior tesouro.
Não, não quero nosso ouro,
Nem vossos sonhos à noite
Nem vosso trabalho de dia.
Para continuar
Esta função já em curso
Peço o que não tem preço.
Mais caro que vossa atenção e apreço
Peço o concurso de vossa imaginação.
E na falta de grandes cenários,
64
Ricas roupas e ornamentos,
Contai com nosso pouco talento,
Que contamos com vosso generoso coração.
E, para que nossa arte
Valha a pena,
Seja a nossa e a vossa
Uma só criação.
E que seja o chão nu desta arena
O vasto território de vossa imaginação.
Sacra Folia!
Sobre a massuda e gorda aparência de Mané Marruá, vede o rei da Judéia,
Herodes... (Mané Marruá coloca elementos que o identificam como Herodes. E
assim será feito com os outros atores.) Cavernosa e terrível figura que cai como
luva na pele do nosso ator. Aqueloutra furiosa figura é o par perfeito para tão
torpe e mau famigerado rei: a mulher de Herodes, vivida por Boracéia. O general
Euriclenes, mui apropriadamente interpretará o soldado de Herodes que fará feroz
perseguição ao menino-Deus. Major Aristóbulo será o vil, o sujo, o mais
demoniado demônio de que já se teve noticia. A doce Mateúsa viverá a esperta
empregada de Herodes. Rosaura e Fabrício, mui indignamente, mas com muita
arte, interpretarão Maria e José. (faz reverência.) Eu, Benedita, já vestida a
caráter, serei o anjo Gabriel. E, por último, o resto, restinho, restolho, sobrante, o
que ninguém quer a lei proíbe de dar fim, Matias Cão, guia de caravana, e João
Teité, seu sócio impostor. Sacra Folia! E que tenha início nossa alegre
representação.
(Atores,cantando, iniciam uma coreografia de roda pelo palco. Algo muito simples,
como uma ciranda. A coreografia oculta por alguns momentos as figuras de Maria
e José. Quando as descobre novamente, Maria tem Jesus envolto em panos e
fitas. Maria e José dançam apresentando o menino-Deus ao público. Alguém
canta, enquanto de mãos dadas, como numa ciranda, os atores saem. Por último,
65
sai a Sagrada Família e o cantor. O clima tocante é quebrado por um grito
estridente de raiva. Entra Mateúsa, perseguida por Boracéia.)
MATEÚSA – Deus me livre e todos profetas me aguardem! Amai nem atada de
pé e mão, amordaçada e arreada eu não faço os seus desejos!
BORACÉIA - Que é isso, menina? Fala baixo! Que é que o povo vai pensar de
mim?
MATEÚSA – Sei, lá, mai não quero ter parte com o sujo, com o tirano, com o
diabo, que Deus me livre!
BORACÉIA – Você é minha escrava!
MATEÚSA – Já fiz todo meu serviço!
BORACÉIA – Vai fazer hora extra!
MATEÚSA – E aqui na Judéia escravo faz hora extra invocando o demo, é? Não
esta no meu contrato de trabalho!
BORACÉIA – E escrava lá tem contrato? Vai me ajudar, sim, a terminar o que
comecei.
MATEÚSA – Mai nem com ordem do papa!
BORACÉIA – Que papa? Não tem papa! Estamos na Judéia, no tempo de
Herodes, lembra, sua burra?
MATEÚSA – (Percebe a mancada) É. O que quis dizer é que nem vinte, nem
cinqüenta, nem cem turiões romanos vão me obrigar a ajudar a senhora nessa
66
bruxaria! Não me mete nessas coisas de pacto com o capeta, dona Boracéia.
Mexer com o chifrudo só dá certo quando o marido é manso!
BORACÉIA – Primeiro, que o demônio não é tão feito quanto pintam! Segundo,
que quem ama o feio, bonito lhe parece! Terceiro, resto de cangalha velha, que
não se deve parar uma invocação no meio!
MATEÚSA – (assustada.) Não? E por quê?
BORACÉIA – Tudo pode acontecer!
MATEÚSA – Não tenho nada a ver com isso. Não sabia que era pacto. E eu não
falo aquelas palavra esquisitas para chamar o diabo. (apavorada) pelos profetas
do Aleijadinho!
BORACÉIA – Que Aleijadinho? Não tem... (Vira-se e grita de susto ao ver um
demônio torto e manco que entra.) Quem é você?
DEMÔNIO – Eu ou o cão, coisa-ruim, azucrim, arrenegado, cafute, demo,
rabudo...
MATEÚSA – (Cortando) Dá licença, seu diabo, que eu não vou esperar o senhor
dizer todos os sobrenomes, não, tá? Eu vou ali na casinha e já volto! (Sai
correndo.)
BORACÉIA – (Descrente) Você é um demônio? (demônio tira do bolso um cartão
e entrega a Boracéia) Vigésima quinta legião, quadragésima oitava categoria!
(Mede o Demônio de alto a baixo) Bem vi que você era um diabrete muito
mixuruca! (Olha de novo o cartão) Que é isto? CRM? És médico?
DEMÔNIO – Conselho Regional do Mal, dona!
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BORACÉIA – Pois muito bem! Quero o poder de Herodes, meu marido! Quero
reinar sozinha na Judéia!
DEMÔNIO - Não posso fazer isso.
BORACÉIA – Então pode voltar pro meio do enxofre de onde veio! E me mande
alguém mais competente! (entra Herodes, gargalhando.)
HERODES – Então, queria meu lugar, cobra peçonhenta?
BORACÉIA – (furiosa) Queria, sim, pedra do meu rim, bílis do meu fígado, ácido
clorídrico da minha gastrite! Faria do poder bem melhor uso.
HERODES - Não enquanto eu tiver!
BORACÉIA – Pra tudo existe um jeito na vida! E se esse diabo velho e frouxo não
presta para o que quero, vou invocar um que justifica a fama!
HERODES – Pode desistir, ó, escorpião da minha cama, sou compadre do chefe
desse aí! (Aponta o demônio)
BORACÉIA – (mordendo a mão.) Ai, que me mastigo de ódio! Que de raiva me
como a dentadas!
HERODES – Enquanto você ia procurar a cobra eu já voltava com o veneno!
BORACÉIA – Veneno é o que vou pôr na sua bebida!
DEMÔNIO – Silêncio! O momento é grave! Nasceu o novo rei dos Judeus!
BORACÉIA – Como? (Aponta Herodes) O rei é ele! E quando ele se for, o que
não deve demorar muito, a Judéia vai ter uma rainha: eu!
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HERODES – Então o que disseram os reis magos era verdade?
BORACÉIA – Alguém quer me explicar o que está acontecendo?
DEMÔNIO – Nasceu o “filho do homem”.
BORACÉIA – Que filho? Que homem? (Para Herodes) Ah! Seu filho,
desgraçado? (avança para Herodes.) Traiu-me com quem, maldito? Ai, se que se
te pego, arranco o mau pela raiz!
HERODES – Que meu filho o quê! É a profecia que diz que vai nascer um filho do
homem que também é o filho de Deus. Será o Messias, o enviado, e dele será o
poder de todos o reis da terra!
BORACÉIA – Vai tomar o seu lugar?
HERODES – Parece que sim. E ao que tudo indica ele já nasceu!
BORACÉIA – E eu?
HERODES – Pra minha última alegria, você vai cair do trono antes de nele ter
subido!
BORACÉIA – Ai, que me desfaleço, que sucumbo, que me sufoco! (trágica.) Ah, a
injustiça da vida que marca a ferro o sonho humano: tantas boas intrigas que fiz,
quantas bem planejadas conspirações, tantas profundas vilanias e bem pensadas
traições! Tudo em voes! A vida passa como vendaval que varre todo nosso
esforço! (muda de tom.) Mas vamos pensar em coisas mais alegres: eu queria
pegar esse rei que nasceu e dar-lhe um fim tão bem dado...
HERODES – Mas como saber entre tantas crianças quem é o enviado?
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DEMÔNIO – Só há um jeito! (Saem. Entra o anjo Gabriel.)
Prólogo 2 - A matança dos inocentes
GABRIEL – Cessai vosso riso
por um momento apenas,
E perdoai se rompo vossa alegria
para lembrar penosos dias
de muitas lágrimas
e de não poucas penas.
Soldados de Herodes Armaram-se
Com gládio, espada e lança.
Sim, houve um tempo
em que homens matavam crianças.
A aldeia de Betânia, perto do rio Jordão, amanheceu como sempre amanhecia:
silêncio bom de paz e sono. Cavalos e soldados entraram a passo lento nessa
aldeia, nessa manhã, nessa paz. Em silêncio, as espadas ergueram-se nas mãos
e em estrondo de portas arrombadas, de gritos e ordens, as espadas procuraram
os inocentes. Nos berços, nos braços das mães, sob as camas, fugindo com
passinhos miúdos. Encontraram todos num zás, traz e truz de corte e talho e
saíram com a consciência do dever cumprido. E a aldeia de Betânia, perto do rio
Jordão, entardeceu naquele dia, marcada inteira de morte, como nunca
entardecia. (soldados saem e entram novamente.) Cruzaram e recruzaram o país
e de madrugada chegaram ao rio. Os inocentes, desta vez, dormiam, atrás de um
templo, amontoados, um cobertor do outro. A grande cidade também dormia.
Então eles chegaram na velocidade de um vertigem e freiaram os carros
bruscamente como quem fecha os olhos. E canto dos pneus entrou no sonho e os
inocentes abriram os olhos para ver a morte. E foi bala e bala, papapá de tiro,
olho fechado de homem mirando pontaria em corpo de menino. E, depois,
silêncio. E depois do silêncio, as portas bateram com pressa e os carros
70
arrancaram. De manhã, levaram os corpos e lavaram o chão. Eu conto o que
fizeram os soldados de Herodes para que não se lave a lembrança. Sim, há um
tempo em que homens matam crianças. (Longa pausa.)
E com este momento contrito
E com a fuga do menino-Deus
Para o Egito
Termina o prólogo desta representação.
Retomai o vosso riso
Recolhei vossa emoção
E, de agora até o fim,
Seja mandante a alegria.
Em vossa vida, doravante,
Seja a dor tão inconstante
Como há de ser nesta Sacra Folia.
Cena 1 – Uma estranha anunciação
Entra João Teité correndo e gritando, perseguido por Matias Cão.
MATIAS CÃO – Quebro-lhe em dois, parto-lhe em três, descadeiro-lhe os
quartos, lhe mando pros quintos, seu peste!
JOÃO TEITÉ – Vamos resolver nossas diferenças como pessoas maduras,
Matias! Precisamos entrar num acordo!
MATIAS CÃO – Eu bato e você chora, eu surro e você grita, eu entro com a vara
e você com o lombo, seu filho...
JOÃO TEITÉ – (Cortando.) Não pode falar palavrão em auto de Natal!
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MATIAS CÃO – (Pausa. Raciocina e emenda.)... de mulher sobre a qual pesam
suspeitas de contumácia em relações licenciosas e ilícitas com inúmeros
desconhecidos!
JOÃO TEITÉ – Ô, doido, Matias, essa humilhou! Eu preferia um palavrão curto e
grosso, alto e claro! (Choroso.) Isso magoa, ouviu, Matias!
MATIAS CÃO – Venha cá!
JOÃO TEITÉ – (Como criança.) Só vou se você falar que não me bate!
MATIAS CÃO – Venha cá que estou mandando!
JOÃO TEITÉ – Então não me bate!
MATIAS CÃO – Maldita hora em que lhe pus como sócio de minha companhia de
transporte!
JOÃO TEITÉ – Sua, não, nossa!
MATIAS CÃO – Agora não é nem minha, nem nossa! Você deu sumiço no único
jegue que a gente tinha.
JOÃO TEITÉ – Questão de opinião! Eu fiz um investimento! (Matias ameaça
pegar Teité, que corre.)
MATIAS CÃO – Eu vou lhe pegar, lhe arrear e lhe vou colocar no lugar do jegue,
condenado!
JOÃO TEITÉ – Eu só tive um pouco de azar. Isso acontece todo dia com
qualquer investidor da bolsa de valores!
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MATIAS CÃO – Venha cá!
JOÃO TEITÉ – Então não me bate!
MATIAS CÃO – Não bato, se você me explicar porque rifou o jegue!
JOÃO TEITÉ – Estava tudo bem pensado, Matias! Escuta e me dê razão: eu fiz
duzentos números pra vender a cinco reais cada. Cinco vezes duzentos, mil. O
seu jegue valia trezentos. Setecentos de lucro, Matias! Um ótimo retorno do
investimento!
MATIAS CÃO – E onde está o lucro? Onde está o jegue?
JOÃO TEITÉ – Problemas de marketing: a imagem do produto não correspondeu
às expectativas do consumidor. Tive de baixar minha expectativa de lucro e vendi
cada número a vinte centavos.
MATIAS CÃO – ah, desgraçado! Vendeu por quarenta reais um jegue que valia
trezentos!
JOÃO TEITÉ – Calma! Vê a relação custo-benefício: tive lucro de quarenta reais
porque o jegue não era meu.
MATIAS CÃO – Eu vou vender seu couro para fazer torresmo! Me dá os quarenta
reais!
JOÃO TEITÉ – Gastei como justo pagamento por todo o trabalho de
planejamento e execução do investimento! (Sai correndo.)
MATIAS CÃO – (Olha para o céu.) Deus, com todo o respeito, admite, sem
desdouro nenhum, admite: o senhor errou muito quando fez esse traste! Ou,
então, quis se superar depois das dez pragas do Egito!
73
(Entra o anjo Gabriel.) Vote! Que tipo de espécie de coisa é esse negócio?
GABRIEL – Sou o anjo Gabriel!
MATIAS CÃO – De verdade? E pode provar? (Gabriel faz uns passes com os
braços como um mágico prestidigitador e, por final, retira da manga da túnica uma
carteira de identidade que entrega a Matias.)
MATIAS CÃO – (Lendo.) RG. 5.379.886, SSP. Está bem mas o que é que o anjo
quer?
GABRIEL – Preciso de sua ajuda.
MATIAS CÃO – Chi!!! Para um anjo precisar de ajuda de Matias Cão só pode
estar metido em enrascada das grossas. Diga lá.
GABRIEL – É que nasceu uma criança. ( Matias olha espantado.)
MATIAS CÃO – Que mal lhe pergunte mas por um acaso... assim... bem
intencional, a criança é sua?
GABRIEL – É filho de Deus.
MATIAS CÃO – Sim, eu sei, todos somos, mas eu pergunto é quem é o pai da
criança?
GABRIEL – É Deus! O verbo, o sopro divino se fez homem e habita entre vós,
como anunciaram os profetas.
MATIAS CÃO – E é, é? Quer dizer que Deus tá aí, andando no mundo, como
homem cidadão?
74
GABRIEL – Exatamente. E é por isso que precisamos de ajuda. Pra fugir dos
soldados de Herodes, a Sagrada Família fugiu para o Egito e acabou se
perdendo. Tanto andaram sem rumo que vieram bater por essas bandas do
Brasil. E, agora, Herodes, seus soldados e o próprio Demônio estão perseguindo
o menino-Deus.
MATIAS CÃO – E a ajuda é prá enfrentar o demo, é? E onde é que se pede
dispensa? Tenho pé-chato, sou arrimo de família! (João Teité retorna e, ao
perceber o anjo, põe-se a ouvir às escondidas.)
GABRIEL – Dessa luta ninguém tem dispensa.
MATIAS CÃO – E o que é que eu ganho?
GABRIEL – Muitas riquezas e o reconhecimento do Todo-Poderoso!
JOÃO TEITÉ – Fernando Henrique Cardoso! O Matias deve ter feito um negocião
com o governo federal!31
MATIAS CÃO – E o que é que eu tenho de fazer?
GABRIEL – Guiar a Sagrada Família de volta ao Egito. E depois levá-la, sã e
salva, para Belém.
MATIAS CÃO – Ichi! Um estirão! Esse Egito deve de ser um par de léguas prá lá
de Goiás, que é o lugar mais longe que eu conheço. Não dá prá soltar algum
adiantamento pelos serviços a serem prestados?
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Referencia de 1997 ano em que o texto foi escrito, atualizado e substituído pelo contexto de 2011, Fernando Henrique virou Barack Obama presidente dos Estado unidos da América.
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GABRIEL – Só pagamos no final do trabalho feito. Você encontra a Sagrada
Família na praça aí perto. E, rápido, que não temos tempo a perder.
MATIAS CÃO – Num minuto estou lá. (Saem.)
JOÃO TEITÉ – Pois eu vou estar em trinta segundos, Matias! Não me quis mais
como sócio? Então vai me ter como concorrente! Esse cliente já é meu, Matias!
Se Matias Cão é esperto, João Teité é esperto e meio! (Sai correndo. Entra a
Sagrada Família. A virgem vem num burro, puxado por José. Traz Jesus envolto
em panos. Maria pode cantar música folclórica, referente à fuga.)
Cena 2 – Falso encontro e vero desencontro Entra João Teité.
JOÃO TEITÉ- Por acaso, assim, muito de propósito, vocês são a Sagrada
Família?
JOSÉ – (empunha o cajado, em posição de defesa) E por um propósito assim,
muito ao acaso, posso saber quem é você?
JOÃO TEITÉ- Sou o guia. Vou levar vocês até Belém.
JOSÉ - (Mede Teité incrédulo) Você? Será que Gabriel não podia ter encontrado
alguém melhorzinho não?
JOÃO TEITÉ- (Falastrão.) Eu sou o melhor guia do lugar. Conheço a região como
a palma da minha mão direita. (Mostra a palma da mão esquerda.)
JOSÉ – Maria, quando seu filho crescer, pede pra ele olhar por esse lugar que a
coisa aqui deve estar bem feia! Você sabe mesmo o caminho?
JOÃO TEITÉ- Pra Belém eu vou de olho fechado.
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JOSÉ – Então, vamos!
JOÃO TEITÉ- Vamos, nada! Primeiro quero ter certeza que vocês são quem eu
estou procurando. (sucessivamente José, Maria e o menino Jesus apresentam
seus documentos.) José do Santos, Maria de Deus, Jesus Nazareno de Deus!
Tudo certo. E agora, meus honorários: quero boi, porco, frango, peru, tudo de
centena. Leite e derivados, tudo de arroba! Banana de cacho... (Começa a
salivar.)... frutas de baciada, vinho em dúzias...
JOSÉ – De garrafa?
JOÃO TEITÉ- De barril! E duas piscinas olímpicas: uma cheia até a boca de
gelatina, outra até o tampo de pêssego em calda Você me dão isso, dão?
JOSÉ – Não.
JOÃO TEITÉ- Metade disso? Dez bois e uma banana? Dois? Um? Está bem, eu
faço o serviço por uma entrada no rodízio, pra ninguém ficar no prejuízo.
JOSÉ – Tudo isso um dia acaba. Seu pagamento vai ser o maior e mais fino
banquete, como você nunca imaginou, farto, universal e sem fim. Nunca mais
haverá fome...
JOÃO TEITÉ- Não faz isso, pelo amor de Deus! Fome é o tempero da comida, e
sem ele o banquete perde a graça, siô! A felicidade do homem é feita de três
coisa principais: fome, comida e vontade de comer!
JOSÉ – Então, está bem.
JOÃO TEITÉ- Se está bem, bem está! Vamos logo, gente, que eu já me
emociono, salivo, mastigo e como o que ainda é só minha imaginação. (Saem.
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Quase ao mesmo instante entram bruscamente Boracéia, Herodes , o Demônio,
soldados com espadas em riste e Mateúsa, carregando as tralhas de todos.)
BORACÉIA – Ninguém! Não tem ninguém aqui!
DEMÔNIO – Deviam estar.
BORACÉIA – Ai, ai, ai, ai, ai que me doem os joanetes! Se me fizeram andar da
Judéia até essa terra miserável a troco de nada, eu descadeiro um! E vou
começar por você, seu pé-de-bode chifrudo!
DEMÔNIO – Me dê respeito que eu sou um diabo!
BORACÉIA – Mas nem se fosse o rei de todos eles! Ou me diz onde está esse
menino-rei ou arranco seu chifre e encurto seu rabo!
HERODES – (para Demônio) Se eu fosse você achava agora a Sagrada Família.
DEMÔNIO – Ela é só uma mulher!
HERODES – Ela não é só uma mulher! As vezes acho que ela nunca foi mulher.
Duvido até que seja humana. Deve ser alguma espécie de mutação, um elo
perdido.
DEMÔNIO – Eu sou é macho!
HERODES – Tenho dúvidas se vai continuar sendo!
MATEÚSA - É melhor ouvir conselho que ouvir “coitado!”
BORACÉIA – (começando a bufar) Estou ficando nervosa! Não vou ser
responsável pelo estrago! (Todos se afastam de Boracéia.)
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HERODES – Vai virar bicho!
MATEÚSA – Bicho já é! Vai virar outra coisa!
BORACÉIA – Está me subindo a sede! Está me dando a gana de virar esse cão
coxo do avesso só pra ver como que é dentro!
DEMÔNIO – Satanás! Eu volto quando ela virar gente de novo. (sai correndo.)
BORACÉIA – Se eu botar a mão em um, estrago tanto o couro que médico
nenhum vai dá jeito. (Segura Matias cão, que entra.)
MATIAS CÃO – Vote! Quem pode me acode, gente!
BORACÉIA – Quem é você?
MATIAS CÃO – (Assustado.) Quem a senhora quer que eu seja?
BORACÉIA – Está brincando com a minha cara?
MATIAS CÃO – Não, dona, estou levando muito a sério.
BORACÉIA – Acho que vou lhe partir a fuça.
MATIAS CÃO – Não faz isso, dona, que vou ser obrigado a reagir e aí vou
apanhar mais ainda. Faz de conta que não me viu que eu faço de conta que
nunca estive aqui!
BORACÉIA – Pra onde está indo?
HERODES – De onde veio?
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SOLDADO – Que está fazendo aqui?
MATEÚSA – Você já tem companheira? (Todos se voltam para Mateúsa.) Cada
um pergunta o que lhe interessa, uai!
MATIAS CÃO – Vim aqui para encontrar uma sagrada família.
BORACÉIA – (Grita e solta-o) Ah!
MATIAS CÃO – (amedrontado) Que quer dizer esse “Ah!”?
HERODES – Que acabou de encontrar!
MATIAS CÃO – (Incrédulo.) Vocês são a sagrada família?
HERODES – Bem, parte dela. É uma família muito grande. (Aponta Boracéia) Ela
é a sogra, eu sou o cunhado, aquele é um primo.
MATIAS CÃO – E tem certeza que a outra parte também está querendo se
reunir?
BORACÉIA – Que quer dizer?
MATIAS CÃO – É que, por experiência própria e familiar, sei que encarar, de uma
vez só, cunhado, sogra e primo, ó sendo uma família muito sagrada mesmo!
BORACÉIA – Eles estão correndo perigo. Precisamos ajudá-los.
MATIAS CÃO - Eu sei, o anjo me contou.
HERODES – Sabe onde estão?
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MATIAS CÃO – (Professoral) Não, senhor, mas posso saber. Pra saber preciso
procurar, procurar cansa, o cansaço me faz suar, suar faz perder vitaminas e sais
minerais que precisam ser repostos, repor vitaminas e sais minerais custa
dinheiro, logo...
HERODES – Não lhe dou um tostão, explorador da dor alheia!
BORACÉIA – Paga logo, tonel de toucinho!
MATIAS CÃO – Isso! É igual lá em casa: manda quem pode obedece quem tem
juízo!
HERODES – Vai esperando que o seu tá assando!
BORACÉIA – Vamos!
MATIAS CÃO – Todo mundo aqui pertence a família?
BORACÉIA – Menos aquela escrava imprestável!
MATIAS CÃO – Se for jogar fora eu quero, viu?
BORACÉIA – Isso não serve pra nada
MATIAS CÃO – Sempre serve! Uma vez consegui uma igualzinha a essa, por um
canivete, numa feira de troca! (Mateúsa dá-lhe um cascudo) Isso, bate em quem
você vai gostar! Amacia a carne que você vai alisar!
MATEÚSA – (Boquiaberta pela surpresa, tenta falar mas a voz não sai.) Se o
senhor me deixar, assim, sem graça outra vez eu não sei o que eu faço!
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MATIAS CÃO – Quer sugestão?
BORACÉIA – Vamos parar com esses arrufos que pombinhos só gosto como
galeto! Vamos atrás dos fugitivos!
MATIAS CÃO – Não é preciso. Se passaram por aqui, eles vão bater direto na
estalagem
BORACÉIA – E no meio desse sertão desgraçado tem uma estalagem?
MATIAS CÃO – Tem, dona! São léguas e mais léguas de caatinga esturricada,
onde não vive nem calango, nem bacurau, mas tem estalagem.
BORACÉIA – Não passa ninguém por aqui!
MATIAS CÃO – Não passa ninguém, mas tem estalagem!
BORACÉIA – E de quem é?
MATIAS CÃO – (Meio irritado.) Não tem dono, não mora ninguém mas é pra lá
que agente vai!
BORACÉIA – Mas...
MATIAS CÃO - (Explodindo) Se agente não for a história não segue, cápita!
Porco cane! E andiamo, via, Che rompo i musi e la faccia de tutti quanti, porca
miséria! (Saem)
Cena 3 – Perdido no sertão
Entra João Teité, com a mão em pala, divisando o horizonte. Atrás dele entra
Maria em seu burrico, com Jesus no colo. De seu burrico sai uma haste. Na ponta
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da haste, um cordão que vai até outra haste que é segura, mais atrás, por José.
No cordão (varal) estão estendidas várias fraldas.
JOSÉ - Está vendo alguma coisa?
JOÃO TEITÉ - Estou mas não conheço nada do que estou vendo.
JOSÉ - Estamos perdidos, então?
JOÃO TEITÉ - Daqui estamos indo pra lá.
JOSÉ - E onde é lá?
JOÃO TEITÉ - O problema está ai. (José pega o cajado.) Calma! Tenho certeza
que estamos indo pra divisa de Sergipe com a Paraíba.
JOSÉ - É bom que esteja certo! (Aparece uma seta com a inscrição: “Paraguai, a
2 km”. João Teité toma um susto e pára.)
JOÃO TEITÉ - Ave Maria!
MARIA - Que quer?
JOÃO TEITÉ - Não é nada com a senhora, não. Acho que estamos com um
pequeno problema.
MARIA - Eu também estou. José, molhou mais uma! (José dá o varal para João
Teité segurar e leva uma fralda para Maria, que se vira de costas e troca o
menino, brincando com ele.)
JOÃO TEITÉ - (Abre os braços tentando descobrir os pontos cardeais.)
Colocando-se de frente pra onde nasce o sol e abrindo os braços em cruz, temos
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à direita o sul, à esquerda... Ou era ao contrário? Ou o oeste é à esquerda? Eu
faltei nessa aula de Geometria!
JOSÉ - Estamos perdidos, Teité?
JOÃO TEITÉ - Não. Estamos perto do Paraguai. Só não sei onde fica esse diacho
de lugar! (José toma o cajado.) Que é que vai fazer, seu José?
JOSÉ - Sou conhecido como um velho paciente. Acho que vou mudar minha
biografia!
JOÃO TEITÉ - Mãe de Deus!
MARIA - Não me envolvam nisso! Resolvam vocês!
JOSÉ - Não vou tirar lasca! Só botar um pouco de juízo na sua cabeça!
JOÃO TEITÉ - Vê o lado bom da coisa, seu José: Estamos tão perdidos que o
Demônio e o Herodes nunca vão farejar nosso rastro!
JOSÉ - (Acalmando-se) Tem lógica! Mas a gente não pode ficar perdido pra
sempre.
MARIA - Deixa que isso eu resolvo. Teité, pra que lado você acha que é a
estalagem?
JOÃO TEITÉ - Tenho certeza absoluta que é naquela direção.
MARIA - Burrinho, qual é o caminho da estalagem? (Burro vira-se na direção
contrária de Teité.) José, vamos por aqui. (Tomam a direção apontada pelo
burro.)
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JOSÉ - Sempre se encontra um burro que sabe mais que o outro! (Saem.)
JOÃO TEITÉ - Espera, que o guia tem de ir na frente. (Sai.)
Cena 4 – A trama desfeita
Entra Matias seguido de Boracéia
MATIAS CÃO - Não sei o que pode ter acontecido dona Boracéia.
BORACÉIA - Pois trate de saber!
MATIAS CÃO - Eles vão ter que passar por aqui, dona Boracéia!
BORACÉIA - Há uma semana que estamos aqui e nem sinal da Sagrada Família!
MATIAS CÃO - Daqui a pouco eles chegam.
BORACÉIA - Como é que sabe?
MATIAS CÃO - (Irritado.) Se eles não chegarem a história não anda! Mas que
vontade desmedida é essa, dona Boracéia?
BORACÉIA - Não, lhe interessa! Vai procurar, achar e me trazer essa família
aqui, hoje! Do contrário...
MATIAS CÃO - Do contrário...?
BORACÉIA - Deixo para a sua imaginação o que vai lhe acontecer! (Sai furiosa.
Matias fica imaginando o que lhe pode acontecer. Espantado, passa o dedo em
riste no pescoço; dramático, golpeia a mão fechada sobre o peito, como se
cravasse um punhal no coração; horrorizado, passa a mão fechada sobre o
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abdômen, como se fizesse haraquiri e finalmente inicia um gesto de castração
que interrompe e começa a soluçar. Entra Mateúsa.)
MATEÚSA - Matias! Preciso da sua ajuda.
MATIAS CÃO - Eu preciso de uma ajuda e meia. Tenho que achar a Sagrada
Família.
MATEÚSA - Eu também.
MATIAS CÃO - Não sei o que está acontecendo, mas parece que tem desavença
entre as duas partes da família.
MATEÚSA - Está começando a ficar esperto.
MATIAS CÃO - Não sei se é briga de sogra com nora ou se tem problema de
herança, que é a coisa que mais dá desavença.
MATEÚSA - Eles não são da família. Eles tem é parte com o demo!
MATIAS CÃO - Como é que é?
MATEÚSA - Eles querem matar o menino!
MATIAS CÃO - Jesus!
MATEÚSA - É, esse mesmo! Como é que sabia o nome dele?
MATIAS CÃO - Bem que eu estava desconfiado, quase sabendo, sabia de fato,
mas não sabia de direito! Só não desvendei a verdade por que “in dubio, pro réu”,
data vênia, como diz o direito romano!
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MATEÚSA - Que quer dizer isso?
MATIAS CÃO - Eu sei lá! A gente tem que decorar cada coisa!
MATEÚSA - A gente precisa fazer alguma coisa!
MATIAS CÃO - Azular, sumir, virar uma formiga preta, numa noite escura, dentro
duma caverna escura, escondida em baixo de uma pedra preta!
MATEÚSA - Cadê sua coragem?
MATIAS CÃO - Está cumprindo aviso prévio.
MATEÚSA - A gente precisa cuidar da criança.
MATIAS CÃO - Mas nem é minha!
MATEÚSA - É de todos, conforme a profecia. A gente ampara os passos da
criança agora que, amanhã quando for adulta, ela nos abre os caminhos.
MATIAS CÃO - Está bem, eu vou porque também não gostei dessa gente.
MATEÚSA - Você é um homem justo.
MATIAS CÃO - Já que sou um homem justo, enquanto a família não chega, a
gente podia ajustar a nossa parte.
MATEÚSA - Que está querendo dizer?
MATIAS CÃO - Eu sei que a história principal é da Sagrada Familia, mas a gente,
sabe como é, podia fazer uma históriazinha paralela, assim ó pra animar, um
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pouco o ambiente, enquanto a gente espera... (entra José, seguido pela virgem e
o menino)
JOSÉ - O senhor esteja convosco.
MATIAS CÃO – Esteja com todos.
MATEÚSA – Nossa senhora!
MARIA – Sou eu mesma! Esse é meu marido, José.
MATEÚSA – É a família, só pode ser!
MATIAS CÃO – É. Benvindo todos, mas se atrasassem um bocadinho mais eu
teria adiantado meu lado com a Mateúsa.
MATEÚSA – Matias, a gente tem que tirar os três daqui porque...(Entra Herodes,
seguido de Boracéia e do Soldado.)
HERODES – Pode deixar os hóspedes por nossa conta!
BORACÉIA – Escrava, vá preparar os quartos e as camas. O sono deles pode
deixar que eu preparo! (Ri da própria piada, juntamente com Herodes.) O sono!
HERODES – Bem-vindo a nossa humilde estalagem. Deixem tudo por nossa
conta, coloquem tudo nas nossas mãos. (Ri da piada com Boracéia.)
MATEÚSA – Não!
BORACÉIA – Ainda não foi, caco de entulho! Fora!
MATEÚSA – Matias ajuda. (sai.)
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BORACÉIA – Que beleza de menino! Vem com a titia, vem!
MATIAS CÃO – Não!
BORACÉIA – (Juntamente com Soldado e Herodes.) Como não?!
MATIAS CÃO – (Enquanto explica, vai conduzindo a família para dentro.) A
criança pode ficar com susto, virar o bucho, tomar um ar, pegar quebranto, mau
olhar de revés... (A José.) Depois a gente explica. (Saem.)
BORACÉIA – (Ao Soldado.) Grude, junte e cole neles! (Soldado sai.) E você,
barril de banha, porque não deu cabo da criança assim que viu?
HERODES – Porque estamos em um país estrangeiro. E no estrangeiro existe um
jeito certo de fazer as coisas erradas. Vai ser esta noite.
BORACÉIA – O problema é que você é por demais delicado, é um poeta, uma
flor de diplomacia. Se um dia eu subir no poder você vai ver o que é governar!
(Saem. Entram Matias e Mateúsa.)
MATEÚSA – Que é que agente faz, Matias? O Soldado está guardando a porta
do quarto e não pisca nem pra soltar pum.
MATIAS CÃO – E o que é se sempre se faz numa situação como essa? (Mostra
um pequeno vidro.) O narcótico! Tucha narcótico na água do soldado, na cerveja
do Herodes e na aguardente de Boracéia.
JOÃO TEITÉ – Seu José! Ó, de dentro!
MATIAS CÃO – Que que o Teité... Me deixe sozinho, Mateúsa, que esse
mineirinho, não aparece nos lugares a custa de nada! (Mateúsa vai saindo, mas
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Matias a chama.) Mateúsa, vem cá um pouquinho. (Mateúsa se aproxima. Matias
agarra-a e sapeca-lhe um beijo.)
MATEÚSA – Que é isso, Matias?
MATIAS CÃO – Um amplexo seguido de um ósculo!
MATEÚSA – Pois eu vou dar-lhe cinco dedos no meio da fuça...
MATIAS CÃO – Não tem tempo, Mateúsa! O Teité vem vindo ai... Tem de
preparar o narcótico... a Sagrada Família... Corre! (Mateúsa esbaforida corre à
saída.Pára e percebe o truque.)
MATEÚSA – Seu Matias...
JOÃO TEITÉ – Estou entrando.
MATIAS CÃO – Perdeu sua vez. É hora do João Teité.
MATEÚSA – Você não perde por esperar. (Sai.Entra Teité.)
JOÃO TEITÉ – Por acaso o seu José... Matias! Que surpresa! Que coincidência!
Que inesperado prazer!
MATIAS CÃO – Não posso dizer a mesma coisa!
JOÃO TEITÉ – Mas podia mentir igual eu!
MATIAS CÃO – Que é que está fazendo aqui?
JOÃO TEITÉ – Estou guiando a Sagrada Familia pra Belém!
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MATIAS CÃO – Ah!, Seu traste! Então você pegou meu contrato?!
JOÃO TEITÉ – Negócios! Enquanto você estava tratando com intermediários,
aquele anjo, fui conversar diretamente com o cliente!
MATIAS CÃO – Você atravessou meu negócio!
JOÃO TEITÉ – Agilidade comercial! E, depois, ofereci melhor serviço, melhor
preço, e melhor atendimento! É assim que se trabalha em época de globalização,
seu bestão!
MATIAS CÃO – Sei tralha! Eu ainda lhe pego na curva!
JOÃO TEITÉ – Nem te ligo! O mundo é dos mais espertos, Matias.
MATIAS CÃO – Então esperta o passo que até o fim desse caminho tem muito
chão! (Sai.)
JOÃO TEITÉ – Entre você e eu, o segundo lugar será sempre seu!
Cena 5 – A fuga de Sergipe
Anoitece. De lados contrários do palco entram Matias e Mateúsa, sem se
perceberem. Encontram-se e assustam-se.
MATEÚSA - Ave Maria!
MATIAS CÃO – (pede silêncio, ao mesmo tempo em que entra Maria.) Psiu!
MARIA – Que é?
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MATEÚSA – Não chamei a senhora, não! Foi só jeito de falar. Prepara tudo que
já estamos de saída. (Maria volta pra dentro.)
MATIAS CÃO – Tuchou narcótico? Estão todos dormindo?
MATEÚSA – Fora a gente nossa, não tem um olho aberto nessa casa! (Entra o
demônio.)
DEMÔNIO – Pois, enganou-se!
MATEÚSA – Virgem Maria! (Entra Maria.)
MARIA – Que é?
MATEÚSA – (Com medo.) Chamei, não.
MARIA – (Para si.) Isso já está me irritando!
MATEÚSA – Mas já que veio ajuda agente!
MATIAS CÃO – São José de Nazaré!
JOSÉ – (Off) Estão chamando mesmo ou é só jeito de falar?
MATIAS CÃO – Vem ajudar que a coisa está feia!
DEMÔNIO – E vai ficar pior! Quero o menino!
MARIA – Acima desse menino só existe a força de Deus. E essa força agora está
em mim! Vem, que é hoje que vou esmagar a cabeça dessa serpente conforme a
profecia! (Entra Gabriel.)
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GABRIEL – Deixem a coisa comigo e vão que demônio gasgueia sem precisão e
grita por não ter opinião!
DEMÔNIO – Quem tem coragem não é filho de pai assustado!
GABRIEL – Vamos ver! É no fritar do ovo que a manteiga chia! (Saem todos
menos Matias. O demônio tenta impedir a saída mas Gabriel corta-lhe a
passagem.)
DEMÔNIO – Ou Vai ou racha, ou tudo se escacha ou arrebenta a borracha.
GABRIEL – Não há matreiro que não caia e vou te fazer cair de costas e quebrar
o nariz.
DEMÔNIO – Por um truz, Por um trás, por um triz, perco o cachorro, mas não
perco a perdiz! (Entra Mateúsa e fala pra Matias.)
MATEÚSA – Va´mbora que quando o mar briga com a praia quem paga é o
caranguejo! (Com um puxão retira Matias de cena.)
GABRIEL – Cara feia pra mim é fome e cachorro de outro bairro, que não venha
ladrar neste.
DEMÔNIO – vou te ensinar a comer feijão e arrotar galinha, comer lambari e
arrotar tainha, cabra!
GABRIEL – Cavalo olho-de-porco, diabo de fala grossa, cachorro que não acoa
um não presta e dois à-tôa! (O Demônio tenta responder, mas não lhe vem
nenhuma idéia.)
DEMÔNIO – É... (Desiste e sai furioso. Anjo comemora.)
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Cena 6 – De seqüestro, andanças e negociações
BORACÉIA – Vou lhe macerar, triturar, mastigar
SOLDADO – Não tive culpa!
HERODES – Deixa o homem, coitado! Colocaram alguma coisa em nossa bebida.
E, depois, quanto mais brigamos mais eles se distanciam!
BORACÉIA - (Solta o soldado.) Tem razão. Mas o que eu faço com a minha
raiva? Tenho de bater em alguém!
JOÃO TEITÉ – Não olha pra mim, não, dona! (Boracéia olha para Herodes.)
HERODES – (Meio assustado.) Está bem, pode continuar batendo nele. Mas nem
tanto que o aleije nem tão pouco que você continue com esse mau humor de
cascavel! (Boracéia bate no Soldado. Depois respira fundo aliviada. Dá ainda um
ultimo tabefe no soldado.)
BORACÉIA – Só por segurança!
JOÃO TEITÉ – Pelos pés dos andarilhos, pelas barbas do profeta! Essa mulher é
o Cão!
SOLDADO – Você ainda não viu nada.
JOÃO TEITÉ – E nem quero ver! Vou pegar a Sagrada Familia e sumir daqui!
HERODES – Não vai. Eles fugiram.
JOÃO TEITÉ – Como é?
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BORACÉIA – Fugiram sua besta! Com o tal de Matias cão e minha escrava.
JOÃO TEITÉ – Ah, Vilania!
BORACÉIA – Ah, Mesquinhez humana!
JOÃO TEITÉ – Não se pode confiar em amigos!
BORACÉIA – Nem em escravos!
JOÃO TEITÉ – Fomos miseravelmente traídos! (Sentido) Está certo que algumas
vezes eu sacaneei o Matias, mas não é razão pra esse ato tão desprezível!
BORACÉIA – (Igualmente sentida.) Mateúsa rompeu a mútua confiança, a
relação intima que existe entre senhora e escrava! Teve vez que lhe bati mais do
que ela merecia, mas bem menos do que eu precisava para me relaxar!
HERODES – Formam um belo par! Fica com ela que eu ainda te volto troco!
JOÃO TEITÉ - Agradeço, mas não mereço o castigo!
BORACÉIA – Que quer dizer?
JOÃO TEITÉ – Quero dizer que vou encontrar a Sagrada Família e recuperar
meu posto de guia.
HERODES – Sabe onde encontrá-la?
JOÃO TEITÉ – Não, mas vou virar, mexer, farejar, ciscar todo esse sertão até
achar!
HERODES – Posso fazer um trato.
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JOÃO TEITÉ – Poder, até pode. Se eu vou aceitar vai depender do que vem daí
pra cá.
HERODES – Dou tanto dinheiro que você não vai conseguir contar nem gastar.
JOÃO TEITÉ – Não quero. Primeiro que não gosto de contar dinheiro. E pra que
serve o dinheiro que não se gasta?
BORACÉIA – Que é que quer? Mulheres?
JOÃO TEITÉ – Só gosto de um tipo de mulher: boa cozinheira!
BORACÉIA – Gosta de comida!
JOÃO TEITÉ – De qualquer tipo raça e cor!
HERODES – Então, encontre a Sagrada Família e nos traga o menino.
JOÃO TEITÉ – E posso saber pra que vocês querem o menino?
HERODES – Você conhece a história sagrada?
JOÃO TEITÉ – Não.
BORACÉIA – É o seguinte: eu sou a verdadeira mãe do menino. Seqüestraram o
menino com promessas de Maria-mole e pé-de-moleque.
JOÃO TEITÉ – Pensa que eu sou bobo? Sei que um tal de Herodes tá
procurando o menino pra matar. O nome desse gordo não é Herodes?
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BORACÉIA – É um Homônimo! O coitado já foi até protestado em cartório por
conta disso!
HERODES – Traga-nos a criança e encho sua pança todos os dias em todos os
anos de toda sua vida. Chouriços, presuntos, assados de carneiros, esfihas,
churrasco grego...
JOÃO TEITÉ – Daqueles da Estação da Luz? Chega que você me mata do
coração de ansiedade! Assina o contrato, reconhece firma e autentica, que eu
trago o menino. (para si.) Cala a boca. Consciência, que não consigo lhe ouvir
direito! Só consigo escutar a feijoada borbulhante, o tutu de feijão fumegante, a
costelinha chiando da frigideira, a mandioca fritando no óleo, os doces sons da
minha recompensa! Prepara a mesa e acende o fogo porque, pra quem conhece
esse sertão como conhece a palma da mão direita... (Mostra a mão esquerda.)
...fazer esse serviço é um zás - trás! (Saem. Entra anjo Gabriel. Enquanto Teité
cruza e recruza o palco na captura da Sagrada Família, o anjo narra.)
GABRIEL – As coisas, no entanto, não foram tão fáceis quanto ao Teité pensava.
Ele se perdeu ao sair de Sergipe, errou o caminho que levava a Goiás, tomou
direção contrária ao passar por Santa Catarina, confundiu-se todo na divisa de
Minas e Bahia e não achou o rumo do Maranhão onde Sagrada Família estava.
No entanto, tanto errou pelo País, tanto cruzou e recruzou esse chão, que
acabou, graças à lei das probabilidades, encontrando quem procurava. (Maria
lava roupa, enquanto José estende no varal. Maria conta.)
MARIA – Maria lavava, José estendia,
Menino chorava
Do frio que fazia.
Topei com a Senhora,
Na beira do Rio,
Lavando Paninhos
De seu bento filho
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Não chores, menino.
Não chores, amor.
Que a faca te corta
Com um talho sem dor.
Por ser bem-nascido,
Por ser bem-criado,
Nascido numa rosa,
Num cravo encarnado.
(Enquanto Maria e José trabalham, Teité sorrateiramente, rouba o menino junto
com o burrinho e sai em disparada. Maria percebe a falta do filho e desespera-se.
Acorrem José, Matias e Mateúsa e põem-se em perseguição a Teité. Cruzam e
recruzam o palco. Finalmente, Teité se distância.)
GABRIEL – Olhem a frágil figura de mulher que chora e se desespera.
MATIAS CÃO – Olhe, seu José, a gente podia deixar as mulheres aqui e ir
sozinhos atrás do seqüestrador. Nessas coisas, mulher é igual em filme: cai, torce
o pé, só serve pra atrasar a vida do mocinho!
GABRIEL – Olhem, de novo, a frágil figura: o choro cala, os olhos secam e uma
raiva santa inunda! (Maria, determinada, ultrapassa os três e os obriga a andar
mais depressa.) De toda criação, a mulher é a mais variável: onde se espera o
frágil, assoma em fortaleza guerreira, e no meio da guerra pode desfazer-se em
lágrimas. (Segredando ao público.) Porque Deus as fez assim não sabemos. Só
sabemos que ele é muito sábio.
MATIAS CÃO – (Cansadíssimo.) Virgem santíssima!
MARIA – Não quero saber de conversa!
MATIAS CÃO – Seu José, rogai por nós à virgem santíssima, que estou a ponto
de arrear
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JOSÉ – Se eu conheço, ela só vai parar depois de encontrar o menino!
MATIAS CÃO – Jesus!
JOSÉ – É esse mesmo! (Saem.)
GABRIEL – (Ri.) Eu não quero estar na pele de Teité quando Maria, com a sede
que está, nele deitar as mãos! (Cruzam e recruzam o palco. Teité no burrinho com
o menino, Herodes e sua tropa e a família e sua trupe.)
JOÃO TEITÉ – (Pára e cheira o ar.) Outra vez! (fala com o menino enquanto o
troca.) Pelo amor de Deus! Não tem mais, fralda eu não lavo! (Cruzam e recruzam
o palco. A próxima vez que se vê Teitê , ele bate roupa no rio e canta a mesma
música que Maria cantava.)
JOÃO TEITÉ – João Teité lavava João Teité estendia... (Cruzam e recruzam o
palco. João Teité entra sem o burrinho, ninando o menino.) Agora, você vai ficar
quietinho que vou fazer um negocião da China. (Sai e volta sozinho. Entra
Herodes com sua gente.)
HERODES – Onde está o menino
BORACÉIA – Diga ou dou-lhe tanta pancada que quebro o que é duro e rasgo o
que é mole.
JOÃO TEITÉ – Calma, gente. Negociando a gente se entende.
HERODES – Eu mantenho minha oferta.
JOÃO TEITÉ – Só que o preço aumentou: eu quero o dobro do triplo. (Entra
família e trupe.)
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MARIA – Você não se atreva a negociar meu filho!
BORACÉIA – Você não se atreva a desfazer o negócio!
MATIAS CÃO – Vou dar-lhe tanto bofete pelo que fez, pelo que não fez, pelo que
ainda fará e pelo que deixou de fazer.
MATEÚSA – Deixa um pedacinho do couro dele pra mim!
HERODES – Decide agora! (Avançam os dois grupos para cima de Teité.)
JOÃO TEITÉ – Gente, pra que violência? Vamos entrar num acordo.
MARIA – Vai buscar meu filho, agora!
BORACÉIA – Traz a criança!
JOÃO TEITÉ – (Enquanto Teité sai, os dois grupos medem-se e ameaçam-se
através de gestos. Volta Teité, com a criança embrulhada num pano. Os dois
grupos avançam.) esperem! (para si.) Como é que vou me sair dessa? Uma lado
quer meu couro, o outro quer o que sobrar! Um me morde, outro mastiga; um
corta, outro trincha; um estapeia, o outro soca. Eu não posso nem me arrepender
porque na mão de um ou de outro eu me acabo! (para os grupos.) Eu vou decidir.
HERODES – (Ameaçando.) Confio no seu bom senso.
MARIA – Confio em seu coração.
MATIAS CÃO – Ele não tem coração, só tem barriga e a fome do mundo!
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JOÃO TEITÉ – (Num tom ambivalente, dramático e cômico.) É isso! É isso que eu
tenho: um buraco no lugar de barriga, sempre vazio! Não quero fazer mal pra
ninguém, nem para o menino, gente! Só que disseram que esse menino ia trazer
fartura, ia transformar água em vinho, multiplicar pão e peixe... E quem multiplica
pão e peixe multiplica frango, churrasco, lingüiça... presuntos... Com esse menino
vai haver um banquete universal, farto e eterno... vai correr leite e mel” (Patético.)
O caso, gente, é que eu sei como são essas promessas! Eu entro na fila e ,
quando chega a vez de João Teité, da panela não sobrou nem a rapa e do
churrasco nem o osso da costela. Então resolvi radicalizar: quero garantir agora
minha parte na promessa. Também quero recolher o meu imposto na fonte!
Então, eu vou fazer a escolha! (Entra demônio.)
DEMÔNIO – Já está escolhido, cabra! (Demônio avança e arranca o menino das
mãos de Teité. Entra o anjo e corta-lhe o caminho. O demônio põe o menino
embaixo do braço. Fazem uma partida de rúgbi, passando o menino de mão em
mão. No fim, o menino é passado para o Demônio que consegue fugir. Trupe de
Herodes vibra e saí atrás do Demônio. O anjo sai no encalço deles. A trupe da
família volta-se contra Teité, que corre. Saem atrás dele.)
Cena 7 – De onde se encerra a farsa e Teité faz a negociação
final.
Entra no palco a trupe de Herodes, precedida do Demônio que ri. O Demônio
passa o menino a Herodes que o entrega ao soldado. O Soldado põe o menino no
chão, desembainha a espada e a desce sobre o menino mas segura o golpe.
SOLDADO – Não posso. Um homem mata outro em igual e franca luta. Mata
correndo o mesmo risco de morte. Isso é um homem e homem não me fiz para
essa covardia. (Foge. Demônio rosna e pega a criança.)
DEMÔNIO – Deixa comigo que eu dou fim. (pega a criança, tira-lhe os panos e
grita. Herodes pega a criança.)
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HERODES – Um boneco!
BORACÉIA – Ai, ai, ai, ai, ai! Eu jurei que se me fizessem andar até essa terra
por nada...
DEMÔNIO – Calma...
BORACÉIA – Vou-lhe quebrar o pau, riscar de vara!
DEMÔNIO – Eu sou o diabo!
BORACÉIA – Mas não vai poder comigo! Vai apanhar de frente e de costa,
embaixo e em cima, por dentro e por fora e é já!
DEMÔNIO – Por dentro e por fora? Como é isso?
BORACÉIA – Vai descobrir! (Boracéia sai batendo no Demônio. Herodes também
sai. Entra trupe da família, batendo em Teité.)
JOÃO TEITÉ – Mãe de Deus!
MARIA – Não adianta pedir! (Amontoam em cima de Teité. Esse grita, todos
param.)
JOÃO TEITÉ – É isso que estou querendo dizer desde o começo: estava
negociando um boneco! O menino está escondido aqui. (Sai, traz o menino e o
entrega a Maria.) Mau juízo de vocês! Eu seria incapaz de me aproveitar de uma
criança!
MATEÚSA – Desculpa, viu Teité.
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MATIAS CÃO – A sova que a gente te deu fica sem valor, ta? (Entra o demônio,
furioso e todo estropiado.)
DEMÔNIO – (A Teité.) Ninguém engana o diabo assim! Eu vou lhe levar, cabra!
GABRIEL – (segurando Teité.) Não, só estou de acordo como ajudo! Quem com
o diabo anda, que com o diabo se acabe!
JOÃO TEITÉ - Ah, é? Então vocês vão se entender com ela... (Aponta Maria.)...
que acabo de nomear minha advogada. (Suplica.) A senhora vai me ajudar, não
vai, não?
MARIA – Não devia...
JOÃO TEITÉ – Lavei fralda, passei maisena, nem assar ele assou! Melhor que
muita ama-seca!
MARIA – Está bem. No final das contas suas trapalhadas ajudaram muito! (Diabo
rosna e sai.)
JOÃO TEITÉ – Já que tudo acabou bem, está todo mundo feliz... vamos falar de
pagamento!
GABRIEL – Que pagamento?
JOÃO TEITÉ – Meus honorários! (Aponta.) Seguindo reto uma légua nessa
direção vocês chegam a Belém.
JOSÉ – Que Belém?
JOÃO TEITÉ – Belém do Pará, uai!
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GABRIEL – A gente quer chegar em Belém da Judéia!
JOÃO TEITÉ – Belém da Judéia?! Sei lá onde fica isso! No combinado vocês não
falaram nada de Judéia, não! Podem pagar!
GABRIEL – Que você se dê bem pago por não ir ao inferno!
JOSÉ – Vamos, Matias, que temos pressa em chegar!
MATEÚSA – Belém do Pará! Mas você é um sujeito muito burro, mesmo!
JOÃO TEITÉ – Sou burro, nê?
TODOS – (Menos a Sagrada Família) É!
JOÃO TEITÉ – E as promessas de fartura e banquete...
GABRIEL – Vai ter que esperar um pouco mais. Vam’bora!
JOÃO TEITÉ – (Dá de ombros.) Podem ir. Só quero ver como é que vocês vão
fazer pra sair do País!
JOSÉ – Por quê?
JOÃO TEITÉ – Porque, com essa coisa toda de tráfico de criança, a alfândega
não vai deixar vocês passarem com uma criança que não é de vocês.
GABRIEL – Como é que é?
JOÃO TEITÉ – Nessas andanças eu registrei o Menino Jesus como filho legitimo
de João Teité!
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TODOS – O quê?!
JOÃO TEITÉ – Está aqui, ó! Lavrado em cartório e com firma reconhecida!
MATIAS CÃO – Por que fez isso, homem de Deus?
GABRIEL – De Deus, Não, do capeta! E é o rabudo que eu vou chamar agora
mesmo pra dar conta desse traste!
JOÃO TEITÉ – Pode chamar. Eu me ferro, mas, do jeito que é a burocracia aqui,
vocês vão bem uns cinqüenta anos para regularizar a situação do menino!
MATIAS CÃO – A gente faz exame de DNA e prova que você não é o pai.
JOÃO TEITÉ – Com todo respeito, mas como é que vão fazer exame de DNA pra
provar que o menino é filho do Espírito Santo, seu burrão! (pausa perplexa de
todos.)
MATEÚSA – Olha aqui, seu sem-vergonha...
JOÃO TEITÉ – Você é subalterna! Subalterna! Agora eu só converso é com alta
cúpula!
GABRIEL – É o caso de surra, de sova! De bater com gato morto até miar, com
couro de boi até mugir!
MARIA – Porque fez isso, Teité?
JOÃO TEITÉ – Porque, diz o mineiro, “promessa e esperança é bom mas não
enche a pança”.
MARIA – (Irritada.) A promessa é de Deus!
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JOÃO TEITÉ – Eu sei, não me leve a mal, mas eu queria ver o menino realizar
aqui a promessa de fartura. Queria ver, pelo menos uma vez, todo mundo
comendo com a boca tudo o que até hoje só comeu com os olhos! Quero ver essa
mesa que nunca é desfeita e esse banquete que nunca termina. (Gabriel, José e
Maria reúnem-se para discutir a questão.)
MATEÚSA – Acho que desta vez você foi longe demais!
MATIAS CÃO – Nessa mão de truco você ta chamando doze com um “treiszinho”
vagabundo na mão!
JOÃO TEITÉ – Eu sei. E o pior é que eles fizeram a primeira! Mas quem arrisca
não petisca. Ou eu petisco um pouco dessa fartura ou o diabo petisca a minha
carne dura.
GABRIEL – Senhor João Teité!
JOÃO TEITÉ – Começou bem. Está me chamando de senhor!
GABRIEL – O inferno...
JOÃO TEITÉ – Me desgracei!
GABRIEL – Devia ser o seu castigo! Mas levando em consideração as
ponderações de Maria e de José, a Sagrada Família resolve negociar a
permanência de uma temporada nesta terra!
JOÃO TEITÉ - (Grita festejando.) Truco!
GABRIEL – Truco não senhor! Ele só vai ficar aqui seis meses!
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JOÃO TEITÉ – De jeito maneira! Assim não tem negócio. Seis meses só dá para
o menino virar moda de verão! Trinta anos no mínimo!
JOSÉ – Eu perco a paciência com esse Teité! Dois anos!
JOÃO TEITÉ – Pode chamar o rabudo! Ele pode me levar mas menos de vinte
anos não abro mão! (A família continua discutindo, enquanto o anjo declama o
texto final.)
GABRIEL – E assim foi
E assim ficou sendo
E o mundo ficou sabendo
Onde o menino-Deus
Permaneceu até os doze anos,
Até ser visto novamente
Ensinando os doutores do templo
A vocês, agradeço sua presença e riso,
Seja seu Natal uma parte do Paraíso
Tal como foi essa representação
A lembrança do mais alto mistério, por inteiro:
Deus se tornou homem
E pelos próximos anos caminhará entre nós
E o melhor, com registro em cartório,
É brasileiro!
(Cantam “Oh, vinde!”)
FIM