948
Para brasileiro ver: as políticas de intercâmbio cultural estadunidense e soviética
através de Érico Veríssimo e Graciliano Ramos (1941 / 1954)
Talita Emily Fontes da Silva1
Resumo: Este trabalho tem por objetivo discutir a promoção de intercâmbios culturais
realizados pelos Estados Unidos e pela União Soviética, tomando como alicerce as narrativas
tecidas pelos escritores brasileiros Érico Veríssimo e Graciliano Ramos contidas nas obras
Gato preto em campo de neve (1941) e Viagem: Tchecoslováquia – URSS (1954). Estas
publicações, mais do que escritos autobiográficos, propiciam uma janela pela qual podemos
investigar as estratégias desenvolvidas pelas duas potências mundiais para atrair aliados.
Considerando os intercâmbios culturais como uma destas estratégias, apresentaremos como a
análise dos relatos de viagem pode ser um ponto de partida para um estudo sobre as relações
entre Brasil, Estados Unidos e União Soviética, e suas eventuais consequências em dois
períodos - chave do século XX.
Palavras-chave: Relatos de Viagem. Intercâmbio. Graciliano Ramos. Érico Veríssimo.
Abstract: This paper will discuss the promotion of cultural exchanges carried out by the
United States and the Soviet Union, based on the narratives written by the Brazilian writers
Érico Veríssimo and Graciliano Ramos contained in Gato preto em campo de neve (1941) e
Viagem: Tchecoslováquia – URSS (1954). Believing that cultural exchanges are part of a
strategy to attract allies, we will present how the analysis of travel reports can be a starting
point for a study on the relations between Brazil, the United States and the Soviet Union, and
their possible consequences in two important periods of the history.
Key words: Travel reports. Exchanges. Graciliano Ramos. Érico Veríssimo.
1. Introdução
Beirando a casa dos 60 anos, sair do seu lar carioca e aventurar-se em longínquas
terras estrangeiras talvez não fosse uma das maiores pretensões de Graciliano Ramos. Mas,
até para homens de conhecido gênio difícil, como era o caso do escritor alagoano, existem
convites que são irrecusáveis. Sendo comunista, como dispensar, no ano de 1952, ao convite
para uma viagem a União Soviética no auge de seu poderio, onde não precisaria gastar
nenhum tostão com qualquer despesa?
1 Mestranda pelo Programa de Pós -Graduação em História Comparada da UFRJ. Integrante do Grupo de
Estudos do Tempo Presente. Orientador: Profº Dr. Dilton Cândido Maynard. Email: [email protected]
949
No ano de 1940, podemos observar um outro escritor brasileiro, de nome Erico
Veríssimo, imerso numa situação semelhante. Em uma manhã como qualquer outra, o
romancista recebe a visita do consul dos Estados Unidos no seu escritório, oferecendo-lhe
uma viagem as terras de Tio Sam. Não deixando passar tal oportunidade, foi conferir de perto
a ascendente potência liberal, que neste momento observava de longe o andamento da
Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945).
Dois momentos diferentes, duas propostas semelhantes. O que une estes dois autores,
além dos convites inesperados oferecidos pelas distintas potências mundiais, é o fato de que
ambos produziram relatos sobre suas experiências no exterior, e tiveram estes escritos
publicados posteriormente. A narrativa de Veríssimo acerca das suas aventuras nos Estados
Unidos encontra-se em O gato preto em campo de neve (1941), e os relatos de Graciliano
Ramos vieram a público em Viagem: Tchecoslováquia –URSS, que só veio a ser publicado
postumamente, no ano de 1954.
Estas publicações, mais do que escritos autobiográficos, propiciam uma janela pela
qual podemos investigar as estratégias desenvolvidas pelas duas potências mundiais para
atrair aliados e promover as “benesses” dos seus regimes. Deste modo, considerando os
intercâmbios culturais como uma destas estratégias, apresentaremos como a análise dos
relatos de viagem pode ser um ponto de partida para um estudo sobre as relações entre Brasil,
Estados Unidos e União Soviética, e suas eventuais consequências em dois períodos - chave
do século XX.
Para isto, neste artigo realizaremos uma apresentação destes relatos de viagem e de
seus respectivos autores. Buscaremos diagnosticar como as oportunidades de intercâmbios
culturais oferecidas aos romancistas brasileiros dialogavam com suas trajetórias profissionais
e pessoais. Em meio a esta análise, também discutiremos os usos e a importância dos relatos
de viagem no fazer historiográfico.
2. A vida de viajante
O ato de viajar não se resume apenas ao deslocamento dos homens no espaço. “Quem
viaja tem muito o que contar”, nos lembra Walter Benjamin2, e isso se deve, em grande parte,
a carga de experiências que o indivíduo adquire ao sair do seu “habitat natural”,
possibilitando novas concepções de mundo. É este olhar sobre o atípico, que pode gerar
2 1987, pg. 198
950
transformações tão profundas quanto as proporcionadas pelo deslocamento temporal, que
alimentam o gênero relato de viagem3.
Permeadas por uma constante necessidade em transmitir a “realidade”, as narrativas de
viagem contemporâneas trazem à baila um pouco de escrita de si unido ao constante desejo de
transparecer veracidade4. Mas isto não condiciona o autor a utilizar um tom científico ao
retratar suas experiências. O uso de recursos literários tornou-se um elemento comum neste
gênero.
Neste momento realizaremos uma apresentação dos dois relatos de viagem escolhidos
como objetos desta pesquisa, para em seguida tecermos alguns comentários sobre seus
autores. Seguindo a cronologia, abordaremos primeiramente a obra Gato Preto em Campo de
Neve (1941).
Considerado um best seller para a época5, Gato preto em campo de neve pode ser lido
como um grande painel dos EUA. É uma obra volumosa, dividida em 15 capítulos, onde o
romancista brasileiro Érico Veríssimo retrata os três meses em que teve a oportunidade de
participar de um intercâmbio cultural na nação estadunidense. Entre os meses de janeiro à
abril de 1941, o autor cruzou o país de leste a oeste, sem deixar de lado seus artifícios
literários na elaboração do texto, inserindo até mesmo um alter ego, que batiza de Malazarte,
para “acompanha-lo” durante a expedição.
Por sinal, alguns estudiosos apontam o relato de Veríssimo como a obra que
definitivamente inaugurou no Brasil a aproximação entre o gênero relato de viagem e o
campo da literatura. Considerado um “estilo menor” pelos críticos literários até aquele
período, o relato de viagem encontrava-se numa categoria a parte da produção “puramente
literária”6, pois acreditava-se que o autor não possuía outra ambição a não ser informar as
suas experiências e “noticiar” o que via no exterior.
A preocupação de Veríssimo em manter uma estética romanesca em seu texto, trouxe
à baila discussões acerca dessa categorização. Seguido por outros literatos, como Graciliano
Ramos, Jorge Amado, entre outros, que ao longo da sua trajetória também produziram este
estilo de narrativa, o escritor gaúcho contribuiu para o estabelecimento do relato de viagem no
“nobre” patamar da produção literária.
3 TODOROV, 2006, pg. 231
4 JUNQUEIRA, 2011, p.55-56
5 Segundo Richard Cándida Smith, o relato de Veríssimo tornou-se um sucesso de vendas logo após o seu
lançamento, vendendo cerca de 15 mil exemplares nos primeiros dois meses. IN: SMITH, Richard Cándida.
Érico Veríssimo, um embaixador cultural nos Estados Unidos. IN: Revista Tempo. Vol. 19 n. 34.p.148 – 173. 6 RIBEIRO, Roberto Carlos. Literatura de viagem e historiografia literária brasileira. In: Revista Letras & Letras,
Uberlândia 23 (1) p.145-159, jan./jun. 2007
951
Ao analisarmos com maior atenção as divisões adotadas pelo autor em Gato preto em
campo de neve, percebemos que sua obra ganha tons de Guia. Conhecido por seu vocabulário
atrativo para o grande público, Veríssimo é cuidadoso na descrição das cidades que intitulam
seus capítulos. Leva o leitor a conhecer ruas, avenidas, monumentos, praças, cafés, dentre
outras particularidades que nem todos, nos idos dos anos de 1940, tinham a oportunidade de
conhecer.
Para algumas cidades, como Nova Iorque e Hollywood, o autor se detêm com maior
vagar, provavelmente por ter ciência que estes locais despertam maior curiosidade do
público7. Pinta murais, “à maneira de Diego Rivera”
8, numa clara tentativa de desmistificar
muito do que, segundo ele, o cinema e a mídia da época haviam alimentado no imaginário
popular acerca das terras de Tio Sam.
Gato preto em campo de neve veio a público rapidamente, com sua primeira edição
distribuída pela Editora Globo ainda em 1941. Como veremos mais a frente neste trabalho, foi
este intercâmbio que selou uma relação duradoura entre o autor de O Tempo o Vento (1949 –
1961) e os Estados Unidos.
Uma vez apresentada a narrativa de Érico Veríssimo, adiantaremos as páginas da
História em 11 anos, para encontrarmos o nosso segundo objeto de estudo, a narrativa de
Graciliano Ramos intitulada Viagem: Tchecoslováquia – URSS.
O relato de viagem do ilustre romancista alagoano foi resultado do intercâmbio que
participou, com duração de um mês, rumo a União Soviética no ano de 1952. Além de
excursionar por “Moscou e outros lugares medonhos”9, sua visita tinha como objetivo assistir
aos desfiles comemorativos pelo dia 1º de maio, que contou com a presença do chefe do
regime soviético daquele momento, Joseph Stalin.
Infelizmente, Viagem: Tchecoslováquia – URSS não chegou a ser finalizada pelo
autor. No mesmo ano em que realizou a excursão, 1952, o romancista alagoano foi acometido
por um câncer de pulmão, que o levou a óbito em março do ano seguinte10
. Publicada em
1954 pela Editora José Olympio, a edição que veio a público traz, além dos capítulos que o
romancista conseguiu finalizar, as anotações que esboçou durante a jornada11
. É importante
7 O próprio autor relata que antes mesmo de iniciar sua expedição aos EUA, recebeu inúmeras cartas de “leitores
desconhecidos” desejosos que o escritor registrasse suas impressões. Segundo ele, as correspondências
resumiam-se em: “Vá, veja e conte (...)”. p. 451. 8 Para descrever a cidade de Washington em largos traços, o autor pontua as principais características que
observa na cidade tomando como inspiração o pintor mexicano Diego Riviera (1886 – 1957). 9 É assim que Graciliano Ramos refere-se a URSS logo no início de seu relato. RAMOS, 1954.p.7.
10 Graciliano Ramos faleceu em 20 de março de 1953, aos 60 anos, na cidade do Rio de Janeiro.
11 Segundo nota emitida pelos editores, esses escritos complementam os capítulos que foram finalizados Viagem:
Tchecoslováquia-URSS. 1ª ed. Editora José Olympio – Rio de Janeiro. 1954.
952
salientar que, apesar de seguir um modelo de diário de viagem, o escritor só veio a elaborar
efetivamente o relato quando não estava mais em solo soviético. O primeiro capítulo é datado
de 31 de maio, quando já estava na cidade de Cannes12
.
Considerando essa trajetória um tanto tortuosa, o relato de Graciliano nos é
apresentado com 34 capítulos, além das Notas complementares. Objetivo e conciso, tenta
apresentar ao seu leitor um pouco da alma soviética, seja retratando uma conversa com um
estranho, num passeio solitário em Moscou, ou sua experiência no Mausoléu de Lenin.
É difícil afirmar se Ramos desejava manter a estrutura de diário de viagem que veio a
público. Entretanto, conhecendo um pouco o estilo literário do romancista, é notório que
Viagem não fugiu do seu padrão estilístico. Como nos demonstram Antônio Cândido e José
Aderaldo Castello, uma das principais características da escrita de Ramos é a clareza unida a
objetividade. Seus romances apresentam um vocabulário meticulosamente selecionado,
encorpando a narrativa aos elementos essenciais, deixando de lado adjetivos, fazendo com
que a síntese ocupe o lugar da exposição13
.
A partir dessas características, não há dúvidas de que Viagem possui a mesma estética
dos demais romances de Graciliano Ramos. Com uma média de sete páginas, cada capítulo
ocupa-se em narrar um episódio da jornada, sem realizar conexões diretas entre um e outro.
Outro traço característico encontrado na obra é a sua predileção em registrar os “tipos
humanos”. As paisagens e monumentos ficam em segundo plano.
Realizada a apresentação dos objetos, acreditamos que para compreendermos e
analisarmos adequadamente as narrativas, é necessário conhecermos um pouco sobre seus
autores. Como salienta Mary Anne Junqueira, uma vez que o historiador se propõe a trabalhar
com um relato de viagem, é fundamental questionar quem é o autor e em qual “universo
cultural” ele está inserido14
.
Deste modo, nesta segunda etapa abordaremos alguns aspectos biográficos dos dois
literatos brasileiros, para verificarmos até que ponto suas vivências possuem uma ligação com
as experiências de intercâmbios culturais que vieram a participar. Começaremos com o autor
de Gato preto em campo de neve, Érico Veríssimo.
12
RAMOS, Graciliano. Viagem: Tchecoslováquia – URSS. 1ª ed. Editora José Olympio – Rio de Janeiro. 1954,
pg. 7 13
CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira (Vol. III –
Modernismo). São Paulo: Difusão Europeia do Livro. 1964. 14
JUNQUEIRA, Mary Anne. Elementos para uma discussão metodológica dos relatos de viagem como fonte
para o historiador. IN: JUNQUEIRA, Mary Anne (Org.); FRANCO, Stella Maris Scatena (Org.). Cadernos de
Seminários de Pesquisa (vol.II). São Paulo: USP-FFLCH-Editora Humanitas, 2011. v. 1. p.44-61.
953
Nascido em 1905, Veríssimo foi canonizado como um dos grandes nomes da ficção
brasileira do século XX, e possui um extenso reconhecimento no exterior. É conhecido por
focalizar, nos seus romances, diversos aspectos da sua terra natal, o Rio Grande do Sul, sendo
o épico O Tempo e o Vento o grande destaque. Além disso, as questões morais e a crise do
indivíduo na sociedade são uma outra característica marcante de suas obras.
Foi diretor da Revista do Globo em Porto Alegre, e é importante ressaltar que uma
outra ocupação exercida por Veríssimo foi a de tradutor. Antes mesmo de tornar-se um
escritor consagrado, o gaúcho traduziu diversas obras do inglês para o português, que incluem
autores como Aldous Huxley e Edgar Wallace.
Um rápido olhar sobre a biografia do escritor não deixa dúvidas que ele foi um
“Homem das letras”. Exercendo uma intensa atividade literária desde sua juventude, o autor
de Olhai os lírios do campo (1938) e O resto é silêncio (1943) também dedicou-se a literatura
infantil e a organização de coleções que tornaram-se celebres, pois trouxeram ao Brasil
traduções de nomes como Balzac e Virginia Woolf.
Segundo Richard Cándida Smith15
, um dos motivos que levaram o Departament of
State a convidar Érico Veríssimo para ser um dos porta-vozes da literatura brasileira em solo
norte americano está relacionado, em parte, à semelhança da escrita do autor com o que lá era
produzido. Não devemos esquecer que o intercâmbio que Veríssimo foi convidado não era
uma atividade isolada, mas fazia parte da famosa política de Boa Vizinhança16
, idealizada por
Franklin Roosevelt.
Em O Gato Preto em campo de neve veremos os primórdios de uma relação duradoura
entre Veríssimo e os Estados Unidos. O escritor além de ter diversas de suas obras traduzidas
para o inglês, escreveu um histórico sobre a literatura brasileira voltada para o público norte
americano17
. Chegou a residir no país por dois momentos, entre os anos de 1943 à 1946,
quando foi professor da Universidade da Califórnia, e de 1950 à 1953, quando foi diretor de
intercâmbio cultural da União Pan-Americana.
Por sinal, os três anos em que residiu nos EUA, nos anos 1940, geraram uma outra
obra que narrará suas experiências neste período, denominada A Volta do Gato Preto (1947).
É um relato bem diferente do Gato Preto em Campo de Neve. O leitor que tem a oportunidade
de ler as duas obras percebe no retorno de Veríssimo ao solo estadunidense, um tom mais
15
2013, p.156 16
A política de Boa Vizinhança ou Good Neighbor Policy, foi uma iniciativa do Governo estadunidense, visando
uma mudança de comportamento com os demais países da América Latina. O seu objetivo era conquistar,
através de relações diplomáticas mais amistosas, uma maior e mais segura influência econômica e cultural sob os
seus vizinhos, afastando com isso possíveis relações com países europeus, como a Alemanha. 17
Brazilian Literature: an Outline (1945).
954
ponderado e menos encantado com as maravilhas supostamente oferecidas naquele país.
Podemos encontrar diversas críticas, e um olhar mais analítico, buscando discutir em várias
passagens temas espinhosos como a religião, o sexo, a formação da unidade daquela nação,
dentre outros.
Concluímos que o convite oferecido ao escritor rio-grandense para participar do
intercâmbio cultural nos Estados Unidos não está desvinculado das suas experiências ao
decorrer de sua trajetória literária no Brasil. Seja pela sua escrita, ou pelo seu papel como
fomentador da literatura de língua inglesa em seu país, acreditamos que Veríssimo era um
intelectual que nutria simpatia e interesse pela nação norte americana.
Depois desse breve panorama sobre Érico Veríssimo, abordaremos alguns aspectos
biográficos de Graciliano Ramos.
Alagoano, Ramos transmitiu como poucos literatos a aridez dos sertões brasileiros,
que foram cenário de sua infância e adolescência. Natural de Quebrangulo/ AL, o escritor foi
um dos maiores nomes da literatura regionalista, sendo Vidas Secas (1938) uma das suas
obras mais representativos. Além dos romances, suas crônicas e memórias também possuem
grande expressão no seu rol bibliográfico.
Sua veia literária esteve presente desde a infância, quando publicava sonetos
utilizando pseudônimos. Ainda jovem, em 1914, tentou seguir carreira no campo das letras no
Rio de Janeiro. Entretanto, circunstancias adversas o conduziram de volta a Alagoas no ano
seguinte, e a desejada projeção nacional só veio a ocorrer quase 15 anos depois, em
circunstâncias pitorescas.
No ano de 1929, Ramos assumiu o cargo de prefeito da cidade de Palmeira dos
Índios/AL. Numa das suas primeiras atividades como gestor, enviou dois relatórios ao
governador de Alagoas. Estes escritos, detentores de uma qualidade literária e um tom irônico
incomuns para documentos oficiais, acabam repercutindo nacionalmente, sendo reproduzido
na integra em diversos jornais, e por fim despertam o interesse do editor Augusto Frederico
Schmidt, que se propõe a publicar outros textos do até então prefeito.
O autor de Angústia (1936) sempre mostrou-se simpático as ideias de esquerda. Por
sinal, esta sua simpatia, unida a suas opiniões sarcásticas sobre a Revolução de 1930, e seu
convívio com outros intelectuais de esquerda, foram motivos suficientes para leva-lo a prisão
em 1936. Permaneceu um ano preso, e suas memórias acerca deste período estão contidas na
obra Memórias de um cárcere, publicada postumamente em 1953.
Apesar desta proximidade com o pensamento comunista, sua filiação ao Partido
Comunista só veio a ocorrer em 1945, quando já tinha 53 anos. Quando militante oficial do
955
Partido Comunista, Ramos mostrou-se um integrante ativo, participando de reuniões,
comícios, e candidatando-se até mesmo a cadeira de senador da República pelo Estado de
Alagoas. Mas, apesar da militância, foi um dos críticos ao “realismo socialista”, que desejava
“padronizar” a produção artística-literária dos intelectuais de esquerda, objetivando consolidar
esses meios como arma de luta contra os adversários “yankees”, considerando que neste
momento a Guerra Fria ganhava impulso.
Foi nesse contexto que Graciliano Ramos recebeu o convite para integrar a comitiva,
com cerca de 30 integrantes, que viajou até a URSS em 1952. Desde modo, ao observarmos
rapidamente a trajetória de vida do alagoano, é nítida a sua proximidade com o regime
comunista. Seja por sua postura política, ou pelas frequentes críticas a realidade brasileira
contida em suas obras, podemos constatar que assim como Érico Veríssimo e os Estados
Unidos, Ramos era um intelectual que nutria simpatia pela União Soviética.
Diagnosticadas estas semelhanças entre os dois romancistas, vejamos quais os
principais temas abordados pelos relatos por eles produzidos.
Em Gato preto em Campo de neve não é difícil perceber que a sociedade, ou melhor
dizendo, os indivíduos norte-americanos, sejam um dos temas favoritos de Érico Veríssimo.
Sendo acima de tudo “um ser humano interessado principalmente em seres humanos”18
,
observa atentamente sapatos e olhos, multidões e senhoras solitárias. Com um olhar clínico,
nem mesmo os encarregados e funcionários dos hotéis por onde passou são deixados de lado.
Em cada perfil traçado, parece haver um esforço em desmistificar este povo, tornando-os
simpáticos ao leitor.
São numerosos os momentos em que o literato se propõe a diagnosticar características
da sociedade. Uma destas situações ocorre quando visita uma cafeteria na cidade de
Washington. Veríssimo demonstra surpresa e admiração neste ambiente, onde tanto senhoras
ricas, como trabalhadores comuns realizam suas refeições, dividindo as mesmas mesas19
. Para
o escritor, este seria um símbolo do quanto a nação se estruturava de forma democrática,
sendo a cafeteria um local onde não só este, mais outros ideais estadunidenses estariam bem
definidos20
.
A amabilidade com que foi tratado durante todo o percurso sempre é enfatizada. São
numerosas as visitas que realizou, à pessoas que “nunca tive notícia e que por sua vez até há
18
VERÍSSIMO, Erico. Gato preto em campo de neve. 15ª ed. Porto Alegre: Ed. Globo S.A. 1978.p.11. 19
VERÍSSIMO, Erico. Gato preto em campo de neve. 15ª ed. Porto Alegre: Ed. Globo S.A. 1978, p.68 20
Ibid, p.69
956
pouco tempo ignoravam por completo a minha existência. ”21
. Entretanto, retrata seus
anfitriões como calorosos em suas recepções, nutrindo grande curiosidade acerca da distante
nação de onde veio.
E é o Brasil um outro tema recorrente em toda a obra. Veríssimo não deixa de
registrar as diversas imagens que são atribuídas ao país tropical, investigando, ao longo de sua
jornada, como diferentes norte-americanos concebem a sua nação. Em grande parte dos
diálogos que descreve, onde o assunto “Brasil” vem a baila, o nosso autor normalmente
diagnostica um véu de ignorância.
Observa, por exemplo, que grande parte dos estadunidenses acredita que em terras
brasileiras a língua falada é o espanhol. Para tanto, afirma que era comum que os anfitriões
ensaiassem algumas palavras em espanhol durante as conversações, na tentativa de parecerem
gentis ao brasileiro22
. Em outro momento de sua expedição, ao ser questionado se na sua terra
a língua nativa era a espanhola, Veríssimo graceja: “ – Chinês. ”23
.
O nosso autor também registra que neste momento, as terras brasileiras também eram
associadas a produção de café e a desordem. Ao conversar brevemente com um jovem
entregador de jornais na Filadélfia, por exemplo, o rapaz logo afirmou que sabia que do Brasil
vinha o café que lá era consumido24
. Noutro momento, Veríssimo indigna-se com uma
matéria publicada pelo semanário Friday, onde seu país era descrito como um “conglomerado
de negros e índios governados por meia dúzia de brancos, os quais por sua vez são dominados
por elementos estrangeiros”25
.
Outro tema que não poderia deixar de ser abordado pelo viajante é a Segunda Guerra
Mundial. Como já comentamos, o Estados Unidos, neste momento, ainda não participava
diretamente do conflito, o que só veio a ocorrer, oficialmente, após dezembro de 1941, devido
ao ataque a base de Pearl Harbor, localizada no Havaí, dizimando milhares de soldados.
Entretanto, os ecos da guerra já podiam ser sentidos na nação estadunidense, sendo
apresentados sutilmente no decorrer da narrativa. Fala-se de Hitler em diversas situações, seja
num breve diálogo realizado numa mansão em Baltimore26
, ou com um simples engraxate
nova-iorquino que afirmava, de maneira casual, que engraxaria as botas do Führer caso lhe
fosse solicitado27
.
21
Ibid, p.144 22
Ibid, p.317 23
Ibid, p. 109. 24
VERÍSSIMO, Erico. Gato preto em campo de neve. 15ª ed. Porto Alegre: Ed. Globo S.A. 1978, p.157 25
Ibid, p.287 26
Ibid, p.143 27
Ibid, p.177
957
Noutros momentos, comenta-se a presença de alguns fugitivos de guerra, que
encontraram em solo norte americano um porto seguro. Mas, apesar de cientes do que ocorria
na Europa, Veríssimo afirma que durante sua passagem naquela nação, a guerra ainda era uma
música de fundo, presente a todo instante, mas que era encoberta por outros assuntos
aparentemente mais importantes, como a posse de Roosevelt, e os seus primeiros atos ao
iniciar o novo mandato28
.
Por fim, um último tema que destacaremos, contido em O gato preto, é a situação do
negro nos Estados Unidos. Talvez este seja um dos poucos assuntos no qual o relato
transparece aspectos negativos das terras estadunidenses. O autor diagnostica, em diversas
circunstâncias, as tensões existentes na convivência entre os brancos e os negros, numa
sociedade que vivia num período de plena segregação racial.
Ao visitar a cidade de Washington, Veríssimo relata os contrastes existentes entre a
própria população negra que ali residia. Realizando observações cuidadosas, o autor registra
que a localidade abrigava, lado a lado, tanto a maior universidade destinada a negros no país,
como também comportava um número considerável de cortiços e negros que habitavam em
casas feitas de papelão e latas29
.
Mas, apesar de constatar todo este quadro, o gaúcho ainda tentava esboçar otimismo
quanto as precariedades, afirmando que em pouco tempo os problemas ligados a pobreza
estariam resolvidos. O que, para o autor, estava distante de ser solucionado, era o profundo
preconceito existente30
. E está constatação tornou-se ainda mais forte quando visitou os
estados do sul dos Estados Unidos, onde a segregação não permitia que negros e brancos
dividissem os mesmos ambientes31
.
Em traços largos, O Gato preto em campo de neve pode ser considerada uma obra
símbolo da política de Boa Vizinhança desempenhada pelos Estados Unidos junto ao Brasil.
Érico Veríssimo mostra-se simpático as terras de Tio Sam, extraindo desta sociedade as suas
características positivas, e relativizando os poucos aspectos negativos abordados.
Este propósito em construir uma boa imagem da nação estadunidense aos seus
compatriotas fica ainda mais claro no último trecho do livro, “Diálogo sobre os Estados
Unidos”. Neste último momento, o escritor gaúcho tece um diálogo com um entrevistador
imaginário, que lhe faz diversas perguntas acerca dos Estados Unidos, que são sempre
28
Ibid , p.131 29
VERÍSSIMO, Erico. Gato preto em campo de neve. 15ª ed. Porto Alegre: Ed. Globo S.A. 1978. 94-96 30
Ibid. p.100 31
Ibid, p. 355
958
respondidas de maneira didática e elogiosa. Uma espécie de informativo para aqueles que não
conhecem a potência mundial do norte americana.
Mudando de cenário, vamos agora observar com maior cuidado o relato de Graciliano
Ramos, Viagem: Tchecoslováquia – URSS.
Como constatamos ao tratar da sua biografia, Graciliano era um simpatizante das
ideias comunistas. Deste modo, o seu relato não poderia ser diferente. Utilizando-se da sua
característica ironia, o autor compara a “liberdade miserável” do regime capitalista, com a
“prisão” do regime comunista que visitava, onde via, em sua excursão, crianças bem
alimentadas e com acesso a educação. Vejamos alguns temas que percorrem estes escritos.
Uma figura que comparece em diversos momentos do relato de Graciliano Ramos é a
de Joseph Stalin. Líder absoluto da União Soviética naquele momento, Stalin já apresentava,
no início da década de 1950, latentes sinais de desgaste físico. Todavia, isto não diminuiu em
nada as demonstrações de reverência que podem ser verificados ao longo da narrativa de G.R.
Talvez, um dos principais trechos de Viagem que representa tal reverência seja o
grande evento na comemoração de 1º de maio, quando o Joseph Stalin realiza uma aparição32
.
Mesmo sob o inclemente frio de Moscou, uma multidão formada por soviéticos e estrangeiros
concentrou-se ao lado do Kremlin para festejar a grande data e sobretudo ver o seu líder.
Graciliano observa a chegada do chefe símbolo do poderio da nação vermelha, que é
aclamado, mesmo não realizando nenhum pronunciamento ao decorrer de todo o desfile. Mas
isto não fazia diferença. O quebrangulense sente o quanto o estadista havia obtido êxito em
incrustar naquelas almas a devoção a sua figura.
Em Viagem, G.R. dedicará todo um capítulo para tecer elogios a Joseph Stalin33
. O
escritor não disfarça toda a admiração que nutre pelo estadista. Enxerga neste homem aquele
que verdadeiramente abriu mão de uma vida tranquila em prol de uma causa; que sofreu, foi
preso e torturado, para que neste momento da história fosse um baluarte fundamental na
consolidação de um mundo melhor e sem desigualdades. Graciliano escreve: Stalin foi o “(...)
estadista que passou a vida a trabalhar para o povo, nunca o enganou. ”34
.
A historiografia assegura que com o fim da Segunda Guerra Mundial o culto a figura
de Stalin havia atingido o seu ápice. A ele era atribuído o status de comandante infalível,
gênio e guia da nação soviética, além de “Pai dos Povos”. O líder de origem georgiana é visto
então como a personificação do poder soviético que, nos termos de Roger-Gérard
32
32
RAMOS, Graciliano. Viagem: Tchecoslováquia – URSS. 1ª ed. Editora José Olympio – Rio de Janeiro.
1954. p.43-49 33
Ibid. p. 51-56 34
Ibid. p.52
959
Schwartzenberg, consegue proporcionar a integração social (unificação da nação); a
estabilização do regime (o líder e o seu governo acima de qualquer crítica); e a mobilização
popular (a fácil coerção das massas)35
.
A índole do povo soviético é outro tema abordado constantemente pelo escritor,
manifestando-se em diversas situações. Graciliano pontua em várias passagens, por exemplo,
os “excessivos salamaleques” daquela gente. Este costume é ainda mais saliente nos
representantes da VOKS (Sociedade para as Relações Culturais da URSS com os Países
Estrangeiros). O escritor sente-se constrangido com a maneira que lhe tratam, e aos demais
membros da comitiva. Era como se os visitantes brasileiros estivessem prestando aos
soviéticos um favor. Aos olhos de Ramos, eram os visitantes que deveriam adotar esta atitude.
Apesar de toda a simpatia que nutre pelo regime comunista, o ceticismo característico
do alagoano parece não o ter abandonado completamente. No decorrer de Viagem, pode-se
notar que a admiração e a desconfiança caminhavam lado a lado. Basta um único gesto
destoante para que nosso escritor comece a especular acerca da realidade que lhe era
apresentada. Entretanto, fica difícil para o leitor concluir se estas manifestações eram reais ou
não passavam de outro traço frequente da literatura de Ramos: a ironia.
A índole do povo sob o regime soviético é manifesta ainda numa prática comum dos
soviéticos naquele período: A visita semanal ao túmulo de Lênin. Visitando a Necrópole da
Muralha do Kremlin, o escritor é informado que três vezes por semana, habitantes de diversas
regiões da União Soviética visitam o Mausoléu de Lenin, para prestar reverência e depositar
flores. O monumento foi inaugurado em 1930, e guarda até hoje o corpo embalsamado do
primeiro líder soviético, exposto em uma urna de vidro. Segundo o alagoano, a fila para
realizar este ato é imensa. Apesar do grande número de pessoas, ele fica surpreso com a
gentileza que a população expressa diante dos turistas, ao permitir que a comitiva brasileira
passasse a frente, como se “fossemos figuras ilustres”36
.
A narrativa de Graciliano Ramos não esconde o clima “religioso” em que a visita ao
túmulo de Lenin estava impregnada. Ao descer a cripta, G.R se assombra com a “imortalidade
ali exposta”, sucedido por uma sensação de magnetismo ao fitar o “catafalco de mármore
negro”37
. Fazendo o máximo de silêncio, “pisando com pés de lã”, os visitantes depositam
flores e prestam reverência ao morto ilustre ali conservado. Em meio a grandiosidade do
monumento, e a forte presença popular, Ramos afirma que todos aqueles gestos eram o
35
1978. p.268 - 272 36
RAMOS, Graciliano. Viagem: Tchecoslováquia – URSS. 1ª ed. Editora José Olympio – Rio de Janeiro. 1954
p.65 37
Ibid, p.67
960
mínimo que os soviéticos poderiam fazer para expressar gratidão ao primeiro líder do império
vermelho.
Outro tema recorrente no relato de Mestre Graça é a Educação. Dentre outros
assuntos, Graciliano destaca o número de bibliotecas públicas existentes na URSS. Em todo o
seu percurso nos países soviéticos, o escritor destaca a queda vertiginosa do analfabetismo e a
constante preocupação com uma educação de qualidade que é apresentada por seus anfitriões.
Observando esta realidade, o alagoano não deixa de comparar a realidade da URSS com o seu
país, onde a escolarização é precária, e “onde os analfabetos engordam, proliferam, sobem,
mandam, na graça de Deus.”38
.
A excelência no domínio cultural também é evidenciada na obra. Graciliano observa
como na “nova Rússia”, a população tem acesso a atividades consideradas como “cultura de
elite”, sendo o Ballet um dos principais exemplos. Ao ser convidado a assistir uma peça no
Teatro Bolshoi, o escritor evidencia o entusiasmo dos espectadores39
. Preparando-se para
assistir a peça Romeu e Julieta, ele se admira ao notar que um local antes “destinado ao
burguês e ao nobre”, agora encontra-se repleto de uma plateia de pessoas “rudes”,
caminhando pelo tapete vermelho do teatro com suas grossas botas. Implicitamente, Ramos
parece contrastar o caráter elitista do balé no mundo ocidental com o acesso democrático dos
trabalhadores a esta arte no mundo soviético.
Podemos considerar que a narrativa do romancista alagoano é em partes um elogio a
União Soviética. Encontramos em seu texto diversos elementos que tem claramente o intuito
de ressaltar a superioridade do mundo vermelho perante o capitalismo ocidental. Entretanto,
fica claro que o autor busca não pecar pelos excessos. Em certos momentos da obra, o autor
põe em dúvida a sinceridade dos seus anfitriões, e a veracidade das maravilhas que presencia
Por este motivo, devemos considerar Viagem como um relato produzido por um
grande simpatizante da URSS, mas que talvez não tivesse como objetivo final ser uma
literatura panfletária, como fica evidente por exemplo no relato produzido por Jorge Amado,
O Mundo da Paz (1951). Em Viagem ainda podemos encontrar o Graciliano Ramos crítico,
que elabora perguntas “espinhosas” aos seus guias, mas que viu no comunismo uma saída
para as mazelas de sua terra natal.
38
RAMOS, Graciliano. Viagem: Tchecoslováquia – URSS. 1ª ed. Editora José Olympio – Rio de Janeiro. 1954.
p.100. 39
Ibid. p.39
961
Após este apanhado das duas obras, podemos constatar que, como “homens das
letras”, alguns temas são recorrentes nas duas narrativas. A cultura, a educação, e o mercado
editorial são evidenciados, assim como podemos perceber a constante necessidade em
registrar a sociedade e os costumes das nações visitadas, numa tentativa de compreende-la
melhor.
Em contrapartida, percebemos diferentes objetivos na construção das narrativas. Nota-
se que Veríssimo possui uma maior preocupação em levar aos seus leitores curiosidades e
peculiaridades dos Estados Unidos da América. Desde a preocupação em descrever
minunciosamente as cidades por onde passa, até a inclusão de rápidos históricos, fica claro a
intenção do autor em construir uma espécie de “Manual dos Estados Unidos para brasileiros”,
tendo como diferencial a sua construção com requintes literários.
Graciliano Ramos, por outro lado, não tem por objetivo apenas narrar suas
experiências, mas acima de tudo, em proferir críticas ao Brasil. Ao passo de toda obra, o autor
dispara ironias a educação precária, ao descaso com a cultura, a miséria em que a maioria da
população brasileira estava condicionada, e assim por diante. Logo, podemos afirmar que seu
relato acerca do regime comunista também foi utilizado como um contraste para discorrer
sobre as mazelas de sua pátria.
A partir deste painel, é evidente que os intercâmbios de Veríssimo e Ramos estavam
inseridos num projeto político que objetivava a “sedução” de aliados, ou utilizando o conceito
de Joseph Nye, os romancistas brasileiros foram peças de uma estratégia de Soft Power40
.
Desde a escolha de intelectuais simpatizantes das nações promotoras, até a produção de
relatos elogiosos, podemos verificar rastros de iniciativas desempenhadas pelos Estados
Unidos e pela União Soviética, que tinham por objetivo disseminar imagens positivas,
tornando as sociedades atrativas e modelares para o exterior.
3. Considerações finais
A partir das narrativas de viagem que nos propomos a analisar brevemente neste
trabalho, podemos concluir que este tipo de fonte pode oferecer ao historiador diversas
possibilidades de investigação. No nosso caso específico, podemos constatar que tanto Gato
preto em campo de Neve como Viagem: Tchecoslováquia – URSS propiciam um interessante
40
Segundo Joseph Nye, Soft Power seria a habilidade de influenciar os outros a fazer o que você deseja pela
atração em vez de coerção. Esta atração pode ser construída de várias formas, utilizando-se da cultura, dos ideais
e da política. Para o autor, quando uma nação conquista a admiração de outras, e as faz desejar aquilo que você
quer, o uso da força militar ou econômica torna-se desnecessária. IN: NYE, Joseph S. Soft Power: The Means to
Success in World Politics. New York: Public Affairs, 2004
962
campo de estudos acerca das estratégias desempenhadas por duas grandes potências mundiais
do século XX para conquistar a simpatia dos brasileiros.
Logo, ao ter em mãos um relato de viagem, não devemos cair na ilusão da “pura
biografia”, ou da objetividade do autor ao descrever “o que está vendo”. Deve-se ter em vista
que o viajante, acima de tudo, possui uma “lente” especifica para enxergar o mundo,
construída a partir de seus ideais, crenças, e experiências vividas. Bem sabemos que dois
indivíduos que visitam uma mesma cidade, podem muito bem formular relatos totalmente
distintos.
As obras de Érico Veríssimo e Graciliano Ramos são bons exemplos de como os
relatos de viagem contemporâneos são construídos. Neles podemos perceber o constante
cuidado em transparecer veracidade, sem deixar de lado os artifícios literários. Ao mesmo
tempo, notamos que as suas experiências no exterior também são utilizadas como pretexto
para expor suas opiniões sobre outros assuntos, e construírem, implicitamente, uma boa
imagem dos regimes que haviam visitado.
Desta maneira, ao ter consciência da rede de possibilidades analíticas destes dois
relatos trabalhados neste artigo, podemos enquadra-los como reflexo dos períodos em que
foram redigidos, assim como podemos utiliza-los como uma oportuna janela para o universo
cultural e ideológico dos seus autores.
Fontes Documentais
RAMOS, Graciliano. Viagem: Tchecoslováquia - URSS. Rio de Janeiro: Editora José
Olympio. 1954.
VERÍSSIMO, Erico. Gato preto em campo de neve. 15ª ed. Porto Alegre: Ed. Globo S.A.
1978.
Bibliografia
ALVES, Francisco José. A pátria é um orangotango: O Brasil nas crônicas de Graciliano
Ramos. In: Síntese, Brasília, n.5, p.46-55, 2000.
AMADO, Jorge. O Mundo da Paz. Rio de Janeiro: Editora Vitória. 1951.
ANANIAS, Denise de Castro. Literatura de Viagem: Trajetórias e percursos – Análise
em A volta do Gato Preto e México de Érico Veríssimo. Dissertação de Mestrado
apresentada ao curso de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Porto Alegre: UFRGS. 2006.
963
BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. IN: Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Editora
Brasiliense. 1987. p.197 – 221.
BOSI, Alfredo (Org.); FACIOLI, Valentim (Org.); GARBUGLIO, J. Carlos (Org.).
Graciliano Ramos. São Paulo: Editora Ática. 1987.
BUENO, Eva Paulino. Solo de um gato preto em clarinetas de neve: autobiografias de Érico
Veríssimo em ponto e contraponto. IN: Revista Espaço Acadêmico. Nº 116, janeiro de 2011.
p.87-93.
CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira (Vol.
III – Modernismo). São Paulo: Difusão Europeia do Livro. 1964.
CLEWS, John C. As técnicas da Propaganda Comunista. Rio de Janeiro: Cruzeiro. 1966.
FRANCO, Stella Maris Scatena. Relatos de viagem: reflexões sobre seu uso como fonte
documental. IN: JUNQUEIRA, Mary Anne (Org.); FRANCO, Stella Maris Scatena (Org.).
Cadernos de Seminários de Pesquisa (vol.II). São Paulo: USP-FFLCH-Editora Humanitas,
2011. v. 1. p.62-86.
GATTI , Maria Girardello. Política de Boa Vizinhança e Literatura na primeira viagem
de Erico Veríssimo aos Estados Unidos (1941). Anais do XXVI Simpósio Nacional de
História – ANPUH, São Paulo, julho 2011.
JUDT, Tony. Pós Guerra: Uma história da Europa desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva,
2008.
JUNQUEIRA, Mary Anne. Elementos para uma discussão metodológica dos relatos de
viagem como fonte para o historiador. IN: JUNQUEIRA, Mary Anne (Org.); FRANCO,
Stella Maris Scatena (Org.). Cadernos de Seminários de Pesquisa (vol.II). São Paulo: USP-
FFLCH-Editora Humanitas, 2011. v. 1. p.44-61.
MOURA, Gerson. Tio Sam chega ao Brasil: A penetração cultural americana. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
NYE, Joseph S. Soft Power: The Means to Success in World Politics. New York: Public
Affairs, 2004
PAULO NETTO, José. O que é stalinismo. São Paulo: Brasiliense. 1981
RAMOS, Graciliano. Garranchos. [Org.: Thiago Mio Salla] – Rio de Janeiro: Record, 2012.
SCHWARTZENBERG, Roger-Gérard. O estado espetáculo. Rio de Janeiro/São Paulo:
Difel, 1978.
SMITH, Richard Cándida. Érico Veríssimo, um embaixador cultural nos Estados Unidos. IN:
Revista Tempo. Vol. 19 n. 34.p.148 – 173.
964
SOTANA, Edvaldo Correa. Relatos de viagem a URSS em tempos de Guerra Fria: Uma
prática de militantes comunistas brasileiros. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2006.
TODOROV, Tzvetan. A Viagem e o seu relato. IN: Revista de Letras. São Paulo, v.46, n.1,
p.231-244, jan./jun. 2006.
TOTA, Antonio Pedro. O Imperialismo Sedutor: a americanização do Brasil na época da
Segunda Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
VÉRISSIMO, Érico. A Volta do Gato Preto. Porto Alegre: Editora O Globo. 1961.
Recommended