UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO
NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO
GOVERNANÇA E ORÇAMENTO PARTICIPATIVO: REFLEXÕES A PARTIR
DO CASO DE PORTO ALEGRE
EDIMILSON FRANCISCO DE OLIVEIRA
Salvador 2005
EDIMILSON FRANCISCO DE OLIVEIRA
GOVERNANÇA E ORÇAMENTO PARTICIPATIVO: REFLEXÕES A PARTIR DO CASO DE PORTO ALEGRE
Dissertação apresentada ao Núcleo de Pós-graduação em Administração, Escola de Administração, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre. Orientador: Prof. Dr. José Antônio Gomes de Pinho
Salvador 2005
A Maria José Lima, mãe querida. Edgnaldo F. de Oliveira (in memoriam), pai, amigo e mestre na arte da vida. Maria Anísia de O. Lima, avó e grande responsável por algumas de minhas vitórias.
AGRADECIMENTOS
A Deus, por tudo. À minha família e namorada, pelo permanente apoio. A José Antônio Gomes de Pinho, por sua paciência, compreensão e orientação, que foram, simplesmente, fundamentais no apoio a essa minha caminhada. Ao CNPq, pelo apoio financeiro, sem o qual este projeto seria inviável. Ao Núcleo de Pós-Graduação em Administração (NPGA), da UFBA, funcionários e professores, pela oportunidade e generosidade com que nos acolheram. Aos amigos do 1,39 pelos ótimos momentos e conhecimentos compartilhados. Aos amigos de república que tanto me apoiaram, especialmente a Airton e Fabiane. A dona Darlene, pela dedicação. Aos amigos novos e antigos, por tudo. Se me esqueci de alguém, desculpas, mas, ainda em tempo, muito obrigado.
RESUMO Esta dissertação teve como objetivo principal identificar de que forma o Orçamento Participativo (OP) de Porto Alegre contribui com a governança urbana. Ao ser colocado dessa forma, o objetivo revela de imediato a premissa que orientou o desenvolvimento desse trabalho, que o OP contribui com a governança urbana. Premissa esta apoiada no reconhecimento do OP pelo próprio Banco Mundial. Esse estudo foi realizado a partir da sistematização de dados presentes na literatura sobre o Orçamento Participativo de Porto Alegre, que atribuem a ele resultados sobre a gestão do investimento público. Nessa análise o conceito de governança empregado foi aquele formulado e difundido pelo Banco Mundial, segundo o qual governança é entendida como a forma com que os recursos econômicos e sociais de um país são gerenciados, com vistas a promover o desenvolvimento. No entanto, como alguns autores sugerem que o conceito de governança não passa de uma reformulação do conceito de governabilidade, fez-se necessário traçar um histórico dos dois. A partir desse histórico foi possível empreender uma discussão no sentido de apontar as principais diferenças e semelhanças existentes entre esses conceitos. Esse esforço teórico mostrou que a principal diferença entre governabilidade e governança está na forma como a legitimidade das ações dos governos é entendida. Enquanto no conceito de governabilidade a legitimidade vem da capacidade do governo de representar os interesses de suas próprias instituições. No conceito de governança, parte de sua legitimidade vem do processo, do entendimento de que grupos específicos da população quando participa da elaboração e implantação de uma política pública, ela tem mas chances de ser bem sucedida em seus objetivos. Já a principal semelhança se refere à defesa da participação institucionalizada como meio para se alcançar a estabilidade política. Aliás, essa preocupação está presente nos dois conceitos. As principais conclusões a que se chegou foram: que o OP contribui com a governança ao contribuir com a gestão eficiente e eficaz dos recursos públicos. Ao demandar, para o seu funcionamento adequado, uma postura transparente por parte do governo e ao permitir que o governo obtenha informações sobre as demandas consideradas prioritárias pela população, o OP permite que se reduza o risco de erros na aplicação dos recursos públicos e também que diminua o espaço para práticas lesivas ao fundo público, como clientelismo, desvios de recursos públicos e corrupção. Palavras-chave: orçamento participativo, governabilidade governança, participação institucionalizada.
ABSTRACT The main objective of this study is to verify how the Porto Alegre´s Participatory Budgeting contributes to urban governance. How the objetive was showed this way, it discloses the premise which oriented this study: the Participatóry Budgeting effectively contributes to governance. This premise is founded on the recognition of the World Bank towards the Participatory Budgeting. This study was realized through the sistematization of informations present into the literature that discuss the results that the Participatory Budgeting brought to the city of Porto Alegre in Brazil. In this analysis the governance’s concept adopted was the one that was created and published by the World Bank: governance refers to the way the economical and social ressources of a country are managed in order to promote the country’s development. Because some authors suggest that the governance’s concept is just a reformularization of the governability’s concept it was necessary to describe the history of them. This description allowed to demonstrate the main differences and similarities between both concepts.This theorical approach evidenced that the main difference between these concepts refers to the way the legitimacy of the government’s actions is understood. While in the governability concept the legitimacy of the government’s action comes from the capacity of the government to represent the interests of its own institutions, in the governance concept, the main sorch of this legitmacy comes from the understanding that when specific citizen groups participate of the elaboration and implementation of public policies they are supposed to be successful. The main similarity refers to the defense of the institutionalized participation as a mean to reach the political stability presented in both concepts. The main conclusion is that the Participatory Budgeting contributes to the governance as long as it contributes to the efficient management of public ressources. As it demands, for its properly perfomance, a governement transparent position and as it allows the government to obtain informations about the demands the population consider with priority, the Participatory Budgeting make possible to diminish the riks in the application of public ressources and that cheating practices such as political machine, public money embezzlement and corruption are reduced. Key words: participatory budget, governance, governability, institutionalized participation
SUMÁRIO LISTA DE QUADROS ......................................................................................................... 09
LISTA DE TABELAS .......................................................................................................... 10
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS........................................................................... 11
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 12 CAPÍTULO 1 - DE GOVERNABILIDADE À GOVERNANÇA: A METAMORFOSE DE UM CONCEITO ............................................................................................................. 18
1.1 A GOVERNABILIDADE EM SUA ORIGEM: DÉCADAS DE 1960 E 1970 .......... 19 1.2 A GOVERNABILIDADE NA DÉCADA DE 1980..................................................... 22 1.3 ANOS 90: E AGORA, GOVERNABILIDADE OU GOVERNANÇA? .................... 24 1.4 AS MAIS RECENTES CONCEPÇÕES DE GOVERNANÇA................................... 28 1.5 AFINAL, É POSSÍVEL DIFERENCIAR GOVERNABILIDADE DE GOVERNANÇA?............................................................................................................... 31
CAPÍTULO 2 - GOVERNANÇA SEGUNDO O BANCO MUNDIAL............................ 35
2.1 GOVERNANÇA: O CONCEITO................................................................................. 35 2.1.1 Administração Pública ..................................................................................... 38 2.1.2 Accountability .................................................................................................... 40 2.1.3 Quadro Legal .................................................................................................... 43 2.1.4 Informação e Transparência ........................................................................... 45
CAPÍTULO 3 - GOVERNABILIDADE, GOVERNANÇA E ORÇAMENTO PARTICIPATIVO: A PARTICIPAÇÃO INSTITUCIONALIZADA COMO ELEMENTO EM COMUM.................................................................................................. 47
3.1 PARTICIPAÇÃO INSTITUCIONALIZADA E LEGITIMIDADE: ELEMENTOS QUE IGUALAM E DIFERENCIAM OS CONCEITOS DE GOVERNABILIDADE E GOVERNANÇA................................................................................................................ 48 3.2 O BANCO MUNDIAL E O CONCEITO DE GOVERNANÇA: UM OUTRO TIPO DE LEGITIMIDADE, MAS A PARTICIPAÇÃO CONTINUA INSTITUCIONALIZADA ............................................................................................................................................. 53 3.3 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E PARTICIPAÇÃO INSTITUCIONALIZADA. 57
CAPÍTULO 4 - ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E GOVERNANÇA EM PORTO ALEGRE ................................................................................................................................ 60
4.1 A DINÂMICA DO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO DE PORTO ALEGRE......... 60 4.2 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO: CONTRIBUIÇÃO COM GOVERNANÇA DE PORTO ALEGRE............................................................................................................... 62
4.2.1 O Orçamento Participativo e Administração Pública: Eficiência e Eficácia no Gerenciamento dos Recursos Públicos........................................................................64
4.2.1.1 Uma Reforma Diferente................................................................................... 70 4.2.2 Orçamento Participativo e Accoutability.............................................................75 4.2.3 Orçamento Participativo e Informação e Transparência.................................79
CAPÍTULO 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................... 84 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................ 92
ANEXO – REGIMENTO INTERNO DO CONSELHO DO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO 2005/2006 ...............................................................................................96
LISTA DE QUADROS Quadro 1: Dimensões e principais indicadores do conceito de governança............................38
Quadro 2: Distribuição de freqüências absolutas e relativas, segundo o poder de decisão no
OP, a avaliação sobre a atuação dos representantes no OP e a avaliação sobre a
informação prestada pelos representantes da Administração no OP, na opinião de
Conselheiros ou Delegados eleitos no OP – 2002...................................................80
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Evolução do número de experiências de Orçamentos Participativos no Brasil por
mandatos............................................................................................................... 12
Tabela 2 - Variação absoluta no volume de serviços prestados de coleta de lixo, instalação de
pontos de iluminação pública e asfaltamento e recuperação de vias públicas...... 66
Tabela 3 - Evolução do número de funcionários públicos municipais ativos, 1986-99.......... 67
Tabela 4 - Evolução do número de matriculas por nível de ensino e total nas escolas
municipais, 1985 – 2000........................................................................................ 68
Tabela 5 - Percentual da população por região em relação à população da cidade; rendimento
nominal médio dos chefes de domicílios em salários mínimos, por região e na
cidade; percentual de mães com o primeiro grau incompleto com filhos nascidos
vivos em 1998, por região e na cidade; percentual do total dos investimentos
listados nos Planos de Investimentos entre os anos 1992-2000, por região, em duas
ou mais regiões e em toda a cidade........................................................................ 69
Tabela 6 - Despesa percentual média realizada da administração centralizada por
determinadas funções do governo nos períodos 1984-1988 e 1990-2000............. 71
Tabela 7 - Evolução da Receita do IPTU em Porto Alegre - 1980/92..................................... 74
Tabela 8 - Expansão dos serviços públicos, 1990 – 2000........................................................ 75
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
COP Conselho Municipal do Orçamento Participativo
CRC Coordenadora de Relações com a Comunidade
FMI Fundo Monetário Internacional
FNPP Fórum Nacional de Participação Popular
Gaplan Gabinete de Planejamento
IPTU Imposto Predial Territorial Urbano
ISSQN Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza
LDO Lei de Diretrizes
ONG’s Organizações Não-Governamentais
JICA Japanese International Cooperation Agency
OP Orçamento Participativo
PIS Plano de Investimentos e Serviços
PMPA Prefeitura Municipal de Porto Alegre
PT Partido dos Trabalhadores
INTRODUÇÃO
A prática do Orçamento Participativo (OP) no Brasil caminha a passos firmes para
completar duas décadas, sem dar qualquer sinal de esmorecimento. Desde a primeira
experiência, implantada em 1989 na cidade de Porto Alegre, os números não param de crescer
(ver tabela 1). Ainda no final daquela gestão (1989-1992), chegava a 12 o número de
municípios que o havia adotado, na gestão seguinte alcançava a marca de 36 experiências. Os
últimos números, da gestão 2001-2004, falam da existência de 194 municípios no Brasil que
colocam em prática esse instrumento de gestão participativa (RIBEIRO E GRAZIA, 2003 e
DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, 2004 apud LINHARES, 2005). Chama a atenção, também, o
fato dessas experiências não ficarem restritas a administrações do Partido dos Trabalhadores
(PT), elas são postas em prática por prefeitos dos mais variados partidos políticos (RIBEIRO
e GRAZIA, 2003)1. Isso nos permite acreditar que ele já não se situe mais na categoria de
“modismo” na gestão pública, parece ser uma prática que tende a ser aperfeiçoada e a se
prolongar no tempo.
Tabela 1: Evolução do número de experiências de Orçamentos Participativos no Brasil, por mandatos.
Mandatos
1989-1992
1993-1996
1997-2000
2001-2004
Nº de experiências
12
36
103
194
Fonte: Ribeiro e Grazia (2003) e Democracia Participativa (2004) apud Linhares (2005).
A despeito da longevidade e importância desse fenômeno, chama a atenção o
reduzido número de estudos, disponíveis na literatura sobre tema, que se dedicam a analisar
1 Segundo uma pesquisa realizada pelo Fórum Nacional de Participação Popular (FNPP) e organizada por Ribeiro e Grazia (2003), referente ao mandato 1997-2000, o PT continuava sendo o responsável pela maioria das experiências de OP no Brasil (cerca de 50%). No entanto, a pesquisa constatou, também, que havia administrações de praticamente todos os partidos que constituem o espectro político-partidário nacional, que adotavam o OP. Além do PT, outros partidos (como: PFL, PTB, PPS, PL, PSDB, PV, PSB e PMDB) também colocavam em prática esse instrumento de gestão participativa.
os resultados práticos do impacto dessa experiência sobre o desempenho dos governos
municipais que o adota. A maioria absoluta dos trabalhos existentes sobre o OP se preocupa
apenas em avaliar aspectos do processo em si, como: o seu potencial democrático, o perfil do
participante, os motivos que levam o cidadão a tomar parte nele, o caráter pedagógico da
participação no seu interior, entre outros. Ainda são poucas as análises voltadas para medir o
desempenho desse instrumento de gestão participativa. Faltam, principalmente, estudos que
tratem por exemplo de questões como eficiência e eficácia na aplicação dos recursos públicos,
números que reforcem ou desfaçam a crença nas potencialidades desse modelo de gestão
participativa, em especial em relação a sua contribuição, ou não, a eficiência e eficácia dos
governos. Isso não significa que se ignore a importância de se aprofundar o conhecimento
sobre o processo, até porque o aperfeiçoamento da experiência depende disso. No entanto,
entende-se que verificar os resultados práticos também é importante.
Reconhecendo essa necessidade, o objetivo geral desse trabalho é verificar as
contribuições do Orçamento Participativo para a gestão eficiente e eficaz dos recursos
econômicos e socais, com vistas ao desenvolvimento urbano, ou seja, procura-se verificar a
sua contribuição a governança urbana. Para que a busca desse objetivo fique mais clara,
formulou-se aqui uma questão que deve orientar esse trabalho, a saber: de que forma o
Orçamento Participativo contribui com a governança urbana? Ao assumirmos essa como a
questão orientadora, evidenciamos também a premissa que sustenta esse questionamento, o
entendimento de que o Orçamento Participativo contribui com a governança urbana.
Admitir isso logo de início, parece pretensioso, é verdade. No entanto, o reconhecimento do
OP pelo Banco Mundial nos coloca numa situação bastante confortável, já que foi essa
instituição a grande responsável pela formulação pioneira (ou pelo menos reformulação, como
veremos) do conceito de governança ou governance. Além disso, a própria longevidade de
algumas experiências já sinaliza que ele contribui, ou pelo menos não obstaculiza, com o
alcance da governança urbana.
Desta forma, têm-se como pressupostos que o Orçamento Participativo contribui
para aumentar a eficiência e a eficácia das ações dos governos, ao reduzir os riscos de erros
dos mesmos, através do levantamento de demandas junto à população e, também, com a
redução da corrupção, por conta da transparência que se exige dos governos, para o
funcionamento adequado desse canal de participação.
O propósito que este estudo tem, de contribuir com o avanço do conhecimento
científico sobre o Orçamento Participativo, já seria suficiente para que ele tivesse a sua
relevância reconhecida. Entretanto, a sua importância é ampliada na medida em que o enfoque
dado aqui se preocupa em identificar de que forma o OP contribui para a eficiência e eficácia
das ações dos governos. Isto é particularmente importante se considerarmos o contexto criado
pela lei de responsabilidade fiscal2, que limita as possibilidades de gestão irresponsável do
fundo público. Condicionando os gastos dos governos as suas respectivas receitas, e evitando
qualquer tipo de desvios que levem ao desequilíbrio das contas públicas. Ou seja, se os
recursos são limitados, cabe aos governos fazer bom uso deles, em especial no atendimento
dos mais pobres, seja lá como se faça isso, ou através da “inversão de prioridades” ou de
“políticas específicas de combate à pobreza”3.
Este trabalho é ao mesmo tempo descritivo e analítico, e aborda o fenômeno
estudado tanto de forma quantitativa quanto qualitativa. Outro aspecto importante é o seu
caráter eminentemente teórico. Além da revisão da literatura que se fez necessária à discussão
(como a revisão histórica dos conceitos de governabilidade e governança, a discussão
pormenorizada sobre o conceito de governança do Banco Mundial, o histórico e a dinâmica 2 A lei de Responsabilidade Fiscal foi sancionada pelo presidente da república em 4 de maio de 2000. 3 “Inversão de prioridades” é um dos principais objetivos do OP, e mais especificamente da plataforma municipalista do PT, e consiste em direcionar o fundo público primeiramente para atender as demandas da população mais pobre. Já as políticas específicas de combate a pobreza são políticas públicas que são desenhadas para os grupos não inseridos economicamente.
do OP), os números e as informações que são usados na análise principal, foram extraídos de
outros trabalhos e outras pesquisas, como os trabalhos de Marquetti (2002 e 2003), Dias
(2000), Fedozzi (1997), Faria (2000), CIDADE (2003), e também a partir de documentos
internos do próprio Orçamento Participativo, como no caso do Regimento Interno do
Conselho do Orçamento Participativo (anexo).
O período que será levado em conta nessa análise é aquele desde o surgimento do
Orçamento Participativo até o início de 2005. Eventualmente, números do desempenho do
governo municipal de Porto Alegre de períodos anteriores a 1989, serão usados a título de
comparação, como forma de subsidiar as discussões empreendidas.
São muitos os conceitos que figuram nesse trabalho. No entanto, entende-se que
três deles ocupam lugar de destaque, são os conceitos de Orçamento Participativo,
participação institucionalizada e governança. O primeiro por ser o objeto desse estudo e os
dois últimos por serem os instrumentos de análise, empregados como ferramentas teóricas
para a compreensão do objeto estudado.
A participação institucionalizada é entendida aqui como a participação que se dá
dentro de regras que são estabelecidas, reconhecidas e aceitas pelos participantes. Regras
estas que estabelecem um padrão de comportamento estável, válido e recorrente. Ela não deve
ser confundida com participação formalizada, pelo menos não de forma tão restrita, ou seja,
regida por leis, aprovadas pelo poder legislativo e resguardada pelo poder judiciário.
As definições que se dá ao Orçamento Participativo são quase tantas quanto o
número de autores que estudam o fenômeno. Para evitar um esforço que consideramos estéreo
aos objetivos desse trabalho – a tentativa de se discutir cada uma dessas definições de que se
tem conhecimento, como forma de justificar a adoção daquela “mais apropriada” - optou-se
então, por adotar a mesma definição dada pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre (PMPA),
segundo a qual “o Orçamento Participativo (OP) é um processo pelo qual a população decide,
de forma direta, a aplicação dos recursos em obras e serviços que serão executados pela
administração municipal” (PMPA, 2004a). Portanto, uma definição que por si só se justifica.
Em relação ao conceito de governança, o cardápio também é bastante variado. No
entanto, a razão que torna dispensável o esforço de uma revisão exaustiva é a opção que se fez
nessa análise pelo conceito do Banco Mundial, o qual é considerado a definição pioneira
desse conceito, ou seja, todos os outros derivam dele. Segundo o Banco Mundial (1992, p.1),
governança deve ser entendida como “a maneira pela qual o poder é exercido na gerência de
recursos econômicos e sociais de um país para o desenvolvimento”, (tradução nossa).
De acordo com o Banco, o conceito de governança é composto de quatro
dimensões principais: administração pública, accountability, quadro legal e informação e
transparência. A análise do Orçamento Participativo será empreendida a partir de um esforço
comparativo que procura relacionar as práticas e resultados oferecidos pelo fenômeno com
três dessas quatro dimensões. Ficará de fora dessa análise a dimensão quadro legal. A
justificativa principal para a sua exclusão é o fato de não caber ao OP funções legislativas
nem judiciárias, como discutir e aprovar leis ou assegurar a sua execução, respectivamente.
Com o objetivo de facilitar a compreensão desse trabalho ele foi estruturado em
cinco capítulos. No primeiro capítulo tratamos de fazer uma revisão histórica dos conceitos de
governabilidade e governança. Começa-se pelo conceito de governabilidade, desde a sua
formulação pioneira com Samuel Huntington, ainda na segunda metade da década de 1960 do
século passado, analisam-se os pequenos ajustes sofridos pelo conceito na década de 1980, até
a sua metamorfose no início da década de 1990, quando, de acordo com Fiori (1995), o Banco
Mundial o redefine, agora como governança.
O segundo capitulo dedica-se exclusivamente à discussão do conceito de
governança do Banco Mundial. Procurou-se empreender uma abordagem detalhada do
conceito como forma de oferecer subsídios para as análises empreendidas no terceiro e no
quarto capítulos.
No terceiro capítulo trava-se uma discussão onde se procura demonstrar que as
diferenças entre os conceitos de governabilidade e governança são muito poucas, no entanto
suficientes para tornar a participação política uma aliada e não uma ameaça a governança,
como era considerada ao conceito de governabilidade. Ainda na esteira desse argumento,
procura-se evidenciar porque o Banco Mundial reconhece o Orçamento Participativo – um
canal de participação direta - como uma importante ferramenta para a gestão urbana eficiente.
O quarto capítulo foi dividido em duas partes . Na primeira está o ciclo do
Orçamento Participativo de Porto Alegre, tomado como exemplo para favorecer a
compreensão da dinâmica do Orçamento Participativo. Na segunda parte desse capítulo, todo
o esforço empreendido foi no sentido de analisar os diversos trabalhos e pesquisas que fazem
parte da literatura sobre Orçamento Participativo, procurando encontrar neles evidências da
importância desse instrumento de gestão participativa para governança urbana.
Por último, no capítulo cinco, são tecidas algumas considerações sobre o trabalho,
ao mesmo tempo em que se apresentam as conclusões a que se chegou na análise aqui
empreendida.
CAPÍTULO 1 - DE GOVERNABILIDADE À GOVERNANÇA: A METAMORFOSE
DE UM CONCEITO
Este capítulo tem como objetivo principal oferecer subsídios para responder o
questionamento que orienta esse trabalho, qual seja: como o Orçamento Participativo pode
contribuir com a governança urbana? No entanto, para uma discussão mais apropriada sobre o
conceito de governança, faz-se necessário traçar um histórico evolutivo do mesmo. Como
esse conceito, no entendimento de alguns autores, não passa de uma derivação do conceito de
governabilidade, o histórico começa com este último.
Nas ciências sociais a polissemia parece ser um fenômeno relativamente comum,
alguns conceitos recebem tantas definições que as vezes umas simplesmente significam o
oposto de outras. Um desses conceitos é governabilidade que, segundo Fiori (1995), foi sendo
redefinido ao longo de três décadas (1970, 1980 e 1990). Em sua primeira acepção estava
voltado para a questão da “ordem” ou da “estabilidade política”, significando “a capacidade
governamental de atender certas demandas, ou então de suprimi- las de vez” (HIGGOTT apud
FIORI, 1995, n. 43, p.158). Após a sua primeira redefinição passou a tratar de questões
relacionadas à limitação das atividades submetidas ao Estado, do “Estado mínimo”. Por
último, ressurge na década de noventa na agenda do Banco Mundial e de outras instituições,
“agora na forma de uma preocupação mais limitada com o que chamaram de governace ou
good governance” (FIORI, 1995, n. 43, p.159).
No entanto, o conceito de governabilidade e/ou governança ocupa um lugar de
destaque na discussão proposta nesse trabalho, para ser tratado de forma tão superficial. Além
disso, novas significações dadas ao conceito de governança parecem querer fazer um
contraponto da concepção conservadora. Concepção essa que teria surgido com Samuel
Huntington nas décadas de 1960 e 1970, sofrido reformulações na década de 1980, até o seu
suposto rebatismo pelo Banco Mundial na década de 1990, agora sob o nome de governança.
Como esta síntese não é suficiente para permitir uma melhor compressão desse processo
evolutivo, vamos ao detalhamento dessa evolução.
1.1 A GOVERNABILIDADE EM SUA ORIGEM: DÉCADAS DE 1960 E 1970
A responsabilidade pela introdução do conceito de governabilidade na ciência
política é atribuída a Samuel Huntington (MARTINS, 1994; DINIZ, 1995; REIS, 1995;
CASTRO SANTOS, 1997; ARAÚJO, 2002;). Ele chamou a atenção para o tema ainda na
segunda metade da década de sessenta do século passado, em seu trabalho Political ordem in
changing societies4. Neste trabalho, como o próprio título sugere, ele analisava a ordem
política de países em processo de mudança, e diagnosticava o “excesso” de participação
associado à ausência de instituições políticas fortes como sendo a causa principal da crise
política vivida por aqueles países (HUNTINGTON, 1975).
No seu entendimento, o surgimento de novos grupos sociais no cenário político,
em conjunção com a ausência de instituições políticas fortes, era particularmente perigoso
para a estabilidade política de tais países. Ao se tornarem politicamente ativos esses grupos
contribuíam com o crescimento das demandas a um nível tal que os governos não tinham
condições de atendê- las. Esse quadro seria potencialmente agravado caso não houvesse
4 Ordem Política nas sociedades em mudança.
instituições políticas de inputs consolidadas, atuando na mediação entre esses grupos e o
governo 5. Isso, por sua vez, faria com que o Estado passasse a ser percebido, por parcelas
significativas da sociedade, como sendo ineficiente, trazendo como conseqüência a perda da
legitimidade da autoridade governamental e o conseqüente enfraquecimento das instituições
políticas. Nos países “modernos” esse problema era amenizado pela existência de instituições
políticas de inputs fortes. Elas contribuíam com a absorção de boa parte dessas demandas,
através da negociação, e com isso diminuía as pressões sobre as instituições governamentais
responsáveis pela formulação e implantação de políticas públicas (HUNTINGTON, 1975).
Nessas formulações, a grande preocupação de Huntington não era com o regime
político em si, mas com a ordem política, se esses países gozavam, ou não, de estabilidade
política6. Em suas palavras,
A distinção política mais importante entre os países se refere não a sua forma de governo, mas ao seu grau de governo [...] Os Estados Unidos, a Grã Bretanha e a União Soviética têm formas de governo diferentes, mas, nos três sistemas, o governo governa (HUNTINGTON, 1975, p.13).
Se o “excesso” de participação era a causa principal da instabilidade política
naqueles países, o que ele sugeria como forma de se amenizar esse problema? Huntington
acreditava que a instabilidade política poderia ser amenizada através do reforço das
instituições políticas, do fortalecimento dos governos e da colocação de restrições à
participação política de novos grupos sociais no processo decisório acerca da formulação de
políticas públicas. Assim, a estabilidade política dependia da forma como esses novos grupos
eram assimilados pelo sistema político. A defesa dessas medidas rendeu- lhe, mais tarde, o
título de conservador e antidemocrático (MARTINS, 1994; DINIZ, 1995; MELO, 1995).
5 A principal dessas instituições, no entendimento de Huntington, era o partido político. 5 Desde que esse regime político permitisse uma economia de mercado.
Aparentemente não há nenhum exagero nessa categorização, uma vez que o
próprio Huntington assumia que a legitimidade dos governos vem da sua capacidade de
atender o “interesse público” que, segundo ele, seria representado pelo interesse das próprias
instituições governamentais. Isso fica evidente quando ele afirma que,
Pela teoria da lei natural, as ações governamentais são legítimas na medida em que estão de acordo com a “filosofia pública”. Segundo a teoria democrática, derivam sua legitimidade da extensão em que incorporam a vontade do povo. De acordo com o conceito processual, as ações são legítimas quando representam o resultado de um processo de conflito e compromisso dos quais participam todos os grupos interessados. Por outro lado, no entanto, a legitimidade das ações governamentais pode ser procurada na medida em que refletem os interesses das instituições governamentais . Em contraste com a teoria do governo representativo, por esse conceito as instituições governamentais derivam sua legitimidade e autoridade não do grau em que representam os interesses do povo, ou de qualquer outro grupo, mas do grau em que possuem interesses próprios distintos dos de quaisquer outros grupos” (HUNTINGTON, 1975, p.41, grifo nosso).
Mesmo a discussão tendo sido iniciada por Samuel Huntington ainda na segunda
metade da década de 1960, somente a partir do início da década de 1970 é que o tema da
governabilidade começou a ganhar relevância na ciência política. Foi quando ela passou a ser
empregada como instrumento analítico na busca pela compreensão das causas da instabilidade
política em diversos outros grupos de países, inclusive nas democracias consolidadas, ou
países modernos (Huntington: 1975).
Segundo Diniz (1995), esse mesmo autor realizou um outro estudo tendo o
conceito como instrumento de análise, só que dessa vez tratando da crise de governabilidade
nas democracias consolidadas. Analisando a democracia americana, ele constatou que a crise
de autoridade, pela qual aquele país havia passado na década de 1960, teria se dado por conta
do excesso de democracia da década anterior. Onde, a diversificação de demandas e o
alargamento do campo de pressões teriam provocado o aumento da insatisfação em um
contingente importante da população, devido à incapacidade do governo de conseguir atender
o alto grau de expectativas dessa mesma população.
Um segundo conjunto de análises sobre a crise de governabilidades nos países
capitalistas centrais foi desenvolvido entre as décadas de 1970 e de 1980 do século passado.
Dessa vez as atenções voltavam-se para a crise enfrentada pela social-democracia européia. O
ponto de partida dessas análises foi um documento elaborado em 1975 por Samuel
Huntington, Michel Crozier e Watanuki para a comissão trilateral, intitulado A crise da
democracia (ACHARD Y FLORES apud IVO, 2002). Os diagnósticos oferecidos por esses
estudos apontavam para o esgotamento da capacidade do Welfare State em atender as
demandas colocadas pela sociedade. Esgotamento esse que se traduzia em crise fiscal,
corrosão da autoridade e na instabilidade política dos governos desses países, as voltas com os
“excessos” de democracia, de governo e de demandas sociais (DINIZ ,1995).
1.2 A GOVERNABILIDADE NA DÉCADA DE 1980
Esses últimos diagnósticos, que procuram relacionar a crise de governabilidade
aos “excessos” de democracia, de governo e de demandas, de alguma forma já deixavam
transparecer os sinais do neoliberalismo sobre o conceito de governabilidade. Segundo Fiori,
foi a nova economia política - fruto do “casamento entre o neoliberalismo econômico de
Hayek e a corrente de pensamento da escola da escolha pública” - que serviu de base para o
que ele chamou de “a grande revolução neoliberal deste fim de século” (FIORI, 1995, n.43,
p.158). O avanço das idéias neoliberais promoveu redefinições no conceito de
governabilidade.
Quando surgiu, como observado anteriormente, a grande preocupação por traz do
conceito de governabilidade era com a ordem política, e governabilidade era entendida como
“a capacidade governamental de atender certas demandas, ou então de suprimi- las de vez”
(HIGGOTT apud FIORI, 1995, n. 43, p.158)7. Posteriormente, por influência do
neoliberalismo, essa preocupação migrou para a questão da eficiência do Estado e a sua
agenda passou a ser orientada não mais tão somente pela necessidade de conservar a ordem
política, mas, principalmente, pelo desafio de “limitar vigorosamente o número de atividades
ainda submetidas ao poder do Estado”, ou de forma resumida, para a idéia de “Estado
mínimo” (BUCHANAN apud FIORI, 1995, n. 43, p.159). Isso talvez explique porque grande
parte dos trabalhos produzidos no Brasil entre o final dos anos 1980 e meados dos anos 1990,
que empregavam o conceito de governabilidade como instrumento analítico, tratassem, de
forma direta ou indireta, da questão da crise fiscal e/ ou da reforma do Estado (FAUCHER,
1993, DINIZ, 1995, CASTRO SANTOS, 1997).
Um exemplo do emprego do conceito de governabilidade dentro dessa linha de
significação é aquele formado pelo conjunto de análises que surgiram no debate da ciência
política no Brasil, a partir de meados da década de 1980. Por aqui, inicialmente, ele variou
desde a preocupação com os “excessos de demandas sociais”, que viera à tona com o fim do
regime militar, até as questões relacionadas às reformas do Estado, política, econômica, etc.
(FIORI, 1995, n.º 43, p.161).
As primeiras análises sobre a crise de governabilidade vivida pelo Brasil seguiam
um viés conservador e atribuíam, ent re outros, a elementos como o “excesso” de participação
e de demandas sociais e a interferência do congresso nacional no processo de formulação de
políticas públicas, a responsabilidade pela instabilidade política vivida pelo país
(MELO,1995). Estes mesmos trabalhos prescreviam, como solução para a crise, o
7 Não que a preocupação com a eficiência não estivesse presente na noção huntingtoniana, ela de alguma forma marcava presença, mas era só mais um dentre os muitos fatores considerados necessários a criação das condições favoráveis a governabilidade e ao desenvolvimento.
fortalecimento do executivo federal, através do emprego do insulamento burocrático e da
reforma política.
Mas, segundo Diniz (1995), a concepção Huntingtoniana de governabilidade não
é a única, nem pode ser considerada a mais atual. Uma segunda geração de análises,
preocupada com a governabilidade em contextos democráticos, ganhou força a partir do final
da década de 1980. Tomaram a dianteira nessas análises, as agências internacionais de
fomento, em especial o Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional – FMI (CASTRO
SANTOS, 1997), com a introdução dos conceitos de governance e good government. Além
delas, um conjunto de outros autores como Evans (1989), Faucher (1993), Malloy (1993), e
Sola (1993), que trataram do problema da crise de governabilidade enfrentada por governos
latino-americanos, também contribuíram com esses estudos.
1.3 ANOS 90: E AGORA, GOVERNABILIDADE OU GOVERNANÇA?
Segundo Fiori (1995, n.º43, p.159), no início da década de 1990 o conceito de
governabilidade sofre uma outra importante reformulação, é quando surge uma versão
“eclética”, da governabilidade que receberia o nome de governace ou good governance. Só
que dessa vez difundida pelo Banco Mundial e por outras instituições multilaterais. Segundo o
autor as mudanças trazidas por essa nova versão, em relação a anterior, são poucas, ela
“aumenta apenas o rigor no detalhamento institucional do que seria um governo pequeno,
bom e, sobretudo, confiável do ponto de vista internacional” (idem, p.159). Nessa nova
acepção, governabilidade (ou será governança?) passou a ser entendida como “sinônimo de
capacidade dos governos de conjugar simultânea e eficientemente as market friendely reforms
com a criação de condições institucionais capazes de estabilizar as expectativas dos decisores
econômicos” (ibid, p.160). Percebe-se, nessa nova definição, uma preferência, segundo
Borges (2003) não declarada, pela democracia liberal, que tem como objetivo central a
criação de condições ambientais para o bom funcionamento do mercado, através do
atendimento dos interesses dos agentes econômicos.
A preocupação em assegurar a governabilidade e a democracia ao mesmo tempo
surge no início da década de noventa, quando importantes atores do cenário político
internacional como os EUA, o FMI e, em especial, o Banco Mundial passaram a considerar a
democracia um aliado das condições adequadas ao desenvolvimento do capitalismo
(BORGES, 2003). Essa preocupação com a governabilidade nas democracias coincide com o
processo de consolidação da “terceira onda de democratização”, que avançou pelo Ocidente
entre as décadas de 1970 e início dos anos 1990 do século passado 8.
Da mesma forma que Fiori (FIORI, 1995, n.º43, p.158) chama a atenção o fato de
a defesa da governabilidade, significando “ordem” política, ter sido “contemporânea da
instalação dos regimes militares que se generalizaram nos continentes africano e latino-
americano nos anos 60 e 70 do século passado”. Também merece atenção o fato de o conceito
de governança, ao surgir no início da década de 1990, trazer implícita a preferência pela
democracia liberal, justamente num período contemporâneo a queda do muro de Berlim, que
simbolizou o fim dos regimes socialistas do leste europeu9.
Borges (2003), analisado a política do Banco Mundial para a educação, destaca
que no início dos anos 1990 as linhas de ação do Banco sofreram um importante ponto de
inflexão. Essa mudança teve como característica principal o abandono de políticas de
reformas econômicas e de ajuste estrutural, para se preocupar com a reforma do Estado, com
vista a alcançar a “boa governança” e o fortalecimento da sociedade civil. A partir de então
conceitos como governance e good government passam a integrar a agenda do Banco. 8 Segundo Castro Santos (2001) o termo “terceira onda de democratização” foi cunhado por Samuel Huntington, que teria associado o seu início à Revolução dos Cravos em Portugal, no ano de 1974. 9 Segundo Borges (2003), o relatório, Sub-Saharan Africa: from crisis to sustainable growth que serviu de base para as conclusões que resultaram na definição de governança formulada pelo Banco Mundial data do ano de 1989, justamente o ano da queda do muro de Berlim.
Supostamente, o fato gerador dessa mudança de postura do Banco Mundial teria sido o
resultado das políticas de ajustes estruturais, implantadas pela instituição na África Sub-
saariana ao longo da década de 1980, que teriam fracassado em seus objetivos.
Ainda segundo o autor, no relatório Sub-Saharan Africa: from crisis to
sustainable growth, o Banco teria apontado como obstáculo ao desenvolvimento daqueles
países o problema da crise de governança, representada pela fraqueza e falta de legitimidade
daqueles governos. Esse entendimento significou o abandono, por parte da instituição e de
outras agencias internacionais de financiamento, da crença de que o desenvolvimento político
e social e a própria consolidação da democracia viriam como conseqüência do
desenvolvimento econômico, e que, portanto, para resolver todos esses problemas bastaria
financiar esse desenvolvimento (CASTRO SANTOS, 1997).
Embora o Banco tenha se esforçado para fazer crer que essas mudanças em sua
agenda eram orientadas por uma neutralidade técnica, onde ele se apresentava como uma
instituição “apolítica”, o que se observava na prática, e na opção da instituição por políticas
normativas, eram ações orientadas por valores políticos (BORGES, 2003, p.126). Esses
valores surgem aparentemente do reconhecimento da importância dos fatores políticos na
determinação do sucesso de seus programas de financiamentos, e denota a opção do Banco
pelo modelo de democracia vigente nos países desenvolvidos do Ocidente, a democracia
liberal.
No Brasil, o contexto marcado pela retomada de democracia, e pela mudança de
postura assumida por importantes instituições internacionais de fomento, conforme destacado
acima, faz surgir um conjunto de análises representadas, entre outras, pelos trabalhos de
Faucher (1993), Malloy (1993), Diniz (1995), Melo (1995) e Reis (1995), que contrariam os
prognósticos da vertente huntingtoniana, ao questionar os elementos apresentados por ela
como solução para a crise de governabilidade vivida pelo país, até pelo menos o início da
década noventa. Esses trabalhos apontam justamente para o emprego abusivo do insulamento
burocrático e a tentativa de despolitização do processo de formulação de políticas públicas,
como a causa principal da crise.
Diniz (1995), por exemplo, analisando a questão do relacionamento entre
executivo e legislativo federal, chegou a defender que a crise pela qual o Brasil passava não
era de governabilidade e sim de governança10. Para sustentar esse argumento ela cita o
número de programas de ajustes econômicos (nove ao todo) e as medidas provisórias editadas
pelo governo federal (mais de mil), entre o início do governo Sarney e os cinco primeiros
meses do governo Fernando Henrique. Isso, no seu entendimento, não seria possível a um
governo que sofresse de paralisia decisória. A causa da crise, aparentemente, não estava na
falta de capacidade do governo de formular políticas públicas, mas na sua incapacidade de
implementá-las. O problema, portanto, não seria de paralisia decisória, mas de “hiperatividade
decisória” do executivo, associada a sua incapacidade de fazer valer as decisões tomadas.
Percebe-se nessa argumentação de Diniz (1995), assim como em outros autores
que, ao contrário de Fiori (1995), eles enxergavam diferenças significativas entre os conceitos
de governabilidade e governança. No entanto, como será visto a seguir, com as novas
definições, que foram sendo atribuídas ao conceito de governança, a fronteira semântica que
tais autores enxergavam parece ter ruído.
Uma crítica ainda mais contundente aos diagnósticos contidos nas análises
conservadoras é aquela feita por Melo (1995), que questiona o argumento do “excesso” de
participação política e da sobrecarga de demandas sobre o governo como sendo as causas
10 Para entender essa diferenciação feita por Diniz (1995) é necessário ver a definição que ela dá aos conceitos de governabilidade e governança. Ela define governabilidade como “condições institucionais e sistêmicas mais gerais sob as quais se dá o exercício de poder em uma dada sociedade, tais como a forma de governo, as características dos sistemas partidário e eleitoral, entre outras”. Já governança ela define como “a capacidade de ação, na implementação de políticas públicas e na consecução de metas coletivas”.
principais da crise de governabilidade. Apoiando-se em Wanderlei G. dos Santos11, ele refuta
esses diagnósticos, ao sugerir que, num quadro político e social onde a população se mostra,
(...) Alienada eleitoralmente, refratária à participação em organizações como sindicatos, partidos políticos, associações profissionais, ou comunitárias e indiferente à classe política (...) parece ser mais apropriado falar de reduzidas taxas de demandas - e não o inverso – e débil articulação social (MELO, 1995, p.38-9).
Em anos mais recentes, em função do processo de descentralização política, fruto
da aplicação das reformas neoliberais, onde as responsabilidades, que antes eram atribuídas ao
governo central, são transferidas para os governos locais. Surge, então, uma profusão de
estudos que tratam da questão da governabilidade e governança em nível municipal. Nesses
estudos ganham destaque o emprego dos conceitos de “governança local” ou “governança
urbana”. Segundo Ivo, estes não passam de “genéricos” do conceito de governança, e que,
como este, também foram usados no início da década de 1990, pelas agenciais internacionais
de desenvolvimento, “com vistas a criar um Estado eficiente que contemple a construção do
desenvolvimento auto-sustentável, através de estímulo à inovação e a participação social e
descentralização das políticas” (IVO, 2001, p.61).
1.4 AS MAIS RECENTES CONCEPÇÕES DE GOVERNANÇA
A forma como os conceitos de governabilidade e governança apareceram até aqui
na discussão, provoca certa confusão, que reflete a realidade que cerca esses dois conceitos.
Como se pôde observar, a noção de governança foi difundida pelo Banco Mundial no início
da década de noventa e, de forma paralela, começa-se a falar também em governabilidade
democrática. Se inicialmente eles poderiam ser considerados “como aspectos
11 Aqui o autor se apóia em Santos, Wanderlei G. dos, Razões da Desordem, Rocco, 1993, p.80.
complementares” da eficácia estatal, atualmente parece não poder ser entendido dessa forma
(DINIZ, 1995, p.389)12. As abordagens mais recentes de governança tratam de ampliar o seu
significado, fazendo-o avançar sobre as fronteiras semânticas do conceito de governabilidade.
Isso se dá a partir do momento em que essas novas concepções passam a considerar “questões
mais amplas relativas a padrões de coordenação e cooperação entre atores sociais” (MELO,
1995, p.30). Ou seja, as formulações mais recentes do conceito de governança englobam não
só aspectos operacionais das ações governamentais como também aspectos políticos que dão
sustentação a essas ações.
Essa confusão só parece aumentar à medida que vão surgindo novas definições
para o conceito. Uma das mais recentes, originária da América Latina, trata de fazer uma
reapropriação do conceito de governance formulado pelo Banco Mundial, incluindo nele a
dimensão da “justiça social”, como sendo uma responsabilidade do Estado. Segundo Ivo, “a
introdução da dimensão da justiça social no âmbito da noção de governança resultou da
avaliação crítica dos dispositivos originais da governança instituídos pelo Banco Mundial no
contexto dos ajustes de reforma dos Estados” (IVO, 2001, p.197). Essa nova interpretação é
uma espécie de vertente de esquerda da noção de governança, que se opõe a noção difundida
inicialmente pelo Banco. Enquanto esta última tem como orientação a redução do tamanho do
Estado, principalmente através do seu desengajamento em relação a questões sociais, a
primeira tenta atribuir a esse mesmo Estado, o papel de ator principal nas soluções dos
problemas sociais.
Outro elemento não menos importante que marca essas novas concepções de
governança é a perda da importância de aspectos técnicos, de governo, em detrimento da
ascensão da dimensão política (IVO, 2002, p.10). Desta forma, há um deslocamento do lócus
12 Diniz (1995) entedia que governança e governabilidade eram conceitos complementares. No entanto, como foi visto, Fiori (1995) parece não entender dessa forma. Ele vê no conceito de governança do Banco Mundial apenas uma versão reformulada do conceito de governabilidade, na linha Huntingtoniana.
de poder, que sai do âmbito do governo para se dá nos espaços de interação entre Estado e
sociedade.
Ainda aqui vale ressaltar que, aparentemente, o que há de novo nessa
interpretação da governança, não é a inclusão da dimensão de justiça social, até porque essa
dimensão também aparece no conceito de governança de algumas instituições internacionais
de fomento, como é o caso da Japanese International Cooperation Agency- JICA
(BANDEIRA, 1999). O que há realmente de novidade nessa interpretação, é a devolução ao
Estado da responsabilidade pela promoção dessa justiça social. Ou seja, é uma tentativa de
reversão da noção original do conceito de governança, uma vez que nele caberia ao Estado
apenas regular o funcionamento da economia e oferecer políticas compensatórias, para
combater os efeitos dos ajustes neoliberais, e a questão social ficaria então subordinada a
filantropia (IVO, 2001, p.2).
É nesse contexto que Frey (2004) fala da existência de pelo menos duas grandes
vertentes analíticas que tratam de governança. Uma seria orientada pela noção difundida pelo
Banco Mundial, nela se inscrevem abordagens que tem como objetivos finais principais o
aumento da eficiência e da eficácia dos governos, usando para isso mecanismos de
participação da sociedade civil. Na outra vertente estão inscritas abordagens que focam o
potencial democrático e emancipatório da sociedade civil, como por exemplo a noção de
governança participativa. Mas, segundo o autor as diferenças significativas entre essas
abordagens parecem subsistir apenas no plano ideológico, já que em termos práticos elas
parecem muito próximas.
Apesar da existência de uma diferença inegável no tocante ao fundo ideológico que norteia ambas as vertentes teóricas e políticas, percebe-se certa confluência destas duas abordagens para a concepção de governança, evidenciando uma tendência a uma aproximação entre os modelos gerencial e democrático-participativo, sem porém chegar a uma dissolução dos antagonismos ideológicos referentes aos objetivos estabelecidos (FREY, 2004, p.4).
Em cada uma delas, a necessidade de se levar em conta a “questão da mobilização
dos saberes” tem razões diferentes (BOURDIN, 2001 apud FREY, 2004, p.3). Os que seguem
a vertente do Banco Mundial, olham a participação a partir “da lógica e das necessidades
administrativas e governamentais”. Enquanto que, os adeptos da governança democrática,
vêem na participação a possibilidade da “emancipação social e da redistribuição do poder”
(FREY, 2004, p.4).
1.5 AFINAL, É POSSÍVEL DIFERENCIAR GOVERNABILIDADE DE GOVERNANÇA?
Os conceitos de governabilidade e governança se apresentaram até aqui ora como
elementos complementares da eficácia das instituições governamentais, ora como tendo o
mesmo significado um do outro. Isto parece ser reflexo da própria confusão que se instalou na
difusão do uso do conceito de governabilidade, ainda no início da década de noventa,
associado às múltiplas noções atribuídas ao conceito de governança. Se, por um lado, há um
conjunto de autores como Diniz (1995), Melo (1995) e Araújo (2003) que tentam diferenciá-
los, um outro tanto não faz qualquer esforço nesse sentido, ou até mesmo são vítimas de tal
confusão semântica. Reis (1994), por exemplo, parece se enquadrar nesse último grupo,
quando afirma que,
[...] tal parece ser o caso de governance, cujo equivalente em português mais preciso seria provavelmente governança, mas que aqui no Brasil mais comumente se convencionou tratar pela forma já conhecida de governabilidade [...] (REIS, 1994, p.194).
Diniz (1995, p.401), no entanto, tenta diferenciá- los, sugerindo que
governabilidade deve ser entendida como “as condições institucionais e sistêmicas mais gerais
sob as quais se dá o exercício de poder em uma dada sociedade, tais como a forma de
governo, as características dos sistemas partidário e eleitoral, entre outras”. Já governança ela
define como “a capacidade de ação, na implementação de políticas públicas e na consecução
de metas coletivas”.
Melo (1995, p.30), também se esfo rça nesse sentido e sugere que, a
governabilidade trata das “condições do exercício da autoridade política”, enquanto
governança estaria relacionado com o “modo de uso dessa autoridade”. Mas, o próprio autor
admite que “a discussão recente em torno do conceito de governança (governance) ultrapassa
o marco do modus operandi das políticas e engloba questões mais amplas relativas a padrões
de coordenação e cooperação entre atores sociais”( idem, p.30).
Já Fiori, como ficou claro ao longo dessa discussão, acredita que governabilidade
e governança são a mesma coisa, sendo que este último conceito não passa de uma “versão
eclética” do primeiro (FIORI, 1995, n. 43, p.159).
Como se pode observar, não há consenso na ciência política em relação aos dois
conceitos, sobre onde termina um e onde começa o outro. Isso faz com que todas as tentativas
no sentido de traçar suas respectivas fronteiras semânticas não ultrapassem o pragmatismo
didático-analítico. Além disso, o próprio conceito de governabilidade foi empregado com
tantas significações que os múltiplos significados, a ele atribuídos, teriam contribuído para o
seu esvaziamento e, até mesmo, para confundi- lo com o conceito de governança. Se isso não
fosse o bastante, outros fatores como nacionalidade do autor, a ênfase que ele dá a um ou
outro elemento e, até mesmo, suas orientações ideológicas, influenciam no significado do
conceito de governabilidade por ele empregado (ARAÚJO, 2002).
E por falar em orientações ideológicas, a própria multiplicidade de significados
dados ao conceito de governança parece ter a ver com elementos dessa natureza. Frey (2004,
p.4), conforme já assinalado anteriormente, identifica ao menos duas vertentes do conceito de
governança. Na primeira, orientada pela idéia de “good governance” do Banco Mundial, “a
ênfase está na criação de condições de governabilidade e na garantia do funcionamento do
livre jogo das forças de mercado”. A segunda vertente, uma abordagem mais emancipatória,
busca “restaurar a legitimidade do sistema político pela criação de novos canais de
participação e parcerias entre o setor público e o setor privado ou iniciativas voluntárias”.
Embora o autor admita a existência de diferenças políticas e ideológicas entre essas vertentes,
ele também consegue perceber “uma certa confluência destas abordagens para a concepção de
governança, evidenciando uma tendência a uma aproximação entre os modelos gerencial e
democrático-participativo” (idem), sem que isso signifique a abdicação dos objetivos
ideológicos de ambas as vertentes.
De forma sintética, percebeu-se até aqui, que há duas vertentes principais do
conceito de governança. Aquela que segue a linha do Banco Mundial que, segundo Fiori
(1995), não passa de um refinamento do conceito de governabilidade ou, em suas palavras, de
uma “versão eclética” deste. E outra que surge de uma reapropriação daquele conceito e
propõe a devolução da responsabilidade pelo social ao Estado. No entanto, como visto
anteriormente, no argumento de Frey (2004), parece que as diferenças estão muito mais no
campo ideológico do que em termos práticos.
Como o objetivo principal desse trabalho é identificar de que forma o Orçamento
Participativo contribui com a governança urbana, a ponto de a experiência de Porto Alegre ter
sido reconhecida pelo Banco Mundial como “como um exemplo bem-sucedido de ação
comum entre governo e sociedade civil” (PMPA, 2004b). Parece bastante razoável analisar as
práticas do OP com base no conceito de governança do próprio Banco. Portanto, para tornar
essa análise viável, o capítulo II tratará de promover uma discussão mais pormenorizada desse
conceito.
Além disso, entende-se que, a decisão de empregar o conceito do Banco Mundial
na análise de uma experiência de gestão participativa, coloca de imediato a necessidade de
aprofundar o debate proposto por Fiori (1995). Ao afirmar que esse conceito de governança
não passa de uma versão, com pequenos ajustes, do conceito de governabilidade, o autor cria
uma aparente contradição. Afinal, como foi visto lá no início desse capítulo, Huntington
(1975) via no “excesso” de participação uma ameaça à governabilidade. Então como é
possível, ser o conceito de governança do Banco Mundial, apenas uma versão do conceito de
governabilidade, se o próprio Banco admite que a participação pode ser usada como um meio
para se alcançar a governança? É com objetivo de tentar responder a essa questão e a outras,
que por ventura venham a surgir do seu desdobramento, que se dedica o capítulo III.
CAPÍTULO 2 - GOVERNANÇA SEGUNDO O BANCO MUNDIAL
Esse capítulo tem como objetivo principal apresentar o conceito de governança do
Banco Mundial, bem como os seus principais elementos constituintes. Não se pretende aqui
promover nenhuma revisão exaustiva sobre as diferentes concepções dadas por outros autores
ao conceito de governança, por duas razões. Primeiro, porque a discussão travada
anteriormente já possibilitou uma noção, ainda que breve, da multiplicidade de definições que
esse conceito recebe. Segundo, porque apenas a definição dada pelo Banco Mundial será
usada na análise empreendida nesse trabalho, que procura identificar as principais
contribuições oferecidas por uma ferramenta de gestão participativa, o Orçamento
Participativo (OP), para a governança urbana.
2.1 GOVERNANÇA: O CONCEITO
A emergência do tema da governança, a partir do início da década de 1990,
resultou de um processo de inflexão pelo qual passou a agenda do Banco Mundial, o qual
provocou um redirecionamento de suas políticas de financiamento com vistas ao
desenvolvimento econômico13. Contribuiu para esse redirecionamento as falhas constatadas
13 Há autores como Fiori que não conseguem enxergar diferenças significativas entre os conceitos de governança e governabilidade, considerando o primeiro apenas uma versão “eclética” deste último (FIORI, 1995, n. 43, p.159).
em programas de ajustes estruturais empreendidos em países da África Sub-Saariana, ao
longo dos anos 1980. Essas falhas foram apresentadas num relatório intitulado “Sub-Saharan
Africa: from crisis to sustainable growth” produzido em 1989. Nesse relatório a crise de governança
era assinalada como o principal obstáculo ao desenvolvimento daquele continente (BORGES,
2003, p.126). Além disso, contribuíram também “as rápidas mudanças políticas que
ocorreram no Leste Europeu, América Latina, África e partes da Ásia” (WORLD BANK,
1992, p.5).
A partir dessas experiências, o Banco constatou que, para que um programa de
ajustes gerasse resultados positivos, não bastava um projeto tecnicamente bem elaborado. Pois
uma variável importante, “a qualidade das ações do governo”, influenciava de forma
significativa nos resultados alcançados por esses programas (WORLD BANK, 1992, p.1,
tradução nossa). Ou seja, além de um projeto com tais características, era necessário assegurar
que os governos cumpririam o papel que deles se esperava, num contexto de um programa de
ajuste econômico de corte neoliberal. Desta forma, caberia aos governos desempenhar um
papel chave na provisão de bens e serviços públicos, considerados essenciais, para assegurar o
funcionamento eficiente dos mercados; e oferecer, também, bens e serviços públicos
essenciais à população, não oferecidos pelos agentes econômicos privados.
Os bens e serviços públicos oferecidos pelo Estado, num contexto desses, são de
três naturezas distintas: a criação e reforço das regras para o funcionamento eficiente dos
mercados (leis que estabeleçam a ordem, assegurem o direito à propriedade, que favoreçam o
investimento produtivo, etc.), reduzindo o “custo de transação”; a criação de mecanismos para
assegurar a competição no mercado; e o “provimento de serviços como saúde, educação e
serviços de infra-estrutura essenciais, particularmente quando esses serviços são direcionados
para os pobres e não são oferecidos pelo setor privado” (WORLD BANK, 1992, p.1, tradução
nossa).
No entanto, para atuar como guardião da eficiência dos mercados e oferecer os
bens e serviços públicos considerados essenciais (que não podem, ou não são oferecidos pelos
agentes econômicos privados, seja por falta de interesse, ou por qualquer outra restrição de
caráter intrínseco ao próprio bem ou serviço) os governos precisam arrecadar recursos. Mas o
próprio emprego eficiente desses recursos é considerado, também, de fundamental
importância para gerar as condições favoráveis ao desenvolvimento econômico. Desse modo,
no entendimento do Banco Mundial, a eficiência dos mercados e a eficiência dos governos
são determinantes para o desenvolvimento econômico sustentável. É o gerenciamento dessas
condições que o Banco chama de governança, ou boa governança, a qual ele define como “a
maneira pela qual o poder é exercido na gerência de recursos econômicos e sociais de um país
para o desenvolvimento” (WORLD BANK, 1992, p.1, tradução nossa).
Segundo o Banco Mundial, quando há falha na governança uma série de sintomas
aparecem, como: falta de clareza na separação entre o que é público e privado, e por conta
disso, recursos públicos são usados em benefícios de particulares; ausência de um aparato
legal fortalecido, resultando na formulação e aplicação arbitrária das leis; excesso de regras e
regulação, atrapalhando a eficiência dos agentes econômicos privados e favorecendo o rent-
seeking; desperdício de recursos públicos; e falta de transparência na tomada de decisões
pelos governos.
O Banco identifica quatro principais dimensões da governança, as quais considera
compatível com a sua agenda, são elas: administração do setor público; accountability;
quadro, ou estrutura legal; e informação e transparência. O quadro abaixo resume essas
dimensões, bem como os principais indicadores que integram cada uma delas.
Quadro 1: Dimensões e principais indicadores do conceito de governança
Dimensões Indicadores
Capacidade de oferecer bens e serviços públicos com eficiência e eficácia .
Administração pública Existência de mecanismos de planejamento e controle dos gastos públicos
(peça orçamentária).
Existência de um sistema de contabilidade eficiente do governo que
permita o controle dos gastos e o gerenciamento dos recursos financeiros;
Existência de um sistema de auditoria externa que reforce o controle das
despesas e que imponha sanções contra o desperdício e a corrupção;
Existência de mecanismos que permitam a verificação do cumprimento das
recomendações sugeridas como solução dos problemas identificados nas
auditorias
Existência de mecanismos de avaliação de desempenho dos governos.
Accoutability
Existência de mecanismos que permitam aos usuários dos serviços públicos
influenciarem na formulação e implementação das políticas públicas e na
prestação de serviços públicos
Leis conhecidas previamente;
Leis fortes
Existência de mecanismos que assegurem a aplicação das leis
Sistema judiciário confiável e independente
Estrutura legal
A existência de procedimentos para alteração de leis ultrapassadas
Disponibilidade de informações sobre políticas e ações do governo.
Informação e transparência Possibilidade de participação no processo de formulação de políticas
públicas
Fonte: elaboração própria a partir do relatório Governance and Development (WORLD BANK, 1992).
2.1.1 Administração Pública
A dimensão da administração pública refere-se à capacidade do setor público em
gerenciar a economia e oferecer bens e serviços públicos com eficiência e eficácia. Entende-
se que o governo central, através de suas agências, deve ser capaz de gerenciar a economia,
através da criação de um ambiente institucional favorável aos investimentos privados. Dessa
forma, caberia ao Estado a responsabilidade pela criação e reforço das regras para o
funcionamento eficiente do mercado e a intervenção para corrigir eventuais falhas do mesmo
(WORLD BANK, 1992).
Além do gerenciamento da economia, cabe também ao Estado o “provimento de
serviços como saúde, educação e serviços de infra-estrutura essenciais, particularmente
quando esses serviços são direcionados para os pobres e não são disponibilizados pelo setor
privado” (WORLD BANK, 1992, p.6). Com a descentralização, boa parte desses serviços
ficou a cargo dos governos locais. Aliás, a própria preocupação com o provimento desses
serviços tem uma relação muito forte com a questão da eficiência dos mercados, como destaca
o Banco, “uma força de trabalho bem educada e uma infra-estrutura adequada são
fundamentais para a qualidade dos investimentos privados” (idem).
Para o Banco Mundial “o Estado deveria administrar menos, mas administrar
melhor” (WORLD BANK, 1992, p. 2). Isso explica todo o esforço direcionado pelo Banco,
ao longo da década de 1980, através dos programas de empréstimos de ajustes, na busca da
melhoria do gerenciamento do setor público, nos países em desenvolvimento. Os esforços
desses programas se concentraram em três áreas principais: melhoria no gerenciamento dos
gastos públicos; melhoria na prestação de serviços públicos; e aumento da eficiência das
empresas estatais, ou privatização das mesmas.
No entendimento do Banco, um melhor gerenciamento dos gastos públicos
depende da adoção de mecanismos eficiente de formulação e gerenciamento do orçamento
público, de geração de receitas, e de controle de gastos e planejamento do investimento. Em
relação a melhorias dos serviços públicos, o foco está na busca da contenção do crescimento
do governo e dos seus custos, através da eficiência e efetividade dos serviços públicos
prestados. Já na melhoria do gerenciamento das empresas estatais, os esforços foram
direcionados para a criação de políticas e instituições que tornassem essas empresas mais
eficientes, incluído aí programas de privatizações e o estabelecimento de regras que
redefinissem as relações entre essas empresas e o governo (WORLD BANK, 1991, p. 2).
2.1.2 Accountability
“Accoutability, no seu sentido mais simples, significa responsabilizar o servidor
público por suas ações” (WORLD BANK, 1992 p.13, tradução nossa)14. Em um sentido
amplo, a accountability pública tem entre seus objetivos “assegurar a congruência da política
pública e sua real implementação com o uso eficiente dos recursos públicos” (idem).
O Banco Mundial considera que existem dois níveis de accountability, o nível
macro e o nível micro. Dentro do nível macro situa-se a accountability financeira e a
accountability sobre o desempenho econômico do país. A accountability financeira envolve a
existência de um sistema de contabilidade eficiente do governo, que permita o controle dos
gastos e o gerenciamento dos recursos financeiros; a existência de um sistema de auditoria
externa que reforce o controle das despesas e que imponha sanções contra o desperdício e a
corrupção; e a existência de mecanismos que permitam a verificação do cumprimento das
recomendações sugeridas, como solução dos problemas identificados nas auditorias. Esses são
instrumentos considerados de grande importância para evitar a corrupção e os desvios de
recursos públicos e, portanto, para ampliar a eficiência no uso dos recursos públicos
(WORLD BANK, 1992).
O outro componente importante da accountability no nível macro diz respeito
preocupação com o desempenho econômico do governo em sentido amplo. Nessa perspectiva,
14 A definição de servidor público deve ser entendida de forma ampla. Pois, o Banco Mundial dá a entender que o significado de servidor público não se restringe aos burocratas, engloba também os líderes políticos, se não vejamos: “Political leaders are ultimately responsible to their populations for government actions, and this means that there has to be accountability within government” (WORLD BANK, 1992, P.13).
não basta o governo evitar o desvio dos recursos públicos, ele precisa, além disso, certificar-se
de que esses recursos estão sendo usados de forma eficiente. Para tornar essa mensuração
possível, cabe ao governo criar mecanismo para avaliar a sua performance na racionalização
do uso desses recursos (WORLD BANK, 1992 p.19).
A accountability no nível micro está relacionada com a criação de mecanismos
que permitam aos usuários dos serviços públicos assegurarem que receberão os serviços
dentro das expectativas. Nesse nível a accountability é reforçada quando existe competição ou
participação. A competição possibilita que os usuários dos serviços, quando descontentes,
troquem de fornecedor, ou seja, a possibilidade de “exit” (WORLD BANK, 1992 p.22). Já
quando há espaço para a participação, ou “voice”, existem mecanismos que possibilitam que
os usuários “articulem suas preferências e demandas” e influencie tanto na formulação quanto
na implantação de políticas públicas que os afetam e também na qualidade dos serviços que
lhes são oferecidos (idem). Embora o Banco Mundial deixe clara a sua preferência pelas
soluções de mercado, ele também reconhece a importância da participação dos grupos alvos
das políticas públicas, como mecanismo para se alcançar maior eficiência e eficácia dos
governos.
Voice can also be increased through popular participation in the design and implementation of projects. The Bank's experience suggests that participation can be important to project success and sustainability (WORLD BANK, 1992, p. 26).
Ou
The World Bank has learned from its experience that participation is important for the success of projects economically, environmentaly, and socially. The most important lesson has been that participation is a question of efficiency, as well as being desirable in its own right. In one study, the Bank evaluated twenty-five projects five to ten years after completion. Strong beneficiary organizations (an instrument of facilitating partidpation) proved to be a key factor in determining project sustainability (World Bank 1985). Another study of sixty-eight Bank-financed projects found that the economic
rate of return was twice as high for projects which had been sensitive to local social and cultural realities (KOTTAK 1985, apud WORLD BANK, 1992, p. 27)
Como se percebe, o Banco reconhece a importância do envolvimento direto da
população alvo nos projetos. E o reconhecimento da importância da participação parece não
ficar restrito a projetos menores, a ações ou políticas de menor porte.
But participation is also valuable for bigger projects. The Bank's experience with environmental issues and adjustment loans indicates that public consultation and information sharing can improve the design and build public support for large-scale investments and policy decisions. This approach is working, for instance, in Mexico's hydroelectric project, India's Upper Krishna River dam project, and Ghana's private investment and sustained development promotion credit (WORLD BANK, 1992, p. 27).
O Banco sugere como exemplos de mecanismos de participação: a instalação de
conselhos paritários, formados por usuários e fornecedores, em número equilibrado, a
instalação de centrais de atendimentos para registrar as reclamações dos usuários dos serviços,
a existência de um ombudsman, e o emprego de mecanismos de consulta para verificar junto
aos usuários, a qualidade dos serviços prestados.
No entanto, o Banco reconhece a limitação da maioria desses mecanismos quando
direcionados para as populações mais pobres e chega a admitir que esses canais de influência
apresentam resultados significativos para os pobres, apenas quando os serviços não possuem
características excludentes. Já que esses canais de reclamação são usados mais pelos mais
ricos. Talvez, seja por isso que o Banco entenda que as ONG´s desempenhem um papel
fundamental, nem tanto na prestação de serviços, mais muito mais na capacidade que esses
organizações têm de alcançar as populações mais pobres. É por conta disso que o Banco
incentiva os governos a usarem esses potencial das ONG´s, tanto para prestar serviços, em
substituição ao Estado, quanto para organizar a participação dessas populações mais pobres
no desenho projetos específicos, que elas como alvo, e que são coordenados pelo governo.
Sempre com o objetivo de alcançar a efetividade de tais projetos.
É importante ressaltar que, nessa perspectiva, a accoutability no nível micro,
contribui muito para a accountability no nível macro. Pois, se a preocupação com o uso
eficiente dos recursos públicos não existir nesse nível, certamente o governo central terá
dificuldades de gerenciar a economia, a partir do uso de meios fiscais e monetários. Para
reforçar o argumento da importância da accountability no nível micro para a accountability
macro, o Banco cita o exemplo do que teria ocorrido na Argentina nos anos 1980, onde os
gastos descontrolados dos governos das províncias teriam levando o país a uma grave crise
financeira (WORLD BANK, 1992, p.22).
2.1.3 Quadro Legal
Embora admita que o conceito de estrutura ou quadro legal tenha um significado
mas amplo, o Banco o adota de forma restrita, compreendido por duas dimensões principais:
uma instrumental, constituída pelos elementos formais necessários a existência de um sistema
legal; e outra substantiva que trata dos conteúdos das leis e de conceitos como justiça,
igualdade e liberdade (WORLD BANK, 1992, p.30). Ela diz respeito a alguns elementos
necessários para criar condições favoráveis ao funcionamento eficiente dos mercados, e o
conseqüente desenvolvimento econômico. O aparato legal deve criar as cond ições para que os
atores econômicos desempenhem o seu papel, fazendo uso eficiente dos investimentos
produtivos e gerando desenvolvimento. Precisa não só facilitar as transações entre esses atores
econômicos, mas também evitar as interferências arbitrárias do governo no setor privado da
economia. Nessa abordagem restrita, o Banco se preocupa, principalmente, com a presença de
cinco elementos específicos que, no seu entendimento, são considerados críticos para a
existência de uma estrutura legal adequada. São eles:
• A existem de um conjunto de leis previamente conhecidas;
• A existência de leis realmente fortes;
• A existência de mecanismos que assegurem a aplicação das leis;
• A existência de um judiciário confiável e independente para resolver Conflitos;
• A existência de procedimentos conhecidos para a alteração das leis, quando elas não
servem mais a sua finalidade.
Cada um desses elementos desempenha um importante papel na constituição de
um quadro legal básico, mas necessário à criação das condições que favoreçam a eficiência do
mercado e o conseqüente desenvolvimento econômico. O primeiro desses elementos seria a
existência de um conjunto de leis previamente conhecidas. Para isso, é necessário que exista
um conjunto de leis coerentes, difundidas com clareza e de forma efetiva e que a aplicação só
seja feita quando ela for de domínio público.
O segundo elemento, que contribuiu para a construção de uma estrutura legal
favorável a eficiência do governo e dos mercados, é não só a existência, mas a aplicação das
leis existentes. “Não é suficiente que a lei esteja em livros: ela tem que ser aplicada, precisa
ser realmente posta em prática e não apenas formalmente, e mais importante, precisa ser
apropriada” (WORLD BANK, 1992, p.32, tradução nossa).
Outro elemento importante da estrutura legal é a existência de mecanismos que
assegurem a aplicação da lei. Não só para os cidadãos, mas também, o próprio governo deve
estar sujeito às limitações impostas pela lei. É a aplicação consistente da lei que cria um
ambiente de legalidade e legitimidade.
De acordo com o Banco Mundial, um sistema judiciário forte, confiável e
independente é importante para assegurar que os contratos privados serão respeitados e para
combater as arbitrariedades do poder executivo. Isso contribui para a redução dos custos de
transação, aumentando a eficiência dos investimentos produtivos. Se o sistema judiciário não
funcionar dessa forma ele perde a capacidade de resolver conflitos e inspirar confiança.
Outro elemento importante é a existência de procedimentos claros para a criação
de uma lei ou a alteração de uma lei já existente. Isto é importante para criar um clima de
estabilidade, evitando a arbitrariedade de governos e a conseqüente desobediência de leis
criadas através de processos arbitrários.
2.1.4 Informação e Transparência
De acordo com o Banco Mundial há pelo menos três razões importantes que
justificam a necessidade da informação e da transparência: redução da corrupção, a redução
do risco de erros dos governos e a eficiência e eficácia dos atores econômicos. A
transparência no processo de formulação de políticas pública pode não eliminar, mas
certamente diminui a corrupção. Elas também contribuem com a redução do risco de erros dos
governos, ao permitir que os grupos afetados pelas políticas se manifestem ou no processo de
formulação ou antes de sua implementação. Por último, quando os processos de formulação
de políticas públicas são transparentes e as informações sobre essas políticas estão disponíveis
a todos os atores econômicos, reduz as incertezas e os riscos e contribui com o aumento da
eficiência e da eficácia dos agentes econômicos privados. Além disso, a redução dos erros do
governo e da corrupção contribui com o aumento da eficiência do próprio governo (WORLD
BANK, 1992, p.40). Ainda segundo o Banco, é essa equação, mercados e governos eficientes,
que formam as condições favoráveis para o desenvolvimento econômico sustentável.
Segundo o Banco Mundial (1992), os esforços de combate à corrupção devem se
concentrar na eliminação de condições favoráveis a ela, como a falta de transparecia no
processo de formulação de políticas públicas, em especial as econômicas, e em áreas cruciais
como tributação e compras do governo. Cabe aos governos criarem mecanismos para tornar
as ações nessas áreas as mais transparentes possíveis, tornando as informações de domínio
público e evitando que funcionários públicos se envolvam em rent-seeking, ou ganho com a
venda de informações.
Ainda de acordo com o Banco, a falta de transparência não é prejudicial apenas na
questão do favorecimento à corrupção. Quando um processo de formulação de uma política
pública ocorre de forma isolada daqueles que serão afetados por ela, pode conduzir a erros
que podem custar caro aos cofres públicos. O erro pode ser desde a simples ineficiência da
política, até reações negativas em relação a ela.
A informação é um elemento crucial na determinação da eficiência dos agentes
econômicos privados, “uma economia de mercado competitiva requer que os atores
econômicos tenham acesso a informações relevantes e confiáveis, no momento oportuno”
(WORLD BANK, 1992, p.39). Por ser o governo a fonte principal de informações
econômicas (seja produzido-as diretamente através de suas agências, ou demandado-as a
outros fornecedores) cabe a ele criar as condições para que essas informações sejam de fácil
acesso a maior amplitude possível dos atores econômicos. Para torná- las acessíveis, os
governos precisam criar mecanismos de coleta, tratamento e divulgação das mesmas. Essas
informações estando acessíveis permitem que esses atores econômicos possam usá- las nas
suas decisões, reduzindo as incertezas, ou riscos e, consequentemente, os custos de transação.
São por essas e outras razões que informação e transparência são considerados
elementos importantes da governança e consequentemente do desenvolvimento econômico.
CAPÍTULO 3 - GOVERNABILIDADE, GOVERNANÇA E ORÇAMENTO
PARTICIPATIVO: A PARTICIPAÇÃO INSTITUCIONALIZADA COMO
ELEMENTO EM COMUM
Este capítulo tem dois objetivos principais: o primeiro é analisar as diferenças e
semelhanças entre os conceitos de governabilidade e governança, como forma de explicar por
que a participação que era tida como ameaça a governabilidade se torna um instrumento para
se alcançar a governança. O segundo é discutir o tipo de participação que se dá através do
Orçamento Participativo e demonstrar porque ele pode ser considerado um instrumento e não
uma ameaça a governança.
3.1 PARTICIPAÇÃO INSTITUCIONALIZADA E LEGITIMIDADE: ELEMENTOS QUE
IGUALAM E DIFERENCIAM OS CONCEITOS DE GOVERNABILIDADE E
GOVERNANÇA
A princípio, parece bastante problemática a tentativa de relacionar uma prática
como o Orçamento Participativo a um conceito como o de governança. Sai da categoria de
problemático para de uma grande contradição quando se considera que o conceito de
governança foi desenvolvido por uma instituição reconhecidamente conservadora como o
Banco Mundial. E, finalmente, se transforma praticamente numa impossibilidade teórica
quando se depara com argumentos como aqueles desenvolvidos por Fiori (1995). Onde ele
busca mostrar que o conceito de governança não passa de uma “versão eclética” do conceito
de governabilidade, e que um difere do outro na forma como “aumenta apenas o rigor no
detalhamento institucional do que seria um governo pequeno, bom e, sobretudo, confiável do
ponto de vista da comunidade internacional” (FIORI, 1995, n. 43, p.159). Não custa relembrar
ainda aqui, que por conta de seus trabalhos que tratavam da questão da governabilidade
Samuel Huntington, foi acusado de ser conservador e antidemocrático por autores como
Martins (1994); Diniz (1995) e Melo (1995).
No entanto, defende-se aqui que essa impossibilidade reside apenas no campo das
aparências. Isso se dá por duas razões: a primeira é que o tipo de participação que Huntington
via como ameaça não corresponde ao mesmo que se dá no Orçamento participativo. A
segunda é que os pequenos ajustes no conceito de governabilidade foram suficientes para
torná- lo (agora metamorfoseado em governança) aplicável à análise de um instrumento de
gestão como o Orçamento Participativo, principalmente no que se refere à questão da
legitimidade das ações governamentais. Para reforçar esse argumento parte-se de duas
premissas que confirmam essa possibilidade: a primeira, que por si só já é suficiente, é o
reconhecimento daquela experiência pelo Banco Mundial (NAVARRO, 2003). A segunda, é
que do final da década de 1960 até os dias de hoje mudanças significativas ocorreram no
cenário político mundial, suficientes para permitir a opção (não declarada) do Banco Mundial
pela democracia liberal. A guerra fria chegou ao fim, ainda no final da década de 1980, o
império soviético se desintegrou e uma verdadeira onda democrática varreu o mundo nesse
intervalo de tempo15. Além disso, ainda no início da década de 1980 a “agenda da
governabilidade” migrou para a questão dos ajustes econômicos de cunho neoliberal, para a
15 Refere-se aqui a “terceira onda de redemocratização” que varreu o mundo, começando em Portugal na revolução dos cravos em 1974 e adentrando a década de 1990 com os países do Leste europeu.
necessidade de “limitar vagarosamente o número de atividades ainda submetidas ao poder
regulador do Estado” (BUCHANAN, 1980 apud FIORI, 1995, n.43, p.159).
Huntington, quando desenvolveu o conceito de governabilidade, ainda lá na
segunda metade da década de 1960, o mundo, em especial os países em desenvolvimento,
passava por grandes turbulências políticas16. Por conta disso, a questão central desse seu
conceito era a ordem política. Ele entendia que a grande ameaça a essa ordem vinha da forma
rápida com que os novos grupos sociais eram incorporados no cenário político, sem o
correspondente fortalecimento das instituições políticas (HUNTINGTON, 1975). Ele via
nesse “excesso” de participação política, associada à fraqueza institucional, o caminho mais
curto para aquilo que ele definiu como “sociedade pretoriana”, onde as instituições políticas
são frágeis ou inexistentes e cada grupo social se vira como pode nas disputas políticas.
[...] Numa sociedade pretoriana, no entanto, não só os atores variam como também os métodos usados para o preenchimento de cargos e a determinação das políticas. Cada grupo utiliza os meios que refletem sua natureza peculiar e suas capacidade. Os ricos subornam, os estudantes se amotinam, os operários fazem greve; as massas promovem manifestações e os militares efetuam golpes. Na ausência de procedimentos reconhecidos, todas essas formas de ação direta são encontradas no cenário político (HUNTINGTON, 1975, p.208).
Essa sua preocupação com a ordem política o deixava a vontade para não ter
preferência por um regime de governo. Ele estava preocupado apenas se o governo
governava. Se as decisões políticas tomadas pelo governo eram postas em prática, de forma a
assegurar estabilidade política. A importância que dava a essa questão se reflete ainda na
abertura do seu texto, a ordem política nas sociedades em mudança, onde ele cita três países
os quais considerava ser exemplos de governos fortes.
16 Huntington (1975, p.16), mostra que entre os anos de 1958 e 1965, ocorreram no mundo, nada mais nada menos que 374 conflitos diferentes, entre golpes, pequenos levantes, insurreições de guerrilhas e guerras abertas.
A distinção política mais importante entre os países se refere não a sua forma de governo, mas ao seu grau de governo [...] Os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a União Soviética têm formas de governo diferentes, mas, nos três sistemas, o governo governa (HUNTINGTON, 1975; p.13).
Mas, por estar preocupado com a ordem, não significava, necessariamente, que ele
se opunha à participação política, pelo menos, não a todo tipo de participação. A restrição era
a um tipo específico de participação, aquela que se dava na forma de ação direta dos grupos
sociais sobre os governos, sem a intermediação de instituições políticas, ou seja, a
participação não institucionalizada. Mas do que isso, era o que ele definia como “a politização
generalizada das forças e instituições sociais” (HUNTINGTON, 1975, p.206). Ele via como
ameaça à estabilidade política, o rápido crescimento da participação de grupos sociais na vida
política, sem o correspondente crescimento e fortalecimento das instituições políticas17. Essa
preocupação pode ser percebida em sua fala, quando ele analisava o problema da instabilidade
política nas nações “em desenvolvimento”, nos primeiros vinte anos após a segunda guerra
mundial.
Qual foi a causa dessa violência e dessa instabilidade (guerras civis, golpes de Estado, guerrilhas – nos 20 anos após Guerra)? A tese fundamental desse livro é que tudo foi em grande parte produto de rápida mudança social e de rápida mobilização de novos grupos sociais para a política em conjunção com o lento desenvolvimento das instituições políticas (HUNTINGTON, 1975, p.16).
Essas idéias rederam-lhe mais tarde o título de antidemocrático e conservador. No
entanto, se ele percebia na participação direta uma ameaça à ordem política, o mesmo não
acontecia com a participação institucionalizada, que para ele era um símbolo de modernização
política. Tanto que dizia que, “a estabilidade de determinada comunidade política depende da
17 Huntington (1975), classificava como pretorianas, as sociedades com alto nível de participação política e baixo nível de institucionalização. Já aquelas que associavam alta institucionalização, com alto nível de participação política ele classificava de sociedades cívicas.
relação entre o nível de participação política e o nível de institucionalização política”.
(HUNTINGTON, 1975, p.92).
Mas, afinal o que significa essa participação institucionalizada? Mais do que isso,
o que Huntington entendia por instituição? Para ele, “as instituições são padrões de
comportamento estáveis, válidos e recorrentes” (HUNTINGTON, 1975, p.24). No seu
entendimento, a principal dessas instituições era o partido político. Ele considerava o partido
o símbolo da política moderna, mesmo reconhecendo que essa não é uma instituição tão
moderna assim. Caberia ao partido político “organizar a participação, congregar os interesses,
servir de veículo entre as forças sociais e o governo” (HUNTINGTON, 1975, p.105). Ao
fazer isso, o partido intermediava os interesses dos diversos grupos sociais, evitando que esses
interesses fossem colocados diretamente ao governo, o que, segundo ele, causaria um
aumento da pressão sobre este último e a conseqüente instabilidade política. Aparentemente, o
tipo de participação política da qual ele fala é o simples ato de votar.
Defender a participação política, inclusive em governos totalitários como era a
União Soviética a sua época, em nome da estabilidade política, exigiu de Huntington uma
enorme capacidade conceitual. Ele precisou trilhar um terreno pantanoso da ciência política, a
noção de “interesse público”, como forma de conceituar as pretensas bases sobre as quais se
assentaria a legitimidade de governos, que tomassem o seu conceito de governabilidade como
guia. Como a preocupação com a ordem política fazia-o fugir de qualquer teoria que, de
alguma forma, cogitasse a participação direta, de imediato ele descartou a noção de
legitimidade baseada nas teorias democrática e processual e definiu uma outra que tinha por
base a noção de “interesse das instituições governamentais”, que pra ele significa “interesse
publico”.
Pela teoria da lei natural, as ações governamentais são legítimas na medida em que estão de acordo com a “filosofia pública”. Segundo a teoria
democrática, derivam sua legitimidade da extensão em que incorporam a vontade do povo. De acordo com o conceito processual, as ações são legítimas quando representam o resultado de um processo de conflito e compromisso dos quais participam todos os grupos interessados. Por outro lado, no entanto, a legitimidade das ações governamentais pode ser procurada na medida em que refletem os interesses das instituições governamentais . Em contraste com a teoria do governo representativo, por esse conceito as instituições governamentais derivam sua legitimidade e autoridade não do grau em que representam os interesses do povo, ou de qualquer outro grupo, mas do grau em que possuem interesses próprios distintos dos de quaisquer outros grupos (HUNTINGTON, 1975, p.41, grifo nosso).
Ao propor essa definição de “interesse público”, Huntington tenta escapar de uma
“definição nebulosa” como ele mesmo reconhece (Huntington, 1975, p.37). No entanto, no
afã de se livrar desse terreno pantanoso da ciência política, acaba caindo em outra armadilha
conceitual. Se o “interesse público” é representado pelo interesse das próprias instituições
governamentais, quem determina o interesse dessas instituições? Dessa vez, ele apela pra
virtude dos homens públicos e sugere que,
Os interesses institucionais diferem do interesse dos indivíduos que estão nas instituições. A observação arguta de Keynes de que, ‘a longo prazo todos estaremos mortos’, aplica-se aos indivíduos e não as instituições. Os interesses individuais são necessariamente interesses de curto prazo. Os interesse institucionais, no entanto, prolongam-se através dos tempos; o proponente da instituição tem que pensar no bem-estar da mesma por um tempo indefinido [...] (HUNTINGTON, 1975, p.37-8, grifo nosso).
De forma sintética, Huntington defendia que a razão da desordem, ou da
instabilidade política, estava na politização geral das forças sociais associada a ausência de
instituições políticas fortes. Pois, “uma sociedade com instituições políticas débeis não tem
capacidade para dominar os excessos de desejos pessoais e paroquiais” (HUNTINGON, 1975,
p.36). Para criar e fortalecer essas instituições políticas, o autor propunha que as mesmas
deveriam atuar em defesa do “interesse público”, que, em última instância, era representado
pelos interesses das próprias instituições governamentais. No seu entendimento, “a
capacidade de criar instituições políticas é a capacidade de promover os interesses públicos” .
No entanto, para ele, promover o interesse público significava promover os interesses das
instituições. O problema é que a promoção dos interesses dessas instituições, acabava por
depender da “virtude” de homens públicos. Mas, se como ele mesmo lembrou, que uma
sociedade com instituições políticas fracas “não tem capacidade para conter os desejos
pessoais e paróquias” dos ocupantes de cargos públicos, o que então iria garantir essa postura
virtuosa desses homens públicos (idem, p.36-7). Ainda mais se for levando em conta que ele
estava analisando os paises em processo de modernização, nos quais as instituições políticas
eram débeis. Parece que de alguma forma ele acreditava na capacidade dos governos
militares, no “soldado como reformador”, como meio de se restabelecer a ordem
(HUNTINGTON, 1975, p.210).
3.2 O BANCO MUNDIAL E O CONCEITO DE GOVERNANÇA: UM OUTRO TIPO DE
LEGITIMIDADE, MAS A PARTICIPAÇÃO CONTINUA INSTITUCIONALIZADA
O Banco Mundial, aparentemente, percebeu que essa não era a saída. Pois, foi
justamente a fragilidade da legitimidade de governos e a falta de um mínimo de consenso
político, que levou ao fracasso os programas de ajustes econômicos implementados por ele
em países da África Sub-saariana ao longo da década de 1980. Naquela década, o Banco
tentou implementar sem sucesso, programas de ajustes econômicos em diversos países do
continente Africano, no entanto, essas tentativas saíram fracassadas. Foram Apontadas como
causas desses fracassos a fraqueza das instituições políticas e a falta de legitimidade dos
governos. Isso fez com que o Banco passasse a levar em conta, em seus programas de ajustes,
questões como legitimidade e consenso político. Foi, provavelmente, a incorporação desses
elementos, associado às preocupações do Banco com as condições político- institucionais
favoráveis ao desenvolvimento econômico, que o levou a redefinir o conceito de
governabilidade no início da década de 1990, definindo-o a partir de então como governança.
O fracasso de grande parte das reformas apoiadas pelos SALs (Empréstimos de Ajuste Estrutural) durante os anos de 1980 foi analisado no relatório Sub-Saharan Africa: from crisis to sustainable growth (1989), que identificou a "crise de governança" como o mais importante fator responsável pelos obstáculos ao desenvolvimento da África. Ao enfatizar a importância da legitimidade e do consenso político para o desenvolvimento sustentável, o relatório culpou a instabilidade política crônica e a fraqueza dos Estados africanos pelo fracasso das reformas apoiadas pelas agências multilaterais (BORGES, 2003, p.126, grifo nosso).
A partir do comentário acima, tecido por Borges (2003) a respeito de um relatório
interno do Banco Mundial, é possível perceber que a instituição mantém a preocupação com a
questão da estabilidade política, mas não fica limitado a ela. Somando essa observação à
estabelecida no capítulo anterior, pode-se concluir que na definição que o Banco dar ao
conceito de governança estão presentes outros elementos como, as condições favoráveis ao
desenvolvimento do mercado e a necessidade de fortalecimento da sociedade civil. Nele, o
foco deixa de ser a estabilidade política, embora ela continue sendo considerada um fator
importante, e passa para as condições favoráveis ao desenvolvimento econômico. Nessa
perspectiva governabilidade deixa de significar ordem política para ser entendida como gestão
eficiente dos recursos econômicos e sociais de um país com vistas ao desenvolvimento.
Parece que o Banco percebeu a fraqueza contida na idéia de interesse público
dependente apenas da virtude dos ocupantes de cargos públicos, ao constatar que as principais
causas da ineficiência do Estado e da falta de legitimidade dos governos estavam no mau uso
do dinheiro público e na corrupção. Em três das quatro dimensões do conceito de governança,
de uma forma ou de outra, essa preocupação aparece18. Se no inicio da década de 1990,
quando formulou o conceito de governança, o Banco Mundial recomendava a participação
18 As dimensões administração pública, accountability e informação e transparência buscam de forma direta, entre outras coisas, racionalizar o uso dos recursos públicos.
apenas das populações beneficiárias, em projetos específicos. Parece que de lá para cá alguma
coisa andou mudando. Tanto que em anos mais recentes, de acordo com a Prefeitura
Municipal de Porto Alegre, ele acabou por reconhecer a experiência do Orçamento
Participativo de Porto Alegre (PMPA, 2004b).
Inicialmente a participação defendida pelo Banco, em seu conceito de governança,
não poderia ser classificada como participação política. Isso é fruto da centralidade que ocupa
o mercado naquele conceito. Existência de conselhos paritários de usuários e fornecedores de
serviços públicos, existências de centrais de atendimento para receber a reclamação dos
usuários de um determinado tipo de serviço, aplicação de questionários para identificar as
preferências dos beneficiários de uma determinada política pública, enfim, esses são exemplos
do que o Banco entendia como participação da sociedade no processo de formulação e
implementação de políticas públicas. Entretanto, a partir da segunda metade da década de
1990, parece que essa noção de participação foi ampliada, e o Banco passou a reconhecer
outras experiências como foi o caso do Orçamento Participativo de Porto Alegre19.
Reconhecer o OP, significa admitir que a participação da população nas decisões
sobre a formulação de políticas públicas não tem necessariamente que estar restrito a projetos
específicos e ser tratada de forma despolitizada. Já que uma das características do OP é
permitir que a população influencie também em questões macro como na avaliação da política
tributária, na fiscalização, apreciação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) da execução
do Plano de Investimento, etc. Essas são apenas algumas das atribuições previstas para uma
das instâncias do OP de Porto Alegre, o COP, no artigo 11º do Regimento Interno do
Conselho de Orçamento Participativo (PMPA, 2005).
19 Segundo Navarro (2003, p.92) o Banco Mundial demonstrou interesse pelo Orçamento Participativo pela primeira vez em 1997, numa conferência intitulada “Descentralização na América Latina: inovações e implicações para as políticas públicas”. Procurou conhecer a experiência e a partir de então passou a divulgá-la em seus documentos internos, a exemplo do que fez no relatório “No Limiar do Século XXI”, publicado no ano 2000.
Aparentemente, a legitimidade das ações governamentais no conceito de
governança assenta-se, simultaneamente, sobre duas bases conceituais. Em algumas áreas
como na econômica, permanece como guia a noção de “interesse público” baseado na
“virtude” do servidor público. Enquanto que outras áreas, principalmente aquelas voltadas
para os mais pobres, essa legitimidade seria baseada na teoria processual. E aqui vale lembrar,
é muito mais por pragmatismo - o que estar por trás da defesa dessa participação é apenas a
efetividade da política - do que por interesse de que população realmente participe. É uma
participação que é aceita porque é colocada como condicionante do aumento das
possibilidades de sucesso no processo de formulação e implementação de uma determinada
política pública.
É geralmente aceito que algumas áreas de decisão pública requerem o insulamento das pressões políticas. Nas áreas técnicas de administração macroeconômica, por exemplo, algum insulamento [...] da pressão dos lobbies políticos é desejável [...]. Em outras áreas, no entanto, o interesse público e o interesse privado coincidem a tal ponto [...] que algum nível de deliberação público-privado é não apenas desejável, mas, de fato, crucial para o sucesso (WORLD BANK, 1997, p. 116-117, apud BORGES, 2003, p. 129-30).
No entanto, a participação descrita acima não é ainda do tipo daquela que
acontece no âmbito do OP, a participação lá é politizada. Entretanto o que certamente levou o
Banco a reconhecer aquela experiência, sem ver nela ameaça a estabilidade política foi o fato,
também, da participação que se dá no OP ser institucionalizada, ou seja, a participação no OP
se dá sob regras e, por se dá nessas condições, não representa qualquer ameaça a ordem
política.
3.3 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E PARTICIPAÇÃO INSTITUCIONALIZADA
A explicação para o reconhecimento que o Banco Mundial faz do Orçamento
Participativo está em dois fatores: o primeiro é a sua aparente contribuição a eficiência do
Estado no emprego dos recursos públicos, o que será abordado no próximo capítulo. O
segundo está numa característica do próprio Orçamento Participativo, a participação direta,
porém institucionalizada.
Parece não haver dúvidas de que o formato de participação que predomina no OP
tem como característica principal a institucionalização. Não no sentido de que alguns autores
como Fedozzi (1997) e Dias (2000), falam dela. A idéia da aprovação de uma lei na Câmara
de Vereadores do Município que discipline o seu funcionamento. Aliás, isso parece ter mais a
ver com formalização. O significado de instituição do qual se fala aqui é aquele mesmo dado
por Samuel Huntington, e apresentado alguns parágrafos acima, ou seja, aquele que a define
como um padrão de comportamento estável, válido e recorrente20.
Pode-se argumentar que uma das características do OP é a sua dinamicidade,
justamente por não ser formalizado. Não se duvida aqui dessa dinamicidade, da autonomia
que tem o OP para se auto-regular. Mas não parece ser menos verdade que exista no OP um
conjunto de regras que se mostram mais constantes, menos dinâmicas e que dão a ele uma
estrutura básica. São exemplos destas, as regras que tratam de facilitar a operacionalização da
participação, como aquelas que determinam o número de plenárias regionais e temáticas, que
determinam, por exemplo, que só pode participar de uma determinada plenária regional, o
cidadão que resida na respectiva região. Além daquelas que tratam das instâncias de
participação dentro do OP, bem como das responsabilidades de cada uma delas no processo
de co-gestão do fundo público Municipal.
20 Não é intenção fazer aqui qualquer discussão a respeito da importância, ou não, de se ter o Orçamento Participativo regulamentado por uma lei.
Mas sem dúvida, de longe as regras mais importantes são aquelas que se referem
ao tratamento das demandas, são elas que determinam os critérios de prioridades dessas
demandas e o número máximo de demandas que devem sair das plenárias temáticas ou
regionais, e serem apresentadas ao governo municipal, para análise de viabilidade técnica e
financeira, e posterior atendimento, ou não. Essas regras são importantes porque elas co-
responsabilizam os participantes no processo decisório sobre os investimentos públicos,
evitam a colocação de demandas num número que o governo não tenha condições técnicas e
financeiras para atender. Além disso, elas buscam promover a distribuição mais eqüitativa dos
escassos recursos públicos.
Sem uma regra que tratasse de limitar, de forma democrática, o número de
demandas que a população poderia reivindicar no OP, este certamente seria inviável e poderia
causar na população participante o sentimento de ineficiência em relação ao poder público
Municipal. Isso por sua vez, poderia desacreditar o OP como uma instância de Participação.
Só para ilustrar a importância dessas regras, deixamos de lado por um instante o
OP de Porto Alegre e tomamos emprestado um fato ocorrido em Aracaju – SE, entre os anos
de 1997 e 1998, na primeira tentativa que se fez de implantar o OP naquela cidade. Segundo a
Ex-Coordenadora de Relações com a Comunidade (CRC), que participou ativamente do
processo:
[...] Era uma experiência inovadora, nunca tinha sido aplicada aqui, e a gente tinha que começar pequeno, e então agente tinha que começar de uma amostragem. Então vamos pegar os bairros que são mais da periferia, que os problemas são inúmeros, pra gente tentar resolver as questões da periferia pra igualar aos outros bairros, em termos de estrutura, que é uma disparidade muito grande. [...] assim, a metodologia da plenária era aberta, qualquer um podia entrar lá no dia, era reunião aberta. Então, cada um dizia o que achava que o bairro estava precisando, o que acarretou um problema muito sério, porque no final ficou uma quantidade imensa de demandas, mais de 3.000 [...] a gente não trabalhou uma metodologia, ficou à vontade, então agente teve uma dificuldade muito grande de
realizar essas demandas, porque a amplitude foi imensa e a gente teve muita dificuldade pra trabalhar isso. Já no segundo ano, agente trabalhou a cidade de Aracaju toda, nós fizemos uma reunião em cada bairro de Aracaju (38 ao todo) [...] Trabalhamos com uma metodologia meio diferenciada e resolvemos trabalhar em grupo, em divisão de grupo, e fechar um número de prioridades, escolhemos cinco prioridades para cada bairro. (entrevista realizada em 18/08/2004, com a ex- Coordenadora de Relação com a Comunidade – OP de Aracaju, 1997-98, grifo nosso).
O que se percebe na fala acima da ex-coordenadora é que as regras de
funcionamento do OP são importantes. No caso citado acima, a ausência de regras limitando a
quantidade de demandas que poderiam ser colocadas pela população causou, logo no primeiro
ano, um problema de difícil solução. Embora a experiência tenha se limitado a apenas a
alguns bairros da periferia, a ausência dessas regras permitiu que mais de 3.000 demandas
fossem colocadas pela população, o que significou um tremendo problema para o governo
municipal.
CAPÍTULO 4 - ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E GOVERNANÇA EM DE PORTO
ALEGRE
Neste capítulo buscou-se fazer uma análise, a luz do conceito de governança do
Banco Mundial, dos resultados atribuídos ao Orçamento Participativo de Porto Alegre a partir
de trabalhos de outros autores como Marquetti (2002 e 2003) Dias (2000), Fedozzi (1997),
entre outros. O objetivo dessa análise foi verificar de que forma o OP contribui com eficiênc ia
e a eficácia do Estado no nível municipal, no caso específico do município de Porto Alegre.
No entanto, antes mesmo de se iniciar essa análise, entendeu-se que a sua
compreensão se daria de forma mais completa se antes fosse apresentado o ciclo do
Orçamento Participativo, na forma como ele é praticado naquela cidade.
4.1 A DINÂMICA DO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO DE PORTO ALEGRE
O Orçamento Participativo de Porto Alegre tem início anualmente no mês de
março e segue um ciclo que pode ser representado, de forma simplificada em nove etapas
(PMPA, 2004c). Essas etapas compreendem:
1ª Etapa (março e abril):
• Reuniões preparatórias: reuniões realizadas nas micro-regiões, regiões, temáticas e
entre o fórum de planejamento (instância composta por servidores de diversos
órgãos do executivo municipal) e o fórum dos delegados. Nessas reuniões ocorre a
prestação de contas do ano anterior (receita X despesas) pelo executivo municipal;
apresentação do plano de investimento preparado no ano anterior para ser
implantado no ano corrente; apresentação do Regimento Interno do OP com as
alterações debatidas e propostas no período anterior; discussão das chapas para a
eleição de conselheiros; e análise das sugestões e demandas feitas pela internet.
2ª Etapa (abril e maio):
• Assembléias regionais e temáticas: eleição das prioridades regionais e temáticas;
eleição dos conselheiros; definição do número de delegados; e prestação de contas
(receita X despesas), por parte da prefeitura.
3ª Etapa (de maio a julho):
• Assembléias regionais e temáticas: é quando ocorre a eleição dos delegados;
• Fórum dos delegados: é realizada a deliberação sobre as demandas feitas pela
Internet (Fórum de Delegados); os delegados visitam as demandas solicitadas, para
conhecimento (antes da hierarquização); e os delegados fazem a hierarquização
das obras e serviços;
4ª etapa (1ª quinzena de Julho):
• Assembléia municipal para a posse dos novos conselheiros e outras discussões de
caráter geral.
5ª Etapa (de julho a setembro):
• O governo faz a análise técnica e financeira das demandas e elabora a matriz
orçamentária.
6ª Etapa (agosto e setembro):
• O Conselho do Orçamento Participativo (COP) discute e vota a Matriz
orçamentária; e inicia as discussões sobre a distribuição dos recursos para as
regiões e temáticas;
7ª Etapa (de outubro a dezembro):
• O governo finaliza a distribuição dos recursos por regiões; realiza o detalhamento
do Plano de Investimentos e Serviços (PIS); e encaminha a proposta do PIS para a
votação nos fóruns de delegados regionais e temáticos, nos quais marcam presença
os diversos órgãos do governo municipal.
8ª Etapa (novembro e dezembro):
• Os Fóruns regionais e temáticos reúnem-se para discutir o Regimento Interno do
Orçamento Participativo - sobre eventuais necessidades de alterações.
9ª Etapa (dezembro e janeiro):
• O Fórum dos delegados reúne-se para Discutir e votar do Regimento Interno do
Orçamento Participativo.
No mês de fevereiro do ano seguinte o OP entra em recesso (PMPA, 2004c).
4.2 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO: CONTRIBUIÇÃO COM GOVERNANÇA DE
PORTO ALEGRE.
O conceito de governança do Banco Mundial trata das condições políticas,
econômicas e institucionais favoráveis ao desenvolvimento econômico. Condições essas que
seriam alcançadas através da eficiência do Estado e do mercado, cada um cumprido o seu
papel de acordo com o que reza a cartilha neoliberal. Ao mercado a liberdade para atender as
demandas da sociedade por bens e serviços. Ao Estado o papel de regulação desse mercado,
atuando na correção de suas eventuais falhas, buscando assegurar a livre concorrência entre os
agentes econômicos privados. Além de oferecer bens e serviços públicos considerados
essenciais, e que por alguma razão não possam ser oferecidos pelo mercado, principalmente
aos mais pobres (exemplos: saúde, educação, infra-estrutura, segurança, etc).
Embora esse o conceito envolva a idéia de eficiência e eficácia desses dois atores
(Estado e mercado) para o alcance do desenvolvimento, apenas um deles interessa nessa
discussão, o Estado. Procura-se verificar aqui, como o Orçamento Participativo contribui com
a governança urbana, já que o mesmo foi reconhecido pelo Banco Mundial no relatório “No
limiar do século XXI”, publicado em 2000, como um mecanismo institucional formal que
contribui com o desenvolvimento (NAVARRO, 2003, p.92).
Para empreender uma análise aprofundada da relação entre Orçamento
Participativo e o conceito de governança do Banco Mundial, parece mais adequado fazê- la a
partir da comparação entre o que é prescrito por cada uma das dimensões do conceito com as
práticas do OP e os resultados a ele creditados. As dimensões que constituem o conceito de
governança são: Administração pública, accountability, informação e transparência e quadro
legal. Cada uma delas, com exceção da última, será abordada aqui sob a perspectiva do
Orçamento Participativo21. O objetivo é verificar de que forma essa ferramenta de gestão
participativa do orçamento público municipal contribui com cada uma dessas dimensões da
governança.
21 A dimensão “quadro legal” não será considerada nessa análise por razões óbvias. Primeiro porque não é papel do OP legislar, pois já existe a Câmara de Vereadores do Município que tem essa como sua principal função. Segundo porque, como já foi visto na discussão sobre o conceito de governança no capítulo II, a dimensão “quadro legal” é especialmente voltada para os aspectos que favorecem a eficiência do mercado. No entanto, o enfoque aqui é na eficiência do Estado.
4.2.1 O Orçamento Participativo e Administração Pública: Eficiência e Eficácia no
Gerenciamento dos Recursos Públicos
A dimensão da administração pública é constituída de três elementos, são eles: a
melhoria do gerenciamento dos gastos públicos, a reforma do serviço público e o melhor
gerenciamento das empresas públicas. O primeiro, a melhora do gerenciamento dos gastos
públicos, depende da adoção de mecanismos eficiente de formulação e gerenciamento do
orçamento público, de geração de receitas, de controle dos gastos e do planejamento do
investimento. O segundo, a reforma do serviço público, objetiva a contenção do crescimento
do governo e de seus custos e a busca por tornar o serviço público mais eficiente e mais
eficaz. O terceiro e último, o melhor gerenciamento das empresas públicas, se refere à criação
de políticas e regras que tornem estas empresas mais eficientes e redefinam as relações delas
com o governo, ou até mesmo a privatização, quando essa se mostrar a melhor alternativa
(WORLD BANK, 1993).
O OP é um instrumento de gestão participativa do Orçamento público que permite
a população participar do planejamento dos investimentos públicos. A população determina as
suas prioridades, em termos de infra-estrutura e serviços prestados pela Prefeitura Municipal,
participa da construção do plano de investimentos e fiscaliza a sua operacionalização. Em um
trabalho onde procurava verificar o “efeito redistributivo” do OP de Porto Alegre, Marqueti
(2002) mostrou que houve melhorias significativas na prestação de serviços públicos
considerados essenciais, pela Prefeitura daquele município a partir de 1989. Esse foi o ano em
que o Partido dos Trabalhadores (PT) assumiu o governo municipal daquela cidade, e em
conjunto com a comunidade deu o ponta-pé inicial na experiência de gestão participativa a
qual chamaram de OP. A tabela 2 abaixo permite visualizar essa evolução. Quando se
compara a soma total de um conjunto de serviços específicos prestados em dois períodos
diferentes de quatro anos cada, um imediatamente anterior a implantação do OP (entre 1985 e
1989)22, e outro a partir do inicio da sua operacionalização (entre 1989 e 1992)23, é possível
ver que depois da implantação do OP houve um incremento significativo na prestação desses
serviços. Por exemplo: enquanto na soma dos últimos quatro anos antes da implantação do
OP a prefeitura teria asfaltado ou recuperado 1.047.608 (um milhão, quarenta e sete mil e
seiscentos e oito) km de vias públicas, em igual período após a implantação do OP esse
número foi de 1.150.950 (um milhão, cento e cinqüenta mil e novecentos e cinqüenta) Km,
um aumento de aproximadamente 10% em relação ao período anterior. Outro número
significativo foi o incremento no total de lixo coletado no mesmo período. Enquanto nos
quatro anos anteriores ao OP a soma de lixo coletado foi da ordem de 569.602 (quinhentos e
sessenta e nove mil, seiscentos e dois) toneladas de lixo, em igual período, após a implantação
do OP o volume de coleta subiu para 773.637 (setecentas e setenta e três e seiscentos e trinta e
sete) toneladas de lixo, isso significou um aumento de aproximadamente 36%. No entanto, o
incremento mais significativo ficou por conta dos pontos de luz instalados. Enquanto entre os
anos de 1985 e1989 foram instalados na cidade 3.227 (três mil duzentos e vinte e sete) pontos,
entre os anos de 1989 e 1992 esse número teria alcançado 10.186 (dez mil cento e oitenta e
seis) pontos de luz instalados, um significativo incremento de aproximadamente 216%.
22 Esse período corresponde a o último ano de governo do prefeito João Antônio Dib e os três anos de Governo de Alceu Collares - PDT (PMPA, 2004d). 23 Período correspondente ao mandato do prefeito Olívio Dutra – PT (PMPA, 2005).
Tabela 2: Variação absoluta no volume de serviços prestados de coleta de lixo, instalação de pontos de iluminação pública e asfaltamento e recuperação de vias públicas.
Ano Coleta de lixo
domiciliar em vilas (t)
Iluminação pública (pontos instalados)
Asfalto (m2 em conservação e construção)
1985 145.094 714 327.197 1986 126.188 925 177.827 1987 151.062 852 252.130 1988 147.258 736 290.454 Total 569.602 3.227 1.047.608 1989 179.448 435 81.399 1990 186.118 1.371 235.122 1991 224.066 2.537 396.686 1992 184.005 5.843 519.151 Total 773.637 10.186 1.150.950
Fonte: adaptado de (Marquetti, 2003).
Outros dados presentes nas tabelas 3 e 4 abaixo, retirados da mesma pesquisa de
Marquetti, parece reforçar o argumento de que o OP contribuiu com a governança, ao
contribuir com melhoria da prestação de serviços pelo governo municipal. Especialmente
naqueles cons iderados pelo Banco Mundial como essenciais. Segundo dados revelados pela
pesquisa, o reflexo do esforço do governo municipal para melhorar essas áreas pode ser
percebido na relação entre o número de funcionários atuantes nas secretarias dessas duas áreas
(consideradas fim), com o total de funcionários da administração centralizada (tabela 3).
Enquanto no ano de 1986 o número de funcionários lotados na saúde e na educação
representava 41,75% do total da administração centralizada, em 1999 esse percentual já havia
saltado para mais de 60%. Isso sem considerar que o próprio número de funcionários da
administração centralizada também cresceu 51,41%. Em termos absolutos, o número de
funcionários lotados nas funções de educação e saúde sofreu um incremento da ordem de
cerca de 120% no período.
Tabela 3: Evolução do número de funcionários públicos municipais ativos, 1986 -1999
Ano Secretaria da Educação e saúde
Outras secretarias
Administração centralizada
Total
1986 3.550 4.954 8.504 16.071 1987 4.034 5.078 9.112 16.861 1988 4.083 5.368 9.451 17.494 1989 4.491 4.802 9.293 16.553 1990 4,975 4.837 9.812 17.892 1991 5.357 4.930 10.287 18.158 1993 6.373 5.036 11.409 19.978 1994 6.824 5.469 12.193 20.739 1995 7.064 5.400 12.464 20.737 1997 7.424 5.221 12.465 20.830 1998 7.412 5.097 12.509 20.906 1999 7.822 5.054 12.876 21.252
Fonte: Marquetti (2002, p.229)
Quando se compara a variação no número de funcionários lotados nas áreas de
saúde e educação, e mais especificamente nessa última, conforme apresentado acima, com o
número de matriculas na rede pública municipal (ver tabela 4), há sinais evidentes de ganho
de eficiência. Pois, enquanto o funcionalismo nas duas áreas variou em 120% no período. O
número de matriculas nas escolas municipais cresceram no mesmo período aproximadamente
292%.
Tabela 4: Evolução do número de matriculas por nível de ensino e total nas escolas municipais, 1985 –
2000
Ano Educação infantil Ensino Fundamental Ensino médio Total 1985 1.248 10.492 1.617 13.357
1987 1.321 13.331 1.485 16.137
1988 1.677 14.838 1.347 17.862
1989 2.659 20.214 1.359 24.232
1991 2.415 24.216 1.330 27.961
1992 3.977 24.855 1.375 30.207
1994 4.978 30.687 1.361 37.026
1995 6.053 31.742 1.366 39.161
1997 5.852 38.988 1.505 46.345
1999 4.987 44.905 1.584 51.476
2000 4.213 46.505 1.583 52.301 Fonte: adaptado de MARQUETTI (2003).
Por último, Marquetti (2003) acredita também que o OP gerou o que ele chamou
de “efeito redistributivo” dos recursos públicos. Isso teria se dado graças à prática da chamada
“inversão de prioridades”. Essa prática está ancorada em um conjunto de normas internas do
OP que determinam os critérios de distribuição dos investimentos públicos. Entre esses
critérios estão: “prioridade da micro-região ou comunidade, carência do serviço público ou da
infra-estrutura e população atingida” (PMPA, 2005, p.12). O resultado dessa prática se reflete
nos números da tabela 5, extraídos da pesquisa de Marquetti. Eles mostram que as regiões que
mais receberam investimentos, de forma individual, foram aquelas com os piores indicadores
econômicos e sociais. As quatro regiões com desempenho mais baixo nesses indicadores
(Nordeste, Restinga, Extremo Sul e Lombada do Pinheiro), onde vivem 11,09% da população
do município de Porto Alegre, receberam 9,45% de todos os recursos investidos pela
prefeitura no período de 1992 a 2000. Já as quatro regiões que apresentaram o melhor
desempenho nesses indicadores (Sul, Centro, Noroeste e leste), mesmo sendo habitadas por
44,5% da população do município, receberam apenas 7,77% do total de investimentos feitos
pela prefeitura dentro daquele período24.
24 É importante destacar que nesse cálculo estão apenas 35,32% dos recursos totais investidos pelo Governo Municipal de Porto Alegre. Pois, esses investimentos foram feitos de forma a beneficiar apenas as comunidades de cada uma das regiões de forma individualizada. No entanto, a maior parte dos investimentos realizados naquele período, 64,68%, foram feitos de forma a atender simultaneamente mais de uma região ao mesmo tempo.
Tabela 5: Percentual da população por região em relação à população da cidade; rendimento nominal médio dos chefes de domicílios em salários mínimos, por região e na cidade; percentual de mães com o primeiro grau incompleto com filhos nascidos vivos em 1998, por região e na cidade; percentual do total dos investimentos listados nos Planos de Investimentos entre os anos 1992-2000, por região, em duas ou mais regiões e em toda a cidade.
Região % da População b
Nº salários mínimos a
Mães com o 1º grau incompleto
(%) c
% de investimentos por região entre
1992- 2000 Humaitá/Ilhas/ Navegantes 3,75 4,14 52,9 1.56
Noroeste 9,92 7,90 24,0 1.96
Leste 8,59 8,63 51,4 2.93
Lombada do Pinheiro 3,76 3,33 65,9 2.93
Norte 6,89 3,56 48,9 2.96
Nordeste 1,89 2,19 69,2 1.61
Partenon 8,88 3,88 50,0 2.00
Restinga 3,58 2,35 60,4 2.23
Glória 2,91 4,00 53,9 1.63
Cruzeiro 5,05 5,46 61,4 2.29
Cristal 2,34 6,24 52,8 1.58
Centro Sul 7,89 4,84 40,7 3.56
Extremo Sul 1,86 2,95 63,1 2.68
Eixo Baltazar 6,69 4,04 39,9 1.90
Sul 4,89 9,47 41,3 1.38
Centro 21,10 11,4 18,5 1.53
Investimentos em 2 ou mais regiões juntas
- - - 64.68
Porto Alegre 100,00 6,40 45,8 100,00
a) Em 1991. b) Em 1996. c) Em 1998. Fonte: adaptado de Marchetti (2002)
No entanto, talvez os dados mais significativos que Marquetti traz em sua
pesquisa, sejam os números que mostram que, no período após a implantação do OP, há um
deslocamento na matriz de despesas do governo municipal (ver tabela 6), onde se percebe
uma redução no percentual de recursos destinado a atividades meios do governo, ao mesmo
tempo em que se observa um incremento no volume de recursos destinados às atividades
fim25. No período 1984-1986 os gastos com a função de administração e planejamento, uma
atividade meio, representaram 25% dos gastos do governo. Num período posterior, após a
implantação do OP, entre os anos de 1990-2000 esse volume cai para 16,6% dos recursos
gastos. Paralelamente, os gastos com funções como educação, cultura, habitação e saúde
passam a sofrer variação positiva. Educação, por exemplo no período 1984-1988 foi
responsável por gastos apenas de 13,2% do total do orçamento municipal, enquanto no
período 1990-2000 esse percentual passou para 19,1%. As despesas com cultura mais que
dobraram em termos percentuais, saindo de 0,6% no primeiro período, para 1,3% no segundo
período seguinte. Habitação e Urbanismo que havia sido responsável por 18,8% dos gastos do
governo municipal entre 1984-88, passou a ser responsável por 19,4% das despesas no
período 1990-2000. por último, saúde e saneamento que respondia com 14% dos gastos no
primeiro período, passou para 18,8% no segundo período26
Tabela 6: Despesa percentual média realizada da administração centralizada por determinadas funções do governo nos períodos 1984-1988 e 1990-2000.
Funções do governo Média percentual 1984-1988 Média Percentual 1990-2000
Administração e planejamento 25,0 16,6
Educação 13,2 19,1
Cultura 0,6 1,3
Habitação e Urbanismo 18,4 19,4
Saúde e saneamento 14,0 18,8
Fonte: adaptado de Marquetti (2003, p.153)
Esses números que mostram o aumento da eficiência e da eficácia do Estado,
redistribuindo os gastos, direcionando um percentual menor dos recursos públicos para
atividades meios e aumentando o percentual com atividades fins como saúde, educação,
25 Nesses números Marquetti não considerou o ano de 1989, devido ao fato de o OP está apenas iniciando naquele ano, não tendo tido tempo de influenciar efetivamente na gestão dos recursos públicos. 26 O autor da pesquisa chama a atenção para o fato de nesses números não está incluída a verba do SUS – Sistema Único de Saúde.
saneamento e urbanismo, em consonância com que o Banco Mundial chama de “boa
governança”. (WORLD BANK, 1992). Parece de alguma forma qualificar o OP como um
instrumento para se melhorar a governança urbana.
4.2.1.1 Uma Reforma Diferente
De acordo com o Banco Mundial entre os elementos constituintes da governança
está o controle eficiente das finanças públicas. Os governos precisam dispor de instrumentos
que permitam uma forte accountability financeira. Instrumentos que contribuam para evitar
ou reduzir práticas altamente lesivas a eficiência da aplicação dos recursos públicos, como a
corrupção e o clientelismo político. O principal instrumento de gestão das finanças públicas é
a peça orçamentária. Além desses instrumentos os governos precisam fazer um esforço no
sentido de conter os seus déficits ficais, através da redução do tamanho do Estado, de
privatizações e ações para diminuir o inchaço do Estado (WORLD BANK, 1992).
No entanto, quando o prefeito eleito pelo PT, Olívio Dutra, assumiu a prefeitura
de Porto Alegre, o orçamento municipal não passava de uma “peça de ficção” (CASSEL e
VERLE, 1994 apud DIAS, 2000, p.30). As finanças do município encontravam-se em
situação precária, os problemas iam desde o atraso no pagamento de fornecedores e
empreiteiras, por meses a fio, até o atraso dos salários do funcionalismo público (FARIA,
2002). Não bastasse tudo isso, ainda havia outro fator para completar o cenário caótico: 98%
de toda a receita do município estava comprometida com o pagamento de salários do
funcionalismo público (CASSEL e VERLE,1994 apud DIAS, 2000, p.30).
Para contornar essas dificuldades o prefeito eleito atacou em duas frentes de
reformas, as quais poderiam ser chamadas de reformas “administrativa” e “fiscal”. A reforma
administrativa se deu em dois planos, no plano interno e no externo. No plano interno,
figuraram como ações importantes a reestruturação dos sistemas de controle e gerenciamento
das finanças da prefeitura; a criação do Gabinete de Planejamento (GAPLAN) - vinculado
diretamente ao Gabinete do Prefeito - que ficou responsável pela elaboração e execução do
orçamento; e a negociação com servidores e sindicatos para a criação de um plano de reajuste
salarial (FARIA, 2002, p.66) 27. No plano externo figurou a implantação do Orçamento
Participativo. Este último, como se verá adiante, teve um papel decisivo, em termos políticos
na viabilização da reforma fiscal promovida pelo governo municipal (idem, p.67).
Para resolver o grave problema das finanças do Município o prefeito só tinha duas
saídas: cortar despesas ou aumentar a receita, ele optou pela segunda, talvez até mesmo por
razões ideológicas. Para isso aproveitou as oportunidades oferecidas pelo contexto. Com a
promulgação da constituição em 1988 os municípios, em termos de receitas, foram
beneficiados de duas formas: descentralização e maior liberdade tributária. A primeira
significou aumento no percentual dos repasses aos municípios, por parte dos governos
estadual e federal, determinados pela constituição. Ainda no ano de 1989 os repasses do
ICMS destinado ao município pelo governo estadual foi 44,2% maior que o ano anterior e no
ano 2000 esse percentual chegou a 66% em relação ao ano de 1988 (MENEGAT, 1995, apud
DIAS, 2000). A segunda foi representada pela maior liberdade dada aos municípios para
formular suas próprias políticas tributárias. Foi aqui que o governo empreendeu uma das suas
principais ações no sentido de melhorar a sua arrecadação do município. Tratou de fazer a sua
“reforma fiscal” aumentando tributos como Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza
(ISSQN) e Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU).
Começou pelo ISSQN, no qual se promoveu um ajuste no sentido de equiparar o
percentual cobrado em Porto Alegre ao percentual praticado nas principais capitais do país.
27 Segundo Faria (2002:67), a antiga Secretaria de Planejamento ficou responsável unicamente pela gestão urbana.
No ano 2000, por conta desse ajuste, a variação positiva na contribuição do imposto em
relação ao ano anterior foi de 42,3%.
No entanto, uma das contribuições mais significativas às finanças do município
ficou por conta dos ajustes realizados na cobrança do IPTU com a cobrança progressiva e a
atualização da planta de valores28. Esse ajuste foi feito por meio de dois projetos de lei. O
primeiro, tratando da alíquota progressiva, foi encaminhado para aprovação na câmara de
vereadores ainda no ano de 1989. O segundo, que tratava da atualização da planta de valores,
foi encaminhado no ano seguinte. O resultado dessas alterações na cobrança do IPTU pôde ser
observado já no primeiro ano em que entrou em vigor a segunda parte do ajuste, no ano de
1991 (ver tabela 7), quando a arrecadação do imposto cresceu em aproximadamente 145%.
No ano seguinte houve mais um incremento de 13,92%. Enfim, no ano de 1992, já havia uma
variação positiva na arrecadação do imposto de cerca de 180% em relação ao ano de 1989,
ano em que o prefeito havia assumido (DIAS, 2000).
Tabela 7: Evolução da Receita do IPTU em Porto Alegre - 1980/92
RECEITA DO IPTU ANOS Valor (US$) Variação
1980 29.595.884 — 1981 27.798.438 - 06,07% 1982 33.748.605 + 21,40% 1983 28.232.304 - 16,34% 1984 20.732.614 - 26,56% 1985 18.811.206 - 09,27% 1986 24.141.564 + 28,34% 1987 18.501.301 - 23,36% 1988 13.635.800 - 26,30% 1989 12.489.153 - 08,41% 1990 11.342.506 - 09,18%
Acumulado 80 – 90 - 18.253.378 - 61,67% 1991 27.829.428 +145,35% 1992 31.703.235 + 13,92%
Acumulado 90 -92 + 20.360.729 + 179,51% Acumulado 80 – 92 2.107.351 + 06,76%
Fonte: PMPA, SMF (apud DIAS, 2000, p.34)
28 A planta de valores é o método de cálculo do valor venal do imóvel, a partir do qual se faz o cálculo do imposto.
Foi esse incremento nos cofre do governo, oferecido pelo aumento na arrecadação
do IPTU, que possibilitou ao município recuperar a sua capacidade de investimentos e a
atender as demandas levantadas no OP. Isso por sua vez, contribuiu com a consolidação do
próprio OP como instância de participação da população nas decisões sobre as prioridades de
investimentos do governo municipal (DIAS, 2000).
Após o ajuste fiscal, com a melhoria das finanças, o governo municipal passou a
ter recursos para fazer investimentos. Essa retomada da capacidade de investimento pode ser
percebida pelo aumento no volume de serviços prestados entre os anos de 1990 e 2000 (ver
tabela 8), como: a coleta de lixo que cresceu aproximadamente 60% entre os anos 1990 e
2000; a instalação de pontos de luz, que cresceu cerca de 110%; e a pavimentação e
conservação de ruas que cresceu aproximadamente 250% no período.
Tabela 8: Expansão dos serviços públicos, 1990 - 2000
Ano Coleta de lixo domiciliar em vilas (t)
Iluminação pública (pontos instalados)
Asfalto (m2 em conservação e construção)
1990 186.118 1.371 235.122 1991 224.066 2.537 396.686 1992 184.005 5.843 519.151 1993 203.793 2.278 411.177 1994 204.928 2.848 444.758 1995 232.749 2.247 502.565 1996 261.087 2.130 947.816 1997 284.080 1.725 871.809 1998 296.970 2.758 667.557 1999 273.201 1.574 901.058 2000 297.767 2.870 819.555
Fonte: adaptado de (MARQUETTI, 2003:150).
No entanto, a organização das finanças do município não foi um empreendimento
assim tão fácil como parece à primeira vista. Inicialmente, a oposição representou uma
enorme barreira ao projeto de ajuste fiscal proposto pelo executivo municipal. Os vereadores
da oposição recusavam aprovar a proposta de cobrança de alíquotas progressivas do IPTU,
onde o valor do imóvel determinava alíquota na qual ele se enquadrava (quanto maior o valor
do imóvel, maior a alíquota a ser paga). Como o governo era minoria na Câmara29, o papel do
Orçamento Participativo foi fundamental. “Sustentado pela pressão popular sobre os
vereadores, o Executivo conseguiu implantar seu projeto de revisão no cálculo do IPTU”
(DIAS, 2000, p.37)30.
Parece que o governo Municipal de Porto Alegre, seguindo outro caminho
diferente, em muitos aspectos, daquele que instituições internacionais de fomento
recomendavam, conseguiu ajustar as suas finanças ao mesmo tempo em que manteve o
quadro de servidores. Fugindo ao que a ortodoxia recomendava, ao invés de começar a ajustar
as finanças do município por planos de demissões, privatizações, o governo municipal tratou
de racionalizar as finanças de outra forma, aumentando a arrecadação (FARIA, 2002, p.67).
Isso é claro não significou irresponsabilidade fiscal, pois o governo procurava só assumir
novos compromissos financeiros quando dispunha de recursos para honrá- los.
4.2.2 Orçamento Participativo e Accoutability
A discussão sobre accountability, como uma das dimensões da governança,
destacou dois aspectos considerados centrais na sua caracterização. O primeiro diz respeito à
responsabilização dos servidores públicos por suas ações, que traz embutida a idéia de
prestação de contas por parte dos mesmos. O outro aspecto se refere à existência de canais
através dos quais os usuários de bens e/ou serviços públicos, afetados pelas políticas ou ações
29 Segundo Dias (2000), a Câmara Municipal de Porto Alegre era formada de 33 vereadores no ano de 1989, dos quais 10 compunham a base do governo. 30 Dias (2000) a relação entre o executivo municipal de Porto Alegre e o legislativo durante os dois primeiros mandatos e parte do terceiro (1989-1998) e constatou um ambiente de forte disputa entre os dois poderes. Disputa essa agravada pela criação do Orçamento Participativo, que segundo a autora teria causado constrangimento ao legislativo Municipal, levando os vereadores a se comportarem de forma pendular ao longo desse período, ora de forma apática, ora reagindo fortemente as ações do executivo municicpal.
do governo, possam influenciar no processo de formulação e implantação das políticas
públicas.
A partir dessa caracterização parece razoável aceitar que o Orçamento
Participativo (OP) pode ser considerado, também, um instrumento da accountability pública.
Isso fica mais claro quando se parte da definição de OP dada pela própria Prefeitura
Municipal de Porto Alegre, segundo a qual “O Orçamento Participativo (OP) é um processo
pelo qual a população decide, de forma direta, a aplicação dos recursos em obras e serviços
que serão executados pela administração municipal” (PMPA, 2004a). Nessa definição pelo
menos um dos dois principais elementos que caracterizam a accountability já se faz presente,
o canal de participação, representado pelo próprio OP, que permite a população influenciar no
processo decisório sobre políticas públicas e ações do governo que afetam as suas vidas.
A outra característica pode ser identificada quando se analisa o Regimento Interno
do Conselho do Orçamento Participativo, que trata, entre outras coisas, da estrutura e da
dinâmica de funcionamento do OP. Nele estão impressas as principais regras que regulam o
funcionamento do OP. Pelo menos três artigos (artigos 43º, 47º e 48º) desse documento
buscam, de alguma forma, obrigar o governo municipal e seus funcionários a prestarem
contas de suas ações nas diferentes instâncias do OP e, de forma indireta, a toda a população
do município, já que a participação é aberta a todos31. O artigo 43º, por exemplo, determina
que todos os anos, até o dia 20 de abril, o governo municipal deverá prestar contas nas
assembléias temáticas e regionais, tanto do orçamento realizado no ano anterior, quanto do
Plano de Investimento definido (com a participação da população) no ano anterior para ser
implementado a partir do ano corrente.
31 A única restrição à participação diz respeito ao critério que determina que só podem participar da assembléia de uma determinada região, com poder de voto, aqueles que residem na respectiva região (PMPA, 2005).
Artigo 43º - Anualmente até 20 de abril, o Município deverá realizar a prestação de contas do Plano de Investimentos (obras e atividades definidas no exercício anterior), bem como a realização do orçamento do município do ano anterior (Receitas X Despesas) nas (reuniões preparatórias) Regional e Temática (PMPA, 2005, p.10).
Aliás, mesmo reconhecendo a importância de outras instâncias de participação
para accountability, Fedozzi admite que ela (a accountability) “tem seu ponto forte, não nas
instâncias onde a participação comunitária se dá por meio da representação, como o Conselho
e os Fóruns dos Delegados, mas sim nas assembléias Regionais e Temáticas” (FEDOZZI,
1997, p.169).
Outro artigo, o de número 47º, atribui ao funcionário público da prefeitura,
responsável pelo processo licitatório de obras demandas, a obrigatoriedade de informar o
início do procedimento aos Conselheiros(as) da Região ou temática demandante da obra. Este
último, por sua vez, deverá acionar a Comissão de Obras para que esta faça o
acompanhamento do desenvolvimento da obra.
Artigo 47º - Antes do lançamento de uma licitação de uma obra demandada pelo Orçamento Participativo, o respectivo responsável técnico da Prefeitura pela obra deverá fazer contato com os(as) Conselheiros(as) da Região ou Temática demandante para acionar a Comissão de Obras de e realizar a primeira reunião para conhecimento detalhado do projeto e estabelecer a rotina de acompanhamento da obra (PMPA, 2005, p.11).
O artigo de número 48º trata da obrigatoriedade dos servidores públicos prestarem
contas dos seus atos. Caso tome iniciativas dissonantes daquelas previstas pelas regras do OP,
eles devem se dirigir ao Conselho do Orçamento Participativo para justificar a falta cometida,
sob pena de ser denunciado ao prefeito.
Artigo 48º - O órgão que não obedecer as regras do Regimento do Orçamento Participativo, deve ser convocado no COP para apresentar justificativas. Caso não haja o comparecimento deve ser levado ao conhecimento do Prefeito, por escrito e assinado pelos Conselheiros(as). Não
se pode permitir que esses venham a prejudicar o processo (PMPA, 2005, p.11).
Mas a accountability dentro do OP não é exclusiva da parte do governo, outras
instâncias do OP são obrigadas a prestar contas de suas ações a instância máxima que são as
assembléias regionais e temáticas. O item “e” do artigo 30º, por exemplo, atribui como uma
das responsabilidades do conselheiro do COP (Conselho de Orçamento Participativo), manter
os Fóruns Regionais e temáticos do OP informados sobre o processo de discussão em curso
no COP, bem como colher sugestões e/ou deliberações por escrito dos delegados desses
fóruns. Já o item c do artigo 38º trata da obrigação dos delegados de manter a população
informada sobre os assuntos tratados no Conselho de Orçamento Participativo.
É verdade que essas determinações não passam de regras internas ao
funcionamento do Orçamento Participativo. Pois, não poderiam ter o seu cumprimento
cobrado na justiça. Mas, certamente é de interesse do Executivo Municipal atender a essas
regras, determinadas em conjunto por ele e pelo OP, já que ele também tem interesse na
continuidade dessa esfera de participação. Ao abrir espaço a participação da população, para
que ela determine as suas prioridades em termos de políticas públicas, o OP acaba por se co-
responsabilizar com o governo, dando legitimidade as suas ações.
Na última pesquisa realizada e publicada pela ONG Cidade sobre o perfil do
público participante do OP, alguns dados chamam a atenção. Eles tratam de questões como a
forma com que participantes chaves do OP (Delegados e Conselheiros) percebem o poder de
decisão deles no OP, como avaliam a sua atuação como representantes no OP e como avaliam
as informações que são prestadas pelos representantes da Administração no OP. A pesquisa
foi realizada durante uma plenária única que ocorreu no ano 2002 e publicada em 2003. A
pesquisa revelou que delegados e conselheiros, em sua maioria, percebem os elementos
constituintes da accountability, por exemplo, 82% dos Conselheiros e aproximadamente 78%
dos Delegados acreditam que as pessoas decidem sempre ou na maioria das vezes no OP. Em
relação a parte que lhes cabe no encaminhamento das reivindicações feitas pelas
comunidades, os resultados também se apresentaram de forma positiva. Aproximadamente
80% dos conselheiros e 85% dos delegados dizem respeitar e encaminhar essas demandas. O
terceiro item também importante para a accountability, porque é de grande importância para
uma participação efetiva é a prestação de informações pela Prefeitura. O item que mede as
informações prestadas pela Prefeitura também apresenta um bom desempenho, menor que os
dois primeiros, é verdade. De acordo com aproximadamente 70% dos conselheiros e 69% dos
delegados a Prefeitura presta informações satisfatórias na maioria das vezes.
Quadro 2: Distribuição de freqüências absolutas e relativas, segundo o poder de decisão no OP, a avaliação sobre a atuação dos representantes no OP e a avaliação sobre a informação prestada pelos representantes da Administração no OP, na opinião de Conselheiros ou Delegados eleitos no OP – 2002.
Sempre Maioria Poucas Nenhu
ma
NS NR Total de
entrevistados
Dimensões do
processo
Eleito
Conselheiro
ou Delegado % % % % % % casos %
Conselheiro 32,8 49,2 13,1 - 4,9 - 61 100,0 Pessoas no OP
decidem realmente Delegado 37,4 41,1 18,3 0,8 0,8 - 246 100,0
Conselheiro 45,9 34,4 16,4 - 3,3 - 61 100,0 Representante no OP
respeita e encaminha
reivindicações
Delegado 48,0 36,6 12,6 0,8 2,0 - 246 100,0
Conselheiro 39,3 31,1 19,7 3,3 6,6 - 61 100,0 Prefeitura presta
informações
satisfatórias no OP
Delegado 29,7 39,4 23,2 2,8 4,5 0,4 246 100,0
Fonte: Cidade (2003).
A partir de todas essas constatações, pode-se concluir que não restam dúvidas
sobre a potencial contribuição do Orçamento Participativo para a accountability na
administração do governo Municipal de Porto Alegre.
4.2.3 Orçamento Participativo e Informação e Transparência
De acordo com o Banco Mundial, Informação e transparência são dois elementos
importantes para se alcançar a eficiência do Estado e do mercado e o conseqüente
desenvolvimento econômico (WORLD BANK, 1992). Portanto, ela pode ser abordada sob
duas perspectivas, do ponto de vista dos agentes econômicos privados (mercado), ou do ponto
de vista do Estado. Para os agentes econômicos privados, a informação e a transparência são
importantes porque contribuem com a redução dos riscos e das incertezas e,
consequentemente, dos custos de transação, aumentando a eficiência e a eficácia desses
agentes. Na perspectiva do Estado a sua contribuição é principalmente no sentido de reduzir a
corrupção e o risco de erros dos governos.
Dizer que houve eficiência e eficácia num processo significa que “os objetivos
propostos foram atingidos com a menor utilização dos recursos disponíveis” (TENÓRIO,
2004, p.19). Como o papel atribuído ao Estado, dentro da perspectiva da governança para o
desenvolvimento econômico, é o de provedor eficiente e eficaz de bens e serviços públicos,
que por alguma razão os agentes econômicos privados não podem ou não devem oferecer.
Cabe a este Estado fazer bom uso dos recursos que arrecada no aprovisionamento desses bens
e serviços. Para que isso seja possível, ele precisa evitar o desperdício desses recursos,
ocasionado pela corrupção pura e simples, ou por erros no processo de formulação e
implementação de políticas públicas. A corrupção pode ser reduzida com transparência na
gestão dos recursos públicos. Os erros dos governos podem ser amenizados com informações.
É dentro dessa perspectiva que se defende aqui que o Orçamento Participativo é um
mecanismo da governança, pois ele gera informações que subsidiam as decisões de
investimentos do governo e cobra transparência na realização desses investimentos.
Quando se analisa a dinâmica de funcionamento do “ciclo do o Orçamento
Participativo” de Porto Alegre, é possível enxergar nele a fonte de dois elementos
fundamentais a governança, a informação e a transparência (PMPA, 2004c). A informação
necessária a redução dos erros do governo é gerada no processo participativo pela população
que participa do OP. Já a transparência é um requisito fundamental demandado pelos
participantes OP, ela é necessária para que esse canal de gestão participativa realmente
funcione.
No processo participativo do OP, as assembléias gerais e temáticas desempenham
um papel fundamental, são elas as principais fontes de informações que alimentam todo o
processo subseqüente do OP. São nessas assembléias que a população coloca as suas
demandas e elegem aquelas que consideram prioritárias (PMPA, 2004c)32. É a partir desse
conjunto de demandas, identificadas nas assembléias gerais, que o Executivo Municipal
prepara o esboço do Plano de Investimentos e o leva para ser complementado, debatido e
aprovado, ou não, nas outras instâncias do OP, como no COP e no Fórum dos Delegados33.
Como visto na síntese do ciclo do OP, o processo de participação não se encerra
nas assembléias regionais e temáticas. Ele prossegue em instâncias importantes como nos
Fóruns de delegados e no COP. Nessas instâncias as demandas são debatidas e aprovadas, ou
não, com base em critérios previamente estabelecidos, presentes nas regras que regulam o
funcionamento do OP. Aliás, regras estas que são definidas e redefinidas pelos próprios
participantes do OP em conjunto com o Governo Municipal.
Além de zelar para que essas demandas sejam atendidas, as outras instâncias do
OP têm uma infinidade de outras atribuições. O artigo 11º do Regimento Interno do COP
32 Nessas assembléias também são eleitos os delegados e conselheiros que irão compor outras duas instâncias importantes do OP, o Conselho de Orçamento Participativo - COP e o Fórum dos delegados (PMPA, 2005). 33 Embora a análise e aprovação do Plano de Investimentos pelo OP sejam consideradas momentos de forte simbolismo desse processo de gestão participativa, não há nenhum mecanismo que obrigue o executivo Municipal a cumprir as decisões sobre investimentos advindas de instâncias do OP.
prevê para esse conselho um amplo leque de competências. Essas atribuições vão desde a
apreciação, aprovação, ou não, do Plano de Investimentos, até a apreciação da Lei de
Diretrizes Orçamentárias (LDO); passando pela análise da própria peça orçamentária e até
mesmo de propostas de obtenção de financiamentos de instituições nacionais ou
internacionais para a realização de demandas do Op, conforme pode ser lido no artigo 45º
desse regimento.
Artigo 45º - as obras institucionais, que para a sua implementação exigirem recursos orçamentários próprios, ou financiamento de organismos nacionais ou internacionais, deverão ser apresentadas previamente ao COP para apreciação e/ou votação para acompanhamento quando da sua apresentação e debate com a comunidade mais diretamente interessada (PMPA, 2005, p.11).
No entanto, para que o Orçamento Participativo possa cumprir o seu papel de
forma satisfatória, na gestão participativa dos recursos públicos, os participantes também
precisam ter acesso a uma infinidade de informações que são controladas pelo Governo
Municipal. Portanto, pode-se afirmar o OP contribuí com a transparência. Essa necessidade de
transparência pode ser verificada no item XII do artigo 11º do Regimento Interno do
Conselho de Orçamento Participativo, que trata das competências do COP. Esse item assegura
ao COP a competência para “solicitar as secretarias e órgãos do governo documentos
imprescindíveis à formação de opinião dos(as) conselheiros(as) no que tange
fundamentalmente a questões complexas e técnicas” (PMPA, 2005, p.3).
Outro artigo que se refere à questão da transparência é o artigo 47º, também do
Regimento Interno do COP. Segundo esse artigo, o funcionário da prefeitura responsável pela
licitação e execução da obra, deve informar ao Conselheiro da região que a demandou, para
que este solicite a Comissão de Obras do OP que faça o acompanhamento da execução da
obra. Acompanhamento este que deve começar antes mesmo de sua licitação, com a
apresentação do projeto a Comissão, pelo técnico da prefeitura (PMPA, 2005, p.11).
Aparentemente duas conclusões podem ser tiradas dessa discussão. A primeira é
que quando a população participa das decisões sobre o direcionamento dos investimentos do
orçamento público, ela contribui com a redução dos erros dos governos. Estes deixam de
depender apenas da capacidade de seus “burocratas iluminados”, que de dentro de seus
gabinetes define qual deve ser o destino dos investimentos. A outra é que o OP também
contribui para reduzir práticas de corrupção e qualquer tipo de desvio de recursos públicos.
Isso ocorre porque quando o OP realmente funciona, acaba por exigir dos governantes uma
postura de transparência no trato com a coisa pública. Talvez, sejam essas as principais
contribuições que o Orçamento Participativo oferece a governança. Aliás, esse é um
argumento que parece não ser solitário. Marquetti, por exemplo, afirma que, “a transparência
na formação e implantação do orçamento e o sistema de monitoramento da ação do poder
executivo e dos próprios conselheiros são fatores fundamentais para a redução do
clientelismo” (MARQUETTI, 2002, p.226). Já para Fedozzi (1997, p.159) A existência de
regras claras de participação e dos métodos de distribuição dos recursos para investimento
contribui para constranger práticas como o clientelismo.
CAPÍTULO 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Finda a análise aproveitamos aqui para recobrar a razão de ser desta dissertação,
bem como tecermos algumas considerações sobre os resultados constatados através das
análises nela empreendidas.
O objetivo geral desse trabalho era identificar as possíveis contribuições do
Orçamento Participativo para a Governança urbana¸ a partir da análise da experiência de
Porto Alegre. Objetivo esse guiado pela seguinte questão de partida: de que forma o
Orçamento Participativo contribui com a governança urbana?
Pode-se dizer que as análises empreendidas no capítulo quatro - a partir dos
trabalhos de Marquetti (2002 e 2003), Dias (2000), Fedozzi (1997), Faria (2002), ONG
CIDADE (2003) e das próprias informações fornecidas pela Prefeitura Municipal de Porto
Alegre – forneceram subsídios para se argumentar que as contribuições são significativas. A
partir delas, pode-se concluir que o Orçamento Participativo contribui com a governança ao
possibilitar que os recursos públicos sejam aplicados de forma eficiente e eficaz em áreas
consideradas essenciais, como saúde, educação, infra-estrutura, entre outras; ao funcionar
como uma barreira a práticas clientelistas e lesivas aos cofres públicos como a corrupção e
oferecer legitimidade às ações dos governos, por estas estarem embasadas em demandas da
própria população.
Antes mesmo de seguir com esse esforço de síntese, cabe relembrar qual o papel
dos participantes no OP e porque se considera que esse instrumento de gestão participativa
contribui com a governança. No OP é papel da população decidir sobre as prioridades de
investimentos, para os quais devem ser direcionados os recursos públicos. Por conta disso, as
ações do governo municipal de Porto Alegre sofrem forte influência dessa instância de
participação. Logo, os resultados alcançados pelas ações do governo devem ser, de alguma
forma, também atribuídos ao OP.
Na discussão sobre a dimensão administração pública, os números extraídos do
trabalho de Marquetti (2002 e 2003) falam por si só. Serviços como pavimentação e
recuperação de vias, coleta de lixo, e instalação de pontos de luz deram saltos significativos,
quando comparados a períodos iguais, anterior à instalação do OP, cresceram respectivamente
10%, 36% e 216% na comparação entre os períodos tomados como referência.
Outro aspecto importante é representado pelo esforço concentrado das ações do
governo em áreas consideradas essenciais como saúde, educação e infra-estrutura. Nessas
duas primeiras áreas, por exemplo percebe-se um incremento significativo no número de
funcionários entre os anos 1986 e 1999, tanto no sentido relativo, quanto absoluto. Os
funcionários dessas duas funções do governo saíram de um percentual de aproximadamente
42% de todo o pessoal da administração centralizada para um percentual de 60%. O que
demonstra um esforço extra do governo municipal na direção de duas das responsabilidades
consideradas essenciais da administração pública pelo Banco Mundial. Essa mesma
preocupação com áreas essenciais pôde ser percebida a partir da comparação dos números de
recursos investidos nessas atividades nos períodos correspondentes aos anos de 1984-1988 e
1990-2000. Enquanto no primeiro período esse percentual foi de 46,2% do orçamento do
município, no segundo período deu um salto para 58,6%.
Na discussão do capítulo II ficou claro que o Banco entendia que um dos papéis
principais do governo era oferecer serviços, de forma eficiente, para os mais pobres, os
números trazidos no quarto capítulo, também, apontam nessa direção. Mostram que houve
uma concentração dos investimentos feitos individualmente por região, nas regiões mais
pobres. Isso pôde ser verificado quando se comparou os investimentos feitos nas quatro
regiões mais pobres, onde vivem 11,09% da população, com os investimentos feitos nas
quatro regiões mais ricas, onde vivem aproximadamente 44,5% da população do município. O
percentual de investimentos recebidos por essas regiões foi da ordem de 9,45% e 7,77%,
respectivamente.
No entanto esses investimentos não teriam sido possíveis sem a reforma fiscal
empreendida pelo governo de Porto Alegre. Iniciada ainda no primeiro ano do mandato
(1989), essa reforma teve como objetivo principal aumentar a arrecadação de tributos como o
ISSQN e o IPTU. Talvez, ela tenha sido a maior contribuição que o OP tenha oferecido para
que o governo municipal organizasse as suas finanças e mostrasse a eficiência e a eficácia que
mostrou na prestação de serviços essenciais a população. Isso porque como, foi exposto no
quarto capítulo, Olívio Dutra quando assumiu encontrou as finanças do município em
condições precárias e não possuía maioria na Câmara para aprovar as reformas necessárias.
Para que isso fosse possível, ele precisou contar com o apoio direto dos participantes do OP,
que foram a aquela casa cobrar dos vereadores a aprovação de tal reforma34. É interessante
notar que nessa reforma fiscal o processo se deu de forma invertida, quando se compara com
as práticas recomendadas pelo Banco Mundial. Ao invés de começar cortando custos,
começou-se a reforma ampliando a arrecadação.
Outras contribuições do OP à governança puderam ser observadas a partir da análise
de sua própria dinâmica. A partir dessa análise, foi possível verificar que o OP contribui com
34 Dias (2000) discute com profundidade o impacto causando pelo OP na relação entre executivo e legislativo municipal.
a accountability e com a informação e a transparência no processo de gestão dos recursos
públicos do município. Em termos de accountability, o maior símbolo da sua existência são as
plenárias regionais e temáticas. São nessas plenárias onde a população pode influenciar nas
decisões sobre as políticas públicas que, direta ou indiretamente, lhe interessam, são nelas
também que a prefeitura faz a prestação de contas todos os anos, no início do ciclo do OP.
Tanto do que foi realizado no ano anterior (receitas X despesas), como do que foi planejado
para o ano corrente.
Além da responsabilidade da prefeitura em prestar contas nas diversas instâncias do
OP. Essas mesmas instâncias também têm a responsabilidade de prestar contas à população
sobre as decisões tomadas no âmbito do OP.
O OP também contribui com a governança ao oferecer informações ao governo sobre
as demandas que a população considera mais urgente, evitando dessa forma que decisões
equivocadas sejam tomadas, gerando posterior insatisfação da população. Além disso, o
funcionamento adequado do OP cobra do governo a disponibilidade de informações, para que
os participantes possam tomar as decisões adequadas sobre os investimentos prioritários,
como volume de recursos disponíveis, custo de uma obra ou serviço demandado, etc. Cobra
também transparência do governo, na gestão do fundo público. Os dois elementos juntos
contribuem para reduzir as oportunidades de práticas lesivas aos cofres públicos como a
corrupção e desvios de recursos.
Entretanto, para que o objetivo principal desse trabalho fosse alcançado e a
questão de partida respondida, outros objetivos de menor monta, mais não menos importantes,
precisaram ser alcançados. Entre esses objetivos estavam: identificar a origem e o histórico
evolutivo do conceito de governança; discutir o conceito de governança do Banco Mundial de
forma pormenorizada; identificar as diferenças e semelhanças dos conceitos de
governabilidade e governança; relacionar governança e participação; e por último, entender
por que a participação, que era vista como uma ameaça à governabilidade, agora é aceita
como instrumento da governança, se este último conceito é considerado por alguns autores
apenas uma versão do primeiro, apenas com pequenos ajustes?
A discussão promovida no primeiro capítulo desempenhou um papel importante
ao traçar o histórico do conceito de governança e mostrar que ele realmente parece guardar
uma forte relação de proximidade com o conceito de governabilidade. No entanto, ao mesmo
tempo em que trouxe essas contribuições, colocou também uma questão que precisava ser
respondida: como poderia a participação aparecer, no conceito de governança do Banco
Mundial, como positiva para a promoção do desenvolvimento econômico, se ela (a
participação) era vista anteriormente como a causa principal da ingovernabilidade? Mas do
que isso, como o Banco Mundial pôde reconhecer um instrumento de gestão participativa, que
tem por base a participação direta, como o OP, vendo nele um instrumento para a gestão
eficiente da cidade? Um esforço para buscar essas respostas foi empreendido no terceiro
capítulo.
Na discussão empreendida no terceiro capítulo pôde-se perceber que a causa da
instabilidade política, segundo Samuel Huntington, não era exatamente a participação política,
mas sim a participação política não institucionalizada, a participação direta. O problema para
ele estava no rápido crescimento desse tipo de participação, sem o correspondente surgimento
de instituições políticas fortes para filtrar e absorver as demandas dos novos grupos sociais,
evitando que elas fossem colocadas diretamente ao governo. Embora ele não falasse
abertamente como se daria essa participação institucionalizada, supõe-se que tratasse da
participação através do voto, uma vez que via no partido político o símbolo da instituição
política moderna.
Outro aspecto que ficou claro na discussão do terceiro capítulo foi a questão da
legitimidade das ações do governo defendida por Huntington, que segundo ele estaria
amparada pela idéia de “interesse público”. Como ele não tinha compromisso com um regime
político específico, muito menos com a democracia, e via na participação direta a causa da
ingovernabilidade, acabou por descartar logo de início qualquer teoria, para a idéia de
“interesse público”, que envolvesse a participação direta de grupos sociais, descartou assim a
explicação dada pelas teorias democrática e processual. Para ele, as ações do governo
poderiam ser consideradas legítimas à medida que representasse os interesses das próprias
instituições governamentais. Talvez o problema dessa formulação de Huntington residisse no
fato de foi ter atribuído expectativas demasiadas em relação as virtudes dos homens públicos.
Afinal, Huntington dava a entender que caberia a eles identificarem os interesses das
instituições das quais faziam parte e buscar satisfazê-los.
Aparentemente, o Banco Mundial percebeu em suas experiências práticas, em
especial na África sub-saariana, que a virtude do homem público, a qual Huntington
condicionava a satisfação do interesse público, não era assim tão comum quanto ele
acreditava ser. Por conta disso, as práticas do Banco passaram por um processo de inflexão.
Preocupado com a efetividade e eficiência das políticas governamentais, o Banco passou a
defender a participação da população alvo na formulação e implantação de projetos
específicos. Principalmente aqueles voltados para os mais pobres. Buscava com isso alcançar
maior efetividade nesses projetos e evitar rejeições futuras.
Os mecanismos de participação sugeridos pelo Banco eram conselhos paritários,
onde deveria haver um número igual de representantes de usuários e dos prestadores de
serviço; Centrais de atendimento; mecanismos de consulta, a existência de um ombudsman,
etc. A participação vista dessa forma só reforça a preferência do Banco pelas soluções de
mercado e evidencia um esforço do Banco no sentido de despolitizar a participação da
sociedade.
Posteriormente, já em 1997 o Banco toma contato com a experiência do
Orçamento Participativo de Porto Alegre e o aponta como exemplo de boa gestão dos
recursos públicos (NAVARRO, 2003, p.92). Arrisca-se a dizer aqui, que o pragmatismo desta
instituição permitiu- lhe dar um “salto de qualidade” em relação a questão da participação, já
que ao perceber que ela não causava qualquer risco a instabilidade, não hesitou em elogiar a
prática porto-alegrense.
O Orçamento Participativo não representa qualquer ameaça à ordem política por
pelo menos duas razões. A primeira é que a participação da população no OP se dá dentro de
regras gerais e claras a todos os participantes. Mesmo que possam ser alteradas pelos próprios
participantes, seguindo-se os ritos para tal processo, essas regras dependem, de alguma forma,
da aquiescência do executivo municipal. Se este não concordar, não há qualquer instrumento
legal que o obrigue a cumprir tais regras. São exemplos dessas regras: a participação nas
plenárias regionais restritas aos moradores das respectivas regiões; a existência de um limite
máximo de demandas; critérios claros sobre a eleição das demandas por regiões, etc. A
segunda é que o executivo municipal desempenha um importante papel na coordenação e na
viabilização do processo, “o governo participa fornecendo informações, assessoramento
técnico e infra-estrutura” (PMPA, 2004a). É de se supor que sem a estrutura de suporte
oferecida pelo executivo municipal, tanto em termos financeiros como técnico-
organizacionais, a operacionalização do OP dificilmente seria possível. Por conta disso, se o
OP passar a ser percebido como uma ameaça à ordem política, basta ao executivo municipal
deixar de fornecer o apoio a sua realização que certamente ele deixará de existir.
Pode-se dizer então que o Orçamento Participativo contribui com a governança:
ao possibilitar que os recursos públicos sejam aplicados de forma eficiente em áreas
consideradas essenciais, como saúde, educação, infra-estrutura, etc.; ao funcionar como uma
barreira a práticas clientelistas e lesivas aos cofres públicos como a corrupção; e ao oferecer
legitimidade as ações dos governos, por estarem embasadas em demandas da própria
população.
Aparentemente, independente da ideologia que oriente as ações dos governos - pouco
importa se ele busca empregar os recursos públicos na formulação e implementação de
“políticas compensatórias”, ou de “políticas redistributivas” - parece que o que está posto é
que os recursos nunca são suficientes para atender as demandas que a sociedade coloca ao
Estado. Mas, se os recursos são escassos resta ao governo emprega- los de forma eficiente.
Talvez, isso explique uma constatação feita por Frey (2004), ainda no primeiro capítulo,
quando ele dizia que as duas vertentes de governança - aquela de caráter mais distributivo e
emancipatório e a outra vertente mais gerencialista - guardam mais similaridades do que
diferenças, e que as diferenças estão praticamente restritas ao campo ideológico.
O principal desafio que se pôs a essa análise, por conta do seu caráter teórico, foi a
escassez de números que tratassem especificamente dos resultados práticos das experiências
de Orçamentos Participativos no Brasil. A maioria dos trabalhos se concentra na análise do
processo, procurando verificar aspectos como: número de participantes, em que nível se dá a
participação, qual o perfil de quem participa, etc. Além disso, a maioria absoluta dos trabalhos
disponíveis tratam do caso de Porto Alegre, provavelmente por esta ser a experiência pioneira.
Sentiu-se a necessidade de análises mais aprofundada de outras experiências. Fica aqui a
sugestão para trabalhos futuros.
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ANEXO