Ser Discreto
1 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Universidade Federal da Paraíba
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções
Ser Discreto
Um Estudo do Brasil Urbano Atual sob a Ótica do Luto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Relatório Final da Pesquisa "Luto e Sociedade", integrante do GREM –Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções, apresentado ao Departamento de Ciências Sociais da UFPB.
João Pessoa,
2001
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
2 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Índice
INTRODUÇÃO .................................................................................................................3
A CONSTITUIÇÃO DE UMA NOVA SENSIBILIDADE .............................................25
A MORTE E O MORRER..............................................................................................66
A PERDA E O SOFRIMENTO..................................................................................... 105
VIVER O LUTO............................................................................................................ 138
TEMPOS DO LUTO..................................................................................................... 186
CONCLUSÃO ............................................................................................................... 237
BIBLIOGRAFIA........................................................................................................... 254
ANEXOS........................................................................................................................ 267
ANEXO 1 - QUADROS................................................................................................. 268
ANEXO 2 - ENTREVISTAS UTILIZADAS POR CAPÍTULO................................... 300
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
3 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Introdução
"Por favor, basta. Nunca falei tanto da dor, da perda, da morte do meu amado. Desculpe... e obrigado por ter me escutado. Nunca pensei que pusesse falar do que falei, mas agora acabou...". (Entrevista 12)
1.
Este livro tem por objetivo compreender as atitudes em relação ao
fenômeno do luto no Brasil. O ritual da dor em torno do sofrimento
provocado por uma perda é o ponto crucial de reflexão. Busca entender o
significado social do luto e o processo de individuação de quem o sofre.
Philippe Ariès (1967, 1972, 1974), Louis-Vincent Thomas (1983),
Edgar Morin (1977), entre outros autores, em seus estudos, procuraram
perceber as mudanças nos costumes e atitudes perante a morte e o morrer
ocorridas no mundo ocidental pós-guerra. Embora constatassem a
sobrevivência, mesmo que em declínio, de antigas práticas, nos meios
populares e de classes médias, relataram o progressivo enfraquecimento da
sensibilidade em relação aos mortos e às formas de comportamento aos que
sofreram perdas recentes. Enfatizaram, sobretudo, a ambivalência das
atitudes entre os indivíduos, e afirmaram esta ambivalência indicando, por
exemplo, que uma mesma pessoa que terá vergonha de falar da morte ou
de um morto recente comprará, sem complexos, um jazigo para si ou irá por
flores no túmulo de um parente querido.
1 Entrevista realizada com uma mulher natural e residente na cidade de Belém, Pará, de 45
anos, viúva, com dois filhos, economista, e empresária, pertencente a classe média alta da cidade.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
4 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
A crescente individuação da sociedade moderna ao situar
sentimentos à margem das relações sociais, catalogando-os como
subjetividade, tem modificado uma série de rotinas tradicionais de
comportamento, colocando sob suspeita um conjunto de padrões ritualísticos
(ELIAS, 1990, 1993, 1989; BENJAMIN, 1985; GEERTZ, 1978;
DUVINGNAUD, 1973; WEBER, 1974, entre outros). A descrença em
fórmulas rituais de sujeição social da dor pessoal de quem sofre uma perda
e da integração do morto às malhas sociais através de uma série de ritos de
passagem (ELIAS, 1989; ARIÈS, 1972, 1974; MORIN, 1977; BENETICT,
1972; BERGER, 1995; GINSBURG, 1989; HERTZ, 1960 e 1970,
DANFORTH & TSIARAS, 1982; VOLVELLE, 1974, entre outros), além do
impedimento tácito a expressões intensas de sentimento (WAUGH, 1961;
ELIAS, 1989; ARIÈS, 1972 e 1974; MAUSS, 1980), mesmo quando existam,
e do modo higiênico no trato do morto (ARIÈS, 1989, 1990), podem ser
indicados como exemplos de mudança nas antigas práticas e relações
sociais em torno da morte e do luto nas sociedades de tradição ocidental.
No caso brasileiro, a morte e os modos de enfrentá-la tem sido
estudada por vários autores (DaMATTA, 1987; MARTINS, 1983; CARNEIRO
DA CUNHA, 1978; RODRIGUES, 1983; POMPA, PESSOA, & POLIELLO,
1987; AZEVEDO, 1987; GAUDÊNCIO, 1986, entre outros). Estes estudos
estão mais preocupados na descrição e nas permanências dos costumes e
atitudes em relação à morte e aos mortos, que nos processos de mudança
de valores e mentalidades. A questão do luto enquanto expressão social dos
sentimentos, vem sendo tratada por Koury (1993, 1996, 1996a, 1998, 1999a
2000 e 2001) e Santos (2000), mas, ainda existem poucos estudos a
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
5 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
respeito nas Ciências Sociais2 do Brasil. Na maior parte dos estudos
brasileiros que lidam com a morte e o morrer, quando muito é apenas
referenciada.
Para este estudo, os códigos do luto e da morte buscam ser
apreendidos no seu processo de mudança. Parte-se da hipótese de que a
morte e sua relação com o mundo dos vivos no Brasil parece ter sido
capturada por códigos outros que não os de uma sociedade relacional,
estudada por Roberto DaMatta (1987) no início dos anos oitenta. O
distanciamento em relação ao morto e aos que o perdem parece ser a
característica principal da nova sensibilidade que começa a se formar,
tornando-se uma tendência cada vez mais nítida, na sociedade brasileira
urbana dos últimos dez anos, isto é, entre os anos de 1991 a 2000. A
manifestação pública da dor individual torna-se mais e mais estranha ao
cotidiano do homem comum, embora conviva ainda com a indignação por
esse estranhamento.
A exposição pública do sofrimento se vê mesclada por uma
condenação velada da dor em público. A ambivalência parece predominar.
No conjunto das relações sociais a tendência parece ser a de uma
reprovação ao luto público, como se a dor pessoal de uma perda
contaminasse (ELIAS, 1989) os outros com a presença da morte.
Quem sofre uma perda parece vivenciar uma situação de ao mesmo
tempo que se indigna por não obter a solidariedade esperada, por se
encontrar só em seu sofrimento, se impor a si mesmo uma censura,
recolhendo a sua dor, internalizando o seu sofrimento, tendo vergonha do
seu estado (PINCUS, 1989). O trabalho de luto, como é chamado pela
2 É importante percorrer os trabalhos de Beauvoir (1982, 1984 e 1987), Kubler-Ross (1969 e 1974) Pincus (1989), Elias (1989), Paz (1984), entre tantos outros, para uma visão do
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
6 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
literatura médica e psicanalítica (FREUD, 1992; KLEIN, 1940; ABRAHAM,
1970; THOMAS, 1987; GIRON, 1983; LAGACHE, 1938; RUBINSTEIN,
1995, KALDESTAD & DANBOLT, 1991, SOURSIS, 1994, LEEP, 1968, entre
outros), passa a ser muito mais lento, possibilitando o surgimento da anomia
(DUVIGNAUD, 1973) e da condenação pessoal. A idéia de fracasso e de
desilusão com o mundo e com os outros parece sobressair com mais nitidez
(JANKÉLEVITCH, 1974).
Outra hipótese que percorre as inquietações da pesquisa interroga se
o luto, enquanto expressão social e enquanto resultado desse processo
ambivalente de atitudes que acompanha as mudanças de valores, não
amplia as bases da solidão individual, sendo encoberto por uma espessa
malha que delimita os contornos e o expulsa para dentro da pessoa. A
solidão (KLEIN, 1991), o isolamento, parecem ministrar o compasso dessa
sinfonia. O sofrimento, o processo de internalização do morto em si que
compõe o trabalho do luto, nostalgicamente parece processar este ritual
interior. Império da memória, dos espaços de singularização e
uniformização, dos tempos cíclico e linear, que em ondas decodificam o
natural dos códigos socialmente impostos, pondo em evidência as normas e
as leis morais como uma espécie de negócio de morte (CANETTI &
ADORNO, 1988; KOURY, 1993; MATOS, 1987, entre outros).
A idéia do fracasso, da desilusão do sujeito no ritual introspectivo de
sua dor, parece impor códigos de naturalização e anonimato à morte e ao
processo social do sofrimento, evidenciando uma fragmentação de
sentimentos coletivos que se expressam numa espécie de receio social de
contaminação (ELIAS, 1989) e na vergonha de sentir-se enlutado. Parece
condenar o trabalho de luto a realizar-se como unicamente desilusão do
tratamento do luto e do morrer no ocidente.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
7 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
mundo, como expressão solitária de um sujeito em descompasso, em
desagregação, em seu sofrimento, do social.
Efeito de decepção e engodo, da morte como universo do silêncio, a
dor do luto constrangida e envergonhada no interior do sujeito parece
revelar-se como nostalgia do ausente configurado em um tempo e em um
espaço singular e solidário, perdido na memória individual (HALBWACHS,
1968; POLLAK, 1985) do enlutado. Um estado de sofrimento moral parece
ser criado, como resultado das inibições impostas ou acarretadas como
precaução ou como resultante de um empobrecimento de energia do ego
(FREUD, 1976, p. 111), que paralisa toda a iniciativa de decisão e ação do
sujeito em um processo de ideação pessimista.
O interesse deste trabalho, assim, é o de compreender como
habitantes de centros urbanos no Brasil expressam o sentimento de luto e
identificam mudanças e permanências nos costumes e rituais da morte e do
morrer. Percorreu-se, para a sua realização, os estreitos e difíceis caminhos
que entrecruzam a Psicanálise e as Ciências Sociais, como forma de
perceber o processo de elaboração e formação do Eu, da pessoa singular e
da interação social, fundamento da sociedade. O estudo do fenômeno do
luto, enquanto compreensão do sofrimento causado por uma perda como
instância individual e social, faz parte assim de uma Sociologia da Emoção
(SARTRE, 1972; KOURY, 1998a e SCHEFF, 1988 e 1998), que trata da
construção dos códigos intrínsecos do segredo (SIMMEL, 1986) que
fundamentam as bases da experiência da pessoa e da sociedade.
Para a sua realização, em um primeiro momento, foi realizado um
levantamento crítico de uma bibliografia referente à Sociologia, à
Antropologia, à Filosofia e à Psicanálise, priorizando na leitura o processo de
formação da pessoa enquanto ser individual e social, e dos processos de
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
8 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
individuação e da formação de imaginários e segredos que fundamentam e
enraízam atitudes, valores e comportamentos. Deu-se ênfase na revisão
bibliográfica à questão dos sentimentos enquanto expressão social, e a
literatura sobre representação social da morte e do sofrimento causado por
uma perda.
Em um segundo momento, este trabalho debruçou-se em uma
pesquisa comportamental, através das colunas de regras de etiquetas
existentes em magazines dirigidos a um publico feminino, - como Cláudia,
Desfile, Elle, entre outros, baseadas em respostas a leitores, - buscando
rastear as possíveis respostas apontadas pelos colunistas referentes às
atitudes contemporâneas em relação ao luto e à morte no Brasil, bem como
a reportagens especiais em relação ao tema saídas na imprensa em geral,
além dos manuais de etiqueta produzidos a nível nacional e internacional.
Esse material foi cruzado, em alguns casos, com a literatura ficcional
brasileira que abordasse direta ou indiretamente o tema em questão, e com
a literatura das Ciências Sociais e Psicanálise em revisão.
Em um terceiro momento, a pesquisa comportamental e a revisão da
literatura foram cruzadas com a análise extraída dos dados fornecidos por
um questionário distribuído via correios, e por uma série de entrevistas
abertas sobre a morte e o luto com pessoas de classe média nas diversas
capitais de estados do Brasil, que sofreram o processo de perda nos últimos
dez anos, isto é, dos anos de 1991 a 2000.
Não é demais afirmar que o universo desta pesquisa é o Brasil urbano
atual. Embora, para entendê-lo, seja necessário realizar incursões históricas
sobre o processo de mudanças de atitudes e mentalidades em relação à
morte e ao luto no país, e no mundo ocidental do qual faz parte.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
9 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
A pesquisa
Durante os anos de 1997 a 1999 foram realizadas em todas as
capitais de estados brasileiros3, aplicações de questionários com 1304
informantes, e 259 entrevistas abertas com uma segunda amostra a partir
dos 1304 respondentes, com o sentido de aprofundar as reflexões iniciadas
nos questionários.
O objetivo central foi a busca de compreensão das atitudes recentes
em relação ao fenômeno do luto no Brasil. Como objetivos específicos,
necessários para o alcance do objetivo central, procurou-se, entre outros,
atentar para: a) o entendimento de como foi internalizado enquanto processo
simbólico o significado social do sofrimento no imaginário brasileiro; e b) por
quais mudanças tem passado o fenômeno do sofrimento causado pelo luto
até os dias atuais, e que reações tem enfrentado junto aos homens comuns
das camadas médias urbanas.
Interessa a este livro verificar o lado público do sofrimento de quem
fica no momento seguinte imediato à constatação da morte. Compreender as
expressões de dor, de desespero, de desamparo, ao lado da reunião social
onde parentes e amigos presentes bebem, comem e conversam o morto. O
entendimento desse ritual solitário do sofrimento e do ritual social da
despedida se entrecruzando em gestos, expressões e atitudes, em
constantes movimentos de mudança e permanência é a base de inquietação
deste trabalho.
A hipótese de trabalho inicial foi construída a partir de um dado
comum nas pesquisas em Ciências Sociais de que quanto menor o centro
urbano mais tradicional seriam os costumes e as expressões de sentimento
3 Vinte e sete cidades ao todo, ver Quadro n. 01
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
10 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
local, por seus membros se encontrarem envolvidos em relações
comunitárias intensas e presos ainda a fortes tradições familiares, religiosas
ou de cunho moral. Quanto maior o centro urbano, ao contrário, as relações
individualistas seriam ressaltadas pela população e mais dinâmicas seriam
as mudanças nos hábitos locais das comunidades e indivíduos estudados,
ligados ao trabalho de luto e as representações sobre a morte e o morrer4.
Esta hipótese inicial foi sendo modificada no decorrer da análise.
O dinamismo das relações sociais associadas aos grandes núcleos
urbanos tem por trás um modelo de cidade erguido nos finais do século XIX
e que consolidou-se durante todo o século XX. Neste modelo, o espetáculo
do anonimato pelo e através do grande conglomerado populacional
quebrava barreiras da tradição pela destruição de práticas rituais
comunitárias, libertando os indivíduos das amarras sociais e os fazendo
encarar ou enfrentar a sociedade como um desafio a ser vencido por e
através de suas próprias forças e representações.
4 As cidades pesquisadas, capitais de estados do Brasil, são profundamente desiguais
enquanto dado populacional, por exemplo. Os resultados preliminares do censo 2000, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, mostram para a década de 1990, os seguintes números de habitantes por capital de estado nacional: Rio Branco, Acre, 252.800 habitantes; Maceió, Alagoas, 796.842 habitantes; Macapá, Amapá, 282.745 habitantes; Manaus, Amazonas, 1.403.796 habitantes; Salvador, Bahia, 2.440.886 habitantes; Fortaleza, Ceará, 2.138.234 habitantes; Brasília, Distrito Federal, 1.954.442 habitantes; Vitória, Espírito Santo, habitantes; Goiânia, Goiás, 1.090.581 habitantes; São Luís, Maranhão, 867.690 habitantes; Cuiabá, Mato Grosso, 482.498 habitantes; Campo Grande, Mato Grosso do Sul, 662.534 habitantes; Belo Horizonte, Minas Gerais, 2.229.697 habitantes; Belém, Pará, 1.279.861 habitantes; João Pessoa, Paraíba, 594.922 habitantes; Curitiba, Paraná, 1.586.898 habitantes; Recife, Pernambuco, 1.421.947 habitantes; Teresina, Piauí, 714.318 habitantes; Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 5.850.544 habitantes; Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 1.359.932 habitantes; Natal, Rio Grande do Norte, 709.422 habitantes; Porto Velho, Rondônia, 334.585 habitantes; Boa Vista, Roraima, 200.383 habitantes; Florianópolis, Santa Catarina, habitantes; São Paulo, São Paulo, 10.406.166 habitantes; Aracaju, Sergipe, 460.898 habitantes e Palmas, Tocantins, 136.554 habitantes. Os dados preliminares divulgados pelo IBGE apontam ainda que no final dos anos da década de 1990 houve um aumento significativo da população brasileira que vive nos perímetros urbanos, 81,2%, contra 75,6% no início da década, isto é, em 1991.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
11 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
A idéia de metrópole como um espaço onde as tradições seriam
constantemente desfeitas e remontadas em novidades crescentes, e onde
existia uma tendência a uma presentificação das relações sociais que, por
sua vez, se encontravam sujeitas a uma lógica de mercado e de
individualidade extremadas permeou a representação das cidades modernas
em muitos autores que buscaram estudar e compreender a modernidade.
De Simmel e Tönnies a Weber, passando por Durkheim, Marx e a Escola de
Frankfurt, nos escritos de Benjamin e Adorno, foram aferidas nuanças sobre
este modelo de cidade onde a dissolvência do homem público cedia lugar
cada vez mais a um indivíduo interiorizado e preso a um espaço privado de
si mesmo.
A polaridade entre idéia de comunidade e de sociedade ficaria assim
como um pano de fundo comum à idéia de que pequenos grupos societários,
a comunidade, seriam um locus de tradição, ao passo que os grandes
grupos societários, a sociedade, encarnada aqui através da forma de
metrópole, seriam o local ideal para o desenvolvimento do individualismo e
do indivíduo interiorizado e privado.
Teve-se o cuidado, neste trabalho, porém, de não considerar as
referências maior e menor presentes na hipótese inicial, como dois pólos
antagônicos, mas de observá-las em relação, como frutos desiguais de
processos de modernização por que passou e vem passando a sociedade
brasileira a partir dos anos de 1970 aos dias atuais.
Qual foi a surpresa ao verificar através dos dados levantados que não
existe um processo de equivalência entre maior centro urbano e menor
número de respostas favoráveis a práticas ritualísticas ligadas ao luto e aos
processos da morte e do morrer ou presas a tradição, ou vice versa. O
conjunto de respostas enviadas pelas diversos centros urbanos brasileiros,
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
12 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
capitais dos vinte e sete estados que compõem a nação, são muito próximos
nas suas indagações, inquietações ou indignações a respeito dos costume e
hábitos ligados à pratica do luto e da morte no Brasil.
O que encaminhou o trabalho para o abandono da hipótese inicial e
para um novo tipo de indagação sobre o processo em que se debate a
população urbana brasileira em seu conjunto em relação ao uso de hábitos e
costumes e suas representações ligadas ao ritual da dor e da morte. Esse
novo conjunto de indagações deixou de lado as relações entre os conceitos
de tradicional e moderno e buscou ressaltar as conformações e os modos de
vida nacional enquanto expectativas de uma população urbana sujeita aos
mesmos estímulos e práticas de ação, e as adequações locais e regionais
experimentadas e assumidas por cada capital em função de sua formação
específica enquanto cidade e enquanto origem.
Após os anos de 1970 e principalmente após os anos oitenta o Brasil
passa por uma série de transformações estruturais a nível da cultura que
torna as expectativas e o conjunto de experiências reais e imaginárias sobre
regras de comportamento e ação comuns a todo o complexo urbano da
nação. A posição frente a vida e os hábitos e costumes da população
permitem pensar em um padrão nacional, embora com coloridos e
especificidades comuns a cada região e a cada cidade específica.
As conformações urbanas, assim, se respondem aos mesmos
estímulos e freqüentam o mesmo imaginário, o remetem, por sua vez, para
as cores e padrões específicos locais. Local e nacional deste modo vivem
uma constante inter-relação e um estado de reformulação contínua que, se
de um lado enfraquece as bases da tradição enquanto elemento sentimental
de resguardar práticas específicas locais, por outro lado, refere-se cada vez
mais a práticas específicas locais para pensar o nacional e o mundo.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
13 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
A modernidade deste modo parece configurar práticas e pensamentos
cada vez mais intricados, em uma rede nacional de referência comum,
porém pensados e agendados a partir de cada tecido organizacional local.
Seja como choque ou conflito inevitável com o costume e a moral
sedimentados, seja ainda como conformação de novos hábitos e práticas
impessoais da sociabilidade, emergente nos últimos trinta anos no país. Um
e outro servindo como contraponto as formas de compreensão possíveis das
configurações atuais do homem urbano brasileiro.
Este trabalho, contudo, prender-se-á mais do que nas possibilidades
de adaptação dos sentimentos e indagações comuns a cada local, nas
próprias expectativas e experiências reais e imaginárias do homem urbano
brasileiro contemporâneo, tomado como um todo. Não se deterá no colorido
local de cada cidade, a não ser quando necessário exemplificar alguma
atitude ou reação particular e específica.
O campo de análise investigado estará delimitado assim às estruturas
comuns informadas pelas respostas dos entrevistados às questões
formuladas. Anota-se aqui mais as semelhanças das inquietações que
norteiam o desvendar do homem urbano nas cidades brasileiras de hoje, do
que as formas de apreensão deste sentimento comum e as adaptações
possíveis por cada região, estado ou cidade específica.
O conjunto dos dados oferecidos à análise por um tipo de
instrumento, - o questionário, - e a sua forma de aplicação, por via indireta,
sem contato pessoal do entrevistador com o entrevistado, através de um
serviço de mala direta, possibilitou também um conjunto de indagações que
podem ampliar o leque compreensivo do alcance desse tipo de busca. Não é
o objetivo deste trabalho deter-se em uma análise minuciosa dos limites e
das oportunidades analíticas oferecidas por esta técnica de pesquisa e sua
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
14 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
forma de utilização, o qual pode ser encontrado em vários estudos
específicos como os de Nogueira (1972), de Frankfort-Nachmias &
Nachimias (1992), de Neuman (1994), entre outros. Ë necessário contudo
deter-se na particularidade da amostra conseguida através do envio
espontâneo de respostas por uma população cujo controle escapava das
mãos do pesquisador.
Os 1304 questionários válidos retratam uma população urbana de
uma faixa etária de 15 a mais de 60 anos que teve uma experiência direta ou
não com o trabalho de luto, - objeto principal da pesquisa para o qual o
questionário foi aplicado. As respostas sobre os significados intrínsecos ao
processo do luto vivido ou imaginado desta forma, ampliou o leque de
informações não só para a experiência pessoal do sofrimento, mas para a
experiência imaginária da dor proporcionada pelo luto e pelo morrer. O que
conformou as bases analíticas para o pesquisador, enquanto formas
simbólicas sociais que estão além da experiência particular e privada de
alguém, mas que preenchem todo um momento ritual de significância
pessoal e grupal, movidos por um conjunto de regras e etiquetas de ação
sobre o comportar-se no momento de luto ou em relação a uma pessoa
enlutada, ou a ausência deste.
A apreensão dos significados apresentados pelo conjunto das
respostas atravessaram inquietações que estão além do ato individual em si.
Revelaram atitudes, representações e formas imaginárias que possibilitaram
um adentrar-se nas conformações estruturais que norteiam o
comportamento do homem urbano no Brasil de hoje. Os impasses, os
conceitos, os preconceitos, a ambivalência ou o conteúdo de verdades e
normas de ação comportamental com que se representam, se movimentam
e se relacionam os entrevistados.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
15 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
O elenco de possibilidades demonstradas pelas respostas permitiu,
assim, traçar um perfil do comportamento urbano brasileiro, nos limites
objetivos de um questionário padrão. Como se sabe, o problema do uso de
questionário como instrumento de pesquisa e análise é o seu caráter
eminentemente fechado de respostas o que, se por um lado permite a
elaboração de um inventário de possíveis ações e reações em relação a
hábitos e costumes, por outro lado, não aprofunda verticalmente as questões
emitidas.
Para um melhor uso das questões presentes, foram configurados
códigos facilitadores para a análise a partir das respostas emitidas para cada
questão, e realizados os trabalhos de tabulação dos 1304 questionários.
Trabalhou-se, assim, com um conjunto questões organizado em torno de um
núcleo comum: as representações sobre o luto e sobre a morte e o morrer.
Os dados às questões emitidas pelo questionário, transformadas em
códigos analíticos, por sua vez, serviram em um segundo momento para a
construção de um roteiro aberto de entrevistas com uma parte selecionada
dos informantes que se permitiram responder ao questionário. Foram
realizadas 259 entrevistas abertas com indivíduos dos vinte e sete centros
urbanos pesquisados.
Selecionados a partir dos questionários respondidos, foram
posteriormente contatados pelo pesquisador através de carta postal ou
telefone e agendadas entrevistas a serem realizadas em datas posteriores
previamente marcadas. Para cada cidade o pesquisador passou três a cinco
dias envolvido com o elenco de entrevistados que se dispuseram a falar de
sua experiência de sofrimento pela vivência de um luto de um ente querido.
Em muitos casos, outros indivíduos que não haviam respondido o
questionário mais que foram indicados pelos informantes entrevistados
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
16 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
foram contatados ou procuraram o pesquisador para relatarem o seu
processo de luto.
Um diário de campo foi elaborado constando da experiência do
pesquisador em cada entrevista e em cada cidade pesquisada.
Convém salientar a dificuldade de um trabalho desse tipo por envolver
questões delicadas naqueles que se permitiram dispor como informantes à
pesquisa. Tanto assim que as entrevistas, aplicadas sobre uma amostragem
dos questionários, foram realizadas apenas pelo pesquisador principal. A
diferença dos questionários respondidos diretamente pelos informantes.
Nos questionários buscou-se, principalmente, um discurso mais
abrangente do informante a respeito do processo de morte e do morrer e dos
processos de luto. Por discurso mais abrangente se está entendendo, aqui,
como aquele enquadrado em respostas mais conceituais sobre a realidade
do luto e da morte, e dos rituais e cerimonias que os envolvem. Apesar de
situar o sofrimento como elemento norteador do roteiro, o questionário
esteve mais preocupado em delimitar as fronteiras do imaginário sobre os
significados simbólicos e ritualísticos desse sofrimento, que aparece, mesmo
que se trate de uma vivência pessoal, ou como o sofrimento experimentado
por um outro abstrato, tornando possível falar sobre ele sem necessidade de
uma verticalização na vivência própria desse processo do informante.
Mesmo assim, muitas dificuldades foram encontradas pela
nebulosidade das fronteiras entre o falar hipotético sobre a morte, o morrer e
o luto, e o falar da vivência desses significados a cada informante.
As entrevistas, por sua vez, buscaram aprofundar o sentido expresso
no sofrimento pessoal de quem viveu um processo de perda. Uma viagem
discursiva de difícil realização por tocar em sentimentos, em muitos casos,
colocados sob o signo de esquecimento ou sob a forma de silêncio do
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
17 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
informante para si próprio. Se dispor a falar com um desconhecido sobre
uma vivência significativa de dor causada pelo sofrimento pessoal de perdas
de entes queridos, e tocar em assuntos esquecidos ou silenciados, não foi
um processo de fácil realização para os informantes.
Ofereceram-se ao entrevistador com uma confiabilidade conflitante,
colocando o entrevistador em cheque durante todo o processo de entrevista,
seja através da teatralização de seu discurso, seja através da minimização
de sua experiência. O entrevistador mesmo, a cada momento, pôs em
cheque a si mesmo, na medida em que o sofrimento do outro o invadiu como
silêncios que entravam em conflito com os processos pessoais de sua
sensibilidade ao ato geral da dor e à reflexão específica do sofrimento de um
outro presente que se dispôs como informante.
A cumplicidade distanciada e conquistada a cada entrevista requereu
do entrevistador um adestramento temático e uma postura confessional que
permitisse ao informante sentir-se confiante sobre o que falava, e da
significância de sua narrativa, independentemente da forma, do modo, da
intencionalidade e da tensionalidade discursiva expressa. De difícil
realização5, as entrevistas não poderiam ser realizadas por outro membro da
equipe que o pesquisador principal.
5 Um exemplo anedótico é dado aqui, para demonstrar a dificuldade do lidar com o processo
de sofrimento na realização de um trabalho de luto, como objeto de pesquisa. Uma amiga pessoal do pesquisador, antropóloga, logo no início desta pesquisa predispôs-se a responder algumas questões sobre um processo de luto por ela vivido pela morte do seu irmão durante a ditadura militar. Passado algum tempo, acontece um encontro com o seu marido em um dos congressos nacionais das Ciências Sociais e, neste encontro, o pesquisador é informado da morte da mãe de sua colega, e do seu abatimento e sofrimento pessoal. Neste mesmo dia, no mesmo congresso, vê a amiga, se direciona para ela e dá as condolências de cortesia, pela morte de sua genitora. Ela o olha, e rispidamente diz: "Qual é, Mauro, você já está querendo fazer uma entrevista sobre o meu luto? ... ". A situação é de um enorme constrangimento, embora compreendendo a situação, foi repetido os votos de afeto e do respeito pela sua dor, e um hiato de incomunicabilidade parece ter sido criado. Os papeis de pesquisador e de amigo ao serem confundidos, levou a uma espécie de mal
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
18 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
As entrevistas realizadas tiveram uma duração média de quatro horas
e meia, algumas durando quase oito horas sem intervalo. Muitas com difícil
começo, com uma dificuldade imensa de se estabelecer as bases de
confiabilidade necessária para o início do depoimento, outras de quase
impossível finalização. Em momentos específicos a intimidade formada e
estabelecida criava armadilhas ou ardis, os limites de cada narrativa sendo
ultrapassados pela disponibilização de um ouvir atento do outro (o
entrevistador), e pelo esforço de se adentrar nesse mundo fragmentado de
silêncios e esquecimentos que, em muitos casos se pronunciavam pela
primeira vez, até para os próprios informantes.
Questionário e entrevistas permitiram assim, a construção de um
mapa do sentimento brasileiro sobre o luto e o morrer, bem como
possibilitaram a elaboração de um roteiro compreensivo para uma análise
sobre a relação luto e sociedade no Brasil contemporâneo.
Caracterização dos entrevistados
Para uma melhor compreensão sobre a questão do luto, da morte e
do morrer aqui trabalhados, foi necessário a realização de um levantamento
dos dados que permitissem uma caracterização social e econômica do
universo da pesquisa. Os dados de caracterização trabalhados foram os
referentes ao sexo, idade, estado civil, escolaridade, profissão, renda e
religião presentes na amostra pesquisada.
Os questionários recebidos e considerados válidos obtiveram uma
equivalência relativa ao número total de questionários enviados para cada
estar momentâneo da relação, quase formal, de condolência pública pelo luto de alguém amigo.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
19 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
cidade, de acordo com o número de habitantes. O que proporcionou, deste
modo, um equilíbrio na análise das relações entre as cidades pesquisadas6,
onde se encontra retratado o total de respostas de cada cidade e o
percentual da amostra em relação ao número total de questionários válidos.
A amostra indicou um percentual de respostas de 60,97% de
indivíduos do sexo feminino, contra 39,03% do sexo masculino7. Este
conjunto distribuiu-se em quatro faixas etárias: de 15 a 25 anos, 14,50%; de
26 a 39 anos, 31,37%; de 40 a 59 anos, 35,73% e de 60 anos e mais, com
18,40% do total dos entrevistados. Ao se unir as duas faixas etárias
intermediárias8, pode-se afirmar que houve uma concentração acentuada de
respostas oriundas de indivíduos situados nas faixas etárias de 26 a 59
anos, o que satisfez um total de 67,10% dos entrevistados.
O universo pesquisado também se caracterizou por um percentual de
50% de indivíduos casados, 8,59% de divorciados ou desquitados e 12,35%
de viúvos, contra 29,06% de solteiros9.
No que diz respeito a religião, contudo, 92,49% dos entrevistados
responderam freqüentar alguma Igreja, contra apenas 7.51% que afirmaram
não ter qualquer tipo de religião.10 Aos que responderam possuir algum tipo
de religiosidade, a grande concentração de respostas recaiu sobre o
freqüentar a religião católica, 68,63%, contra 14,42% de religiões
protestantes e evangélicas (Batista, Assembléia de Deus, Igreja Universal do
Reino de Deus, Renascer, entre outras), e 9,44% de outras religiões
(Budista, Espírita, Umbanda e Candomblé, entre outras)11.
6 Conforme pode ser visto no Quadro N. 1, anexo. 7 O que pode ser visto no Quadro N. 2, anexo.
8 Como se pode verificar em uma rápida olhada no Quadro N. 3, anexo.
9 Conforme pode ser visto no Quadro N. 4, anexo.
10 Conforme pode ser visto no Quadro N. 5, anexo.
11 Conforme pode ser verificado no Quadro N. 6.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
20 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Embora esperado, não deixa de ser interessante o fato do maior
número de respostas do universo pesquisado recair entre os que freqüentam
a Igreja Católica. Interessante não apenas pelo fato de ser tradicionalmente
a mais significativa em termos de adeptos na história do Brasil, mas também
por se configurar em um tipo de religião que, por muito tempo, figurou como
a religião obrigatória no país e ainda detém vínculos quase oficiais e em
muitos casos exclusivos com o Estado nacional, como foi o caso da recente
obrigatoriedade do ensino católico nas escolas públicas brasileiras
decretada, no ano 2000, pelo atual governo de Fernando Henrique Cardoso.
Outro elemento que ampliou o interesse do pesquisador para o fato
mencionado foi o fato de o catolicismo ser a Igreja que detém os laços mais
frouxos em relação aos fiéis e aos costumes e rituais ligados ao exercício
social cotidiano. Apesar, é claro, de a mesma ter sofrido modificações de
suas atitudes, a partir da metade da década de 1990, com a emergência e
prática do segmento carismático no seu interior, como uma tendência que
busca recuperar os fiéis através de um retorno ao sagrado e pelo fanatismo
religioso associado a um processo de mercantilização midiático.
Diferente de outras religiões, como o conjunto aqui denominado de
religiões evangélicas, que primam por um rigoroso controle na vida dos seus
fiéis, e uma grande dissociação entre práticas religiosas e práticas cotidianas
da vida comum. Parecendo impor a estas últimas uma submissão as
primeiras, consideradas como principais e como norteadoras moral dos seus
fiéis.
Classe Média
Uma população com renda entre 06 até 20 salários mínimos, e com
uma educação formal situada entre o segundo grau completo e superior,
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
21 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
apresentou-se ao trabalho, com um total de 62,87% dos indivíduos que
responderam e devolveram os questionários considerados válidos para a
pesquisa, bem como da amostra posterior para o aprofundamento em
entrevistas abertas. Em sua maior parte constituída por profissionais liberais,
comerciantes, empresários e militares, sem esquecer, contudo, uma grande
participação de aposentados, donas de casa e estudantes. O número maior
de respostas, que retratam o nível de renda, de escolaridade e o perfil das
profissões dos informantes, assim, vieram de entrevistados situados no que
se convencionou aqui chamar de classe média urbana12.
A configuração de um problema sobre a não similitude da distribuição
dos entrevistados segundo as faixas de renda e a escolaridade a partir dos
padrões existentes na sociedade brasileira, contudo, revelou-se para este
trabalho em um elemento importante de análise. A motivação da classe
média em responder a esse tipo de questionário tornou-se um dado
interessante por, aparentemente, ser entre esse segmento que se
configuram uma maior sensibilidade ao novo e a uma ambigüidade em
relação aos padrões de tradição a que potencialmente estão inseridos
enquanto habitantes de cidades específicas.
Gilberto Velho (1986, pp. 86 e 89) trabalhando com segmentos de
classe média da cidade do Rio de Janeiro revelou os desencontros dos
indivíduos que a informam diante do domínio público e uma tendência à
centralização em torno de um conjunto de valores em que a sociabilidade de
caráter mais intimista é o valor chave de compreensão. A tensão entre os
espaços público e privado parecem nortear assim a avaliação do ser sujeito
no mundo, através de uma fragmentação acelerada das esferas de vida
social e cultural em que estão inseridos.
12
Conforme pode ser verificado através dos Quadros N. 7, N. 8 e N. 9, anexos.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
22 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
A classe média desta forma, ao se colocar prontamente para as
respostas solicitadas em um questionário sobre a relação luto e sociedade,
mais do que as outras de status social mais baixo e mais alto, parecem
manifestar a sua inquietação com os processos por que passa a sociedade
nacional nestes últimos trinta anos. Processos que a atinge, a tenciona e a
coloca em choque com as regras de etiqueta que parecem não mais
satisfazer as práticas cotidianas, mas que ainda se encontram consolidadas
no imaginário social e na expectativa de cada um, individualmente, enquanto
conjunto padrão de atitudes morais.
Se entende aqui por etiquetas, um conjunto de regras repassadas a
um indivíduo ou grupos de indivíduos, por meio do aprendizado sobre como
comportar-se e sobre qual o verdadeiro lugar de cada pessoa no intercurso
social diário. Este conjunto de regras culturais define em última instância as
necessidades sociais aceitas e as inaceitáveis e, de algum modo, o que o
indivíduo pode ou deve fazer a cada momento ou em cada relação dada.
A diferenciação das esferas da vida social cotidiana (SIMMEL,
1986a), ao inserir novos elementos que provocam a emergência de atitudes
mais individualizantes nas relações sociais, contra atitudes mais
comunitárias e tradicionais, parecem ter gerado na classe média,
principalmente, mais do que nos demais segmentos sócio econômicos, um
desconforto processual e uma ambivalência de sentimentos e significados
relacionados com as formas de viver em sociedade. Em especial àqueles
ligados aos ritos de passagem traumática, como os que se configuram com
os rituais da morte e do morrer e os rituais do sofrimento.
O que pode significar um tipo de necessidade de exposição das
trajetórias pessoais e dos desencontros sociais em um assunto considerado
tabu. Pode ter o significado também da angústia de não ter respostas
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
23 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
adequadas sociais à questões que são tratadas freqüentemente como
individuais e subjetivas, e portando como não fazendo parte do dia a dia dos
sujeitos em relação na sociedade mais ampla. Pode ter o sentido, ainda, da
solidão que parece mascarar o cotidiano de quem sofreu a experiência do
processo doloroso da perda de entes queridos. Qualquer dos caminhos
sugeridos é possível de configurar como um indicador, entre outros, dos
impasses porque vem passando a sociedade brasileira urbana nos últimos
trinta anos.
É sobre estas camadas médias urbanas, prioritariamente, assim, que
este livro irá se debruçar, na sua busca de compreensão dos processos e
mudanças comportamentais por que passou e continua a passar a
sociedade brasileira, neste início de século. Tendo por base analítica o ritual
do sofrimento de um indivíduo que sofreu a perda de um ente querido, ou as
representações sociais sobre os significados do processo de luto.
Este livro é composto por cinco capítulos. O primeiro, intitulado A
Constituição de uma Nova Sensibilidade, como o título já indica, indaga a
conformação atual do homem comum, urbano, de classe média, no Brasil,
através da compreensão de um conjunto complexo de práticas, usos e
costumes sociais que intermediam e orientam o agir individual de quem sofre
uma perda. Entende a construção social do sofrimento através da teia de
ilusões e expectativas que conformam o sujeito individual e social, e de
como a sociedade cria e estabelece os processos integrativos necessários à
sobrevivência do social a partir dos indivíduos.
O segundo capítulo, possui o título de A Morte e o Morrer. Discute as
noções de morte e do morrer e as modificações por que vem passando a
sociedade brasileira nos últimos trinta anos finais do século XX. Para tal, faz
uma remontagem histórica sobre as atitudes perante a morte e o morrer na
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
24 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Europa e no Brasil, para compreender como os indivíduos entrevistados se
colocam em relação aos dois processos no Brasil atual. Como encaram o
sentimento de luto, e que modificações eles apontam para a história recente
dos costumes funerários na cultura brasileira.
O terceiro capítulo, por sua vez, discute A Perda e O Sofrimento
enquanto categorias analíticas expressas pelos informantes. Nele se procura
entender como os brasileiros urbanos, de classe média, estão vendo as
mudanças e inquietações na vivência de uma pessoa que sofreu uma perda,
ou dos outros relacionais. Discuti-se, no decorrer do capítulo, o processo de
ação social e a construção de significados e tentativas de nomeação, reais,
imaginárias e relacionais sobre a perda, o luto e o sofrimento, a partir dos
depoimentos de informantes.
O quarto capítulo chama-se Viver o Luto. Nele, se compreende como
os informantes vêem, sentem e exprimem a vivência do luto, e as
dificuldades e facilidades das relações sociais advindas da experiência deste
processo, no Brasil urbano do anos de 1970, principalmente, até a entrada
do século XXI. O quinto capítulo, por fim, intitulado de Tempos do Luto,
compreende como os informantes entendem o processo de luto, através de
uma comparação com os aspectos sociais e pessoais, vividos ou por eles
imaginados, do passado recente e do presente brasileiro.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
25 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Capítulo 1
A Constituição de uma Nova
Sensibilidade
"Não digam que isso passa, não digam que a vida continua, que o tempo ajuda, que afinal tenho filhos e amigos e um trabalho a fazer. (...) Não digam nada (...) Da minha vida sei eu". Lya Luft (1991)
Este capítulo procura responder a questão de como é sentido o luto
na sociedade brasileira urbana atual. Faz um contraponto entre o imaginário
do homem comum e as mudanças sociais ocorridas em relação ao trato da
morte e o sofrimento por uma perda no Brasil. Busca compreender as
relações entre luto e sociedade. O ritual do sofrimento é o ponto central da
reflexão.
O conjunto complexo de práticas, usos e costumes sociais que
intermediam e orientam o agir individual de quem sofre uma perda, é a
definição aqui utilizada para o termo ritual do sofrimento. A construção social
da dor e do sofrimento passa, deste modo, pelo emaranhado de ilusões e
expectativas formadoras do sujeito, e pelo como a sociedade cria e
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
26 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
estabelece os processos integrativos necessários à sobrevivência do social
a partir dos indivíduos13.
Interessa compreender, neste trabalho, como os indivíduos interagem
no social, seja como pessoas singulares ou como grupos, e como exercitam
no cotidiano a tensão entre o ser e estar socialmente definidos. Por ser, se
entende, aqui, o conjunto de representações afirmativas do eu enquanto
pessoa única e ao mesmo tempo integrante de um conjunto moral e, por
estar, o conjunto de regras e valores integrativos definidores da posição do
indivíduo na sociedade e da margem de suas expectativas no social.
Este capítulo, enfim, discutirá a questão de como é visto e sentido o
fenômeno do luto, através da criação de interseções entre o imaginário
individual e social, e as mudanças sociais e comportamentais vivenciadas no
trato da morte e do morrer no Brasil. Para tal, se valerá da análise de
expressões emitidas por regras de etiquetas desenvolvidas por colunistas
sociais em revistas nacionais dirigidas para um público com perfil de classe
média urbana, bem como das narrativas de informantes entrevistados e
dados do questionário padrão. Além de passar em revista conceitos
psicanalíticos aqui tratados e comentados à luz das Ciências Sociais.
Na coluna “Modos e Maneiras” de um magazine feminino (Claudia,
Maio 1994, p. 10), uma leitora descreve sua mágoa com a escassez de atos
de solidariedade recebidos. “De uma amiga ouvi, espantada, que ‘luto não
se usa mais’. Será verdade?”, e inquieta indaga: “O que se deve fazer
quando uma pessoa próxima de um amigo falece?”
A redatora da seção busca explicar a falta de solidariedade pela
sobrecarga de atividades e correria da vida atual, embora indique como
13
Ver, entre outros, para uma discussão metodológica sobre a dor e o sofrimento social: Burkitt, (1997); Koury, (1999); Mauss, (1974 e 1980) e Ricoeur, (1994).
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
27 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
correto uma manifestação discreta quando um amigo perde um ente querido.
O que pode ser na forma de uma rápida visita, um cartão, ou com a
presença no enterro ou na missa de sétimo dia.
A mágoa e a inquietação expressa pela leitora quanto a falta de
solidariedade ao sofrimento de quem sofre uma perda, e a resposta da
redação, mostram uma das possíveis formas atuais da vivência do luto no
Brasil. A recusa ou a expressão discreta de condolências a quem sofre uma
perda e o ritual solitário da dor causada pelo sofrimento em quem vivência
um processo de luto.
O isolamento do sofrimento individual tende a se fazer, assim, em um
movimento solitário e nostálgico de individuação. Processo onde se
mesclam a perda de sentido do mundo e o sentimento de exclusão social,
através do refreamento das ações de partilha do sofrimento alheio e o
mascaramento do morrer em quem fica.
A morte e sua relação com o mundo dos vivos parece ter sido
capturada por códigos outros que não os de uma sociedade relacional
estudada por Roberto DaMatta (1987) no início dos anos oitenta. O
distanciamento em relação ao morto e aos que o perdem parece ser a
característica principal da nova sensibilidade que começa a tomar forma,
cada vez mais nítida, na sociedade brasileira urbana14 dos últimos trinta
anos. A manifestação pública do sofrimento individual tende a tornar-se mais
e mais estranha ao cotidiano do homem comum, principalmente de classe
média, embora este conviva ainda com a indignação por esse
estranhamento.
O estranhamento da demonstração da dor e do sofrimento em público
parece vir se consolidando como tendência de universalização de uma nova
14
Que responde por mais de 80% da população brasileira, segundo dados do IBGE (2000).
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
28 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
sensibilidade no trato das emoções, particularmente do luto, no Brasil atual.
Os segmentos médios mais intelectualizados parecem ser os que mais
vivenciam tal tendência que, de certa forma, permeia a totalidade do social,
causando indignação, temor e ambivalência no comportamento brasileiro
médio. Embora práticas relacionais desindividualizantes continuem a existir
e sejam fortes ainda em diversos segmentos e instituições sociais
brasileiras15.
As respostas a pergunta sobre qual deve ser o comportamento de
uma pessoa em trabalho de luto, solicitada no questionário aos informantes,
indicam este sentimento de distanciamento público de expressões de
emoções, especificamente, aqui, em relação ao sofrimento vivido durante o
processo de luto, experimentado pela sociedade brasileira urbana atual. A
discrição foi indicada por 77,60% dos informantes, como o comportamento
ideal de um sujeito enlutado16. O ser discreto no trato de sua dor, no lidar
com o seu sofrimento, em público, é a tônica dominante de um discurso
expresso pelos informantes, que parece revelar a expressão de emoções
através do luto como uma espécie de vergonha. A expressão do sofrimento
parece anunciar ou denunciar a idéia de fracasso e de medo de ser visto
pelos outros através desta idéia.
Para 15,34% dos informantes, porém, o comportamento do enlutado
deve ser o de encontrar apoio na tradição que trata da questão do luto nos
diversos grupamentos e instituições sociais do que fazem parte. Para estes,
a tradição parece assegurar uma forma de assentamento social que
assevera o apoio a um sujeito especifico em uma crise vivida. O que permite
15
Sobre usos e costumes no trato da morte no Brasil ver, além do trabalho já citado de DaMatta, a coletânea organizada por Martins (1983), os estudos de Poliello, Pessoa e Pompa (1987), Rodrigues (1983) e Carneiro da Cunha (1978), entre outros. 16
De acordo com o Quadro N. 10, anexo.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
29 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
o desenvolvimento de mecanismos de legitimação e sustentação do
indivíduo em compasso de sofrimento na sociedade.
A não existência de um comportamento ideal para uma pessoa que
esteja vivendo uma situação de luto, porém, é informada, por sua vez, por
7.06% dos informantes. O comportamento do enlutado, assim, depende do
caso. Depende da proximidade da pessoa com o ente querido morto.
Depende, por exemplo, das relações afetivas, morais e ideológicas para com
ele, entre outros possíveis entornos que permeiam o sentimento e a forma
de expressão de um sujeito em uma experiência de luto.
Ser discreto, deste modo, não significa que o indivíduo não esteja
envolvido em seu sofrimento, que não viva a dor da perda do ente querido,
mas que este sofrimento é pessoal, e diz respeito apenas àquele que o
sofre. O sofrimento não interessando a ninguém mais do que a este alguém
personalizado que a vivencia.
A distância entre o sofrimento pessoal e o comportamento deste ser
em dor no espaço público é ressaltada na informação dos quase oitenta por
cento dos informantes sobre o comportamento discreto do enlutado, como
uma forma de se salvaguardar socialmente e livrar-se de afirmações sociais
que parecem ter o poder de possibilitar denegrir sua imagem pública.
A exposição pública do sofrimento se vê mesclada, assim, por uma
condenação velada do sofrer em público. A ambivalência predomina. No
conjunto das relações pessoais a tendência é de uma reprovação tácita ao
luto expresso publicamente, como se a dor causada pelo sofrimento pessoal
de uma perda contaminasse os outros com a presença da morte17.
17
Embora não seja objeto de análise neste ensaio, o luto social por figuras públicas no Brasil, como artistas, ídolos esportivos, políticos de expressão, parece ser diferente, merecendo estudo mais demorado. A dor pública parece, nesses momentos, agir como catarse da desilusão social e com o socialmente vivido enquanto regras e ações públicas.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
30 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Quem sofre uma perda parece vivenciar uma situação ambivalente
de, ao mesmo tempo, se indignar por não ter a solidariedade esperada e por
se encontrar só em seu sofrimento, e de impor a si mesmo uma censura,
recolhendo a sua dor para dentro de si e internalizando o seu sofrimento,
tendo vergonha do seu estado. O trabalho de luto passa a ser, desta forma,
muito mais lento, podendo levar à anomia e à condenação pessoal. A idéia
de fracasso e de desilusão com o mundo e com os outros tende, assim, a
sobressair com mais nitidez.
O luto como expressão social é encoberto por uma espessa malha
que, ao mesmo tempo que obscurece pelo estranhamento do outro e de si
próprio, possibilita delimitar os contornos de sua atuação como subjetividade
e o expulsa para dentro da pessoa. A solidão, o isolamento ministram o
compasso dessa interiorização.
O sofrimento, o processo de introjeção do morto em si, que compõe o
trabalho de luto, nostalgicamente processa este ritual de interiorização.
Situado como subjetividade, como império da memória pessoal do enlutado,
o sentimento da perda vem sendo encoberto socialmente pela vergonha da
exposição pública. Como intimidade que, ao mesmo tempo que recusa,
busca e sente falta da expressão social da solidariedade.
Norbert Elias, em seu estudo sobre O Processo Civilizador (1990 e
1993) discute o papel da emoção vergonha na conformação da sociabilidade
moderna e contemporânea européia. Afirma que a repressão à emoção foi
um elemento chave na constituição da civilização moderna. Desde o final do
século XVIII, e a partir do século XIX, principalmente, a base social do
decoro e da decência começou a ficar indizível, não nomeada, tornando-se
Lembrar, por exemplo, o luto público recente por figuras como Tancredo Neves, Ulisses Guimarães, Elis Regina, Ayrton Senna, Tom Jobim e Mário Covas.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
31 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
"... 'privada' e 'secreta' (isto é, reprimindo-a no indivíduo), enquanto fomenta
emoções negativamente carregadas – desagrado, repugnância, nojo – como
os únicos sentimentos aceitáveis em sociedade" (Elias, 1990, p. 147).
Para ele, as bases da sociabilidade da civilização moderna avançou
através de "uma conspiração do silêncio" (p. 151). Com isso ele quer afirmar
que as bases da formação de emoções, como a da vergonha e do asco, por
exemplo, são ao mesmo tempo produtos de processos sociais e históricos.
"Estas formas de emoção são manifestações da natureza humana em
condições sociais específicas e reagem, por sua vez, sobre o processo
sócio-histórico como um dos seus elementos" (p. 162).
Fala, deste modo, de uma "economia emocional" (p. 185) que
circunscreve as expressões intensas de sentimento no interior da pessoa,
através de uma exigência particularmente rigorosa de auto controle. Embora
não siga em linha reta e recheada de ambigüidades, a modernidade confina
na pessoa suas emoções, banindo-as do social "para o reino do segredo" (p.
185). Este processo de confinamento é realizado através da imposição no
indivíduo, desde a mais tenra idade, do aumento de uma postura reservada
perante as emoções, isto é, de uma definição da pessoa através da
exigência de um caráter discreto e do auto controle.
Sentimentos mistos, socialmente gerados, de vergonha e
repugnância, entram em luta no interior dos indivíduos através de proibições
apoiadas em sanções sociais (p. 189), e reproduzem-se como formas de
auto controle. Diferente da idade média, onde a emotividade mais forte do
comportamento era até certo ponto socialmente necessária, e constituía-se
como parte integral da vida social, na modernidade, a economia emocional
se faz através da exclusão. Para Elias (1990, p. 200) "é altamente
característico do homem civilizado que seja proibido por auto controle
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
32 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
socialmente inculcado de, espontaneamente, tocar naquilo que deseja, ama
ou odeia. Toda modelação dos seus gestos – pouco importando como o
padrão possa diferir entre as nações ocidentais no tocante a detalhes – é
decisivamente influenciada por essa necessidade".
Deste modo, todos os que saírem dos limites do padrão social são,
possivelmente, considerados "anormais" (p. 201). O que quer dizer que
manifestações socialmente indesejáveis passam a ser "ameaçadas e
punidas com medidas que geram e reforçam desagrado e ansiedade", e
passam a lutar com os desejos ocultos da e na pessoa. Para ele, os "auto
controles civilizadores", funcionando em parte automaticamente nos
indivíduos, através do processo de socialização, "são experimentados na
autopercepção individual como uma parede, quer entre o 'sujeito' e o 'objeto',
quer entre o seu próprio 'eu' e as demais pessoas (sociedade)" (p. 246).
Encapsulado os impulsos emocionais, estes se tornam ocultos de todos os
demais, "e, não raro, (visto) como o verdadeiro ser, o núcleo da
individualidade" (p. 247) na modernidade.
Daí a dificuldade da compreensão do sentimento vergonha, muitas
vezes confundido com o de culpabilidade, nas análises recentes do processo
civilizatório das nações ocidentais. Para Helen Lynd (1961) uma distinção
entre culpabilidade e vergonha tem que ser realizada. Nota que a
culpabilidade envolve atos específicos, realizados ou não, e é sentida,
usualmente, como específica e se encontra perto da superfície, isto é,
permanece próxima ao que uma pessoa fez. É uma emoção individualista,
reafirmada na e, ao mesmo tempo, reafirmando a pessoa como núcleo
independente, isolada em sua centralidade. A vergonha, por sua vez, se
interpõe sobre o que a pessoa é. Portanto, sendo uma emoção social que
reafirma a interdependência emocional das pessoas.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
33 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Na confusão do sentimento de vergonha, no interior da pessoa, o auto
controle é visto, muitas vezes, e assumido como culpa. O que provoca um
maior isolamento da pessoa em seu íntimo, aumentando a sua dificuldade
de expressão. A verbalização de sentimentos se torna, assim, interdita a não
ser como medida reparatória de um mal estar permanentemente renovado
em sua relação com os outros e consigo mesmo. O que parece só fazer
aumentar o sentimento de vergonha e inadequação muda, porque não
compreendido, anônimo e indizível.
Para Harkot-de-la-Taille (1999, p. 26 e 27), em sua tese de doutorado
que trata do tema da vergonha, o sujeito envergonhado vive duas formas
diferentes e simultâneas do sentimento de vergonha: como sentimento
penoso de desonra e de inferioridade frente a um outro ou a própria
consciência, e como uma disposição de espírito. Esta segunda, é sentida
como um receio de exposição e de ser objeto de juízo de um outro. De
tornar-se vulnerável, portanto, a ingerência deste outro por conta da
possibilidade de uma circunstância específica que está ou que se considera
sujeito ou que vivencia.
É neste intercruzamento passional de inferioridade e exposição, deste
modo, que o sentimento de vergonha se estabelece em um indivíduo social
específico. Neste intercruzar-se, o valor pessoal do sujeito envergonhado,
"antes relacionado com sua imagem virtual e sua imagem projetada,
confundem-se. Com a desintegração de sua imagem virtual, o sujeito vive
uma crise fiduciária que pode ter como conseqüência o desmoronamento de
todo um universo de crenças pessoais: (já que o sujeito) é, na esfera
pública, o que sua imagem projetada o faz parecer. O universo simbólico em
que (o sujeito envergonhado) se reconhece enquanto sujeito pode ruir"
(HARKOT-DE-LA-TAILLE, 1999, p. 29).
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
34 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
A emoção do enlutado, o sofrimento resultante do trabalho de luto,
assim, parece estabelecer-se para o indivíduo que a experiencia como um
sentimento envergonhado e, como tal, a atitude de discrição enquanto
comportamento público deve ser buscado. A emoção é, assim, mascarada
publicamente em indiferença e parece dar lugar a uma reciprocidade
fragmentada, quase mercantil, onde a pessoa se move em planos
desconexos que impossibilitam a manifestação social dos sentimentos e
desencadeiam o medo social da contaminação.
Uma outra questão presente no questionário inquiria a opinião dos
informantes sobre qual deve ser o comportamento de um indivíduo social
qualquer, que mantenha vínculos de amizade, de trabalho ou outro com uma
pessoa em processo de luto.
Para 72.01% dos informantes18, a atitude dos outros em relação a
uma pessoa em trabalho de luto deve ser a de não importunar, contra
18.71%, que responderam que as atitudes devem ser de dar apoio. A
intermediação, porém, foi a preferência de 9,28%, respondendo que a
atitude para com uma pessoa enlutada dependeria de cada caso.
Dependeria, deste modo, seja do estado emocional em que se encontrasse
a pessoa, seja do grau de proximidade com o enlutado ou com o ente morto,
ou outra situação específica e especial qualquer.
A atitude esperada, porém, é a de discrição. O agir discreto dos mais
íntimos à perda daquele que sofreu o luto. Deve ser discreto, também, o
comportamento do enlutado nos diversos trâmites socialmente valorizados
de despacho do corpo e da expressão de sofrimento público no processo de
despedida (velório, enterro, missa de sétimo dia, etc.).
18
Segundo o Quadro N. 11, anexo.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
35 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
O período de nojo, como são chamados os primeiros sete dias após
a morte do ente querido, ainda é socialmente tolerado. Embora, cada vez
menos, deva ser de completo recolhimento público. Em todo caso, o
comportamento social, ou as expectativas perante o enlutado são ambíguas:
uma atitude de aparente indiferença ou a falta do resguardo ainda
costumem chocar.
Esta ambivalência de valores e atitudes parecem ser indicados nos
depoimentos que se passa agora a relatar, recolhidos pelo autor de
indivíduos que vivenciaram processos de luto. Narrativas diferentes que
retratam o sentimento de opressão vividos na expressão de seu sofrimento,
seja pela indiferença ao que se esperava socialmente como expressão de
sentimento, seja pelo fingimento do não sofrer para poder sobreviver ao
controle afetivo dos outros: familiares, amigos e agentes institucionais.
A primeira narrativa é de uma senhora de classe média alta de Belém
do Pará, que relata sua experiência de luto vivida pela perda do marido,
morto em um desastre automobilístico. O trecho apresentado retrata a
narração do momento do velório e o sentimento da entrevistada. Relato que
vagueia entre o sofrer incomensurável pela morte do ente amado e a
expressão social por ela imaginada frente a sua postura em relação aos
trâmites processuais do despacho do morto, do qual o velório fazia parte, e
como essa postura era entendida pelos outros, familiares, amigos e
próximos presentes.
Narra a entrevistada que, desde o momento que liberou o corpo para
o público, para o velório, "Não me aproximei do caixão desde então.
"Briguei com a metade da família que queria o velório num desses
cantos destinados a isso, desde que o corpo deixou o hospital. Não. Minha
casa, a casa dele, dos filhos nossos, era lá que deveria ser. Falaram do
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
36 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
sofrimento que seria depois. Que sofrimento poderia ser maior do que
aquele rasgão, do que aquele rombo, do que aquele caminhão que passava,
que estava passando na minha vida. Lá era meu. Lá de casa sairia. E assim
foi.
"O velório foi simples. Muita gente, fodam-se todos, pensei... Fiquei
parada a alguns metros do caixão. Na porta do meu quarto. No umbral da
porta de onde podia olhar aquele corpo querido, o corpo do meu amado
secando, arroxeando. As flores enjoavam, as velas enjoavam. eu só olhava,
não pensava, chegava um, chegava outro, me abraçavam, diziam: "a vida
continua", "é assim mesmo", eu esboçava um sorriso e não dizia nada.
Mulher insensível, acho que pensaram, fodam-se.... . Mas eu era naquele
momento, eu estava insensível. Eu não acreditava apesar de não desgrudar
da porta do meu quarto onde me voltava e via a cama, e me voltava para
frente e via o caixão e o meu amado que não era mais nada que não aquele
pedaço de carne sem vida, murchando, cheio de flores que enjoavam.
"Com um terço na mão. Imagine. Um terço na mão que a mãe dele
fez questão de por. Acho que foi o terçinho de sua primeira comunhão, sei
lá... ela achou importante. Foi importante para ela, deixei. Ele que nem mais
sabia o que era isso. Mas, o corpo depois de liberado por mim não era mais
meu. Deixou de ser meu. A sensação era que era de domínio dos outros. Os
choros circunstanciais da mãe dele, de alguns parentes, de alguns amigos,
os olhares curiosos de muitos, a conversa à toa para passar o tempo, o riso
de alguns em ritmo de festa que um velório parece que é... ...o que
acontecia, porém, é que a vida continuava com o meu amado morto na sala.
Na sala que ele ficava comigo, com os filhos quando pequenos, com os
filhos quando grandes, com os amigos que recebíamos, com o dia a dia...
...a vida continuava e eu vendo que eu também continuava e não acreditava,
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
37 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
não aceitava, embora muda, apenas a olhar agarrada, encostada, amparada
pelo umbral onde me alojei" (Entrevista n. 12).
A intensidade do sofrimento parece a fazer sentir o morto querido
como somente seu. As demais expressões tornavam-se para ela como se
fossem de alguma coisa que não tinha significado. Manifestações
desclassificadas por ela como expressões sem sentido para o morto, como o
terço colocado entre as mãos do seu amado pela mãe dele, ou das
condolências e sentimentos expressos dos e pelos outros presentes ao
velório. Ao mesmo tempo que fincava o pé, brigava com uma grande parte
dos familiares para manter o velório em casa, e não no conforto de uma
central de velórios, como queriam os demais parentes.
Por outro lado, a procurada demonstração de indiferença para com o
significado que os outros pudessem atribuir ao comportamento "insensível"
que ela parecia atribuir a si mesma no seu depoimento, a partir de uma
análise realizada do que os outros possivelmente pensaram e acharam de
sua atitude no velório, parece indicar a importância do público, dos demais
presentes, à expressão social de seu sofrimento. A sua condição social de
recém viúva e o comportamento esperado nesta situação pela sociedade,
através da negação pela desclassificação do comportamento dos outros.
O segundo depoimento narra um processo de luto vivido por um rapaz
de vinte e seis anos, de classe média abastada, estudante de medicina,
residente em São Paulo capital. Este entrevistado perdeu o pai, a mãe e a
namorada em um acidente de carro em que ele estava no volante. Ele
mesmo ficando vários meses hospitalizado.
Retrata os cuidados, por ele considerado exagerados, dos seus avós,
amigos, empregados da casa e enfermeiros, para com ele. Veio a saber da
morte dos seus entes queridos depois de sua recuperação, isto é, meses
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
38 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
depois, e após a revelação os cuidados para com ele foram intensificados
para poupa-lo de culpa e impedi-lo de algum gesto contra a sua própria vida.
Segundo o entrevistado, " ...estava cercado de pagens: enfermeiras,
de meus avós, de alguns dos meus amigos de infância. Os filhos da puta
impediam a coisa única que eu podia fazer, que eu deveria ter feito: morrer.
Morrer!... Viver prá que? Minha avó falou do destino. Destino uma bosta
(desculpe). Meus amigos tentavam conversar bobagens, não me deixavam
em paz. Não me deixavam sequer pensar. Fiquei prisioneiro e os odiei por
isso.
"O que eu podia fazer era entrar no jogo. Se até no banheiro eu não
podia ir sozinho, porque diziam que eu estava "desesperado", então era
jogar o jogo, fingir a aceitação das regras impostas. E fingi aceitar. Fazia o
jogo bem feito, nem nos meus mortos eu falava. Fingia rir das brincadeiras.
Já lembrava pequenas bobagens com os amigos. Queria ver algumas
fotografias dos meus pais, da minha namorada. Até isso eles tiraram de
mim, como se eles não estivessem na minha cabeça, no meu corpo, em
tudo. Meus avós esconderam todas, mexeram no meu armário, não tinha
acesso a nada que eles não quisessem, ou achassem que eu podia ver. Não
tinha acesso.
"Aí então funcionavam as lembranças, nas poucas tentativas de
solidão. Embora, mesmo com todos no meu cerco, eles não tinham idéia que
eles, os meus queridos, recheavam todo o meu mundo, tudo era eles, tudo
era e significava um não eu. Mas eu fingia. Fingia para poder escapar do
cerco, para amargar a minha solidão abafada por tanta proteção e amizade.
Estava cheio, mas fazer o que, a não ser fingir?" (Entrevista n. 2).
O depoimento do entrevistado fala de fingimento. O termo fingir indica
aqui o ato de aparentar e dissimular. Fazer crer que é, simular ser, querer
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
39 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
passar-se por, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa de Aurélio
Buarque de Holanda. Diz respeito para a ação de fingir e seu efeito, o
fingimento.
Na narrativa do entrevistado, o efeito do seu fingir tinha como objetivo
"escapar ao cerco" de proteção e cuidados em que se viu envolvido desde o
acidente automobilístico que matou seus pais e namorada e que também
quase o matou. Escapar ao cerco pelo ato de fingir, assim, para ele, tinha a
conotação não apenas de poupar os que com ele se preocupavam do seu
sofrimento, mas e principalmente, de criar espaço para si próprio articular a
sua dor, a sua culpa de se encontrar à frente do volante, de ser o único a
estar vivo, de ter causado a morte dos entes a ele caros.
De ter acesso a solidão necessária, segundo ele, para o rememorar.
Fingir para fugir ao cerco de proteção que procurava o afastar das
lembranças dos "meus queridos", da invasão de sua privacidade, dos
impedimentos de acesso a lembranças objetivas, como fotografias e objetos
específicos que o fizessem recordar. Como se isso fosse possível de evitar o
seu sofrimento, pois, naquele momento singular, os mortos "recheavam todo
o meu mundo, tudo era eles, tudo era e significava um não eu".
As tentativas dos avós e de amizades para evitar a dor do neto e do
amigo levaram, segundo o entrevistado, a uma exacerbação do seu
sofrimento. Muito mais do que isso, talvez, o levaram a uma impossibilidade
de compartilhamento de sua dor, de sua angústia com os que lhes eram
caros. O levaram ao fingimento, segundo ele. Ou nas suas palavras: "Fingia
para poder escapar do cerco, para amargar a minha solidão abafada por
tanta proteção e amizade. Estava cheio, mas fazer o que, a não ser fingir?"
Nos dois depoimentos acima, de diferentes contextos, as narrativas
buscam situar a solidão dos sofrimentos vividos à insensibilidade aos olhos
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
40 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
dos outros, e ao fingimento. Nos dois casos tem-se em comum o
incomensurável e o inominável da dor causada pelo sofrimento de uma
perda. Nas duas narrativas se tem também em comum, a falta de
compartilhamento objetiva, o sofrimento vivido sendo visto como totalizante
e absolutamente único, de cada depoente, e a solidão necessária para o
apreender nos significados intrínsecos da experiência que passavam. Bem
como ao rememorar, sentido como uma espécie de instrumental necessário
para a introjeção dos seus mortos.
Ao mesmo tempo, porém, é esboçada nas duas narrativas a
necessidade de ter alguém para compartilhar, e a sua falta. Da outra solidão,
a de não ser compreendido no seu sofrimento, e da necessidade de fingir
aos outros e fugir ao cerco ou ao sem sentido de suas ações, buscando
calado ou na simulação, ser encontrado, acarinhado, aninhado em uma ação
de ouvir que não vem, ou que não acham, ampliando ainda mais o
fechamento pela extensão do fingir ou pelo ato impulsivo do distanciamento
de seu sofrimento dos demais.
O que estabelece e aprofunda a ação solitária do ser em sofrimento, e
a pergunta que dirige a si mesmo, como o fez Lya Luft em um dos poemas
de luto, em seu O Lado Fatal (1991a, p. 71): "pode-se reconstruir uma vida
estilhaçada?", e as possíveis respostas encontradas a questão dita de forma
quase gritada: "sobrevivo, mas pela insensatez", e, ou, "sobrevivo para que
a fonte das memórias o mantenha aqui, comigo". Ao mesmo tempo que
impõe os termos de seu sofrimento para os outros, em uma atitude que
reforça o distanciamento entre o indivíduo em compasso de dor da
sociedade, afirmando o individual como instância totalizante e inatingível,
mas, também, como uma espécie de rogo por trás em busca de ser
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
41 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
nominável, compreendido em seu sofrimento e em sua solidão: "...não me
consolem: da minha dor, sei eu" (p. 41).
Quanto menos lembrar publicamente que alguém faleceu e deixou
sofrimento e saudades em outro alguém, parece ser melhor ao social. A
cumplicidade pela indiferença aparente se torna assim uma espécie de pacto
onde o indivíduo fica restrito a si mesmo, e busca poupar ou desclassificar
os demais como impotentes de entender o sofrimento porque passam,
agindo por ou através de simulação. Os outros, também, parecem jogar
com os mesmos elementos, ou acreditar nos fingimentos e insensibilidades
aparentes, como se a morte e a dor do sofrimento fossem algo doentio, do
âmago de um ser individual e não existissem socialmente. Este caminho
apontado de individualização, parece ser a tônica moderna do processo de
luto no Brasil urbano.
A classe média intelectualizada, principalmente, parece viver com
mais intensidade esse dilema. A indiferença e o fingimento espantam
socialmente o sofrer, o luto no social, que se vê jogado para a intimidade do
sujeito, que passa a vivenciá-los na solidão.
Em um trabalho anterior (KOURY, 1993) à diferença deste ensaio, se
buscou compreender as estreitas relações entre ausência de cidadania e
luto. Foi analisado o trabalho de luto entre excluídos sociais que viviam de
mendicância, no trânsito entre o campo e a cidade. O processo de luto foi
visto, então, mesclado pela tensão resultante da perda de referenciais
simbólicos relacionais que construíram o indivíduo ao longo de sua vida,
abruptamente.
À perplexidade diante da morte, no caso tratado, associou-se o
anonimato e a banalidade no trato público da morte. O que contrastava com
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
42 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
a dor ocasionada pelo sofrimento do enlutado, que parecia desmoronar
como pessoa, aumentando o sentimento individual de exclusão social.
O caso limite analisado buscava compreender o trabalho de luto entre
excluídos sociais através do choque entre os referenciais relacionais
fincados no cotidiano fazer-se da pessoa e o anonimato urbano de
higienização. Procurou-se demonstrar o esfacelamento da pessoa e as
dificuldades daí resultantes a sua reintegração individual e social.
O choque entre uma tradição relacional que formou o enlutado com
uma profunda descaracterização dos costumes e processo integrativos do
urbano moderno, enfatizava ainda mais a falta de lugar no social, a não
cidadania e a solidão do homem comum.
Essa descaracterização, produto do crescente individualismo que
parece organizar a sociedade brasileira urbana desde os anos setenta e
oitenta do século passado, principalmente, molda os parâmetros da
sensibilidade nova que se amolda aos padrões atuais de dessacralização
dos costumes sociais tradicionais. Ainda que cause esfacelamento da
pessoa como no caso limite citado, ou que ainda surpreenda e indigne o
indivíduo médio urbano no Brasil de hoje.
A narrativa de uma entrevistada (Entrevista n. 4), faxineira, 30 anos,
pobre, com renda até três salários mínimos, residente em Cuiabá, Mato
Grosso, por outro lado, mostra o processo de exclusão da pobreza dos
processos sociais da cidadania, a partir de uma vivência no urbano, no seu
lado mais cruel, da violência e da prepotência institucional no trato dos
homens comuns. Embora não seja objeto específico de análise deste
trabalho, o depoimento é aqui utilizado como forma de entendimento da
complexidade da situação do processo de individualização no Brasil atual.
Processo mesclado não apenas de ambivalência entre costumes tradicionais
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
43 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
e novas sensibilidades emergentes, mas também, e sobretudo, por uma
prática autoritária e de exclusão que retira qualquer exercício de vivência do
luto, deixando um rastro de tragédia e desilusão naqueles porventura
afetados.
A entrevistada é, segundo suas palavras, "uma viúva de marido que
sumiu, ninguém sabe, ninguém viu, então eu não tenho direito a viuvez. É
uma coisa de doido. Saber que está morto não basta. A dor não alivia, só a
revolta aumenta. Mas o que fazer? Sou pobre... ".
A narrativa da impossibilidade do luto pela entrevistada conta a
história de um biscateiro, que "ganhava a vida em biscates de pedreiro, de
um faz tudo", que "foi confundido com um ladrão, foi preso, torturado até
morrer. Depois descobriram que não era ele, era parecido".
Conta a história do desespero ao saber que o marido morreu. Que
tinha saído para o trabalho e não voltou, e que vários dias se passaram e a
procura começou por casa de parentes, pelos locais onde ele costumava
fazer bicos, por hospitais, por delegacias, sem encontrar qualquer pista. Até
que , "quatro meses depois eu vim a saber o que tinha acontecido. Eu vim a
saber que ele tinha morrido. Um cara que estava preso na mesma delegacia
com ele, quando ele foi preso, descobriu onde eu morava e falou prá mim
que ele apanhou até não resistir e morrer. Apanhou prá confessar que tinha
roubado ... Alguém viu ele e ele foi preso. Morreu no pau prá dizer o que ele
não fez. Depois descobriram que não foi ele, foi alguém parecido. Alguém
preto. Como disseram prá mim uns homens da polícia, 'mulher, deixe de
atanazar, a gente não tem culpa, tudo que é preto é igual. Vá embora e
esqueça, é melhor' ".
A peregrinação em busca do corpo do marido torna-se para a
entrevistada, assim, fundamento para a possibilidade de realização do luto.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
44 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
"Por enquanto eu enterrei ele dentro de mim", informa. "Dói, moço. Dói. Dói
porque eu sei que ele está morto, mas eu não tenho ele morto. O corpo. O
corpo dele. Sua ausência me persegue... me rasga por dentro", e continua:
mesmo tendo a certeza de que ele está morto, "todo dia, toda hora eu penso
que ele vem. Meus filhos não falam, mas eu sei que também sentem a
ausência do corpo do pai".
"O senhor não imagina o que é ter um morto que está vivo", exclama.
A impossibilidade do luto pela ausência do corpo associa-se a
impossibilidade de um outro luto de ordem moral, que amplia a dor
permanente da morte, na impotência de provar a honestidade do seu
marido. "Como dizer para os meus filhos que o pai morreu numa delegacia
como ladrão? ... Sei que ele foi honesto. Tive atrás das pessoas que
disseram que era ele e elas me confessaram que tinham confundido, e que
depois o cara ladrão tinha sido pego e confessou. Que a polícia agiu rápido
porque o homem da casa roubada era um figurão e precisavam agir... mas
isso não resolve. Eu sei, disse a meus filhos, mas por dentro eu espero ele
voltar, porque eu não vi, não sei dele. Ele é vivo porque é apenas sumido,
nem atestado de óbito eu tive direito. ... O corpo dele sumiu. Não existe
registro sequer da prisão dele. Já rodei tudo: disseram primeiro que não
sabiam de nada; depois ameaçaram e que era melhor eu esquecer esse
caso; depois disseram que ele foi enterrado como indigente numa cova
comum; dizem também que este caso nunca existiu, que ele deve ter
largado de uma mulher chata como eu, dizem também que ele pode ter sido
jogado em algum local, em algum mato... todo dia aparece vários sem
documentos, tudo ladrão... dizem".
"Hoje eu entrei para o Evangelho e isso tem me dado um certo alívio,
tem me ajudado. Mas eu sinto falta do corpo dele. O corpo dele me dará
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
45 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
certeza. Eu preciso do corpo dele morto, entende? Eu preciso do corpo dele
que se foi, mas que eu sei onde está, que eu enterrei... além do que com o
corpo nas minhas mãos eu posso voltar a ter a esperança de dar a meus
filhos de volta o homem honrado que foi seu pai. Mas como fazê-lo. Eu sou
pobre e preta, e eu me sinto que não existo também, embora me esforce
para ir dando uma educação para os meus filhos sobre o trabalho digno,
sobre ser pobre porém honestos, como seu pai. Mas é difícil. É difícil...".
A impossibilidade do luto na narrativa acima, pela ausência do corpo e
pela exclusão social da pobreza, por um lado, surpreende e revolta a
entrevistada. Ao mesmo tempo, parece acomodá-la em uma espécie de não
lugar social, de um lugar onde a possibilidade de falar, de exprimir sua
revolta não existe, e que ela afirma com a frase, "eu me sinto que não existo
também" na ausência do corpo do seu marido.
Por outro lado, ao procurar conforto em instâncias
desindividualizantes, institucionais, como a religião nova que a acatou, e na
missão, quase, de devolver aos filhos a honestidade do pai retirada pela sua
prisão e morte e pela impossibilidade do momento de reconstituição da
trajetória que ocasionou a morte do seu marido, parece repô-la em um lugar
de expressão, de fala, de ação social. As instâncias institucionais parecem
oferecer, neste caso, um lugar por onde a entrevistada recupera a dignidade
e busca refazer a do marido e recompor a esfera familiar.
Embora se sinta, às vezes, impotente e sem fala frente as demais
instituições que enquadraram o seu marido e, por extensão, a ela, pela
pobreza e pelo estigma de perigosos. O que faz de sua ação um
comportamento ambíguo, de sentir-se um não social e ao mesmo tempo, de
lutar pelo reconhecimento social de sua posição de viúva sem corpo que
comprove a morte do companheiro.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
46 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Ambigüidade que parece ampliar-se e estender-se no medo das
conseqüências de seus filhos não poderem organizar o luto por seu pai, a
não ser pela desonra pessoal de ter tido um pai morto em uma delegacia por
roubo, ou pela vingança, uma forma de lavar a honra do pai e pessoal
através de atitudes que reforçam a sua condição de excluídos. Esta
ambigüidade, porém, no caso tratado, parece fazer a entrevistada percorrer
os caminhos da fala. Através de vias que modifiquem o luto pessoal pela
ausência e perda do marido, em luta política, de recuperação do corpo, de
recomposição da dignidade e honestidade do companheiro, para que talvez
seja possível realizar o próprio luto.
O luto para ela, neste momento, é de impossível realização, pela
ausência do corpo e pela discriminação moral para a sua família, não
apenas tocada pela pobreza e pela cor, mas agora, principalmente pela
periculosidade e desonestidade no social de que foi vitimado o seu marido, e
que ameaça os seus filhos e a ela própria. A falta de cidadania, a falta de
respeito, a nudez absoluta de um não lugar social trazida e escancarada
pela morte por espancamento, sem culpa, de seu marido, parecem mandar
fazê-la calar, desistir, acomodar-se. Parecem, também, ao mesmo tempo,
para acomodar-se, até, fazê-la tentar recuperar o corpo, e nele a dignidade,
para uma possível realização do trabalho do luto.
E se sente só, com receios profundos pelos seus filhos,
principalmente, e busca se amparar na nova religião e na força do restauro
da dignidade do marido pela procura de recuperação de seu corpo. Mesmo
o certo alívio oferecido pela nova religião, não a retira de sua solidão social
da pobreza e de sua luta para realização do trabalho pessoal e familiar do
luto pelo seu ente querido morto.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
47 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
A economia moral do sofrimento pela perda na sociedade brasileira
de hoje, parece passar pelo eclipse do sofrer. Parece caminhar
tendencialmente no sentido de retirar o sofrimento do social para o íntimo,
como forma de deter os efeitos da individuação de quem sofre a privação e
dos perigos que tal processo representa para o social. Enfatiza as relações
mercantis do individualismo, movimentadas pela idéia do ser discreto
enquanto conduta do comportamento civilizado.
As regras sociais parecem passar a viger apenas no sentido
mercantil, através do individualismo que nega a individuação como processo
interativo da pessoa na sociedade. Quanto mais abafada e constrangida se
encontre a pessoa, quanto mais a subjetividade for tratada como problema
pessoal, íntimo e não social, como indizível, mais o individualismo parece
comandar os destinos individuais. O que parece enfatizar a morte, como
desilusão e como código básico de conduta, como afirmou Elias Canetti em
sua conversa com Adorno (1988, p. 131).
Socialmente, parece que, a tendência da nova sensibilidade
emergente no Brasil de negar a morte e o sofrimento pela morte na esfera
social, vem sendo feita, através de uma ênfase na morte como código
norteador e ameaçador atrás das regras sociais. Configura-se no adotar o
ponto de vista da resignação social como constructo possível do ser moral
na modernidade. Resignação do eu constrangido na intimidade, para dar
lugar ao indivíduo indiferente e fragmentado no social.
A idéia do fracasso, da desilusão do sujeito no ritual introspectivo do
sofrer, impõe códigos de naturalização e anonimato à morte e ao processo
social do sofrimento, evidenciando uma fragmentação de sentimentos
coletivos que se expressam numa espécie de receio social de contaminação
(ELIAS, 1989) e na vergonha de sentir-se enlutado. Afigura-se, enfim, no
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
48 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
condenar o trabalho de luto a realizar-se como unicamente desilusão do
mundo, como expressão solitária de um sujeito em descompasso, em
desagregação, em seu sofrimento, do social.
Efeito de decepção e engodo, da morte como universo do silêncio, a
dor causada pelo sofrimento no processo de luto, constrangida e
envergonhada no interior do sujeito, revela-se como nostalgia do ausente.
Ausência configurada em um tempo e em um espaço singular e solidário,
perdidos na memória individual do enlutado. Um estado de sofrimento moral
é criado, então, como resultado das inibições impostas ou acarretadas como
precaução ou como resultante de um empobrecimento de energia ao ego
(FREUD, 1976, p. 111). Processo que assemelha-se a uma espécie de
paralisação de toda a iniciativa de decisão e ação do sujeito, em um
movimento de ideação pessimista.
Os sentimentos para com o social e para consigo mesmo tendem a
declinar como se nada valesse a pena ser feito, podendo caracterizar um
estado de depressão em sua forma mais grave: a melancolia. O luto pessoal
do sujeito que sofre uma perda, como conseqüência de sua subjetivação e
falta de expressão no social, e pela ambivalência resultante na vergonha
como individuação e a reprovação e o estranhamento público, constitui-se,
enquanto tendência, em um delírio de expectativa. Como resultado, enfim,
da não esperança e do sentimento de que algo eminente estivesse prestes a
desabar sobre si.
Um hiato entre o tempo vivido e a viver é então construído como luto
retrospectivo, de sua constituição como pessoa, e como luto do que se tem a
viver, simbolizado em uma morte ao mesmo tempo desejada e temida.
Intercessão entre o desespero e o tédio, a dor da perda subjetivada e sem
expressão no social, reproduz-se como ausência de projeto.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
49 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
O processo de luto tende, assim, a tornar-se melancolia. Como ensina
Freud (1992), embora o luto e a melancolia apresentem os mesmos
processos dolorosos, na melancolia, diferentemente do luto, a perda é
retirada da consciência. O investimento do ego se orienta à repressão
através da compulsão à repetição19. Este movimento estabelece um grave
conflito de sentimentos ambivalentes, dos quais só se pode fugir, como
informa Abraham (1976, p. 100), voltando a si próprio a hostilidade e a
amorosidade que originalmente sentia em relação ao seu objeto.
A individualização crescente das relações sociais no Brasil atual,
parece tender a refrear o processo de individuação do sujeito que sofre a
perda, através do mascaramento da dor do sofrimento e da morte. Essa
tendência social de escamoteamento da expressão pública dos sentimentos
(MAUSS, 1980) e a valorização da interiorização, enquanto subjetividade ou
espaço da intimidade ou do privado (e, nesse caso, não social por definição),
cria uma pré disposição permanente no indivíduo à desconfiança no outro, e
por extensão, no social.
O sujeito emergente desse processo parece ser um indivíduo de
atitudes ambivalentes, exposto a crises constantes de superestimação ou
subestimação de sua pessoa (socialmente aceita). Exposto a se sentir
facilmente decepcionado, traído ou abandonado pelo objeto amado, perdido
e retirado, através do mascaramento, da consciência pública, ou social, para
o privado espaço em seu interior, socialmente banal.
A interiorização do sofrimento e de todo o plexo de sentimentos, e a
sua inexpressividade para o social, no Brasil de hoje, parece indicar o
caminho através do qual vai se consolidando a nova sensibilidade social,
19
Compulsão que em circunstâncias normais só é eliminada pela função livremente móvel do ego (FREUD, 1976, p. 177).
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
50 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
construída em um movimento permanente de fragmentação das relações
sociais e pessoais. Processo onde a persona em jogo no exercício social,
cada vez mais, tende a transvestir-se naquela cuja face representa a
individualização do agir, em detrimento das práticas relacionais que até
então pareciam informar o comportamento social médio do brasileiro.
O mascaramento da dor individual no social parece tender a ser
administrado pela sociedade através do princípio do desempenho
(MARCUSE, 1968). O agir individual no espaço público, segundo esse
princípio, deve ser desprovido de qualquer elemento que venha perturbar o
bom funcionamento dos papéis em representação pelos sujeitos em relação.
A necessidade do bom desempenho deve suplantar as questões dos
sentimentos, normalmente tratados como pertencentes à esfera do privado,
ou para a esfera do espaço íntimo.
A vergonha da demonstração pública do sofrimento ou da expressão
de solidariedade, ou o não saber o que fazer com a dor da perda alheia, do
outro, resulta em um automatismo de relações, movido pelo grau de
afastamento ou abandono do sujeito de sua perda. O sujeito que sofre a
perda, embora traga consigo um imenso desprazer (ABRAHAM, 1976,
p.110), tende a relacionar com a perda o seu sentimento de inferioridade (p.
114).
Fecha-se, então, em sua privacidade, intensificando a sua desilusão
com o mundo e consigo mesmo. Receia, ao mesmo tempo, que esse mundo
perceba as suas emoções e dele reclame significados.
Afasta, assim, o seu sofrimento do social, através da mercantilização
das relações. Anseia silenciosamente, porém, através deste artifício, via
desempenho, reencontrar o ente querido e a solidariedade à sua dor,
intensificando ainda mais a sua desilusão com o mundo social.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
51 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Em uma entrevista à revista Desfile (1992), uma personalidade do
meio artístico analisa o processo de luto por ela vivido. Relata desde as
pseudo-alucinações comuns ao início do processo de introjeção no trabalho
de luto, como “... no início ficava inventando histórias incríveis de que ele
poderia voltar”, até o aprofundamento do processo de desilusão com o
mundo e com tudo o que acreditava, chegando a duvidar se conseguiria
continuar vivendo sem a presença do objeto amado.
Um estado de anomia movido pelo desamparo, pela falta de vontade,
pela solidão em que se encontrava em seu sofrimento, parece se instaurar.
Fechada em seu sofrer lutava pelo isolamento que permitia reviver
continuamente a sua perda, e com o mundo exterior que parecia
incomodado e fingia indiferença a sua privação. O mundo exterior, a
“realidade” segundo ela, a chamava de volta ocasionando um movimento
duplo nela de perplexidade pela indiferença social a sua perda, e de
vergonha do incômodo que o sofrimento por que passava pudesse estar
causando aos outros, sejam estes colegas de profissão, amigos ou público
em geral.
Sentimentos ambivalentes, então, foram intensamente vividos. De um
lado, lutava pela manutenção do sofrimento, enquanto espaço privado, como
uma forma de reter por mais tempo o objeto amado em si. O que significava
um mergulho completo em si mesma, e um rompimento com o social. De
outro lado, tendia para uma espécie de negação da dor do sofrer, para um
retorno à indiferença do social com o seu sofrimento. Estes afetos opostos,
aumentava o seu receio “de entrar em colapso”, de não saber “até onde iria
agüentar”.
A dicotomia entre os espaços público e privado é por ela, assim,
levado ao extremo, pela descrença pessoal provocada pelo luto em relação
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
52 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
a qualquer instituição desinvidualizadora, como a igreja e a família. Restava
a arte, e através dela foi possível mediatizar e elaborar o seu trabalho de
luto.
Foi possível através do seu exercício o profissional mascarar o seu
sofrimento em público pela técnica. A técnica, a disciplina forçava-a a
participar da realidade, embora para si não apenas servia de máscara à sua
perda em público, como também servia como desilusão pessoal da própria
ação como intérprete. No compromisso técnico não havia a arte, apenas a
disciplina, e era isso que lhe exigia o social.
Hoje, olhando para trás, analisando o seu processo de luto, ela afirma
que foi “muito rígida consigo mesma”, e que “hoje, posso dizer que sou uma
pessoa ... que carrega uma marca ”.
Uma visão semelhante pode-se ter no depoimento de um entrevistado
que narra o processo de luto passado por perda de sua esposa, vítima de
câncer. Primeiro, o entrevistado (Entrevista n. 42), engenheiro civil, de 49
anos, sem filhos, classe média abastada, com residência em Porto Alegre,
Rio Grande do Sul, relata o pouco tempo entre a descoberta do tumor no
cérebro de sua esposa e a morte desta. Discorre sobre o pânico da
descoberta mesclado com "um encontrar forças não sei onde" para dar
esperança e conforto ao ser amado doente e agonizante.
Descreve o processo de morte de sua mulher, a dor cortante, o
sofrimento solitário que se agudizava, e o sentimento compartilhado com os
pais e irmãos da esposa que, se não aliviava o seu, pelo menos o fazia
sentir-se vivo. Para, a seguir, construir uma narrativa de sua trajetória de luto
enquanto solidão que, embora em alguns aspectos compartilhada pelos
familiares da esposa, se aprofundava a cada momento no seu interior,
fazendo-o passar de atitudes dóceis a agressivas em uma mesma ação.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
53 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Segundo ele, "foram dois meses de loucura interior, desde a morte de
minha mulher. É porque tu guardas alguma lucidez tirada de onde não
imaginas, senão tu entras em outra estratosfera, senão tudo desmorona sem
nunca mais conseguir juntar os pedaços. Eu passava da doçura ao mais
arisco dos seres. Rompi com meus melhores amigos e amigas. Alguns estão
magoados até hoje, outros voltaram, mas não são como antes. Só o trabalho
me permitia esquecer, quando não queria largar tudo, romper com tudo,
desaparecer. Mas sempre profissional, até demais: aí, também, embora seja
o meu normal, havia um, como que, ponto da intransigência que revelava a
dor a mim, em mim.
"Tive casos passageiros. Todos comparativos e, como tal, fadados ao
insucesso. Todos insuficientes, embora a nível de corpo, relaxantes.
"Passaram-se já dez meses. O cotidiano voltou. A tranqüilidade
começa a retornar. A saudade continua, mas é mais amena. Fiz uma
limpeza nos armários, dei ou rasguei algumas de suas roupas, vendi ou dei
todos os livros e discos que considerávamos nossos. Estou comprando de
novo. Os mesmos CDs, os mesmos livros, só que sem a marca dela.
"Estou procurando me desfazer das marcas externas, não sei se tu
me entendes, refiz a decoração da casa, do quarto, me desfaço das coisas
nossas, embora compre, sempre, outras iguais. Remodelei também o local
onde trabalhávamos, e por aí vai... . Já bastam as marcas dela que estão em
mim. A saudade, a falta, o carinho... (pausa) ...as marcas objetivas das
coisas acho podem ser refeitas. Mas será isso possível? Será que eu não
estarei fadado eternamente a procurar repor a ausência dela em mim.
Quando olho em volta, mesmo com tudo novo e aparentemente desigual ao
que era nosso, ao tempo em que ela estava viva, comigo, me sinto
perseguindo refazer o que não é mais possível ser refeito, tê-la de volta.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
54 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Perseguindo o passado... perseguindo a solidão e o não retorno...
perseguindo, acho, uma ilusão sem compartilhamento... não sei!..."
A irreversibilidade da perda parece ter o poder de transformar o
sujeito em um ser nostálgico, como configura a suposição da narrativa
acima. O continuar a viver torna-se uma espécie de renúncia ao próprio eu
encoberto pela névoa espessa da introjeção do outro, amado, perdido.
O outro perdido, confundido com o eu no processo de internalização
do trabalho de luto, no sofrimento em que esta elaboração se desenvolve,
busca des-elaborar o constructo da dor por uma perda específica para
remontar-se como apenas perda. Para refazer-se como renúncia
permanente de projeto pelo apego a um sentimento de privação
fragmentado que a nostalgia procura rememorar continuamente. Que
procura evocar sem, porém, deter-se no próprio objeto da perda, que escapa
à consciência como uma perda desconhecida, como um silêncio.
Como uma marca que compulsivamente parece levar para o retorno
benvindo, para o re-constructo do eu, mas, que apenas esbarra na
incomensurável perda, sem objeto, sem sentido. Na desilusão do mundo
pela fragmentação do eu perdido na própria perda, agora, desconhecida.
O homem individualizado, melancólico, que tendencialmente parece
estar em formação no Brasil de hoje, e os códigos de enunciação dessa
sensibilidade que parece caminhar para o domínio ou universalização dos
novos valores e costumes em constituição, estão vinculados à idéia dolorosa
de um sofrimento, sem razão outra que o próprio sofrer. A marca que
forçosamente carrega no seu desenvolvimento, aparece e apresenta-se
como que pontuando a existência fixa em uma dor causada pelo
incomensurável sofrer por uma perda deslocada da consciência. Marca que
parece ter sido forjada no prosseguir de um processo de redução ao nada,
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
55 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
ao vazio, ao estado se não de morte, de encontrar-se continuamente
morrendo (MONEY-KIRLE, 1969, p. 236).
A experiência da perda assemelha-se, deste modo, no transformar em
vazio todo o processo de vida. Perdido na própria perda o objeto faz com
que a privação, através da compulsão à repetição, se torne em
determinação, contaminando o futuro como um espaço vazio. Vazio
estereotipado, como informa Binswanger (1960), que parece consumir o
indivíduo melancólico em uma eterna nostalgia de um mundo compartilhado.
Saudade de uma ilusão, proporcionada pela destituição do objeto
perdido em uma perda sem objeto. O que torna o sujeito em um compulsivo
perseguidor dessa ilusão, a fim de transformá-la em sua própria, para de
certa forma melhor poder aniquilá-la.
A melancolia não permite reconhecimento de outro eu autônomo,
mesmo que seja o próprio eu do sujeito. Nesse sentido, a saudade de um
mundo compartilhado, de um retorno ao ente querido irremediavelmente
perdido, não passa de um estado compulsivo, alegórico, que anseia a ilusão
da própria perda. O que faz, tendencialmente, da introjeção um ato sempre e
repetidamente infiel: a perda transformando-se em fim, e adquirindo uma
vivência independente no processo de destruição do sujeito para si pela
absorção repetida da perda, como privação em si mesma.
O mundo interno do sujeito configura-se em se transformar em uma
série interminável de catástrofes, empurrando-o para uma solidão cada vez
maior. Pela infidelidade constante da perda em e para si, age como um ser
em processo de morte a cada momento e - como suas relações com o
mundo exterior ainda não findaram apesar de insistentemente o imenso
vazio imposto pela perda em si o impelir para tal -, em agressão ao mundo
exterior, ao social.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
56 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Através do princípio de desempenho nega a si próprio e aos outros
em relação. Amplia, assim, o espaço de solidão pela instrumentalização das
ações que mobilizam as relações mercantis através da concorrência. A
infidelidade ganha assim importância como regra de conduta, e a indiferença
ao outro como a si próprio em processo civilizatório.
A nostalgia que parece impulsionar o eterno retorno à perda sem
objeto, ao mesmo tempo que aprofunda-se na subjetividade, desloca o
mesmo ator do social através da dicotomização entre o público e o privado.
A emergência do indivíduo no Brasil de hoje parece se dar, desta maneira,
pela negação das práticas relacionais de que fala DaMatta (1987), e pela
afirmação crescente do que Simmel (1967) chama de personalidade blasé.
Caracterizada pela pulverização dos papéis e laços sociais desempenhados
pelos sujeitos sociais, envoltos no anonimato urbano e em relações
mercantis.
Indivíduos que assumem ares de indiferença e enfado às relações
sociais do cotidiano, e agem como que deslocados do público espaço da
existência societária. Como que negando o outro como solidariedade,
mergulhando na solidão de uma subjetividade nostálgica e contraditória:
que, ao mesmo tempo que nega, reafirma o outro em si como uma perda
que já não reconhece do que se privou.
O processo de luto, na dolorosa execução do seu trabalho interior nos
indivíduos, parece deixar mais clara, mais evidenciada, essa existência
blasé da personalidade contemporânea e urbana de que fala Simmel.
Afigura-se no deixar também mais claro a emergência desse indivíduo
melancólico cujos projetos, aparentemente, se perderam em um círculo
vicioso e nostálgico de um retorno infinito à ilusão de algo remoto, e do qual
a memória retém como privação irremediável.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
57 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
A descrença em fórmulas rituais integrativas do morto e do enlutado
às malhas sociais fornece, assim, indicativos da ruptura das práticas
relacionais na sociedade brasileira urbana de hoje, principalmente entre
classe média intelectualizada mas, de uma certa maneira, tende a orientar o
agir de toda a sociedade.
Segundo o depoimento a Revista Marie Claire (n. 75, de junho de
1997, pp. 163 a 168, coluna "Eu Leitora") de uma professora curitibana, -
que morava com o marido carioca e o filho pequeno em Florianópolis, Santa
Catarina, e que os perdeu em um acidente em um parque florestal: um
eucalipto apodrecido caiu em cima do marido e do filho desta senhora, os
matando, - durante momentos seguidos após o acidente, "não tive nem
sequer a idéia da minha própria dor, tão grande era ela. Momentos em que
blasfemei a vida, o mundo, as pessoas felizes, as crianças. Momentos em
que o desespero me fez confundir as coisas, na esperança de recuperá-los,
de ter de volta tudo o que tive. Quanto me custou aceitar que nunca mais os
teria e nem a felicidade e o amor. Não encontrei conforto algum em
nenhuma religião, com exceção momentânea na religião espírita e sua teoria
da reencarnação. Mas no final estava sempre só comigo mesma. Por mais
que algumas teorias confortem, na prática estou completamente só".
A ambivalência das atitudes individuais perante o morrer e a dor
quase física da privação configura-se, deste modo, como ênfase, nesse
processo de dessacralização dos processos integrativos da pessoa na
sociedade. O não saber agir quando o luto ou o processo do morrer atinge
alguém, como um ser que sofre a perda ou como o outro que a assiste; o
desconforto público de ter o sofrimento pessoal exposto a outros ou no
presenciar as emoções alheias; a impotência para atos de solidariedade ou
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
58 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
para a procura de conforto social, parecem evidenciar o processo de
individualização acelerada do brasileiro médio atual.
A individuação a que alguém se vê sujeito pela privação parece ser
transformada enquanto tendência, em vergonha, na sua expressão pública.
Afigura-se, também, no ser vivida intensamente como subjetividade, isto é,
como um espaço de intimidade onde a nostalgia do perdido se estabelece,
ou como um outro sem identidade e sem retorno. A individuação tende a se
processar, deste modo, negando a si mesma pela afirmação da
individualização.
Enquanto nas sociedades relacionais o processo de individuação é
identificado e sujeito através de regras e ritos sociais, onde fórmulas rituais
explícitas retomam e remontam o ator à sua performance social,
reintegrando-o à sociedade (MAUSS, 1974 e DURKHEIM, 1996), na
sociedade brasileira atual parece se instaurar, ao lado da indignação e da
ambivalência do agir, comuns aos processos de mudança de costumes e
tradições, um processo em que a individuação como momento privado é
excluída do social. Onde o movimento de individuação é constrangido para o
interior do sujeito que passa a relacionar-se e a agir publicamente através da
negação da expressão de sentimentos para si e para com os outros, através
da indiferença.
“Nos tempos modernos não há mais protocolo rigoroso para a
espera”, afirma a consultora da seção “Modos e Maneiras” da Revista
Claudia (julho de1994, p. 8), em resposta a inquietação de uma leitora sobre
a conduta do seu companheiro de muitos anos que quer esperar um ano de
luto pela ex-esposa, para oficializar a união. O caso da “Mineira Ansiosa”,
como se identifica a leitora, parece deixar transparecer importantes indícios
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
59 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
sobre a conduta ambivalente em que se acha exposto o brasileiro médio à
demonstração pública de seus sentimentos.
De um lado, a questão dos sentimentos é tratada com uma linguagem
que denota indiferença, como regras de etiqueta, que pode ser visto como
um claro princípio de desempenho. Pergunta a leitora: “pelas regras de
etiqueta, quanto tempo deve esperar um viúvo para se casar novamente? O
mesmo vale para homens que já estavam separados da mulher?”. De outro
lado, ao distanciar o sentimento agora tratado como regra de etiqueta, como
um fato social, público - a morte da ex-mulher do seu companheiro -, exclui
qualquer emoção, mesmo em forma de culpa, do indivíduo que sofreu a
perda (seu companheiro), do processo racional de interação social.
O que significa impor uma aura de irracionalidade ao sentimento do
sujeito, de querer aguardar um ano da morte da ex-esposa para poder
oficializar um casamento que já existe na prática. Irracionalidade a que o
outro se deve opor, e sobre a qual, se não houver quebra de nenhuma
etiqueta ou regra de comportamento socialmente esperado, deve também
seguir o companheiro, como prova de que a marca deixada pela ex-esposa
foi totalmente superada.
Marca que, se existe ou não, parece ser indiferente se privada, se
armazenada no íntimo, como uma questão subjetiva do sujeito em relação.
Se ela se torna pública, se aparece, porém, ameaça.
A individuação do sujeito no trabalho de luto por sua ex-mulher parece
ter trazido à tona a marca da antiga relação, que necessita ser indiferenciada
como etiqueta para não ameaçar a relação atual de anos por culpas,
remorsos ou dor existente. Guardar luto, nesse caso, para a leitora que
indaga, é expor publicamente a chaga privada do casal que já vivia uma
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
60 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
relação anterior à morte da ex-esposa, e de sua própria insegurança
enquanto companheira, do seu íntimo, de sua subjetividade.
A individualização obtida pela indiferenciação, pela negação da
individuação enquanto processo social, repõe ao sujeito como psicologia a
individuação enquanto processo privado. Como um mal, como uma angústia,
como marcas, quase doenças pessoais, que condicionam o agir individual.
Como biografia, vista como o processar angustiante das privações de um
sujeito que sente falta de algo que não sabe o que é, como marcas
pulverizadas de uma ilusão que teima em repetir-se continuamente.
Através da psicologização dos sentimentos se domestica o processo
de individuação, agora encarado com mal civilizatório (MARCUSE, 1968;
CARUSO, 1989 e FREUD, 1974). A intimidade enclausurada no privado
torna-se memória, torna-se uma eterna busca do tempo perdido20, que, já
não assenta suas bases em objetos ou noções de tempo, mas apenas e
cada vez mais se torna desilusão.
Assemelha-se, enfim, a um remontar-se, através de uma espécie
aparente de destinação última, como um desejo indiferenciado, ou, como
disse Olgária Matos (1987, p. 155), como algo “sempre ainda por vir, sempre
já perdido ... (lugar da ) ... impossibilidade de realizar a ânsia por um fim”.
Do vazio, da indiferença, da individualização dos sujeitos que se protegem
publicamente como negação de si mesmos. Como personagens blazés que
fazem, de modo ambivalente, do noir de suas emoções, a própria ação
social, através do princípio de desempenho e da domesticação da
individuação.
A crescente descrença nos rituais sociais de integração do sujeito em
processo de individuação, que tendencialmente vem tomando conta do
20
Parodiando, aqui, com o título do célebre romance de Proust.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
61 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
modo de ser brasileiro, hoje, sobretudo entre a classe média, - tendo como
referência neste trabalho o processo de luto, e a individualização emergente,
- coloca em evidência para análise a questão da fragmentação da pessoa
enquanto indivíduo em sociedade. Toda uma carga simbólica parece recair
sobre o sujeito que se move de modo contraditório entre os sentimentos de
indignação e indiferença.
Indivíduo que parece recusar as regras relacionais tradicionais, ao
mesmo tempo que se sente inseguro e incapacitado para tomar posições no
interior de regras higiênicas e aos moldes do mercado. Regras que o
inviabilizam em função de um individualismo pulverizador da pessoa no
social.
É o que se configura nas afirmações contidas nas respostas à
pergunta do questionário sobre como o sujeito que vivenciou uma
experiência de luto se definiria depois da perda. Esta questão foi respondida
por 1209 informantes. Para 51,78% deles21, após a perda, ficou um enorme
sentimento de vazio, nunca vivenciado anteriormente; seguido por 25,06%,
que responderam que depois da perda houve uma quebra nas relações
familiares, e, 7,78%, que informaram o rompimento para com a religião.
Houve, também, a afirmação de mudança nas condições de vida após
a perda, emitida por 8,60% dos informantes, e uma melhor compreensão da
vida foi enfatizada por 6,78% dos respondentes.
É interessante verificar que, 84,62% dos informantes que
responderam ao questionário, afirmaram uma tendência a um aumento da
solidão pessoal em seu trabalho de luto. Confirmaram, também, um aumento
do seu sofrimento através de um progressivo descrédito individual, com
respeito a instâncias institucionais desindividualizadoras.
21
Conforme pode-se acompanhar no Quadro N. 12, anexo.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
62 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Falta de crédito, esta, motivada por vários fatores. Movida, pelo
quebra da confiança nas mensagens emitidas em termos de dogmas de fé,
através de instituições religiosas. Ocasionada, também, pelo rompimento
das relações sociais na família ou nos códigos em que se assentavam os
padrões de amizade. Ou impulsionada, ainda, pela desilusão com o trabalho
ou com a arte desenvolvida.
O que configura o vazio proporcionado pela perda, como um ato
inominável que percorre e corrói os sujeitos que a vivenciaram e as suas
relações institucionais e societárias. Ampliando e aprofundando a não
sociabilidade da dor interna causada pelo sofrimento, entendida, cada vez
mais, como um espaço de intimidade. Espaço privado, diferenciado do
público e social.
A nova sensibilidade emergente e em vias de consolidação, que
parece vir forjando a emergência desse novo ser brasileiro, deste modo, tem
suas fronteiras delimitadas pela domesticação do espaço privado, enquanto
intimidade. Embora, as instâncias desindividualizadoras, como a família, a
Igreja, os partidos, a comunidade e grupos, entre outros, continuem a existir
e ainda exerçam forte ação em grandes segmentos da sociedade brasileira.
Sem negar a forte influência dessas instâncias desindividualizadoras,
a tendência à dessacralização e à individualização, contudo, cresce e parece
construir códigos universalizantes que contaminam todas as esferas
simbólicas da sociedade.
A domesticação do espaço privado, como intimidade, como um
espaço sentido como não social, estabelece parâmetros para a consolidação
de novos códigos de individualidade. O individualismo vem se constituindo
através do controle social dos processos de individuação. Processos
perigosos por excelência para o social, pela revolução que parecem
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
63 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
provocar nas pessoas, que passam a ver o mundo a partir dos próprios
sentimentos, quer sejam de perda, quer sejam de júbilo, ou outros mais,
nelas exacerbados.
Através do controle é possível, inclusive, pensar-se as emoções como
um dos pontos de sustentação da nova sensibilidade em conformação, pela
centralização do individualismo. As emoções tidas como fundamento do
indivíduo enquanto instância privada, são apropriadas pelo social como
expressões do desejo pessoal e, como tal, convenientemente tratadas.
Apropriadas e tratadas, quer como relações mercantis próprias ao consumo,
quer enquanto questões específicas do individual, do privado, do eu.
As emoções, assim, são domesticadas, pela negação da
subjetividade enquanto esfera própria do social, através de uma nova
roupagem de sentido econômico, tanto quanto de sentido psicológico ou
psicanalítico.
Por essas roupagens a individuação enquanto processo é recuperada
pelo social, e os impasses nas pessoas que o vivenciam domesticado. A
pulverização da pessoa, através da fragmentação de papéis, parece
conduzir para uma radicalização do individualismo nas relações sociais. Os
indivíduos expostos a si mesmos parecem tender a fechar-se em sua
solidão, desvinculando a sua subjetividade, ou tentando desesperadamente
desvinculá-la das interações sociais, do seu ser em público.
O mundo interior e o mundo exterior parecem tornar-se absurdamente
antagônicos. Embora a trajetória do sujeito, sua biografia, seja produto do
intercurso entre os dois mundos, o mundo exterior, enquanto espaço social
por excelência para o individualismo, tende a tornar-se o lugar da desilusão,
da “realidade”, onde as fantasias do sujeito, as ânsias e os desejos mais
íntimos de reencontro do outro e de si mesmo, são desfeitos ou remetidos
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
64 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
de volta ao próprio eu, numa espécie de repetição compulsiva22. Esta
repetição, porém, se, por um lado, aprofunda o distanciamento entre o
privado e o público, enquanto instâncias do eu, por outro lado, inaugura os
novos parâmetros em que se move e se consolida a sensibilidade
individualista emergente.
O processo de escolha que parece recair radicalmente sobre os
indivíduos, arma como cenário o desempenho. Este, encarado como produto
da desilusão sempre renovada do possível encontro dos dois mundos, o
privado e o público, e da indiferença dela resultante. O que parece fazer
aumentar a distância do eu nos processos interativos e como conseqüência
aumentar sua solidão. Ampliar a desilusão pessoal e, consequentemente, o
processo de indiferença para si e para os outros.
A pessoa, então, parece encontrar-se mais exposta em sua solidão e
em sua luta contra o social e, contraditoriamente, pelo social. Mesclado pela
ambivalência, o sujeito em ação configura-se na tendência de olhar com um
relativo desprezo a tradição e os velhos costumes e rituais de integração do
indivíduo à sociedade. Repete, ao mesmo tempo, uma certa saudade
indefinida, sem mais tempo nem espaço identificáveis, e se torna portador
de afetos de indignação e temor. Confuso e confundido, no hoje, pelo
22
Ver um trabalho anterior do autor, Koury (1999a), onde se procurou trabalhar metodologicamente um caso de luto individual, no interior de uma análise antropológica. Nesse trabalho se discute mais profundamente as noções de mundo interior e mundo exterior.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
65 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
processo de higienização dos valores, das regras e das normas de conduta
e comportamento social a que se vê sujeito e ator.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
66 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Capítulo 2
A Morte e o Morrer
"A morte chegou lenta na nossa vida. Por incrível que pareça, todo o processo significou mais no nosso amor. Cada passo da doença eu me agarrava mais a ela, mais alento amoroso eu tinha, nós tínhamos. ... . Meu corpo colava no dela para dar calor, prá passar a dor dela prá mim, prá aliviar ela, e isso me aliviava, me aliviava e era um ato de amor. Eu e ela nunca fomos tão um só. Até o fim, quando a tomaram para o hospital e para a morte". (Entrevista N. 249).
O depoimento acima de um entrevistado23, sobre o acompanhamento
do cotidiano morrer de sua esposa, vítima de câncer, apesar do aparente
apelo sentimental nele incluso e o alto tom de angustia compartilhada a cada
novo estágio da doença, abre este capítulo como uma espécie de epígrafe.
A narrativa contém um elemento comum a muitos processos do lidar com a
morte no Brasil urbano do final do século XX. Este elemento comum
referenciado é a morte higiênica ou, segundo as categorias elaboradas pelo
historiador Philippe Ariès (1983) no seu estudo sobre a morte e o morrer no
ocidente, a Morte Interdita24.
Por morte interdita Ariès entende o processo através do qual se
institui no social contemporâneo a cultura mortuária vista através e sob o
23 Vendedor propagandista de 38 anos de idade, de classe média, com uma renda mensal de aproximadamente R$ 1.500,00, viúvo há quase três anos, na época da entrevista, realizada em outubro de 1999, e residente na cidade de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
67 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
controle do saber médico. Nesse processo a morte é vista no embate com a
possibilidade de cura, e como um fracasso tecnológico e humano
momentâneo.
A luta contra a morte se passa cada vez mais no interior dos
hospitais, reino de um saber técnico e instrumental, para onde são levados
os pacientes. A morte passa a ser interdita, encarada como vergonha ou
como fracasso pessoal ou institucional.
Em um artigo intitulado "La Mort Inversée", Ariès (1967), discute as
mudanças nas atitudes perante a morte nas sociedades ocidentais. Tem
como objeto de análise as mudanças ocorridas nas culturas funerárias dos
Estados Unidos25 e de países como a Inglaterra e a Holanda, mas sua
atenção se encontra voltada para o movimento que parece desenvolver-se
com intensidade nas sociedades industriais, principalmente a França e a
Espanha contemporânea, após o Segunda Guerra Mundial.
Para ele, a nova sensibilidade que vem se esboçando a partir dos
anos cincoenta do século XX nas sociedades industrializadas, e que parece
ter-se aprofundado mais em países como a Inglaterra, Holanda e Estados
Unidos, pode ser analisada em torno de três temas. O primeiro está
associado a espoliação do moribundo, o segundo a simplificação do ritual
funerário, e o terceiro a recusa do luto.
Espoliação aqui tem o sentido de desvio do direito daquele que está a
morrer. Segundo as palavras de Ariès (1967, p. 174), "Hoje em dia já não
resta nada nem da noção que cada um tem ou deve ter de que o fim se
aproxima, nem do caráter de solenidade pública que caracteriza o momento
24 Quarta categoria analítica elaborada por ele em seu estudo. 25
Ver o interessante trabalho de Mitford, (1963), sobre o processo de morte nos Estados Unidos.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
68 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
da morte. O que devia ser conhecido é, a partir de então, escondido. O que
devia ser solene é escamoteado.
É evidente que o primeiro dever das família e do médico é dissimular
a um doente condenado a gravidade do seu estado. O doente nunca deve
saber (salvo em casos excepcionais) que o seu fim se aproxima. O novo
costume exige que se morra na plena ignorância da sua morte. Já não é
apenas um hábito introduzido ingenuamente nos costumes. Tornou-se uma
regra moral".
Como regra tem se tornado a abreviação e a impessoalidade dos ritos
funerários. Deixou-se progressivamente de velar o corpo na casa onde viveu
o morto; do hospital se vai para uma casa de velórios próxima ao hospital, se
não no próprio hospital, ou próxima ao cemitério, se não no próprio
cemitério. Deixou-se também de praticar o longo cortejo fúnebre; hoje,
quando presente, se situa no próprio cemitério onde se irá enterrar o corpo
morto, e o cemitério tende a deixar de ser um local da morte para vender a
idéia de um lugar para o bem-estar dos vivos.
Os rituais religiosos de corpo presente, bem como os cultos e missas
de sétimo, trigésimo dia e um ano da morte do ente querido também
parecem ter-se deixado abrandar. Em muitos casos foram suprimidos os
cultos de corpo presente, bem como o de trigésimo dia da morte. A tradição
ainda mantém, em muitos casos, a missa de sétimo dia e a de um ano de
morte.
Abandona-se, também as expressões públicas de sofrimento, e as
novas convenções configuram-se no exigir que "se oculte o que outrora era
necessário expor ou mesmo simular: o desgosto" (p. 186).
No processo contemporâneo de interdição da morte, segundo a
análise feita por Ariès no seu artigo sobre a inversão da morte aqui utilizado,
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
69 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
a morte parece ter-se tornado um tabu, uma coisa inominável, na qual não
se deve falar em público nem tampouco obrigar aos outros a fazê-lo. A morte
parece ter-se tornado o principal interdito do século XX.
"A sociedade inteira comporta-se como uma unidade hospitalar. Se o
indivíduo agonizante deve vencer sua perturbação e entregar-se
atenciosamente a equipe médica, os que o choram devem ocultar o seu
desgosto, renunciar a uma solidão que os trairia e continuar a sua vida de
trabalho e lazer sem qualquer interrupção. De outro modo, poderia ser
excluídos. ... 'Não se chora', diz Gorer26, 'senão na privacidade, tal como nos
despimos ou repousamos privadamente" (p. 188).
Este capítulo pretende discutir as modificações por que vem
passando a sociedade brasileira nos últimos trinta anos finais do século XX.
Até que ponto as atitudes perante a morte e morrer no Brasil contemporâneo
se enquadra nas análises feitas por Ariès para a sociedade européia e norte
americana? Como os indivíduos entrevistados por esta pesquisa se colocam
em relação a morte e o morrer no Brasil atual, como eles encaram o
sentimento de luto, e que modificações eles apontam, se direcionam ou
sentem falta na história recente dos costumes funerários na cultura
brasileira? Estas são algumas das questões que aqui se pretende analisar.
Passando em Revista as demais Categorias Analíticas de Ariès
26 Ariès cita o já clássico artigo de Geoffrey Gorer sobre os costumes mortuários contemporâneos na Grã Bretanha, intitulado "The Pornography of Death", publicado em 1995 na revista Encounter, e republicado como apêndice em Gorer (1963). Segundo Ariès (1974), Gorer teve o mérito de ter sido o primeiro a formular a regra moral da interdição da morte, da visão da morte como tabu, presente na civilização industrial.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
70 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
A categoria de morte interdita para Ariès (1983) compreende as
modificações por que vem passando a sociedade ocidental na
contemporaneidade. Outras três categorias analíticas ajudam a
compreender a sociedade ocidental em sua história das modificações na
sensibilidade sobre a morte. A primeira, denominada de Morte Domesticada,
parece percorrer o ocidente até o século XII.
Nesta categoria, a morte tendeu a ser simultaneamente familiar,
próxima e indiferente, e implicava uma certa concepção coletiva do destino
de todos e de cada um. Os mundos dos vivos e dos mortos configuram-se
no comungar uma certa familiaridade e coexistência, embora a vizinhança
com os mortos fosse temida. Por isso os rigores dos cultos funerários, como
uma forma de impedir que os mortos retornassem para perturbar o mundo
dos vivos.
A segunda categoria é denominada por Ariès como Morte de Si
Próprio. Ela começa a aflorar na sociedade ocidental durante a segunda
Idade Média, a partir dos séculos XI e XII. São modificações sutis que vão,
pouco a pouco, conferir um sentido dramático e pessoal à familiaridade
tradicional do homem e da morte.
Nesta categoria está presente a idéia e o sentido do Juízo Final, como
uma separação dos justos e dos condenados, e a idéia da ressurreição dos
mortos. Idéia, no final do século XIII, ligada a idéia de uma biografia
individual.
A construção desta idéia orientou as novas características de se
pensar o indivíduo na sociedade terrena e celestial e houve uma inclinação
para situar o Juízo Final não no final dos tempos, mas no próprio quarto do
moribundo. São desta época os livros de etiqueta sobre a maneira de morrer
bem, chamada de artes moriendi, dos séculos XV e XVI.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
71 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Estes tratados, elaborados em interfaces de gravuras e legendas,
começam a indicar a presença de Deus e sua corte no quarto do agonizante.
Presença que tinha o sentido de verificar como este indivíduo iria se
comportar no decorrer da prova que lhe é proposta antes do seu último
suspiro, e que vai determinar a sua sorte na eternidade.
A iconografia das artes moriendi, deste modo, representam um
movimento de passagem entre um rito coletivo e uma inquietação pessoal.
Ainda essencialmente parte de uma ação cósmica, comum a todos,
estabelece, cada vez mais, uma estreita relação entre a morte e a biografia
de cada vida singular.
Esta atitude tende a persistir até o século XIX. Neste, a solenidade
ritual da morte no leito tomou um caráter crescentemente dramático e
emocional, que antes não possuía. Ao mesmo tempo que reforçou o papel
do moribundo nas cerimônias de sua própria morte.
Neste período também acentua-se uma espécie de horror da morte e
da decomposição do cadáver. A decomposição e assemelhada à ruína do
homem, sentido específico do macabro, e à noção de fracasso. Fracasso
entendido enquanto certeza da morte e da fragilidade da vida.
A morte sempre presente no interior de si mesmo dava ao homem do
final da Idade Média uma paixão pelo viver e um apego apaixonado às
coisas e aos seres possuídos durante a vida. O processo de morrer foi
configurado e converteu-se, então, para este homem, no lugar por
excelência onde poderia possuir uma melhor consciência de si mesmo.
A terceira categoria analítica para demonstração das atitudes do
homem ocidental perante a morte e o morrer na história, de Ariès, intitula-se
a Morte do Outro. A partir do final do século XVIII o homem ocidental parece
já se preocupar menos com a sua própria morte. A morte romântica aparece
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
72 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
mais como a morte do outro. Este outro que, no decorrer do século XIX e no
século XX, tende a encarar a morte como uma espécie de transgressão.
Como um movimento e um momento inusitado que arranca o homem de sua
vida cotidiana para o submeter e o lançar a um mundo irracional, violento e
cruel.
Esse sentimento de ruptura, de transgressão, encara a idéia de morte
como um momento de beleza admirável. Por outro lado, se a morte no leito
rodeado de parentes, amigos e anônimos, ainda continuava como nos
antigos, ganhava no decorrer do século XIX um novo formato: a emoção que
toma conta da platéia que vela o moribundo. Choro, gritos, gesticulações
parecem ser inspiradas por uma dor causada por um sofrimento único. Por
um sentimento espontâneo, apaixonado.
A simples idéia de morte é comovente, a separação daqueles que se
foram se afigura como intolerável. Diferente dos sentimentos do morrer dos
períodos anteriores, na descoberta da morte do outro aprofunda-se na
mentalidade do homem comum a complacência com a idéia da morte. Bem
como a relação do moribundo com a sua família.
Para Michel Volvelle (1973) o período chamado por Ariès de
descoberta do outro se fez através da ampliação do processo de laicização e
revelou a emergência de uma nova atitude perante a morte e o morrer, que
ele chamou de descristianização. Mudanças caracterizadas por um menor
investimento na economia moral da salvação, e em uma ampliação do
sentimento individual em relação ao morto e à morte.
A atitude desta nova fase fundamenta-se com a ênfase nas palavras e
nos gestos do moribundo e no papel dos assistentes da agonia deste. Se
partir do final do século XVIII, o luto parecia obrigar a família a manifestar um
sofrimento pela morte do ente querido durante um certo período de tempo,
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
73 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
ao mesmo tempo que a defendia contra os excessos de sua própria dor, no
século XIX, tem-se como que um exagero do luto.
Os enlutados parecem aceitar a morte do ente querido mais
dificilmente que em outros tempos, teme-se a morte do outro,
aparentemente, mais do que a própria morte.
Inaugura-se uma nova época do silêncio em relação à própria morte e
ocorre uma maior proliferação de representações sobre a morte alheia. A
morte alheia é exaltada, dramatizada, vista como impressionante e
arrebatadora. É a fase da morte romântica, em sua dimensão literária, e da
morte privada, recôndita, na esfera do cotidiano.
No final do século XVIII ocorreram mudanças significativas em
relação às atitudes diante da morte e dos mortos, período que corresponde a
intervenção da prática médica nas questões referentes à cultura mortuária.
Estas mudanças apontavam para uma conduta hostil em relação à
proximidade do moribundo e do morto.
Atitude aprovada e recomendada pelos médicos ao alegarem motivos
de saúde pública. Reforçada, também, pela redefinição das noções de
poluição ritual, presentes nos costumes e práticas do homem comum
contemporâneo a este processo.
A proximidade dos moribundo e dos mortos passa a ser considerada
perniciosa. O que reforça um conjunto de mudanças no imaginário e na
mentalidade sociais, que se expressam desde a presença de novas formas
de sensibilidade, até as práticas e hábitos de poluição e limpeza. Pela
redefinição, enfim, dos códigos de pureza e perigo, na expressão do
excelente livro de Mary Douglas (1976), orientadas mais por critérios
médicos e não religiosos, como até então vinham sendo demarcadas.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
74 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
As linhas de ruptura que parecem conter toda a periodização
realizada por Ariès em suas categorias analíticas das atitudes do morrer e
da morte no ocidente, afiguraram-se por ter, tendencialmente, se
desenvolvido lentamente durante toda a Idade Média até o final do século
XIX. Período que contém as três categorias analíticas agora em revista.
Linhas de ruptura que foram se configurando de forma tão lenta a
ponto de passarem quase imperceptíveis para os contemporâneos de cada
uma delas. Em todas elas, porém, parece se fortalecer o processo de
formação do indivíduo moderno. Movimento de constituição que caminhará
até a manifestação de uma linha de ruptura que se aprofundará durante o
século XX, e se caracterizará pela grande recusa da morte na
contemporaneidade. A Morte Interdita. A morte considerada vergonhosa e
objeto de um interdito.
A Morte e o Morrer no Brasil
Será que as categorias analíticas de Ariès construídas para o estudo
da sociedade ocidental industrializada acima passadas em revista, ajudam a
compreender o caso brasileiro? De um lado, pode-se argumentar que o
Brasil é fruto de um processo colonizador e produto da própria maturação e
caminhar da Europa Ocidental deste o século XVI. Neste caso, o Brasil faz
parte do espólio e do legado europeu, sendo parte integrante, portanto, do
mundo ocidental moderno e contemporâneo. De outro lado, porém, no
processo formativo da nação brasileira, certos traços e conformações do
passado que emolduram as relações travadas internamente desde a sua
gestação permanecem, marcando sua singularidade enquanto cultura e
organização social, a cada momento e movimento societal.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
75 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Rupturas e continuidades configuram as possibilidades históricas de
conformação da sociedade brasileira. Para os estudiosos, assim, é
buscando os vínculos passados ainda existentes no presente, e perguntando
o porque ainda de sua existência, real, imaginária, ou redefinida, que se
possibilita a compreensão e o detectar não apenas da história social desta
formação social, mas também o jogo cultural, político e econômico das
forças sociais em movimento internamente e suas relações internacionais.
Forças internas que remetem, refletem e reconstroem continuamente
a singularidade e a especificidade de sua experiência cultural, ao mesmo
tempo que fundam e são fundadas por relações internacionais presentes
desde seu processo gestativo e formativo. Nada mais nada menos, que
frutos de legados, trocas e embates estabelecidos com culturas e
organizações societárias fundamentais a sua construção enquanto povo e
nação. Bem como os projetos, desejos, sonhos e lutas que orientam
rupturas e conformações novas sobre o já anteriormente instituído.
Neste sentido, as categorias de Ariès construídas para entender as
atitudes perante a morte e o morrer na Europa e nos Estados Unidos, ou nos
países industrializados do ocidente, servem também para informar sobre a
cultura funerária no Brasil. Pelo legado europeu e de seu embate com outras
culturas presentes, como a africana e a indígena, que influenciou a formação
do país desde a colônia, e as relações estabelecidas internacionalmente
após sua independência. Bem como à instituições internacionais, como as
Igrejas, principalmente a católica, presentes na conformação do pensamento
ocidental no seu veio judaico cristão, e as idéias e ideais culturais, estéticos,
acadêmicos, científicos e tecnológicos do ocidente, que influenciaram os
embates presentes na configuração e consolidação de um pensamento
nacional.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
76 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
É impossível, assim, buscar uma compreensão de um pensamento
brasileiro e das atitudes de sua população, sem situar a história de sua
singular formação social a nível internacional, especificamente, ligado à
cultura européia.
Para situar as atitudes em relação à morte no Brasil, se passará aqui,
em revista, alguns trabalhos de historiadores que se debruçaram
principalmente no século XIX de nossa história. Século entendido como
fundamental para compreensão dos rumos traçados para os processos no
desenvolvimento e consolidação do indivíduo e da sociedade
contemporânea ocidental e, aqui, especificamente, brasileira.
Os autores que ajudarão a elaborar uma breve síntese do século XIX
brasileiro sob a perspectiva comportamental em relação a morte e aos
mortos neste capítulo são, entre outros, Gilberto Freyre (1961 e 1977),
Frédéric Mauro (1980), João José dos Reis (1991 e 1997), Claudia
Rodrigues (1995), Sandra P.L. Camargo Guedes (1986), Ariosvaldo da Silva
Diniz (2001) e Lenilde Duarte de Sá (1999). Autores que, ou trataram
diretamente da questão das atitudes perante a morte e o morrer no Brasil ou,
ao retratarem o cotidiano do século XIX, tocam e apontam movimentos para
mudança nos costumes e representações no interior da cultura mortuária no
país.
Para a maioria dos autores aqui trabalhados, a morte até meados do
século XIX no Brasil era vista como uma espécie de rito de passagem entre
a vida física e a vida atemporal após a morte. Comandados pelos rituais e
crenças religiosos, o sentimento e o agir em relação a morte e o morrer eram
orientados no sentido de uma busca de garantia de um bom lugar na vida
eterna, e neste sentido, para uma preocupação com a preparação individual
para se morrer bem.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
77 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
A noção de boa morte presente sobretudo no imaginário cristão
católico desde a idade média européia, está baseada em uma estrutura
imaginária de troca. Estrutura imaginária esta, onde os valores simbólicos
afiguram-se como sendo inseparáveis dos resultados materiais e sociais que
a permeiam e os fins que persegue.
É formada por uma rede de relações complexas entre o moribundo,
os que o sobrevivem, sobretudo os parentes e amigos próximos, entidades
como a Igreja, intermediária fundamental entre os vivos, os mortos e a
eternidade, e o sobrenatural, com toda a sua rica hierarquia e estratificação.
Além dos pobres, considerados "substitutos terrestres dos mortos, pois as
esmolas que lhes são dadas fazem parte dos 'sufrágios' que ajudam na
salvação dos defuntos. Alimentar materialmente os pobres equivale a
'alimentar' simbolicamente, com preces, a alma penada do doador que está
morto" (SCHMITT, 1999, p. 50).
A busca de morrer bem está associada assim as estratégias lançadas
por alguém em vida, - ou mesmo depois de morto, através de aparições, por
exemplo, - para livrar-se da morte eterna. A morte eterna é uma noção
extrema, na complexa simbologia cristã. Segunda esta, no Juízo Final, os
mortos ressuscitarão após um julgamento divino particular de cada pecador.
Aqueles condenados ao inferno não ressuscitarão, condenados que estão
ao fogo eterno.
A idéia de morte após a morte está ligada assim a idéia de inferno. Na
geografia celeste (REIS, 1997, p. 97), os puros de espírito ganharão a vida
eterna e o reino dos céus. Os sem possibilidade de salvação, a morte
eterna, simbolizada pelo inferno. Esta dicotomia é quebrada, a partir do
século XII, por uma instância intermediária chamada por Jacques Le Goff
(1981, p. 386) de "Inferno Temporário", que dá forma a idéia de purgatório.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
78 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
A idéia de purgatório, ou seja, a idéia de uma instância intermediária
entre o céu e o inferno, entre os bons e os irrecuperáveis surge em um
momento onde o imaginário sobre os mortos deixa de lado um espaço onde
se pensa a coletividade, como o exército de mortos, por exemplo, para
concentrar-se cada vez mais no morto particularizado, individualizado. Um
lugar fixo para as almas penadas, - que necessitam, entre outras coisas, de
preces, velas, presença na memória e nos sacrifícios dos vivos, para
alcançarem a vida eterna, id est, a salvação.
Essa concepção de um lugar intermediário como um lugar de almas
em processo de purificação, através da noção de purgatório, permite não
apenas situar o morto como um ser individualizado, mas também possibilita
uma certa tranqüilidade aos vivos. As almas penadas não saem mais em
exércitos a vagar pelo mundo horrorizando os vivos, eternamente, sem ter
um lugar para ficar, um "domicílio fixo" (SCHMITT, 1999, p. 146).
Não que elas deixem de fazer aparições a indivíduos ou grupos de
indivíduos específicos, a procura de rezas, e de se fazerem lembrar aos que
ficaram, mas agora, elas tem um local de moradia, para onde vão e voltam.
Quem sabe, também, a partir das orações, missas, penitências, e
cumprimentos dos vivos das promessas e dívidas do morto, bem como de
esmolas ofertadas aos pobres da região, não cumpram sua parte da dívida,
e consigam a vida eterna através da purificação dos seus pecados.
A criação imaginária do purgatório, assim, possibilitou, de um lado, a
emergência da alma individualizada que pode ser purificada dos seus
pecados. O que significou uma chance para a salvação de muitos vivos
quando no chegar de sua hora. De outro lado, permitiu também um maior
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
79 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
intercâmbio e solidariedade entre os vivos e os mortos27. Através de orações
e ações penitenciais dos vivos poderia ser conseguido a salvação dos
mortos, presos nesta região de passagem, chamada de purgatório. Bem
como, as almas no purgatório também poderiam aparecer aos vivos para
avisá-los e, quem sabe, salvá-los, de algo que no futuro imediato poderia
acontecer-lhes, ou de suas mortes, para que pudessem ir se preparando,
enquanto ainda estavam com vida e saúde.
Este contato entre vivos e mortos se amplia na Europa entre os anos
1000 a 1300, segundo Le Goff (1981) e Schmitt (1999), e é bastante comum
no Brasil do final do século XVIII e boa parte do século XIX, segundo Reis
(1991), Rodrigues (1995), Guedes (1986), indo, se acompanharmos a
análise de Roberto DaMatta (1987), até meados da década de sessenta do
século XX e, quiçá, até os dias de hoje, em algumas comunidades
espalhadas pelo solo brasileiro. A preparação da e para a morte era sentida
como uma espécie de normalidade cotidiana, bem como os estreitos
vínculos entre os vivos e os mortos, e a ingerência dos vivos na salvação e
purificação das almas do purgatório. A vida e a morte, embora entendidas
como dois mundos, faziam parte de um mesmo imaginário social, e nele e
sobre ele mantinham um intercâmbio e uma busca simultânea para ajudas e
satisfações pessoais, quer dos vivos, quer dos mortos.
27
A proximidade entre vivos e mortos no Brasil de oitocentos é analisado por Bastide (1971), não apenas com base na prática católica, religião dominante e oficial do país de então. Mas também, e principalmente, por uma comparação entre as concepções católicas e a cosmogonia e concepções sobre o outro mundo trazidas pelos africanos no exílio brasileiro como escravos. Demonstra que, apesar da força da Igreja Católica, muito dos rituais e concepções sobre a morte e os mortos do catolicismo foram impregnadas no Brasil pelas noções trazidas pelos africanos no país. Bem como, rituais africanos foram transvestidos e incorporaram práticas e valores do catolicismo vigente. Apesar de frisar que, sem qualquer dúvida, as regras católicas predominassem no lado público, especialmente, dos funerais. Ver, também, Santos (1986) e Reis (1991).
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
80 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Com a idéia de uma salvação personalizada, a cada alma individual, o
julgamento final era pensado e realizado pela presença do reino celestial
junto ao leito de cada moribundo. Estágio analítico correspondente à
categoria de morte domesticada de Ariès (1983).
No Brasil, este processo invade o século XIX. Com a proximidade da
morte sentida por um indivíduo qualquer, este reunia os familiares, parentes,
amigos, conhecidos e desconhecidos, além de pobres e mendigos, em seu
quarto, onde passava em revista a sua vida. O quarto do moribundo era o
lugar por excelência onde se realizava o julgamento celestial de suas culpas
e acertos.
A preparação para a morte, assim, no caso brasileiro, era vista como
fundamental para se conseguir a salvação ou a vida eterna. No século XIX, a
morte boa era a morte avisada. A doença não era considerada um mal
pessoal, mas um aviso celeste para o indivíduo preparar-se para morrer.
Fatídica e temerosa era a morte súbita. Aquela que retirava de entre
os vivos um ser, repentinamente. Segundo Reis (1997), este tipo de morte
era temida pela população brasileira nos oitocentos, por vir sem a
possibilidade de acompanhamento de uma preparação pessoal e dos rituais
exigidos e necessários na cultura fúnebre da época. Este tipo de morte
parecia querer atestar a necessidade de ampliação dos esforços dos vivos
para a salvação daquela alma que se foi sem o tempo de preparação.
Era tida como mal presságio pela sociedade do século XIX. A
sociedade brasileira dos oitocentos olhava de viés os familiares de um morto
súbito, e os levavam a uma prática penitente muito mais aguda para salvar
não só a alma do que se foi, mas o mal familiar exposto, e que colocava em
perigo toda a comunidade, pela situação de risco anunciada pela morte
repentina do parente morto.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
81 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Sociedade, instituições familiares e religiosas e o mundo do além,
deste modo, estavam em perfeito estado de entrosamento. Entrosamento
este que não quer dizer harmonia, mas requer o pensamento em uma forma
de solidariedade movida a tensões e disciplina dos corpos e das mentes à
uma política e à uma cultura fincadas no equilíbrio de espaços temporais,
existentes na tênue demarcação entre o tempo dos vivos e dos mortos.
O momento de passar em revista as ações e as omissões junto ao
reino celeste, significava também para o moribundo, no seu leito de morte,
rodeado de próximos e desconhecidos, preparando-se para a sua morte em
breve, um tempo de fazer justiça (REIS, 1997, p. 103 e 104) e de reparar
moralmente pessoas ou instituições por ele difamadas, negadas ou
negligenciadas em sua vida cotidiana. O preparar-se para a morte era assim,
também, um reparar ações e omissões realizadas ao longo de uma vida,
como além, a realização de um inventário de seus esteios, bens e afetos
conquistados no decorrer de seu percurso como homem.
Era, assim, sobretudo, um saldar as dívidas e os compromissos no
social28. Sociedade dos vivos e dos mortos eram, deste modo, intricadas, na
preparação de um ser para a morte e na idéia de salvação nelas
incorporadas.
O cenário por onde se movimentava a morte representava, neste
período, sobretudo, uma manifestação social (ARIÈS, 1983, p. 110). Era o
cenário da Morte Domesticada.
Construção cênica que trazia e punha em ação, como ator principal, o
moribundo no seu julgamento pela corte celestial. A ele secundando padres,
familiares próximos e distantes, amigos e conhecidos e o público em geral. A
28
Ver, para uma análise comparativa sobre esta questão, entre o Brasil dos séculos XVIII e XIX e Portugal da Idade Média, o texto de Marques (1974).
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
82 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
morte era vista e sentida como um acontecimento social, e não deveria ser,
idealmente, uma morte repentina, solitária, privada.
Este aspecto de acontecimento social era importante para o trespasse
do morto, na cultura funerária da época, pois o público em volta do
moribundo não apenas testemunhava a sua boa morte, mas e sobretudo, o
ajudavam com suas preces e penitências "ao pé do morto"29. A
sociabilização dos processos do morrer, assim, no Brasil oitocentista, pode
ser pensado como fruto de uma sociedade relacional e pouco individualista,
nos dizeres de Roberto DaMatta (1983). Sociabilidade esta ainda não
reduzida ao núcleo da família nuclear, locus por excelência da morte
privada.
O processo de privatização da morte e do morrer foi se instalando
paulatinamente no Brasil do século XIX, através de uma separação da idéia
do destino do cadáver e do destino da alma. Segundo autores como David
(1995), Diniz (2001), Sá (1999), que trabalharam a relação saúde e
sociedade no Brasil com enfoque na epidemia do cólera no século XIX nos
estados da Bahia, de Pernambuco e da Paraíba, a sensibilidade do homem
do final dos oitocentos parece mudar para uma nova forma menos apegada
aos domínios do sagrado e mais ligada as coisas profanas.
Sá (1999, p. 47), por exemplo, ao retratar as discussões entre
higienistas, sociedade e poder local na cidade da Parahyba do Norte, hoje
João Pessoa, no estado da Paraíba, durante a segunda metade do século
XIX, fala de uma linguagem híbrida do sagrado e do profano que marca as
entrelinhas do discurso que sugere a necessidade do processo de
29
Expressão utilizada por um entrevistado ao falar da diferença do ritual da morte entre o 'antigamente' e o 'hoje'. É interessante notar que o 'antigamente' levantado pelo entrevistado não se refere ao século XIX, mas ao final dos anos quarenta e o correr dos cincoenta do
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
83 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
urbanização da cidade em sua relação com uma atitude enérgica de
desenvolvimento de práticas sanitárias de caráter público. Linguagem
híbrida que paulatinamente começa a tornar-se, cada vez mais, técnica e
racional, deixando de lado as recorrências à 'castigos dos céus' e outras
referências ligadas ao sagrado, quando o discurso médico vai se tornando,
com o avanço da epidemia, em discurso oficial do poder.
No final do Império no Brasil e no raiar da República, segundo os
autores citados, parece que os limites de tolerância do olfato se tornaram
mais rebuscados. Esse aumento de sensibilidade30 era verificado
principalmente com relação aos locais onde se percebiam aglomerados
humanos, vivos ou mortos. Médicos, higienistas e homens do poder, deste
modo, descobriam os espaços e lugares onde residiam ou se entulhavam
corpos capazes de provocar doenças em outros corpos.
Cemitérios, hospitais, ruas, portos e prisões, bem como bairros
periféricos onde se aglomeravam a pobreza urbana no Brasil, passavam a
ser objeto de inquietações e buscas de ordenamento (KOURY, 1986). Como
o fizeram no final do século XVIII os protagonistas do discurso higienista na
Europa, de onde se originaram e foram influenciados os discursos e práticas
higienistas brasileiros.
A morte e o morrer passam, assim, também, a sofrer modificações na
prática cotidiana dos homens brasileiros dos oitocentos. Esta relação,
contudo, começou a vir a ser revelada, com mais ênfase, a partir da segunda
metade do século XIX, ligada, sobretudo, ao aumento do contigente
século XX, por ele vivido como adolescente na cidade de Vitória, estado do Espírito Santo. (Entrevista N. 200). 30
Ver a excelente discussão sobre a construção social dos sentidos em Ackerman (1992).
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
84 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
populacional no país, agravando os problemas da sua incipiente
configuração urbana
Talvez motivados pelas epidemias e mortes acentuadas, tornando
cada vez mais técnico e racional o trato e o lidar com a morte e o morrer, o
processo da morte passa também por uma reconfiguração e um
distanciamento das práticas e costumes comuns até então de
acompanhamento público do moribundo até a sua morte, do seu velório,
cortejo fúnebre e sepultamento.
Uma maior brevidade entre o morrer e o sepultamento é verificado
nos novos costumes que passam a viger, mesmo que ainda cheios de
ambivalência e certa relutância no deixar de lado as velhas práticas e
hábitos comportamentais. O medo da morte, porém, compromete o
prosseguir das velhas práticas e as mudanças para novas formas de
sensibilidade começam a se impor.
A doença deixa de ser vista como um aviso de bom presságio de uma
boa morte e de um aceite no reino celeste, e começa a ser encarada como
ameaça de morte de um outro para outros. Torna-se uma ameaça a ser
combatida com vigor, deslocando-se do discurso médico e higienista, e do
discurso do poder que o incorpora, e passando, gradualmente, a fazer parte
do imaginário e da mentalidade do homem comum brasileiro do final dos
oitocentos até próximo aos anos cincoenta e sessenta do século XX, quando
começa a se consolidar enquanto atitude.
O corpo morto também deixa de ser objeto de veneração e de
atitudes rituais demoradas e próximas dos entes queridos, vizinhos, amigos
e público em geral, e passa a ser prognosticado como corpo contaminado e
que contamina a quem dele tiver contato. Os odores que dele emanam,
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
85 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
como corpo morto, ou mesmo como corpo doente, moribundo, passam a ser
evitados como possíveis de contaminação31.
A morte vira um questão sanitária. Deixa de ser social, no sentido
complexo da subjetividade dos sujeitos nela envolvidos, - o moribundo, os
familiares, as instituições, o público em geral, toda a sociedade, enfim, -
enquanto rede de relações simbólicas e afetivas, e passa a ser uma questão
técnica de controle higiênico para a vida.
Deixa de ser um elemento natural de um ciclo de vida, e começa a ser
considerada como algo anormal, como um objeto não solucionado pela
tecnologia médica do momento. Inicia-se, deste modo, o longo processo em
que a morte começa a ser negada e vista como um constrangimento social
pelo homem urbano no Brasil.
A Morte e o Morrer no Brasil Contemporâneo
A sociedade brasileira no século XX passou por profundas
modificações no seu perfil populacional, social e econômico. Um período
intenso de mudanças se configurou na década de vinte, onde as cidades
começaram a adensar-se em termos populacionais, e um surto de
modernização teve início, com políticas urbanas de embelezamento,
saneamento, e adequação dos veios de circulação de produtos mercantis e
humanos, que melhor se adequassem as exigências do capitalismo
internacional no momento.
Um segundo ciclo de mudanças aconteceu a partir dos anos
cincoenta, com a política desenvolvimentista do Governo Kubtscheck e a
31
Essa relação é, concomitantemente, estendida aos pobres e aos locais de pobreza, que passam a ser vistos como locais contaminados e perigosos que precisam ser higienizados (ver, KOURY, 1986, entre outros).
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
86 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
política de industrialização e modernização da economia brasileira a ela
conseqüente. Neste momento, a população brasileira começou a deixar de
ser predominantemente rural, e passou cada vez mais a concentrar-se nas
cidades, principalmente nos grandes centros urbanos e nas capitais dos
estados.
Processo que se consolidou e se expandiu a partir do golpe militar de
1964, e principalmente dos anos setenta. De acordo com o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, a população urbana da década
de cincoenta correspondia a 36,16 % da população brasileira, passando na
década de sessenta a representar 44,67 %, na década de setenta, 55,92 %,
na década de oitenta, 67,60 % (IBGE, 1987), na década de noventa, 75,60
% (IBGE, 1996 e 1997) e no ano 2000, 81,23 % do total da população
(IBGE, 2000).
Esta mudança acelerada nos padrões estatísticos do país modificou
não apenas os padrões econômicos, que passam a concentrar nos esforços
industriais e de serviços os aspectos do seu desenvolvimento, bem como em
uma agricultura e pecuária cada vez mais intensiva e mecanizada, mas
também, e principalmente, para os objetivos deste trabalho, os padrões
sociais e culturais existentes. A mudança rápida de uma tradição rural para
uma urbanidade desordenada e intensa, parece atingir em cheio hábitos
comportamentais, dilacerando práticas relacionais comunitárias e
provocando sentimentos díspares e ambivalentes quanto ao papel a
desempenhar em situações concretas do dia a dia da existência societária.
É importante assinalar, também, que esta passagem brusca de um
estatuto rural populacional para uma urbanidade em processo rápido e
acelerado de concentração, veio acompanhada também por uma
centralização provocada, sobretudo, pela concentração dos serviços
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
87 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
informacionais e de mídia em pólos específicos, centrados no eixo Rio de
Janeiro e São Paulo.
Padrões de comportamento e atitudes locais passam a ser
abandonados ou modificados segundo regras ditadas pela concentração
excessiva de informações, principalmente com a expansão da televisão em
rede nacional no país a partir da década de setenta. O chegar à cidade vem
acompanhado também por um processo de exclusão econômica para uma
grande parte da população em processo contínuo migratório, principalmente
para os grandes centros urbanos. Expulsos do campo vão para as cidades
em busca de empregos e sobrevivência, atraídos, a partir da década de
cincoenta e principalmente, da década de setenta e oitenta pela ilusão de
empregos industriais e pela expansão da construção civil em processo
acelerado no país.
As cidades se expandem, a miséria da maioria da população
aumenta, ao mesmo tempo que se amplia uma classe média sequiosa de
novidades e buscando se desprender de padrões culturais e hábitos
comportamentais considerados pela mídia como não atinentes aos padrões
civilizados de uma urbanidade ocidental.
Nos anos noventa, principalmente, esta tentativa de inclusão, ou
melhor, do sentimento de fazer parte de uma modernidade ocidental, tendo
como parâmetro a sociedade americana, é acentuada. A necessidade de
incorporar-se a padrões culturais e comportamentais globais de
desempenho e competitividade, parece ter tomado conta de grande parcela
da classe média nacional, ampliando as margens de desclassificação de
hábitos considerados não condizentes a padrões civilizatórios e urbanos da
modernidade mundial, e aumentando a ambigüidade do homem comum
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
88 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
sobre o como, onde e porque comportar-se nas situações de fronteira
enfrentadas no cotidiano da vida social.
Parece que o embaraço de ser confundido comportando práticas
comportamentais ou costumes considerados tradicionais ou interioranos
tomou conta de uma parcela crescente da classe média que, embora ainda
possam estar ancorados em tais hábitos tendem a expressar um certo
desprezo por eles. O que vem ampliando a ambigüidade de suas ações,
bem como, acentuando um certo sentido de não pertença que os tornam
cada vez mais solitários e com dificuldades de expressão de emoções
pessoais ou frente a outros.
O grande problema, no caso brasileiro, desta mudança nos costumes,
de uma tradição rural para uma tradição de urbanidade importada das
práticas vividas pelos países ocidentais, considerados de primeiro mundo,
parece ser o da rapidez com que vem se dando tal processo. Os estratos
médios desta sociedade, sobretudo, vem se configurando através de uma
tendência a uma incorporação das matizes de modernidade do
comportamento ocidental contemporâneo, com ansiedade e com uma
pressa incomensuráveis32.
Elias (1990 e 1993), analisa o processo civilizador europeu, e a
caminhada do ocidente para a modernidade do que viria a ser o capitalismo
atual, através do conceito de vergonha ou embaraço. Para ele, este
movimento de sentidos se faz a partir de uma mudança lenta na "maneira
como o indivíduo comporta-se e sente" (1990, p. 14). Modificações que
começam a tomar forma deste o século XIV na Europa e que, a partir do
32
Se si toma que a inclusão ao moderno se amplia à camadas mais extensas da população brasileira, principalmente, a partir dos anos setenta do século XX. Diferente do que anteriormente se dava, até os anos sessenta, fruto de pequenos grupos de elite político e
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
89 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
século XVIII, tornam-se, cada vez com mais força, em marca característica
do mundo ocidental, na sua forma de uma necessidade de um exercício de
um “controle dos sentimentos individuais pela razão” (ELIAS, 1990, p. 34),
tanto entre a classe média burguesa quanto entre os cortesãos. O que
tornaria a noção de vergonha em um conceito chave para a análise dos
costumes e práticas da civilização ocidental.
Este mesmo argumento ele vai tomar um pouco depois, na sua
análise sobre o papel da velhice e do envelhecimento na sociedade
moderna. Nesta análise ele afirma que, embora a tendência a um controle
de sentimentos fosse vindo sendo construída lentamente na sociedade
ocidental, tomou uma forma de estranhamento e solidão do indivíduo comum
e do outro, a partir dos anos cincoenta do século XX, de forma abrupta e
vertiginosa (ELIAS, 1989), tornando qualquer expressão de emoção em uma
atitude embaraçosa em uma relação social qualquer.
Ariès (1966, 1967 e 1972), também, em seus estudos sobre o
comportamento do europeu contemporâneo em relação a morte e ao morrer,
e nas expressões de sentimentos públicos seja quanto a formas de
exposição do sofrimento pessoal ou de demonstrações de afeto e
solidariedade, coloca os anos cincoenta do século XX como um momento de
exacerbação da vergonha no público, e de um sentimento de embaraço em
não saber como expressar-se em determinadas situações, pelo homem
comum. O que parece, ampliar o grau de isolamento do sujeito em si
mesmo, associado a uma atitude de ambivalência pessoal em querer buscar
o outro e se sentir tolhido socialmente por uma demonstração de
necessidade de carinho ou de expressão de solidariedade, e de uma
econômica, culturalmente sempre buscando se aproximar dos ideais culturais de um padrão de comportamento europeu.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
90 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
falência da sociedade atual na administração ritual das emoções, tornando-
as não sociais em si.
Os dois autores, contudo, embora tomem a segunda metade do
século XX como o momento de verticalização da tendência atual da atitude
de solidão e estranhamento do homem comum na sociedade ocidental,
partem da constatação e da construção histórica da mudança dos costumes
nesta sociedade, como vindo se fazendo dos finais da idade média em
diante. A surpresa dos dois autores ao analisarem a contemporaneidade
ocidental, fica pela rapidez com que evoluiu o embaraçar-se do homem
comum no publico, enquanto expressão ou afirmação dos sentimentos, nos
últimos cincoenta anos do século XX.
No Brasil, embora se possa verificar nos anos finais do século XIX
uma mudança nos padrões de comportamento e do sentimento em relação à
morte e ao morrer, como foi visto acima, essa mudança atingiu
principalmente uma pequena parcela da população que vivia nas cidades,
com o abrandamento dos rituais de despacho do corpo e da importância da
tecnologia médica em crescendo sob suas vidas. É a partir dos anos setenta
do século XX, porém, que a população urbana no Brasil ultrapassa a rural,
com a ampliação de uma classe média que buscava ajustar-se a um novo
patamar de realidade, aproximando-se com relativa rapidez, das
experiências civilizatórias européia e americana.
Esta aproximação se fez a partir de um negar crescente dos costumes
a que estava habituada até então, havendo um progressivo rompimento com
as práticas relacionais em que foi criada e consideradas, agora, como
interioranas. O que ocasionou um paulatino desbravamento de caminhos
para buscas de individualidades dos sujeitos. Formas de individualidade que
começaram a impor-se como padrão comportamental. Individualidade esta
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
91 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
considerada como padrão de civilidade, de liberdade do indivíduo frente a
sociabilidades em que estava emerso.
Os anos setenta e meados dos anos oitenta são prenhes de
experiências de padrões individualísticos de comportamento no Brasil. Estas
experiências são vivenciadas, principalmente, entre a classe média urbana,
após a derrocada do movimento de resistência a ditadura militar implantada
em 1964, e o aparecimento, de um lado, de movimentos de contra cultura,
como forma de resistência nova ao regime autoritário em vigor, e de outro
lado, de espaços de integração, pelo crescimento de mercados, pela
constituição de uma mentalidade tecnocrata-empresarial de carreiras
executivas, e através da consolidação e da reforma do ensino superior nas
universidades públicas no país, com a implantação em larga escala da pós
graduação e formação de pesquisadores no exterior.
Estes dois momentos, simultâneos, identificam as mudanças nos
campos comportamental e cultural e as formas em que se deu e se dirigiu a
expansão da classe média urbana brasileira nos últimos trinta anos, bem
como permite compreender a crise por que passa esta mesma classe média
do final dos anos oitenta e no decorrer de toda a década de noventa,
penetrando no século XXI33, de identidade e busca de adesão a um padrão
globalizado ocidental.
33
Os anos oitenta são considerados pelos economistas como a década perdida no Brasil. Esta década afoga, também, as esperanças de uma ampliação da sociedade em bases democráticas, com a falência da campanha de eleições diretas e a possibilidade de participação social nas grandes esferas da política nacional. Por outro lado, a crise econômica que avança no Brasil da década de oitenta e se prolonga por toda a década de noventa, tem reflexo, principalmente, na classe média urbana. Baixos salários, desemprego, falta de perspectiva para realização de projetos sociais, faz com que tenha inicio uma diáspora nacional, com um aumento significativo de indivíduos oriundos da classe média, com grau superior, que vai tentar ganhar a vida como clandestino em países desenvolvidos da Europa e, principalmente, dos Estados Unidos.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
92 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Diferente das análises realizadas para a Europa por Elias e Ariès, no
Brasil o processo de individualização e perda de referenciais e valores
culturais comunitários vividos pela classe média urbana é recente e vertical.
O que parece criar uma ambivalência de sentimentos muito grande entre
esta parcela de habitantes, tanto na defesa de uma atitude radical
individualista, quanto na defesa de padrões de um passado recente perdido.
Muitas vezes ficando em um meio termo, perigoso, de não saber como agir
em determinadas situações concretas.
Se na Europa, as formas de comportamento e mudanças no costume
funerários chocou Ariès como especialista no assunto, com o ritmo
acelerado que tomou a partir dos anos cincoenta do século XX, no Brasil,
pelo rompimento agressivo com que foi realizado, de uma passagem brusca
de uma solidariedade rural para uma solidariedade urbana em moldes
competitivos a partir dos anos setenta, principalmente, acelerando-se nas
décadas seguintes, o caminho por que se processou o rompimento de
valores culturais entre a classe média, parece ter ampliado, ainda mais, o
grau de ambivalência e embaraço do homem comum de classe média
urbano, quanto comparado ao mesmo homem europeu.
A quebra de valores integrativos refletiu e configurou-se, também, e
principalmente, no abrandamento, ou mesmo na exclusão de padrões
ritualísticos em momentos de crise vividos pelo homem comum brasileiro,
urbano, de classe média. Os rituais, segundo Hughes (1980, p. 68), são
instituídos com a finalidade de superação de momentos de crise vividas
individual e socialmente em uma forma de sociabilidade dada. Para ele,
quando os rituais instituídos em uma sociedade dada já não mais
correspondem aos valores socialmente expressos pelos habitantes ou, em
suas palavras, "aos ciclos e graus de sentimento que acompanham as
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
93 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
crises que se pretende que eles façam superar, dir-se-ia que algo está
desorganizado".
É o que parece corresponder ao sentimento do homem comum
brasileiro, urbano, de classe média, neste início do século XXI. A pesquisa
perguntou aos entrevistados a sua noção sobre os conceitos de morte e de
morrer, bem como as atitudes que deveriam ser tomadas por aqueles que
viveram ou conviveram com esta situação limite. Seja como parente próximo
ou distante, seja como um outro da relação.
É interessante observar que, em muitos casos, as narrativas dos
entrevistados e dos respondentes dos questionários vagavam entre
possibilidades as mais diversas. Esta possibilidades variavam desde a
afirmação de uma negativa aos padrões por eles considerados tradicionais,
passando pela expressão de um sentimento de perda de um passado que,
parece, não mais ser possível voltar, e indo até a uma afirmação situada
entre as duas primeiras categorias, de modo ambivalente. O que afigurava,
nesta terceira alternativa, uma sensação de maior embaraço pessoal e um
sentimento de isolamento na expressão de suas emoções.
Sobre a conceituação do que é morrer, como se pode observar no
Quadro N. 13, anexo, dos 1304 informantes que responderam ao
questionário, 40,49% expressaram a noção através de um lacônico e
definitivo "findar", contra 47,55% que responderam com uma possibilidade
de alternativa para uma outra vida, através da caracterização do morrer
como "uma passagem". O morrer visto como "algo que não deveria
acontecer", foi respondido por 11,96% dos informantes, como se,
acontecendo, pudesse ocasionar, não apenas o sofrimento e o posterior
afastamento definitivo dos entes queridos mortos, mas e principalmente, que
causaria profundas mudanças no cotidiano da vida de cada respondente. O
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
94 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
que dificultaria sua integração com a vida social e com o próprio sentido de
viver.
O mesmo acontecendo com as respostas à noção de morte. Como se
pode ver no Quadro N. 14, também anexo, a morte é considerada como o
"fim da existência" por 41,18% dos informantes, e como "transição" para
uma outra vida, por 41,26%. 17,56%, por outro lado, se colocam estupefatos
com a possibilidade da morte e do vazio por ela causado ou que poderia
provocar, informando não um conceito sobre a idéia de morte, mas um temor
sobre sua possível ameaça. Para estes últimos, "a morte não deveria
acontecer".
Interessante notar que uma parcela de aproximadamente seis por
cento dos informantes situam-se entre a informação da morte e do morrer
como uma "transição" ou "passagem" e a de que o morrer e a morte são
situações de ruptura que não deveriam ocorrer, conforme pode ser verificado
em uma análise comparativa entre os Quadros 13 e 14. Através dos códigos
de "passagem" ou "transição", os informantes afiguram querer expressar a
idéia da possibilidade de uma outra vida após a morte.
O morrer tendo um significado, assim, de um estágio preparatório
para a nova vida que se iniciaria com a morte. Idéia aparentemente
semelhante a existente no Brasil do final do século XIX , onde a noção do
morrer era tida como um estágio necessário ao homem, para passar em
revista a sua própria vida, como forma de garantir um local adequado no
além.
Aparentemente semelhante, porém, por vir despida hoje de grande
parte dos rituais que envolviam o moribundo. Que envolviam também, e
posteriormente, o morto junto com o lado público do acompanhamento do
trespasse, seja pela proximidade dos entes queridos, seja dos amigos e
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
95 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
vizinhos e de um público em geral, e principalmente da Igreja. A semelhança
fica por conta da idéia religiosa, - principalmente do catolicismo, mas
também do espiritismo e de várias vertentes de religiões afro-brasileira, - a
ela inerente, e da noção de que a vida não se acaba com a morte, mas pelo
contrário renasce e se transforma em imortalidade.
Como informa o relato abaixo, de uma entrevistada, de 35 anos,
católica, da cidade de Goiânia, Goiás, sobre a diferenciação entre as noções
de sofrimento e desespero34: "Quando meu irmão morreu, sofri muito, chorei,
senti saudades, mas nunca me desesperei. Não é que eu seja de ferro ou
movida por determinações acima da minha pessoa. Meu marido, namorado
na época, até perguntou sobre os meus sentimentos e eu tentei explicar
para ele que eram profundos, que a dor da separação era física, era real!
Mas também que eu nunca achei que o meu irmão tinha acabado com a sua
morte. Não! Se eu assim achasse, eu teria me desesperado com a
impossibilidade do nada que a morte física pode encerrar. Eu acredito que a
morte seja um momento de transmutação para algo maior, eterno. Eu
acredito em outra vida, mais bonita e perfeita do que essa. O ser humano
não pode acabar assim, essa vida que vivemos é apenas um estágio para
uma vida superior... " (Entrevista n. 46)
Essa visão sobre o morrer e a morte, assim, vem impregnada ainda
de um sentido desindividualizante, que parece estar presente em parte da
população urbana, de classe média, brasileira. O apoio na crença de uma
outra vida, do sentimento de imortalidade, onde um pressuposto de
aceitação de um dogma de fé ultrapassa o sofrimento individual dos sujeitos,
reforça laços e atitudes relacionais, e de conforto ritual de uma parcela dos
34
Na narração de sua postura em relação ao sofrimento pela perda de um irmão em um acidente de transito, ocorrido há alguns anos atrás, precisamente, no ano de 1995.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
96 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
informantes. Por outro lado, mesmo nesta esfera parece já haver uma
espécie de desilusão de mundo, e uma insegurança começa a ter início
entre os mesmos informantes, sobre a validade ou viabilidade deste dogma
de fé religioso.
É o que parece representar esta narrativa de uma mãe, de 48 anos,
da cidade de São Paulo, capital, católica, que perdeu uma filha de quinze
anos vítima de câncer: "Quando minha filha contraiu esta doença horrível
tive que tirar forças de não sei onde para tentar ajudá-la, para lutar pelo
retorno da saúde dela. Ainda bem que sou católica, de formação sólida, e
isso me ajudou muito na minha luta pela minha filha.
"Com o prolongar da doença e a impossibilidade de cura, pela forma
rápida com que se alastrou o câncer no seu corpinho, além de ter que me
fazer de mais forte para ela, tive também que fazer um esforço imenso para
não esmorecer perante mim mesma. Ficava pensando no porque minha filha
estava sendo vitimada em tão tenra idade, porque, se existe Deus, ele
estava vingando-se de mim através da minha filha, e não, se eu tivesse feito
algo, em mim própria. A existência de Deus e a sua bondade, questões
sólidas em mim, pareciam estar indo de água a baixo, e eu lutava comigo
mesma para não desabar. E me fechava mais e mais na minha luta para dar
conforto a minha filha e para me manter em pé.
"Me tornei árida e arisca, deixei de freqüentar a Igreja... agora,
mesmo depois que minha filha morreu, tendo encontrar um significado para
o seu sofrimento e morte, e não consigo encontrar nenhum. Tento acreditar
que ela está melhor, em outra forma de vida mais intensa, imortal, que eu a
encontrarei assim que desencarnar, mas já não é a mesma coisa! ... Sou de
uma solidão só! Não sei como estou falando isso para o senhor, pois desde
que ela se foi não consigo conversar muito sobre os meus sentimentos, os
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
97 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
meus receios, e essa incerteza enorme que me consome, sobre o porquê da
vida e da morte, sobre a outra vida após a morte, sobre a própria religião
que ainda professo e me agarro, mas que já não me acalma e nem me dá a
segurança que tinha antes..." (Entrevista n. 131).
A instância desindividualizante do acreditar-se na morte e no morrer
como passagem para uma outra vida, já não credibiliza a existência de uma
outra vida como fé. A fé começa a configurar-se como algo que se quer
acreditar e não tem certeza, como algo que não mais provoca o sentimento
de jubilo pela certeza do ente querido ou de sigo próprio em outra vida,
imortal. Que não conforta, mas que preenche de incerteza e sofrimento a
quem possivelmente partirá e, sobretudo, a quem fica.
O espaço desindividualizante, assim, já não completa toda a esfera de
dúvidas pessoais de quem fica. Já não minora completamente a dor
ocasionada pelo sofrimento e pela experiência da perda através da sua
ritualística pela fé pessoal de cada um. Os indivíduos parecem assim ser
tomados de insegurança e a almejar que o morrer e a morte fossem situação
que jamais deveriam existir.
Insegurança que provoca um aumento da dor física e moral do sofrer,
não apenas pela crença relativa, agora, na instância da morte como uma
outra e nova vida, mas também pela dificuldade de expressão deste
sentimento até para si próprio. O fracasso da fé em si parece incomodar,
pela desilusão que parece provocar no sujeito e na sua idéia de mundo e de
participação em uma comunidade de valores, que busca resgatar, mas que
já não encontra satisfação na resposta buscada através dos dogmas e
expressões ritualísticas possíveis, a ela inerentes.
O que só faz aumentar a solidão do homem comum de classe média,
prioritariamente, aqui, que expressa este valor, ao questionar o conteúdo do
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
98 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
valor do dogma em si e não ter certeza de sua eficácia simbólica, ao mesmo
tempo que quer e precisa desta certeza. O mundo construído em que se
situava, em um espaço integrativo que permitia e aprofundava um
sentimento de pertença, configura-se, assim, agora, por uma tendência a
fragmentação e a começar a ruir.
A incerteza é um dos elementos novos que parece fazer parte da
escala de valor das novas redes de relações em que se encontra inserido. O
que vem provocando um relativo sentimento de abandono e solidão, ao
mesmo tempo que uma espécie de pudor de expressar esta incerteza,
aumentando mais o isolamento social.
Esta incerteza, que vem, tendencialmente, provocando um aumento
do sofrimento e da insegurança em uma parcela dos informantes, a respeito
da noção do morrer e da morte, porém, parece não fazer parte dos
significados atribuídos a outra parcela. Como se viu nos Quadros 13 e 14,
40,49% e 41,18% dos informantes afirmaram que o morrer e a morte tinham
o significado processual de "findar" e do "fim da existência".
Para estes, parece que a noção da morte e do morrer tem um
significado claro de um ciclo de vida que termina. Que uma visão naturalista
e racional sobre o sentido da vida e da morte faz parte do seu universo
compreensivo sobre o lugar do homem na natureza como uma espécie a
mais entre tantas outras. Que a morte é o findar natural de uma existência.
Estes significados aparentes, porém, se encontram ao nível de uma
resposta abstrata à questão da morte e do morrer. Com um distanciamento
enorme na definição e relatos entre uma morte próxima e a morte em geral.
O fim da existência e o findar como definição de morte e de morrer no
abstrato ganha uma conotação mais biológica sempre, do que quando
definida a partir de uma perda de um ente querido específico.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
99 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Mesmo nos casos onde a compreensão de um final de ciclo de vida
aparece com mais vigor, como as narrativas da perda de um ente próximo,
como um avô ou uma avó, por exemplo, a diferenciação entre morte
biológica e o conceito de morte socialmente expressa a partir de uma
relação de proximidade, parece revelar-se em nuances diferenciadas.
É o caso dos relatos abaixo, ambos construídos a partir de um mesmo
objeto de perda: os avós. O primeiro relato narra a experiência de um
entrevistado com a morte de sua avó ocorrido em 1998, em uma cidade do
interior do estado da Paraíba. O entrevistado35 descreve sua reação e o
sentimento perante a morte de sua avó materna, com quem teve pouco
contato, a não ser nas vezes em que viajou de férias para o interior, e que
foram se escasseando a partir da adolescência, ou quando a sua avó os
visitava em João Pessoa.
Segundo o seu relato, "... a notícia da morte de minha avó chegou de
repente lá em casa. De manhã cedinho, uma irmã, acho, da minha mãe
ligou para dizer que vovó não tinha despertado e quando ela foi verificar,
encontrou-a morta. Parece que foi uma parada cardíaca. Não sei bem, sei
que minha mãe disse para nós que ela tinha tido uma morte suave e não
sentiu nada. Morreu dormindo. ... Minha avó tinha 84 anos e sempre foi uma
mulher forte, quase nunca adoecia, segundo minha mãe. Eu tive muito
pouco contato com ela, ela era doce, embora vivesse de cara fechada, e
sempre mandava presentes para mim e meus irmãos, nas festas e nos
nossos aniversários.
"Pode parecer estranho, mas eu não senti nada pela sua morte. Isto
é, não senti nada em termos, pois fiquei triste com a tristeza de minha mãe.
35
Um rapaz de 23 anos de idade, estudante universitário, natural e residente na cidade de João Pessoa, capital do estado.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
100 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Mas, ela mesma, me pareceu conformada, pois teria de acontecer mais dia
ou menos dia por causa da sua idade.
"Não fui para o interior para o seu enterro. Minha mãe e meu pai e
minha irmã mais velha foram, eu e os outros dois irmãos ficamos. Nada
mudou na minha rotina: fui para a faculdade, namorei, saí, vi televisão, não
fiquei mais triste nem mais alegre pela morte dela. Se fiquei um pouco
chateado foi por causa da minha mãe, que ficou muito triste, mas
conformada.
"Nunca falei com minha mãe, nem lá em casa sobre eu não sentir
nada. Quando meus pais voltaram do interior, no dia seguinte ao enterro,
tudo pareceu, para mim, igual. A casa da gente continuou barulhenta como
antes, nada mudou... minha mãe, mesmo, voltou ao trabalho, ao dia a dia
normal... acho que a morte é como um fim de uma vida. Esperado! Foi assim
que eu senti com a morte de minha avó". (Entrevista n. 58)
O segundo depoimento, é de uma jovem, 27 anos, bióloga, natural e
moradora da cidade de Curitiba, estado do Paraná, que perdeu também a
sua avó materna no ano de 1999. Diferente do primeiro depoimento, neste
existe uma relação de proximidade acentuada entre a neta e a avó que se
foi. A entrevistada relata que, desde a morte do seu avô, quando ela ainda
era pequenina, sua avó veio morar com seus pais, "... cresci com a minha
avó sempre perto de mim, perto mesmo, pois inclusive dividíamos o mesmo
quarto. Ela era minha confidente, era uma pessoa carinhosa, muito religiosa,
mas também muito aberta; compreendia todos os meus problemas e me
servia de amparo nas horas muito tristes ou muito felizes! Era uma mulher e
tanto.
"Já estava com quase noventa anos, ainda era lúcida, apesar de
quase não mais se locomover por causa da osteoporose... passou os últimos
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
101 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
meses de vida, quase todos, no hospital. Teve uma pneumonia e nunca
mais se recuperou direito. Ia e voltava do hospital, até que os últimos seis
dias de vida passou todos no CTI36.
"Eu não a vi morrer. Era de madrugada, estávamos em casa e fomos
chamados para o hospital. Chegamos, eu, minha mãe e meu pai, e ela já se
encontrava no necrotério do hospital. Meu pai cuidou do translado do corpo,
da funerária, foi um velório e um enterro rápido com alguns vizinhos e
amigos presentes.
"Não chegamos a mudar a nossa rotina da casa. Tudo continuou
como sempre! ...Não fizemos o luto, os dias continuaram iguais, trabalho,
estudo, e essas coisas do cotidiano, foi rezada uma missa de sétimo dia e
pronto!... Parecia que minha avó nunca tivesse existido... minha mãe até
falou que agora, enfim, eu teria um quarto só para mim... que a vida era
assim mesmo, que a minha avó já tinha cumprido a sua missão no mundo e
tinha terminado a sua parte, etc....
"Eu mesmo sei, racionalmente, até por dever de ofício, que a morte é
o fim de um ciclo, de um ciclo biológico, que faz parte da lei da natureza...
Mas não é assim que eu me senti, e ainda me sinto, com a morte da minha
avó. Eu me senti menor, me sinto sem referência, perdi uma confidente...
Claro que sei que minha avó teria que morrer um dia, que já era muito velha,
que isso ocorreu e foi melhor para ela pois aliviou o seu sofrer físico... queria
acreditar que a morte não acaba com a vida, mas a vida ganha outros
significados, mas sei que não é verdade. Sei que morrer é findar... E isso me
deixa mais triste, mais isolada...". (Entrevista n. 209).
Nos dois depoimentos acima, o grau de proximidade dos
entrevistados parece atestar os significados de seu sofrimento pela perda de
36
Centro de Terapia Intensiva.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
102 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
suas avós. No primeiro caso, embora a avó estivesse sempre presente nos
momentos de festas e aniversários, se não fisicamente, pelo menos no envio
de lembranças para os netos, e a lembrança do neto dos dias em que
passou no interior com os avós, ou dos momentos de visita da avó a sua
família, em João Pessoa, a avó sempre foi uma relação distante de sua vida
diária. Sua morte foi atestada pelo neto com uma certa tristeza, pela perda
sofrida pela mãe, mas entendida como natural, como um final de existência
de uma vida inteiramente vivida. No segundo caso, ao contrário, a perda da
avó significou uma ruptura no cotidiano da neta.
Apesar de informar que após o breve velório e enterro a vida na sua
casa continuou normal, a perda da avó parece ter provocado um sentimento
profundo, um sofrimento na neta, pela perda da confidente e amiga, que a
avó parecia representar em sua vida. O que afigurou-se como causando
uma insatisfação e um mal estar pela perda deste ente querido, mesmo que,
racionalmente, e até por dever de ofício como ela disse, entender a morte, e
a morte de sua avó, como um fim de um ciclo. Mas a racionalidade parece
trazer-lhe insatisfação, e maior isolamento e tristeza: ela queria acreditar na
continuidade da vida depois da morte, como uma forma de entender o
sentido da morte de um ente querido tão caro. O não acreditar, parece levar-
lhe a uma solidão e a um questionamento do significado da vida, em si.
O que se quer expressar aqui, é que a transição sobre a experiência
brasileira urbana nos últimos anos do século XX, parece vir acompanhada
de um aumento da ambigüidade de sentimentos e um mal estar e
sentimento de inadequação dos indivíduos em relação a um sentido de vida,
no geral, e especificamente, da vida social. Seja naqueles que ainda
acreditam em uma instância desindividualizante, que os ampara sob a forma
de uma força maior, de um dogma de fé na continuidade da vida após a
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
103 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
morte, seja nos que encontram no ciclo biológico uma explicação racional
para a morte como um fim da existência.
Em ambos, o sentido de finalidade e de certeza parecem comportar
uma carga grande de incompletude e solidão. A não ser quando se
considera a morte e o morrer em abstrato e distanciado de si próprio
enquanto referência de perda.
Nos dois casos, parece haver uma quebra no imaginário social que
produzia certezas e completudes aceitas pelos indivíduos na sociedade
brasileira de algumas décadas atrás. Esta quebra vem se configurando
como trazendo, como conseqüência imediata, um enfraquecimento dos
laços que unem os membros sociais de uma família, ou os de uma dada
religião, no interior da sociabilidade no Brasil urbano de classe média.
As crenças compartilhadas já não parecem satisfazer inteiramente os
indivíduos, mesmo que professem alguns a esperança em uma outra vida.
As etiquetas costumeiras, as regras e normas que norteiam a ação social de
cada sujeito vem se afigurando como não mais servindo, inteiramente, como
instâncias integradoras, e os ritos sociais que as comportam se configuram
como não mais possuindo o efeito confirmador das regras no evitar as
dificuldades e os riscos ocasionados pelo processo do morrer e da morte em
quem fica.
O sofrimento causado pela perda parece que se constrange assim,
cada vez mais, no interior dos sujeitos individuais que por ela transitam. O
sentimento de solidão, de inadequação, vem significar o ritmo da postura
individual dos sujeitos em sofrimento pela perda, traduzindo-se em uma
incapacidade de manifestação de opinião e modos de pensar sobre o
sentimento e o sentido do morrer e da morte.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
104 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
O que tende a provocar uma incapacidade de comunicar as suas
emoções, sentimentos e atitudes perante a realidade do sofrimento e da
perda, ao silenciar as suas angústias e guardá-las no interior do seu eu,
embora ansiando demonstrações de afeto e compreensão. Ao mesmo
tempo que as afasta como vergonha de ser pego em fraqueza ou
provincianismo.
As marcações da vida, presentes em todas as formas de sociabilidade
humana, que fundamentam o ciclo de uma vida no interior de um tempo e de
um espaço social (VAN GENNEP, 1978), parece estarem borradas, no que
diz respeito a morte e ao morrer no Brasil urbano do início do século XXI. Os
papéis e as categorias sociais, as crenças, os valores, as regras e toda uma
ritualística que como uma rede transpassava todas as esferas do social e
reforçavam a solidariedade familiar, grupal e coletiva no Brasil, entram em
conflito com os novos valores trazidos pela ampliação da individualidade e
do individualismo entre os setores, principalmente, de classe média no
Brasil, nos últimos trinta ou quarenta anos. O que vem traduzindo-se em um
aumento de ambigüidade na ação pessoal e grupal dos sujeitos, e em uma
extensão da solidão individual daqueles tocados pela experiência da perda,
isto é, da morte e do morrer na contemporaneidade.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
105 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Capítulo 3
A Perda e o Sofrimento
"La douleur apparaît ainsi comme um point de convergence possible où elle peut prendre place dans un réseau de signifiants du corps réel, imaginaire et relationnel". (Marquez, 1994, p.38)
37
Encontra-se em pleno desenvolvimento no Brasil dos últimos trinta ou
quarenta anos um processo de individualização das relações sociais e nas
formas de agir e pensar individuais. Viver esta experiência parece estar
provocando nos homens comuns, de classe média urbana, principalmente,
um sentimento de desorganização e um aumento da tensão, pessoal e
grupal.
Processo de comportamento emergente, este, que vem causando
ansiedade e insegurança nas relações sociais e individuais, e uma
interrogação permanente sobre o significado desta mudança e se ela está se
desenvolvendo para uma situação melhor. O sentimento afigura-se em ser
de desconforto e inquietação sobre as conseqüências pessoais e grupais de
tal caminho.
Já não se aceita mais as antigas regras relacionais da cultura
brasileira vividos até meados da década de sessenta do século XX. Elas
vem se tornando incomodas, e para muitos, olhadas até com desprezo e um
37 "A dor aparece assim como um ponto possível de convergência em uma cadeia de significantes do corpo real, imaginário e relacional". (Tradução livre).
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
106 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
certo menosprezo, como incultas ou incivilizadas, mas também, não há um
sentimento de adequação aos rumos individualistas que tendencialmente
vem tomando conta das relações sociais e individuais na sociedade
contemporânea. Ou o seu contrário.
Uma certa apreensão não de todo consciente com a incerteza do
mundo atual, parece provocar, em outros tantos, uma tentativa de segurar as
relações tradicionais as quais estavam acostumados a viver, mas, ao
mesmo tempo, esta tentativa vem acompanhada de um sentimento de que
as regras passadas já não mais se adequam às questões do presente. O
que faz aumentar e ampliar a insegurança e a falta de sentido pessoal.
A ambigüidade nas relações e nos sentimentos expressos parece ser,
assim, o eixo central por onde deve ser pensada as relações de
sociabilidade no Brasil do século XXI. A experiência vivida como um
conjunto societário, porém, nunca é igual para todos os seus membros, e os
rumos desta mudança é sempre assimétrica e desigual. Esta consciência
analítica afigura-se como fundamental para que se possa compreender a
experiência de ambivalência individual e grupal de uma sociedade em
processo acelerado de mudança, como a brasileira.
Neste capítulo, se procurará identificar como os brasileiros urbanos,
de classe média, estão vendo estas mudanças e inquietações sobre o
prisma do comportamento de uma pessoa que sofreu uma perda, ou em
relação a outras que o experienciaram. Nele se discutirá o processo de ação
social e a construção de significados e tentativas de nomeação, reais,
imaginárias e relacionais sobre a perda, o luto e o sofrimento, a partir dos
depoimentos de informantes, como entrevistados ou que se dignaram a
responder o questionário padrão desta pesquisa.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
107 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Um dos pontos de partida será o de analisar como pensam os
informantes que responderam ao questionário padrão desta pesquisa sobre
o comportamento de uma pessoa que sofreu uma perda. Como se pode
verificar no Quadro N. 15, as respostas dos 1304 indivíduos à questão
puderam ser divididas em três categorias analíticas. A primeira, "Ser
Discreto", obteve 77,60% das respostas; a segunda, "Seguir a Tradição",
15,34%, e a terceira, por fim, "Não Existe Comportamento Ideal", 7,06%.
A discrição, assim, parece movimentar a ação imaginária dos
informantes, sobre o papel comportamental de um sujeito que sofreu uma
perda. Como já se vem analisando ao longo deste trabalho, desde o final do
século XIX vem ocorrendo uma diminuição da demonstração ativa de
sentimentos no momento do trespasse do morto, ou do sofrimento causado
nos entes queridos que ficam.
O morrer e a morte vem sendo retirados progressivamente do ritual
público que os circundava, movido em parte pela emergência de um novo
discurso de poder, o poder médico, junto à ações de políticas públicas
sanitárias e higiênicas para as cidades, e também pela emergência da
insalubridade, causada pelas doenças e pela morte, no imaginário popular.
As representações sociais sobre a morte e o morrer parecem ter tido sua
mudança acionada, assim, principalmente, através do medo causado pelas
inúmeras epidemias que tomaram de assaltos as cidades brasileiras nas
últimas décadas do dezenove, e pelo discurso de autoridades sanitárias de
controle à saúde pública e pessoal.
Os enterros, os cortejos e os velórios tornaram-se progressivamente
mais rápidos, com o morto e a morte identificados como poluidores e, pior,
transmissores de doenças, embora, ainda por metade do século XX,
expressões de dor e demonstrações objetivas de luto fizessem parte do
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
108 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
cotidiano da população brasileira. O vestir preto, o resguardo dos enlutados,
a abstinência de alguns alimentos e de uma vida social ativa, ainda eram
esperados dos familiares do morto. Eram esperados, também, o
acompanhamento mais de perto de parentes e amigos, e de outras
instituições sociais, que funcionavam como instâncias desindividualizadoras,
tais como a Igreja, - através de um discurso sobre a outra vida e conforto
aos que ficam, - ou sociedades secretas, tipo a Maçonaria, por exemplo, que
amparavam as viúvas e filhas solteiras e menores, nos primeiros meses
após o trespasse, ou se solidarizavam com seus membros masculinos pela
perda de um ente querido, os apoiando em seu sofrimento. Assim como,
mecanismos de reintegração ao trabalho e a vida social ativa eram
estimulados de forma pública a quem perdesse alguém caro a nível de
proximidade e afeto.
As demonstrações públicas do sofrimento, desta maneira, embora em
declínio e menos acentuadas do que no final do século XIX, permaneceram
por várias décadas do século XX, até aproximadamente o decorrer dos anos
de 1960, entre os habitantes urbanos brasileiros. Largas parcelas da
população pareciam ainda se guiar na tradição de guardar, velar e sofrer
pelos seus mortos sob uma regência pública, bem como, até a dialogar com
eles, como lembra Roberto DaMatta (1987) em seu artigo Os Mortos e a
Morte no Brasil. O apoio da sociedade para a superação do sofrimento e
reintegração social era, também, esperado.
Com a modernização brasileira dos anos setenta e, principalmente,
com o esvaziamento progressivo do campo no Brasil, tem início a uma
transformação mais intensa no comportamento e hábitos da população
brasileira, especificamente de classe média urbana. Antigos hábitos são
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
109 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
rapidamente deixados para trás por não serem considerados urbanos,
principalmente no que diz respeito as relações familiares.
A família extensa tendeu progressivamente a diminuir de tamanho e a
ser considerada apenas como e através do núcleo familiar básico, composto
do pai, da mãe e dos filhos. Nos anos setenta, também, teve início o
processo, que já vinha ocorrendo na Europa e nos Estados Unidos, da saída
mais cedo dos filhos e filhas adultos jovens de casa, para uma vida mais
independente da casa paterna, principalmente entre os de classe média38.
O ritmo de vida, por outro lado, se tornou gradativamente mais
acelerado, afastando os indivíduos uns dos outros e os tornando mais
reservados perante as próprias emoções e incomodados com a expressão
pública de sentimentos de outros. Um outro fator bastante interessante, é o
desenvolvimento da psicanálise no Brasil, também ocorrida nos anos
setenta, junto à classe média urbana intelectualizada.
A auto-análise e o divã do psicanalista progressivamente atrai a
atenção dos membros urbanos de classe média, principalmente adultos
jovens, numa faixa que vai dos 18 aos 35 anos. Esta tendência associa-se
ao desapego aos valores tradicionais de comportamento vividos e
38 É importante salientar, porém, que uma tendência a permanência maior dos filhos, chegando às vezes até os trinta anos de idade, na residência dos país, parece ter acontecido entre os jovens de classe média no Brasil, nos anos noventa do século XX, e que parece prosseguir, agora, na primeira década do século XXI. Este fato, contudo, não parece ter vindo acompanhado de uma restauração de um hábito do passado, rompido pelos jovens dos anos setenta, pelo contrário, esta nova forma de organização familiar parece ganhar espaço entre os jovens como uma forma de ampliação do espaço de individualidade e segurança para o enfrentar o mundo. Talvez pelo aumento do tempo de especialização e formação profissional, talvez pelo apelo aos prazeres da vida e a formação de uma poupança pessoal, talvez, enfim, pelo conforto e descompromisso de afazeres domésticos do cotidiano, que a casa dos pais possibilita. Em todos os casos, porém, não parece refletir em uma volta ou em um maior apego a tradições culturais perdidas, mas em um aumento do individualismo enquanto espaço de consumo e lazer, e enquanto espaço de competitividade no ambiente societário formal das relações, econômicas, política, ou ligadas as esferas da hierarquização e status sociais.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
110 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
questionados por esses jovens, e a falência progressiva, nos anos oitenta,
de paradigmas norteadores de uma esperança em um mundo melhor futuro,
ou de instâncias desindividualizadoras, como a própria família tradicional, a
Religião, o Partido Político e outras mais.
Não se pode esquecer também a importância crescente de uma
competitividade no mercado de trabalho, que amplia a margem da disputa e
dispersão de uma parcela jovem da população urbana recente brasileira.
Os anos setenta e oitenta do século XX, deste modo, estabelecem os
grandes marcos da transformação por que passaram e ainda passam os
habitantes urbanos no Brasil. Independentemente do tamanho populacional
das cidades, aqui se tratando especificamente das capitais de estados
brasileiros, estes marcos servem como norteadores da identificação e
modificação ocorrida no comportamento do brasileiro urbano de classe
média, principalmente. Isto porque, progressivamente, também, a partir dos
anos sessenta, e principalmente setenta do novecentos, ampliou-se a
margem de concentração político, econômica e comunicacional do país.
Os estados brasileiros, as cidades e, especificamente, as capitais de
estado, através de seus habitantes de classe média, viveram uma exposição
maior desta concentração. Os hábitos comportamentais, os desejos e
buscas de realização ficaram cada vez mais concentrados em um único
eixo, o Rio-São Paulo. O que aumentou assim uma aparentemente única
performance comportamental entre os indivíduos de classe média, em todo
o Brasil.
Segmentada internamente, é verdade. Uma estratificação no interior
desta centralização se faz visível, com fortes componentes de uma
ampliação do preconceito sobre estratos, de acordo com a inserção do
cidadão em um núcleo urbano mais perto ou mais longe, mais rico ou mais
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
111 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
pobre, do Brasil. Assim como, internamente a cada capital, de acordo com
as formas de vida que levem os grupos e segmentos diferenciados de sua
população.
O que parece fazer aumentar ainda mais o sentimento de solidão do
homem urbano de classe média brasileira. O ser discreto parece
representar, assim, a forma que vem assumindo a "economia de afetos"
(Elias, 1990, p. 49) da cultura urbana brasileira dos últimos trinta anos,
principalmente, aqui, no tratamento da questão da cultura funerária.
As convenções de estilo, as formas de intercâmbio social e o controle
social das emoções, parecem viver no Brasil urbano, principalmente junto a
classe média, uma transformação intensa, no sentido de uma maior
economia dos gestos, da postura, do decoro corporal externo, nas formas do
olhar das pessoas, da expressão facial39, entre outras atitudes
comportamentais. Essa mudança caminha aceleradamente para a
composição de um estilo de vida e de uma forma de expressão da auto
imagem individual através de uma ação de auto distanciamento, onde a
vergonha e o sentir-se embaraçado constituem-se em uma viga mestra para
um maior controle emocional. Seja pela repressão das atitudes espontâneas
de sentimento e pela internalização na pessoa da subjetividade, como uma
ação não social40, seja pela auto disciplina.
39
Sobre a questão da expressão facial ver o trabalho clássico de Goffman (1980), A Elaboração da Face, onde aborda a questão da avaliação e do auto respeito sociais através de atos verbais e não verbais socialmente expressos. 40 Weber (1944), na primeira parte do seu livro Economia e Sociedade faz uma esforço para caracterizar, no processo de racionalização social vivido pela sociedade européia no momento de consolidação do capitalismo, a diferenciação estabelecida entre ação social e ação não social, esta última conduzida especificamente por construções subjetivas no interior de sujeitos individuais específicos, descaracterizando-a assim da objetividade social das ações.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
112 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
O Ser Discreto, deste modo, caracteriza o modus operanti por onde
se pode compreender a construção social do indivíduo urbano brasileiro de
classe média, hoje. O comportamento pessoal de discrição perante as
expressões das próprias emoções, é sentido também, através das
informações contidas no questionário aqui analisado, na relação deste
sujeito individual com os outros. Em uma outra questão levantada no
questionário, perguntou-se qual deveria ser o comportamento dos outros,
isto é, da sociedade, em relação às pessoas que sofreram uma perda41.
Três categorias foram elaboradas a partir das respostas obtidas pelos
1304 informantes. A primeira categoria afirma que o comportamento deveria
ser o de "Dar Apoio", com 18,71% das respostas. A segunda categoria alega
que a atitude das pessoas em relação a uma outra que sofre uma perda,
deveria ser a de "Não Importunar", com 72,01% do total, a terceira categoria,
por sua vez, com 9,28% das respostas, diz que a forma de comportar-se em
uma situação como esta, "Depende do Caso".
O Quadro N. 16 é interessante para a análise aqui realizada, por dois
motivos principais. O primeiro, por estabelecer com o "Não Importunar," uma
esfera de pudor de chegar-se ao outro, como se uma expressão de
solidariedade ou apoio pudesse ser compreendida pelo indivíduo objeto da
ação como uma espécie de invasão de privacidade. Constrangido em sua
dor e em seu sofrimento pessoal pela perda recente, o indivíduo poderia,
segundo esta categoria, sentir-se ofendido pela tentativa de aproximação de
um outro, retirando-o e comprometendo o seu espaço individual no social.
O segundo motivo diz respeito a idéia de contaminação social pelo
sofrimento do outro. O medo do envolvimento emocional através da
demonstração de atitudes de solidariedade e apoio ao outro configura o ator
41
As respostas a esta questão pode ser verificada no Quadro N. 16, anexo.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
113 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
em personagem tímido e, consequentemente, retraído nas suas
demonstrações de afeto, como se elas pudessem comprometê-lo, ou por em
risco o seu desempenho social.
Nestes dois motivos expressos, assim, parece por-se em evidência
uma tendência ao sentimento de envergonhar-se frente às dificuldades de
chegar ao outro. Seja através do agir com discrição, presente na categoria
do "Ser Discreto", como um dever ser moral para todos aqueles atingidos
por uma perda, seja pela busca de não intromissão, cristalizada na categoria
analítica de "Não Importunar" àqueles em sofrimento.
Nas duas formas do como se comportar frente à perda, pessoal ou de
outros, fica evidente o medo de não saber com enfrentar a situação, e a
culpa por ele provocada. O que parece aumentar o sentimento de
isolamento e desamparo vivido pelo homem urbano de classe média
brasileiro na contemporaneidade.
Goffman (1980, p. 80), analisando as expressões faciais, descreve a
expressão "perder a face" como o receio de não saber como se referir ou
representar em uma situação determinada. Fala do medo do indivíduo de
poder possibilitar uma impressão errada nos outros, ou de poder vir a ser
avaliado com um desempenho fraco, ou péssimo, na demonstração de sua
incredulidade ou de sua capacidade de suportar a realidade que se
apresenta. Ou, mesmo, de sentir-se envergonhado e indisposto na situação
vivida em um momento relacional específico.
Este receio de perder a face, trabalhado por Goffman, parece agir nos
indivíduos em relação através de uma economia gestual das emoções.
Economia de gestos que possa garantir aos sujeitos a "capacidade de
suprimir e ocultar qualquer tendência a ficar envergonhado durante os
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
114 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
encontros com os outros" (p. 80). E, desta forma, impossibilitar qualquer
forma de avaliação, a não ser a que objetivamente quer expressar.
Esta economia de expressões de afetos, assim, parece se satisfazer
através de uma postura de distanciamento ou de afastamento da situação
experienciada na relação com o outro. Atitude de leve indiferença aos outros
sociais, seja quando o indivíduo sentir-se evocado como objeto da ação,
onde a exigência de um auto controle, pela discrição, é a certeza de não
apresentar-se constrangido por constranger o próximo, seja, também,
quando o indivíduo for ou aparecer como o sujeito da ação, onde o não
incomodar alivia a dificuldade de expressão de sentimentos.
Reza as regras de etiqueta no Brasil urbano contemporâneo, que em
uma situação de sofrimento, na qual um indivíduo não pode ausentar-se de
todo, mas que também não quer invadir a privacidade de quem a
experiencia, que deve enviar um cartão, ou flores, ou algo semelhante.
Através deles deve expressar condolência ou solidariedade ao outro, e
mesmo assim, passado alguns dias do fato ocorrido, ou, quando houver uma
cerimônia, como a missa de sétimo dia, por exemplo, fazer-se presente, se
próximo, cumprimentar, na fila de condolência, o outro, em uma expressão
contida, e ir embora, deixando ao outro a possibilidade de introjeção de sua
dor, privadamente.
O mesmo se referindo para quem sofre a perda. Manter a dignidade e
o controle de sua emoções, aceitando as condolências com um ar contido, e
com uma ligeira indiferença no olhar.
Ambos parecem refletir a atitude blazé diagnosticada por Simmel
(1967), no início do século, para expressar a leve indiferença no olhar e no
gestual do homem citadino na metrópole contemporânea, e o processo de
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
115 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
multidão e anonimato em que parece emergir a afirmação da individualidade
no momento de consolidação do capitalismo.
Esta busca de ocultamento da face, ou da leve indiferença presente
na atitude blazé, tornam-se, cada vez mais, expressões em uso no cotidiano
comportamental do homem brasileiro urbano. A narrativa de expressões
comportamentais outrora presenciadas pelos próprios sujeitos, ou relatadas
por parentes ou visualizadas através de experiências presentes ainda no
hoje, através da imprensa ou por próprio testemunho, tornam-se
aparentemente estranhas ao cotidiano do sujeito, como arcaísmos de uma
estrutura mental e emocional diferente.
Movimentos narrativos estranhos que parecem incomodar ao homem
moderno brasileiro, como parte de uma estrutura de um passado que se
quer esquecer, ou melhor, distanciar-se, por incivilizado ou não moderno.
Com um receio também que a sua presença contamine, pelo excesso
emocional presente, a si mesmo e as relações sociais de onde emergiram,
paralisando o presente da modernidade vivida pela vergonha de validar no
outro, qualquer, uma imagem avaliativa que comprometa pessoal ou em
grupo sua performance e seu estatuto de urbano.
Autores como Van Gennep (1978), Junqueira, (1985), entre outros,
buscaram em seus trabalhos demonstrar que as marcações, os ritmos, os
ritos são essenciais ao movimento cotidiano de toda sociedade. Que
nenhuma forma de sociabilidade flui sem qualquer tipo de passagem, ou,
como afirma DaMatta (1983, p. 39), "é a própria passagem que constitui o
pólo talvez mais básico da própria idéia de mudança".
Quando a mudança é acelerada porém, os ritmos que regulam a
passagem parecem tornar-se embaralhados. Se, por um lado, são vistos
através de atitudes de estranhamento, como resquícios incômodos de um
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
116 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
passado presente, por outro lado, o lidar com as novas formas emergentes
não parece ser ainda de fácil manipulação. O que ocasiona um mal estar
crescente em quem se vê obrigado, por ter acontecido consigo, ou, por estar
envolvido em uma situação específica, a participar de uma cena onde
elementos de passagem, - como a morte, o morrer, o sofrimento, o luto, aqui
trabalhados, - se configuram.
O receio de contaminação, por parte de quem sofre uma perda, ou
por parte de quem acompanha um processo de luto, por exemplo, faz com
que aja um retraimento nas formas de etiqueta, para uma quase ausência de
gestos e emoções. Um ocultar a face, nos dizeres de Goffman, acima citado,
por medo de perder a face, configura-se como uma espécie de escudo
protetor de ambos os lados de um processo interativo.
O que ocasiona dificuldades e incômodos de lado a lado das relações,
por não saber-se comportar, ou não se encontrar preparado para o exercício
de um dado e específico papel. Por onde, possivelmente, as emoções e as
validações da face, e de gestos, serão objetivamente analisados e avaliados
pelos demais presentes.
O medo de não saber expressar-se e comportar-se em uma situação
específica, como a morte e o luto, por exemplo, funcionam como uma regra
de convivência que sobrepõe sobre a mesma ação elementos de uma
estudada indiferença facial frente aos elementos da relação e a uma busca
interna de saber-se, ou melhor, querer-se encontrado por um outro.
Indiferença e procura mesclam-se em uma atitude que parece incomodar e
isolar ainda mais os indivíduos envolvidos em uma relação.
Ambigüidade presente em sensações aparentemente contraditórias.
Revela-se, deste modo, de um lado, associada a uma espécie de desprezo
do passado e de ser associado a ele. O passado visto pejorativamente como
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
117 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
costumes de uma época caipira ou de tradição rural, ou do Brasil de
antigamente. Ao mesmo tempo, por outro lado, sofre idealmente de uma
forma de saudade do passado, agora visto, em forma glamourosa, como
algo que se perdeu e que trazia mais solidariedade e conforto.
Como pode ser visto no depoimento de uma informante42, que perdeu
a mãe, com quem tinha afinidade, e que a considerava como sua única
confidente e amiga: "Eu fiquei sem saber o que fazer com o choque enorme
que senti quando minha mãe morreu. Me fiz uma máscara dura, uma
fortaleza, para acompanhar todos os preparativos para as exéquias. Desde a
liberação do corpo até a marcação do lugar do velório, o próprio velório, a
compra de um lugar no cemitério, o enterro, a missa de corpo presente, o
retorno para casa, até a missa de sétimo dia, eu parecia não ser eu mesma.
Não entendia onde pude achar tanta força para fazer tudo e não
desmoronar...
"Chorava e gritava por dentro, mas por fora me esforçava para não
demonstrar o que se passava dentro de mim. Claro que devia estar com a
cara arrasada... é até natural nas circunstâncias que vivi naquele momento,
mas parecia calma, segura, tranqüila e ativa. Comandei toda a situação,
para que nada faltasse a minha mãe na hora de sua despedida... atendi a
todos com atenção, até a alguns parentes que não eram meus muito
chegados que apareceram com aquelas costumeiras e horríveis cenas de
choro em excesso. ... confesso que, em alguns momentos, tive que intervir,
delicadamente, para que eles não nos matasse de vergonha, que se
controlassem ... pareciam vindo sei lá de onde... constrangendo a todos os
42
Do sexo feminino, de 50 anos, professora universitária e natural da cidade de Salvador, estado da Bahia.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
118 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
presentes com aquele excesso, falso, parecia falso, como que querendo
aparentar uma emoção que não estavam a sentir.
"Eu, que sou eu, que perdi minha única amiga e confidente, a minha
mãe, estava controlada, por que eles não deveriam também de estar...
"... uma das coisas que fiquei magoada, porém, foi a falta de atenção
de algumas pessoas que eu considerava.... não que não estivessem
presentes em algum momento da despedida de minha mãe, mas por não
verem o meu sofrimento intenso, a dor que espedaçava o meu íntimo...
queria ser buscada, consolada, que me vissem como eu era, mas não, eram
condolências frias, distantes, contidas, como se quisessem se ver livres
daquele espetáculo... eu até, passado algum tempo, conversando com uma
amiga a respeito dessa solidão grande que eu senti, e ainda sinto, ela me
pareceu assombrada com a minha 'cobrança', - foi assim que ela definiu o
meu sentimento, - pois, segundo ela, eu estava tão forte que até ela se
intimidou, por não se achar tão forte como eu e me constranger com a sua
pieguice... antigamente não devia ser assim, conforme minha mãe falava e
os da época dela falavam, parecia existir uma atenção especial que envolvia
as pessoas e as tornava mais solidárias uma com as outras. O entendimento
do que passava no ser de alguém era como que sintonizado por todos os
presentes, que o confortavam e o amparavam. Agora é só solidão de todos
os lados, ninguém parece, ou quer, compreender ninguém... cada um que
viva a sua dor, sozinho, e pronto!" (Entrevista n. 27).
Neste depoimento se tem, de um lado, uma espécie de asco, quase
repugnância a gestos demasiados por parte de presentes, em um processo
de despedida de alguém morto. O excesso parece incomodar, causar
vergonha e, inclusive, também denota um fingimento de sentimentos, na
verdade ausentes em quem pranteia e se expõe em demasia.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
119 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
O excesso de emoção em público parece vir à tona, e ser entendido
pelos parceiros da relação, como falsidade. Fazem parte de atitudes de
possíveis relações sociais de um passado sequer lembrado, a não ser pela
falta de decoro e de pudor nele expresso no hoje, e que se quer esquecer e,
se possível, negar que existiu, a não ser pela falta de educação inerente a
tal gestuário.
De outro lado, este depoimento revela, também, o seu contrário: a
solidão dos indivíduos prisioneiros do pudor, e a vontade, ou mesmo
necessidade, de alguém que os veja além da máscara de contenção, em
que reprime os seus sentimentos. O passado então é relembrado como um
tempo de solidariedade e compreensão das emoções. É rememorado em
uma visão nostálgica de algo que se perdeu irremediavelmente e que
condena ao isolamento cada sujeito, em seu sofrimento, dos demais.
Ambigüidade que parece ser comum a maioria dos indivíduos de
classe média entrevistados nesta pesquisa. Que parece fazer parte,
também, desse momento de transição vivida pelo povo brasileiro nestes
últimos trinta ou quarenta anos, tornando difusas as fronteiras que delimitam
a marcação e os ritmos sociais de cada passagem, ao transportá-los para o
íntimo dos sujeitos, como expressões não sociais.
A objetividade das relações amplia a necessidade de auto controle e a
separação radical entre indivíduo e sociedade. O ritual vem sendo suprimido
ou abreviado de tal forma que apenas deixa aparente, no caso das
cerimônias fúnebres, o essencial higiênico da configuração da morte e do
despacho do corpo, e um evitar aparente de sentimentos no lidar com o fato.
Quando muito, expressando-se no interior de uma solidariedade formal e
constrangida de ambos os lados da relação, entre o que sofreu a perda e os
outros.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
120 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
O que parece aumentar o sentimento de culpa e o desconforto de não
saber como situar-se e apresentar-se em cada situação específica. As
relações sociais parecem assim tornar-se em relações de constrangimento e
pudor. Configuram-se em um elaborar constante da face, para que esta não
apresente outra coisa além de uma indiferença presente, construída para a
ocasião, e que também revele, para alguns poucos, uma ansiedade de ser
olhado mais a fundo, no interior de sua face, e ser encontrado, e apoiado e
tomado como se realmente é. O que não acontece, e que aumenta a solidão
e o constrangimento pessoal de todos.
O que será perda, ou melhor, como foi definida a noção de perda para
os informantes do questionário padrão? Uma questão sobre o significado do
termo perda foi elaborada entre as várias outras constantes, pedindo,
inclusive, no seu desenvolvimento, uma separação entre perda e sofrimento,
entre perda e luto, e entre perda e morte. Para os 1304 informantes, a perda
poderia ser definida em quatro categorias analíticas: como "Ausência", para
32,75%, como "Desaparecimento", em um conjunto de 21,01% das
respostas, como "Perda de Si", para 38,42% e, como "Dano", para 7,82%
das respostas43.
O sentido de "Perda de Si", elaborado por um conjunto de 38,42% das
respostas à questão, parece possuir o significado amplo de perda de
referenciais que permitiam ao sujeito se locar em uma situação social
determinada, tornando-o retraído e inseguro até do seu próprio papel no
mundo. A ruptura com o passado e o viver o futuro como uma
presentificação alucinada, a falta de amarras, e até o menosprezo expresso
pela reminiscência de formas culturais consideradas arcaicas e não
43
Conforme pode ser visualizado no Quadro N. 17, anexo.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
121 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
condizentes com um padrão – indefinido, é bom frisar, - de urbanidade,
aparecem nesta categoria de apreensão da noção de perda.
Por ela é possível considerar o alto grau de ruptura vivido pela classe
média urbana brasileira nesta entrada do século XXI com as construções
categoriais de uma tradição cultural que parece não mais satisfaze-los, e
que, ao mesmo tempo, não se tem idéia de uma nova forma de apropriação
social de si mesmos em que pudessem contar em momentos de crise ou
perigo. Como os vividos por uma passagem brusca ocasionada por um
processo de perda qualquer.
O risco ocasionado por este processo de perda é a perda de si
mesmo. Uma definição dramática que isola o indivíduo da sociedade. O
indivíduo, visto como um ser completo e indivisível, fora e em conflito
permanente com o social, e a sociedade, por seu turno, entendida como um
conjunto de regras que busca constrange-los a uma situação passiva e
alheia de sentimentos, idéias e volições de cada sujeito individual.
Como parecem ser os casos dos segmentos de narrativas abaixo:
"... Quando vi o corpo de meu pai no centro de um velório com um
bando de pessoas que nem ao menos falavam com ele quando vivo, por ser
considerado velho e doente, senti a hipocrisia toda do mundo. Era algo que
eu já sentia e não sabia bem o que era. ... Na minha frente, aquelas pessoas
me deram bem a dimensão da farsa humana a que sou obrigado a viver e
testemunhar. Minha vontade era de sair, desaparecer, perder-me até de
mim, não ter a consciência da banalidade e falsidade das relações. Hoje, já
se passaram três anos, e eu vejo, cada vez mais com nitidez e desprezo as
pessoas e a sociedade. Não tenho mais crédito em nada, vivo por viver,
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
122 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
indiferente. É a minha forma de dizer o meu desprezo, e ao mesmo tempo
um despreparo absoluto de o fazê-lo..." (Entrevista n. 44)44
"Eu vivo sozinha, trancada, não ouso falar, e se pudesse, nem ousava
pensar, mas os pensamentos povoam como nada a minha cabeça, e às
vezes, eu me sinto louca, enlouquecida de solidão, de não ter com quem
desabafar! ... Mas finjo bem. Sei parecer falsa como todos esses que
circulam ao meu redor! Quando vêem me visitar eu pareço a pessoa mais
leve e feliz do mundo, nunca fui e, agora, cada vez mais, não sou de
demonstrar meus sentimentos. Mas a minha vontade era de gritar, chorar,
passar na cara de todos a minha solidão e a brutalidade do mundo que
parece a todos constranger e que todos parecem negar. Busco fugir de mim,
mas me refugio cada vez mais nesta casca oca que me restou e que tento
esconder e negar para todos e até, há se eu pudesse, para mim mesma..."
(Entrevista n. 37)45.
Na definição de perda como "Ausência", os 32,75% que assim a
apreenderam, parecem ter presente na sua constituição, a idéia de uma
distância temporal e espacial de algo ou alguém que funcionasse como o
ponto modal de uma rede de significados necessários ao processo
integrativo do sujeito consigo mesmo e com os outros. A noção de perda
através da expressão ausência parece estar ligado ao processo referencial
onde se estabelece o sentido da memória. Os indivíduos estando, na sua
ausência, ameaçados de privação de uma faculdade que parecia segura e
inerente a si mesmos, que Benjamin (1985, p.198) chamará de "a faculdade
de intercambiar experiências" .
44
Rapaz de 29 anos, solteiro, natural e residente na cidade de São Paulo, capital, vendedor autônomo, que perdeu o pai, de 65 anos, vítima de uma longa doença degenerativa. 45
Mulher de 52 anos, aposentada, viúva recente, sem filhos, natural e residente na cidade do Rio de Janeiro, estado do Rio.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
123 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
A ausência tendo, aqui, o sentido, deste modo, de um sentimento de
vazio ocasionado por uma relação para a qual o sujeito não se encontra
preparado, e de que sente falta. Mas que, simultaneamente, não ousa
declarar, por receio de não ser entendido.
A ausência do ponto modal, que a perda provoca, aliena ainda mais a
experiência como troca e solidariedade, como construção. Esta, a
experiência, pelo contrário, parece caminhar para uma dissolução e,
consequentemente ter de ver o seu valor decaindo até o seu
desaparecimento total.
O que parece ameaçar os indivíduos da impossibilidade de
comunicação. A possibilidade do inominável, ressoa como uma ameaça
eloqüente, onde, aparentemente, só restam, apenas, o anseio nostálgico de
um retorno a algo que se perdeu, agora atemporal. Para alguma coisa cada
vez mais difícil de expressão, a não ser o de um grito mudo, abafado que, se
chega a ser ouvido por outros, é escutado como e através de fragmentos
incompreensíveis que ampliam a solidão e ameaçam os indivíduos de
destruição e isolamento.
É o que parece revelar os fragmentos de narrativa, abaixo:
"...Tenho dentro de mim uma espécie de nó, que me dói, às vezes até
sinto falta de ar. Tudo começou quando eu perdi a minha filha mais velha.
Parece que o meu mundo caiu, foi a lona, como diz meu filho... Tento
disfarçar, mas acho que não consigo... tento falar e não posso, algo me
agarra por dentro e me deixa sem palavras e gestos... Por mim, ficava o dia
todo sozinha com os meus pensamentos. Penso no tempo em que minha
filha ficava perto de mim, de como conversávamos, de como ela era bonita e
independente, de como é impossível a vida sem ela.... Queria dizer isso
para os meus, mas não consigo, tentei falar, mas eles entenderam como se
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
124 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
eu estivesse doente e queriam me levar a força a um médico... então desisti!
Fico só com a minha filha e o meu sofrimento, e levo a vida como posso.
Aprendi a ser hipócrita, acho, fingida, o que só aumenta ainda mais o meu
sofrimento e a minha solidão... me ponho formal, distante, mas cumpridora
das minhas obrigações... ninguém parece se importar comigo, se eu estou
aparentando firmeza, mas estou solitária e frágil, só as lembranças me
botam em pé... e choro, choro, trancada... mas ninguém nota ou quer notar o
meu sofrimento..." (Entrevista n. 102)46
"... Só vivo das lembranças dele. O mundo já não me importa. Fico
em casa, quem quiser que venha me procurar. Recebo bem, mas
indiferente. Todos pensam que virei uma bruxa, mas é só dor, só sofrimento
o que me move, ... é só a ausência dele em mim. Vivo das recordações do
tempo em que era feliz... me basta, pois a dor é a minha sina..." (Entrevista
n. 70)47
A terceira categoria que expressa a visão dos informantes sobre a
noção de perda é construída, por sua vez, através da idéia de
"Desaparecimento". Esta categoria é informada por 21,01% do total de
respostas.
A idéia de "Desaparecimento", aqui, mais do que a idéia de
"Ausência", parece alcançar o significado de uma construção melancólica
sobre o processo de perda. Nesta construção, os sentimentos para com o
social e para consigo mesmo aparentam tender para um tipo de diluição de
sentidos. A perda pessoal do sujeito é visualizada através de um processo
46
Senhora de 63 anos, casada, três filhos, uma mulher e dois homens, aposentada, natural da cidade de Limoeiro, interior de Pernambuco, e desde os vinte anos moradora da cidade do Recife. Perdeu a filha única vítima de um enfarte "fulminante", nas suas palavras. 47
Senhora de 48 anos, viúva, um filho, doméstica, natural de Macapá, Amapá. Perdeu o marido que, segundo ela: "era tudo para mim, a minha vida, o meu sonho...".
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
125 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
de ambivalência resultante da vergonha como individuação, e da
reprovação ou estranhamento público.
Como uma conseqüência, enfim, de sua subjetivação e falta de
expressão no social. O que parece constituir-se, assim, enquanto tendência,
em uma crença ilusória de expectativas e no estabelecimento de um grave
conflito de sentimentos ambivalentes. Resultado da falta de esperança e do
sentimento de que algo esteja prestes a acontecer e eminente a desabar
sobre si. Que no dizer de Abraham (1976, p. 100), só se pode fugir, voltando
a si próprio a hostilidade e a amorosidade que originalmente sentia em
relação ao seu objeto.
O depoimento de um homem48, de 70 anos, sobre o sentimento de
desilusão provocado pela morte de sua esposa exemplifica bem esta idéia
de desaparecimento, enquanto perda. Para ele: "... O mundo deixou de
existir quando ela morreu... me culpo a todo o momento porque ela e não eu
que se foi. O seu desaparecimento provocou em mim um vendaval de
questionamentos que não sei responder a não ser me culpando, de não ter
dado a atenção merecida quando de sua presença, de não ter ficado o
tempo todo com ela quando de sua doença, de não a ter visto na hora de
sua morte, na urgência do hospital.... por não ter morrido com ela.... me
culpo, me culpo o tempo todo, mas sou um covarde e não consigo findar
minha vida. Se eu tivesse a certeza de que iria me encontrar com ela,
poderia, quem sabe, ganhar coragem e ir a sua procura, ficar ao seu lado...
mas não, não posso afirmar e tenho quase certeza de que na morte se
encerra tudo... então me tranco, me fecho, não quero nada, nem ninguém...
meus filhos chegam e eu vou para o meu quarto... não quero que ninguém
48
Natural e residente na cidade de Maceió, estado de Alagoas. Engenheiro aposentado, pai de dois filhos homens que administram suas propriedades, e quatro netos.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
126 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
me veja, tenho receio de ser objeto de estranheza e de falsos interesses
sobre mim..." (Entrevista n. 53)
Intercessão entre o desespero e o tédio, a dor da perda subjetivada e
sem expressão no social, parece reproduzir-se, assim, na narrativa acima,
como ausência de projeto. O processo de perda, enquanto
desaparecimento, tende a tornar-se melancolia.
O processo de individuação do sujeito que sofre a perda, através da
ocultação da face e da busca de demonstração de leve indiferença às
formas culturais de representação do sofrimento e da morte tradicionalmente
usadas revela, de um lado, uma tendência social no Brasil atual de
escamoteamento da expressão pública dos sentimentos (Mauss, 1980).
Denota, também, a valorização da interiorização enquanto subjetividade ou
espaço da intimidade, ou do privado, e, desta maneira, é sentido pelo sujeito
como não social, por definição. Além de criar, por outro lado, uma disposição
prévia e permanente no indivíduo à desconfiança no outro, e por extensão,
no social (Koury, 1999).
A quarta categoria construída para caracterizar o significado de perda
entre 7,82% dos informantes, é a de "Dano". O termo dano é empregado,
segundo o Dicionário Aurélio, no sentido de um prejuízo moral. É entendido
também como um mal ou ofensa pessoal causado a alguém através da
deterioração, da danificação ou da inutilização efetiva, eventual ou iminente
de algo pertencente a este sujeito, seja ele individual ou coletivo.
A perda como "Dano", deste modo, é sentida como uma ofensa moral
e um sentimento de inutilidade ou deterioração real ou virtual, como se o
indivíduo que revelasse tal conceito visse ou vivesse cada dia o seu
presente como incerteza, id est, recheado de receios e medos de que algo
ou alguém lhe foi tomado, ou está virtualmente próximo de ser dele retirado,
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
127 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
sem ter claro o que ou quem foi retirado, ou o que ou quem o retirou. Sente-
se logrado, inseguro dos seus gestos, de não saber como se comportar ou o
que esperar da avaliação dos outros em relação a sua atitude, ou que
atitude tomar a respeito das performances possíveis dos outros.
O sentimento de logro moral que o dano, enquanto definição de perda
parece provocar, diz respeito, assim, a uma espécie de desequilíbrio das
relações entre o indivíduo e a sociedade. Os ritos de passagem, que
conformam um ser moral, aparentemente, deixam de ser sentidos como
efetivos e o questionamento sobre eles cria um hiato entre as marcações
das seqüências cerimoniais que assinalam os movimentos de um estado
socialmente expresso a outro.
"... Ele não poderia ter feito isso comigo: ir embora assim, sem mais
nem menos, me deixando louca, com filhos para criar, sem ter uma profissão
definida e só ter vivido a vida como só a dele importasse... mas se foi, e
pronto!..." Informa uma entrevistada49, residente na cidade de Recife, estado
de Pernambuco. E continua: "... E aqui estou eu, passados quase sete anos,
tendo que me virar, tendo que fazer de tudo para suportar a humilhação de
me apresentar sem ele, sem a figura forte e de apoio que era ele para
mim.... só não morro pelos filhos, mas estou como morta por dentro. Me
sinto roubada da minha vida, me sinto constrangida de enfrentar o mundo
pelos meus filhos, quando o que queria é ficar na minha, trancada nos meus
pensamentos, em minha vontade de dizer a ele que ele acabou com a minha
vida quando ele se foi... Se eu pudesse advinhar não teria aceito dar a
minha vida assim não, mas agora é tarde, e só me resta ter que agüentar o
desprezo do mundo e o meu desprezo por ele também. Dói moço... é uma
49
42 anos, mãe de dois filhos menores, funcionária pública. Marido morrer vítima de distúrbios cardíacos.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
128 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
dificuldade todo dia que amanhece e eu ter que enfrentar tudo outra vez... "
(Entrevista n. 109)
Pelo trecho da narração transcrito acima, é o despreparo para o
mundo que parece ocasionar a revolta pela perda do ente querido, e com o
próprio ser que se foi, também. Por deixar o outro desamparado, tendo que
sobreviver em um mundo que não se considera adaptado e que sente como
cruel.
O que parece causar um mal estar crescente, por não saber como
comportar-se frente a cada movimento de uma marcação social. Vista
enquanto passagem relacional de tempos e espaços regulados e
reguladores das transmutações de uma sociabilidade determinada.
Descrentes do papel das marcações, e mesmo em um movimento de
rejeição por as sentirem como inadequadas, mas ao mesmo tempo sofrendo
pela perda do valor social de cada passagem, os indivíduos que afirmaram a
perda como "Dano", parecem sentir-se como logrados. Como vítimas de um
estorvo moral acontecido ou prestes a acontecer, que os deixam em estado
de latência, paralisados e sem ação sobre que conduta tomar a cada
movimento cotidiano que lhes impõe participação.
A perda, considerada como "Ausência", "Desaparecimento", "Perda
de si" ou "Dano", desta forma, como foi visto até agora, formam um conjunto
compreensivo de categorias através das quais pode-se inferir o sentimento
do brasileiro urbano de classe média, atual. É claro que estas quatro
categorias para serem melhor analisadas tem de serem vistas como
interrelacionadas, uma influenciando e sendo influenciada pelas demais, por
fazerem parte de um mesmo universo societário e relacional.
Cada uma delas, porém, expressam uma tônica diferencial que
analiticamente torna possível sua diferenciação. Gradações entre os graus
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
129 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
de receios e de significados morais na vivência da cidade parecem ser os
elementos tônicos que uma busca compreensiva tem que se apoiar para
verificação e alcance de sua simbologia.
Abrem espaços para verificação de como o conjunto de regras e
etiquetas, e como a habilidade social e a perceptividade são sentidas como
expressão de diferenças de formas de transmissão e avaliações do outro e
de si mesmo. Isto é, como manutenção, prevenção ou neutralização de
inconsistências do jogo relacional. Possibilitam, também, o entendimento
sobre as formas pelas quais se estabelece entre o indivíduo e o outro
elementos de insegurança e descrédito pessoal e societário, na vivência de
um sentimento de perda, criando um campo de vulnerabilidade entre as
partes em interação.
Fechando-as, ao mesmo tempo, dentro de cada sujeito, no interior de
cada gesto e representação, através de uma atitude blazé simmeliana, de
indiferença social. Os sentimentos introjetados para dentro de si,
configuram-se como uma expressão subjetiva e não social. Impõem-se,
enfim, como uma máscara para o outro, ou como um ocultamento da face,
no dizer de Goffman, para proteção pessoal em uma situação de risco na
vivência compulsória de um social que não satisfaz.
Parece criar um vazio entre segredos a serem ao mesmo tempo
negados, e ansiados de serem descobertos e conquistados. Cada segredo
ou complexo de segredos comportando a nuance de uma individualidade, e
os vazios dos espaços de relações sociais a que se submetem e se
conflituam os segredos, ou melhor, os complexos de segredos, ou melhor
ainda, os portadores de segredos, isto é, os indivíduos.
A individualidade assim se põe contrária ao social e, ao mesmo
tempo, nele busca situar-se como indiferença para melhor poder usufruir das
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
130 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
relações de opacidade em que se transformaram, ou parecem ter-se
transformado, as relações sociais para os sujeitos em relação. A
individualidade, porém, ao mesmo tempo, anseia ser tocada, experienciada,
vislumbrada, descoberta, encantada e, como tal, se põe a espera.
É nesta ambigüidade que parece constituírem-se, em nuanças, as
quatro categorias em que os informantes pensam a noção de perda. São
todas regidas por graus de receio e medo de exposição e do seu contrário,
de não serem descobertos.
Estabelece-se, então, algo, como uma espécie, pelo menos em
aparência, de um movimento ritual, novo e ainda inseguro nos seus passos.
Marcado pela discrição de gestos e economia de afetos, este movimento
que se gesta parece não habitar no respeito ao outro e seu segredo, mas, e
principalmente, como informa Simmel (1950, p. 321), a "tudo o que o outro
não nos revela em expressão (e que deve) ser mantido a todo custo à
distância do conhecimento (de cada indivíduo em relação)".
Mesmo que isso possa provocar uma reação em cadeia, e o próprio
segredo contido em um ser venha a correr o risco de não ser jamais
revelado. Embora ansiado, ao mesmo tempo que preservado, nessa
ambigüidade insatisfeita do medo de contaminação.
O perigo de não ser entendido constrange, ao mesmo tempo que o
conjunto de mal entendidos a que se expõe, ou poderá se dispor, um sujeito
em relação, inibe e o isola. E neste movimento ambivalente parece haver
uma espécie de anseio, sem um conhecimento claro sobre o porque, a um
retorno mágico a um tempo e a um espaço perdido, em algum lugar do
passado cuja memória se nega a enquadrar.
Tempo e espaço estes, onde seria possível estabelecer um encontro
sem correr o risco da perda de si mesmo, ou do desaparecimento do outro
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
131 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
da relação. O que poderia até causar danos morais pela ausência sentida,
ansiada, mas ao mesmo tempo, pelo seu lado mágico e distante, evitada,
por diagnosticada como agente de poluição e causadora de sofrimentos.
A relação entre perda, enquanto sentimento moral, e sofrimento
parece ser evidente entre os 1304 informantes do questionário geral desta
pesquisa. Mas, como eles compuseram a relação entre estes dois termos? É
possível uma comparação entre eles, ou apenas o sofrimento engloba o
sentimento de perda como uma espécie de inevitabilidade irremediável?
Perguntados da existência de uma relação entre perda e sofrimento,
77,30% responderam positivamente a relação, contra 22,70%50. O
interessante a observar é que estes 22,70% afirmaram não haver relação
porque não existe diferença entre os dois termos. Para os informantes, a
perda e o sofrimento são a única face de uma moeda, não uma e outra, mas
a mesma face. A perda é sofrimento e o sofrimento é inevitavelmente
produto de uma perda, seja lá que origem tenha um ou outro.
Para eles, assim, é impossível pensar uma relação, que implica para
em seus cálculos em uma forma de interação entre dois. Pois uma é a outra
e vice versa. Pensar a perda remete sempre ao sofrer e pensar o sofrimento
implica um referimento à perda. Umbilical processo que parece remeter
inevitavelmente para a mesma sensação de impotência, e de preenchimento
pelo outro e resguardo de si.
Os 77,30% que responderam haver uma relação entre sofrimento e
perda, porém, por seu turno, estabeleceram três níveis diferentes para
expressarem esta relação. Como se pode observar51, 21,53% dos
informantes informaram esta relação através de uma Diferença de
50
Conforme pode ser observado no Quadro N. 18, anexo. 51
No Quadro n. 19, anexo.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
132 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Intensidade entre Pessoas e Objetos. A perda objetivada de objetos ou
pessoas provoca, segundo estes, sofrimento em um indivíduo.
Este sofrimento é uma espécie de conseqüência graduada e motivada
pelo sentimento de posse. De não mais possuir os elementos objetais
perdidos pelo desaparecimento ou pela desapropriação.
A gradação na intensidade de sentimentos envolvidos em uma perda
específica, assim, se encontra em relação ao conteúdo de posse ou de
aproximação entre o sujeito que a perdeu e o objeto ou pessoa perdida. É
uma relação objetiva ocasionada pela ausência e pela impossibilidade,
momentânea ou definitiva, de algo ou alguém significativo.
Parece estar mas próxima, assim, das relações de mercado, onde o
valor objetal é medido através da intensidade de ansiedade gerada no
sujeito que a detém ou que a perdeu. O sofrimento podendo ser medido e
quantificado, e diferenciado em intensidade nas gradações entre pessoas e
objetos, entre proximidade e apropriação.
A segunda relação estabelecida entre sofrimento e perda é expressa
por 47,82% dos informantes através da afirmativa: A Perda Provoca o
Sofrimento. Para estes informantes, o sofrimento é uma conseqüência da
perda. Um movimento que parece ser provocado pela ruptura ocasionada
pela ausência ou desaparecimento, definitivo ou parcial, porém concreto, do
objeto ou da pessoa amada. Reflete o estado de fragilidade que a pessoa
que sofreu uma perda se encontra no momento de tomada de consciência
do que perdeu.
O sofrimento seria, deste modo, um tipo de dor moral e física, pela
somatização de uma perda objetiva no indivíduo. Reflete, ao mesmo tempo,
um sentimento de impotência ante o objeto ou pessoa perdidos, e a
conscientização desta perda em si.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
133 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
A terceira alternativa para a relação entre sofrimento e perda é
expressa por 30,65% dos informantes. Esta terceira relação, porém, é
estabelecida de um modo mais difuso, através da afirmação de que esta É
um Sentimento de Perda Eterna.
Este modo de referenciar a relação entre sofrimento e perda, não
parece circunscrever a relação a uma perda definida e objetiva, como parece
expressar a primeira e a segunda forma de relações propostas pelos
informantes. Expressa, ao contrário, a relação com um sentimento
estilhaçado, pulverizado, disperso no interior do sujeito. Parece referir-se a
algo ou alguém não de todo objetivado, como uma espécie de condenação
ou desilusão de mundo a que um sujeito está destinado a percorrer.
A perda passa a ser alguma coisa presente, irremediavelmente
enraizada no interior dos sujeitos, que parece ultrapassá-los pela plenitude e
eternidade de sua constância. E o sofrimento é a forma de expressão deste
sentimento disperso que agride e que acompanha os indivíduos em sua
jornada, como uma sina da qual não se tem forma de escapar.
Parece, de um lado, fazer parte de uma tradição judaico-cristã52
situada na perda da inocência e do paraíso, cuja recuperação se realiza
através da abdicação de uma vida terrena em prol de uma vida espiritual,
plenamente completa na pós vida após a morte. Mas, por outro lado, parece
realizar-se muito mais pela desilusão do mundo. Por não mais sequer situar
o objeto perdido, o paraíso ou a inocência, em um lugar mítico ou real do
passado, por não ter mais lugar onde originar a perda e o sofrimento dela
conseqüente.
52
Ver sobre a tradição judaico-cristã os importantes capítulos contidos nos livros de Kristeva (1988) e Carse (1987).
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
134 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Destinado a vagar como um ser sofredor de uma perda acontecida
em algum momento ou em algum lugar indefinido, ao qual se quer lembrar,
se quer reapropriar, mas que cada tentativa parece colocar o sujeito para
mais distante, e onde, assim, mais pulverizado ficam os sentimentos,
tornando-se mais intenso o seu sofrer.
As três possibilidades de interpretação da existência de uma relação
entre sofrimento e perda transmitidas pelos informantes, assim, situam esta
relação entre um produto de uma perda objetivada, concreta, onde o
sofrimento aparece como uma conseqüência, quase natural, da tomada de
consciência de um ator de algo ou alguém que se foi, ou de quem ficou
privado, e um produto de uma perda difusa. Inatingível em sua origem, que
parece gerar uma espécie de nostalgia de algo ou alguém de alguma forma
extraviado de sua presença e cuja sensação é de um aniquilamento e
irremediável condenação a um sofrimento a ela inerente.
Paul Ricoeur (1994, p. 60 e 61), em seu estudo sobre o sofrimento,
estabelece diferentes degraus da manifestação de uma crise de separação.
O primeiro, é visto como se o sofredor fosse único e insubstituível. O
segundo degrau, aponta para o sofredor como um solitário, cujo sofrimento é
incomunicável e inapreensível pelos outros, os quais não podem
compreender ou ajudar. No terceiro degrau, o outro apresenta-se, ou parece
apresentar-se como o inimigo do indivíduo que sofre. No quarto e último
degrau, enfim, como condicionado e condicionante dos demais, o sofrimento
aparece para o indivíduo que o sofre como uma espécie de predestinação,
como de ter sido escolhido para sofrer. Estes degraus ricoeurianos parecem
assentar-se bem nas expressões utilizadas pelos informantes nesta
pesquisa.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
135 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
O sofrimento que informam parece ultrapassar a própria vida do
sujeito, exteriorizando-se em eternidade. Prendendo-se em uma
atemporalidade sem passado e sem futuro, formada pela presentificação
contínua e repetitiva do não olvidar mas, também, não saber ao certo o que
e o como esqueceu.
O por quê eu? Pergunta e inferno do suportar a dor (Ricoeur, 1994, p.
61), como um ser que sofre e predestinado ao sofrimento, parece tomar
conta do sujeito que, sem resposta, parece cair ou em uma forma de
conformismo fantasmático ao sofrimento a ele destinado, ou a um ceticismo
nas formas de olhar os outros sociais em relação.
O conformismo fantasmático quanto o ceticismo parecem assim
serem as formas de enfrentar o mundo, nesta relação entre a perda, o
sentimento difuso de perda e o sofrimento a ela inerente. O mundo
apresenta-se, assim, sem confiabilidade, a não ser a da confiança em não
ter confiança legítima nas instituições e coisas públicas da ordem social.
Regras e etiquetas de uma sociabilidade são, desta forma, vistas com
uma espécie de desdém e descrédito. A perda é sentida, de um lado, como
algo a ser reparado pelo ator, que se culpabiliza pela sua efetivação e, ao
mesmo tempo, cria uma escala de gradações por onde possa expiar a sua
dor. E como tal, a dor é sempre pessoal, enquanto sofrimento reparador de
culpa. O que individualiza o sujeito e o constrange, ou parece o assim fazer,
ante o mundo e os outros sociais.
De outro lado, porém, a perda é vista pelo seu lado atemporal. É
sentida enquanto uma espécie de condenação impossível de ser reparada, e
cujo enfrentamento é o de retomá-la como espaço de criação de uma
temporalidade artificial que permita o sujeito remeter-se a um cotidiano
contínuo e repetitivo de mesmidade.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
136 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Não, deste modo, para a existência de uma finalidade, não, também,
para uma possibilidade de salvação, e não à existência de outra coisa a não
ser a si mesmo. Nesta eterna repetição, o indivíduo parece recriar-se em
cada momento de seu sofrimento, como um ser sempre já perdido e
impossível de realizar a ânsia por um fim, enquanto reparação.
O que parece provocar um sentimento de vergonha de si mesmo e
dos outros em relação. Aprisionando o indivíduo envergonhado na busca de
um auto controle que evite do olhar a instabilidade e a tensão. Embora, e ao
mesmo tempo, ânsie na intimidade do seu segredo, cada vez mais,
escondido a sete chaves, a necessidade do conforto e do repouso.
Sentimento de culpa e de vergonha parecem satisfazer assim os
parâmetros por onde se possa compreender a relação por eles estabelecida
entre sofrimento e perda. Os sentimentos de vergonha e culpa ao serem
tomados como dois sentimentos diferenciais, como o fez Lynd (1961), - o
segundo como um sentimento mais individualista, e o primeiro como que
ainda encoberto por uma malha por onde se espelha a tecedura de uma
coletividade, - podem ser usados para pensar a sociabilidade urbana
brasileira, principalmente entre a classe média, como vivendo uma
transformação na esfera do comportamento e da mentalidade dos seus
atores.
A principal característica desta mudança comportamental reside em,
ou tem por seu núcleo ou centralidade, um desapego crescente ao passado
e nas suas tradições, de um lado. E, de outro, um lançar-se a um novo
modelo cujos hábitos, não de todo claros e não de todo incorporados,
apresentam-se como constrangimento pessoal.
Apresentam-se como uma espécie de não saber agir, ou de não ver
como situar-se em situações de passagens, onde os elementos de ruptura
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
137 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
ou de transição ficam mais acentuados, provocando mal estar, incerteza, e
uma dose maior de disfarce e máscara. De indiferença para melhor
esconder a face, e com ela ausentar-se ou negar o enfrentamento direto
com as situações de risco que o cotidiano lhe impõe.
O conformismo fantasmático, o ceticismo social das coisas públicas e
a descrença pessoal das instituições asseguradoras da cultura e do social
enquanto tradição parecem, deste modo, ampliarem-se. O que faz os
indivíduos tornarem-se, ao mesmo tempo, eternos seres a procura de algo
ou de alguém, a que ou a quem se possa amparar, mesmo sob a capa
céptica com que aparecem vestidos. Movimento de um processo ambíguo,
que provoca mais pessimismo, mesmo que transfigurado em uma alegria
carnavalesca, ou em um tudo qualquer que vira piada na mesa de um bar.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
138 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Capítulo 4
Viver o Luto
"Être en deuil, c'est souffrance, au double sens du mot, comme douleur et comme attente: le deuil est une souffrance qui attend sa conclusion, et c'est pourquoi toute vie est deuil, toujours, puisque toute vie est douleur... et quête du repos... ". - André Comte-Sponville (1995, p. 15)53
O luto, diferente da noção de perda expressa pelos informantes,
parece possuir um sentido mais integrativo. Sentido este, ligado ao processo
de reintegração do indivíduo à sociedade, através de uma introjeção da
perda, ou do ente querido morto, sentimentalmente, dentro de si. A perda,
por sua vez, parece informar, conforme analisado no capítulo anterior, o
sofrimento imediato em um indivíduo, provocado pela ausência ou
desaparecimento de um objeto ou pessoa queridos, e sua recusa de aceitar
o fim.
A sensação de sofrimento objetificada pela perda, parece tornar-se
mais e mais difícil de realização como luto. Motivada, seja pela rápida
transição dos costumes tradicionais vividos na sociedade brasileira,
especificamente a urbana, nos últimos trinta ou quarenta anos, seja pelo
processo de individualização e individualismo que acomete o cidadão
53
"Estar em luto, é estar em sofrimento, no duplo sentido da palavra, como dor e como espera: o luto é um sofrimento que espera a sua conclusão, e também é, por que toda a vida é um luto, sempre, desde que toda a vida é dor... e indagação do resto..." (Tradução livre).
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
139 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
comum, e mais precisamente, os de classe média, residentes nas cidades, -
aqui, especificamente, as capitais de estado.
Seja, também, através do processo de questionamento às instituições
e instâncias de desindividualização vivido por estes indivíduos. Estes
motivos são o resultado, de um lado, do processo de individualismo recente
que acomete as relações sociais urbanas no Brasil e, do outro lado, pelo
conseqüente descrédito nos ritos e fórmulas rituais de um passado recente,
sem uma substituição adequada. O que vem provocando um estilo de vida
mais retraído pela vergonha silenciada de não saber como comportar-se em
situações específicas, e do aumento de um sentimento de culpa pela
dificuldade de ação e mesmo pela não ação ou por um agir inadequado. O
que parece afetar, igualmente, os que vivem um processo de perda e os em
sua volta.
Este capítulo tentará compreender como os informantes do
questionário padrão e os entrevistados diretos vêem, sentem e exprimem a
vivência do luto, e as dificuldades e facilidades das relações sociais
advindas da experiência deste processo, no Brasil urbano do anos de 1970,
principalmente, até hoje.
Desconforto e Ambivalência
Em uma conversa informal, no processo inicial de adequação de
linguagem e sedução antes do início de uma entrevista, e que serviu de
mote para se adentrar na narrativa de sofrimento do entrevistado, este
descreve o sentimento de desconforto a que foi submetido quando da
execução dos rituais funerários de sua mãe. Desconforto oriundo das
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
140 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
diferenças interpretativas dele e de alguns membros da família envolvidos
com o episódio.
Para o informante, a falta de compreensão das diversas formas de
interpretação das atitudes das pessoas envolvidas em um processo de
perda no momento do despacho do corpo provocaram mágoas, sentimentos
de culpa e dificuldades posteriores de relacionamento entre os familiares. As
atitudes assumidas em um momento de dor intensa, provocaram além da
quebra de relações, sentimentos diversos de rejeição, desatenção e ira,
formando o que Turner (1975) chama de drama social.
O indivíduo entrevistado54 ao conversar as mágoas envolvidas pela
dificuldade de entendimento de atitudes pessoais na família em um
momento agudo de sofrimento e de passagem pela perda de um ente
querido, tocou em um problema comum a quase todos os demais
entrevistados nesta pesquisa, que é o de não saber lidar com a ambivalência
e com as diversas formas de vivência ritual na sociedade brasileira urbana
atual.
Este problema levantado pela conversa informal anterior ao processo
de entrevista, forneceu a chave de entrada para o universo narrativo
procurado pelo entrevistador para o início do trabalho. Criou o clima propício
entre entrevistado e entrevistador para o começo de uma conversa de mais
de três horas, sobre os significados de luto e a narração da vivência deste
processo pelo informante.
Inclusive, porque o entrevistado elaborava este relato, na conversa
inicial, com uma certa distância e com um misto de problematização e
humor, passados já quase dois anos do evento. O que facilitava o ritual de
54
Sexo masculino, 59 anos, casado, um filho, dentista, natural de uma cidade do interior do Ceará, mas que vive desde a sua adolescência na cidade de Fortaleza. (Entrevista n. 140).
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
141 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
encantamento necessário para iniciar e prosseguir a difícil tarefa de
entrevistar os temas de sofrimento, perda e luto.
Ao pedir para contar com mais detalhes a anedota55 comentada pelo
entrevistado, deu-se início a entrevista. Conta o entrevistado que, a sua mãe
residia na sua casa, em Fortaleza, desde que o marido faleceu, há quase
oito anos contados até o momento de sua morte em 1998.
Era uma senhora idosa, de mais de setenta anos, quando começou a
viver com ele. Nunca trabalhou fora, era apenas esposa e mãe. Veio do
interior para a capital anos após o seu casamento, para que os três filhos
pudessem estudar o segundo grau e logo após a universidade. Desses três
filhos, um faleceu em um acidente de carro quando tinha vinte e poucos
anos, o segundo mora fora do estado.
Apesar de "nunca ter trabalhado fora ou estudado além do primeiro
grau"56, a mãe do entrevistado figurava como uma espécie de matriarca da
família, sendo uma referência de ligação entre membros dispersos da
grande família, tanto a do lado de seus país como a do lado do marido. Este
ponto de ligação, mais afetivo do que econômico, mantinha unida a família,
pelo menos nos contatos básicos do cotidiano de comemorações e perdas,
que celebram as passagens individuais e coletivas dos membros desta
instância desindividualizadora familiar.
"Não tinha aniversário de minha mãe que a minha casa não virasse
um tumulto, cheio de parentes que eu até não tinha intimidade, para
comemorar. Os que não podiam vir mandavam telegramas ou telefonavam.
Mas não deixavam de lembrar... Minha mulher no início não gostava, mas
55
Anedota, aqui, tem o significado preciso de um episódio acontecido e narrado com um certo distanciamento e humor. 56
Aspecto salientado com bastante vigor pelo entrevistado, não denotando uma depreciação mas antes uma espécie de orgulho da qualidade de articulação de sua mãe.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
142 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
com o tempo, e com o jeitinho de minha mãe, ela parecia acomodar-se. Pelo
menos até a próxima invasão... ... em cada natal e véspera de ano novo, em
cada festa comemorativa do ano, as notícias dos nascimentos, casamentos,
separações, mortes, minha mãe era a primeira a ser acionada. Servia como
ponto de encontro da família, ela sabia de tudo e juntava as partes em
discórdia, celebrava as festas e vitórias, comunicava a todos, servia de
conselheira, enfim...(riso) era uma política nata. Só que dentro da família.
Isso desde o tempo de meu pai... foi sempre assim" (Entrevista n. 140).
Quando a mãe do entrevistado morreu, de morte natural, segundo o
entrevistado, a família extensa deixou de ser a mesma. Os contatos ficaram
mais esparsos, e parece que todos se voltaram para a sua própria família
nuclear e a "tocar a sua vidinha sem se importar mais" com o todo.
Este fato, parece não incomodar tanto o entrevistado, já que ele
mesmo se expressa como "alguém que não tem tempo para nada. Acho
mesmo que nem a minha família, mulher e filho, tem a atenção que
deveriam ter. Me sinto às vezes culpado, mas o trabalho me envolve
bastante e a culpa eu vou deixando de lado... a não ser em crises familiares
onde ela me é passada na cara...". Os fatos descritos com um certo humor
sobre o processo ritual por ele vivido na morte de sua mãe, parecem ter
ocorrido em uma dessas crises "passada na cara".
Conta ele, que assim que sua mãe morreu tratou de avisar ao irmão e
a todos os parentes do episódio. Segundo ele, antes mesmo de resolver as
questões pendentes com o mercado e o ritual da morte, - como a compra de
caixão, flores, translado do corpo do hospital para um salão de velório, missa
de corpo presente, ajeitar o túmulo da família onde já se encontrava o corpo
do pai, enterro, entre outras atividades da cultura fúnebre, - "chatas e
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
143 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
massacrantes, para quem já está dominado pela dor...e que fiz sozinho, sem
ninguém para me ajudar, tratei de comunicar a todos o acontecimento".
"Liguei primeiro para o meu irmão, e depois para a parentela. O meu
irmão, o safado, pareceu não ligar! Disse que estava muito ocupado, tinha
uma reunião importante que envolvia o futuro dos seus negócios, e não
podia vir para o enterro. Disse que eu depois enviasse a conta que ele
dividia comigo as despesas.
"Confesso que fiquei puto... desculpe o palavrão! Mas foi como eu me
senti. Nunca pensei que pudesse reagir assim, mas na hora, confesso, eu
tive uma discussão séria com ele... ...ele pensou que a minha chateação era
devido as despesas com o enterro de minha mãe, aí eu fiquei mais brabo
ainda... e hoje, passados já dois anos, nossa relação nunca mais foi a
mesma. A gente se fala por telefone, mas é uma relação formal, perdeu
aquela coisa que parecia nos unir como irmãos... sei que pode parecer
besteira, eu mesmo acho que é e rio disso, mas, às vezes, penso em ligar
para ele e conversar, mas me sinto incomodado, o que ele vai pensar, o que
eu vou dizer a ele... aí vou deixando de lado e esperando que o tempo
solucione. Mas parece que o tempo só faz piorar as coisas, a vida que a
gente leva, sem tempo, arrefece a dor, mas o comportamento muda, não
tem como retornar, e o que era junto parece ficar numa barreira ou num valo
enorme, separado, e mais separado... mas essa é a vida, o que fazer...".
A morte da mãe, o momento da morte, de uma mãe que unia a família
inteira, foi sentido pelo entrevistado, na recusa da vinda do seu irmão para o
enterro, como uma espécie de perturbação dessa união. Como desinteresse
e desclassificação do seu irmão para com a sua mãe, e para com o
entrevistado, visto que ele pensou o seu sentimento, de acordo com a ótica
do informante, como uma questão econômica, monetária, e não de algo
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
144 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
mais importante, como o sofrimento causado pela mãe e a necessidade de
estarem mais unidos.
Apesar de esta mágoa arrefecer no seu interior com o tempo, no
período em que foi se realizando o trabalho de luto, e de ver o episódio
como uma espécie de mal entendido de ambas as partes, dele e do irmão, o
fato repercute nele ainda pelo afastamento ocasionado. Para o entrevistado,
este afastamento teve a ver com este episódio, com a barreira então
formada, e com as dificuldades de conversar a respeito, o que vem
aumentando a cada dia a frieza nas relações entre os irmãos.
O segundo episódio desta mesma narrativa, que cobre a anedota que
possibilitou o início e o entabulamento da entrevista, refere-se a uma
questão também de comunicação. O entrevistado narra o fato de ter
recebido dias após o sepultamento e da missa de sétimo dia da mãe, um
telefonema de parentes distantes, primos de sua mãe, sentidos com ele por
não tê-los comunicado da morte de sua prima.
Estes parentes referiram ao possível esquecimento de um telefonema
do entrevistado como "um descaso", e telefonaram para falar do
constrangimento que sentiram ao não serem informados do episódio e
demonstrar a mágoa que sentiam por terem sido deixados de lado, por
terem sido lembrados.
Nas palavras do informante, com um certo tom de ironia na voz,
esses parentes "telefonaram para mim para se queixarem pelo fato de terem
sido esquecidos por mim, e pelos outros membros da família, de serem
avisados da morte de minha mãe. Uma deles chegou a dizer explicitamente
que 'era porque eu era pobre que você e ou outros acharam de não ligar prá
mim, sou pobre sim, mas também tenho sentimentos e gostava muito de sua
mãe'." Segundo ele, "não adiantou minhas explicações, o que eu dizia
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
145 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
parecia virar em um novo e mais demorado novelo de queixas e expressões
de mágoas. O sentimento deles não era apenas por não terem sido
comunicados, mas porque, parece, pela não informação, se sentirem
excluídos do enterro de mamãe. Do acontecimento (diz, rindo)!...
"Eu, na época não liguei muito. Tentei explicar mas, como foi pior,
ouvi e desliguei o telefone, e esqueci, ou tentei esquecer. Mas, de um tempo
para cá, eu ando entabulando um pouco os meus pensamentos sobre o
episódio e, apesar de achar ridículo, vejo hoje que as reclamações tinham o
sentido da família, da grande família que minha mãe, durante toda a sua
vida, tentou deixar unida, ... e com a sua morte esfacelou, ou quase...".
Este segundo episódio de dificuldades de comunicação e o
desconforto gerado, em um momento de intenso sofrimento, mostra, de um
lado, a fragilidade individual perante uma situação de crise, como os casos
de perda por morte parecem revelar. Deixam evidentes, para os envolvidos,
a atitude própria e dos outros, a partir de uma ótica da dor pessoal pelo
sofrimento causado pela perda. O que ocasiona a procura de aproximações
e aconchegos, ou demonstrações de carinho e afeto para com o morto ou
para os sobreviventes, e as mágoas dela provenientes.
De outro lado, porém, mostra também a ambivalência dos tempos e
dos espaços em que a leitura da morte e feita pelos indivíduos envolvidos.
Configura, também, a presença de cada um no ato da morte e as
representações dos mesmos pelo aspecto ritual em que ela se encontra
envolvida e de onde a presença de cada um é sentida, seja pelo olhar
pessoal de cada indivíduo, seja pelo olhar do outro em relação a sua atitude
perante a morte. Esta segunda face revela o lado mais social da relação.
A pessoa e o outro da relação são colocados em cheque pela morte
de um terceiro comum a ambos. As atitudes de cada um e as leituras que
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
146 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
fazem, ou que são lidas como realizadas, são postas à tona como possíveis
detonadoras de conflitos, internos às pessoas e entre elas, quando, o que
se queria mesmo era aconchego, conforto e demonstrações de carinho e
afeto. A dificuldade de comunicação pela ambivalência das leituras de cada
um das margens de exclusão em que se coloca, ou coloca o outro da
relação, como vítima ou algoz, tendo o corpo morto como o referente
principal, parece vir acompanhado de um crescimento de mágoas que, o
tempo embora amenize, também provoca afastamento. E só mais
afastamento.
Com o tempo às magoas e os desentendimentos vão sendo
acalmados, embora o desconforto permaneça. Os códigos de proximidade
que uniam e garantiam um certo sentimento de família parecem ruir pelas
barreiras que vão sendo impostas pelos silêncios das mágoas e do
desconforto. O desconforto passa a ser agora a humilhação de ter de
chamar o outro para conversar, do que dizer ao outro e de como o outro vai
entender esse chamado. E da culpa de não realizar esse gesto de
aproximação.
A culpa e o medo de ser ofendido vão ampliando as margens do
silêncio e a frieza das relações. O mundo cotidiano volta a girar agora
esfacelado, ou mais fragilizado, pela quebra dos laços, das comunicações
intra e interfamiliar, e do evitar encontros ou situações que possam
constranger a si próprio e aos outros.
O evitar, e o esconder a face, usando o termo de Goffman (1980),
passam a afigurarem-se como atitudes que os enlutados passam a se haver
no período do pós luto. Um aumento da distância entre as pessoas
envolvidas parece ocorrer. A quebra dos códigos de um ritual de coletividade
que permeava a família enquanto instância de união e corporeidade sui
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
147 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
generis, que parecia atuar acima dos indivíduos, e que os formavam e os
informavam como pessoas de uma rede familiar de afeto, e o desconforto
gerado pelo esfacelamento dos laços, além dos desgostos pessoais
provocados pela ruptura, tornam-se conformidades onde cada um procura
ajustar-se na sobrevivência cotidiana das relações consigo mesmo e com os
demais.
A família ao deixar de ser o eixo norteador dos quadros e
enquadramentos afetivos, enquanto reprodutora de relações emocionais
garantidoras de laços de convivência e confiança mútua entre pessoas,
passa a ser encarada como depositária de mágoas e desafetos. Emoções
sentidas entre indivíduos ou grupos de indivíduos no interior de um mesmo
laço familiar, migram da afetividade e reciprocidade, para o silêncio e o
distanciamento culpado. Começam a ser visualizadas, com o prosseguir do
tempo, como uma realidade distante onde existia algo não definido
plenamente pelos sujeitos envolvidos, mas expresso sentimentalmente,
como um elemento idealizado de positividade, onde a rede familiar
funcionava como agregadora e acompanhava a formação e amparava os
seus membros nas horas de precisão e crise.
No caso, aqui considerado, esta idealização é feita a partir da
representação do papel da mãe do entrevistado. Este papel de agregação e
de uma política afetiva de intermediação, respeito e amparo aos familiares, e
de facilitadora de trocas de informações entre eles, quebrado com a sua
morte.
Este elemento é importante porque retrata a questão de quão tênue
parece ter se tornado as relações de instâncias fundamentais na vida
brasileira, nos últimos trinta anos, como a familiar, por exemplo, aqui tratada.
A passagem representada pela morte, provoca uma crise nos sujeitos
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
148 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
envolvidos neste rito acentuando, nos momentos mais agudos da dor da
perda, uma exacerbação da individualidade nos atores em sofrimento. As
relações são dificultadas pela dificuldade de se fazer entender. O que
obstaculariza as tentativas de acordo, pela individuação a que cada um se
encontra exposto e se joga para o outro como tábua de salvação ou repúdio.
Sempre intensos.
O que até pouco tempo atrás, até meados da década de sessenta,
funcionava como uma rede de amparo para momentos de crise, a família no
final do século XX e início do século XXI no Brasil aparece nas entrevistas
como quebradiça ou em processos de redefinição, onde apenas o núcleo
familiar básico funciona. E mesmo assim fragilmente, seja pela facilidade de
dissolução de casamentos e de remontagem de casais por novas uniões,
seja pela dificuldade cotidiana de manutenção de laços de continuidade, que
implica tempos e espaços amplos para serem administrados, e cada vez
menores nas formas assumidas pela sociabilidade contemporânea no Brasil
urbano.
Por outro lado, este caminhar para uma forma mais individualizada de
ação que parece ir assumindo as relações sociais no Brasil urbano, se
choca, a cada momento, com atitudes que ferem esta tendência. A
ambivalência das atitudes presentes nas relações entre os indivíduos
envolvidos, aqui, neste rito de passagem chamado morte, mostra bem as
contradições por que passa a cultura mortuária no Brasil.
Mais uma vez, o exemplo de luto aqui retratado através da narrativa
deste entrevistado sobre as relações familiares quando e a partir da morte
de sua mãe, é significativo desta relação de ambivalência. Ao tomar os dois
episódios de um mesmo ato, por ele narrado e aqui reproduzido, o da reação
do entrevistado em relação a atitude do seu irmão, e a reação de familiares
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
149 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
sobre o comportamento do entrevistado, pode-se melhor entender este
comportamento ambíguo e as dificuldades a ele inerentes no atual momento
vivido pela cultura mortuária no Brasil.
O choque do entrevistado pelo aparente descaso do irmão com a
morte da mãe, e o tratar sua indignação como uma questão financeira,
mostra uma realidade de atuação de um sujeito no interior de uma
sociabilidade onde a perda da mãe é encarada como uma dor subjetiva e
privada. Onde o sujeito estiver e o que ele estiver fazendo não o poupam de
sofrimento pessoal, mas não o impede de tocar o cotidiano profissional por
causa do luto ou da morte de um ente querido. Para o irmão do entrevistado,
a impossibilidade de deixar os negócios para acompanhar os funerais da
mãe, causaria prejuízos a sua vida futura. A sua dor é dele, ele pode guardar
e viver com ela no seu interior, mas o mais importante, o objetivo imediato é
tocar sua vida, seus negócios: manter em funcionamento as condições
garantidoras de sua vida momentânea e futura.
Não tinha, assim, por que parar os seus negócios e os compromissos
do cotidiano por uma situação que não se pode mais voltar atrás, a morte. A
dor subjetiva é assim encarada com objetividade. As relações sociais,
profissionais, precisam ser mantidas.
Nesta relação, a morte apenas aparece como um elemento
perturbador, mas sem o rigor ritual necessário para sua compreensão e
integração. O sofrimento é do sujeito e sua a sua interioridade e vivência.
O forçar do entrevistado para que o irmão vivesse uma situação que
ele não via como necessária, e que não via também essa falta de
necessidade como uma indiferença e uma falta de sentimento pela perda da
sua mãe, criou um hiato no entendimento do sujeito que se viu forçado, e
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
150 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
uma busca de sair dele através de uma proposição de um negócio: dividir as
despesas funerárias.
A proposição do irmão de dividir as despesas funerárias, como uma
forma de fugir a um forçar agressivo do entrevistado, criou também um fosso
para este último, na compreensão da atitude do irmão. Para o informante, a
proposição feriu os seus sentimentos pela frieza do irmão para com a
importância da perda, a transformando em um mero cálculo financeiro.
Tem-se, assim, dois modos de vivência da mesma realidade, dois
discursos mudos e impossíveis de troca, por se destinarem a destinatários
com vivências temporal e espacial diversas, da cultura mortuária no mesmo
Brasil. O que silenciou ambos em acúmulos de mágoas e, ao mesmo tempo,
de culpa.
Passado o período da dor maior, o sofrimento amainado pela
interioridade da perda no processo lento do trabalho de luto, ficou o silêncio
e a culpa como uma espécie de marca, onde a morte da mãe é relembrada e
idealizada, mesmo que agora, cada vez mais, sentimentalmente. Esta
sentimentalidade, na narrativa do entrevistado, passa pelo tempo de onde a
estrutura familiar era mantida, e o reforço pessoal dos seus membros eram
refeitos a cada momento de uma celebração ou crise na ação familiar, como
uma instância coletiva organizadora do individual.
Ao relativizar a atitude do irmão, vendo à luz do tempo, fica contudo a
ruptura, a dificuldade de retomar uma relação quebrada, e que só existe
enquanto idealização no sujeito que a rememora. Como retornar a este
passado desejado? O que dizer, no retorno de seu sentimento de culpa, pelo
estrago da relação entre irmãos, mas, também, o que dizer, de sua mágoa
de não ter sido procurado e do pedido de desculpa que não houve e não
haverá, de cada lado?
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
151 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Questões que emergem e situam o indivíduo solitário no seu
rememorar, e aumenta o retraimento social dos sujeitos, e diminui a eficácia
da família em reintegrá-los e incorporá-los como ação solidária.
O segundo episódio, por sua vez, inverte a relação. É o entrevistado
agora que é questionado em sua atitude por familiares que se acharam
segregados por não terem sido comunicados da morte da mãe do
informante.
Mais uma vez, hiatos são criados e interpretações de cada lado são
realizadas sobre o comportamento de ambas as partes. Uma vez mais,
também, estas interpretações se cristalizam nos sujeitos em sofrimento pela
perda e se transformam em dificuldades de relacionamento, não apenas
momentâneo, mas que se refazem, continuam e se reforçam a cada novo
dia.
De novo, também, a idealização de um passado, onde a mãe atuava
como congregadora e potencializadora da rede familiar, vem a tona, de
modo sentimental, provocando ânsias de retorno. Mas, não sabendo,
simultaneamente, como fazer para retornar a uma posição quebrada no
passado, pelos sentimentos de mágoas, desgostos, humilhações, culpas
envolvidos. O que paralisa as ações e as fazem reconstruírem-se pela e
através da solidão e do isolamento dos sujeitos nelas envoltos.
Neste episódio, também, as interpretações foram originadas pelos
tempos e espaços específicos na cultura mortuária em que se situaram o
entrevistado e os parentes sentidos. O não serem convidados significou uma
exclusão da rede familiar, principalmente em se tratando da morte da
considerada matriarca da família.
A leitura de segregação elaborada pelos parentes tocou em um ponto
principal para eles, a falta de importância deles na rede familiar pela sua
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
152 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
condição de serem, ou sentirem-se, os mais pobres. A segmentação feita
pela luz da polaridade riqueza e pobreza, aumentou o sentimento de
frustação pessoal dos que assim se sentiram, e os fizeram olhar para si
mesmos como desclassificados, na relação social no interior da rede familiar
em que se encontravam inseridos. O que provocou ou aumentou o rancor,
talvez até sentido anteriormente, mas amainado na convivência
socializadora e organizadora da estrutura de família em que se encontravam
imersos.
Do lado do entrevistado, as explicações do momento tumultuado em
que vivia e o de não ter lembrado, ou o de ter transferido a outros, que
também não o fizeram, a tarefa de avisar a toda a parentela, só reforçava
mais o sentimento de frustação e rancor por parte dos esquecidos.
Porque a questão envolta era a da instância ritual que representava a
comunicação do falecimento, a ida ao velório, ao enterro, a missão de
sétimo dia. Era a presença física no momento da despedida de um ente
amado. A falta de comunicação, que impossibilitou o comparecimento
desses parentes ao ritual de despedida, foi lida através de um sentimento de
exclusão social ou de discriminação. Um sentimento vivido, quem sabe, até
pela não comunicação de um falecimento qualquer, mas, e sobretudo, vivido
em exaustão emocional, principalmente, quando o falecimento era o de um
ente amado, considerado como matriarca para a família.
A sensação de exclusão da rede familiar, reduzido à condição de
pobreza pelos que a sentiram, representou a ausência deles em um
momento significativo para esta vida familiar. Para a cartase necessária,
através da presença de todos, no momento do trespasse da pessoa mais
significativa e garantidora das relações familiares daquela família. Significou
a quebra das relações sociais e de cordialidade em que se baseavam as
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
153 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
trocas no seu interior, e de onde os conflitos que emergiam eram
solucionados ou reduzidos por uma força superior organizativa: a família
extensa como coletividade e sociabilidade, de onde cada um enxergava a si
próprio e os demais membros da família e a partir daí os outros, isto é, a
sociedade.
A ausência no ritual motivado pela assim sentida desconsideração do
entrevistado para com estes familiares, ao não os comunicar a morte de sua
mãe, e a importância do ritual para eles enquanto presença familiar,
enquanto forma de sentirem-se família ou pertencentes a uma família,
provocou sentimentos de desgosto, de mágoas, de verificação de sua
desimportância para a rede familiar como um todo. Pelo lado do
entrevistado, porém, a mágoa e as queixas vindas posteriormente por
telefone, não foram entendidas pelo aspecto da importância do ritual para
estes membros esquecidos e desgostosos.
Ficou para ele presente a mágoa de representação do ser pobre na
família, dita em tom enfurecido pelos familiares esquecidos. Ficou a
representação de uma importância maior desses parentes para um ato falho
seu, sem outra significação, a não ser a de um ser em sofrimento vitimado
em cobranças de posições que ele nunca tinha pensado. Ou, se tinha
pensado, nunca tinha expresso, nem os diferenciado conscientemente
enquanto relação. Ficou o tom de cobrança, o de cobrarem dele mais do que
ele próprio poderia dar.
A cultura mortuária onde estavam envolvidas as partes, deste modo,
não era a mesma para cada um deles. Pelo exercício do estigma, os
considerados como desprezados, colocaram na mesa uma relação mais
efetiva com o ritual de passagem e toda a sua dinâmica para a prática
familiar. Era importante para a reconfiguração e a reorganização da família
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
154 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
enquanto núcleo pulsante de uma sociabilidade de referência para a
totalidade dos seus membros. O ritual da morte e a presença de todos os
envolvidos na rede familiar que sofreu a perda era necessário, na visão
destes, para a sua reprodução enquanto estrutura, e enquanto instância
desindividualizadora.
A exclusão era a ausência de comunicado, sentida como
desconsideração. Era o sentimento de serem considerados como não
membros, ou membros menores e insignificantes, da família, e por isso
renegados na hora do exercício do ritual de passagem vivenciado na morte e
no processo de despacho do corpo da matriarca da família.
O triângulo em que foi posto o entrevistado no processo de luto de
sua mãe, se indignando com a atitude do irmão e sendo objeto de
indignação por parte dos parentes não avisados desta morte, retrata bem o
momento de transição por que passa a cultura mortuária no Brasil urbano.
Momentos diferentes de individualidade são verificados e se expõem de
forma ambivalente para os sujeitos que os vivenciaram em relação. Um
estranhamento e um distanciamento afiguram-se, assim, como a forma
encontrada para verificação de cada outro da relação, os condenando, e ao
mesmo tempo condenando cada qual, à solidão e à idealização de uma rede
de relações, agora rompida e difícil de recomposição.
Estranhamento e Distanciamento
A ambivalência de gestos, de procuras e de interpretações analisadas
acima, faz com que a análise se debruce, neste momento, sobre uma
questão de definição do que é luto para os informantes. Esta pergunta foi
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
155 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
colocada no questionário enviado pelo correio como uma questão aberta,
para ser respondida por todos os informantes, independente ou não da
experiência pessoal com o luto.
A totalidade dos informantes respondeu a questão, situando a noção
de luto em três categorias analíticas57. A primeira, Simbologia, retrata o luto
no interior de uma tradição cultural, onde os rituais fúnebres que o envolve e
as formas de comportamento assumidos pelas personagens envolvidas
ganham peso e delimitam o espaço do luto.
Para os informantes desta primeira categoria, o luto aparece em sua
face cultural mais visível. É a ela, isto é, é no respeito a toda uma simbologia
ritual que fundamenta uma cultura mortuária, que uma pessoa vive o luto por
um ente querido. A quebra desta tradição podendo causar danos sérios a
psicologia do envolvido e a sua reinserção no social. Esta primeira categoria
analítica foi enfatizada por 46,09% dos que responderam o questionário
aberto.
A segunda categoria expressa pelos informantes foi a que
considerava o luto como um sentimento. Definida por 45,86% dos
respondentes, a categoria sentimento, ao contrário da primeira, vê o luto em
seu aspecto mais introspectivo. É a subjetividade do sentimento que melhor
define para eles o estado do luto.
O indivíduo em dor, causada pelo sofrimento de uma perda de alguém
querido, é o ponto modal da definição do luto. As relações com o social são,
ou aparecem como secundárias, por serem vistas como públicas e fora do
sujeito. É enfatizado, desta forma, os aspectos do recolhimento, da potência
da dor individual de cada um, da capacidade de sofrimento envolto, da
57
Como pode ser visto no Quadro N. 20, anexo.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
156 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
introspectividade da vivência, do conflito entre indivíduo e sociedade,
estando o indivíduo em sua subjetividade fora, em sua dor, do social.
Para 8,05% dos informantes, porém, a noção de luto aparece como
uma Adaptação a um processo brusco de ruptura vivido por uma pessoa na
perda de um ente amado. Uma etapa necessária para que os processos de
reintegração da pessoa a ela mesma, e dela com o social, sejam realizados.
Completem-se pela introjeção do ente amado, perdido para a morte,
superando ou amenizando o estágio de sofrimento intenso provocado pela
perda.
As duas primeiras categorias que expressam posições polares sobre
o conceito de luto aparecem também, dividindo a totalidade dos
respondentes58. A polarização no Brasil urbano sobre as duas noções de
luto é interessante de ser percebida, pois ela demonstra a ambigüidade e a
dificuldade da vivência do trabalho de luto na sociedade brasileira atual59.
O estranhamento e o distanciamento parecem fazer parte assim da
experiência atual do luto no país. O que parece vir acompanhado por um
sentimento de solidão pessoal e pela dificuldade de saber como agir em
determinada situação frente à presença do luto.
O esconder a face goffmaniano parece ser a tendência atual da nova
sensibilidade em processo de consolidação no Brasil urbano, junto com o
aumento do autocontrole e o sentimento de solidão enfatizados pelos
58
Como pode se ver no Quadro N. 20. 59
Mais uma vez é necessário enfatizar que, quando se afirma sociedade brasileira urbana atual, nesta pesquisa, se está tomando os dados sobre o conjunto das capitais brasileiras. Estes dados distribuídos por cada capital, porém, independentemente do tamanho ou desenvolvimento urbano, em termos de equipamentos e oportunidades culturais, políticas, sociais ou econômicas, locais, aparecem do mesmo modo como duais e quase polares, nas definições dos respondentes. O que demonstra uma tendência comum a uma forma de sociabilidade nova no urbano brasileiro, que vem sendo assumida desde as últimas três décadas.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
157 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
informantes. É o que pode ser visualizado no Quadro n. 21, em anexo. Nele,
a solidão aparece como uma categoria expressa por 45,55% dos que
responderam ao questionário, contrastando com a quase polaridade de
opiniões na definição do luto no Quadro 20, discutido acima.
As outras duas categorias expressas no Quadro 21 para explicar a
vivência com o luto pelos entrevistados, de Tradição e de Introspecção,
aparecem também aqui polarizadas, mas caem para 26,61% e 27,84% das
respostas. O que parece denotar a margem de insegurança pessoal na
vivência do luto, neste período de transição das formas culturais e sociais,
neste processo formador de uma nova sensibilidade, experimentado pela
população brasileira urbana.
A experiência crescente com a individualidade nos moldes
individualistas no Brasil dos últimos trinta anos, se amplia, de um lado, a
margem de negação da tradição mais relacional (DaMATTA, 1987) onde se
encontravam envoltas as formas de vivência do luto na sociabilidade do
passado recente nacional urbano, por outro lado, torna o luto em uma
experiência cada vez mais subjetiva e vivida em solidão pelo sujeito em
sofrimento. O mesmo parecendo acontecer com os que tem a tradição ou a
cultura simbólica do luto como referência.
A perda progressiva de força da simbologia e da tradição das
instâncias desindividualizadoras no Brasil, desde os anos de 1970,
principalmente, parece ter provocado também seqüelas naqueles que ainda
hoje a advogam. A experiência tradicional do luto não parece estar
permitindo uma vivência mais em coletividade do processo de enlutamento,
ou esta coletividade não tem mais o vigor de aquietar as tensões e conflitos
resultantes da experiência da perda de um ente querido nos indivíduos nele
envolvidos. O que aumenta a insegurança pessoal na expressão dos
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
158 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
sentimentos na coletividade e, também, aumenta o desconforto de não se ter
mais a certeza de que estas instâncias assegurem o conforto necessário ao
enlutado. Associado, ainda, à necessidade de abafar as expressões
ritualísticas com o luto no social, com receio de ser mal interpretado, ou de
ser discriminado no social por receio, deste último, de contaminação (ELIAS,
1989).
A solidão parece ser, assim, também, uma experiência marcante em
uma parcela significativa daqueles que admitem ainda o luto como uma
expressão da cultura mortuária e sua ritualística organizacional social.
O desconforto parece assim ser a tendência geral assumida na
experiência recente brasileira, no urbano, sobre o luto enquanto expressão e
vivência. Desconforto que leva a um aumento significativo da solidão do
sujeito em sofrimento, e a ver a sociedade e as suas formas de sociabilidade
com um certo estranhamento. Como se as regras sociais em vez de acalmar
e organizar o sujeito em dor, tencionasse mais, ferisse mais estas pessoas,
as forçando para uma experiência emocional solitária e sem outras
expressões que não o fingimento e o distanciamento social.
As relações sociais do luto passam assim a ser mantidas com a
máxima discrição possível. As formas higiênicas sobre a vivência do
sofrimento pela perda passam a ser referenciadas, não apenas por
aceitabilidade das regras individualistas em que parecem acentar-se as
formas breves de convívio social em situação de morte mas, e
principalmente, pela ausência de regras. O não saber comportar-se em uma
situação limite, como a do sofrimento causado pela morte de um ente caro,
aumenta a insegurança no social de quem vivencia o enlutamento. Seja por
não saber como agir como enlutado, seja por não saber como agir quando
precisa conviver com o luto de outros próximos.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
159 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Um e outro aspecto acima tratado faz crescer o desconforto dos
indivíduos na cena social do luto, os fazendo estranhar esta situação e os
forçando a adequarem-se à distância nos relacionamentos obrigatórios da
vida cotidiana. Seja na brevidade das visitas e formas de demonstração de
solidariedade, seja no distanciamento tácito, quase enojamento, que se vê
exposto nas relações sociais aqueles que vivenciam a experiência do luto e
buscam expressá-la além dos limites breves sociais ou dos encontros
íntimos. Seja, ainda, porque as instâncias de apoio coletivas, como a família,
a igreja, e outras, não mais comportarem em si a legitimidade de assegurar
o conforto ao sofrimento, necessário para a introjeção do corpo morto e para
a saída do luto.
Encarado de forma introspectiva ou na forma de uma tradição cultural
e social, o luto parece ser vivido na atualidade das relações sociais, na
sociabilidade urbana brasileira, como um processo solitário. Na solidão dos
sujeitos que o experienciam. O que parece indicar uma tendência maior para
o constrangimento público da demonstração de sofrimento.
Discrição realizada, não por regras claras do comportamento perante
o ato e a cena de luto, mas, e principalmente, por ausência de regras, de
não saber comportar-se perante esta situação. E, por as formas
desindividualizantes na sociedade brasileira não mais corresponderem
plenamente as novas exigências, inquietações e angústias dos seus
membros.
Apoio e Afeto
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
160 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Estas relações de distanciamento e estranhamento que levam a
solidão do sujeito que vive o processo de luto pessoal, ou que com ele se
relaciona, não podem, por seu turno, ser consideradas de modo absoluto.
De maneira alguma. Os indivíduos que experienciam o trabalho de luto
também afirmam que receberam apoio, carinho e demonstrações de afeto
quando precisaram, e que recorreram ou foram auxiliados por instâncias
desindividualizantes no momento maior de crise pessoal ocasionada pelo
sofrimento da perda.
O que se quer demonstrar, contudo, é a tendência atual para um
desconforto geral sobre o como comportar-se neste momento de transição
por que passa a sociedade brasileira, principalmente a urbana, aqui
investigada, no lidar com o luto e seus processos. Os códigos de referência,
os valores, os hábitos comportamentais, as regras e as normas sociais a que
se estava acostumado em um Brasil de passado ainda recente, se ainda
continuam a viger, não apresentam-se com o mesmo peso cultural de um
tempo atrás. São olhados mesmo, até, com um relativo desprezo.
Vistos como costumes e maneiras de ser de uma cultura não
totalmente urbanizada, ou como uma idealização de um passado. Passado,
como que, perdido em algum lugar e, se não de todo esquecido, que não se
tem mais possibilidade de ser retomado em sua plenitude. A solidão dos
sujeitos em uma sociabilidade cada vez mais hostil, é o que afigura-se,
assim, restar.
O questionário trás uma questão referente a se o informante, no seu
processo de luto, recebeu apoio de algo ou de alguém específico. Uma
pergunta, é bom frisar, de possibilidade de respostas múltiplas. Um mesmo
informante poderia indicar uma ou mais possibilidades de apoio recebidas
durante o trabalho de luto.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
161 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Nas respostas a esta pergunta, conforme pode ser visto, no Quadro n.
22, anexo, tem-se desde um enfático Ninguém, representando 4,78% das
respostas, até as Lembranças, com 21,95%, representando elementos de
vivência do luto de uma forma mais introspectiva e ou solitária. Se si somar
as duas, tem-se uma representação de 26,73% da amostra para uma
experiência mais subjetiva do processo de luto.
A Família, 23,78%, os Amigos, 8,18% e a Religião, 25,86%, contudo,
mostram ainda a importância das instâncias desindividualizantes no serviço
de apoio ao brasileiro urbano do final do século XX no trabalho de luto.
A referência ao Trabalho, com 15,45% das respostas, como uma
possibilidade de apoio aos enlutados, representa, por seu turno, uma
espécie de categoria intermediária entre os dois blocos acima tratados. De
um lado, pode ser visto como uma espécie de fuga dos problemas
relacionados ao sofrimento que o agente em luto vivenciou, servindo como
uma espécie de aparato público onde, um indivíduo em situação de luto,
encontra anestesiamento à sua dor.
Como disse um entrevistado: "... foi o trabalho que me livrou da
obsessão quase alucinada da dor da perda da minha amada. Quando ela
morreu, queria também morrer com ela, parecia não poder resistir ao
tamanho da dor; passei o primeiro dia de sua morte, depois do
sepultamento, como um zumbi, um morto vivo sem saber o que ou como
reagir àquela dor tão grande..., no dia seguinte, porém, levantei de uma noite
insone, tomei banho e saí de casa e me meti no escritório. Trabalhei como
um louco... mas não é que, enquanto fazia isso, parecia que não tinha tempo
para pensar no sofrimento por que passava. A dor parecia anestesiada em
mim... Quando saía do trabalho e ficava só, a loucura, o desejo de morrer,
de acabar com tudo me tomava conta, até retomar de novo, no dia seguinte
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
162 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
o trabalho... . E foi assim: trabalhando como um enlouquecido, e ao mesmo
tempo não vendo futuro no que estava fazendo e querendo jogar tudo fora,
mas, contraditoriamente, me aferrando mais no trabalho, que consegui
resistir ao tempo mais nebuloso da dor do luto..." (Entrevista n. 38)60.
Demonstra também, por outro lado, a solidão na vivência do luto.
Revela a falta de uma instância que sirva de amparo, proteção e auxílio
através de regras de conduta e ritualísticas da condução do ser em
sofrimento para uma reintegração consigo mesmo e com a sociedade. O
trabalho funcionando como uma espécie de esquecimento de si mesmo,
uma válvula de escape, por manter o indivíduo ocupado. Por manter o
sujeito alheio ao seu sofrimento, por aliená-lo, por assim dizer, da perda de
que foi vítima.
Como pode ser visto na entrevista acima, menos que amparo, o
informante encontrava uma espécie de fuga no trabalho. Isolava-se de sua
dor, e isolava os outros de sua dor. O trabalho representando uma barreira
imposta por ele, conscientemente ou não, pouco importa, aqui, para o seu
acomodar-se ao sofrimento.
Esta fuga à dor parece ajudar a superar, contudo, a crise do luto no
momento mais agudo do sofrimento. Como o entrevistado acima, parece ser
também a opinião da maior parte dos informantes que responderam ao
questionário enviado pelo correio. No Quadro n. 23, como pode ser visto
anexo, as respostas à pergunta sobre o sentimento do informante em
relação ao trabalho, no momento de vivência do luto, concentraram-se,
quase completamente, na categoria "Ajudou a Superar a Crise", com 82,82%
do total dos respondentes.
60 O entrevistado é do sexo masculino, com idade de 63 anos, profissional liberal, nível superior, tem uma firma de contabilidade, viúvo, dois filhos em idade adulta e já casados.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
163 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Ao se dividir os 17,18% restantes, encontram-se as categorias
"Normal", com 3,99% das respostas, e "Pouca Concentração", com um total
de 13,19%. O sentimento expresso de Normal, parece implicar em uma
afirmação de distanciamento e autocontrole do sujeito em luto com relação
ao trabalho. "Vida pessoal e trabalho não se misturam" colocou de lado, no
questionário, um informante da cidade do Rio Branco, capital do Acre. O que
parece sintetizar esta categoria de "Normal".
A "Pouca Concentração", por seu turno, configura-se no agir no
sentido inverso da categoria "Normal", isto é, na dificuldade do informante de
diferenciar sua dor pessoal da sua vida pública. O sofrimento do luto, assim,
representa um acontecimento que tumultuou a vida do sujeito, o fazendo
perder o sentido do mundo. O local de trabalho, ou o trabalho, não é sentido,
ou não serve, como um elemento apaziguador, mesmo se si a configure
como uma espécie de fuga, da dor individual, pela perda sofrida.
O que, possivelmente, levou os informantes que assim se sentiram e,
para os outros, em sua volta a viverem situações de desconforto e
constrangimento. Diz uma entrevistada que, "por pouco não perdi o
emprego...
"Não conseguia atinar no que estava fazendo, tinha que repetir a
mesma coisa várias vezes, sem acertar... ...fiquei tão desconcentrada e
alheia ao que se passava em minha volta que o meu chefe, um bom sujeito,
chegou até mim e disse que eu estava perturbando todo o ambiente a minha
volta. Ele disse mais ou menos assim: 'não é o errado que você está
fazendo, isso eu até compreendo, embora você deva se concentrar mais,
sair desse estado que você se encontra, mas é principalmente a situação do
resto do pessoal: todo mundo não sabe mais o que fazer. Você está
Perdeu a esposa.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
164 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
perturbando o ambiente', e pediu para que, se eu não pudesse melhorar de
atitude, era melhor tomar uma licença..." (Entrevista, n. 24)61 .
A categoria "Ajudou a Superar a Crise", por seu turno, indica a
importância do trabalho para o lento processo de luto na sociabilidade
brasileira atual, com os seus 82,82% das respostas. O momento do trabalho,
e a obsessão com que o sujeito em sofrimento se apega ao trabalho, parece
servir como um apaziguador momentâneo da dor, sofrida pela perda. Mas,
ao acompanhar o compasso ministrado pela narrativa da Entrevista n. 38,
acima, pode-se notar que, ao sair do trabalho o vazio é recomposto. A dor
da perda retorna em sua intensidade ensandecida.
A vontade de recorrer a alguém e o não ter a quem recorrer,
exaspera-se no interior da pessoa enlutada, aumentando a sua solidão. Bem
como, a expressão de revolta contra a sociedade e contra si mesmo.
Configurando-se em um sentimento de não querer recorrer a ninguém ou a
nada, a não ser, nas palavras de uma entrevistada, "o jogar para o alto tudo,
fugir, morrer ou... recomeçar em um lugar qualquer, começando qualquer
coisa, sem sentido..."62 outro que não o de reproduzir a própria fuga do
sofrimento a que o indivíduo se encontra acometido.
Este, também, parece ser o sentimento presente no depoimento de
uma profissional do meio artístico nacional a uma revista de costumes
destinada ao público feminino, Desfile (março de 1992), falando do luto por
ela vivenciado63. Ela também coloca o trabalho como a forma de esquecer
dela própria e de situar-se perante os outros, isto é, a sociedade, durante a
fase mais pesada deste processo. Ela afirma que o exercício profissional
61
Sexo feminino, 33 anos, bancária, nível superior, solteira. Perdeu o noivo em um acidente de trânsito. Residente na cidade de Rio Branco, capital do Acre. 62
Entrevista n. 248: Sexo Feminino, 45 anos, solteira, médica. Sua entrevista refere-se a morte do seu pai.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
165 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
ajudou-a mascarar a sua dor em público e também a força-la a sair de si
mesmo e participar da realidade, pela disciplina imposta.
Embora, nesse exercício, quase obsessivo, o trabalho também
funcionou como desilusão pessoal da própria ação como intérprete. No
compromisso técnico a que ela diz ter-se agarrado, não havia a arte mas, e
apenas, a disciplina, e era isso que lhe exigia o social.
O misto de disciplina social, pelo trabalho, e de desilusão do próprio
trabalho enquanto complemento pessoal, na vivência do sofrimento onde a
categoria Trabalho é apontada como instância de apoio ao luto pessoal de
alguém, mostra bem este elemento na sociabilidade brasileira dos últimos
anos. O trabalho agindo como um tipo de funcionalidade e de ligação entre o
indivíduo e a sociedade, entre o eu e os outros, em uma relação de crise
vivida por um sujeito qualquer.
Diferente das instâncias desindividualizadoras, como a religião ou a
família, o trabalho funciona como esquecimento de si próprio e de
mascaramento da face para os outros. É uma instância de recorrência de
cunho mais individualista, à diferença da religião, onde a crença em uma
simbologia e em uma cosmologia específica, ou da família, onde a rede de
afetos e de reprodutibilidade e permanência parecem ser os fatores de
reintegração e apoio do indivíduo no ritual de passagem experienciado na,
ou através da, morte de um dos seus membros.
Funciona como uma espécie de desencontro, onde a passagem do
luto deixa cicatrizes. O que aumenta o hiato que separa o indivíduo dos
outros sociais, o fazendo perder a ilusão de significados e sentidos
presentes no trabalho e na sociedade para a sua vida. O que configura o
63
Tratado mais profundamente no primeiro capítulo deste trabalho.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
166 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
viver, para o indivíduo em sofrimento, em algo instrumental, "apenas
técnica".
O retraimento da pessoa do social, na ação mais mascarada, isto é,
disciplinada, parece, assim, aumentar. O que faz o indivíduo isolar-se em si
mesmo, vendo a si mesmo e sentindo-se enquanto ser subjetivo e
inalcansável. Ser que, ao mesmo tempo que anseia ser tocado e
descoberto, retrai-se até de si mesmo, e esconde a sua face em máscaras
que o isolam do social, oferecendo a este último apenas a "técnica", a
funcionalidade mecânica de sua presença nos atos e locais onde ela é
requerida.
A rede de afetos e sociabilidade, por outro lado, ainda é um elemento
marcante entre os entrevistados que disseram que sentiram-se apoiado pela
família ou pelos amigos: perfazem juntos um total de 31,96% das
respostas64. A estrutura familiar e a tecedura de amizade demonstram,
ainda, uma presença muito forte do outro no processo de reintegração do
sujeito em um momento de crise, na sociabilidade urbana brasileira.
Parecem funcionar como um anteparo ao sofrimento, pela experiência mais
ou menos comum, de partilha, que permite aos sujeitos envolvidos,
situarem-se em um mapa, como que, comum, de interação.
Mapa por onde os laços afetivos são renováveis a cada ritual de
passagem, de chegada, de avanço ou de despedida de um dos seus
membros, bem como nas alegrias e tristezas compartilhadas65. Cabe
64 Embora tendo-se em vista que a relação de amizade é diferente da relação familiar. A primeira parece possuir uma tendência mais individualizante das relações sociais, onde o indivíduo como pessoa social acima da sociedade pode escolher os que com ele melhor se afinam e o compreendem. Diferente as segunda, onde os laços de parentesco são determinantes e, ao mesmo tempo, determinados socialmente. 65
Ver, sobre o assunto, o interessante coletânea de artigos de Gilberto Velho (1987), principalmente os capítulos 8 e 10 intitulados: "Visão de mundo e estilo de vida em camadas
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
167 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
diferenciar, contudo, a rede de amizade da rede familiar. As amizades, como
laço afetivo, possuem uma característica mais individualista, diferente da
família e, também, das relações de compadrio, comuns no Brasil de até
poucas décadas atrás. A estrutura por onde se desenvolve as relações de
compadrio, por sua vez, parece ser recomposta através de subordinação
dos laços de amizade à rede familiar.
O Quadro n. 24, anexo, mostra como os informantes do questionário
revelaram o sentimento em relação a família e familiares no momento do
luto. Como pode ser visto, das sete categorias com que os respondentes
fizeram expressar o seu sentimento nesta relação, três delas revelam um
pouco de mágoa ou de indiferença com relação a família. São elas, a
"Cobrança de Sentimentos", com 15,41% das respostas, a "Poucos Parentes
Apareceram", com 4,14% e, a "Não Se Preocupou", com 5,60%.
Este bloco de categorias perfaz um total de 25,15% das respostas
dadas à questão. Um número percentual que não deixa de ser importante e
não pode ser desconsiderado, embora revele, internamente, dois sub blocos
de situações e expressões de sentimento. O primeiro sub bloco remete para
as categorias de "Não Se Preocupou" e da "Cobrança de Sentimentos".
Nele, revela-se uma atitude dos informantes para com os laços familiares de
indiferença ou de constrangimento pela ação ritual de expressão de
sentimentos, caros, como já afirmou Marcel Mauss (1980), às instâncias
desindividualizadoras, ou à grupos mais homogêneos, por ele estudado,
onde a força ritual da coletividade é bem mais evidenciada e importante.
O segundo sub bloco, por seu turno, retrata também um
constrangimento, mas em forma de um desgosto diferente. Nele, está
médias urbanas: Algumas questões sobre o estudo de família" e "Cotidiano e política num prédio de conjugados".
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
168 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
subentendido a expressão, por parte dos informantes, da ausência ou
descaso dos familiares para com o seu luto, e para o seu morto.
Como diferença do primeiro sub bloco, onde se está contra ou
indiferente aos apelos familiares, neste último existe um ressentimento da
indiferença familiar para consigo. Duas situações, em todo caso, que
demonstram a ambigüidade da experiência brasileira das últimas décadas
do século XX, no trato com as emoções.
O segundo bloco, contudo, representa quatro das sete categorias
indicadas pelos informantes como sentimentos em relação à família.
Reunidas, perfazem 74,85% do total de respostas à questão. As quatro
categorias deste segundo bloco, são: "Apoiado", com 18,95%, "Afeto", com
39,03%, "Apoio Nos Rituais", com 8,82% e, "Vontade De Ajudar", com
8,05% do conjunto das respostas.
Diferente do primeiro bloco de categorias, este segundo revela a
importância das relações familiares presente na atualidade da cultura
mortuária do Brasil urbano. A rede de afetos, de apoio, da vontade de
ajudar, da presença e participação ativa na preparação e continuidade dos
rituais que cercam o morto e, principalmente, os que a ele sobrevivem, ainda
é uma realidade sentida pelos informantes e expressa de uma forma
expressiva.
A significância da rede afetiva e de solidariedade na estrutura familiar,
com um destaque tão grande pelos informantes, parece caracterizar a
família como uma importante instância de reestruturação dos seus membros
no Brasil urbano atual. Esta família, por outro lado, configura-se, porém, em
não se referir mais apenas a tecedura extensa familiar vivida no Brasil até o
final da década de sessenta. Sua nova reconfiguração prende-se, cada vez
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
169 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
mais, ao núcleo básico de formação, isto é, a chamada família nuclear,
composta pelos pais e filhos66.
A rede familiar brasileira, hoje, assim, deixa de ser prioritariamente
extensiva, englobando uma gama enorme de parentes em uma teia de
significados densos e de nomeação67 dos seus membros, como se viu na
entrevista que abre este capítulo, para se tornar uma instância menor cuja
densidade parece residir, principalmente, no afeto e no apoio sentimental e
de tarefas complementares entre seus membros.
Chamada, aqui, de estrutura familiar básica ou nuclear, a família
moderna nas amplas camadas de classe média no Brasil urbano, - composta
de pai, mãe e filhos, ou, em muitos casos, de mãe e filhos, ou pai e filhos, -
se afigura enquanto conformação tensa na contemporaneidade das capitais
de estado aqui estudados. Enreda-se por mecanismos diversos que
englobam, lado a lado, uma grande fragmentação organizativa, e uma
tendência à recriação de laços de ajuda no cotidiano doméstico entre a
família mais ampla, composta por avós, sobretudo, e irmãos dos pais,
secundariamente.
Organiza-se, assim, de um lado, em uma teia mais e mais
fragmentada. Teia que envolve os elementos nucleares de sua organização,
ou partes deles, e que parece caminhar à procura de autonomia e busca de
66 Chegando, quando muito, até aos avós paternos e maternos, e uma rede difusa de tios, isto é, irmãos dos pais. Esta família nuclear, também, às vezes, é considerada problemática e conflitual na classe média urbana brasileira nos dias de hoje, pela fragmentação que desde o final dos anos de 1970 parece acometê-la. A separação de casais, e o aumento do divórcio nos anos de 1980 em diante, parece indicar uma mudança no seu perfil. (Ver, entre outros estudos, que analisam a modernização e a tendência a fragmentação da família brasileira urbana desde a década de setenta do século XX, DURHAM, 1973; MERRICK et al., 1977; GANS, PASTORE & WILKENING, 1971; IUTAKA et al., 1975 e CASTRO et al., 1977). Embora seja interessante constatar que, mesmo fragmentada e em reconfiguração sempre tensa, o apoio afetivo familiar é apontado como uma das fontes principais de apoio e solidariedade nos momentos de crise individuais.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
170 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
formas de interdependência individualizada entre os seus membros. Por
outro lado, porém, para recriar-se neste caminho e esforço de
individualidade das relações, remonta todo um esquema de busca de apoio
logístico no interior da rede de parentes próximos. Remontagem, tanto em
termos afetivos, quanto na troca de favores cotidianos, que vão desde o
ajudar a cuidar dos filhos menores, na ajuda no orçamento doméstico, até o
apoio solidário em situações de crises68.
Esta rede familiar, assim, reproduz-se na classe média urbana
brasileira do início do século XXI, como uma estruturação tencionada entre
dois pólos. O primeiro polo, revela uma fragmentação e individualização
crescente, e o segundo, uma rede de trocas que envolve uma parcela
significativa de demais parentes, principalmente avós e tios próximos. Um
relacionamento conflitual, cada vez mais frágil através das fragmentações a
que parece estar exposto o núcleo familiar básico, mas, ao mesmo tempo,
intenso e ansiado como manutenção do cotidiano. E, principalmente, aqui,
na teia de afetos e solidariedade a que é capaz de afirmar-se, nos
momentos de crise e sofrimento.
Embora, seja necessário ressaltar a fragilidade atual desta rede
afetiva, que é a família, na sociabilidade da classe média urbana atual no
Brasil. As diversas interpretações e entendimentos possíveis, e os tempos e
os espaços vividos por cada membro da família, parecem, na atualidade,
possibilitar também rupturas e incompreensões, pelo não esforço, ou
impossibilidade momentânea de se escutar o outro através do seu lugar de
67
Social, Cultural, Política e Econômica. 68
Estes aspectos de uma rede tencionada na configuração moderna da família brasileira urbana, de classe média, tem sido estudados por, Bruschini (1990), Scocuglia (2000), Bott (1976), Lima & Medeiros (1990), Salem (1980), Velho (1987), entre outros.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
171 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
fala. Como se viu no tom de irônico lamento, do entrevistado que abriu este
capítulo.
A ambigüidade de situações, entre uma forma mais individualizada de
ação dos indivíduos de uma família e as trocas de favores e rede de afetos
renováveis e reestruturados em novas formas, que parecem se fazer no
cotidiano familiar da família de classe média urbana no Brasil, é conflitual e
tenso. A afetividade sendo construída sobre tensão permanente e em
pequenas rupturas de laços que indicam o caminhar mais individualista por
que se adentra o país.
A Religião
A religião representa também uma instância de apoio a vivência do
luto entre os entrevistados. Como pode ser visto no Quadro 22, a religião
apareceu com 25,86% das indicações múltiplas à pergunta sobre quem ou o
que apoiou o informante no seu processo de luto. O que implica que mais de
setenta por cento dos respondentes do questionário padrão indicou a religião
como uma das instâncias de apoio pessoal.
Perguntado de que forma a religião auxiliou o informante no trabalho
de luto, como pode ser visto no Quadro n. 25, anexo, 63,73% respondeu
através do "Conforto Espiritual", ao passo que para 10,81% dos informantes,
a religião promoveu em suas vidas uma "Mudança de Visão de Mundo". Os
25,46% restantes informaram que a religião não os auxiliou de forma
alguma. Resposta dada através de um lacônico "Não".
No cruzamento69 entre a religião freqüentada e o tipo de apoio
recebido, porém, se constata que, se de um lado, a maioria dos
69
O percentual é tirado, aqui, a partir do total dos informantes, isto é, 1304.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
172 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
respondentes conclama a religião católica como sua, 68,58% do total de
respostas, é nela também, por outro lado, que se concentra um número
significativo de indivíduos que responderam que a religião não ofereceu
qualquer tipo de apoio para os seus males, durante o trabalho de luto:
17,95% dos informantes. Os demais 7,51% que responderam não ter
recebido apoio religioso, também informaram não possuir qualquer religião.
O "Conforto Espiritual", contudo, foi respondido por uma parcela
considerável dos informantes, como o apoio principal recebido no momento
do luto: 50,09% dos católicos, 4,06% dos evangélicos e a totalidade dos
espíritas e de participantes de outras religiões. Já a "Mudança de Visão de
Mundo" foi a resposta da maioria dos informantes evangélicos ao apoio
recebido, 10,27%, contra, 0,54% dos católicos, conforme pode ser visto na
tabela 25.
Estes dados remetem, sem sombra de dúvida, para a afirmação da
maioria católica no país, entre os habitantes urbanos de classe média,
porém, indicam também, para a flexibilidade dos que professam a fé católica
em relação à própria religião. Esta flexibilidade entendida aqui como um
afrouxamento da crença e do apoio da Igreja em momentos de crise e de
sofrimento.
Quase vinte por cento dos católicos afirmaram não terem encontrado,
ou não terem recebido, ou não terem ido procurar o apoio da Igreja na hora
do sofrimento vivido pela perda de um ente amado. Embora se digam
católicos, a sua presença religiosa se faz apenas através do batistério e da
afirmação oficial de uma religião considerada também oficial e de nomeação
no Brasil, ainda hoje. A maioria das respostas, contudo indicam a
recorrência na hora de crise à Igreja, em busca de apoio e conforto. Alguns
chegando a alegar terem tido uma mudança de visão do mundo, no
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
173 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
confronto entre a perda pessoal e a descoberta espiritual, através da
religião.
De outra parte, entre os evangélicos, a grande maioria respondeu
sobre a mudança em sua vidas, no momento da crise do luto, através da
mensagem religiosa. O encontro com a fé, parecendo representar o aspecto
principal de conforto e mudança de atitude perante a morte do outro
próximo. Já, entre os espíritas e ou que se situaram em uma gama de outras
religiões, foi enfatizado o conforto espiritual.
Entre os evangélicos parece haver uma concentração maior do
dogma da fé. Afigurado, principalmente, no enfrentar a religião como
sinônimo de um novo encontro perante a vida, como uma espécie de
renascimento. A Igreja configura-se por funcionar como uma espécie de
coletividade densa onde os seus fiéis se adequam e renascem para uma
espécie de novo mundo. O apaziguamento da dor do luto sendo redimida e o
sujeito reintegrado através da mensagem de mudança.
No caso dos espíritas e de outras religiões, como o budismo e formas
esotéricas de encontro com o divino, presentes nas respostas dos
informantes, o conforto espiritual parece ser mencionado, através de uma
mescla de situações, que reúne em um mesmo percurso uma crença holista,
de integração dos seres e da existência de mundos diversos, e uma crença
no indivíduo como o sujeito de integração com o todo.
Luto e Cotidiano
A religião católica, por muito tempo representada e sentida como a
religião oficial do Brasil, e ainda, a religião da maioria dos brasileiros,
principalmente entre a classe média urbana, não tem conseguido manter os
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
174 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
seus fiéis no interior de uma prática mais efetiva e próxima da vivência do
dogma da fé. Apesar de, a partir dos anos noventa do século XX, ter tentado
voltar-se para o seu lado mais carismático e disputar o mercado de fiéis com
outras Igrejas, principalmente as evangélicas e as de origem africana.
A mistura entre as esferas da religião e do poder no Brasil, desde o
período colonial, contudo, bem como os diversos conflitos no interior da
própria Igreja Católica entre práticas mais modernizantes, populares e
ortodoxas, parecem ter criado um certo tipo de afrouxamento de laços entre
a hierarquia católica e os quadros leigos. Abrandamento que se, por um
lado, renova pelo batismo oficial o número de fiéis, estes, em grande
número, encaram a pertença ao catolicismo como um tipo de status mais do
que como um estilo de vida ou prática de fé.
Muitos só recorrendo à Igreja, ou aos seus preceitos, pela busca de
conforto espiritual. Ou a ela sequer mais recorrendo, por não acreditarem, ou
por não encontrarem na prática religiosa que professam, os elementos que
permitam o apoio necessário para o enfrentamento no cotidiano da dor
sofrida pela perda de um ente amado. Este hiato parece criar uma certa de
atmosfera mais introspectiva à vivência da dor do sujeito.
Este parece ser também o caso da estrutura familiar. Apesar de o
questionário mostrar que uma rede de apoio familiar é tida como referencial
para momentos de crise, pelos informantes, parece que, quando estas
informações são verticalizadas em entrevistas abertas, elas demonstram o
quão tênue esta rede funciona.
As acusações mútuas, as culpas, o sentimento de imposição de certo
tipo de demonstração de sentimentos, as atitudes mais exclusivistas, as
buscas de uma individualidade e de uma individuação perante o familiar, são
elementos recorrentes. As falas em diversos tempos entre membros de uma
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
175 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
mesma rede familiar, vem adicionar a dificuldade atual de compreensão
entre as partes em litígio afetivo, e o de chegarem a um lugar comum. Este
conjunto tenso e conflitual parece fazer parte, hoje, de uma tendência maior
à privatização da vida familiar, em sua forma nuclear.
A idéia de privacidade parece fornecer, aqui, a chave para a
compreensão da ambigüidade que afigura caracterizar o processo de
transição por que está passando a classe média urbana brasileira. A
passagem de uma lógica relacional para uma lógica mais individualista,
configura ser o caminho seguido por esta transição de mentalidades e
códigos de ação. Transição que reflete no imaginário do homem comum
como sofrimento, solidão e insegurança no trato dos processos e ritos de
passagem mais agudos de sua existência pessoal no social.
As marcas, as mágoas, o sentimento de ser outra pessoa depois de
uma experiência traumática como a perda de um ente querido, parecem
refletir esta tendência. Indicam, acima de tudo, para uma espécie de
autocontrole na demonstração dos afetos e desejos pessoais, e para uma
vida mais severamente vigiada e de contenção de gestos e atitudes.
Vem se configurando em uma tendência de levar, ao mesmo tempo,
para uma espécie de desencanto com o mundo ao seu redor. Seja através
da relação com o trabalho ou com a profissão, que passam a ser sentidas
como mais técnicas e distantes do cotidiano do entrevistado, ou, seja
através das relações mais pessoais e afetivas, que passam a ser uma vistas
como uma espécie de canal de desvio deste mesmo dia a dia que se quer
evitar, enquanto sofrimento. Ambos aumentando as dificuldades de
locomoção mais afetiva no público, por uma frieza nas relações com o
cotidiano e por um encapsulamento do EU, que se esconde, cada vez mais,
em máscaras sociais de ocultamento da face, do quem sou eu.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
176 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Esconde o indivíduo e, ao mesmo tempo, amplia as margens de
ambivalência de sua ação social. Este passa por um esforço de
distanciamento nas relações com os outros e por não demonstrar emoção, e
na ânsia, simultânea, de ser descoberto na sua interioridade, e na beleza
escondida que sente possuir.
Esta privacidade amplia a margem da intimidade como um elemento
de caracterização do homem contemporâneo do Brasil urbano. O EU é
transformado em espaço íntimo (SENNETT, 1998) de onde o sujeito vê o
mundo e de onde o mundo jamais pode se aproximar completamente de sua
beleza. O que parece estabelecer e ampliar um conflito e uma tensão
permanente entre o indivíduo social, como instância quase psicológica e
espaço de subjetividade, e a sociedade, como espaço público de formas
instrumentais de ação e de constrangimento.
As queixas crescentes relativas ao estresse da vida cotidiana na vida
das capitais dos estados, bem como ao aumento crescente do sentimento
de depressão e insatisfação consigo próprio, parecem estar associadas a
este processo ambíguo de autopoliciamento e de vontade de exposição. De
uma vida pública para uma vida privada onde o espaço íntimo, ao mesmo
tempo que cresce e se expande torna-se, também, um elemento de
exclusão social, de exclusão da subjetividade do espaço social e público
onde se desenrolam as ações repetitivas do cotidiano do sujeito.
É o que parece demonstrar o Quadro n. 26, anexo. Foi perguntado
sobre se o trabalho de luto experimentado pelos informantes havia
modificado, de alguma maneira, o cotidiano de cada um deles, 79,75% das
respostas afirmaram que sim, que houve modificações. Destes, 25,69%
afirmaram terem realizado a "Busca de uma Nova Vida" e, 54,06% indicaram
a "Introspecção" como modificação sofrida após o luto.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
177 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
A categoria "Busca de uma Nova Vida", está associada a vários
aspectos de procura dos informantes. Estes vários aspectos vão desde a
necessidade de procurar emprego, ou de mudarem de cidade, bairro, ou
ambiente familiar, por piora das condições econômicas, ou por terem de ir
morar com parentes ou terem sido encaminhados para cuidados
institucionais, tipo asilos e orfanatos, até o de encontro com um(a) novo(a)
companheiro(a) ou um novo amor. Falam, também, de uma maior liberdade
após o falecimento do outro, ou de terem descoberto a tranqüilidade e do
sentimento de bem estar na descoberta de novas formas espirituais no
interior das religiões tradicionais, ou em espaços místicos de grupos
esotéricos e de cultuação do EU, como a chave do desvendamento do
mundo.
Uma gama de tendências são, assim, expressas nesta categoria. O
que demonstra, de uma forma ou de outra, a procura de alocação de si
mesmo dentro das margens da transformação que a perda do ente amado
possibilitou à sua vida cotidiana. Os fazendo caminhar para formas de vida
diferenciadas da até então vividas e tendo que arcar com o rumo de suas
próprias vidas pela ruptura social e subjetiva que a perda os fez passar. Este
arcar com a própria vida não sendo necessariamente quantificado e
polarizado, aqui, em positivo e negativo, pela dispersão numérica e pouca
representatividade de suas diversas formas de apresentação, mas visto
como um todo diferencial da segunda categoria, "Introspecção".
Esta segunda categoria reflete o fechamento para o mundo por que
passou os 54,06% dos informantes que a indicaram na resposta a questão
formulada no questionário. Diferente da primeira categoria, esta parece
indicar uma guinada, em termos emocionais, na trajetória dos indivíduos que
a afirmaram. O que os levou para um tipo de opção guiada pela
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
178 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
interiorização de seus sentimentos, e de uma vida mais regrada e auto
policiada na relação com os outros.
O uso, aqui, embora de uma forma não necessariamente igual, das
categorias de mudar ou permanecer, utilizadas por Velho (1987, p. 108) para
discutir os campos de possibilidades onde a ação individual é disposta no
social e enfrentada cotidianamente pelos indivíduos em suas instâncias
projetivas opcionais, pode ajudar a melhor compreender a diferenciação das
duas categorias analíticas afirmadas pelos informantes. Afirmativas
realizadas através da ótica do lugar da modificação por eles sofrida, no e
após o processo de luto, na vida cotidiana de cada um deles. O primeiro
grupo de respostas trabalhado, a "Busca de uma Nova Vida", como o nome
já indica, se encontra ligado a categoria de mudar, proposta por Velho.
Para ele, "mudar ... aparece sobretudo como um processo de
individualização em que a bibliografia de uma pessoa é destacada de sua
família e lugar de origem" ou "negar ou escapar de um projeto (que não era
seu)... e na procura de criar laços ... em que o lúdico seja acentuado..." (p.
108)70. Estas duas margens ambíguas da categoria mudar, refletem bem as
instâncias em que situam-se as diversas significações trazidas à tona pelos
informantes para expressarem o sentido de "Busca de uma Nova Vida" por
eles indicados como a modificação principal de suas vidas no decorrer e no
após o luto vivido.
Como indica Velho, esta mudança traz um aspecto laicizante de
enfrentamento do mundo. Aspecto existente mesmo entre aqueles que viram
nas formas religiosas e esotéricas as manifestação de um encontro novo em
suas buscas. O enfrentamento com o mundo, provocado pela ruptura brusca
causada pelo falecimento do ente amado, afigurou-se ou vem configurando-
70
Grifos no original.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
179 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
se como uma admoestação ou exortação do sujeito em luto. O que o faz
encarar o mundo como uma trajetória nova a ser seguida e buscada fora de
si, ou na valoração do si pela redescoberta da subjetividade esotérica para o
entendimento ou representação de novas formas de sociabilidade e
encontros com o outro.
A segunda categoria expressa pelos informantes, a de "Introspecção",
contudo, parece indicar a noção de permanecer usada por Velho. Para ele,
"... os projetos de permanecer aparecem fortemente associados a um
conjunto de símbolos ligado à família e, muitas vezes, à religião católica" (p.
108)71.
A leitura que se faz aqui, dos dados da pesquisa ora trabalhada,
indicam na categoria permanecer a relutância dos entrevistados de
assumirem integralmente uma forma nova de vida, após o luto
experimentado. Indicam, também, ao mesmo tempo, a dificuldade
encontrada de restaurar a antiga vida anterior à ruptura causada pela morte
de alguém a ele próximo. O que ocasiona um sentimento de rejeição,
consciente ou inconsciente, aqui não importa, do mundo e uma caminhada
no sentido da introspecção.
O desejo de manutenção dos antigos laços e as formas de alterações
por que estes laços passaram, ou da leitura realizada pelos indivíduos das
modificações havidas, os colocam vulneráveis à uma relação mais aberta
com os outros sociais. Passam, assim, como o que, a travarem uma batalha
entre as relações sociais que são obrigados a executarem, e das quais
perderam a ilusão, embora procurem em ansiedade restaurá-las, e os
significados das lembranças a que se remeteram em introspecção, e das
71
Grifos no original.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
180 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
quais observam o mundo sob a ótica da marca deixada pelo corpo morto,
querido, que se foi.
O mundo novo e o mundo antigo, restaurados sentimentalmente nas
lembranças, passam assim a possuírem um significado cotidiano de
sofrimento acumulado. Passam também por um sentimento de inadequação
maior às regras de uma convivência aberta que advogam, na busca da
restauração do permanecer ilusório anterior à morte do ente amado. O que
ampliam as margens do sofrimento, e as margens de insatisfação com o
cotidiano social das relações e, consequentemente, do grau de introspecção
deste mesmo sujeito.
Comportamento de Si e dos Outros no Trabalho de Luto
É importante frisar, porém, que as categorias expressas pelos
entrevistados e as categorias utilizadas, aqui, de Velho (1987) demonstram
mais a ambigüidade dos sentimentos e a ambivalência das ações dos
indivíduos do que categorias excludentes uma à outra ou coerentes em si.
Refletem, deste modo, este sentimento de fragmentação dos rituais de
alocação das necessidades trazidas pelo luto na sociabilidade
contemporânea do homem comum, de classe média urbana, brasileiro,
neste processo de transição experimentada pela sociedade no Brasil dos
últimos trinta anos.
As respostas a duas perguntas, expostas nos Quadros de n. 27 e 28,
anexos, sobre qual deve ser o comportamento de uma pessoa e o
comportamento dos outros em relação a ela no trabalho de luto, mostram
bem as dificuldades do homem de classe média no defrontar-se com uma
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
181 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
situação de passagem como a morte, e o luto por ela provocado, no Brasil
de hoje. No quadro n. 27, as respostas sobre como uma pessoa em luto
deveria comportar-se dividem-se em três categorias: a primeira, "Ser
Discreto", contem 77,60% delas; a segunda, "Seguir a Tradição", possui
15,34% e, a terceira, "Não Existe Comportamento Ideal", 7,06% do conjunto
das respostas.
No Quadro n. 28, também três categorias foram indicadas pelos
informantes. A primeira, "Dar Apoio", tem 18,71% das respostas, a segunda,
"Não Importunar", possui 72,01% e a terceira, "Depende do Caso", 9,28% do
total.
Os Quadros n. 27 e 28 revelam um número muito grande de
respostas concentradas nas categorias de "Ser Discreto", 77,60% e, "Não
Importunar", 72,01%. Ambas revelam os traços de procura de autocontrole
das emoções e expressões de sentimento no comportamento referencial de
quem sofre uma perda ou de quem acompanha esta perda. As duas
reforçam a interpretação do drama social nas expectações dos sujeitos
envolvidos diretamente ou indiretamente nos processos de enlutamento.
As expectativas dos indivíduos na configuração de um cenário social
de drama, segundo Turner (1975), permite que os sujeitos apresentem
idealmente ou na vida prática versões e possibilidades de manipulações das
diversas situações em que se encontram envolvidos. Nestas novas
configurações, apontam direções ou remanejam emblemas e símbolos
culturais em um panorama de transição experimentado em um momento
específico, no caso, aqui, o processo de luto.
Este apontar ou remanejar permite a um analista identificar os limites
e a abrangência por onde se situa o comportamento individual no interior de
uma sociabilidade ou de um cultura qualquer. As categorias apontadas
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
182 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
acima, indicam para uma tendência no sentido de um valor mais intimista e
privado da vivência no luto no Brasil urbano. Seja no comportamento
desejado para o enlutado, seja nas atitudes esperadas dos outros frente a
este enlutamento.
Em uma ou na outra esfera, isto é, tanto no "Ser Discreto" como no
"Não Importunar", encontram-se presente os sentidos da privacidade atual
das relações sociais estabelecidas no processo de luto. A higienização do
processo de dor, coloca o sofrimento para o interior do sujeito que a
vivencia, e leva os outros a não chegarem muito próximo do sofrimento
alheio, por um receio não apenas de não se contaminarem, mas e
principalmente, para não serem entendidos como intrometidos em uma
relação que, aparentemente, não tem nada a ver com eles e é da intimidade
do sujeito que a sofre.
O drama social turneriano deste modo, concentra-se neste cenário de
máscaras com que se passa o processo social de sofrimento no luto. De
ambas as partes existe um constrangimento de expressão de sentimentos
além do socialmente necessário para cada situação em que se encontram
os indivíduos. Dos dois lados da relação, o enlutado e o outro, se estipulam
possibilidades ambíguas de enfrentamento de situações onde as bases de
atuação ainda parecem não se encontrarem seguras e de onde os sujeitos
referem-se uns aos outros como indivíduos isolados na privacidade de suas
vidas e como indivíduos em busca de expressão de sentimentos ou de
sentimentos aflorados a serem identificados pelo outro, mas guardados a
uma distância crescente, como uma espécie de ocultamento da face de que
fala Goffman (1980).
O que possibilita, assim, de um lado, no aumento da solidão dos
sujeitos em relação. Solidão ampliada pela ambigüidade das ações de cada
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
183 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
um nela envolvido, e de outro lado, no isolamento de cada parte desta
mesma relação. Também, pelo crescimento das possibilidades de
verificação de sua exclusão em uma questão considerada, cada vez mais,
de intimidade e da subjetividade do sujeito que a sofre. Além do
distanciamento causado pela individualidade crescente desta afirmação do
privado, em uma perspectiva individualista e de estranhamento do outro, que
parece estar sendo construída como formação contemporânea das relações
entre indivíduos na sociedade brasileira urbana.
Conclusão
Este capítulo buscou compreender como, no Brasil urbano dos anos
de 1970 para cá, principalmente, os indivíduos de classe média vêem,
sentem e exprimem a vivência do luto, e as dificuldades e facilidades das
relações sociais advindas desta experiência. Procurou demostrar, também, a
ambivalência dos tempos e dos espaços em que as leituras e as narrativas
do sofrimento são elaboradas pelos indivíduos em troca, indicando
dificuldades de compreensão de atitudes de cada um neste processo lido ou
narrado. Tentou, enfim, um melhor entendimento da ambigüidade e das
dificuldades a ela inerentes, no atual momento, vivido pela cultura mortuária
no Brasil.
O indivíduo em dor, como o ponto modal da definição do luto, foi de
onde partiu este processo analítico compreensivo. As relações com o social
apareceram como secundárias, por serem vistas como públicas e fora do
sujeito, e o aspecto de recolhimento e da capacidade de sofrimento envolto
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
184 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
na introspectividade da vivência foi enfatizado, demonstrando o conflito entre
o indivíduo e a sociedade na sociabilidade urbana brasileira atual. O
indivíduo se encontrando, ou sentindo-se em sua subjetividade, fora do
social.
Uma das hipóteses trabalhadas neste capítulo foi a de que a
experiência crescente com a individualidade nos moldes individualistas no
Brasil dos últimos trinta ou quase quarenta anos se, de um lado, ampliou a
margem de negação da tradição mais relacional das formas de vivência do
luto, por outro lado, tornou o enlutamento em uma experiência, cada vez
mais, subjetiva e vivida em solidão pelo sujeito em sofrimento. A perda
progressiva de força da simbologia e da tradição das instâncias
desindividualizadoras no Brasil, parece ter provocado também seqüelas
naqueles que ainda hoje a advogam. A experiência tradicional do luto não
parece estar permitindo uma vivência mais em coletividade do processo de
enlutamento, ou esta coletividade não tem mais o vigor de aquietar as
tensões e conflitos resultantes da experiência da perda de um ente querido
nos indivíduos nele envolvidos.
As relações sociais do luto passaram assim a serem mantidas com a
máxima discrição possível. O não saber comportar-se em uma situação
limite como a do sofrimento causado pela morte, parece ter aumentado a
insegurança no social dos sujeitos que a vivenciam. O que vem a configurar-
se, assim, no aumento do desconforto dos indivíduos na trama e no drama
social do luto. O que faz crescer o estranhamento e os força os indivíduos a
adequarem-se à distância, cada vez maior, nos relacionamentos obrigatórios
da vida cotidiana.
Encarado de forma introspectiva, ou visto como uma forma de
tradição sociocultural, o luto afigura-se em ser vivido na atualidade das
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
185 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
relações sociais na sociabilidade urbana brasileira, como um processo
solitário. Embora os dados indiquem que a rede afetiva e de solidariedade
que caracterizam a família e a religião, ainda funcione como uma importante
instância de reestruturação dos seus membros na atualidade, este
funcionamento se faz através da ambigüidade. Através da ambivalência
entre uma forma mais individualizada e uma rede de afetos renováveis e
reestruturados em novas formas, no cotidiano, vividas e experimentadas de
forma conflitual e tensa.
As queixas crescentes relativas ao estresse da vida cotidiana e ao
aumento das formas de depressão e insatisfação pessoal, parecem, aqui,
também, encontrarem-se associadas a este processo ambíguo. Afiguram-se
no enfatizar mais agudo da ambivalência das ações dos indivíduos e da
fragmentação dos rituais, além da tendência a um valor mais intimista e
privado da vivência no luto no Brasil urbano.
Indicam, sobretudo, o processo de distanciamento causado pela
individualidade crescente desta afirmação do privado. Individualidade que
vem se dando e consolidando dentro de uma perspectiva individualista e de
estranhamento do outro. E que parece estar sendo elaborada como
tendência de afirmação da sociabilidade brasileira urbana atual.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
186 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Capítulo 5
Tempos do Luto
"O pranto invadia a casa e derramava-se pela rua, enquanto o relógio batia seis horas e eu me preparava para a guarda do corpo" - Hermilo Borba Filho, (1967, p. 76).
No capítulo anterior buscou-se compreender como os indivíduos
apreendem e vivenciam o processo de luto na atualidade brasileira. Neste
capítulo tenta-se retratar, de um ponto de vista dos entrevistados e dos
informantes do questionário padrão, como entendem o processo de luto
através de uma comparação com os aspectos sociais e pessoais do
passado recente e do presente.
Enfatiza as narrativas e as respostas que tencionam a relação antigo
e atual, e as construções possíveis originárias desta relação para o
significado do luto na vivência pessoal do entrevistado enquanto esfera
comportamental. Os hábitos narrados ou construídos imaginariamente do
passado recente da sociabilidade brasileira, comparados com as
expectações das atitudes contemporâneas na experiência do luto, dão o
sentido deste capítulo. Procura-se, nele, entender um pouco mais o ritmo
das tensões e como estas são vividas pelos sujeitos neste processo de
passagem que se refere à morte de um ente querido e às formas de
introjeção deste nos que ficam, através do trabalho do luto.
Thales de Azevedo (1987, pp. 60 a 64) abre o capítulo intitulado "Os
Rituais da Morte", no seu livro sobre o ciclo da vida, afirmando que "A morte,
última baliza do ciclo da vida, encerrando a existência, é, para toda a
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
187 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
humanidade, assinalada pelos mais dramáticos ritos" (p. 60). Disserta, a
partir de então, sobre as diferenças rituais que cercam a morte no mundo
social, e as possíveis mudanças, em uma determinada forma de
sociabilidade, ocorridas no decorrer do tempo.
Passa a tratar do caso brasileiro e a contar as transformações rituais
sofridas no decorrer da história funerária do país deste "verdadeiro rito de
passagem" (p. 61) que é a morte. A seguir, comenta o luto, como um
processo "praticamente abolido no Brasil" (p. 63), fazendo uma ligeira
observação ao rigor como era tratado antigamente e como hoje é olhado
com um certo distanciamento pelo homem urbano contemporâneo.
Câmara Cascudo (1976, 1976a, 1985 e 1993), Galeno (1969), Martins
(1983), Rodrigues & Silva (1981), Poliello, Pessoa e Pompa (1987),
Rodrigues (1983), Souto Maior (1974), Souto Maior & Valente (1988), Levine
(1983), entre outros autores, também trataram em suas obras de retratar o
caráter ritualístico da morte, do morrer e do luto no Brasil a partir de uma
visão de comunidade. Aspectos comunitários ressaltados como existentes
na vida brasileira de até os anos sessenta do século XX, e com resquícios
cada vez menores no urbano, a partir dos anos de 1970 em diante.
Buscaram mostrar as variedades das formas e a simbologia envolvidas
neste ritual de passagem, como uma instância sociocultural de controle dos
enlutados, e com a preocupação com a reintegração destes sujeitos
individuados pelo sofrimento, ao social.
A relação da morte, do morrer e do luto no Brasil urbano, a partir dos
anos setenta do século XX, é retratada por autores como DaMatta (1987),
Koury (1993, 1996, 1996a, 1998 e 1999a, 2001), Lins (1995) e Santos
(2000) entre outros, dentro de uma perspectiva das Ciências Sociais, e por
uma gama de outros autores dentro de uma perspectiva psicanalista, ou da
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
188 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
psiquiatria e da psicologia social e comportamental72. Os trabalhos sobre o
processo de luto dentro de uma perspectiva das Ciências Sociais no Brasil
contemporâneo, contudo, apareceram apenas recentemente no cenário das
pesquisas e temáticas pesquisadas, e ainda são poucos os estudos no seu
interior73.
Nas Ciências Sociais, o luto procura ser entendido dentro da relação
estabelecida entre o indivíduo e a sociedade, e como uma conseqüência
desta relação. Faz parte da experiência individual dos sujeitos sociais, como
um processo único e específico mas, ao mesmo tempo, é compreendido e
compartilhado por toda uma coletividade espacial e temporalmente
delimitada. No caso do presente estudo, este procura compreender esta
relação no momento de transição social por que passa o Brasil
contemporâneo. Difere, assim, da psicologia, que se preocupa com o estudo
sobre a sintomatologia do luto ou com a busca de estabelecer caminhos de
intervenção e assistência psicológica nos processos de enlutamento74.
Ambos os esforços, contudo, dentro de uma abordagem da sociologia
da emoção ou da psicologia, isto é, de cunho analítico compreensivo ou de
busca de intervenção, preocupam-se com o entendimento do fenômeno do
luto no processo de individualidade, com caracterísitcas individualistas, que
vem se processando de maneira intensiva no Brasil destes últimos trinta
72
Existe uma variedade enorme de trabalhos de tendência psicológica no Brasil, não interessa aqui listá-los por não constituírem um interesse direto no veio analítico da pesquisa. 73
Um dos primeiros grupos de pesquisa com trabalhos voltados para a Sociologia da Emoção e que enforca de uma maneira mais sistemática o luto enquanto categoria de análise social é o GREM – Grupo de Estudo e Pesquisa em Sociologia da Emoção, do Programa de Pós Graduação de Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, coordenado pelo autor deste trabalho. 74
Como é o caso dos trabalhos desenvolvidos, por exemplo, no âmbito do LELU – Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
189 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
anos. Bem como das conseqüências deste processo para a formação do
brasileiro, sobretudo o urbano, contemporâneo.
Através do uso de entrevistas e questionário, este capítulo procura
delimitar como o homem contemporâneo no Brasil urbano e morador das
capitais de estado, compreende o luto no presente, através de uma
comparação com o passado recente vivido ou imaginado. Este é o objetivo
deste capítulo.
Diferenças entre o luto de hoje e de outrora
"...Eu lembro, há uns trinta e tantos anos atrás, quando eu perdi a
minha avó, eu era já um cara de vinte e poucos anos e já era casado até, em
Bragança Paulista, o evento que foi o velório, o enterro e todo o aparato do
luto que pairou na minha família. Minha mãe vestiu preto, eu mesmo
coloquei um fumo75, durante uma semana não se ligou o rádio e a televisão
e se evitou sair na rua, a não ser para fins estritamente necessários.
Era uma espécie de resguardo onde a evocação do morto era
permanente, todos juntos conversávamos sobre minha avó, chorávamos
juntos, lembrávamos de cenas e de situações, ríamos até de alguns
episódios... mas o importante é que éramos todos juntos... você não sabe a
importância que era esse estado de resguardo para sair da letargia e do fim
75
O fumo é uma faixa de tecido preto que se coloca em torno do braço, na lapela do paletó ou preso junto ao bolso da camisa, muito usado no Brasil até meados da década de sessenta, para simbolizar o luto masculino. Hoje em desuso nas cidades, é encontrado esporadicamente em famílias do interior brasileiro, ou em raras famílias que ainda insistem em seguir a tradição. Embora seja uma faixa de pano preto, e possa ser usado de qualquer tecido, até os anos sessenta nos armarinhos, lojas de pequeno comércio de miudezas, era possível encontrar um tipo de luto industrializado, feito de malha de nylon e na forma de um bracelete para se por nas mangas de camisas masculinas.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
190 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
do mundo que a morte de uma pessoa querida e importante para nós nos
jogava....
Os parentes mais distantes compareciam a certas horas para nos dar
conforto e saber se precisávamos de algo, os amigos e vizinhos mais
chegados também ... se sentia o aconchego naquela hora difícil de dor... "
(Entrevista n. 134)76.
Pela entrevista acima, percebe-se um certo ar de saudade dos
tempos de outrora vividos pelo narrador durante o processo de luto
acometido a ele e familiares, pela morte de sua avó materna. Este clima
nostálgico enfatiza, na narrativa do informante, principalmente, aspectos
ligados ao lado mais social do enlutamento e a sua importância para o
trabalho pessoal de luto de cada membro da família e da família como um
todo.
Coloca o resguardo familiar proporcionado pelo estado de luto, como
uma das formas de se purgar o sofrimento e ao mesmo tempo de introjeção
sentimental do morto em cada um dos membros enlutados. Seja pelo chorar
em comum a morte da pessoa amada, seja pelo relembrar e evocar a
memória do morto em situações individuais ou coletivas. Cenas
selecionadas ao acaso das conversas que o resguardo permitia, e que
punham em evidência a avó na trama de situações que marcaram um sujeito
particular ou a família como um todo de forma positiva, ou nos momentos de
tristeza ou percalços individual ou familiar.
Relembra também a importância do estado de luto como uma espécie
de demonstração social, através do vestir o preto das mulheres, do uso do
fumo nos homens, do evitar barulho ou sons que demonstrassem alegria
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
191 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
excessiva ou ligação com o mundo de fora. Bem como, da diminuição das
saídas para fora de casa, como uma forma de diferenciação social da família
enlutada para a sociedade no entorno. Diferenciação proporcionada pelo
estado de luto a que todos da família estavam acometidos, demonstrando
não apenas o pudor familiar no momento de aflição vivida pela morte do ente
amado, mas também, e principalmente, o respeito social pela família
enlutada.
Em um caso e no outro, o morto era reverenciado. As instâncias
individual e societária eram veladas através da consideração da família para
com ele e para com o social em torno, e do social para com o morto e para
com a família enlutada. Parecia haver uma integração maior da família
consigo própria e com a sociedade em geral e vice versa, e uma
possibilidade ampliada de introjeção do morto pelos familiares, ajudando a
saída do luto.
O "aconchego naquela hora de dor" de que fala o entrevistado,
remete também para a esfera social do luto, na consideração de familiares
distantes, amigos e vizinhos para àqueles enlutados e em temporário exílio
do social mais amplo, proporcionado pelo termo resguardo.
O processo de luto no Brasil de ontem, para o entrevistado, era uma
etapa necessária para a reintegração dos membros à sociedade e a eles
mesmos. Etapa formada por rituais claros do que fazer ou não fazer, para os
que experienciavam tal estado ou que com ele teriam de conviver. Relembra
sentimentalmente e realça os aspectos positivos do processo de luto no
Brasil de outrora e de que ele já não parece encontrar mais no momento do
presente.
76 O entrevistado é do sexo masculino, morador da cidade de São Paulo, capital, 66 anos, advogado, viúvo. Tinha perdido a esposa a aproximadamente um ano, a contar da data da
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
192 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Ao narrar o luto por ele vivido recentemente na morte de sua esposa,
o informante deixa bem claro as diferenças estabelecidas, por ele, entre o
passado recente brasileiro, o ontem, e o presente, o hoje. Revela que, na
morte de sua mulher, se sentiu "... deprimido, solitário, acuado o tempo todo.
Parecia, e ainda vez ou outra ocorre, que um trator tinha passado por cima
de mim tamanha e absurda era a dor a que o sofrimento pela perda de
minha esposa continha. ... Me sentia como a estourar, como uma bexiga da
qual só se faz soprar, encher, encher e não tem por onde escapar o ar, a
não ser pelo rompimento da mesma.
"Queria o tempo todo ficar só, fechado, mas ao mesmo tempo sentia
uma falta enorme de com quem compartilhar o meu sofrimento. Uma
contradição até natural de quem se encontra vitimado por um raio fulminante
que é a morte, eu acho, mas, o que eu vendo para trás, agora, o que de fato
faltou foi o respeito para com o morto, foi uma parada para meditar no que
aconteceu, foi as regras que se perderam de como curtir esse momento
dilacerante na vida de um homem.
"Os parentes e amigos apareceram no momento da morte e do
enterro, mas tudo muito rápido, muito ligeiro, depois cada um foi para a sua
casa e pronto ...a vida continua... Os meus filhos choraram, acompanharam
as exéquias da mãe, mas depois todos voltaram a normalidade, como se
nada tivesse acontecido... Televisão nas alturas, festa, trabalho, escola, tudo
continuava a ser como era, 'cada um na sua', como dizem hoje.
"Não é que eles não sofreram, não é isso não, nem estou me
queixando, estou dizendo que o isolamento que um ser já se coloca movido
pela perda de alguém, é ampliado até a estratosfera agora. Ninguém tem
mais tempo para ninguém, reverenciar o que, parece ser a ordem, e todo
entrevista.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
193 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
mundo foge da dor de alguém, ou se alguém está em dor, é recomendado
procurar um especialista para ajudar nesse purgar...
"A solidão do hoje faz com que o luto seja feito através dela, pela
solidão, com dificuldade, ou como doença a ser tratada... diferente de
antigamente" (Entrevista n. 134).
O entrevistado evoca no hoje, através do seu luto recente, o processo
de luto do passado e faz uma comparação. Nesta ação de comparar dois
momentos, traça um perfil do estado de luto atual como um ato de solidão
onde, os que vivem uma experiência de enlutamento, se encontram sem
alternativas outras do que voltar-se para si mesmo, o que dificulta o trabalho
de luto, ou de procurar especialistas para "ajudar nesse purgar".
Em uma alternativa ou em outra destaca a falta de tempo no cotidiano
para lidar com o sofrimento, o que a seu ver só faz aumentar. Evidencia,
também, a diluição das regras ritualísticas e comportamentais sociais onde
os enlutados e àqueles direta ou indiretamente relacionados no processo
podiam espelhar-se, ajudando no processo de introjeção do morto e na
reinserção no social. Realça, ainda, o desrespeito ao morto pela urgência do
presente que todos parecem estar envoltos, como se quem morreu não mais
importasse publicamente, sendo evitado o falar do ente morto ou da dor de
cada um em relação à perda77.
77
Hermilo Borba Filho no segundo volume do romance Um Cavalheiro da Segunda Decadência, em certo momento faz o personagem principal, vivido na primeira pessoa, parar para acompanhar os últimos dias, o enterro e realizar a última despedida do seu pai. Acabado o processo de morte e findo o enterro, o personagem volta para a sua vida cotidiana disposto a esquecer o seu morto, a não mais sofrer. Ou, em suas palavras: Morto e enterrado o Capitão, dispus-me também a enterrá-lo em minha lembrança, no campo das coisas passadas e sem jeito, nada de chorar sobre o irremediável, de maceração, de cultivo da dor. Ele passava a ser uma coisa abstrata como Deus, do qual se fala ao mesmo tempo com crença e descrença..." (1967, p. 77).
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
194 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Um pacto do silêncio parece, segundo o entrevistado, ser realizado.
Isola os sujeitos em sofrimento, cada qual guardando para si a sua própria
experiência pessoal e social de troca com o ser que se foi, ou da ruptura
desta troca pela ausência provocada pela perda.
O luto, a morte e o morrer viram uma espécie de problemática e uma
instância de patologia, a serem tratados, nos casos mais agudos pela
psicanálise, pela psiquiatria ou pela psicologia, ou a serem ensinadas a
como com eles lidar, nas escolas e centros especializados78. O luto deixou
de ser social e socialmente satisfeito, e passou a ser considerado como um
processo de intimidade e de saúde mental dos sujeitos, ao ser visualizado
pela individualização do processo de sofrimento vivido na subjetividade do
sujeito que sofre a perda.
A narrativa de uma entrevistada sobre o luto no ontem e no hoje no
Brasil urbano, revela outros significados, porém, que parecem ir de encontro
com o depoimento do entrevistado acima. A informante é uma senhora de 68
anos, natural e moradora na cidade de Vitória, no Espírito Santo, que relata
78
Em várias revistas e jornais brasileiros vem aparecendo uma série de reportagens recentes sobre a necessidade de oferecer apoio especializado para as famílias ou às pessoas enlutadas. Bem como, de matérias relativas a como administrar o trabalho de luto e as questões da morte e do morrer entre as crianças. Nestas matérias, tenta-se popularizar os trabalhos de especialistas, psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, enfermeiros, religiosos, educadores, entre outros, sobre o cotidiano do tratamento de enlutados e doentes terminais nas clínicas, escolas, hospitais ou centros de pesquisa e diagnóstico, sobre o que fazer para amenizar o sofrimento de quem perde alguém, ou de quem sabe que vai morrer, bem como para alertar para a enfermidade causada pela dificuldade de realização do trabalho de luto na contemporaneidade do homem brasileiro, sobretudo, urbano. Ver, entre outros, "O duro exercício do adeus" (Veja, 6 de outubro de 1999); "Em nome da cura" (Veja, 1 de dezembro de 1999); "Eclipse da dor" (Veja, 10 de agosto de 1994); "Encarar perda da morte evita problemas" (Correio da Paraíba, 23 de agosto de 1998); "Morte também é assunto de criança" (Nova Escola, v. XI, n. 94, pp. 27 a 29, de junho de 1996) e "Sereno Suspiro" (Jornal da Unicamp, novembro de 1999). Este último faz um pequeno balanço do o Primeiro Seminário de Reflexões sobre a Vida e a Morte, acontecido em 16 de setembro de 1999 na Unicamp, e realizado por profissionais da saúde que lidam com pacientes terminais e com o luto.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
195 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
um processo vivido de luto há mais ou menos trinta anos atrás, pela morte
do seu marido.
De acordo com o seu relato, "o meu marido morreu de um terrível e
fulminante infarto aos quarenta e cinco anos de idade, e me deixou com dois
filhos entrando na adolescência. ... Eu era uma mulher jovem, beirando aos
trinta anos, trabalhava, era independente, e tentei enfrentar com o máximo
de forças que eu dispunha, depois da desgraça que acometeu minha família
com a morte do meu esposo, a batalha da vida... mas a morte de E. me
trouxe muito mais problemas para a vida prática do que alguém poderia
imaginar, muito mais pelo preconceito que uma mulher sozinha enfrenta
nesta sociedade aqui de Vitória daqueles tempos. ...
"Passei um tempo de roupas mais sóbrias, não, não... não de preto
mas de tons mais fechados, e logo depois de um mês retirei esse tom
escuro e passei a usar a minha roupa normal, não poupei os meus filhos de
se divertirem e nem deixei de trabalhar ou sair com minhas colegas de
trabalho e amigas, como sempre fazia, depois do expediente ou em um ou
outro dia especial... E isso foi uma loucura para a sociedade local, que
passaram a me evitar e me olhar no canto do olho como se eu fosse uma
doidivana, uma mulher da rua qualquer...
"Até meu chefe, um homem a quem eu considerava sério, veio dar em
cima de mim, como se eu fosse uma disponível por não ter mais marido e
não me colocar de quarentena, com todos aqueles aparatos artificiais que
revelam para o outro que você está sofrendo, que você está de luto... como
eu recusei, veio com discurso moral para cima de mim e só não me demitiu
porque uma colega intercedeu, mas minha vida, enquanto fiquei naquele
trabalho, virou um inferno de perseguição...
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
196 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
"... Essa falsidade que carrega essas coisas da sociedade, na
realidade, eu acho uma tolice. O luto você carrega na alma, ninguém tem
nada a ver com a sua vida, com a forma com que você vive o seu
sofrimento, ou se você sofre ou não sofre a morte de alguém... conheci
várias pessoas, homens e mulheres, que viviam de fingimento mas que era
só e apenas fingir, na intimidade eram uns sacanas... ...Acho que hoje as
pessoas tem mais liberdade de expressão, a sociedade ainda constrange
mais não constrange tanto, quanto na época da morte do meu marido..."
(Entrevista n. 205).
Diferente do primeiro entrevistado, esta senhora enfatiza em seu
depoimento o constrangimento da pessoa que vive uma situação de luto
pela sociedade em seu entorno. Enumera situações por ela experimentadas
de sufocação moral por não seguir as práticas e atitudes comuns a uma
pessoa em luto na sociedade de sua época. Pontua, também, cenários de
buscas de enquadramento de sua pessoa em categorias sociais
desclassificatórias, por resistir a um enquadramento social, ou a um
comportamento esperado socialmente de alguém que experiencia um estado
de luto.
O luto social, assim, para ela, revelou-se como uma condenação
pessoal, motivada pelo sufocar moral, ou através da tentativa de
enquadramento de sua pessoa, conseqüência do primeiro. A vivência do luto
virou assim uma guerra pessoal contra a sociedade, em busca de uma
individualidade de expressão dos sentimentos e de uma procura de restaurar
o respeito de si pelo social e por ela mesma.
Para ela, a experiência do luto na sociedade brasileira de hoje é
realizado de uma forma mais individualizada, sem cobranças sobre como
cada um vivência o processo. O sofrimento de cada um tornou-se, assim,
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
197 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
para ela, uma experiência que interessa apenas as pessoas envolvidas
diretamente, e a uma pessoa singular. Como ela experimenta o sofrimento, a
forma como o vivencia ou o expressa é cada vez mais individualizado, e o
sentimento da perda torna-se mais evidenciado em seu aspecto modal como
um sentimento subjetivo ao sujeito que o experimenta.
O luto ao tornar-se uma experiência intima, privada, para ela,
desafoga a pessoa do social e a faz aflorar para a vida, vista através de uma
batalha para a conquista da individualidade. O luto hoje, na sociedade
brasileira, revela-se, para a entrevistada, como uma experiência mais salutar
do que o luto de ontem.
Esta comparação foi solicitada também aos indivíduos que
responderam ao questionário aberto. Conforme pode ser visualizado no
Quadro N. 29, a polaridade entre um "Maior Controle Social", 43,02%, na
vivência do luto no Brasil de antigamente e o "Hoje É Individual", 37,73%, é
pontuada por um "Não Existe Diferença" na experiência do luto ontem e
hoje, com 19,25% dos entrevistados.
Esta ausência de diferença diagnosticada por um volume considerável
de entrevistados, quase vinte por cento das respostas, indica, porém, uma
polifonia de experiências que um questionário padrão não consegue
exprimir, a não ser quando lido nas suas entrelinhas. Analisado questionário
por questionário atinou-se para esta informação a partir de algumas
anotações pessoais de entrevistados, deixadas de lado pela quantificação,
que, quando recuperadas puderam trazer uma luz para as esferas do que
cada um quis afirmar como não existindo diferenças entre o luto de ontem e
de hoje vividos no Brasil urbano.
"A sociedade sempre foi hipócrita e sempre desconsiderou as
pessoas, aqui no Brasil", foi uma das anotações encontradas ao lado da
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
198 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
resposta de um informante de Porto Velho, Rondônia. Outra anotação
existente foi a de "Onde existe dor e sofrimento é no indivíduo, e sempre foi
assim, com roupa preta ou de vermelho sangue", lida em um questionário de
Florianópolis, Santa Catarina. Um terceiro apontamento encontrado em um
questionário de Fortaleza, Ceará, indica que "o luto é uma experiência de
desamparo individual, sempre, seja hoje ou antigamente. A sociedade só faz
ampliar ou diminuir a margem desse desamparo, mas o sofrimento é sempre
vivido na solidão do eu, mesmo que haja um coletivo forte", e faz eco e
contraponto com outro achado em um questionário do Rio de Janeiro: "a
solidão é calada e de dentro do sujeito que possui. O luto é uma ampliação
desta solidão, e não há amparo ou regras sociais que o façam diferente. O
luto foi e é solidão. Solidão!".
Estes apontamentos, se de um lado mostram a limitação de um
instrumento meramente quantitativo no tratamento analítico de um
questionário tipo padrão, como este usado como uma das técnicas de
aproximação da realidade estudada, por outro lado, demonstram que, lidos
com sensibilidade, um a um, o questionário como uma expressão também
individualizada dos informantes, como uma narração, permitem ampliar as
categorias compreensivas a que estão dispostos na tabulação necessária
dos dados. Na leitura da categoria "Não Existe Diferença" entre o luto de
hoje e o de antigamente, é possível, assim, verificar um pouco mais
atentamente o que os informantes quiseram dizer com tal afirmativa.
Advogam que o luto, em todas as instâncias e em qualquer tempo e
lugar é vivido solitariamente e isoladamente pelos indivíduos que o
experimentam. Apontam, deste modo, para a individualidade e a
subjetividade como instrumento de vivência do luto, independentemente de
um grau maior de liberdade social de expressões de sentimento ou de uma
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
199 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
presença mais forte do social no controle do luto de seus membros. Para
eles, o luto é uma experiência individual vivida dentro de um sujeito na
sociedade.
O luto, para outros destes apontamentos à margem do questionário,
parecem apontar para uma outra faceta da relação entre o indivíduo e a
sociedade. Esta outra face se encontra na ênfase dada a hipocrisia do
social, e na da solidão do indivíduo no social, bem como na fórmula de que o
enlutamento é uma expressão de um ser social, individual e coletivo ao
mesmo tempo.
De uma forma ou de outra, porém, indicam uma tensão entre o
indivíduo e a sociedade, e a presença do sofrimento enquanto solidão e
desamparo de um ser, pela perda de alguém amado. Paul Ricoeur (1994,
pp. 62 e 63) fala o sofrimento como implicando em uma diminuição da
suportabilidade de um sujeito em dor, afetando os diversos níveis do dizer,
do fazer e do estimar-se como um agente moral. A solidão ampliada revela
um indivíduo acima da sociedade, individuado ou em individuação, na sua
incapacidade de narrar o inenarrável da dor vivida através do sofrimento
provocado pela perda.
Este ser solitário, acuado pelo sofrimento, é um ser em processo de
confronto com o outro. Confronto ambíguo, é verdade, mas tensão e conflito
sempre. Pela forma como enfrenta a si mesmo e se sente acuado, como um
animal, sem poder expressar sua dor a não ser pela ausência do mundo ou
resistência aberta ao mundo ao seu redor. Pela forma que espera deste
mesmo mundo em conflito, o entendimento, a busca de proteção, o
recolhimento que o faça compreender e narrar o impossível de narração, na
alucinatória perspectiva que se abre em seu interior pelas brechas do
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
200 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
sofrimento e que o impõe como figura principal, única e estupefata de um
ato, ou de uma condenação.
Solidão que parece exasperar o sujeito tocado pela perda, que o
coloca em tensão com o social como força potencial e como abandono, e se
transforma em dó de si mesmo, desapego dos outros e marginalização. Este
processo parece ser o que aponta a categoria "Não Existe Diferença", vista
através dos apontamentos à margem do questionário. Não é um desdém,
mas antes uma afirmação da solidão do sujeito tocado pela perda nos
momentos mais agudos do trabalho de luto, dos momentos mais difíceis
onde o ser amado que se foi ainda é nada mais do que uma presença
perdida e, neste perder-se e sem poder interrogar esta ausência pela morte,
tornada absoluta.
É uma espécie de "enraizar-se na ausência de lugar", proposto por
Simone Weil em seu "La pesanteur et la grâce" (1993), que descreve o
estranhamento e a necessidade de a ele agarrar-se, movido pela absurda e
sufocante ausência e pela sensação de estar entre vazios. Anulação das
fronteiras como conflito do eu com os outros e, também, como resistência e
busca de compreensão do por quê eu.
Esta afirmação da solidão indicando a tensão entre o indivíduo e a
sociedade, e o conflito em que se situa neste tênue limiar. O social e suas
regras aparecendo, para o sujeito em dor, como uma ameaça de morte,
usando aqui a expressão dos diálogos de Canetti e Adorno (1988).
As duas outras categorias presentes no Quadro N. 29, indicam, por
seu turno, a expressão de uma visão dos informantes no questionário, de o
luto ser melhor antigamente, pelo "Maior Controle Social", com 43,02%, e
ser melhor no presente, pois "Hoje É Individual", com 37,73% das respostas
dada a questão. É interessante notar o expressivo número de informantes
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
201 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
que afirmaram a diferença, no sentido de um maior controle social, nas
atitudes comportamentais que lidavam com o luto na sociedade brasileira de
um passado recente.
Um pouco mais de quarenta por cento dos informantes indicaram este
aspecto como sendo o que melhor delimitaria a diferença entre o ontem e o
hoje. As regras claras que pareciam definir a ritualística em que se
encontravam envolvidos todos àqueles ligados a um processo de luto, seja
os diretamente no estado de luto, seja os outros relacionais, despontavam
como o ponto modal de uma experiência mais coletiva da sociabilidade
brasileira de antanho.
É esta força da coletividade sobre a ação individual em um processo
de enlutamento que chama a atenção a categoria de "Maior Controle Social".
Indica o menor poder de ação individual frente as normas sociais e sua
ritualística. Procura, também, enfatizar a obrigação pública da expressão de
sentimentos de que fala Marcel Mauss (1980) e as formas comportamentais
de contenção gestual e de vestimenta e da presença clara de sinais
exteriores demonstrativos do estado em que um indivíduo enlutado se
encontrava e do outro que com ele se relacionava.
Estas diferenças indicadas como principais entre as características do
luto ontem, aparecem nas margens dos questionários como, também, uma
presença não de todo uniforme entre os respondentes. Alguns apontam
estas características dentro de um imaginário recheado de sentimentalismo,
de uma rede coletiva que vem se fragmentando com a modernidade do
Brasil urbano atual, como parece ser o caso deste apontamento encontrado
em um questionário de Salvador, Bahia: "o respeito aos mortos e aos que o
perderam era mais intenso, todos nós nos sentíamos mais protegidos e
podíamos realizar melhor o luto do nosso morto querido".
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
202 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Outros, por sua vez, indicam para o aspecto contrário, colocando o
controle social como um aspecto negativo na vida do sujeito enlutado.
"Antigamente a coisa do luto era mais controlado pela sociedade, ninguém
podia 'cuspir fora do prato', nem que fosse uma saidinha de nada, que era
logo tachado disso e daquilo outro, não havia espaço para o indivíduo
respirar... ", informa uma anotação ao lado da resposta de um informante de
Manaus, Amazonas.
Os dois contrários, por sua vez, informavam a presença maior da
sociedade no controle pessoal dos enlutados, no Brasil de um pouco mais
de trinta anos atrás. O mesmo acontece, também, com os que indicam a
mudança dos hábitos no processo de enlutamento do presente, no Brasil
urbano, para uma atitude mais individualizada da vivência da perda que
satisfaz ao trabalho de luto.
A categoria "Hoje É Individual" enfatiza esta mudança. Prognostica a
passagem de um tempo onde as regras sociais eram mais claras e o
controle sobre os seus usos e costumes respeitados, para um outro tempo
de fragmentação e diluição dos laços coletivos, dando margem à
emergência do indivíduo e do individual na vivência e expressão dos
sentimentos.
A individualidade, neste conjunto de respostas, é a raiz de onde
pontifica o entendimento da nova característica pressentida pelos
informantes na sociabilidade brasileira urbana atual. O despontar do
indivíduo enquanto ser subjetivo, privado, oposto ao público é à ênfase da
formulação. A intimidade, de onde o luto aparece como um espaço de
delimitação da relação entre indivíduo e sociedade, configurando a
modernidade brasileira urbana atual.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
203 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Esta modernidade da individualidade do sujeito frente ao social não é,
porém, sentida como apenas um aspecto positivo ou negativo da vivência do
luto. Há os que acham o processo de individualização como uma ameaça
permanente à segurança dos indivíduos tocados pelo luto. Como uma
tendência à diluição dos laços associativos, não apenas ligados ao
parentesco, mas para a religião e, às formas societárias em geral, dando um
conteúdo moral dramático de perda de sentido e continuidade da vida em
sociedade. Como parece ser o caso do depoimento à margem do
questionário, de um informante de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, "o
individualismo presente nas manifestações de pesar da sociedade brasileira
de agora faz com que as pessoas não mais se encontrem e se distanciem
umas das outras. As coisas ligadas à morte e ao luto são objetos de nojo e
incomodo, tanto para os que passam pela experiência, quanto para os que
vivem no convívio imediato. Todos sofrem, mas não sabem como sair desta,
e aí aumenta a distância, o desestímulo com a vida e a evitação um do
outro".
Há, também, o que apenas diagnosticam o aumento do sofrimento
pessoal pelo processo de individualização em curso na sociedade brasileira
atual. Como é o caso do apontamento de um informante do questionário do
Rio Branco, Acre: "Hoje a gente vive uma situação estranha de ter muitas
pessoas em volta e não ter ninguém, ninguém para desabafar, ninguém para
dar apoio. É só a gente e mais nada...".
Mas, há, ainda, os que revelam o espaço de liberdade dos indivíduos
neste percurso de individualidade. "Acho que não tem nada melhor do que a
liberdade que nós temos hoje de viver como cada um quer a vida de cada
um. Não tem mais aquilo de ficar fazendo isso ou deixando de fazer, porque
os outros querem. Não. Agora cada um segue o seu próprio curso e vive e
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
204 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
cresce da melhor forma de cada um", afirma um mineiro de Belo Horizonte
às margens do seu questionário.
Independente da qualidade de melhor ou pior apontada pelos
informantes, a categoria "Hoje É Individual" levanta a questão da
transformação dos hábitos e suas formas de significação rituais no
comportamento do brasileiro urbano contemporâneo, de uma situação
coletiva para uma outra onde a performance do indivíduo é enfatizada em
seu aspecto de intimidade e espaço privado. Bem como, parece ser o caso,
das respostas dadas para a categoria "Maior Controle Social" no
antigamente do brasileiro urbano. O apontar o passado como mais coletivo,
traz um diagnostico do presente como mais diluído socialmente e mais
pulverizado em ações privadas dispersas pelos sujeitos que a experienciam.
De uma forma mais dramática afigura, também, ser o caso da
categoria "Não Existe Diferença", que toma o imaginário em que se encontra
mergulhado o comportamento individualizado, na sua forma individualista,
hoje, e o amplifica para uma atemporalidade, de qualquer época da vida
social brasileira. Esta atemporalidade retém os traços principais de análise
do sujeito que sofre, e a tensão conflitual estabelecida por este sofrer entre
ele e a sociedade em sua volta. Não parece importar para ele, e também
aqui, neste trabalho, se estes traços caminham para um maior crescimento
pessoal, ou para uma maior solidão individual do sujeito da perda em seu
trabalho de luto. Ambos os caminhos são possíveis, e são, também,
conseqüências da experiência pessoal de cada um no luto vivido neste sem
tempo. Ou melhor, em um tempo qualquer do experimentar o sofrimento
pelos sujeitos nele envolvidos.
Sexo e Expressão do Luto
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
205 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Quais seriam as significações atribuídas, pelos homens e pelas
mulheres, que responderam ao questionário padrão, à experiência do luto?
Seria, talvez, esperado uma reação mais presa ao passado e à tradição por
parte das mulheres, por estas se encontrarem apenas a pouco tempo,
sobretudo nestes últimos trinta e poucos anos, assumindo uma vida pública,
e para os homens, configurações ligadas a padrões de subjetividade que
não afetassem a vida pública dos sujeitos envolvidos.
O Quadro N. 30 cruza as categorias ligadas ao sexo com as das
expressões do luto. Nele, ao contrário do possivelmente esperado acima, se
verifica a existência de uma quase equivalência no percentual de respostas
para as categorias de "Simbologia", 47,63%, e "Sentimento", 44,32%, e um
percentual de um pouco mais de oito pontos percentuais para a categoria
"Período de Adaptação".
O interessante, contudo, neste Quadro N. 30, é verificar que 28,53%
dos homens, responderam o luto através das expressões ligadas ao
simbólico, às formas rituais, e à tradição, contra 39,65% das mulheres, que
exprimiram o luto como sentimento, como processo de subjetivação, como
memória individual e rememoração.
Esta relação estabelecida coloca os homens em uma situação de
procura de manutenção dos laços tradicionais de uma sociabilidade do luto,
enquanto para as mulheres, parece que este espaço ritual pode ser
preenchido ou vivenciado sobre outras formas, através da subjetividade e da
experiência interior do sujeito. Este contraponto pode ser enriquecido pela
possibilidade das mulheres, - habituadas a uma vida voltada de costas para
a rua, e a uma personalidade social formada de forma mais intensa para
predicados ligados ao exercício da sensibilidade e para a arte da intuição, -
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
206 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
estarem mais atentas ao compasso da espera e da repetição cotidiana dos
circuitos internos da família e dos laços sociais aí estabelecidos. O que as
coloca, de uma certa maneira, bem mais ao contato permanente com a
morte, enquanto categoria simbólica ligada ao processo repetitivo de cada
ato, como um ato novo sobre o que se foi, e também, e sobretudo, com a
categoria simbólica de vida. Este espaço novo assumido pelo ato que foi.
Os homens, por seu turno, acostumados à lógica da racionalidade do
espaço público, e a vivência delimitada do espaço privado, como provedor e
intermediário do público, tem sua personalidade formada para uma lógica de
negação do sentimento, enquanto expressão de intimidade, e de positivação
de gestos e atitudes concatenados com o circuito público da rua e da relação
de mercado nela estabelecida. O que os constrange de dar visualidade a
manifestações internas de sentimento, na troca com o outro, a não ser em
situações de absoluta intimidade, como é o caso da relação familiar. E
mesmo assim, em momentos específicos e raros.
A figura do masculino no Ocidente, e no Brasil, aqui, especificamente,
é retratada no anedotário do cotidiano, bem como na literatura, como uma
figura carismática, ensimesmada, fechada, que mesmo na intimidade do lar
se comporta como o provedor. Como aquele que organiza as emoções
domésticas, como o que organiza as diretrizes da vida em família e faz sua
intermediação com as demais instituições intervenientes, como a escola, a
política, a religião, a economia, entre outras mais.
Ao partir deste ângulo, vê-se que as respostas se adequam ao perfil
de personalidade em que foram criados os homens e mulheres brasileiros
contemporâneos, frutos e produtos deste passado recente do Brasil. Isto
quer dizer que, mesmo vivendo intensamente nestes últimos trinta e pouco
anos uma transição significativa nas formas comportamentais, nas atitudes e
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
207 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
gestos, na mentalidade e formas de expressão, nos projetos e anseios, os
homens e mulheres que vivem a experiência urbana atual no Brasil, ainda
titubeiam nas fundações que deram origem e formação social e individual a
seus corpos e experiências.
Situam-se em patamares ambivalentes e deles medem o passado, o
presente e o futuro de suas experiências. O novo aparece como ambíguo, e
tenciona com os antigos hábitos, ampliando os conflitos e buscas de
reconfigurações, onde melhor possam assentar-se e rever a si próprios e os
outros.
Neste momento, ao indicar, pela maioria dos homens, como
expressão do luto, a tradição e as formas simbólicas a ela associadas, estes
indivíduos estão estabelecendo as pontes com o passado que os formou.
Buscam agarrar-se a uma rede de serviços institucionais que lhes garantam
a logicidade de seus gestos e ações em momentos de rupturas provocados
pela perda e vividos durante o estado de luto.
Ao desarmar-se o circuito mercantil e racional a que se situa como um
ser público, o sexo masculino parece perder muito de sua capacidade de
apreensão dos conteúdos novos resignificados no momento da perda. Daí a
necessidade da garantia institucional de outras instâncias, como forma de
sobrevivência.
Este sendo um aspecto dramático, não apenas no Brasil, que aponta
para esta tendência apenas recentemente, mas de toda a sociedade
ocidental. Esta tendência já era apontada no início dos anos cincoenta para
a Inglaterra por Gorer (1963), que é a de não suportar a perda do ente
querido morto.
Os indivíduos do sexo masculino, principalmente os mais idosos, na
contemporaneidade da vida ocidental dos últimos cincoenta anos, parecem
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
208 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
situar-se em um comportamento ensimesmado durante a perda, acentuado
pela quebra das relações societárias mais desindividualizadoras, que os
fazem falecer, logo a seguir, a morte de um ente amado, principalmente a
companheira ou esposa79.
Diferente da maioria das mulheres, que parecem suportar a perda de
uma forma mais adequada e elaborar melhor o luto. Mais voltadas para a
relação do sentimento, enquanto categoria das formas de sociabilidade do
sensível e do pressentimento, o sexo feminino parece situar melhor a dor da
perda nos mecanismos da rememoração dos laços e da memória afetiva do
morto com relação à família e para a sociedade, recompondo a expressão
da importância e permanência do valor da instituição familiar.
Em todo caso, esta diferenciação entre os comportamentos feminino e
masculino frente à morte de um ente amado, embora indique uma
dificuldade masculina de maior dificuldade de elaboração do luto do que o
feminino, ambos se situam entre fronteiras. O luto de ambos tornam-se
dificultados pelas novas formas de relacionamento social emergidas no
Brasil recentemente, que sem regras ainda palpáveis, avança na
descaracterização das anteriores e na pulverização e descrença nas
instituições desindividualizadoras que mantinham um certo padrão de
uniformidade das relações e dos rituais, em casos de processos de ruptura,
como a morte.
A entrada das mulheres na vida pública brasileira dos últimos trinta
anos, o crescimento da concorrência e da eficácia social entre os indivíduos,
as novas formas por que passaram a instituição familiar, após a lei do
divórcio nos anos oitenta do século passado, o anonimato das pessoas e as
79
Ver Pincus, 1989, para o caso da Inglaterra e Ariès, 1967, para o caso da França, entre outros.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
209 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
resignificações das trocas afetivas nas grandes cidades, entre vários outros
aspectos, colocam o brasileiro médio no interior de um imaginário tenso
entre processos de um passado recente e novas formas de adequação
ainda em formação. O que os torna ambivalentes e sujeitos a uma maior
dificuldade no processo de elaboração do luto.
As marcas da instabilidade e do não saber situar-se perante as novas
regras do jogo social, parecem ampliar a insegurança do agir, o sentimento
de culpa do não saber comportar-se perante a ruptura que rasga a sua vida
e o inconformismo pela situação experimentada. Ao colocar sobre si mesmo
a carga maior da culpa, deste modo, o sofrimento tende a tornar-se, uma
espécie de expiação pessoal, por algo que não sabe bem explicar o por quê.
O que dificulta a elaboração do luto e em muitos casos, provoca a morte do
sujeito que sofre a perda80.
Em todo caso, deixa a marca da ferida não de todo expiada mesmo
após a elaboração do luto, quando a pessoa já consegue ver com mais
distância o processo pelo qual passou quando da morte do ser querido.
Durante todo o percurso deste livro, pôde-se perceber a ênfase dos
entrevistados, diretamente para esta pesquisa, ou de depoimentos extraídos
de revistas, e a importância atribuída à marca deixada pelo sofrimento do
luto. Esta marca parece revelar nas narrativas uma espécie de ensinamento
provocado por este período duro na vida das pessoas, e a marca tem a ver
com este aprendizado.
80 Uma pesquisa coordenada pela psicóloga Valéria Tinoco do LELU/PUC-SP teve alguns dos seus dados publicados na revista Veja, de 6 de outubro de 1999, em uma matéria intitulada "O duro exercício do adeus". Esta pesquisa revelou que as reações de inconformismo em relação à perda de parentes mortos, entre as duzentas entrevistas, por ela realizadas, atingiu um conjunto de 41%, e o sentimento de culpa 20% do conjunto das entrevistas
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
210 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Paul Ricoeur (1994) também pergunta sobre o que o sofrimento
ensina e responde, de um lado, para um certo conformismo do ser perante o
acontecimento que o acometeu. Uma espécie de entrega pessoal à dor,
provocada pela ruptura abrupta ocasionada pela morte do outro amado, que
faz o indivíduo ao acomodar-se permitir-se refazer os passos dolorosos da
introjeção do morto em si. Processo elaborado através de uma
recomposição do eu pela sentimentalidade e pela dissecação do outro
querido que se foi, apropriando-se destas partes dissecadas e
reconstituindo-o no seu interior como um objeto amado em si, o que permite
um distanciamento do sofrimento e uma retomada da vida. Esta também é a
teoria do luto em Freud (1992).
Outro lado, porém, encontra-se em um segundo tipo de ensinamento
da dor provocada pelo sofrimento no luto. Este outro ensinamento se faz
pelo inconformismo assumido pela perda. A impossibilidade do diálogo, o
indizível da dor pessoal, a incomunicabilidade a que um indivíduo se vê
sujeito pelo sofrimento, faz com que ao tomar para si o sofrimento como
expiação de algo de que se diz vítima, se revolte com o mundo pessoal e
social, e suas instituições, e se volte para dentro de si como sujeito culpado,
vendo o mundo através de sua culpa.
Uma culpa cada vez maior pelo fato da não explicação para si, e a
falta de explicações no social, pelo sofrimento a que se viu exposto na morte
da pessoa amada. Ocasionando um certo afastamento do social, pela
subjetivação de sua pessoa como o referente principal de si mesmo,
enquanto indivíduo, ou pelo desencanto do mundo. O mundo ao redor, e
suas instituições, passam a se configurar através de uma visão instrumental
e técnica. Como um aparato de proteção ou como uma espécie de máscara
sob a qual enfrenta a sociedade. Amplia a margem de ambigüidade nas
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
211 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
relações que estabelece com o social, tornando-se para si, um ser
incompreendido, desconfiado, e que anseia, ao mesmo tempo,
compreensão.
Tempo ideal do luto
"Eu sou um homem marcado pela morte. Não sei... às vezes me situo
no tempo e já fazem mais de três anos da morte do meu companheiro, e me
revejo na mesma dor, na mesma solidão, na mesma angústia a que fui
jogado quando ele veio a falecer... . É difícil superar a morte de alguém de
quem se foi muito íntimo e de quem se amava além das medidas...
principalmente, quando depois da morte dele me vi banido de até expressar
este sentimento. Nem ao velório pude ir, a família dele proibiu a minha
entrada... não compareci ao enterro, também por proibição dos parentes, me
tomaram até os objetos dele, na minha casa. Só não perdi o apartamento,
porque estava em meu nome... e uma fotos da gente em Paris. O resto
levaram, destruíram tudo... e isso é muita dor, muito sofrimento, mesmo... .
Você me pergunta sobre o tempo do luto? Podia dizer o formal, um ano, um
pouco mais ou um pouco menos, dependendo das circunstâncias... mas isso
não é a verdade, se eu vejo pelo que venho vivendo... o luto é eterno, dura
para sempre, é sempre renovado nas marcas e nos desprezos que os outros
revelam a dor da gente... é aí que a gente vê que tudo é ilusão. Só o
sofrimento e a solidão é que de fato marcam a vida de uma pessoa... "
(Entrevista n. 15)81.
81
Sexo masculino, 43 anos, perdeu o companheiro com quem já vivia a quase seis anos, vítima da AIDS. Empresário da noite, natural e morador da cidade de São Luís, estado do Maranhão.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
212 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
O depoimento acima denota uma polaridade entre um tempo formal e
uma outra temporalidade, marcada pelo sofrimento, a que o entrevistado se
viu exposto após a perda do ente amado. O choque entre as duas formas de
medir o tempo, no trabalho de luto, entremeia as relações esperadas de uma
introjeção da perda em um indivíduo em condições consideradas ideais pelo
narrador e as condições objetivas dadas pelo enfrentamento do sofrimento
pela morte do outro.
A expectativa de um luto em circunstâncias normais, onde o apoio e a
solidariedade e compreensão pelo sofrimento de alguém vitimado pela
perda, - margeado pela rememoração deste ser que se foi e a medição de
sua importância para o sujeito e dele para o todo social com quem se
relaciona, - parece entrever uma memória de um processo de ajustamento
coletivo que se perdeu em algum lugar do passado, que é desejado, mas
que não se tem como o reencontrar, porque não sabe bem aonde foi, como
foi, porque foi e o que de fato se perdeu. Vem como um elemento de
retórica, quase um sonho, que se choca com a dura realidade da perda e a
exclusão social a que se diz vitimado.
O luto, para o entrevistado, se realiza através da exclusão. Nela se
mescla a culpa pelo acontecido ao outro que se foi, pelo acontecido a si
mesmo e pela forma com que o social o retira das formalizações fúnebres: a
recusa de o deixar ver o corpo, velar o seu morto, acompanhar as
despedidas no trajeto e durante o enterro. Mescla-se, também, à culpa a
vitimidade com que encarou, e vem encarando o seu processo de perda: de
novo, a marginalização a que foi jogado pelos familiares do morto, que se
apropriaram do corpo amado e, também, invadiram o seu lar, - objeto de
quase veneração da intimidade na modernidade brasileira urbana, -
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
213 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
profanaram o reduto de sua memória, onde tudo parecia lembrar o que se
foi, retirando os pertences e destruindo as lembranças construídas a dois.
A marginalização, a exclusão provocada na ruptura ocasionada pela
morte do ente amado, pelos outros da relação, os familiares do morto,
parece ter enfatizado a anormalidade com que ele próprio via a sua condição
pessoal de homossexual, e de casamento com um outro do mesmo sexo.
Daí a vitimidade com que se coloca frente a recusa dos outros de partilhar o
corpo do amado, e da passividade com que se colocou frente a objeção e
diante da invasão de sua privacidade e bens comuns, construídos durante o
período que viveram juntos.
Mesmo sendo um homem que assumiu uma sexualidade diferente da
comum e considerada normal pelo social em torno, a condição homossexual
parece se apresentar para ele como uma espécie de estado marginal frente
a sociedade, e sob o qual enfrenta as relações societárias no dia a dia de
sua existência pública. No caso do entrevistado agora analisado, parece que
é este sentimento de exclusão, visto sob uma ótica de vitimidade, que o faz
perceber e encarar o processo de luto como uma ampliação de sua morte
social.
Como ser "banido de até expressar (o) sentimento" de dor e da falta
do amigo, agora ausente, e ser jogado fora do processo de sua morte e à
constatação de que "só o sofrimento e a solidão é que de fato marcam a
vida de uma pessoa...". Este caso poderia servir aqui como um parâmetro
para se aplicar mecanicamente a noção de estigma de Goffman (1988),
considerando o entrevistado na sua ambivalência de assumir-se como outra
sexualidade e admitir-se, ao mesmo tempo estigmatizado e portador de uma
espécie de anormalidade social.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
214 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
O que o faria marginal aos olhos dos outros e de si mesmo, e
portanto, portador de sofrimento a ser vivido na clandestinidade. Daí
encontrar as explicações, a partir de sua condição de identidade deteriorada,
da sua solidão e desconforto social, ampliando eternamente a dor causada
pelo sofrimento que o marcou.
Porém, se em vez de usar de forma apenas instrumental o conceito
de estigma e entender, como se vem tentando no decorrer de todo este livro,
a subjetivação dos sentimentos e a eternização do sofrimento, como uma
conseqüência da modernidade ocidental e na forma em que vem se
desenvolvendo a individualização dos sujeitos sociais, via individualismo, é
possível compreender esta mesma noção dentro de um veio explicativo mais
dinâmico. As paredes sociais se tornam mais rígidas à objetivação dos
sujeitos relacionais no seu interior, quando do processo de individuação a
que um indivíduo qualquer se vê exposto e, através desta exposição ameaça
o outro social.
Se a noção de estigma puder ser compreendida à luz do conceito de
individuação, quando um indivíduo aparece acima da sociedade e das suas
regras e normas, em um momento específico da vida social, como a morte
ou o enlutamento provocado pela perda, dá-se movimento ao conceito pela
tensão e conflito por ele provocado, e por onde, metodologicamente, é
possível pensar o seu uso.
A tensionalidade e o conflito inerentes a um processo de individuação
provoca, tanto no sujeito que o vivencia, quanto nos sujeitos no entorno,
experiências específicas de trocas sociais onde o estigma, como vergonha,
culpa e preconceito vem à tona, retraindo os indivíduos da relação e os
fazendo de vítima ou algozes, segundo a perspectiva do olhar de cada
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
215 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
narrativa. Colocando cada indivíduo como um ser em sofrimento, solitário e
ansioso, e os outros referentes como monstros.
Retraimento, cada vez maior, quando os laços desindividualizadores
perdem, ou vem perdendo as suas características de instâncias norteadoras
de uma coletividade, e passam a ser desacreditadas ou a irem perdendo a
credibilidade nos movimentos cotidianos dos homens comuns de uma dada
sociabilidade. Que passam a referir-se pelo espaço de privacidade e
intimidade conquistado, e de onde enxergam os demais, pelo medo, pela
culpa, pela intolerância, ou pelo anseio, pela busca imóvel, pelo discurso
emudecido, por onde, uns e outros mediam as relações públicas e procuram
novos pares. Por uma espécie de tensa conformidade (SCHEFF, 1988), por
assim dizer.
A solidão, assim, como argumento da intimidade e da
espetacularização do individual é um caminho por onde parece prosseguir, a
passos largos, a nova forma de mentalidade por onde se movem as
camadas médias urbanas no Brasil, dos últimos trinta e poucos anos,
acompanhando o processo societário ocidental de que se diz herdeiro e
portador do seu legado histórico formativo. Na questão colocada no
questionário padrão sobre a existência de um tempo ideal para a entrada e
saída do luto, a tendência a encarar o enlutamento, esse ritual de passagem
provocado pela morte de outrem, como uma questão pessoal, ou como uma
marca eterna, parece vir sendo afirmada como uma espécie de prognóstico
desta individualidade solitária que parece tomar conta, ou se processar
neste sentido entre os brasileiros.
No Quadro 31, anexo, se verifica que 64,57% dos entrevistados
indicaram o hum ano como o tempo ideal para saída do luto. Pelo menos,
para o afrouxamento necessário dos laços de sofrimento que marcaram o
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
216 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
trabalho de um enlutado sobre a memória daquele que se foi. Tempo que
permite a introjeção deste ser no íntimo do ser em sofrimento, remodelando-
o e adaptando-o à vida que continua. Tempo, também, que possibilita ao
enlutado a elaboração de novos projetos e aventuras sociais, que se havia
impedido pela insuportabilidade da dor a que se viu sujeito no início do
processo.
É o que a psicanálise, a psiquiatria e a psicologia também advogam
para o que consideram um trabalho e um processo de luto não patológico.
Quando, porém, o indivíduo parece se fechar e não consegue sair do estado
de prostração a que se encontra submetido desde a perda do ente amado,
após o período considerado normal (FREUD, 1992) de introjeção da perda
em si, ou quando permanece em depressão e recusa o mundo ao redor, é
necessário uma intervenção especializada sobre o sofrimento desse sujeito,
como forma de reintegrá-lo à vida social e, principalmente, a ele mesmo.
O luto, no tratamento especializado, se faz sobre uma espécie de
anomalia da vida ordinária do sujeito em crise, que o impede de retornar ao
cotidiano da convivência prática. Na sociedade contemporânea, ocidental, e
na brasileira dos últimos trinta e pouco anos, vem tomando o lugar de outras
instâncias agora não mais tão acreditadas, e que passaram ou passam por
redefinições na sua estrutura e formas de funcionamento, como a religião e
a família.
No discurso da saúde mental, o sofrimento provocado pela exclusão
social, como a pobreza, nos países subdesenvolvidos ou em
desenvolvimento, e pela individualização crescente das relações afetivas e
da mercantilização e instrumentalização dos laços sociais da vida pública,
atinge hoje, mais de 400 milhões de indivíduos dentro de um mapa da
população mundial. O que faz com que a depressão seja apontada como a
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
217 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
doença do século XXI. Para este discurso, se as projeções estiverem
corretas, até o ano de 2020, a depressão terá pulado para o segundo lugar
do ranking de doenças acometidas na população mundial,
independentemente do nível de industrialização e desenvolvimento de cada
país (BRUNDTLAND, 1999) .
Ao situar o tempo ideal do luto em um ano, a maior parte dos
informantes aponta, assim, para o imaginário coletivo que ainda parece
predominar, mesmo que de forma tensional, entre as camadas médias
urbanas no Brasil. "Quando meu pai morreu, eu era adolescente e lembro,
como se fosse hoje, da roupa preta que vesti, de luto fechado, durante
quase seis meses, depois passando para o branco e preto, e só depois de
mais de um ano é que pude vestir vermelho. Eu e minhas irmãs, o meu
irmão, era pequeno, e também vestiu sempre calça preta e no máximo uma
camisa branca com o fumo no braço, no período maior do luto. Minha mãe,
só quando completou hum ano é que saiu do luto fechado e pôs uma roupa
mais clara, mas vermelho nunca mais usou...
"Quando ela morreu, há uns oito anos atrás, a vestimenta do luto já
era diferente. Já se podia vestir qualquer cor, mas, mesmo assim, pus uma
roupa, não preta, mas azul escuro, nos meses imediatamente após a sua
morte. É uma forma de respeito... minhas irmãs também o fizeram, a
garotada é que já não liga muito para isso, acho até que sofrem mais... ou
vai ver que não dão bola mesmo, é coisa de gente velha.... Mas, como eu ia
dizendo, é uma forma de respeito ao morto, e uma forma de mostrar esse
respeito para os que também conheciam e respeitavam a pessoa morta... E
com isso, a gente se sentia mais confortável, em contato com nossos
mortos, em contato com a gente mesmo e com os demais... e a dor ia
passando devagarinho, e quando se via, a gente já estava vivendo a nossa
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
218 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
vida e os mortos dentro da gente, o tempo todo, mas não mais como dor,
mas como acompanhamento e sentimento. ... .
"Minha irmã mais velha morreu faz pouco tempo, coitada, a filha, os
filhos, o marido dela não deixaram a gente acompanhar mais de perto o
corpo e preparar o seu despacho... De noite, depois do enterro, já estavam
todos rindo, indo para as festas, indo pra a faculdade, namorando, o marido
nem deixou de trabalhar no outro dia, imagine..., as luzes da casa todas
acessas, parecia que a mãe e a esposa não tinha morrido... Não queriam
nem celebrar a missa de sétimo dia, eu e minhas irmãs é que insistimos e
pagamos a missa. Mas o senhor não sabe, o rapaz, filho dela, tinha uma
viagem marcada e foi, não compareceu na missa... é uma coisa terrível... aí
o luto nem existe, ou assim parece... pobre da minha irmã! Vai que eles é
que estão certos e eu fora da onda..., como se diz agora (riso)..." (Entrevista
n. 43)82.
A narrativa acima, fala de três tempos e três processos de luto por
que passou a entrevistada: o tempo da morte do seu pai, quando ainda era
uma adolescente, no interior; o tempo da morte de sua mãe, já adulta e
casada, e todos morando na capital, Porto Alegre, e, o tempo presente,
significado através da morte de sua irmã mais velha. Para cada relatou um
tipo de trabalho de luto experimentado e traçou relações com o tempo de
cada um, e a mentalidade de cada tempo de enlutamento.
Em cada tempo narrado, as cores da vestimenta simbolizavam o
experimento público da dor, como uma forma de melhor viver o próprio
morto em si, de purgar o sofrimento causado por sua morte e introjetá-lo
amorosamente no seu interior, como uma atitude de reverencia e respeito ao
82
Sexo feminino, 65 anos, moradora de Porto Alegre, mas natural de Alegrete, Rio Grande do Sul. Casada, mãe de três filhos, todos casados. Dona de casa, nunca trabalhou, católica.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
219 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
que se foi, a sociedade em torno e a cada sujeito enlutado a si mesmo. As
cores, porém, mudam a cada luto: do uso do preto no luto fechado do pai,
passa para um azul escuro e encorpado. Se não o preto, mas algo de um
tom que demonstre um recolhimento e um estado de sofrimento pela perda
de alguém querido aos demais, e faça com que cada enlutado entre no clima
propício à reflexão que a morte recomenda.
O terceiro luto, porém, chocada, revela a sua ausência na família de
sua irmã. Todas as cores, todos os risos, todas as vontades sendo
satisfeitas, sem uma pausa para uma reflexão. Nem uma demonstração
pública de dor, a missa de sétimo dia tendo que ser realizada após muita
insistência das irmãs da morta, o filho nem compareceu à cerimônia, enfim,
um transtorno e tanto, que fez a entrevistada parar assustada e perguntar se
era ela ou se eram os filhos e marido de sua irmã que estavam certos.
A sua segurança na construção pública do luto, da expressão pública
do recolhimento familiar indicativo do respeito ao morto, a sociedade e a
família enlutada, foi posta à prova, tornando um embate difícil de
compreensão. Como o entrevistado n. 15, também sentiu-se estigmatizada e
marginalizada: "fora da onda..., como se diz agora".
O sentir-se "fora da onda" parece fazê-la olhar a si e aos outros
através de uma tendência a estratificação de seus relacionais, conforme,
segundo Goffman (1988, p. 117), "o grau de visibilidade e imposição de
seus estigmas". O que complica a análise ao se pensar que esta provável
forma estratificada de olhar o mundo a separa, ao mesmo tempo que a
permite se integrar, a este mesmo mundo social.
O estigma a faz, de um lado, colocar-se de fora da mudança do
mundo, como uma pessoa antiquada. O que a faz pensar sobre suas
próprias atitudes e a dos demais de forma estereotipada, através do
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
220 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
enquadramento de sua pessoa no conceito de antiquado, por ela própria
traduzido. Por outro lado, busca estabelecer as bases de compreensão para
o comportamento dos demais, e nesse esforço repensa a sua pessoa e os
outros da relação. Por exemplo, falando sobre as expressões públicas do
luto através de vestimentas sóbrias e uma certa discrição individual no agir
público, e comparando sua geração com a mais recente, afirma que "a
garotada é que já não liga muito para isso, acho até que sofrem mais... ou
vai ver que não dão bola mesmo, é coisa de gente velha....".
A reflexão sobre o seu comportamento perante o luto e as formas de
sua expressão, quando comparada com a reflexão sobre o comportamento
dos outros, a leva a tender a compreender o estigma que assume, de "fora
da onda", por um outro olhar estigmatizado de "gente velha". Neste
momento, cria para si uma nova segmentação do social, e nela busca
enquadrar-se e tentar estabelecer contatos com um real imaginário por onde
toca o seu cotidiano. E nesse jogo entre o seu ser pessoal e os outros ao
redor, segue um processo de segmentação contínua do social e de si
mesma, onde ao mesmo tempo que é vítima, também funciona como uma
espécie de algoz.
Vítima, por se colocar marginalizada das novas formas com que para
ela parece se configurar as emoções e o comportamento pessoal e social
perante os mortos, o respeito e o sofrimento em relação a eles. Algoz, por
medir interiormente este conjunto de sentimentos e formas comportamentais
recentes através de sua própria experiência, qualificando os demais, ou
melhor, os costumes da modernidade, a partir de sua degradação, e como
tal, sente-se deslocada desta modernidade, ao mesmo tempo que a
condena. Coloca-se ao mesmo tempo acima e abaixo do social, e neste jogo
procura refazer sua vida, como condenação de si mesma, pelo
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
221 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
deslocamento a que se diz vítima, e dos outros, pela degradação e frieza de
suas atitudes e ações com que encaram a morte e os mortos.
Para Cottle, (1977, p. 35), falando da relação entre o individual e o
social, do privado e do público na contemporaneidade, este jogar contínuo
com esferas comportamentais de si próprios, e dos demais da relação, faz
parte da vida cotidiana dos sujeitos sociais individuais na modernidade. Os
limites e fronteiras estabelecidas em cada um sobre o como cada esfera
pode afetar a si mesmo e os outros, são distinguíveis e ao mesmo tempo se
misturam, provocando mudanças para fora ou para dentro, conforme cada
novo olhar. Em suas palavras, "cada um de nós sente a esfera interna
privada de realidade humana e o que a influencia, e a esfera exterior e o que
parece afetá-la . Todo o mundo sente os modos nos quais estas duas
esferas trocam de forma e que os seus limites, às vezes, não são
distinguíveis, e como este inconstante pode resultar de mudanças em cada
esfera ou no jogo entre elas".
Uma terceira entrevista será aqui colocada como uma forma de um
outro contraponto às duas visões anteriormente trabalhadas. Este novo
depoimento fala do constrangimento pessoal do entrevistado para assumir
formas de expressão pública do luto, com que ela não concordava. Para ela,
as pressões sociais iam de encontro à sua liberdade pessoal.
"Meu pai morreu fazem uns quase três anos... ...claro que senti muito,
chorei, minha vida ficou abalada, tive que me adaptar as novas condições de
vida da minha casa: antes só estudava e tive que trabalhar também para
equilibrar as finanças que ficaram um pouco abaladas lá em casa, enfim,
essas coisas todas que a morte de alguém que a gente depende não apenas
afetivamente mas financeiramente causa bagunça... Mas não é disso que
quero falar agora, não! Quero falar do constrangimento que passei, e ainda
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
222 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
me jogam, de vez ou outra na cara, aqui em casa, sobre o que me taxam de
indiferença e falta de afeto e respeito pelo meu pai, ou melhor, pela imagem
dele...
"Minha mãe, meus dois irmãos mais velhos, e homens..., ficam a me
recriminar... logo depois da morte de meu pai bem mais do que agora, mas
fiquei sendo uma espécie de membro má da família, parece... ficam a me
destratar, a querer que eu expresse uma forma de pensamento que não
sinto, que eu seja o que não sou... . Olhe, eu estava namorando com um
cara quando o meu pai morreu. A gente já estava querendo ficar junto e
coisa e tal, aí, quando do falecimento do velho, dois dias depois, a barra
estava pesada lá em casa, eu peguei minhas coisas e me mudei para a cada
desse meu namorado... foi um drama familiar! Nem te conto...
"Minha mãe agarrou-se comigo, puxou minha bolsa, me chamou disso
e daquilo, disse que eu não tinha sentimentos, ia embora na hora que a
família toda estava sofrendo e precisavam todos estar unidos, e por aí foi... o
meu irmão mais velho me chamou de tudo um pouco, veio com discurso
moral, que eu era uma vagabunda e tal, que se meu pai fosse vivo eu não
faria uma coisa dessas, e que ele não ia deixar eu ir embora assim... . Não
por minha causa, disse ele, que eu que me exploda, mas por causa da
imagem do meu pai, que mal acaba de falecer e eu já dou um desgosto
desse, mas da família toda... ...pela vergonha que estou causando pelas
minhas atitudes inconseqüentes, expondo a minha família, sem dar tempo
para sequer meu pai esquentar a cova, que eu não respeito o luto dos
outros, que se eu pelo menos tivesse dado um tempo da morte do pai para
fazer as minhas loucuras, e por aí vai... como se existisse um tempo para
cada coisa, como se o tempo não fosse o tempo de cada um... ...o meu
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
223 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
outro irmão quis dar uma surra no meu namorado... foi um drama e coisa e
tal, mas fui assim mesmo...
"Morei uns seis meses com esse cara, depois enchi, fui embora, me
aceitaram em casa de volta, ninguém disse nada, nem sim nem não, mas lá
e cá pegam no meu pé... qualquer coisinha sou a insensível, a que não se
pode contar, e tudo o mais... e olhe, que deixo mais da metade do meu
salário em casa, pago os meus estudos e tudo o que é meu, mas mesmo
assim sou a ovelha negra... e (chorando) isso me dói muito, muito mesmo...
pois ninguém pode querer que todo mundo pense como todo mundo, cada
um é diferente, e me expresso conforme eu quero e entendo... às vezes eu
penso que sou má e insensível como me acusam, mas depois penso que
estou entregando os pontos e fico na minha... tenho saudade de meu pai,
quando ele era vivo, as coisas aqui em casa eram diferentes, mais amenas,
com mais compreensão.... " (Entrevista n. 220)83.
Diferente dos dois anteriores, este depoimento revela um sentimento
de exclusão e marginalização social, no interior da família, por a entrevistada
não corresponder às exigências familiares sobre um padrão moral e de
expressão de sentimentos em relação ao pai falecido. A busca de liberdade
de ações e pensamento faz a entrevistada inquirir sua família e a ação
familiar da família sobre ela como uma espécie de opressão familiar para a
sua livre iniciativa. Por outro lado, ela às vezes se pergunta se é mesmo
tudo aquilo que ela acha que os outros familiares pensam sobre ela.
Vive a angústia causada pela tensão entre corresponder a um padrão
familiar esperado ou corresponder a sua própria forma de expressão. A
morte do pai foi um elemento de ruptura significativa no seio da família
83
Sexo feminino, 27 anos, solteira, natural e residente em Florianópolis, estado de Santa Catarina. Estudante universitária e vendedora de uma boutique em um shopping local.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
224 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
nuclear e em suas relações com o mundo, principalmente sobre o baque
econômico que parece ter ocorrido em seu interior. Para a entrevistada, esta
ruptura ocasionou também o afloramento de um sentimento de rejeição
familiar a ela, que a faz sentir-se como excluída ou marginalizada do núcleo
familiar, apesar de afirmar que deixa " mais da metade do meu salário em
casa, pago os meus estudos e tudo o que é meu, mas mesmo assim sou a
ovelha negra... ".
A relação estabelecida com o núcleo familiar torna-se ambíguo: de um
lado, a expressão econômica da solidariedade, "deixo mais da metade do
meu salário em casa", do outro lado, a expressão psicológica da
solidariedade da família para com ela, através da falta de compreensão de
seus sentimentos, que a fazem sentir-se como "a ovelha negra" da família.
Sem esquecer um terceiro lado, que é o de ser atribuída de falta de
sentimentos, de insensível, pelos familiares e, às vezes, sentir-se como tal.
O jogo difícil e tenso estabelecido entre ela e seus familiares mais
próximos, reforça a marca da ruptura causada pela morte do pai na sua vida,
e seu recolhimento para dentro de si mesma, com suas mágoas, por não ser
entendida em seus sentimentos e formas de expressão pessoal, e em sua
solidariedade possível para com a família. Amplia o seu olhar sobre o
preconceito familiar a que se diz vítima, e o seu olhar sobre si mesma, às
vezes com benevolência, às vezes com um misto de insegurança em
pensar-se talvez ser o que os outros membros da família pensam que ela é.
Através dessa trama refaz a trajetória e vê os outros pelo preconceito que
ela acha que têm, os olhando desse modo, e de quererem podar a sua vida
e a sua liberdade. Através do olhar o preconceito dos outros mede a
extensão dos sentimentos deles e, consequentemente, o seu.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
225 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Ao referir-se ao conflito que travou logo após a morte do pai, quando
decidiu ir morar com o namorado, por exemplo, faz uma comparação entre
os tempos da casa e dela, e, mesmo sem dizer em palavras dá a entender a
medição que busca estabelecer. O tempo da casa é um tempo de
preconceito, um tempo onde, se um não faz o que os demais pensam ser
certo estão condenados. Um tempo referido e que tem por referência aos
demais, aos de fora da casa, e não a um real sentimento pelo pai que se foi.
O tempo pessoal, da entrevistada, por outro lado, aparece com um
outro significado. Surge com um sentido mais individual, mais subjetivo e
íntimo, e por conseguinte, mais profundo. Nele, a dor real, existindo na
intimidade de cada um, não pode ser expressa através de um tempo e de
uma forma de agir delimitados pelo preconceito social. Não!
A forma como a família encara o seu comportamento, querendo privá-
la da liberdade e enquadrá-la como uma figura má e sem sentimentos, é que
para ela é superficial e tosca. Movida pelo o que os outros vão pensar e não
pelo que realmente sentem.
Ela constata isso, ao afirmar a necessidade de preservar a "imagem
do meu pai, que mal acaba de falecer". Ela assegura isso, também, ao
afirmar o desgosto e a vergonha por ela causados a toda a família, segundo
seus irmãos, pelas suas "atitudes inconseqüentes". Ela, ainda, averigua isso
no afirmar a atitude leviana, segundo os seus familiares, da entrevistada, por
sair de casa para ir morar com o namorado, "sem dar tempo para sequer
meu pai esquentar a cova", ou, também, "que eu não respeito o luto dos
outros, que se eu pelo menos tivesse dado um tempo da morte do pai para
fazer as minhas loucuras, e por aí vai...".
Os tempos dela, individual, e da família, social, se colidem nas formas
de entendimento e expressão do luto de cada parte, o que parece provocar
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
226 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
mágoa no discurso da entrevistada pela maldade ou inconseqüência que a
família quer a ela imputar, pela saída de casa logo após a morte do seu pai,
"como se", ela afirma, "existisse um tempo para cada coisa, como se o
tempo não fosse o tempo de cada um".
O mundo privado e o mundo social, ao se chocarem
permanentemente, e de forma intensiva, após a morte do pai da
entrevistada, parece ter criado momentos de redefinição na sua pessoa, que
se sente estigmatizada e que estigmatiza, ao mesmo tempo, os outros ao
seu redor. A mistura dos dois universos torna-se, cada vez mais, tenso e
conflitual, visto sob um prisma de disputa de espaços, e de onde cada
batalha é sentida como um elemento de liberdade e individualidade perdida,
ou na expressão da entrevistada ", mas depois penso que estou entregando
os pontos e fico na minha...". Embora a falta de compreensão a incomode, e
sinta falta do tempo em que o pai era vivo, e existiam mais harmonia e
compreensão familiar nas formas de expressão de cada um.
Nos três depoimentos referenciados, a dificuldade de saber como agir
perante o social, faz com que a ambivalência tome conta do comportamento
pessoal de cada um, verificando o outro da relação e a si mesmo como parte
de uma estratégia de condenação a que todos estão sujeitos e submetidos.
Quer pela não aceitação das regras do jogo social para cada situação
específica, quer pelo paulatino desmonte e descrédito atual das antigas
formas, quer, ainda, por ver o mundo em transformação degenerando as
gerações e as tornando mais insensíveis e presas ao imediato. Quer,
também, pelo sentimento de discriminação sobre a condição ou escolha
pessoal de cada sujeito, ou de outras possibilidades possíveis de verificação
da ação social.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
227 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
O que parece aumentar a solidão, a desconfiança, e a falta de
compreensão dos entrevistados, bem como as mágoas, o receio, o medo do
outro. O que aprofunda o campo de disputa entre as partes, e o
individualismo nas formas de agir. O eu configura-se como um espetáculo do
sofrimento, e de sua negação simultânea, enquanto uma busca exacerbada
de autodefinição e liberdade de ação imediata. Do indivíduo sobre a
sociedade.
O tempo ideal do luto fica, assim, ao que parece, ao sabor da disputa
e da visão desta disputa no olhar e na experiência de cada um. Com o
rompimento das regras e formas rituais, deixam de se apresentar como uma
unidade por onde se pode pensar o social. Este conjunto de valores passa a
ser visto e sentido através da ótica pessoal e da vivência íntima e da curva
de vida de cada um. Embora cada um desses indivíduos tenha dúvida do
seu lugar, ou se o lugar que hoje ocupa continua sendo o certo, ou o modo
certo de agir.
O que só faz ampliar a solidão, o mascaramento das emoções, a
vergonha e a culpa pessoal no enfrentamento do outro ou de determinadas
situações no social. O que pode ser tomado, aqui, como uma tendência das
camadas médias urbanas no Brasil de hoje.
Os Sentidos do Luto
Os entrevistados e os que responderam ao questionário padrão foram
confrontados, mais uma vez, sobre os sentidos que atribuíam ou que
achavam compor o processo de luto no Brasil de ontem e de hoje. Suas
respostas e narrativas, construídas a partir de um imaginário criado em um
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
228 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
contexto cultural e social específico e ao mesmo tempo de muitas vozes,
mostram a ambivalência e a polaridade com que conseguem pensar os
sentidos e significados das expressões do luto, no ontem e no agora da
sociedade brasileira.
É na relação com os outros que os informantes constróem as suas
narrativas, mesmo com o tom de uma interpretação, completamente
pessoal. O que demonstra a curva de vida de cada informante particular e os
impasses e conquistas vivido e sentido como seu, no interior de um
processo cultural e social mais vasto.
Burkitt (1997, p. 44) afirma que o conflito emocional não nasce de
estados interiores de ambivalência, mas de contextos sociais que são, eles
próprios, ambivalentes ou preenchidos com conflito. Deste modo, para o
autor, uma pessoa pode pensar as emoções de uma maneira própria, e essa
maneira única ter sido construída socialmente e possuir um significado
somente no contexto social específico que foi produzida e que foi por ela
experimentado.
Citando Elias (1990), acrescenta que as relações entre as pessoas e
os sentimentos a elas associados são partes dos processos de interação.
Processos compostos, simultaneamente, de um complexo de gestos, sinais
e movimentos corporais. Todos eles fazendo parte da mesma ação
comunicativa, juntamente com as relações, as experiências e os sentimentos
sociais. É a rede, é a interligação entre as diversas interfaces de um mesmo
ato, deste modo, que constrói uma experiência emocional (Burkitt, 1997, p.
45).
Ao se considerar as diversas definições apresentadas pelos
informantes que responderam ao questionário padrão sobre os sentidos e
significados do luto do passado e de agora, se pode perceber, através do
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
229 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Quadro n. 32, que 81,13% relacionaram o sentido atual do luto contraposto
com as expressões do passado. Para estes, a visão do passado traz uma
certa nostalgia do olhar, quando percebem o trabalho de luto como melhor
compreendido e ajustado a padrões ritualísticos de instâncias
desindividualizadoras, presentes e aceitos, então, pela maioria da população
brasileira.
Três categorias expressam a opinião destes 81,13%. Estas categorias
são as seguintes: "Respeito Pelo Morto E Pelo Luto", "Sentimentos
Comunitários" e "Integração".
A primeira, informa que no passado recente brasileiro havia mais
"Respeito Pelo Morto E Pelo Luto", com 47,85% das respostas. A segunda
categoria, afirma que outrora os "Sentimentos Comunitários" eram mais
fortes, com 13,32%, e, por fim, a terceira, fala da existência de uma maior
"Integração", com um percentual de 13,96% do total dos informantes que
conduziram a resposta ao passado, para entender como no presente
sentiam o sentimento do luto no Brasil.
As afirmações de sentidos presentes nas três alternativas postas
pelos informantes para expressão do sentimento do luto, levam a uma
espécie de idealização do passado brasileiro como mais coeso, mais
integrados, de sentimentos comunitários, com mais respeito ao morto e pelo
sofrimento social expresso no e pelo luto. Falam, deste modo, na ritualização
da vida comunitária e no comportamento mais regrado das pessoas
envolvidas, de acordo com a credibilidade das instâncias
desindividualizadoras que pareciam gerir a vida de seus habitantes.
Hábitos e costumes, bem como valores e aspirações sociais são
evocados para falar de um tempo e de um lugar, perdido ou a esvanecer-se
no Brasil atual. Lugar onde, na narrativa e respostas dos informantes,
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
230 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
existiam um sentimento e um sentido moral mais forte do que os indivíduos
que os faziam ajustar-se aos ritmos da cultura e da organização social local.
Os ritos de passagem canalizavam o processo individual de cada um
para uma espécie de cartase (DURKHEIM, 1996) vivida socialmente. Onde o
sofrimento causado pela morte do ente querido parecia ser regrado pela
sociedade e experimentado, em diferentes níveis, por toda a comunidade de
onde o morto fazia parte.
As três categorias, assim, falam de maior respeito ao morto e à morte.
Descrevem, também, os sentimentos comunitários e o espírito de
integração. Expressam um estado de espírito idealizado onde o luto era
vivido, pelo menos no imaginário destes 81,13%, através de uma presença
forte do social e dos significados morais atribuídos ao rigor e ao respeito aos
ritos de passagem que faziam parte dos processos da morte e do luto na
sociedade brasileira de ontem.
Yhuel (1995, pp. 76 a 93), em seu artigo "Emmène-Moi au
Cimetière84", que reúne um conjunto de depoimentos sobre trabalhos de luto
desenvolvidos por diferentes pessoas de origem francesa, de distintas
categorias e vivências sociais, divide os depoimentos em tipos categoriais de
luto experimentado por cada depoente.
Para ela, as narrativas expostas no seu artigo se encontravam
distribuídas por vários modos de vivência do enlutamento. Para cada um
desses modos ela propôs uma categoria, e dividiu os trabalhos de luto
apresentados em cinco categorias: a do Luto Impossível, a do Luto
Ritualizado, a do Luto Recusado, a do Luto Como Uma Pele, e a do Luto
Como Um Inflamar.
84
Tradução: Leve-me ao Cemitério.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
231 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
A segunda categoria, a do Luto Ritualizado, expõe um trabalho de luto
dentro dos padrões e rigores de uma sociabilidade regrada por hábitos,
costumes e valores coletivizados. As expressões do luto de alguém, ou de
uma família são experimentadas por toda uma comunidade, que vive o ritual
intensamente, e ajudam uns aos outros na dor da perda. O que possibilita à
família, ou aos entes que ficam, um revigoramento de sua própria
participação social e uma reintegração ao cotidiano mais fácil, pela
cooperação e participação de toda uma comunidade no seu processo de
luto.
Este tipo de vivência do luto parece ser o mesmo idealizado pelos
81.13% dos entrevistados, que viam o processo de luto no passado recente
brasileiro como mais integrativo e com valores morais e comunitários mais
densos. As outras quatro categorias de luto apontados no trabalho de Yhuel,
referem-se, por seu turno, à experiência individualizada da perda, que
parece fazer parte da maior parte das camadas médias na França.
Estas quatro categorias falam da impossibilidade e da recusa de
vivência do luto, ou do luto impregnado nas entranhas do ser em sofrimento,
ou como um inflamar, uma forma de nova consciência adquirida pela morte
do ente amado. Todas vividas na interioridade do sujeito que as
experienciam e todas conclamadas como uma marca de eternidade que
tocou e transformou a vida pessoal de cada um daqueles indivíduos em dor.
Todas vistas a partir de uma dificuldade de compartilhamento do
sofrimento com um outro social ou com uma instância ou instituição
desindividualizadora. O que aumenta consideravelmente o sofrimento
pessoal e a solidão de cada um, através de um estranhamento para com o
social. Movimento de estranhar que implica, sempre, em um maior
distanciamento do indivíduo que sofreu a perda do social, ou em uma recusa
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
232 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
deste mesmo social. Ou, ainda, que leva o indivíduo para um despertar de
uma nova consciência, na qual passam a agir e remontar o seu sofrimento a
partir de um sofrimento social mais amplo.
Este individualismo nas formas de individuação experimentadas pelos
indivíduos nos processos de luto, fazem contraste agudo com a forma do
luto ritualizado em extinção. O último compondo-se, prioritariamente, de
instâncias comunitárias na regência do processo integrativo da pessoa, e no
administrar o sofrimento pessoal do enlutado, o fazendo parte integrante do
processo societário mais geral.
As quatro primeiras categorias de Yhuel exprimem um processo de
isolamento do sofrimento de cada um como uma dor internalizada e não
societária por excelência. O que parece dificultar o trabalho individual de
luto.
No árduo processar-se, cria marcas individuais em cada indivíduo que
vive um trabalho de luto, e revela formas de ação a partir da própria
experiência individual enquanto sujeito em dor. O social aparece, deste
modo, como um outro distante e estranho, que discrimina e isola ou que
provoca vergonha e ressentimento nos enlutados.
Estas categorias apontadas por Yhuel, assim, parecem coincidir com
o processo de idealização de um passado recente imaginado pelas camadas
médias urbanas no Brasil, sobre o processo de luto. Ao idealizarem, estão
ponto em contraste o isolamento vivido ou que verificam em crescimento
acelerado nas relações societárias sobre o processo de luto no país.
O destaque dado ao passado por estes 81.13% dos informantes,
parece refletir o refreamento pessoal, através da interiorização do
sofrimento, a pulverização de laços sociais e a vergonha de enfrentamento
público, nas relações societárias do luto, no Brasil de hoje. Afigura
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
233 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
demonstrar, também, a incapacidade de uma reintegração ao social, após a
vivência do luto, ao mesmo tempo que uma idealização de um tempo onde a
integração era possível e desejada.
Diferente dos demais 18,87% dos informantes. Para estes, o processo
de luto hoje em dia, nas relações societárias do Brasil urbano, difere
positivamente, das relações do passado. O trabalho de luto hoje, para eles,
parece ser vivido com mais liberdade, e com uma maior intensidade de
sentimentos, que no passado recente brasileiro.
As duas categorias com que expressam a positividade do luto no
presente brasileiro, para estes informantes, são as de: "Existe Mais
Sentimentos", com 9,36% e "Existe Maior Liberdade", com 9,51% das
respostas. A primeira categoria refere-se aos sentimentos expressos no
passado como falsos, encobertos por uma aparência moral contida nas
regras de etiqueta rígidas das formas sociais de luto vivenciadas pelo
brasileiro de classe média de antigamente.
O passado, ao regrar, normatizar e domesticar as ações individuais
do luto no imaginário destes informantes parece agir como uma instância de
constrangimento ao crescimento da individualidade, das expressões das
emoções e da liberdade de ação dos indivíduos. Aparece como uma
instância de negação da expressão individual e, enquanto tal, de inibição e
refreamento das condutas a etiquetas que falsificam o sentimento em prol de
uma admoestação ou censura comportamental.
O indivíduo colocado em conflito, tencionado, diferente e único frente
ao social parece ser a idéia em que se assenta o imaginário destes
informantes. Vêem, assim, a sociedade e os outros da relação como
depositários e introdutores de uma igualidade que "barra o caminho da auto
realização ou do avanço da personalidade individual ... (já a sociedade, por
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
234 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
sua vez, é) composta de uma massa inerte de pessoas obscuras e
indistinguíveis que ameaçam empurrar a todos para um mesmo nível
inferior" (Elias, 1994, p. 75).
Ao mesmo tempo que, no conflito estabelecido com o social, vêem a
si próprios como determinação da própria vida e dos próprios atos e,
contraditório e simultaneamente, como seres introspectivos e solitários, e
carentes de compreensão. Do mesmo modo que almejam e celebram a
liberdade pessoal e da expressão e maior intensidade de sentimentos,
sentem falta de uma audiência em que possam expressar as suas emoções.
O refreamento dos afetos no público, desta forma, no padrão social
atual informado por estes 18,87% dos entrevistados, é sentido como
expressão das dificuldades de comunicação com o outro. Ao enfatizarem a
não importância do outro para expressão dos sentimentos, e de que cada
um pode e deve viver as suas emoções como bem desejar, parecem cair na
expressão individualista da ação social, onde apenas o valor mercantil da
troca tem sentido.
Os sentimentos e afetos, deste modo, perdem o poder de
comunicabilidade e, ao deixarem de ser comunicáveis, parecem perder o
sentido. O que amplia o sofrimento individual, a solidão e as dificuldades de
ação dos indivíduos no cotidiano. Afigura-se, deste modo, no aprofundar as
marcas pessoais de cada um, que passam a comunicar-se com os outros
através de um distanciamento social, cada vez mais, amplo, e com uma
ansiedade de descoberta ou de serem descobertos, intensos.
Conclusão
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
235 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
O presente capítulo procurou compreender a relação social do luto no
momento de transição social por que passa o Brasil contemporâneo. Buscou
enfatizar, através das narrativas dos informantes, os aspectos ligados ao
lado mais social e a importância deste para o trabalho pessoal de luto de
cada indivíduo social.
Discutiu o luto como demonstração social, e como uma forma de
diferenciação social da família para com a sociedade como um todo. E o
lado sentimental, e os realces dos aspectos positivos do processo de luto no
Brasil de outrora, vistos por uma parcela dos informantes. Estes, em uma
comparação com o presente, enfatizam a individualização do processo de
dor na subjetividade do sujeito que a sofre, na experiência atual.
Discutiu, também, a expressão de outra parcela de informantes, para
os quais o luto hoje, na sociedade brasileira, tem-se revelado como uma
experiência mais salutar do que a do passado recente. Neste caso, foram
apontadas a individualidade e a subjetividade como fundamentos de
liberdade e expressão pessoal na vivência do luto, contrapostas com a
presença mais forte da sociedade no controle do luto de seus membros.
Esta última foi enfatizada, nas respostas dos informantes, através da visão
sobre uma possível hipocrisia das relações sociais e da solidão do indivíduo
no social.
A solidão é sentida pelos entrevistados a partir de uma postura de
olhar que entende o indivíduo acima da sociedade. Que sente o indivíduo
individuado ou em processo de individuação no trabalho de luto, ou no
sofrimento por ele causado, sobre as regras sociais, ou seja, como o
despontar do indivíduo enquanto ser subjetivo, privado, e oposto ao público.
Esta modernidade da individualidade do sujeito frente ao social
afigura-se por situar melhor a dor da perda nos mecanismos da
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
236 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
rememoração dos laços com o falecido ou por ele facilitados, e da memória
afetiva do morto com relação à família e à sociedade, recompondo, desta
maneira, a expressão da importância e da permanência do valor da
instituição familiar. Ao mesmo tempo que parece enfatizar as marcas da
instabilidade e do não saber situar-se perante as novas regras do jogo
social. O que amplia as margens de insegurança do agir, e o sentimento de
culpa do não saber como comportar-se perante a ruptura que irrompe com o
sofrimento e com o inconformismo pela situação experimentada.
O constrangimento pessoal para assumir formas de expressão pública
do luto, as relações estabelecidas com o núcleo familiar, e a falta de
compreensão dos sentimentos, parecem provocar uma ruptura e ao mesmo
tempo a emergência do indivíduo sobre a sociedade. O processo do luto
ficando assim, ao que parece, ao sabor da disputa, e da visão desta disputa,
no olhar e na experiência de cada indivíduo, ao relacionarem o sentido atual
do luto contraposto com as expressões do passado.
Um distanciamento da pessoa no social e, ao mesmo tempo, a
ansiedade de ser encontrado e satisfeito por alguém ou alguma coisa
idealmente perdida em algum lugar do passado, que não se sabe bem o
que, ou onde perdeu-se, parecem ser as conseqüências mais visíveis,
apresentadas pelos informantes, no decorrer deste capítulo. O que vem se
configurando em um movimento que só faz aumentar as dificuldades
encontradas de exposição do sofrimento, ou da solidariedade nas relações
sociais do luto, bem como, o de não saber agir e o constrangimento e a
vergonha, associado da culpa, deste ou por este desconhecimento.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
237 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Conclusão
"Com o avanço da civilização a vida dos seres humanos fica cada vez mais dividida entre uma esfera íntima e uma pública, entre comportamento secreto e público. E esta divisão é aceita como tão natural, torna-se um hábito tão compulsivo, que mal é percebida pela consciência" Norbert Elias (1990, pp. 188). "O que está na origem do luto é a impressão de enfraquecimento que sente o grupo quando perde um dos seus membros" Èmile Durkheim (1996, pp. 440).
Este livro buscou compreender as atitudes em relação ao fenômeno
do luto no Brasil. O processo de luto foi compreendido como uma relação
social, como uma demonstração social, e como uma forma de diferenciação
social do indivíduo em sofrimento para a sociedade como um todo.
O ritual do sofrimento provocado por uma perda foi o ponto de partida
e de término desta reflexão. O significado social do luto e o processo de
individuação de quem o sofre, no comportamento e nas atitudes das
camadas médias urbanas que vivem nas capitais dos estados brasileiros, foi
o seu principal objeto de análise.
A descrença nas fórmulas rituais de sujeição social da dor pessoal de
quem sofre uma perda, e da integração do morto às malhas do social,
através de uma série de ritos de passagem. O impedimento tácito à
expressões intensas de sentimento, e o modo higiênico no trato do morto,
foram tomados aqui, como exemplos de mudança nas antigas práticas e
relações sociais em torno da morte e do luto nas sociedades de tradição
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
238 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
ocidental. Este livro buscou analisar as relações sociais brasileiras através
deste legado.
Neste livro, os códigos do luto e da morte foram apreendidos no seu
processo de mudança. Partiu-se da hipótese de que a morte e sua relação
com o mundo dos vivos no Brasil atual parece ter sido capturada por códigos
mais individualistas e não mais através de expressões de uma sociabilidade
relacional.
No conjunto das relações sociais da atualidade brasileira, a tendência
parece ser a de uma reprovação ao luto público, como se o sofrimento
pessoal de uma perda poluísse o social e contaminasse os demais com a
presença da morte e do sofrimento alheio. O sofrimento causado pela perda
e o processo de internalização do morto em um indivíduo, que compõem o
trabalho do luto, vem configurando-se, nostalgicamente, em um caminhar
para uma vivência unicamente privada. Para uma realização, ou para um
realizar-se, apenas, na subjetividade dos sujeitos que a vivenciaram, como
uma relação individual e, deste modo, não social.
O sentimento de fracasso e a expectativa de desilusão dos indivíduos
no ritual introspectivo do sofrimento, vem impondo códigos de naturalização
e de anonimato à morte. O que evidencia uma fragmentação dos
sentimentos coletivos, e se expressam pelo receio social de contaminação e
através da vergonha de sentir-se enlutado.
Efeitos de decepção e engodo, o sofrimento do luto, constrangido e
envergonhado no interior do sujeito, afigura-se por revelar-se como nostalgia
do ausente. Parece estabelecer-se como um universo do silêncio e solidão.
Universo configurado em um tempo e em um espaço singular e solidário,
perdido na memória individual do enlutado.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
239 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Para compreensão deste fenômeno, procurou-se percorrer os
caminhos que entrecruzam a Psicanálise e as Ciências Sociais, bem como
as formas por onde se dão os processos de elaboração e formação da
pessoa singular e da interação social, fundamentos da sociedade. O estudo
do fenômeno do luto, enquanto compreensão da dor da perda e do
sofrimento, como instâncias simultaneamente individual e social, faz parte
assim de uma Sociologia da Emoção, e busca fundamentar as bases da
experiência e da troca da pessoa na sociedade.
Este livro enfatizou, na revisão bibliográfica, a questão dos
sentimentos enquanto expressão social. Mergulhou, assim, na literatura
sobre as representações sociais da morte e do sofrimento causado pela dor
da perda. Embora, para melhor compreender as questões que nortearam a
pesquisa, foi preciso, também, realizar uma incursão histórica sobre o
processo de mudanças de atitudes e de mentalidades em relação à morte e
ao luto no país, e no mundo ocidental do qual faz parte.
O objetivo central deste trabalho foi a compreensão das atitudes
recentes em relação ao fenômeno do luto no Brasil. Como objetivos
específicos, procurou-se, entre outros, atentar, primeiramente, para o
entendimento de como foi internalizado, enquanto processo simbólico, o
significado social da dor no imaginário brasileiro. Em segundo lugar, tentou-
se compreender por quais mudanças tem passado o fenômeno da dor do
luto até os dias atuais no Brasil. E, finalmente, indagar sobre as reações a
vivência do luto, que tem sido enfrentadas pelos homens comuns, tendo por
referência as camadas médias urbanas que vivem nas capitais dos estados.
Interessou a este livro verificar o lado público do sofrimento de quem
fica, no momento seguinte imediato à constatação da morte. O entendimento
desse ritual solitário do sofrimento, e social da despedida, foi realizado
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
240 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
através do entrecruzamento de gestos, de expressões e de atitudes, em
constante movimento de mudança e permanência.
A construção social da dor e do sofrimento passou a ser entendida,
deste modo, através do emaranhado de ilusões e expectativas formadoras
do sujeito. E, também, pelo como a sociedade cria e estabelece os
processos integrativos necessários à sobrevivência do social a partir dos
indivíduos.
Uma primeira surpresa na análise dos dados levantados foi a
verificação de que não existe um processo de equivalência entre um maior
centro urbano e um menor número de respostas favoráveis a práticas
ritualísticas ligadas ao luto e aos processos da morte e do morrer, ou presas
à tradição, ou o seu contrário. O conjunto de respostas enviadas pelas
diversos centros urbanos brasileiros que compõem o universo desta
pesquisa, e capitais dos vinte e sete estados da nação, são muito próximos
nas suas indagações, inquietações ou indignações a respeito dos costume e
hábitos ligados à pratica do luto e da morte no país.
O que encaminhou o trabalho para o abandono da hipótese inicial e
para um novo tipo de indagação sobre o processo em que se debate a
população urbana brasileira em relação ao uso de hábitos e costumes e
suas representações ligadas ao ritual da dor e da morte. A apreensão dos
significados apresentados pelo conjunto das respostas indicaram
inquietações muito além das expressões de um ato individual em si, e
possibilitaram a realização de um mapeamento do sentimento brasileiro
sobre o luto e o morrer, bem como a elaboração de um roteiro compreensivo
para a análise da relação entre o luto e a sociedade no Brasil
contemporâneo.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
241 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Foi necessário se debruçar na análise de expressões emitidas por
regras de etiquetas, assim como das narrativas dos informantes, para
compreender a visão e o sentimento do fenômeno do luto, através da
criação de interseções entre o imaginário individual e social, e das
mudanças sociais e comportamentais experimentadas no trato da morte e do
morrer no Brasil urbano. A mágoa e a inquietação quanto a falta de
solidariedade ao sofrimento de quem sofre uma perda, a recusa ou a
expressão discreta de condolências, e o ritual solitário do sofrimento no
processo do luto, configuraram-se na realização de um movimento
nostálgico de individuação, no Brasil atual.
Movimento onde se misturam, de um lado, a perda de sentido do
mundo e, do outro, o sentimento difuso de exclusão social. O que parece
ampliar o refreamento das ações de partilha e o mascaramento do
sofrimento em quem fica.
O estranhamento da demonstração da dor e do sofrimento em
público, desta maneira, parece vir se consolidando como tendência de
universalização de uma nova sensibilidade no trato das emoções,
particularmente do luto, no Brasil atual. A exposição pública do sofrimento
vem se realiza, assim, tecida por uma condenação velada do sofrer em
público.
No conjunto das relações pessoais a tendência atual é a de uma
reprovação tácita ao luto expresso publicamente, como se a dor causada
pelo sofrimento pessoal de uma perda contaminasse os outros com a
presença da morte. O sofrimento e o processo de introjeção do morto em si,
que compõem o trabalho de luto, situam-se, cada vez mais, como
subjetividade, e como uma espécie de império da memória pessoal do
enlutado. São encobertos socialmente pela vergonha da exposição pública,
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
242 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
como uma forma de intimidade, ou como uma expressão íntima e privada,
que, ao mesmo tempo que recusa o outro, busca e sente falta da expressão
social da solidariedade.
O papel da emoção vergonha na conformação da sociabilidade
moderna e contemporânea no Brasil, aparece e se constitui, deste modo,
recheado de ambigüidades. Parece emanar através do confinamento das
emoções na pessoa, banindo os afetos do social para o âmbito do segredo.
Constitui-se, assim, através da imposição no indivíduo de uma postura
reservada perante as emoções, e da exigência de um caráter desconfiado e
mantido sob auto controle. Na confusão das formas de expressão
contemporânea deste sentimento de vergonha no Brasil, o auto controle é
visto, muitas vezes, e assumido, como culpa pessoal dos indivíduos em
sofrimento.
É esperado, assim, dos sujeitos tocados pelo luto, uma forma de agir
discreta. Discrição, dos mais íntimos, à perda dos que sofreram um luto.
Discreto, também, deve ser, o comportamento do enlutado nos diversos
trâmites socialmente valorizados de despacho do corpo e da expressão de
sofrimento público no processo de despedida (velório, enterro, missa de
sétimo dia, etc.).
Este caminho apontado de individualização, parece ser a tônica
moderna do processo de luto no Brasil urbano. A indiferença e o fingimento,
associado ao anonimato e à banalidade no trato público da morte, fazem
parte da experiência contemporânea do luto no social. Processo de
sofrimento e de interiorização da perda que se vê jogado para a intimidade
do sujeito, que passa a vivenciá-los na solidão, aumentando o sentimento
individual de exclusão social.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
243 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
O choque entre uma tradição relacional de um passado recente e de
uma profunda descaracterização dos costumes e processos integrativos do
urbano moderno parecem, assim, dar mais ênfase à falta de lugar no social,
à não cidadania e à solidão do homem comum de classe média brasileiro. A
economia moral do sofrimento pela perda, na sociedade brasileira de hoje,
configura-se na passagem pelo eclipse do sofrer. Retira a emoção do social
para o íntimo, como uma forma de deter os efeitos da individuação de quem
sofre a privação e dos perigos que tal processo representa para o social.
Enfatiza, deste modo, as relações mercantis do individualismo,
movimentadas pela idéia do ser discreto enquanto conduta do
comportamento civilizado.
As regras sociais parecem, desta maneira, passar a viger apenas no
sentido mercantil, através do individualismo que nega a individuação como
processo interativo da pessoa na sociedade. A tendência da nova
sensibilidade emergente no Brasil, como vem sendo construída socialmente,
se forma através da resignação ao social, como o constructo possível do ser
moral na modernidade.
A idéia do fracasso e da desilusão do sujeito no ritual introspectivo do
sofrimento, impõem códigos de naturalização e de anonimato à morte e ao
processo social da dor. O que parece evidenciar uma fragmentação dos
sentimentos coletivos e uma expressão de um vago receio e vergonha de
sentir-se enlutado ou solidário. Afigura-se, deste modo, no condenar o
trabalho de luto a realizar-se como unicamente desilusão do mundo, ou
como uma conotação solitária de um sujeito em descompasso, em seu
sofrimento, do social.
Efeito de decepção e engodo, o luto pessoal do sujeito que sofre uma
perda, como conseqüência de sua subjetivação e falta de expressão no
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
244 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
social, e pela ambivalência resultante na vergonha como individuação e a
reprovação e o estranhamento público, parece vir sendo constituído,
enquanto tendência, em um delírio de expectativa. Intercessão entre o
desespero e o tédio, a dor da perda subjetivada e sem expressão no social,
reproduz-se como ausência de projeto.
A individualização crescente das relações sociais no Brasil atual, vem
afigurando-se na tendência de um refreamento do processo de individuação
do sujeito que sofre a perda, através do mascaramento da dor do sofrimento
e da morte. Essa tendência social de escamoteamento da expressão pública
dos sentimentos e a valorização da interiorização, enquanto espaço da
intimidade, do privado, ou da subjetividade, cria uma pré disposição
permanente no indivíduo à desconfiança no outro, e por extensão, no social.
Parece tender a ser administrado socialmente através do princípio do
desempenho. Como informou Marcuse (1968), em seu estudo sobre a
formação do indivíduo na sociedade industrial, a necessidade do bom
desempenho deve suplantar as questões dos sentimentos, tratados na e
pela lógica mercantil como pertencentes à esfera do privado, ao espaço da
intimidade.
A vergonha da demonstração pública do sofrimento ou da
solidariedade, ou o não saber o que fazer com relação aos afetos alheios,
parecem vir se constituindo em uma espécie de automatismo das relações
societárias, e pelo afastamento ou abandono do sujeito de sua perda. A
experiência da perda afigura-se, deste modo, no constante transformar em
vazio todo o processo de vida e criação.
Através do princípio de desempenho amplia-se e estende-se a
tendência de uma negação de si próprio e dos outros em relação. Amplia-se,
assim, o espaço da solidão, pela instrumentalização das ações que
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
245 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
mobilizam as relações mercantis, através da concorrência. A nostalgia, ao
mesmo tempo que aprofunda-se na subjetividade, desloca o mesmo ator do
social, através da dicotomização entre o público e o privado.
A emergência do indivíduo no Brasil de hoje parece vir se fazendo
pela negação das práticas relacionais, e pela emergência do individualismo.
A ambivalência das atitudes individuais perante o morrer e a dor quase física
da privação parece, deste modo, ser enfatizada, nesse processo de
dessacralização dos processos integrativos da pessoa na sociedade.
Constrangida ao interior do sujeito, este passa a relacionar-se e movimentar-
se publicamente através da indiferença.
O processo de distanciamento do sentimento exclui qualquer emoção.
Mesmo a emoção advinda em forma de culpa, no indivíduo que sofreu a
perda, no processo racional de interação social. A individualização obtida
pela indiferenciação, deste modo, e pela negação da individuação enquanto
processo social, repõe o sujeito em si, no social, como psicologia, e o
processo de individuação é sentido, a partir de então, enquanto processo
privado.
A crescente descrença nos rituais sociais de integração do sujeito em
processo de individuação, que parece tomar conta do modo de ser brasileiro,
hoje, e a individualização emergente, coloca em discussão a questão da
fragmentação da pessoa enquanto indivíduo em sociedade. O indivíduo,
assim, parece recusar as regras relacionais tradicionais, simultaneamente ao
fortalecimento de um sentimento de insegurança e de incapacidade de tomar
posições, no interior de regras higiênicas aos moldes do mercado.
O individualismo no Brasil, desta maneira, parece que vem se
constituindo através do controle social dos processos de individuação. As
emoções tidas como fundamento do indivíduo enquanto instância privada,
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
246 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
são apropriadas socialmente como expressões do desejo e tratadas como
relações mercantis próprias ao consumo, ou como questões específicas do
individual85.
A pulverização da pessoa vem se fazendo através da fragmentação
de papéis sociais e da tendência para uma radicalização do individualismo
nas relações sociais. O processo de escolha recai, cada vez mais,
radicalmente, sobre os indivíduos. O desempenho, por sua vez, parece ser
visto como um produto da desilusão sempre renovada do encontro entre
dois mundos, o privado e o público, e da indiferença dele resultante.
Ariès entende por morte interdita o processo através do qual se institui
no social contemporâneo a cultura mortuária na sociabilidade
contemporânea. A espoliação do moribundo, a simplificação do ritual
funerário, e a recusa do luto faz parte desta instituição.
No processo contemporâneo de interdição, a morte parece ter-se
tornado um tabu, que não se deve falar em público nem tampouco obrigar
aos outros a fazê-lo. O processo de privatização da morte e do morrer foi se
instalando paulatinamente no Brasil do século XIX, através de uma
separação da idéia do destino do cadáver e do destino da alma. A
sensibilidade do homem do final dos oitocentos parece ter mudado para uma
85
Muitos entrevistados falam do medo de morrer sem ter um lugar para ser enterrado. Os mais velhos demonstram esta preocupação com o desejo de adquirir um terreno em um cemitério, para construir um mausoléu para si e para sua família. Estas questões também foram mencionadas pelos entrevistados no estudo de Ferreira (1995), sobre os processos de memória e de identidade social na velhice. É interessante perceber, também, a propaganda que vem se estabelecendo no Brasil contemporâneo sobre o lugar para a última morada. Muitos cemitérios tem aparecido recentemente, em muitas capitais brasileiras, e o apelo da propaganda para um lugar saudável, limpo e bonito para o estabelecimento da última morada é enfatizada em comerciais televisivos, ou em propaganda impressa, mostrando o conforto para os que lá são enterrados e um ambiente de paz e lazer para os que ficam.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
247 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
nova forma menos apegada aos domínios do sagrado e mais ligada às
coisas profanas.
A instância desindividualizante do acreditar-se na morte e no morrer
como passagem para uma outra vida, já não credibiliza a existência de uma
outra vida como fé. Já não minora completamente a dor ocasionada pelo
sofrimento e pela experiência da perda, através da sua ritualística, através
da fé pessoal de cada um.
A ambigüidade nas relações e nos sentimentos expressos afigura-se
em ser, assim, o eixo central por onde deve ser pensada as relações de
sociabilidade no Brasil do século XXI. A discrição parece movimentar a ação
imaginária dos informantes, sobre o papel comportamental de um indivíduo
em sofrimento. No final do século XIX , o morrer e a morte foram retiradas
progressivamente do ritual público que as circundava. Este afastamento foi
movido, em parte, pelo medo causado pelas epidemias que tomaram de
assaltos as cidades brasileiras nas últimas décadas do dezenove, e pelo
discurso das autoridades sanitárias de controle à saúde pública e pessoal.
A tradição de guardar, velar e sofrer pelos seus mortos sob uma
regência pública, bem como, o de dialogar com eles, ou mesmo, o esperar e
receber o apoio da sociedade para a superação do sofrimento e para a
completa reintegração no social dos enlutados, embora em declínio e menos
acentuada do que no final do século XIX, permaneceu por várias décadas do
século XX, até aproximadamente o decorrer dos anos de 1960, entre os
habitantes urbanos brasileiros.
As convenções de estilo, as formas de intercâmbio social, e um maior
controle social das emoções, expressos em um controle dos gestos, da
postura, do decoro corporal externo, do olhar, da expressão facial, entre
outras atitudes comportamentais, representam, contudo, a emergência de
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
248 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
uma nova economia de afetos, na cultura urbana brasileira dos últimos trinta
anos. Seja pela repressão das atitudes espontâneas de sentimento, ou seja
pela auto disciplina.
O análise do ser discreto em formação no Brasil, deste modo,
enquanto comportamento pessoal frente as expressões das emoções,
apresenta-se como a espinha dorsal por onde se pode compreender a
construção social do indivíduo urbano brasileiro de classe média, hoje.
Constrangido em seu sofrimento pessoal pela perda recente, ou pela
vergonha de não saber como demonstrar as condolências a alguém vitimado
pela dor, os indivíduos parecem sentirem-se incomodados pelas tentativas
de aproximação de um outro, desvendando-o e comprometendo o seu
espaço individual no social.
Este caminho vem se dando através do agir com discrição e como
uma espécie de dever ser moral para todos aqueles atingidos por uma
perda. Configura-se, também, pela busca da não intromissão na privacidade
do outro. Ambos os processos afiguram-se, deste modo, em espelhar um
tipo de comportamento pessoal desconfiado e, ao mesmo tempo, ansioso.
Parecem refletir uma atitude blazé, analisada por Simmel (1967) no
início do século XX. Atitude vista como uma forma de comportamento
pessoal distante, e composto por uma leve indiferença no olhar e no gestual,
do homem citadino na metrópole contemporânea, e pelo anonimato em que
parece satisfazer-se a afirmação da individualidade no momento de
consolidação do capitalismo.
A perda pessoal do sujeito é sentida, assim, através de um processo
de ambivalência das atitudes pessoais, resultante da vergonha pela
individuação a que um indivíduo se vê exposto, e da reprovação social ou do
estranhamento público. Como uma conseqüência, enfim, de sua
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
249 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
subjetivação e falta de expressão no social. Resultado da falta de esperança
e do sentimento de que algo esteja prestes a acontecer e eminente a
desabar sobre si.
Intercessão entre o desespero e o tédio, a dor da perda subjetivada e
sem expressão no social, parece reproduzir-se como ausência de projeto no
indivíduo em sofrimento, e tende a tornar-se melancolia.
O processo de individuação do sujeito que sofre a perda, assim,
através da busca de demonstração de uma indiferença para com as formas
culturais de representação da dor e da morte tradicionalmente usadas,
parece revelar uma tendência social no Brasil atual de escamoteamento da
expressão pública dos sentimentos. Compreende, também, a valorização da
interiorização dos afetos enquanto subjetividade. Além de criar uma
disposição prévia e permanente nos indivíduos à desconfiança no outro, e
por extensão, no social.
A relação entre a perda, enquanto sentimento moral, e o sofrimento
parece ter-se evidenciado entre os informantes, nesta pesquisa, como parte
da afirmação de que a perda, objetivada em objetos ou pessoas, provoca o
sofrimento em um indivíduo. A gradação na intensidade de sentimentos
envolvidos em uma perda específica, assim, se encontra em relação ao
conteúdo de posse ou de aproximação entre o sujeito que a perdeu e o
objeto ou pessoa perdida.
Emergiu, também, pela visão do sofrimento como uma conseqüência
da perda. Afigurou-se, neste caso, o espelhar o estado de fragilidade que a
pessoa que sofreu uma perda se encontra no momento de tomada de
consciência do que perdeu. O sofrimento, deste modo, se realizaria como
uma espécie de dor moral e física, e através da somatização de uma perda
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
250 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
objetiva no indivíduo. Ao mesmo tempo, como um sentimento de impotência
ante o objeto ou pessoa perdidos, e a conscientização desta perda em si.
A relação entre sofrimento e perda configurou-se, ainda, entre os
informantes, pelo estabelecimento de uma espécie de sentimento contínuo,
eterno, de algo perdido, reforçando, assim, um modo mais difuso de
expressão. Este modo de referenciar a relação entre sofrimento e perda,
parece expressar esta relação com a de um sentimento estilhaçado,
pulverizado e disperso no interior do sujeito. A perda passa a ser alguma
coisa presente, irremediavelmente enraizada no interior dos sujeitos, que
tende a ultrapassá-los pela plenitude e eternidade de sua constância.
A sua realização configura-se através da desilusão do mundo. O
sofrimento que informa ameaça, assim, ultrapassar a própria vida do sujeito,
exteriorizando-se em uma atemporalidade sem passado e sem futuro, e pela
presentificação contínua e repetitiva do não olvidar mas, também, não saber
ao certo o que e o como esqueceu.
O conformismo fantasmático e o ceticismo parecem assim serem as
formas de enfrentar o mundo, nesta relação entre a perda, o sentimento
difuso de perda e o sofrimento a ela inerente. O mundo sem confiabilidade, a
não ser a da confiança em não ter confiança legítima nas instituições e
coisas públicas da ordem social.
É a subjetividade do sentimento que melhor define para os
informantes o estado do luto. O indivíduo em sofrimento por uma perda de
alguém querido, é o ponto central da definição do luto. As relações com o
social aparecem como secundárias, por serem vistas como públicas e fora
do sujeito. A polarização do Brasil urbano, sobre as noções de luto
demonstra a ambigüidade e a dificuldade da vivência do trabalho de luto na
sociedade brasileira atual.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
251 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
De um lado, o estranhamento e o distanciamento parecem fazer parte
da experiência do luto nacional. De outro lado, a perda progressiva da força
da simbologia e da tradição das instâncias desindividualizadoras no Brasil,
desde os anos de 1970, parece ter provocado também seqüelas naqueles
que ainda hoje a advogam. A experiência tradicional do luto não parece,
hoje, permitir uma vivência em coletividade do processo de enlutamento, ou
esta coletividade não tem mais o vigor de aquietar as tensões e conflitos
resultantes da experiência da perda de um ente querido nos indivíduos nele
envolvidos.
As relações sociais do luto passam assim a serem mantidas com a
máxima discrição possível. Tanto na brevidade das visitas e nas formas de
demonstração de solidariedade, quanto no distanciamento tático, nas
relações sociais. Ou mesmo, porque as instituições coletivas de apoio não
mais possuem a legitimidade de assegurar o conforto necessário para a
introjeção do corpo morto e para a saída do luto.
Encarado em sua forma introspectiva, ou na forma de tradição cultural
e social, o luto parece ser vivido na atualidade das relações sociais da
sociabilidade urbana brasileira, como um processo solitário. Na solidão dos
sujeitos que o experienciam.
As queixas crescentes relativas ao estresse da vida cotidiana na vida
das capitais dos estados, bem como o aumento crescente do sentimento de
depressão e insatisfação consigo próprio, parecem estar associadas a este
processo ambíguo de autopoliciamento e de vontade de exposição. De uma
vida pública para uma vida privada onde o espaço íntimo, ao mesmo tempo
que cresce e se expande torna-se, também, um elemento de exclusão
social. Uma forma de exclusão da subjetividade do espaço social e público
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
252 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
onde se desenrolam as ações repetitivas que elaboram o cotidiano de um
sujeito.
As relações sociais do luto passaram assim a ser mantidas com a
máxima discrição possível. O não saber comportar-se em uma situação
limite, como a do sofrimento causado pela morte, parece ter aumentado a
insegurança no social dos sujeitos que a vivenciaram. O que afigura-se,
assim, no prolongamento da sensação de desconforto dos indivíduos na
trama e no drama social do luto O que faz crescer o estranhamento,
forçando os indivíduos a adequarem-se à distância nos relacionamentos
obrigatórios da vida cotidiana.
Esta modernidade da individualidade do sujeito frente ao social
parece situar melhor a dor da perda nos mecanismos da rememoração dos
laços e da memória afetiva do morto com relação à família e à sociedade,
recompondo a expressão da importância e da permanência do valor da
instituição familiar. Ao mesmo tempo que afigura-se no enfatizar as marcas
da instabilidade e do não saber situar-se perante as novas regras do jogo
social. O que amplia a insegurança do agir, o sentimento de culpa do não
saber comportar-se perante a ruptura que irrompe com o sofrimento e o
inconformismo pela situação experimentada.
O constrangimento pessoal para assumir formas de expressão pública
do luto e a falta de compreensão dos sentimentos, parecem provocar uma
ruptura no sujeito que sofre e, ao mesmo tempo, a emergência do indivíduo
sobre a sociedade. O processo do luto fica assim, ao que parece, ao sabor
olhar e da experiência de cada um, ao relacionaram o sentido atual do luto
contraposto com as expressões do passado e do futuro do presente.
O que parece aumentar as dificuldades encontradas de exposição do
sofrimento ou da expressão de solidariedade nas relações sociais do luto.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
253 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Bem como, a sensação estranha de não saber agir nesta situação
específica, e o constrangimento e a vergonha deste desconhecimento.
Um distanciamento da pessoa no social e, ao mesmo tempo, a
ansiedade de ser encontrado e satisfeito por alguém ou alguma coisa
idealmente perdida em algum lugar do passado, parece, assim, ser
provocado. Este processo de distanciamento e de estranhamento do outro,
causado pela individualidade crescente e pela afirmação do privado, em uma
perspectiva individualista, parece ser a tendência por onde vem se
construindo e se constituindo a sociabilidade brasileira urbana atual.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
254 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Bibliografia
ABRAHAM, Karl. (1970). Teoria Psicanalítica da Libido. Rio de Janeiro, Imago.
ACKERMAN, D. Uma história natural dos sentidos. São Paulo, Bertrand Brasil, 1992. ARIÈS, Philippe. (1966). "Le Culte des Morts à l'Epoque Moderne". Revue des Travaux de l'Académie des Sciences Morales et Politiques, v. CIX, pp. 25 a 34.
ARIÈS, Philippe. (1967). "La Mort Inversée". Archieves Européennes de Sociologie, v. VIII, pp. 169 a 195. ARIÈS, Philippe. (1972). “La vie et la mort chez les Français d’aujourd’hui”. Ethno-psychologie: v. 27, n. 1, pp. 39 a 44. ARIÈS, Philippe. (1974). Western Attitudes Toward Death: From the Middle Ages to the Present. Baltimore and London. The John Hopkins University Press. ARIÈS, Phillipe. (1983). Images de L'homme devant la Mort. Paris. Seuil. ARIÈS, Phillipe. (1989). O Homem diante da Morte. Vol 1. Rio de Janeiro, Francisco Alves. ARIÈS, Phillipe. (1990). O Homem diante da Morte. Vol 2. Rio de Janeiro, Francisco Alves. AZEVEDO, Thales de. (1987). Ciclo da Vida. Ritos e Ritmos. São Paulo, Ática. BASTIDE, Roger. (1971), As Religiões Africanas no Brasil: Contribuição a uma Sociologia das Interprenetações de Civilizações. 2 vols.. São Paulo, Pioneira e Edusp. BEAUVOIR, Simone de. (1982). La cerimonia del Adios. Barcelona, Edhasa.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
255 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
BEAUVOIR, Simone de. (1984). La Sangre de los Otros. Bogotá, Seix Barral. BEAUVOIR, Simone de. (1987). Una Muerte Muy Dulce. Barcelona, Pocket/Edhasa. BENEDICT, Ruth. (1972). O Crisântemo e a Espada. São Paulo, Perspectiva. BENJAMIN, Walter. (1985). "O Narrador. Considerações sobre a Obra de Nikolai Leskov". In, Obras Escolhidas. v. 1. São Paulo, Brasiliense. BERGER, Peter. (1995). Rumor de Anjos: A Sociedade Moderna e a Redescoberta do Sobrenatural. Petrópolis, Vozes.
BINSWANGER, L. (1960). Melancholie und Manie. Neske, Pfullingen. BORBA FILHO, Hermilo. (1967). Um Cavalheiro da Segunda Decadência. Vol. 2, A Porteira do Mundo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. BOTT, Elizabeth. (1976). Família e Rede Social. Rio de Janeiro, Francisco Alves. BRUSCHINI, Maria Cristina A .(1990). Mulher, Casa e Família: Cotidiano nas camadas médias paulistanas. São Paulo, Vértice. BRUNDTLAND, Gro Harlem. (1999). Global Perspectives on Mental Health. Speech of the Director-General of World Health Organization. Tampere, Finland, 13 October. <http://www.who.int/directorgeneral/speeches/1999/english/19991013_mental_health.html>
BURKITT, Ian. (1997). “Social Relationships and Emotions”. Sociology, v.31, n.1, pp.37 a 55.
CANETTI, Elias & ADORNO, Theodor W.. (1988). "Diálogo sobre as massas, o medo e a morte: uma conversa entre Elias Canetti e Theodor W. Adorno". Novos Estudos n. 21, pp. 116 a 132.
CÂMARA CASCUDO, Luís da. (1976). História dos Nossos Gestos. São Paulo, Melhoramentos.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
256 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
CÂMARA CASCUDO, Luís da. (1976a). Geografia dos Mitos Brasileiros. Rio de Janeiro, José Olympio. CÂMARA CASCUDO, Luís da. (1985). Superstição no Brasil. São Paulo, Nacional. CÂMARA CASCUDO, Luís da.. (1993). Dicionário do Folclore Brasileiro. 2ª edição. Rio de Janeiro, Editora Itatiaia.
CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. (1978), Os Mortos e os Outros. São Paulo, Hucitec. CASTRO, Mary et al.. (1977). O Quadro das Famílias em Domicílios de Chefe Migrante e Natural: Um estudo censitário dos diferenciais nas regiões metropolitanas brasileiras. Rio de Janeiro, FIBGE. CARSE, James P.. (1987). Muerte y Existencia. Una Historia Conceptual de la Mortalidad Humana. Mexico, Fondo de Cultura Económica. CARUSO, Igor A.. (1989), A Separação dos Amantes: uma fenomenologia da Morte. 5ª ed., São Paulo, Cortez. COMTE-SPONVILLE, André. (1995). "Vivre, c'est Perdre". In, Deuils: Vivre, c'est Perdre. Paris, Autrement. COTTLE, Thomas J.. (1977). Private Lives and Public Accounts. Amherst, University of Massachusetts Press. DaMATTA, Roberto. (1983). "A Questão da Posse: Tempo, Sociedade Ritual e Estado no Brasil". Humanidades v.1, n. 2, pp. 36 a 45. DaMATTA, Roberto. (1987). A Casa & a Rua: cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro, Guanabara. DANFORTH, Loring M. & TSIARAS, Alexander. (1982). The Death Rituals of Rural Greece. New Jersey: Princeton University Press. DAVID. Onildo Reis. (1995). O Inimigo Invisível – A Epidemia do Cólera na Bahia, 1855-1856. Salvador, Ed. do autor.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
257 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
DINIZ , Ariosvaldo da Silva. (2001). "A Iconografia do Medo". In, Koury, Mauro Guilherme Pinheiro, Org. Imagem e Memória :Ensaios em Antropologia Visual. Rio de Janeiro, Garamond, pags. 113 a 149.
DURHAM, Eunice. (1973). A Caminho da Cidade. São Paulo, Perspectiva. DURKHEIM, Émile. (1996). As Formas Elementares da Vida Religiosa: O Sistema Totêmico na Austrália . São Paulo, Martins Fontes. DUVINGNAUD, Jean. (1973). L'Amore, Heresie et Subversion. Paris, Anthropos. ELIAS, Norbert. (1989), La Soledad de los Moribundos. 2ª ed., México, Fondo de Cultura Económica. ELIAS, Norbert. (1990). O Processo Civilizador. v. 1, Uma História dos Costumes. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. ELIAS, Norbert. (1993). O Processo Civilizador. v. 2, Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. ELIAS, Norbert. (1994). A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. FERREIRA, Maria Letícia M.. (1995). Folheando o Passado. Estudo Antropológico sobre a Memória e a Identidade Social na Velhice. Dissertação, Porto Alegre, UFRGS. FRANKFORT-NACHMIAS, Chava & NACHIMIAS, David. (1992). Research Methods in the Social Science. 4ª Edition. New York, St. Martin's Press FREUD, Sigmund. (1976), “Inibições, Sintomas e Ansiedade”. Obras Completas. Vol. XX, Rio de Janeiro, Imago, pp. 95 a 201. FREUD, Sigmund. (1992), “Luto e Melancolia’. (Trad. M. Carone). Novos Estudos, n. 32, pp. 116 a 132. FREUD, Sigmund. (1974), “O Mal-estar na Civilização”. Obras Completas. Vol. XXI, Rio de Janeiro, Imago, pp. 75 a 171.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
258 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
FREYRE, Gilberto. (1977). Vida Social no Brasil nos Meados do Século XIX. Recife, Imprensa Oficial. GAUDÊNCIO, Edmundo. (1986). Jazigo Perpétuo: Observações muito vivas acerca da morte. Dissertação. UFPB - Campus II. GALENO, Cândida S. (1969). "Ritos Funerários no Interior do Ceará". Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, v. CLXXVIII, n. XXXII, pp. 75 a 99. GANS, M., PASTORE, J. & WILKENING, E. . (1971). "A mulher e a modernização da família brasileira". Pesquisa e Planejamento, n. 12, pp. 23 a 29. GEERTZ, Clifford. (1978). A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, Zahar. GINZBURG, Carlo. (1989). Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e História. São Paulo, cia das letras. GIRON, Myrna C.C. (1983). "Conflitos na elaboração do luto e conduta suicida infantil". Revista de Psiquiatria, v. 5, n. 1, pp. 25 a 30. GOFFMAN, Erving. (1980). "A Elaboração da Face: Uma Análise dos Elementos Rituais na Interação Social". In, Figueira, S. A., Org. Psicanálise e Ciências Sociais. Rio de Janeiro, Francisco Alves, pp. 76 a 114. GOFFMAN, Erving. (1988). Estigma: Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. 4ª Edição. Rio de Janeiro, Guanabara.
GORER, Geoffrey. (1963). Death, Grief and Mourning. New York, Doubleday. GUEDES, Sandra P.L. Camargo. (1986). Atitudes Perante a Morte em São Paulo – Séculos XVII a XIX. Dissertação. São Paulo, Universidade de São Paulo. HALBWACHS, Maurice. (1968). La Mémoire Collective. Paris, PUF.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
259 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
HARKOT-DE-LA-TAILLE, Elizabeth. (1999). Ensaio Semiótico sobre a Vergonha. São Paulo, Humanitas. HERTZ, R. (1960). Death in the Right Hand. London, Cohen & West. HERTZ, R. (1970). "Contribution a une Étude sur la Representation Collective de la Mort". In, Sociologie Religieuse et Folklore. Paris, Presses Universitaires de France. HUGHES, Everett C.. (1980). "Ciclos, Carreiras e Momentos Críticos". In, Figueira, S. A., Org. Psicanálise e Ciências Sociais. Rio de Janeiro, Francisco Alves, pp. 64 a 75. IBGE. (1987). Estatísticas Históricas do Brasil, v. 3. Rio de Janeiro. IBGE. (1996). Anuário do Brasil, v. 56. Rio de Janeiro. IBGE. (1997). Contagem da População 1996, v. 1. Rio de Janeiro. IBGE. (2000). Extraído do Website: <http:// www. ibge.br> IUTAKA, S. et al. (1975). "" Urbanização e família no Brasil". Revista de Ciências Sociais, n. 1-2, pp. 45-56. UFC. JANKELEVITCH, J. (1974). L'Irreversible et la Nostalgie. Paris, Flamarion. JUNQUEIRA, Carmen. (1985). Ritos de Passagem de nossa Infância. São Paulo, Summus. KALDESTAD, E. & DANBOLT, L.J.. (1991) "Gravferdsritualer, Sorganbeid og Mental Helse"86 Tidsskr nor Laegeforen , v. 111, n. 30, pp. 3640 a 3643, Norway.
KLEIN, Melanie. (1940). "Mourning and its relations to maniac-depressive states". International Journal of Psycho-Analysis, v. XXI. KLEIN, Melanie. (1991). "Sobre o Sentimento de Solidão". In, Obras Escolhidas, v. III. Rio de Janeiro, Imago, pp. 341 a 354.
86
Tradução: Rituais funerários, luto e saúde mental.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
260 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. (1986). "Trabalho e Disciplina. Os Homens Pobres nas Cidades do Nordeste: 1889 a 1930". In, Vários Autores, Relações de Trabalho e Relações de Poder: Mudanças e Permanências. Vol. 1. Fortaleza, Ed. Universitária da UFC, pp. 134 a 149. KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. (1993). “Luto, Pobreza e Representações da Morte”. in (Tereza Ximenes, org.), Novos Paradigmas e Realidade Nacional. Belém, UFPA/NAEA, pp. 281 a 291. KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. (1996). "A formação do homem melancólico: Luto e sociedade no Brasil". Cadernos de Ciências Sociais, n. 38, João Pessoa, PPGS/UFPB - Campus I. KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. (1996a). "Cultura e subjetividade: Questões sobre a relação luto e sociedade". In, Koury, MGP, Lima, JC & Rifiótis, T., Orgs.. Cultura & Subjetividade. João Pessoa, Editora Universitária, pp. 29 a 46. KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. (1998). "Fotografia, sentimento e morte no Brasil". In, Koury, MGP, Org. . Imagens & Ciências Sociais. João Pessoa, Editora Universitária, pp. 49 a 66. KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. (1998a). "Caixões infantis expostos: O problema dos sentimentos na leitura de uma fotografia". In, Feldman-Bianco, B. & Moreira Leite, ML, Orgs.. Desafios da Imagem: Fotografia, Iconografia e Vídeo nas Ciências Sociais. Campinas, Papirus, pp. 65 a 74. KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. (1999). "A dor como objeto de pesquisa social". Ilha. Revista de Antropologia, v. 1, n. 0, pp. 71 a 83. KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. (1999a). "Luto e fotografia". In, Eckert, C. & Monte-Mór, Patrícia, Orgs.. Imagem em Foco: Novas Perspectivas em Antropologia. Porto Alegre, Editora Universitária, pp. 117 a 160. KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. (2000). "Luto e Sociedade. Reflexões Metodológicas sobre uma Pesquisa". Revista do CCHLA, v. 7, n. 1, pp. 137 a 146. KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. (2001). "Você Fotografa os seus Mortos? Fotografia e Morte no Brasil Urbano". In, Koury, MGP, 0rg.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
261 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Imagem e Memória: Ensaios em Antropologia Visual. Rio de Janeiro, Garamond, pp. 51 a 94. KRISTEVA, Julia. (1988). Histórias de Amor. Rio de Janeiro, Paz e Terra. KUBLER-ROSS, Elizabeth. (1969). On Death and Dying. New York, MacMillan Publishers. KUBLER-ROSS, Elizabeth. (1974). Questions and Answers on Death and Dying. New York & London, MacMillan Publishers.
LAGACHE, D. (1938), "Le travail de deuil". Revue Française de Psychanalyse, n. 12, pp. 680 a 698. LEEP, Ignace. (1968). Psicoanálisis de la Muerte. Buenos Aires, Carlos Lohlé. LE GOFF, Jacques. (1981). La Naissance du Purgatoire. Paris, Gallimard. LEVINE, Robert M. E outros. (1983). Tempo e Morte nos Cemitérios do Vale do Paraíba. Guaratinguetá. Museu Frei Galvão. LIMA, Jacob Carlos & MEDEIROS, Paulo de Tarso. (1990). "A classe média na Paraíba: Perfil e representações". Cadernos de Textos, n. 15, João Pessoa, Mestrado em Ciências Sociais/UFPB – Campus I. LINS, Mísia. (1995). Morte, Católicos e Imaginário: O Caso do Alto do Reservatório, Casa Amarela. Dissertação. Recife, UFPE. LUFT, Lya. (1991). "Sedução e Literatura". Extensão, v. 1, n. 4, pp. 35 a 53 e 64. LUFT, Lya. (1991a). O Lado Fatal. 4ª edição, São Paulo, Siciliano. LYND, Helen. (1961). On Shame and the Search for Identity. New York, Science Editions. MARCUSE, Herbert. (1968). Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
262 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
MARQUES, Antonio H. de Oliveira. (1974). A Sociedade Medieval Portuguesa. 3ª edição, Lisboa, Portugalense. MARQUEZ, Catherine. (1994). "Le Mal Chronique". In, Souffrances. Corps et Âme, Épreuves Partagées. Paris, Autrement. MARTINS, José de Souza (org.). (1983). A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira. São Paulo, Hucitec. MATOS, Olgária. (1987). “A Melancolia de Ulisses: a Dialética do Iluminismo e o Canto das Sereias”. In Os Sentidos da Paixão. São Paulo, FUNARTE, Companhia das Letras, pp. 141 a 157. MAURO, Frédéric. (1980). La Vie Quotidienne au Brésil au Temps de Pedro Segundo, 1831-1889. Paris, Plon. MAUSS, Marcel. (1980). “A expressão obrigatória no indivíduo dos sentimentos”. In (Sérvulo A. Figueira, org.), Psicanálise e Ciências Sociais. Rio de Janeiro, Francisco Alves, pp. 56 a 63. MAUSS, Marcel. (1974). “Efeito físico no indivíduo da idéia da morte sugerida coletividade”. Sociologia e Antropologia. v. II, São Paulo, EDUSP/EPU, pp. 185 a 208. MERRICK, T.W. et al.. (1977). "Distribuição de renda e a economia da família urbana: o caso de Belo Horizonte". Pesquisa e Planejamento Econômico, v. 7, n. 1, pp. 15 a 23. MITFORD, Jessica. (1963). The American Way of Death. New York: Simon & Schuster.
MONEY-KYRLE, R.E. (1969). “Uma contribuição inconclusa para a teoria do instinto da morte”. In Temas de Psicanálise Aplicada. Rio de Janeiro, Zahar Editores, pp. 232 a 245. MORIN, Edgar. (1977). L'Homme et la Mort. Paris, Seuil. NEUMAN, W. L. (1994). Social Research Methods. Qualitative and Quantitative Approaches. 2ª edition. Boston, Allyn and Bacon.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
263 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
NOGUEIRA, Oracy. (1972). Sobre Método e Técnica de Pesquisa. Recife, Pimes, mimeografado. PAZ, Octávio. (1984). El Laberinto de la Soledad. México, Fóndo de Cultura Económica. POLLAK, Michael. (1985). "Encadrement et Silence: Le Travail de la Mémorie". Penélope, n. 12, pp. 30 a 47. POLIELLO, Renata M., PESSOA, Jadir & POMPA, Maria Cristina. (1987). Ritos e Mitos da Morte em Catuçaba: três estudos. Campinas, UNICAMP, (Boletim de Antropologia, 2).
PINCUS, Lilly. (1989). A Família e a Morte. Como enfrentar o luto. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
REIS, João José dos. (1991). A Morte é uma Festa. Ritos Fúnebres e Revolta Popular no Brasil do Século XIX. São Paulo. Companhia das Letras. REIS, João José dos. (1997). "O Cotidiano da Morte no Brasil Oitocentista". In, (Luiz Felipe Alencastro, org.), História da Vida Privada no Brasil, v. 2 – (Império: a Corte e a Modernidade Nacional). São Paulo, Companhia das Letras, pp.95 a 141. RICOEUR, Paul. (1994). "La Souffrance n'est pas la Douleur". In, Souffrances. Corps et Âme, Épreuves Partagées. Paris, Autrement.
RODRIGUES, Claudia. (1995). Lugares dos Mortos na Cidade dos Vivos – Tradições e Transformações Fúnebres na Corte. Dissertação. Niterói, Universidade Federal Fluminense. RODRIGUES, José Carlos. (1983), Tabu da Morte. São Paulo, Achiamé. RODRIGUES, Jocy Neves & SILVA, Laura Jane Nunes e. (1981). Ritos Fúnebres Populares do Maranhão. São Luís, Ed. da UFMA. RUBINSTEIN, R.L.. (1995). “Narratives of elder parental death: a structural and cultural analysis”. Medical Anthropology , v.9, n. 2, pp. 257 a 276,
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
264 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
SÁ, Lenilde Duarte de. (1999). Parahyba: Uma Cidade entre Miasmas e Micróbios. O Serviço de Higiene Pública. 1895-1918. Ribeirão Preto, Tese de doutorado, USP. SALEM, Tânia. (1980). O Velho e o Novo: Um estudo de papéis e conflitos familiares. Petrópolis, Vozes. SANTOS, Juana Elbein dos. (1986). Os Nàgó e a Morte – Pàde, Àsèsè e o Culto Égum na Bahia. Petrópolis, Vozes. SANTOS, Maria Sandra Rodrigues dos. (2000). O Luto e as Representações da Morte na Cidade de João Pessoa, Paraíba. João Pessoa, Monografia de Conclusão de Curso de Graduação em Ciências Sociais/UFPB. (Orientador: Mauro Guilherme Pinheiro Koury). SARTRE, Jean-Paul. (1972). Esboço de uma Teoria das Emoções. Lisboa, Presença. SCHEFF, Thomas. (1988). "Shame and Conformity". American Sociological Review, n. 53, pp.395 a 406.
SCHEFF, Thomas J. (1998). Three Pionners in the Sociology of Emotion.. <http://sscf.ucsb.edu/~scheff >.
SCHMITT, Jean-Claude. (1999). Os Vivos e os Mortos na Sociedade Medieval. São Paulo. Companhia das Letras. SCOCUGLIA, Jovanka B. C.. (2000). Cidade, Habitus e Cotidiano Familiar. João Pessoa, Editora Universitária. SENNETT, Richard. (1998). O Declínio do Homem Público: As Tiranias da Intimidade. São Paulo, Companhia das Letras. SIMMEL, Georg. (1950). "Types of Social Relationship by Degrees of Reciprocal Knowledge of their Participants". In, Kurt H. Wolff, org.. The Sociology of Georg Simmel. New York, The Free Press. SIMMEL, Georg. (1967). “A Metrópole e a Vida Mental”. In (Octávio G. Velho, org.), O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro, Zahar Editores, pp. 13 a 28.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
265 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
SIMMEL, Georg. (1986). "El Secreto y la Sociedad Secreta". In, Simmel, Georg. Sociologia: Estudios sobre las formas de socialización. V. 1. Madrid, Alianza Editorial, pp.357 a 424. SIMMEL, Georg. (1986a). "La Ampliación de los Grupos y la Formación de la Individualidad". Sociologia: Estudios sobre las Formas de Socialización. V. 2. Madrid, Alianza Editorial, pp. 741 a 808. SOURSIS, M.. (1994). "Deuil normal et Deuil Pathologique". Revue de Medicine de Bruxels, v. 15, n. 5, pp. 300 a 3055. SOUTO MAIOR, Mário. (1974). A Morte na Boca do Povo. Rio de Janeiro, Livraria São José. SOUTO MAIOR, Mário & VALENTE, Waldemar. (1988). Antologia Pernambucana de Folclore. Recife, Massangana. THOMAS, Louis-Vincent. (1983). Antropologia de la Muerte. México, Fóndo de Cultura Económica.
THOMAS, Louis-Vincent. (1987). "A respeito do Luto". Jornal Brasileiro de Psiquiatria., v. 36, n. 4, pp. 209 a 215.
TURNER, Victor. (1975). Dramas, Fields and Metaphors. Cornell, Cornell University Press. VAN GENNEP, Arnold. (1978). Os Ritos de Passagem: Um Estudo Sistemático. Petrópolis, Vozes. VELHO, Gilberto. (1986). Subjetividade e Sociedade: Uma experiência de geração. Rio de Janeiro, Zahar. VELHO, Gilberto. (1987). Individualismo e Cultura. Notas para uma Antropologia da Sociedade Contemporânea.2ª edição. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor. VOLVELLE, Michel. (1973). Pieté Baroque et Déchristianisation.Paris, Plon. VOLVELLE, Michel. (1974). Mourir Autrefois. Paris, Gallimard/Julliard.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
266 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
WAUGH, Evelyn. (1961). The Loved One. Middlesex, Penguin Books. WEBER, Max. (1944). Economia y Sociedad . 4 vols.. Buenos Aires, Paídos. WEBER, Max. (1974). Sobre a Teoria das Ciências Sociais. Lisboa, Presença. WEIL, Simone (1993). La Pesanteur et la Grâce. Paris, Pocket. YHUEL, Isabelle. "Emmène-Moi au Cimetière". In, Deuils. Vivre, C'est Perdre. Paris, Éditions Autrement, 1995, pp. 76-93.
MAGAZINS E REVISTAS
Claudia, maio de 1994 e julho de 1994. Desfile, março de 1992. Marie Claire, n. 75, junho de 1997. "Eclipse da dor" (Veja, 10 de agosto de 1994).
"O duro exercício do adeus" (Veja, 6 de outubro de 1999). "Em nome da cura" (Veja, 1 de dezembro de 1999).
"Encarar perda da morte evita problemas" (Correio da Paraíba, 23 de agosto
de 1998). "Morte também é assunto de criança" (Nova Escola, v. XI, n. 94, pp. 27 a 29,
de junho de 1996) "Sereno Suspiro" (Jornal da Unicamp, novembro de 1999).
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
267 Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Anexos
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 268
Anexo 1 - Quadros
Quadro N. 1 – Número de Entrevistados por Cidade, Estado e Região
Total Cidade Onde Mora Estado N %
Belém Pará 48 3.68 Boa Vista Roraima 30 2.30 Macapá Amapá 29 2.22 Manaus Amazonas 39 2.99 Porto Velho Rondônia 28 2.15 Rio Branco Acre 29 2.22
Norte 203 15,56 Aracaju Sergipe 48 3.68 Fortaleza Ceará 68 5.22 João Pessoa Paraíba 50 3.84 Maceió Alagoas 44 3.38 Natal Rio Grande do Norte 48 3.68 Recife Pernambuco 69 5.29 Salvador Bahia 69 5.29 São Luís Maranhão 48 3.68 Teresina Piauí 49 3.76
Nordeste 493 37,82 Brasília Distrito Federal 51 3.91 Campo Grande Mato Grosso do Sul 29 2.22 Cuiabá Mato Grosso 29 2.22 Goiânia Goiás 39 2.99 Palmas Tocantins 29 2.22
Centro Oeste 177 13,56 Belo Horizonte Minas Gerais 69 5,29 Rio de Janeiro Rio de Janeiro 70 5.37 São Paulo São Paulo 81 6.21 Vitória Espírito Santo 39 2.99
Sudeste 259 19,86 Curitiba Paraná 51 3.91 Florianópolis Santa Catarina 50 3.84 Porto Alegre Rio Grande do Sul 71 5.45
Sul 172 13.20 BRASIL 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 269
Quadro N. 02 – Sexo dos Informantes
Sexo N %
1. Masculino 509 39.03
2. Feminino 795 60.97
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 270
Quadro N. 03 – Idade dos Informantes
Idade N %
1. 15 a 25 anos 189 14,50
2. 26 a 39 anos 409 31,37
3. 40 a 59 anos 466 35,73
4. + de 59 anos 240 18,40
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 271
Quadro N. 04 – Estado Civil dos Informantes
Estado Civil N %
1. Solteiro 379 29,06
2. Casado 652 50,00
3. Viúvo 161 12,35
4. Divorciado 112 8,59
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 272
Quadro N. 05 – Freqüenta Religião
Freqüenta religião? N %
1.Sim 1206 92,48
2.Não 98 7,52
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 273
Quadro N. 06 – Tipos de Religião dos Informantes
Religião N %
1.Católica 894 74,13
2.Evangélicas 187 15,50
3.Espirita 58 4,81
Outras 67 5,56
Total 1206 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 274
Quadro N. 07 – Renda Familiar dos Informantes
Renda Familiar N %
1. 1 a 5 salários 237 18.17
2. 6 a 10 salários 543 41.64
3. 11 a 20 salários 382 29.30
4. + de 21 salários 135 10.35
X 1 0.08
Y 6 0.46
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 275
Quadro N. 08 – Escolaridade dos Informantes
Escolaridade N %
1. 1º Grau 289 22,16
2. 2º Grau 611 48.86
3 .Superior 404 30.98
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 276
Quadro N. 09 – Profissão dos Informantes
Profissão Atual N %
1. Aposentado e Pensionista 218 16,72
2. Empresário/Comerciante 126 9,66
3. Profissional Liberal e Militar 220 16,87
4. Professor 102 7,82
5. Funcionário Público 84 6,44
6. Trabalhadores de Nível Médio 113 8,67
7. Trabalhador Manual 85 6,52
8. Estudante 146 11,20
9. Dona de casa 177 13,57
10. Desempregado 27 2,07
11. Não Trabalha 06 0,46
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 277
Quadro N. 10. Comportamento no Luto
O Comportamento no Luto N %
1. Ser discreto 1012 77.60
2. Seguir a tradição 200 15.34
3.Não existe comportamento ideal 92 7.06
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 278
Quadro 11 – Comportamento dos Outros no Luto
O Comportamento dos Outros N %
1. Dar apoio 244 18.71
2.Não importunar 939 72.01
3.Depende do caso 121 9.28
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 279
Quadro n. 12 – Definição de Si Após a Experiência da Perda
O enlutado após a perda N %
1. Sentimento de Vazio 626 51,78
2.Quebra de relações familiares 303 25,06
3. Rompeu com a religião 94 7,78
4. Mudança nas condições de vida 104 8,60
5. Melhor compreensão da vida 82 6,78
Total 1209 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 280
Quadro n. 13 – Conceituação de Morrer
O que é morrer? N %
1. Findar 528 40,49
3. Algo que não deveria acontecer 156 11,96
4. Uma passagem 620 47,55
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 281
Quadro n. 14 – Conceituação de Morte
O que é morte? N %
1. Fim da existência 537 41,18
2. Transição 538 41,26
3. A morte não deveria acontecer 229 17,56
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 282
Quadro N. 15 – Comportamento de uma Pessoa que Sofreu uma Perda
Comportamento pessoal N %
1. Ser discreto 1012 77.60
2. Seguir a tradição 200 15.34
3.Não existe comportamento ideal 92 7.06
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 283
Quadro N. 16 – Comportamento dos Outros a Pessoas que Sofreram uma Perda
Comportamento dos outros N %
1. Dar apoio 244 18.71
2.Não importunar 939 72.01
3.Depende do caso 121 9.28
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 284
Quadro N. 17 - Significados sobre a Noção de Perda
O que é Perda? N %
1. Ausência 427 32,75
2Desaparecimento 274 21,01
3. Perda de si 501 38,42
4. Dano 102 7,82
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 285
Quadro N. 18 – Existe uma Relação entre Perda e Sofrimento?
Perda e Sofrimento N %
1.Sim 1008 77,30
2.Não 296 22,70
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 286
Quadro N. 19 – Relação entre Perda e Sofrimento
Relação entre perda e sofrimento - sim N %
1. A Perda provoca o Sofrimento 482 47,82
2. É um Sentimento de Perda Eterna 309 30,65
3. Diferença de Intensidade entre Pessoas e Objetos 217 21,53
Total 1008 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 287
Quadro N. 20 – Noções sobre Luto
O que é luto N %
1.Simbologia 601 46,09
2.Sentimento 598 45,86
3.Adaptação 105 8,05
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 288
Quadro N. 21 – Viver o Processo de Luto
O processo de luto N %
1. Tradição 347 26,61
2. Introspecção 363 27,84
3. Solidão 594 45,55
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 289
Quadro N. 22* - Apoio no Trabalho de Luto
Apoio no Luto N %
1.Família 925 23,78
2.Amigos 318 8,18
3.Trabalho 601 15,45
4.Religião 1006 25,86
5.Lembranças 854 21,95
6.Ninguém 186 4.78
Total 3890 100%
* Respostas Múltiplas
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 290
Quadro N. 23 – Sentimento em Relação ao Trabalho
Trabalho N %
1. Normal 52 3,99
2. Ajudou a superar a crise 1080 82,82
3. Pouca concentração 172 13,19
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 291
Quadro N. 24 – Sentimento em Relação à Família
Família N %
1. Apoiado 247 18,95
2. Afeto 509 39.03
3. Não se preocupou 73 5,60
4. Apoio nos rituais 115 8,82
5. Vontade de ajudar 105 8,05
6.Poucos parentes apareceram 54 4,14
7. Cobrança de sentimentos 201 15,41
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 292
Quadro N. 25 - Formas de Apoio na Religião
Formas de apoio
Não Conforto Espiritual
Mudança de Visão de Mundo
Total
Religião N % N % N % N %
1. Não 98 7.51 - - - - 98 7.51
2. Católica 234 17.95 653 50.09 7 0.54 894 68.58
3. Evangélicas - - 53 4.06 134 10.27 187 14.33
4. Espírita - - 58 4.45 - - 58 4.45
5. Outras - - 67 5.13 - - 67 5.13
Total 332 25.46 831 63.73 141 10.81 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 293
Quadro N. 26 – Luto e Cotidiano
O luto modificou o cotidiano N %
1. Não 264 20.25
2. Introspecção 705 54.06
3. Busca de uma nova vida 335 25.69
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 294
Quadro N. 27 – Comportamento de uma Pessoa em Trabalho de Luto
Comportamento de uma pessoa em luto N %
1. Ser discreto 1012 77.60
2. Seguir a tradição 200 15.34
3.Não existe comportamento ideal 92 7.06
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 295
Quadro N. 28 - Comportamento dos Outros às Pessoas em Processo de Luto
Comportamento dos
outros
N %
1. Dar apoio 244 18.71
2.Não importunar 939 72.01
3.Depende do caso 121 9.28
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 296
Quadro N. 29 – Diferença Entre o Luto Hoje e Antigamente
O luto hoje e antigamente N %
1. Não existe diferença 251 19.25
2. Maior controle social 561 43.02
3. Hoje é individual 492 37.73
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 297
Quadro N. 30 – Relação entre Sexo e Expressão do Luto
Sexo Masculino Feminino Total
Expressões do luto N % N % N %
1. Simbologia 372 28,53 249 19,10 621 47,63
2. Sentimento 61 4,67 517 39,65 578 44,32
3. Período de adaptação 76 5,83 29 2,22 105 8.05
Total 509 39,03 795 60,97 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 298
Quadro N. 31 – Tempo Ideal para o Fim do Luto
Tempo ideal para o fim do luto N %
1.É uma questão pessoal 243 18.63
2.É eterno, nunca se esquece 219 16.80
3.Um ano 842 64.57
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 299
Quadro N. 32 – Sentidos do Luto, Ontem e Hoje
Sentidos do luto N %
1. Respeito pelo morto e pelo luto 624 47.85
2. Sentimentos comunitários 252 19.32
3. Integração 182 13.96
Ontem 1058 81.13
1. Existe mais sentimentos 122 9.36
2. Existe maior liberdade 124 9.51
Hoje 246 18.87
Total 1304 100%
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 300
Anexo 2
Entrevistas Utilizadas por Capítulo No. Entrevista Cidade - Estado Rápida Descrição
CAPÍTULO 1 12 Belém - Pará Sexo Feminino. 42 anos. Marido morto em
desastre automobilístico 138 São Paulo - SP Sexo Masculino, 26 anos, estudante
universitário (medicina), perdeu o pai, a mãe e a namorada em um acidente de carro.
4 Cuiabá - MT Sexo Feminino, 30 anos, Faxineira, marido morto pela polícia, considerado desaparecido.
42 Porto Alegre - RS Sexo Masculino, 49 anos, esposa morta de câncer.
CAPÍTULO 2 249 Belo Horizonte – MG Sexo Masculino, 38 anos, viúvo, esposa morta
de câncer. 46 Goiânia – GO Sexo Feminino, 35 anos, perda irmão,
acidente automobilístico. 131 São Paulo – São Paulo Sexo Feminino, 48 anos, perda de filha de 15
anos, câncer. 200 Vitória – ES Sexo Masculino, 38 anos. 58 João Pessoa – PB Sexo Masculino, 23 anos, estudante
universitário, perdeu a avó materna. 209 Curitiba – PR Sexo Feminino, 27 anos. Bióloga. Perdeu a
avó materna. CAPÍTULO 3
27 Salvador – Ba Sexo Feminino, 50 anos, professora universitária, perdeu a mãe.
44 São Paulo – São Paulo Sexo Masculino, 29 anos, perdeu o pai de 65 anos, vitimado por longa doença degenerativa. Vendedor autônomo
37 Rio de Janeiro – Rio de Janeiro
Sexo Feminino, 58 anos, viúva, sem filhos, aposentada.
102 Recife – PE Sexo Feminino, 63 anos, três filhos, dois H e uma M. Aposentada. Perdeu uma filha de quarenta anos, solteira, vítima de enfarto.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
Ser Discreto
Mauro Guilherme Pinheiro Koury 301
70 Macapá – AP Sexo Feminino, 48 anos, viúva, um filho, dona de casa.
109 Recife - PE Sexo Feminino, 42 anos, dois filhos menores, funcionária pública. Marido morreu vítima de problemas cardíacos.
53 Maceió - Alagoas Sexo masculino, 68 anos, engenheiro aposentado, pai de dois filhos homens que administram suas propriedades, e quatro netos.
CAPÍTULO 4 140 Fortaleza - CE Sexo masculino, 59 anos, casado, hum filho,
dentista. Natural do interior do Ceará, mora desde a adolescência na cidade de Fortaleza.
38 Rio de Janeiro - RJ Sexo masculino, 63 anos, viúvo, dois filhos adultos, profissional liberal, contador, perdeu a esposa.
24 Rio Branco - AC Sexo Feminino, 33 anos, solteira, bancária. Perdeu o noivo em acidente.
248 Belo Horizonte - MG Sexo Feminino, 45 anos. Solteira, médica. Morte do pai.
CAPÍTULO 5 134 São Paulo - SP Sexo Masculino, 66 anos, viúvo, advogado,
tinha perdido a esposa havia um ano da data da entrevista.
205 Vitória - ES Sexo Feminino, 68 anos, viúva há trinta anos, aposentada.
15 São Luis - MA Sexo Masculino, 43 anos, perdeu o companheiro, vítima da AIDS, com quem morava há mais ou menos 6 anos. Empresário da noite.
43 Porto Alegre - RS Sexo Feminino, 65 anos, casada, dona de casa, três filhos casados.
220 Florianópolis - SC Sexo Feminino, 27 anos, solteira, estudante universitária, trabalha como vendedora de boutique em shopping.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.