UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO MESQUITA FILHO”
FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
CRISTINA VIEIRA GOMES
“GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE
FRANCA NAS DÉCADAS DE 60 A 80 DO SÉCULO XX
FRANCA
2010
CRISTINA VIEIRA GOMES
“GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE
FRANCA NAS DÉCADAS DE 60 A 80 DO SÉCULO XX
Dissertação de Mestrado apresentada à
Faculdade de História, Direito e Serviço Social,
da Universidade Estadual Paulista “Júlio
Mesquita Filho”, para obtenção do título de
Mestrado em História. Área de concentração:
Cultura Social.
Orientador: Prof. Dr. Moacir Gigante.
FRANCA
2010
1
Gomes, Cristina Vieira
“Guardiãs do saber” : a memória das normalistas de Franca nas
décadas de 60 a 80 do século XX / Cristina Vieira Gomes. – Franca:
UNESP, 2010.
Dissertação – Mestrado – História – Faculdade de História,
Direito e Serviço Social – UNESP.
1. Educação – História – Brasil. 2. Professores – Formação
profissional. 3. Prática pedagógica.
CDD – 370.981
2
CRISTINA VIEIRA GOMES
“GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE
FRANCA NAS DÉCADAS DE 60 A 80 DO SÉCULO XX
Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para obtenção do título de Mestre em
História
BANCA EXAMINADORA
Presidente:_____________________________________________________________
Prof. Dr. Moacir Gigante, UNESP-Franca
1º Examinador:_________________________________________________________
Prof. Dr. Mauro Carlos Romanatto, UNESP-Araraquara
2º Examinador:_________________________________________________________
Prof. Dr. Pedro Geraldo Tosi, UNESP-Franca
3
Dedico este trabalho à minha mãe, Maria Rita,
que quando criança sonhou estudar no Colégio de Lourdes,
mas acordou trabalhando, aos nove anos de idade, nas casas da elite francana.
A todas as “Marias” que não tiveram oportunidade de estudar.
A meu pai (in memoriam) que sempre me incentivou.
A meu mestre e amigo Moacir Gigante.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a todas as minhas colaboradoras: D. Edna Cintra Haber, D.
Augusta Maria Pinho Caleiro, D. Dulce Margarida Biasoli Piola, D. Leila Astun Abrahão, D.
Cleuza Tozzi Mendonça. Sem a disposição de lembrar o passado, compartilhar comigo suas
alegrias e tristezas, de abrirem as portas de suas casas para me receber com carinho e
compartilhar comigo um passado tão caro, a matéria prima desta pesquisa, não seria possível
realizar essa empreitada. É justo que, como minhas colaboradoras, ou seja, com quem
compartilhou comigo no esforço da construção do material de pesquisa, as normalistas sejam
lembradas com carinho e gratidão.
É com o mesmo carinho que agradeço meu orientador Moacir Gigante, sempre
atento e disposto a me auxiliar em minhas angústias acerca da pesquisa, com paciência e
amizade muito grandes. Cada orientação era um momento privilegiado, de boas conversas,
troca de informações, crescimento intelectual, que me possibilitava redirecionar a pesquisa
com estímulo renovado. Considero-me privilegiada de tê-lo como meu orientador e amigo e
agradeço à dedicação demonstrada por ele nestes anos de projeto, a instigação intelectual
constante, que não permitiu que continuasse acomodada, na zona de conforto, mas buscasse
respostas às minhas questões e perseguisse os meus objetivos. Nesta relação orientador-aluna,
aprendi muito sobre o papel fomentador do verdadeiro educador, e essa lição, eu tiro para a
vida.
Também agradeço aos Professores Doutores Pedro Tosi e Célia David pelas valiosas
sugestões dadas durante minha qualificação, que permitiram um redirecionamento da pesquisa
que, a meu ver, enriqueceram muito o trabalho ora apresentado.
A Senhora Margarida do Museu Municipal de Franca “José Chiachiri”, pela atenção
e ajuda na identificação de documentos que pudessem auxiliar a pesquisa. À Laura e Silvana
da Biblioteca da UNESP, por suas valiosas orientações para elaboração do trabalho
acadêmico. Ao Otávio que auxiliou na árdua tarefa de transcrição de parte das entrevistas.
À minha irmã Adriana, companheira de trabalho, agradeço por ter me ajudado na
digitação de todo o texto, correção, críticas construtivas, enfim, por ter passado muito de seu
tempo ao meu lado, me auxiliando para que eu pudesse realizar essa pesquisa. A toda minha
família que me apoiou, às vezes nos custos financeiros envolvidos na pesquisa, às vezes com
ajuda técnica e prática, muitas vezes compreendendo minhas ausências por causa dos estudos,
outras vezes com uma palavra de ajuda, de consolo, nas horas de extremo cansaço.
5
Ao Governo do Estado de São Paulo, que através do projeto Bolsa
Mestrado/Doutorado para professores efetivos da rede, deu-me a oportunidade, durante um
ano e meio, de receber o benefício e me dedicar mais aos estudos, com carga horária de
trabalho reduzida.
Aos meus colegas de trabalho Francisco e Gisele, colaboradores na correção do
texto escrito, e a Ana Paula que fez a tradução do resumo para o francês.
A Luciara, que corrigiu com cuidado e competência o trabalho para que estivesse de
acordo com as exigências das normas acadêmicas de publicação.
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“Era tão bom saber que a gente tinha saído
da gaiola [se referindo ao internato] um pouquinho.”
Dona Augusta M. P. Caleiro
“Uma coisa a gente tinha como certo: que quem não
nasceu com facilidades, tinha que ir à luta.
Isso ficou na minha vida e não me larga.
Então é assim ó, „quer lute. Nada cai do céu‟.
Então isso ficou muito forte, muito forte.
Onde que eu tenho essa dificuldade de sair de cena.
Muito. [...] Como se diz, „descer do pódio.‟”
Dona Cleuza T. Mendonça
“Então precisava rigor, porque onde há ordem, há progresso, né.
Porque senão não tinha ordem. Como é que ia fazer uma escola sem ordem?
Tinha que ter. Mas sempre tinha as que não obedecia, né.”
Dona Dulce M. B. Piola
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RESUMO
O trabalho aqui apresentado tem por objetivo resgatar a memória das normalistas da cidade de
Franca e região. Utilizamos a metodologia de História Oral, visto que ela nos permite dar
vozes a estes atores históricos, a fim de analisar sua cultura social como colônia, suas
práticas, fatores de coesão e contradição. Durante o século XX, a educação brasileira foi alvo
de transformações estruturais profundas, reflexo das mudanças ocorridas nos meios político,
econômico e social da nação. As disputas de grupos divergentes pelo poder incidiram
diretamente na educação através de manifestos, decretos e leis, já que esta é considerada um
instrumento eficaz de legitimação e manutenção da hegemonia política dominante. As
normalistas que atuaram no primeiro ciclo do ensino fundamental (1ª à 4ª séries) durante as
décadas de 60 a 80 do século XX e tiveram sua formação educacional nas duas décadas
anteriores, servem-nos como suportes da memória capazes de, através de seus depoimentos,
reconstruir a história da educação de, pelo menos, meio século, fazendo uma releitura de seu
passado, da educação formal e informal recebida e de sua prática profissional. Restituir valor
à memória destas profissionais permitiu-nos entender como este grupo, atuante dentro da
instituição escolar e imprescindível para a manutenção do sistema vigente, concebia e
interpretava sua realidade e, como isso, consequentemente, refletia em sua prática pedagógica.
Procuramos compreender a cultura social deste grupo, construída desde a sua educação
familiar, até a sua formação religiosa complementada em colégios de caráter confessional e a
própria formação profissional, de acordo com o modelo idealizado de normalista. Através dos
relatos das normalistas formadas nos diferentes cursos – laico e religioso – oferecidos na
cidade de Franca, foi possível traçar o perfil que este grupo de profissionais adquiriu. As
normas, a disciplina do corpo e da alma, os métodos de ensino, o currículo oculto impregnado
na prática docente nestas instituições de ensino tinham por objetivo ditar um paradigma que
deveria moldar o perfil das professoras primárias e que se tornaria a base de apoio no
exercício de sua profissão. Compreender como os educadores, que neste contexto,
constituíram-se em porta-vozes do Estado autoritário, concebia sua função social e como
conseguiram, com o passar dos anos, reconstruir sua própria atuação docente, por meio da
memória, permitiu-nos analisar a importância que o professor e a educação têm para a
manutenção, e até mesmo, para a transformação social. A forma como as normalistas foram
preparadas para assumir esse papel e como elas, ao olhar para o passado, interpretam os fatos
e sua atuação diante deles é o objetivo fundamental desta pesquisa.
Palavras-chave: Normalistas. História da Educação. Memória. Cultura Social. Prática
Pedagógica.
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RESUMÉ
La recherche présentée a pour objectif racheter la mémoire des normaliennes de la ville de
Franca et région. En utilisant la méthodologie de l‟Histoire orale, vu qu‟elle nous permet de
donner des voix à ces acteurs historiques afin de analyser leur culture sociale comme colonie,
leurs habitudes; facteur de cohésion et de contradiction. Pendant le XXème siècle, l‟éducation
brésilienne a été une cible de changements structurels profonds, reflet des changements
arrivés dans le moyens politique, économique et social de la nation. Les luttes de groupes
divergents pour le pouvoir arrivent directement à l‟éducation à travers les manifestations ,
les decrets et les lois, puisqu‟elle est considerée un instrument efficace de légitimation et
manutention de l‟hégémonie politique dominante. Les normaliennes qui étaient en activité
dans le premier cycle de l‟enseignement fondamental (du 1er
au 4 ème) pendant les années 60
jusqu‟aux années 80 du XXème siècle et qui ont eu sa formation dans les deux décennies
anterieures; elles sont comme des supports de mémoire capables de, grâce à leurs
dépositions, reconstruire l‟histoire de l‟éducation d‟un démi-siècle environ, en faisant une
relecture de leur passé, de l‟éducation formelle et informelle reçue et de leur pratique
professionelle. Restituer le valeur à la mémoire de ces professionnelles nous permet de
comprendre comme réfléchissait ce groupe, présent dans l‟intituition scolaire et surtout
indispensable pour la manutention du système en vigueur, comme elles concevaient et
interprétaient sa réalité et comme cela, par conséquent, réfléchissait dans sa pratique
pédagogique. Par la méthodologie de l‟histoire orale, nous cherchons comprendre la culture
sociale de ce groupe de profsionnelles, construite depuis l‟éducation familier jusqu‟à la
formation religieuse complétée dans les écoles de caractère confessionnal, et la formation
professionelle, selon le modèle idéalisé de normaliennes. Par les dépositions des normaliennes
diplômées dans les différents cours – laïque et religieux – offerts à Franca, on a eu la
possibilité de tracer le profil que ce groupe de profesionelles a acquis, comme colonie, par sa
culture social. Les règles, la discipline du corps et de l‟âme, les méthodes d‟enseignement , le
curriculum caché impregné dans la pratique enseignante dans ces instituitions d‟enseignement
ont eu par objectif dicter un paradigne qui devrait mouler le profil des professeurs primaires et
qui deviendrait la base de support dans l‟exercice de sa profession. Comprendre comme les
enseignants, que dans ce contexte étaient les porte-paroles de l‟ètat autoritaire, concevait sa
fonction social et comme ils ont réussi, à travers le temps, reconstruire son action enseignant,
par la mémoire , nous avons pu analyser empiriquement l‟importance du professeur et de
l‟éducation pour la manutention et pour le changement social. La manière comme les
normaliennes ont été préparées pour jouer ce rôle et comme elles, à regarder le passé,
interprètent les faits et son action devant eux c‟est l‟objectif fondamental de cette recherche.
Mots clés: Normaliennes. Histoire de l‟ Éducation. Mémoire. Culture social. Pratique
pédagogique.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 11
CAPÍTULO 1 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL ......................................... 27
1.1 A Educação no Brasil Colônia ..................................................................... 27
1.2 A Educação no Brasil Império .................................................................... 32
1.3 A Educação no Brasil República ................................................................. 33
1.3.1 O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e sua repercussão na
educação do Brasil ......................................................................................................
35
1.3.2 O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e a formação do professor .... 41
1.3.3 A Educação nas Constituições de 1934, 1937 e 1946 .................................... 44
1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional nº 4024/61 ...................................................................................
47
1.3.5 O Nacional-desenvolvimentismo e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional nº 5692/71 ....................................................................................................
50
1.3.6 Regime Militar e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº
5692/71 .......................................................................................................................
55
CAPÍTULO 2 MEMÓRIA E SOCIEDADE: A FORMAÇÃO DA COLÔNIA DE
NORMALISTAS COMO CATEGORIA SOCIAL E PROFISSIONAL ....................
68
2.1 A família: Berço das Tradições ..................................................................... 69
2.2 A Educação Familiar Cristã .......................................................................... 76
2.3 A Escola: Aparando as Arestas ..................................................................... 85
2.4 O Curso Normal: A produção do Modelo de Professor .............................. 107
CAPÍTULO 3 A PRATICA PEDAGÓGICA DA NORMALISTA E A
PRODUÇÃO DO TRABALHADOR NOS BANCOS ESCOLARES .........................
128
3.1 As Primeiras Experiências Pedagógicas: Adaptações e Transformações 128
3.2 A Metodologia e o Currículo Oculto em Ação: A Produção do
Trabalhador ......................................................................................................................
134
3.3 Formação Continuada e a Experiência na Gestão Escolar ......................... 162
CONSIDERÇÕES FINAIS .............................................................................................. 168
10
REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 174
ANEXO .............................................................................................................................. 178
11
INTRODUÇÃO
As últimas décadas do século XX assistiram ao florescimento e utilização em larga
escala dos relatos orais como fontes úteis, capazes de dar vozes a grupos até então pouco
ouvidos e estudados em nossa sociedade, mais conhecidos como minorias. No entanto, esse
termo é realmente controverso, visto que nem sempre os sujeitos históricos que não tem sua
memória contemplada como digna de preservação fazem realmente parte de uma minoria
social. O mesmo equívoco se dá ao tratá-los simplesmente como história vinda de baixo, visto
que nem sempre se trata de grupos excluídos socialmente. A história oral pode ser realizada
inclusive com grupos altamente hegemônicos, porém, com a vantagem de colher o ponto de
vista pessoal de alguns sujeitos sobre determinado acontecimento que este tenha efetivamente
participado e que disponha de uma larga fonte oficial. Este, por exemplo, é o caso das
entrevistas com militares que participaram do golpe de 64 no Brasil.
Assim, o estudo aqui desenvolvido não utiliza estes conceitos acima descritos como
sujeitos da pesquisa. O que propomos é analisar a educação no Brasil nas décadas de 60 a 80
do século XX sob as lentes de uma categoria profissional específica: as professoras primárias.
O interesse em estudar esse grupo de profissionais ligados à educação se deve
particularmente à minha própria formação. Antes de me graduar como professora de História
pela UNESP-Franca, fui aluna de um curso específico de formação de professores primários
e, durante os anos de minha formação acadêmica, atuei no ensino público oficial como tal.
Esta vivência educativa e profissional suscitou em mim questões referentes à formação do
profissional da educação e de como esta se refletia na sua atuação posterior. A busca por
respostas levaram-me a pesquisar como Trabalho de Conclusão de Curso de História a
Memória das Normalistas da Cidade de Franca, dando um enfoque à sua formação tradicional
e de como esta se refletia em sua prática pedagógica. Como base metodológica, recorri à
história oral, como meio capaz de captar as permanências e mudanças ocorridas na educação e
a leitura que as normalistas faziam de sua vivência profissional.
Entretanto, questões mais profundas relacionadas ao tema ficaram sem resposta e o
trabalho de conclusão de curso não tinha fôlego suficiente para abarcá-las. Estas questões
ficaram latentes por um período de doze anos, quando finalmente decidi me aprofundar no
tema em uma dissertação de mestrado.
Fazer parte da mesma comunidade de destino (MEIHY, 1996) – as professoras
primárias – contribuiu sobremaneira para que eu pudesse compreender melhor os relatos
colhidos por estabelecer uma identidade comum com o grupo estudado. Neste sentido, venho
12
em defesa da história oral, que é vista por muitos estudiosos com desconfiança por se tratar de
uma história do tempo presente, contemporânea ao pesquisador e que, por isso mesmo, não
permite o distanciamento necessário entre o pesquisador e o objeto de estudo, a fim de não
contaminá-lo com a sua subjetividade. O que para estes é visto como um obstáculo, para nós
oralistas, é uma vantagem, pois permite, de um campo visual privilegiado, perceber as
contradições, supressões, lembranças e esquecimentos presentes nos relatos orais. Valendo-se
das palavras de Roger Chartier (1992) em defesa da História do Tempo Presente,
O pesquisador é contemporâneo de seu objeto e divide com os que fazem a
história, seus atores, as mesmas categorias e referências. Assim, a falta de
distância, ao invés de um inconveniente pode ser um instrumento de auxílio
importante para um maior entendimento da realidade estudada, de maneira a
superar a descontinuidade fundamental, que ordinariamente separa o
instrumental intelectual, afetivo e psíquico do historiador e aqueles que
fazem a história. (apud FERREIRA, 1996, p. 18).
Por participar da mesma categoria profissional das normalistas foi possível estabelecer
uma relação de cumplicidade durante as entrevistas, não sendo eu encarada como uma
pesquisadora distante da realidade de um professor, mas como uma delas, capaz de
compreender melhor o significado dos seus relatos. Isso me proporcionou experienciar de
forma significativa, uma das qualidades da pesquisa oral: a relação que ela estabelece com o
objeto estudado em uma via de duas mãos na qual ocorre troca de informações e
interpretações. (THOMPSON, 1992, p. 44).
Thompson (1992, p. 196) descreve com as seguintes palavras esta qualidade das fontes
orais: “Estamos lidando com fontes vivas que, exatamente por serem vivas, são capazes, à
diferença das pedras com inscrições e das pilhas de papel, de trabalhar conosco num processo
bidirecional”.
Mas alguém poderia perguntar: essa relação tão próxima entre o pesquisador e seu
objeto de estudo, não faz com que o produto final desta pesquisa esteja extremamente
contaminado por um subjetivismo interpretativo?
Primeiramente, toda fonte histórica, seja ela escrita ou oral, carrega em si certo grau de
subjetividade. Ambas passam por um crivo seletivo que decide o que é digno e que deve
realmente ser lembrado e registrado para a posteridade. Entretanto, apenas o depoimento “oral
permite-nos desafiar essa subjetividade: descolar as camadas da memória, cavar fundo em
suas sombras, na expectativa de atingir a verdade oculta”. (THOMPSON, 1992, p. 192).
Sim, a história oral é captada direto da fonte, o que dá condições para que o
pesquisador procure obter respostas às questões pouco elucidadas, as contradições ou mesmo
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omissões do relato. O que o oralista busca nos depoimentos não é a verdade sobre uma época;
o que se quer compreender é a “percepção social dos fatos” que os sujeitos históricos
possuem. Para Thompson (1992, p. 145) “o que chega até nós, é o significado social, e este é
o que deve ser avaliado”. Também no momento em que realizamos a entrevista podemos
questionar, aprofundar, contestar um fato relatado. O mesmo não ocorre com as fontes
escritas que muitas vezes possuem lacunas que não podemos preencher no ato da análise.
(THOMPSON, 1992, p. 147).
Negar a subjetividade do relato oral seria inocência da nossa parte como
pesquisadores. Porém, negar sua validade enquanto fonte, pode nos levar a uma visão estreita
do fazer histórico. Meihy (1996, p. 50) nos lembra: “Toda narrativa é sempre e
inevitavelmente construção, elaboração, seleção de fatos e impressões. Portanto, como
discurso em eterna elaboração, a narrativa para a história oral é uma versão dos fatos e não os
fatos em si”.
Neste sentido, a memória não é tratada aqui como um devaneio que pessoas idosas,
distantes de sua prática profissional e presos às limitações que a idade lhes impõe, entregam-
se como fuga do presente pouco gentil. Ao contrário, a memória é trabalho (BOSI, 1994, p.
55). O processo de lembrar exige esforço por parte do informante, “labor”, expressão latina
que designa trabalho. Nada mais significativo do que dizermos que lembrar é trabalho. Esta
palavra deriva-se do latim tripalium que designava um objeto de tortura, composto por um
tripé formado por três estacas (“tri” = três; “palus”= paus). Desta forma, a palavra trabalho
traz na sua essência a idéia de sofrimento, atividade exaustiva. E é exatamente isso o que
ocorre com os recordadores: no momento que se dedicam a lembrar estão dispostos a reviver
situações felizes e tristes do passado, carregadas de sentido pessoal e grupal, que são capazes
de fazer aflorar um turbilhão de emoções: “Eu que agradeço a oportunidade de voltar aos
meus tempos, eu fico até emocionada [choro] [...] hoje eu tô feliz de ver essa caminhada que
eu fiz [...] Você me deu uma grande oportunidade, obrigada.” (ARQUIVO 12, p. 20).
Também pode levar os recordadores a refletirem sobre alguns pormenores do seu
passado e analisá-los sobre uma nova ótica. Isso exige um esforço mental relativamente
grande que leva à exaustão. Por isso é comum fazermos várias entrevistas com a mesma
pessoa, levando em consideração os limites que cada um tem para lidar com a dor e o cansaço
que o lembrar cobra deles. Ecléa Bosi (1994, p. 60) assim descreve o sentido de lembrar para
os velhos:
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Ao lembrar o passado ele não está descansando, por um instante, das lides
cotidianas, não está se entregando fugitivamente às delícias do sonho: ele
está se ocupando conscientemente e atentamente do próprio passado, da
substância mesma de sua vida. (BOSI, 1994, p. 60).
O que proponho neste trabalho é lançar mão da memória, respeitando o fato de que as
lembranças das normalistas utilizadas como fonte de pesquisa são produtos de uma
reformulação do passado. Não podemos esperar que as normalistas entrevistadas para esta
pesquisa, que tem atualmente em média 78 anos, com sua experiência de vida pensem
exatamente como quando eram professoras atuantes, ligadas a uma instituição, com interesses
diversos dos de hoje.
A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão agora à
nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa
consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato
antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque
não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com
ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de
lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre a imagem de um e
outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista. (BOSI, 1994,
p. 55, grifo da autora).
Quando lembramos o passado não o reconstituímos nos mesmos moldes, com as
mesmas impressões que o vivenciamos; ao contrário, o reconstruímos a partir de nossas
experiências, noções e vivências do presente, num processo dialético de releitura dos fatos.
Isso pressupõe que nossas lembranças ao serem evocadas, não afloram em estado puro: elas
vêm à tona impregnadas de valores morais e culturais que adquirimos no decorrer de nossa
vida em sociedade.
Neste ponto, recorro ao conceito desenvolvido pelo sociólogo francês Maurice
Halbwachs sobre a existência de uma memória coletiva. Partindo da idéia de que o homem é
um ser essencialmente social, Halbwachs nega a possibilidade de uma memória puramente
individual. Todas as lembranças que evocamos, de uma maneira ou de outra, estão ligadas a
diferentes grupos sociais dos quais nós fizemos parte. É por isso que Halbwachs (1990, p. 36-
37) diz que mesmo quando o indivíduo está aparentemente sozinho “seus pensamentos e seus
atos se explicam pela sua natureza de ser social, e que em nenhum instante deixou de estar
confinado dentro de uma sociedade”. Portanto, isso explica o conceito anteriormente
defendido de releitura e reconstrução do passado nos moldes fixados no presente. Por sermos
seres sociais, somos influenciados pelos costumes, ideologias e visões de mundo dos
diferentes grupos e instituições dos quais fazemos parte durante nossa vida.
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Ao analisar a psicologia social de Charles Bartlett, Ecléa Bosi aproximou o conceito
de memória coletiva de Halbwachs com o conceito de “convencionalização”, criado por
W.H.R. Rivers e utilizado por Bartlett. Rivers cunhou esse conceito a partir de diversas
experiências que realizou com os povos swazi em que se constatou a transposição de idéias e
símbolos desconhecidos por eles em outras culturas, para uma significação própria do grupo
de origem. Ecléa Bosi (1994, p. 64) concluiu assim sua análise:
[...] transpondo o conceito para a área psicossocial, Bartlett postula que a
matéria-prima da recordação não aflora em estado puro na linguagem do
falante que lembre; ela é tratada, às vezes estilizada pelo ponto de vista
cultural e ideológico do grupo em que o sujeito está situado. (BOSI, 1994,
p. 64).
É exatamente nesse ponto que tanto Halbwachs como Bartlett se aproximam ao
definirem os “quadros sociais da memória” como fundamentais para a rememoração.
Neste sentido é que lanço mão da memória das normalistas, não acreditando
inocentemente que elas estejam livres de toda e qualquer influência externa que tem o caráter
de transformar os fatos rememorados tal como ocorreram. Ao contrário, a memória deste
grupo de profissionais é tomada nessa pesquisa como “matéria-prima” necessária para
reconstruir toda uma época, o modo de ver e viver de uma sociedade, tornando possível
demolir por meio das próprias ideologias que lhe impregnam a ideologia dominante, fazendo
assim, uma releitura do passado. É exatamente esta reformulação do passado que me
interessa: a visão transformada de uma colônia (MEIHY, 1996) de profissionais que se
educaram num contexto determinado e que, ao se reportarem ao passado, conseguem
reinterpretá-lo e reconstruí-lo em novos moldes, dando assim uma visão dialética de
continuidade e renovação, que constitui a própria história.
Entretanto, é importante colocar nesse ponto do trabalho que, se por um lado o
conceito de memória coletiva é verazmente útil neste estudo, por outro lado, não compartilho
da idéia de Halbwachs de que só lembramos o que se relaciona com nossa vida social e que,
portanto, seria impossível lembrarmo-nos de algo se estivéssemos à parte do grupo no interior
do qual a memória reside.
Para Halbwachs (1990, p. 32) “esquecer um período de sua vida é perder o contato
com aqueles que então nos rodeavam”. Se tomássemos essa afirmativa por certa,
concordaríamos, então, que só é possível evocarmos o passado concernente à nossa vivência
em determinado grupo se ainda estivéssemos em contato com ele. Isso é o que possibilitaria
que nossas lembranças viessem à tona. Entretanto, na prática não é isso que observamos – ao
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entrevistar pessoas que participaram de um mesmo grupo no passado, e que hoje se encontram
dispersas em grupos distintos, conseguimos reconstruir seu passado por meio da memória
coletiva que se conserva nelas de forma individual. Assim podemos concluir que a evocação
das lembranças não está condicionada à nossa vivência coletiva, enquanto ser social. Mesmo
distantes dos grupos dos quais fizemos parte algum dia, somos capazes de lembrar.
Outro aspecto da história oral que gera debates entre historiadores tem haver com a
relação entre o pesquisador e o recordador. Questiona-se que o contato entre as partes pode
influenciar no material colhido de modo a distorcer a realidade. É evidente que a nossa
relação com os recordadores inevitavelmente provoca alterações e isto, uma vez mais, é
conveniente dizer, nós oralistas não negamos.
Entretanto, nossa função ao produzir o documento oral não é eliminar dele todas as
influências externas. Ao contrário, como bem observou Ken Plummer, citado por Thompson
(1992, p. 158) “expurgar a pesquisa de todas essas „fontes de viés‟ significa expurgar a
pesquisa da vida humana.”. Nós oralistas, simplesmente não podemos fazer isto, pois lidamos
com fontes vivas. Thompson (1992, p. 158, grifo do autor) declara a tarefa do historiador oral
deste modo: “o verdadeiro objetivo dos sociólogos da história de vida, ou do historiador oral,
deve ser revelar as fontes de viés, mais do que pretender que elas possam ser eliminadas, por
exemplo, com „um pesquisador sem rosto que exprima sentimentos‟”.
Apesar de a comunidade de destino analisada nesta pesquisa ser as normalistas, estas
podem se relacionar a outras categorias além da profissional, como, no caso, à categoria de
gênero e, pela idade atual das recordadoras, à categoria de idosos.
Nas últimas décadas foram desenvolvidos trabalhos sérios de pesquisa oral que
focalizaram a categoria dos velhos. Dentre eles, podemos citar um clássico no Brasil,
Memória e Sociedade – lembranças de velhos, de Ecléa Bosi, utilizado largamente pelos
historiadores oralistas.
Sua contribuição para a compreensão desta categoria é inegável. Ecléa Bosi (1994, p.
64) assevera que em muitas culturas a função social do velho é lembrar. É o velho que é o
depositário de toda a tradição do grupo e, por isso, possui lugar privilegiado na sociedade.
Neste ponto a autora relata-nos uma lenda balinesa de um povo que vivia nas montanhas e
que tinha como costume sacrificar os velhos. Essa prática se estendeu ao ponto de não existir
mais nenhum velho que pudesse guardar as tradições do povo. Um dia, quando os jovens
quiseram construir a sede do conselho, abateram as árvores, mas não sabiam como proceder.
Há muito não se faziam construções como aquelas e seus conhecimentos foram enterrados
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com os velhos. Neste momento, um velho que havia escapado aparece e ensina aos jovens
como construir e nunca mais os velhos são sacrificados por este povo.
A história é bela e retrata muito bem a importância dos velhos em algumas poucas
culturas como, por exemplo, as tribos indígenas. Mas não é esse o nosso caso. Vivemos em
uma sociedade que o velho e seus conhecimentos têm pouca importância, ou melhor, são
totalmente descartados. A sociedade capitalista, com sua tendência à modernização, traz em
sua esteira a rápida transformação dos costumes, tecnologias e do próprio modo de fazer as
coisas. O conhecimento é transformado muito rapidamente e, com ele o velho vai ficando
para trás.
A sociedade rejeita o velho, não oferece nenhuma sobrevivência à sua obra. Perdendo
a força de trabalho ele não é produtor nem reprodutor. Se a posse, a propriedade constitui,
segundo Sartre, uma defesa contra o outro, o velho de uma classe favorecida defende-se pela
acumulação de bens. Suas propriedades o defendem da desvalorização de sua pessoa. (BOSI,
1994, p. 77).
Neste contexto, o que significa lembrar para o velho? Significa resgatar importância a
si mesmo. Quando convocados a lembrar, normalmente os velhos se colocam numa posição
de cautela quanto ao que se espera dele.
Parece estranho aos seus ouvidos que alguém deseja escutá-los, interrogar-lhes o
passado. Duvidam que há realmente algo que possa ser útil à uma jovem pesquisadora. Isso
ficou evidente durante as entrevistas que realizei. Dona Leila falou sobre a sua preocupação
em lembrar após o trauma da viuvez: “então foi onde eu te falei, nem sei se a gente vai ter
condições de lembrar, de falar alguma coisa, de ter condições para isso. Mas vamos tentar”.
(D. Leila, 1ª entrevista) Porém, no momento em que encontra ouvidos realmente atentos,
lembrar toma outra proporção. O passado retoma o sentido.
Quando a sociedade esvazia seu tempo de experiências significativas,
empurrando-o para a margem, a lembrança de tempos melhores se converte
num sucedâneo da vida. E a vida atual só parece significar se ela recolher de
outra época o alento. O vínculo com outra época, a consciência de ter
suportado, compreendido muita coisa, traz para o ancião alegria e uma
ocasião de mostrar sua competência. Sua vida ganha uma finalidade, se
encontrar ouvidos atentos, ressonância. (BOSI, 1944, p. 82).
De qualquer modo, alguns olham com suspeita para o relato do idoso. Thompson
demonstra a incredulidade de muitos historiadores quanto á fonte oral ao citar A. J. P. Taylor.
Para Taylor, “todas as fontes são suspeitas”. Entretanto, quando se trata da fonte oral,
recolhida com sujeitos históricos velhos, a situação é pior ainda: “quanto a esse assunto, sou
18
quase inteiramente cético [...] pessoas idosas falando bobagens sobre sua mocidade – Não”
(TAYLOR apud THOMPSON, 1992, p. 82, 102).
O ceticismo diante das fontes orais, principalmente quando estas se originam de
velhos não invalidam sua utilização. Estudos na área de psicologia atestam-nos que as
lembranças dos idosos podem ser bastante precisas, se é que podemos usar este termo.
Thompson usou estudos de psicólogos para demonstrar-nos que a capacidade do
indivíduo de lembrar sofre um declínio até os 30 anos e daí até a velhice, pouca diferença
existe com relação à memória na fase adulta, exceto é claro em casos de doenças como
Alzheimer ou amnésia senil. (THOMPSON, 1992, p. 156).
Estudos realizados no campo da neurociência vêm demonstrando que mesmo nos
casos de doenças como as citadas acima, as primeiras memórias afetadas são de curta duração
e a memória-trabalho. (IZQUIERDO, 2002, p. 80-81) Isto significa que as memórias mais
caras ao historiador, que residem no passado e fazem parte das lembranças de longa duração,
são as mais permanentes. Neste sentido, é coerente a ligação realizada por Marcos Gigante
(2008, p. 47, grifos do autor) desta memória permanente com o que Bergson chamou de
memória pura. Ele escreveu:
Embora a memória seja coletiva, nunca pura‟, é inegável um certo núcleo
duro da memória, núcleo que é indubitavelmente individual. Mesmo em
casos de Mal de Alzleimeir, esse núcleo duro parece ser o último a
desaparecer. Diz respeito diretamente ao que a pessoa tem mais seu, sua
personalidade, seu modus faciend, maneira de agir, de resolver as coisas, de
onde jamais recua a um nível mais „primário. (GIGANTE, 2008, p. 47).
Outro fator relevante que devemos considerar é que é na velhice que ocorrem fatos
traumáticos que podem desencadear um maior interesse do sujeito em rememorar o passado.
Estes fatos podem relacionar-se a aposentadoria ou a viuvez. Thompson (1992, p. 157)
escreve este período como um momento privilegiado para as lembranças aflorarem sem uma
preocupação do narrador em “adequar a narrativa às normas sociais de quem escuta. Desse
modo, o viés proveniente da repreensão e da distorção passa a ser uma dificuldade menos
inibidora, tanto para os narradores como para o historiador”.
Também é nessa altura da vida que pode se manifestar um tipo de memória
subversiva, que não se enquadra aos novos padrões sociais e produtivos que desprezam o
velho e seus conhecimentos como ultrapassados. Em sua tese sobre os idosos asilados da
cidade de São Carlos, Marcos Antônio Gigante (2008, p. 39-40) desenvolveu o conceito de
„memória avessa‟. Escreveu:
19
[...] por memória avessa entendo aquela humanidade do sujeito que é
traduzida em lembranças que não se coadunam com as novas formas de
produzir, viver e pensar que o capital traz à tona em momentos de
reestruturações mais profundas. Ora, senão são nesses momentos que os
discursos pedagógicos ficam mais agressivos, e gerenciadores vêm à arena
exigir que se “refundam os sujeitos!”. (GIGANTE, 2008, p. 39-40).
Partindo da idéia do historiador estoniano Iúri Mikhailovich Lotman de que a cultura
humana é formada por várias estruturas concêntricas, que partem de um centro (estruturas
evidentes) para a periferia (estruturas menos evidentes), Gigante constrói seu conceito de
“memória avessa”. Segundo Gigante, a “memória avessa” reside essencialmente nestas
estruturas periféricas da cultura. “Essa memória avessa, certamente, não constitui o centro da
cultura, porque está a reboque não simplesmente da maior capacidade estrutural do centro; ela
reside nos destroços documentais dos conflitos sociais.” (GIGANTE, 2008, p. 51). Um ponto
interessante da análise feita por Gigante, refere-se à resistência individual que se traduz na
memória avessa. Essa resistência pode se manifestar de duas formas: pode ser dispensável
dentro de um sistema produtivo em que o sujeito não se enquadra e pode ser indispensável
para se construir sua identidade enquanto tal. Assim, cabe ao pesquisador a tarefa de trazer à
tona essas resistências silenciosas do sujeito que podem contribuir de forma significativa para
a compreensão do tema abordado.
O método de história oral é justificadamente utilizado em minha pesquisa por suas
peculiaridades arroladas neste capítulo, a saber: é capaz de dar vozes a sujeitos silenciados ou
pouco estudados; consegue captar no momento da criação do documento as nuances ocultas
da memória, suas supressões, distorções e reconstruções; permite o prazer do contato com a
fonte de pesquisa que, por ser viva, pode interagir conosco em uma situação que nos
colocamos como aprendizes de ouvidos atentos.
Outra grande contribuição que temos para compreender a memória deriva dos estudos
de Henri Bergson. Filósofo nascido em 1859, Bérgson foi um dos primeiros estudiosos que se
dedicou a compreender os mecanismos da memória.
Primeiramente, Bergson (1990) procurou associar a matéria à memória, ou seja, a
corporeidade à percepção. Para Bergson, quando nosso corpo percebe algo no presente, por
meio dos sentidos, recorremos às lembranças contidas no cérebro que se associam com a
percepção. Assim, nossas percepções estão diretamente condicionadas às percepções
passadas. Lembramos, ou seja, deixamos vir à tona o passado submerso no presente.
Bergson defende que temos dois tipos de memória. A primeira é a memória-hábito,
relacionada ao condicionamento cultural e envolve o esquema motor. A segunda é chamada
20
de imagem-lembrança que é para Bergson a “lembrança pura”. É esta memória que retém o
que é singular de nossa vida que para Bergson aflora no sonho, quando nosso inconsciente,
lugar onde habita a memória, cria conexões com o consciente.
As considerações de Bergson influenciaram muito as pesquisas e os debates no campo
da memória. Por meio de seus estudos fica evidente que a memória constitui-se em
conservação do passado e, portanto, “é nossa constante referência”. (GIGANTE, 2008, p. 42).
Porém, não cabe neste trabalho confrontarmos os conceitos formulados por diversos
estudiosos no assunto sobre o caráter da memória. Seja ela coletiva, determinada pelos
quadros sociais, ou pura, fruto de nosso esquema perceptivo, a memória é o que nos permite
reter nosso passado e definir nossa identidade social.
Todavia, as pesquisas acadêmicas que envolvem a metodologia de História Oral, nos
últimos anos, têm demonstrado a tendência de suprimir de teses ou dissertações um capítulo
específico que trata do método e dos procedimentos adotados para a coleta dos depoimentos e
tratamento dos mesmos. Essa tendência demonstra-nos o quanto a metodologia de História
Oral conquistou espaço nos meios acadêmicos, não sendo mais exigida de maneira categórica
uma defesa do método, como se este se encontrasse no banco dos réus, e o pesquisador
precisasse provar sua validade por meio de argumentos.
No entanto, penso ser vital fazer logo na introdução, algumas considerações sobre a
escolha do método, suas características e os procedimentos utilizados no decorrer da pesquisa.
Desta forma, é possível esclarecer aos leitores como é delicado o trabalho do historiador que
se dedica a construir, juntamente com os colaboradores que viveram em uma determinada
época e experiência, o documento sobre o qual irá se debruçar para analisar e elaborar a
história de um grupo, de um povo, de um tempo que já passou. É exatamente isso que
pretendo fazer aqui: descrever de forma simples e objetiva os caminhos escolhidos e trilhados
por quem escolheu o ofício de reconstruir um passado que ainda pulsa, porque seus sujeitos
estão vivos e são capazes de através da memória e de um movimento bidirecional entre o
pesquisador e o colaborador, puxar os fios finos que tecem suas histórias de vida e trabalho.
Por se tratarem de fontes vivas e, portanto, sujeitas a diversos fatores que podem
torná-las inviáveis de serem coletadas e utilizadas (como por exemplo, o caso de alguém não
estar disposto a ceder seus depoimentos para pesquisa) nem sempre é possível criar um
sistema de seleção de colaboradores fechado ou inflexível.
No caso da pesquisa aqui apresentada, um fator que contribuiu muito na identificação
de ex-normalistas aposentadas, foi anteriormente ter tido contato com uma delas, que foi
21
minha professora no magistério e colaboradora no meu Trabalho de Conclusão de Curso em
História1 sobre memória da educação na cidade de Franca.
Esta senhora foi tomada como o “ponto zero”2 da pesquisa, visto que a partir dela foi
possível obter indicações de possíveis colaboradores que participaram da mesma “colônia”3,
ou seja, grupo que preserva as mesmas características ou identidade cultural – que no nosso
caso é a cultura social das normalistas.
A partir de suas indicações, possíveis colaboradoras foram arroladas na lista das
normalistas a serem contadas. Destas, uma foi selecionada para fazer parte da “rede”4, ou
seja, uma subdivisão da colônia de normalistas que finalmente estava dentro do perfil
desejado para fazer parte da pesquisa.
As outras três colaboradoras foram identificadas através de contatos casuais, sendo
uma delas contatada em uma palestra sobre Memória de Franca realizada na Semana dos
Museus em 2008. Duas foram indicadas por pessoas conhecidas e todas demonstraram
interesse em participar da pesquisa, embora tenha sido necessária uma visita prévia às
entrevistadas para explicar-lhes o objetivo do trabalho e a importância de seus depoimentos
para o resgate da memória das normalistas.
A pesquisa contou com uma “rede” formada por cinco normalistas na faixa de 76 a 80
anos de idade, formadas no curso Normal, sendo três delas alunas do Colégio Nossa Senhora
de Lourdes e duas apenas concluíram sua educação na Escola Normal Livre que futuramente
tornar-se-ia Instituto de Ensino Torquato Caleiro.
Os principais critérios de seleção para fazer parte da rede foram: ser normalista, ter se
formado em colégios de caráter religioso (Nossa Senhora de Lourdes) ou laico (Instituto de
Ensino Torquato Caleiro) e também, ter exercido de alguma forma a profissão entre as
décadas de 60 a 80 do século XX. Esse período foi escolhido porque nele ocorreram grandes
transformações econômicas e políticas no Brasil, com a implantação do Regime Militar e a
diversificação da economia, fatos que impulsionaram o processo de urbanização do país. A
atuação das normalistas, reflexo da bagagem cultural que traziam consigo neste contexto, e o
tipo de educação que se pretendia consolidar dentro de um projeto militar é o eixo norteador
da pesquisa.
1 GOMES, Cristina Vieira. Memória e educação: uma análise do ensino tradicional a partir das lembranças de
educadores. (TCC UNESP) – 1996. 2 MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. 4 ed. revista e ampliada. Loyola, 1996. p. 167.
3 IDEM p. 167.
4 IDEM p. 166.
22
A partir das entrevistas citadas anteriormente para o Trabalho de Conclusão de Curso
foi possível também considerar quais as questões podiam ser exploradas nos novos contatos e
a profundidade dos conhecimentos sobre a colônia que a memória desta colaboradora, como
ponto zero, podia representar. Daí nasceram os primeiros roteiros de entrevistas.
Embora os roteiros elaborados seguissem o que chamamos de dimensões, ou seja,
grandes tópicos, através dos quais é possível disparar vários temas relacionados, não houve
uma rigidez na sua aplicação. De acordo com as respostas das colaboradoras, na primeira
entrevista, outro roteiro foi elaborado seguindo as dimensões nas quais desejava-se
aprofundar e assim foram planejados os roteiros para cada nova entrevista.
Pela própria flexibilidade do roteiro, não cabe aqui apresentá-lo da forma como foi
desenvolvido com cada uma das colaboradoras. De qualquer maneira, as dimensões ou temas
disparadores foram: os dados pessoais, perfil familiar, educação antes de entrar na escola,
educação fundamental, educação Normal, atuação profissional e visão sobre a educação
ontem e hoje.
Dentro dessas dimensões surgiram temas como: rigidez, disciplina, religiosidade,
civismo, o papel da mulher na sociedade, regras, costumes, metodologias de ensino, o
professor como modelo, currículos escolar e oculto, exame de admissão, formação
continuada, pensamento burguês, política, etc.
A forma como os roteiros foram elaborados e aplicados e a divisão deles em partes,
como dimensões e temas contribuiu bastante para a análise das entrevistas que deve ser feita
após coleta, transcrição e conferência de fidelidade (momento em que a transcrição é
conferida juntamente com a gravação a fim de corrigir eventuais erros no processo de escuta e
escrita).
A primeira tarefa do pesquisador de história oral, após ter as entrevistas transcritas em
forma de documento, é lê-las com bastante atenção e selecionar os trechos importantes que
deseja esmiuçar, interpretar. Para isso elaborei uma legenda com cores e nela coloquei todas
as dimensões e temas relacionados que aparecem na fala das colaboradoras. Cada cor
correspondendo a uma dessas dimensões. Durante a leitura de todo o material, grifei com
cores diferentes os temas que surgiram seguindo a legenda. Desta forma, no momento da
elaboração do texto da dissertação, ficou fácil encontrar os trechos que gostaria de pinçar,
pois estes saltavam aos olhos pelas cores.
A tarefa de interpretação de apenas um trecho de entrevista é árdua e delicada. É como
se pegássemos um novelo embaraçado, cheio de nós, e precisássemos, com paciência, ir
desmanchando aquele intrincado de ideias que aparecem juntas, numa mesma frase, mas estão
23
carregadas de sentido. Esse é o trabalho do oralista. Para demonstrar isso, tomemos um
pequeno trecho de entrevista de uma colaboradora como exemplo. Falando sobre a sua prática
pedagógica e da forma como conscientizou seus alunos sobre a importância dos estudos, a
colaboradora contou um episódio atual, que ocorreu com funcionários de sua fazenda, em que
fica evidente não só a valorização da educação como meio de conquistar o sucesso, mas
vários juízos de valor presentes no pensamento da colônia de normalista, que fazem parte de
sua cultura social.
Falava pra eles [os alunos] que era bom estudar, pra no futuro, ter futuro
melhor. Porque sem estudo não faz nada. O que eu falei pro menino lá na
fazenda? Que o menino não tava indo, da fazenda, recebeu o bilhetinho e a
mãe falou assim: „Ah, não precisa nada disso, nada não! Ela [a professora] mandou esse bilhete aqui, não precisa nada não. Hoje em dia qualquer um aí,
tem engenheiro [se referindo ao filho da patroa] que vai até pra roça‟ –
porque o Décio não tem paciência de ver eu lá, só ganhando dinheiro e tá
numa boa. Enquanto eu estou lá, tudo corre bem, quando eu não tô não faz
nada [os empregados]. Aí eu falei aí eu expliquei: „Olha minha filha, eu
vou falar uma coisa pra você, hoje sem estudo nada faz. Nem um lixeiro
hoje, ele não passa sem ter um concurso. Por isso ele tem que estudar. Ele
tem que ir sim na escola, porque é na escola que ele aprende. Senão, não vai
ser ninguém mesmo‟. E agora está mandando, mas foi porque eu falei e li o
bilhetinho da professora. Um bilhetinho bom sabe, explicando como ele
estava indolente. (ARQUIVO 35, p. 10-11, grifo nosso).
Este pequeno trecho trás consigo diversos temas ou unidades de sentido, que se
repetem em outras entrevistas com colaboradoras diferentes. Uma dessas unidades de sentido
que fica evidente na fala da participante pela repetição é: “estudar para no futuro, ter futuro
melhor”, ou “hoje sem estudo não faz nada”, ou ainda “senão [sem estudo] ele não vai ser
ninguém mesmo”. Estas frases traduzem o pensamento que é típico dos grupos sociais de
origem das professoras; pensamento este que difere daquele dos grupos sociais de origem dos
estudantes que deviam internalizá-las como verdade absoluta, que não devia nem podia ser
questionada. Por ser internalizada por estes últimos, serviria aos interesses capitalistas, que
necessita de formação básica suficiente para o adestramento das almas, a docilidade dos
corpos e certa especialização para o trabalho em determinadas funções.
Mas essa é a conclusão que chegamos apenas numa primeira leitura do trecho acima
transcrito; se olharmos mais de perto, fazendo uma divisão cuidadosa em partes, de acordo
com os diversos temas que vão surgindo na fala da colaboradora, o mesmo fragmento seria
assim analisado:
24
“Falava para eles [os alunos]”, fazendo alusão à sua prática quando lecionava “que era
bom estudar”, inculcação do valor do estudo; “pra no futuro, ter futuro melhor”, que justifica
o que foi dito anteriormente, que “era bom estudar”. Em seguida, há uma repetição do
pensamento dos grupos de elite: “porque sem estudo, não se faz nada”. O resgate deste
pensamento na atualidade apareceu em tom de questionamento: “O que eu falei pro menino lá
na fazenda?”. Daí se explicou a situação: “porque o menino não tava indo [na escola]”. A
colaboradora contou como foi informada do fato: “recebeu o bilhetinho [da professora]” e
mais na frente, “[...] e li o bilhetinho da senhora”. Talvez esse bilhete tenha chegado à suas
mãos porque os pais da criança são analfabetos, ou porque não tinham condições suficientes
para compreender o que estava escrito. Nesse momento do trecho apareceu um afrontamento
de opiniões em que a mãe da criança contestou a visão de que „o estudo é importante para ser
alguém na vida‟. A colaboradora prosseguiu: “A mãe falou assim: Ah não precisa nada disso,
nada não! Ela mandou esse bilhete aqui, não precisa nada não. Hoje em dia qualquer um aí,
tem engenheiro que vai até pra roça”, (fazendo alusão ao filho da colaboradora que é
engenheiro). O valor da educação para a mãe da criança que trabalha na roça, se relaciona
com a vivência dela. Se alguém que é estudado, engenheiro “vai até para a roça”, qual é o
sentido do estudo para ela? A ideologia liberal de que o estudo é meio eficaz de ascensão para
todos os grupos sociais, propagada durante décadas, já não convence a maior parte da
população que não notou grandes transformações em suas vidas e nem nas vidas de pessoas
bem próximas, que se empenharam tanto em estudar na ilusão de “vencer na vida”. Ao
contestar a patroa, esta senhora contestou a cultura social de um grupo que trás em seu bojo
pensamentos que desejam instituir como verdades absolutas para todos os grupos que as
assimilarem.
A colaboradora explicou porque seu filho “vai para a roça”: “Porque o Décio [filho]
não tem paciência de ver eu lá, só ganhando dinheiro e tá numa boa”. Também explicou
porque é importante sempre ir à fazenda: “Enquanto eu estou lá, tudo corre bem, quando eu
não tô, não faz nada [se referindo aos empregados]”. Reafirmando sua posição no confronto,
“aí eu expliquei”, a narradora continua num tom de lição, de ensinamento, no caso, maternal:
“Olha minha filha, eu vou falar uma coisa pra você”, e neste ponto retomou-se a unidade de
sentido, “hoje sem estudo, nada se faz. Nem um lixeiro hoje, [referindo-se a um trabalho
costumeiramente pré-concebido em nossa sociedade como inferior] ele não passa sem ter um
concurso”, o que reforça o valor do estudo. “Por isso ele tem que estudar”, justifica. E num
tom imperativo, como quem dá uma ordem concluiu: “ele tem que ir sim, na escola”.
Mostrando a função da escola disse: “Porque é da escola que se aprende”. “Senão”, ou seja,
25
caso não der ouvidos e estudar concluiu, “não vai ser ninguém mesmo”, porque não se espera
que se torne alguém o filho de um agricultor. O resultado é narrado assim: “E agora está
mandando” e reconheceu a importância de sua intervenção neste assunto dizendo, “mas foi
porque eu falei”. Valorizando o trabalho da professora com quem compartilha a mesma
profissão e identidade grupal, a colaboradora comentou: “e li o bilhetinho da professora. Um
bilhetinho bom sabe?” Finalmente, fica explícito um juízo de valor da colaboradora ao se
referir à criança “[...] explicando [o bilhetinho] como ele [a criança] estava indolente”. A essa
mesma conclusão chegam muitos professores atualmente, quando seus alunos resistem, de
alguma forma, à escola e ao sistema de valores e modelos que ela lhes impõe a fim de serem
facilmente dominados pelo mundo do trabalho. Mas está internalizado no pensamento dessas
normalistas, muito desses valores acima citados e que fazem parte do que elas realmente
acreditam, porque foram assim educadas desde a sua infância para crerem.
Embora possa parecer redundante ocupar algumas páginas a fim de demonstrar o que é
a análise de um depoimento, penso que isso seja importante para valorizar o trabalho do
pesquisador oralista.
A pesquisa aqui apresentada é dividida em três grandes capítulos, sendo que cada um
deles corresponde a um dos principais temas aqui abordados.
O primeiro Capítulo foi dedicado a uma breve história da educação no Brasil. Visto
que encontramos na instituição escolar fortes vestígios dos primórdios da educação brasileira,
pensamos que, através desse ligeiro retrospecto, lançamos uma base sólida para traçarmos
paralelos entre passado e presente, buscando as mudanças e, acima de tudo, as permanências
nos discursos das normalistas entrevistadas. Uma parte deste Capítulo descreve as discussões
de educadores proeminentes em torno de temas como gratuidade, laicidade e co-educação dos
sexos no ensino, e como tais questões foram inseridas e desenvolvidas no decorrer do século
XX nas Leis de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB) oportunamente, de acordo
com os interesses das elites dominantes. Ao descrevermos as mudanças e permanências nas
LDBs, lançamos base para compreendermos o sistema educacional que as normalistas foram
educadas e atuaram como educadoras, e sua visão sobre o assunto abordado.
O Capítulo 2 descreve a formação da categoria social das normalistas. Através dos
relatos procuramos reconstruir o cenário familiar em que as colaboradoras foram criadas e
educadas, bem como os costumes das famílias tradicionais no início do século XX. Em
seguida, acompanhamos todo o processo de educação formal ou escolar que as normalistas
entrevistadas receberam até concluírem o curso Normal, com o objetivo de perceber como a
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educação familiar, escolar e religiosa, sendo esta última ministrada tanto no seio da família
como pela instituição de ensino, moldaram o perfil da normalista.
Por fim, o Capítulo 3 discute a prática pedagógica das professoras primárias a partir da
segunda metade do século XX, época em que começaram a atuar. Neste capítulo analisamos o
discurso das normalistas a fim de compreender o sentido que a educação teve para elas
durante sua prática e como este correspondia aos interesses do Estado com aspirações
modernizantes.
O papel que as normalistas encarnaram e a função que aceitaram para si num país em
processo de transformação foram imprescindíveis para a implantação dos ideais democráticos,
calcados numa sociedade desigual e excludente, que teve na instituição escolar os meios para
legitimação e consagração do poder dos grupos hegemônicos.
27
CAPÍTULO 1 – HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL
1.1 A Educação no Brasil Colônia
A Educação no Brasil tem suas raízes fortemente apoiadas na cultura européia
medieval. Por meio de uma breve retrospectiva da história da educação no Brasil, desde a
chegada do colonizador europeu até a introdução da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional n° 5.692/71 procuramos mostrar como se desenvolveu o sistema educacional
brasileiro, fruto de embates ideológicos influenciados por conceitos tradicionais de
pensadores estrangeiros. O que destacaremos aqui são as permanências deste pensamento nos
discursos pedagógicos, nas leis e na própria política educacional adotada durante o período
abrangido no presente estudo. Daí a necessidade de retroceder na corrente do tempo pelo
menos quinhentos anos, a fim de buscar as raízes do modelo educacional que permeará a
ensino brasileiro durante séculos, ora de maneira evidente no cotidiano das práticas
pedagógicas, ora sutil, através de propostas educacionais que se autodenominam “novas”, mas
que trazem em seu seio, idéias nada originais. Estas idéias serão desenvolvidas no decorrer
deste capítulo. Agora, no entanto, passemos para a origem do ensino formal no Brasil, com a
chegada dos portugueses e o início da colonização.
Desprezando a cultura nativa passada oralmente de geração em geração, os
colonizadores, ao chegarem aqui, trouxeram consigo os primeiros educadores que
constituíram a educação formal e institucionalizada no Brasil: os Jesuítas.
Os padres da Companhia de Jesus chegaram ao Brasil nos idos de 1549 e 1553 e aqui
permaneceram até sua expulsão pelo Marques de Pombal em 1759. Durante pouco mais de
duzentos anos, esta ordem dominou a educação no Brasil. (AZEVEDO, 1963, p. 502-503).
Percebendo a importância da educação como instrumento de dominação dos povos
conquistados, com o apoio da Coroa portuguesa, os jesuítas implantaram no Brasil o primeiro
sistema organizado de ensino. As escolas de ler e escrever atendiam os filhos dos nativos, dos
colonos e dos reinóis. Como o próprio nome indica, nelas aprendia-se a ler, escrever e no caso
dos nativos, a falar português. Essa heterogeneidade na formação das turmas de educandos
funcionava como estratégia de dominação: o contato entre os nativos e as crianças brancas já
era um estímulo para a aculturação dos primeiros, como aponta Azevedo (1963, p. 507):
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Atraindo os meninos índios às suas casas ou indo-lhes ao encontro nas
aldeias; associando, na mesma comunidade escolar, filhos de nativos e de
reinóis, - brancos, índios e mestiços, e procurando na educação dos filhos,
conquistar e reeducar os pais, os Jesuítas não estavam servindo apenas à obra
de catequeses, mas lançavam as bases da educação popular e, espalhando nas
novas gerações a mesma fé, a mesma língua e os mesmos costumes,
começava a forjar, na unidade espiritual, a unidade política de uma nova
pátria. (AZEVEDO, 1963, p. 507).
Educando as crianças nativas, os Jesuítas encontravam o caminho para chegar aos
pais, mais arraigados à cultura indígena:
Em toda essa obra magnífica, de catequese e colonização, utilizavam os
padres não só a influência dos meninos brancos, órfãos ou filhos de colonos,
sobre os meninos índios, postos em contato com aqueles nos mesmos
colégios, como também a ação dos colonins que, ensinados pelos padres,
saíam pelas aldeias a ensinar os pais na própria língua dos índios.
(AZEVEDO, 1963, p.507).
Assim, os pequenos nativos se tornaram multiplicadores da cultura europeia de
dominação.
Aproximadamente um século após chegarem ao Brasil, os Jesuítas ampliaram o
sistema educacional, implementando o curso de letras humanas, dividindo em gramática,
humanidades e retórica e o curso de “artes” que incluía filosofia e ciências físicas e naturais.
Estes cursos, porém, não se destinavam aos nativos; eram ministrados aos filhos da elite
patriarcal que, normalmente, após concluí-los, partiam para Portugal, a fim de obter educação
superior na Universidade de Coimbra.
Para estes, a educação assumiu o papel de instrumento de dominação. Como bem
observa Azevedo (1963, p. 523-524):
Entre as três instituições sociais que mais serviam de canais de ascensão, a
família patriarcal, a igreja e a escola, estas duas últimas, que constituíram um
contrapeso à influência da casa-grande, estavam praticamente nas mãos da
Companhia: quase toda a mocidade, de brancos e mestiços, tinha de passar
pelo molde do ensino jesuítico, manipulada pelos padres, em seus colégios e
seminários, segundo os princípios da famosa ordenação escolar, e atribuída
para as funções eclesiásticas, a magistratura e as letras. O gosto que
despertaram pelos estudos e pelos títulos acadêmicos (e aqui não se
conferiam para os leigos, senão os de bacharel e licenciado em artes) e o
desejo de ascensão social, tão vivo entre mestiços como em filhos de
brancos, de senhores de engenho e de burgueses, tornaram cedo a
universidade um ideal comum: “a magistratura, o canonicato, escreve, Pedro
Calmon, honravam por seus privilégios, elevavam o homem a um nível
egrégio, davam-lhe, principalmente na colônia uma eminente situação, ao
par dos cargos de governo”. (AZEVEDO, 1963, p. 523-524).
29
Desde então, notamos nascer no Brasil o culto à educação como forma de ascensão
social e, quiçá, de dominação econômica e política. Desta forma é possível notar, desde os
primórdios da educação institucionalizada no país, a dicotomia do ensino: um elementar,
porém, útil para a dominação e aculturação dos povos nativos e outro literário e de tradição
escolástica para os dominadores. Esta característica dual do ensino que perdura até os nossos
dias será discutida posteriormente nesta pesquisa, pois é claramente perceptível no período
estudado.
A aversão aos estudos técnicos e ao trabalho produtivo fez da educação jesuítica dada
à elite a marca registrada. Como bem observou Azevedo (1963, p. 533) “a vocação dos
jesuítas era outra certamente, não a educação popular primária ou profissional, mas a
educação das classes dirigentes, aristocrática, com base nos ensinos das humanidades”.
O trabalho produtivo era realizado pelos escravos e pelos nativos e as técnicas
produtivas eram transmitidas de geração para geração de forma empírica. Não havia, portanto,
preocupação com a formação para o trabalho das camadas populares por parte dos jesuítas.
Durante o Brasil Colônia, a atividade econômica predominante era a produção do
açúcar nos engenhos. A formação das competências necessárias para atuar no processo de
produção do açúcar ocorria no próprio cotidiano do engenho. Ao mestre do açúcar,
conhecedor de todo o processo, cabia supervisionar o trabalho de vários profissionais
especializados em diferentes etapas da produção.
Uma descrição detalhada do processo de fabrico do açúcar feita por Antonil (1982, p.
85-86) nos dá a noção da complexidade da tarefa do mestre de engenho bem como da
diversidade de habilidades e competências que este deveria apresentar:
A quem faz o açúcar, com razão se dá o nome de mestre, porque o seu obrar
pede inteligência, atenção e experiência, e esta, não basta que seja qualquer,
mas é necessária a experiência local, a saber, do lugar e qualidade da cana,
onde se planta e se mói; por que os canaviais, de uma parte, dão cana muito
forte, e de outra, muito fraca. Diverso sumo tem a cana das várzeas do que
tem a dos outeiros: a das várzeas vem muito aguacenta e o caldo dela tem
muito que purgar nas caldeiras, e pede mais decoada; a dos outeiros vem
bem açucarada e o seu caldo pede menos tempo e menos decoada para se
purificar e clarificar. Nas tachas há melado, que quer maior cozimento e há
outro de menor; um, logo se condensa na batedeira, outro, mais devagar. Das
três têmperas que se hão de fazer para encher as formas, depende o purgar-se
o açúcar bem ou mal, conforme elas são. Se o mestre se fiar dos caldeireiros
e dos tacheiros, umas vezes cansados, outras sonolentos e outras alegres
mais do que convém, e com a cabeça esquentada, acontecer-lhe-á ver
perdida uma e outra meladura, sem lhe poder dar remédio. Por isso, vigie em
cousa de tanta importância; e se o banqueiro e o ajuda-banqueiro não
tiverem a inteligência e a experiência necessária para suprirem em sua
30
ausência, não descanse sobre eles, ensine-os, avise-os e, se for necessário,
repreenda-os, pondo-lhes diante dos olhos o prejuízo do senhor do engenho e
dos lavradores, se se perder o melado nas tachas ou se for mal temperado
para as formas. (ANTONIL, 1982, p. 85-86).
Entretanto, a cultura transplantada da metrópole para a colônia pelos jesuítas cumpriu
com sua tarefa: criar por meio de bens culturais veiculados pela educação, uma estrutura de
dominação colonial. Nas palavras de Romanelli (1978, p. 22), “o controle, domínio e
manipulação desses bens ajudaram a manter a dependência cultural da colônia, ao mesmo
tempo em que conferia status a classe dominante e contribuía para manter a distância entre
esta e as demais classes sociais”.
Em 1759 o Marques de Pombal, com a autoridade conferida por Dom João V,
expulsou do Brasil a Ordem Jesuítica, provocando o desmantelamento do sistema educacional
criado por eles. Durante os treze anos seguintes, o Brasil vivenciou um período de abandono
que terminou com a implantação das aulas régias que não lograram os mesmos resultados da
educação sistematizada organizada pelos jesuítas, dada a sua fragmentação. (AZEVEDO,
1963, p. 553).
Com a expulsão [dos jesuítas], desmantelou-se toda a estrutura
administrativa do ensino. A uniformidade da ação pedagógica, a perfeita
transição de um nível escolar para outro, a graduação, foram substituídas
pela diversificação das disciplinas isoladas. Leigos começaram a ser
introduzidos no ensino e o Estado assumiu pela primeira vez, os encargos da
educação. (ROMANELLI, 1978, p. 36).
Entretanto, o que se observou, na prática, foi a sobrevivência da pedagogia jesuítica,
visto que os mestres de agora, em sua maioria os tios-padres e capelães de engenho5, eram
fruto da educação dos jesuítas nos seminários de formação do clero secular (FREYRE, 1936,
p. 62-63 apud AZEVEDO, 1963, p. 514). Assim, os jesuítas foram expulsos, mas sua
influência ainda se fazia sentir durante toda a era pombalina no que tange aos métodos, a
valorização do ensino literário e religioso. Acima de tudo, coube aos capelães de engenho
consolidar a educação moral e cristã, fundamental para conformar a alma e os corpos dos
escravos, que então representavam a base da sociedade, tornando-os dóceis e subordinados
5 No sistema patriarcal instituído durante o período colonial era sempre o primogênito do senhor de terras o
herdeiro natural. Ao segundo, cabia seguir os estudos e alcançar o almejado título de bacharel. Se houvesse um
terceiro filho, este deveria seguir a carreira eclesiástica, formando-se nos seminários do clero secular e mais
tarde voltando aos domínios paternos para exercerem sua missão como capelães de engenho. Estes eram
conhecidos como os tios-padres. Durante o período da reforma pombalina eles é que assumiram a educação nos
engenhos.
31
aos interesses da elite. A importância do capelão de engenho é descrita por Antonil (1982, p.
81) da seguinte forma:
O primeiro, que se há de escolher com circunspecção e informação secreta
do seu procedimento e saber, é o capelão, a quem se há de encomendar o
ensino de tudo o que pertence à vida cristã, para desta sorte satisfazer à
maior das obrigações que tem, a qual é doutrinar ou mandar doutrinar a
família e escravos, não já por um crioulo ou por um feitor que, quando
muito, poderá ensinar-lhes vocalmente as orações e os mandamentos da lei
de Deus e da Igreja, mas por quem saiba explicar-lhes o que hão de crer, o
que hão de obrar, e como hão de pedir a Deus aquilo de que necessitam. E,
para isso, se for necessário dar ao capelão alguma cousa mais do que se
costuma, entenda que este será o melhor dinheiro que se dará em boa mão.
(ANTONIL, 1982, p. 81).
Foi somente com a vinda da Família Real para o Brasil (1808), quase meio século após
a expulsão dos jesuítas, que o sistema educacional começou a apresentar as primeiras
mudanças. O panorama colonial sofreu transformações e o modelo literário e basicamente
eclesiástico, herança dos jesuítas não correspondia mais aos anseios da sociedade atendida por
poucas e esparsas instituições escolares, que não se limitava mais aos filhos oriundos da casa
grande. A urbanização acompanhada pelo desenvolvimento das atividades econômicas na
mineração e na indústria exigia um novo modelo educacional para atender à demanda. No
tocante ao desenvolvimento industrial vale salientar que a primeira iniciativa do Príncipe
Regente Dom João VI ao chegar ao Brasil, foi revogar o alvará de 5 de janeiro de 1785, que
ordenava o fechamento de todas as fábricas da colônia. Neste contexto, começou a florescer
as primeiras indústrias no Brasil e, segundo Gilberto Freire, o Seminário de Olinda, criado por
Azeredo Coutinho em 1798 e fundado em 1800
„começou a ensinar as ciências úteis que tornassem o rapaz mais apto a
corresponder às necessidades do meio brasileiro, cuja transição do
patriarcalismo agrário para um tipo de vida urbana e mais industrial, exigia
orientadores técnicos bem instruídos e não apenas artífices negros e
mulatos...‟ como também „o estudo dos problemas econômicos criados pela
mineração, pela industrialização, pelo declínio da economia baseada
simplesmente na monocultura e no monopólio‟. (FREYRE, 1936, p. 105
apud AZEVEDO, 1963, p. 558-559).
As medidas tomadas por Dom João na criação de instituições escolares demonstram o
caráter pragmático que caracterizou o período. Sua preocupação foi fundar escolas técnicas,
profissionalizantes que preparassem em pouco tempo e a custo reduzido pessoas para
trabalharem junto ao serviço público. Assim, nas palavras de Azevedo (1963, p. 563) “quase
32
toda a obra escolar de Dom João VI, impelida pelo cuidado e pela utilidade prática e imediata,
pode se dizer que foi uma ruptura completa com o programa escolástico e literário do período
colonial”.
1.2 A Educação no Brasil Império
No ano de 1822 foi Proclamada a Independência do Brasil e, no ano seguinte,
convocou-se a Assembleia Constituinte. As ideias liberais prevalecentes entre os participantes
se fizeram presentes na preocupação com a educação popular. Entretanto, com a dissolução de
Assembleia Constituinte, os anseios liberais caíram por terra. A Constituição outorgada por
Dom Pedro I em 11 de dezembro de 1823 e registrada na Secretaria de Estado dos Negócios
do Império do Brazil em 22 de abril de 1824, garantia no artigo 179, nº XXXII “A Instrução
Primária, e gratuita a todos os cidadãos”. Em sequência, no nº 33 instituiu a criação de
“Colégios e Universidades aonde serão ensinados os elementos das Sciências, Bellas Artes e
Artes” (Constituição de 1824). Excetuando-se essa duas leis referentes à Educação, não existe
nada de consistente, do ponto de vista do comprometimento do governo imperial, com a
remodelação do sistema de ensino no Brasil que na prática continuou sendo privilégio de
poucos.
As tendências descentralizadoras e regionalistas que ameaçavam a unidade nacional
do Brasil se materializam no Ato Adicional de 1834 que em seu art.10, item dois incumbiu a
Assembleia Legislativa Provincial de zelar pela instrução pública primária e secundária.
Assim:
[...] o governo da União, a que competia, como centro coordenador e
propulsor da vida política do país, se exonerava por essa forma, segundo as
expressões de Tavares Bastos „do principal dos deveres públicos de uma
democracia‟, que é o de levar a educação geral e comum a todos os postos
do território e organizá-la em bases uniformes e nacionais. (AZEVEDO,
1963, p. 566).
Como consequência, o ensino primário continuou restrito a um décimo da população
em idade escolar, o que torna evidente que a instrução primária gratuita para todos assegurada
pela Constituição de 1834 persistia como letra morta. Enquanto a escola primária se limitou
ao ensino da leitura, escrita e operações matemáticas básicas, o curso secundário continuou
priorizando o ensino do tipo aristocrático, formador da elite. Dessa forma, não havia
33
articulação entre os dois sistemas de ensino. Nas palavras de Azevedo (1963, p. 568) tratava-
se de “dois mundos que se orientam, cada um na sua direção”.
O ensino secundário passou a ser assumido, sobretudo, pela iniciativa privada, em sua
maioria, colégios de natureza confessional, o que acentuou ainda mais seu caráter elitista.
1.3 A Educação no Brasil República
Em fins do século XIX, o Brasil foi palco de acontecimentos importantes que
atingiram e modificaram definitivamente seu panorama econômico, social e político. Em
1888, a abolição dos escravos golpeou o regime econômico baseado na monocultura
escravista. No ano seguinte, ocorreu a Proclamação da República, e em 24 de fevereiro de
1891, tivemos nossa primeira Constituição republicana.
No que tange à educação, a Constituição de 1891 reforçou o caráter federalista e
descentralizador do Ato Adicional de 1824, deixando nas mãos dos Estados, antigas
províncias, a educação primária. Mais uma vez o governo federal desviou de suas mãos a
responsabilidade para com o ensino primário, o que não permitiu o estabelecimento de uma
unidade na estrutura educacional do país durante toda a Primeira República.
Na opinião de Romanelli (1978, p. 41) a Constituição de 1891
Era, portanto, a consagração do sistema dual de ensino, que vinha mantendo
desde o Império. Era também uma forma de oficialização da distância que
mostrava, na prática, entre a educação da classe dominante (escolas
secundárias acadêmicas e escolas Superiores) e educação do povo (escola
primária e escola profissional). Refletia essa situação uma dualidade que era
o próprio retrato da organização social brasileira. (ROMANELLI, 1978, p.
41).
A novidade da Constituição de 1891, apresentada no artigo 72, parágrafo 6, foi a
introdução da laicidade do ensino ministrado nos estabelecimentos públicos. Esse tema
tornou-se alvo de muitas discussões nas constituições futuras, provocando uma cisão entre os
educadores envolvidos e abalando o monopólio da Igreja sobre a educação. Entretanto, como
veremos nas duas constituições que se seguiram, a questão do ensino laico foi retomada e
abriu-se uma brecha na lei, a fim de que o ensino religioso voltasse a ser instituído nas escolas
públicas. Enquanto a Constituição de 1891 era resoluta em determinar que o ensino nos
estabelecimentos públicos devesse ser leigo, a Constituição de 1934, no artigo 153, permitia
que o ensino religioso fizesse parte da grade curricular das escolas públicas, sendo de
34
frequência facultativa e, finalmente em 1937, o artigo 183 isentou os mestres de ministrá-lo,
conservando sua frequência facultativa para os alunos.
Percebemos assim que a questão da laicidade do ensino introduzida com o advento da
República foi tema de lutas de caráter ideológico que ocorreram no seio da nova sociedade
que se constituía. De um lado, a Igreja procurou de todos os modos, garantir seu monopólio
sobre a educação, principalmente do Ensino Médio, enquanto do outro, as classes médias em
ascensão exigiram que o Estado assumisse sua responsabilidade para com o ensino, que
deveria ser gratuito, obrigatório e laico. Apesar da luta dos renovadores pela laicização do
ensino, e das pequenas vitórias conquistadas por eles nas constituições republicanas que se
seguiram – haja vista que o ensino religioso se perpetuou como facultativo – observamos que
a essência da moral cristã continuou a constituir parte do currículo, se não de modo formal,
certamente de maneira oculta e dissimulada. (APPLE, 1989).
A tradição religiosa observada nas práticas educacionais de origem europeia encontrou
terreno fértil no Brasil e aqui se consolidou, desde o período Colonial até o Republicano. Com
a finalidade de inculcar nas mentes dos filhos dos trabalhadores a obediência e resgatá-los dos
costumes ruins que os levariam ao ócio e a tentativa de driblar as imposições sofridas pela sua
própria situação de miséria, a educação moral e cristã tornou-se fundamental nas escolas de
educação elementar.
Uma escola francesa elementar do Século XIX é descrita da seguinte maneira por
Petitat (1994, p. 121-122):
A escola elementar dos pobres, neste ponto, não difere das pequenas classes
dos colégios ou das escolas de bairro. De tanto concentrarmo-nos naquilo
que separa as redes de escolas elementares, esquecemos aquilo que as une:
jornadas ritmadas por orações, uma literatura escolar recheada de máximas
morais e uma organização pedagógica (horário escolar, supervisão
ininterrupta, estrito controle dos conteúdos, estimulação, outorga de cargos
honoríficos a alunos, minuciosa divisão e progressiva acumulação dos
programas) que visa tanto a criação de “bons hábitos”, quanto a eficácia
didática na aprendizagem da escrita. (PETITAT, 1994, p. 121-122).
Essa descrição muito se assemelha à feita pelas professoras entrevistadas nesta
pesquisa, que foram educadas e que atuaram como docentes, durante as décadas de 30 a 80 do
século XX. Embora estas profissionais não constituíssem parte integrante das escolas voltadas
para a educação dos pobres, eram elas que desempenhariam o papel de promotoras da
educação dos mesmos futuramente, enquanto normalistas e, neste sentido, era necessário
35
desde cedo, engendrar em sua própria formação, o respeito, a disciplina e o controle dos
corpos defendidos pela moral cristã.
O currículo oculto (APPLE, 1989) se manifestava na postura do professor que, desde
sua vestimenta até os seus movimentos, devia encarnar o modelo de moral cristã, que seus
alunos deveriam imitar.
Discretamente vestidas, geralmente saias mais compridas, bem compridas,
meias. Sapatos fechados daquele estilo assim de amarrar, tipo assim, saltinho
baixinho, sabe um sapato que ele vem assim, amarra em cima. Camisas,
blusinhas ou assim ou manguinhas compridas, fechadinhas assim, sabe, de
golinha. Cabelinhos discretamente arrumados. (ARQUIVO 12, p. 12).
Esse e outros detalhes da formação da normalista serão explorados através dos relatos
da rede no Capítulo 2, em que mostraremos como a educação integral que receberam, estava a
serviço do Estado e da educação que se pretendia dar aos alunos de ensino primário.
1.3.1 O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e sua repercussão na educação do Brasil
Desses embates ideológicos, surgiu um movimento renovador que se formalizou com
a publicação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova no ano de 1932. Utilizando os
preceitos liberais da laicidade, gratuidade e obrigatoriedade do ensino, um grupo formado por
educadores intelectuais que, a pedido do então Presidente em exercício, Getúlio Vargas, se
reuniram a fim de estabelecer diretrizes para uma nova política educacional que coincidisse
com as aspirações do movimento revolucionário que acabava de se instalar no poder. Segundo
Paschoal Lemme (2005, p. 171), um dos signatários do documento, na IV Conferência
Nacional de Educação em que estava presente,
O chefe do Governo Revolucionário – Getúlio Vargas – especialmente
convidado, instalou os trabalhos da conferência e, em memorável discurso,
disse aos educadores presentes que os considerava convocados para
encontrarem uma „fórmula feliz‟ com a qual fosse definido o que ele
denominou de „sentido pedagógico‟ da Revolução de 1930, que o governo se
comprometia a adotar uma obra em que estava empenhado de reconstrução
do País. (LEMME, 2005, p. 171).
36
A questão da laicidade voltou à tona durante a redação do documento e acabou por
provocar uma ruptura entre os grupos participantes.
Houve então sérias divergências entre os participantes da Conferência, o que
redundou até na retirada do grupo dos educadores católicos, que discordaram
das primeiras redações do documento, em aspectos fundamentais, tais como
prioridade outorgada ao Estado para a manutenção do ensino, ensino leigo,
escola única, coeducação dos sexos, etc. (LEMME, 2005, p. 171).
De acordo com o manifesto, a educação deveria ter “uma função essencialmente
pública”. Sob este tópico o documento reza:
Mas, do direito de cada indivíduo à sua educação integral, decorre
logicamente para o Estado que o reconhece e o proclama, o dever de
considerar a educação, na variedade de seus graus e manifestações, como
uma função social e eminentemente pública, que ele é chamado a realizar,
com a cooperação de todas as instituições sociais. (AZEVEDO, 1932, p.
192).
No entanto, o Estado reconhecia suas limitações e, consciente de que não podia
assumir a responsabilidade pela educação em todos os níveis, permitiu que o ensino privado
continuasse funcionando paralelamente ao ensino público, sob sua vigilância. Desta forma, o
governo não entrou em conflito direto com a iniciativa particular e com os interesses da elite,
pois sabia que não tinha condições de implantar um sistema educacional único gratuito e, ao
mesmo tempo, atendeu às aspirações dos grupos emergentes que viam na educação um meio
de ascensão social. Consolidava-se desta forma o modelo dualista da educação brasileira.
Como bem observou Xavier (1990, p. 72):
Essa concessão, admitida no próprio libelo renovador dos pioneiros, e
aparentemente não percebida como comprometedora para o „projeto de
reconstrução social via reconstrução educacional‟, favorecia a legitimação,
dentro da nova ótica progressista, do tradicional dualismo educacional
brasileiro [...]. Essa concessão „realista‟, admitida e incorporada pelos
ideólogos da renovação, criava também condições favoráveis para a defesa
dos incentivos à escola privada, que se acelerará nas próximas décadas. É
interessante observar o processo através do qual a adesão a um modelo
educacional acaba por transformar-se, via concessão à realidade dos fatos,
numa mera declaração de intenções otimistas que, redimensionadas,
avalizam a perpetuação do vigente. (XAVIER, 1990, p. 72).
De fato, o Governo “Revolucionário” que pregava uma transformação nacional via
educação, através do Manifesto, abriu uma brecha para a manutenção do sistema baseado no
reforço da desigualdade: uma educação voltada para as elites, de iniciativa particular e outra
37
atendendo os filhos dos trabalhadores em geral. Notamos que nesta fase ocorreu um grande
impulso da educação privada que encontrou campo para seu crescimento e desenvolvimento
em detrimento da educação pública que, por pelo menos quase meio século, era ainda
incipiente diante da demanda nacional.
A obrigatoriedade e a gratuidade do ensino também foram defendidas no Manifesto:
“O Estado não pode tornar o ensino obrigatório se não for gratuito”. (AZEVEDO, 1932, p.
194).
Na opinião dos redatores do documento a obrigatoriedade só sairia do papel como
letra morta a partir do momento em que o Estado desse condições para que pessoas de todos
os níveis sociais pudessem dela usufruir. Isto só seria possível se o ensino fosse gratuito.
É evidente que os preceitos liberais defendidos neste documento histórico respondiam
aos anseios de um governo com aspirações modernizantes. Após a crise de 1929, o Brasil
entrava em uma nova fase econômica marcada pela migração do capital do setor agrícola para
a indústria, até então incipiente. Era preciso qualificar mão de obra para trabalhar na indústria
e a educação cumpriria seu papel neste aspecto. Paschoal Lemme (2005, p. 166) ao analisar o
contexto do período escreveu:
O desenvolvimento e a diversificação da indústria traziam como
conseqüência natural a necessidade de uma melhor preparação de mão de
obra, com reflexos na quantidade de escolas e na qualidade de ensino. A
chegada de grandes contingentes de imigrantes estrangeiros, como vimos,
portadores de uma educação mais aprimorada, elementar, profissional, e
mesmo de nível secundário, passou a pressionar nossa precária estrutura de
ensino, no sentido de sua melhoria. De outro lado, as relações sociais
propiciadas pela intensificação da urbanização e a criação de novas
categorias de empregados, no comércio, de escritório, e de funcionários
públicos, agiram no mesmo sentido da exigência de um ensino mais
eficiente, não somente em relação ao 1º grau, mas também no tocante ao 2º
grau, de caráter geral e profissional. (LEMME, 2005, p. 166).
Neste sentido o Manifesto dos Pioneiros da Educação subordinou mudanças
econômicas à reforma educacional. Logo na introdução lemos:
Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importância e
gravidade ao da educação. Nem mesmo os de caráter econômico lhe podem
disputar a primazia nos planos de reconstrução nacional. Pois, se a
evolução orgânica do sistema cultural de um país depende de suas condições
econômicas ou de produção, sem o preparo intensivo das forças culturais e o
desenvolvimento das aptidões à invenção e à iniciativa que são os fatores
fundamentais de acréscimo de riqueza de uma sociedade. (AZEVEDO,
1932, p. 188, grifo nosso).
38
Segundo o documento, as reformas anteriores fracassaram por dissociarem economia e
educação. Ambas deveriam ser encadeadas a fim de “criar um sistema de organização escolar,
à altura das necessidades modernas e das necessidades do país.” (AZEVEDO, 1932, p. 188).
No entanto, o próprio Manifesto não logrou êxito de imediato, visto que seus
pressupostos foram implantados no Brasil de modo parcial, fragmentário e tardio. O governo
que se autoproclamou revolucionário, logo mostrou sua face reacionária e autoritária quando
em 1937 implantou o Estado Novo.
Num balanço realizado por Paschoal Lemme sobre os cinquenta anos do Manifesto da
Educação Nova e suas repercussões no Brasil, o autor admitiu que os dados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) e do IBGE comprovavam que na década de 80 a
exclusão social e educacional ainda era um fato relevante na realidade brasileira. Para Lemme
isso não evidenciava uma falha nas propostas dos Pioneiros e sim um descompasso entre os
pressupostos apregoados por eles e o contexto nacional com uma “estrutura da sociedade
brasileira [...] profundamente antidemocrática”. A solução apontada por Lemme (2005, p.
178) para a implantação dos ideais de igualdade de oportunidades via educação defendida
pelos Pioneiros, se daria “somente quando alcançarmos um regime verdadeiramente
democrático é que se criarão as condições para que se possa florescer uma educação
democrática, na qual prevaleça o preceito fundamental da democracia que é a igualdade de
oportunidades para todos”.
É interessante notar a mudança que ocorreu no discurso deste participante do
movimento escolanovista meio século após o lançamento do Manifesto dos Pioneiros da
Educação Nova.
Enquanto o Manifesto dos Pioneiros criticava as políticas educacionais anteriores por
dissociarem a educação da economia e propunha uma reforma do país – inclusive das bases
econômicas – via educação, Paschoal Lemme admitiu que era impossível a proposta dos
pioneiros lograr algum êxito se não houvesse primeiro uma mudança conjuntural que tornasse
a nação mais democrática.
O otimismo do discurso dos Pioneiros da Educação Nova revestiu-se de uma sombria
constatação de que o projeto educacional apresentado por seus idealizadores não era
suficientemente consistente para trazer ao Brasil uma nova fase de desenvolvimento e bem
estar social.
Embora o Manifesto defendesse a igualdade no direito à educação para todos, deixava
escapar seu ranço elitista ao defender uma espécie de seleção natural, em que somente os
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capazes conseguiriam chegar ao ápice educacional, ou seja, à universidade, tornando-se por
merecimento a elite dirigente da nação. Com respeito a este tema o documento reza:
Se o problema fundamental das democracias é a educação das massas
populares, os melhores e os mais capazes por seleção devem formar o vértice
de uma pirâmide de base imensa [...]. Essa seleção que se deve processar
não “por uma diferenciação econômica” mas, “pela diferenciação de todas
capacidades”, favorecida pela educação, mediante ação biológica e
funcional, não pode, não diremos completar-se, mas nem sequer realizar-se
senão pela obra universitária que, elevando ao máximo o desenvolvimento
dos indivíduos dentro de suas aptidões naturais e selecionando os mais
capazes, lhes dá bastante força para exercer influência efetiva na sociedade e
afetar, dessa forma, a consciência social. (AZEVEDO, 1932, p. 200).
Com esse discurso o Manifesto defendia o conceito de que o desenvolvimento e o
sucesso do indivíduo estavam diretamente relacionados ao mérito, justificando desta forma a
sociedade desigual e excludente existente. Ao propor um sistema educacional de caráter
altamente seletivo, o Manifesto caiu na armadilha da “postura tradicionalista, já que a noção
de desigualdade social justa, com base na hierarquia das capacidades, é a base da legitimação
da escola e da própria sociedade capitalista no pensamento liberal” (XAVIER, 1990, p. 87).
O Manifesto, fruto da influência do pensamento da escolanovista, que teve como um
dos seus maiores expoentes o filósofo norte-americano John Dewey tinha como pressuposto
básico o pragmatismo educacional como substitutivo da tradição filosófica humanista-cristã
que predominava no período. Propunha uma educação voltada para o indivíduo que levasse
em consideração seus interesses, a fim de desenvolver suas potencialidades e inseri-lo na
sociedade.
Considerando a criança o cerne em torno do qual deveria se desenvolver toda a
prática educativa, o escolanovismo criticava o ensino tradicional que impunha ao indivíduo
um conhecimento pronto e acabado que lhe era exterior. Para os progressistas a educação
deveria levar em consideração a curiosidade da criança, aguçando assim sua capacidade
criadora.
Notamos que a proposta escolanovista era profundamente influenciada pelos estudos e
descobertas de fins do século XIX e início do século XX na área da psicologia. Para os
redatores do Manifesto, isto é o que distinguia esta nova proposta educacional das anteriores.
No Manifesto lemos:
O que distingue da escola tradicional a escola nova, não é, de fato, a
predominância dos trabalhos de base manual e corporal, mas a presença, em
todas as suas atividades, do fator psicológico do interesse, que é a primeira
40
condição de uma atividade espontânea e o estímulo constante ao educando
(criança, adolescente ou jovem) a buscar todos os recursos ao seu alcance,
“graças a força de atração das necessidades profundamente sentidas”.
(AZEVEDO, 1932, p. 196).
Comentando a proposta educacional da escola nova, Paschoal Lemme (2005, p. 167)
relatou:
Esse movimento de renovação escolar, que passou a ser conhecido como o
da “Escola Nova” ou “Escola Ativa”, baseava-se nos progressos mais
recentes da psicologia infantil, que reivindicava uma maior liberdade para a
criança, o respeito às características da personalidade de cada um, nas várias
fases de seu desenvolvimento, colocando o “interesse” como o principal
motor da aprendizagem. Era o que John Dewey, considerado o maior
filósofo e educador norte-americano, pregava como uma verdadeira
revolução – “a revolução copernicana” – em que o centro da educação e da
atividade escolar passava a ser a criança com suas características próprias e
seus interesses e não mais a vontade imposta do educador. (LEMME, 2005,
p. 167).
É curioso notar que os precursores da Escola Nova tomaram para si a idéia de colocar
a criança no centro da educação como uma novidade, em suas palavras, “como uma
verdadeira revolução copernicana”, esquecendo-se, porém, que já no século XVII Comenius,
em sua Didática Magna (1627), propunha uma educação voltada para a criança e seus
interesses. No capítulo XVII sob o tópico “Fundamentos para ensinar e aprender com
facilidade”, Comenius citou dez “pegadas da natureza” que deveriam ser seguidas pelos
educadores para que pudessem ter sucesso no ensino. Dentre elas destacam-se:
I – começar cedo, antes da corrupção das inteligências;
VII – e se os espíritos não forem constrangidos a fazer nada mais que aquilo
que desejam fazer espontaneamente, segundo a idade e por efeito do método;
IX – e fazendo ver sua utilidade imediata. (COMENIUS, 1627).
Aprofundando sua explicação de cada um desses fundamentos, Comenius (1627)
assim justificou a educação voltada para a criança: “as mentes jovens, ainda não habituadas a
se distraírem com outras ocupações, se embebem bem dos estudos da sabedoria. E, quanto
mais tarde começa a formação, tanto mais embaraçada procede, pois a mente já está ocupada
com outras coisas.” (COMENIUS, 1627).
E sobre o fundamento VII, demonstrou através da comparação que, assim como uma
avezinha não é constrangida pela natureza a sair do ovo antes da hora, na educação, “a nada se
41
obrigue a juventude, a não ser aquilo que a idade e a inteligência, não só admitem, mas até
desejam”. (COMENIUS, 1627).
Também notamos que o caráter pragmático defendido pelos escolanovistas já era
sugerido por Comenius no IX fundamento que asseverava: “não se ensine senão aquilo que se
apresente como imediatamente útil.” (COMENIUS, 1627). Desta forma, podemos concluir
que a Escola Nova, nos seus preceitos fundamentais não era tão nova assim, pois baseava seus
princípios em antigas propostas que apenas não eram colocadas em prática, nem no Brasil
onde encontrou terreno fértil, nem no exterior, onde supostamente teria nascido.
1.3.2 O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e a formação do professor
Sob o tópico “A unidade de formação de professores e a unidade de espírito”, o
Manifesto dos Pioneiros defendia que os educadores, como parte integrante da elite brasileira,
deveriam receber uma educação própria para atuarem como tal. Criticava fortemente a
formação dos professores que no início do século XX ainda se organizava nos moldes da
Reforma Benjamin Constant, empreendida no final do século anterior e de cunho positivista.
De acordo com Azevedo (1963, p. 623), “a reforma do ensino secundário e normal, sob a
inspiração de Benjamin Constant, deu ao ensino propedêutico, e a formação profissional do
professor um caráter mais enciclopédico do que científico”. Isso se chocava diretamente com
os preceitos escolanovistas que defendiam o pragmatismo científico na educação.
Assim, o Manifesto dirigiu a sua crítica aos cursos de formação de professores
dizendo:
O magistério primário, preparado em escolas especiais (escolas normais), de
caráter mais propedêutico, e, às vezes misto, com seus cursos geral e de
especialização profissional, não recebe, por via de regra, nesses
estabelecimentos, de nível secundário, nem uma sólida preparação
pedagógica, nem a educação geral em que ela deve basear-se. A preparação
dos professores, como se vê, é tratada entre nós, de maneira descuidada,
como se a função educacional, de todas as funções públicas a mais
importante, fosse a única para cujo exercício não houvesse necessidade de
qualquer preparação profissional. (AZEVEDO, 1932, p. 200).
Segundo o Manifesto dos Pioneiros, o professorado de todos os níveis (fundamental,
médio e superior) deveria receber uma formação dentro de um espírito de unidade que
42
imprimiria nos mesmos uma coesão em sua prática pedagógica. A proposta dos Pioneiros era
que,
Todos os professores de todos os graus, cuja preparação geral se adquirirá
em estabelecimento de ensino secundário, devem, no entanto, formar o seu
espírito pedagógico, nos cursos universitários, em faculdades ou escolas
normais, elevadas ao nível superior e incorporadas às universidades. A
tradição das hierarquias docentes, baseada na diferenciação dos graus de
ensino, e que a linguagem fixou em denominações diferentes (mestre,
professor e catedrático), é inteiramente contrária ao princípio da unidade da
função educacional, que, aplicado às funções docentes, importa na
incorporação dos estudos do magistério às universidades e, portanto, na
libertação espiritual e econômica do professor, mediante uma formação e
remuneração equivalentes que lhe permitam manter, com a eficiência no
trabalho, a dignidade e o prestígio indispensáveis aos educadores.
(AZEVEDO, 1932, p. 200).
O curso Normal, como era denominado o magistério neste período, dirigido à
formação de professores primários, continuou sendo um curso predominantemente de nível
médio. Por ser um curso que atendia quase que exclusivamente o público feminino em escolas
na maior parte confessionais, a formação do professor primário não ultrapassou o nível médio,
pois às mulheres estava vedado o acesso ao ensino superior. Azevedo (1963, p. 639) explicou:
Se as portas das escolas normais já se franqueavam inteiramente às
mulheres, que passaram a dominar o ensino primário, como seu próprio
elemento, e começaram a figurar, embora em percentagem extremamente
reduzida até 1930, nas escolas secundárias, as escolas superiores
permaneciam ainda praticamente fechadas. (AZEVEDO, 1963, p. 639).
Desta forma, era impossível implantar uma formação de caráter único ao professorado
de todos os níveis, em uma sociedade tradicionalmente machista em que às mulheres
permitia-se a formação como professoras primárias única e exclusivamente, por se associar ao
feminino o caráter maternal de cuidado, que as crianças neste nível de escolaridade careciam.
O fracasso em implantar um sistema unitário de formação para o professorado atuante
em todos os níveis de ensino não permitiu a eliminação da hierarquização do profissional da
educação. Assim, predominou, entre o grupo de educadores, uma postura corporativa de
categorias profissionais, definida pelo nível de ensino em que atuava, não sendo incomum
notar certo desprezo pelos professores que atuavam no ensino primário com uma formação
limitada ao nível médio.
As entrevistas realizadas são elucidativas no que diz respeito a como as leis
relacionadas à educação eram elaboradas pelos estudiosos e legisladores, e como eram
43
assimiladas na prática pelos professores, alijados do processo de elaboração das mesmas, que
sentiam no cotidiano escolar o reflexo das alterações que lhes eram impostas. De fato, sempre
houve uma discrepância enorme entre os legisladores, que elaboram as leis sem conhecerem a
realidade escolar e os professores que vivem da educação e para a educação e não
compreende, em seu cotidiano, o sentido das decisões das Assembleias Legislativas, alheias
às consequências das medidas por ela tomadas. Assim, alguns trechos de entrevistas serão
aqui analisados a fim de fazer um contraponto entre as leis direcionadas à educação e a
impressão causada nas normalistas em sua prática pedagógica.
D. Cleuza comentou como era a convivência entre os PI (Professores Primários) e os
PII (Professores com licenciatura para atuarem em ensinos fundamental de 2º ciclo e Médio),
no período da introdução da lei 5692/71 que implementou a instrução superior para
professores que tinham apenas o curso Normal, e reorganizou fisicamente as escolas juntando
em um mesmo prédio 1º e 2º graus:
Olha, não sei se coincidiu com a ditadura, mas quando houve aquela
valorização do professor de 1ª a 4ª série, que se cursasse uma faculdade ele
melhoraria os vencimentos, subiria quatro referências para ganhar como
professor que na época falava PI e PIII. O PIII é o que dava aula de 5ª série
em diante, né. Que houve uma rivalidade, uma coisa incrível. Até, nem em
sala de professor não podia ter recreio junto porque não parecia a mesma
categoria. Porque aqueles eram PIII, esses eram PI. E, então houve isso.
Quem cursou faculdade subiu muito o salário e tudo. (ARQUIVO 41, p.
3).
Somente em fins do século XX, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Brasileira 9394/96, é que houve uma tentativa de nivelar a formação do profissional da
educação ao ensino superior, como propunham os Pioneiros no seu Manifesto.
No artigo 62, a LDB 9394/96 propõe:
A formação de docentes para atuar na educação básica, far-se-á em nível
superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e
institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o
exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do
ensino fundamental a oferecida em nível médio, na modalidade normal.
(BRASIL. LDB 9394/96).
Entretanto, notamos uma enorme brecha na lei que permite ainda a atuação de
professores com formação normal em nível médio no ensino infantil de 1ª a 4ª séries do
ensino fundamental. No entanto, a tendência que se segue é a extinção completa desse
44
profissional, visto que, juntamente com a lei 9394/96 seguiu-se a eliminação de cursos de
magistério em nível médio e a implantação do Normal Superior.
1.3.3 A Educação nas Constituições de 1934, 1937 e 1946
Fruto do regime que se instalou em 1930 e respondendo a seus anseios, o Manifesto
não o questionou. Como bem observou Romanelli (1978, p. 151), “sua luta era contra a escola
tradicional, não contra o Estado burguês. Representava o pensamento das lideranças jovens na
composição das estruturas de poder da época, estruturas que, como já afirmarmos, contavam
também com velhas lideranças.” As lutas ideológicas entre conservadores e renovadores se
consolidaram nas leis referentes à educação das constituições de 1934 e 1937, ora
favorecendo um, ora outro grupo.
A Constituição de 1934 contemplou boa parte das propostas básicas do Manifesto.
Excetuando o artigo 153 que deu continuidade ao ensino religioso, no entanto, “de frequência
facultativa e, de acordo com os princípios de confissão religiosa do aluno manifestada pelos
pais ou responsáveis”, os demais artigos representavam a vitória renovadora. A ideia de
unidade na educação defendida pelos pioneiros foi estabelecida no artigo 151 que dispunha
sobre a tarefa que “compete aos Estados e ao Distrito Federal organizar e manter sistemas
educativos nos territórios respectivos, respeitadas as diretrizes estabelecidas pela União”. O
Manifesto defendia que “Unidade não significa uniformidade. A unidade pressupõe
multiplicidade”. (AZEVEDO, 1932, p. 195).
Assim, a proposta era de descentralização da obra educativa que respeitasse as
particularidades geográficas, regionais e culturais.
À União na capital, e aos estados, nos seus respectivos territórios, é que deve
competir a educação em todos os graus, dentro dos princípios gerais fixados
na nova constituição, que deve conter, com a definição de atribuições e
deveres, os fundamentos da educação nacional. (AZEVEDO, 1932,
p.195).
Os princípios liberais de direito à educação para todos e do dever do Estado em
oferecê-la foi contemplado no artigo 149. As letras a e b do parágrafo único do art. 150
propunham que o ensino primário fosse gratuito sendo que, com o tempo, deveria estender-se
para nível de ensino ulterior, tornando-o “mais acessível” a todos.
45
É notório que a Constituição de 1937 não defende com tanta veemência o dever do
Estado para com a educação. O artigo 129 definia que o Estado deveria assegurar a educação
às crianças e jovens que não tivessem “recursos necessários” para frequentar instituições
particulares. Assim, o Estado é que deveria complementar a educação oferecida pela iniciativa
particular e não o contrário.
A Constituição de 1937 não se manifestou também sobre ampliação da gratuidade do
ensino. No artigo 130 definiu que apenas “o ensino primário é obrigatório e gratuito”.
Também propunha um sistema de ajuda mútua, baseado no princípio de solidariedade que
permitisse que os menos necessitados contribuíssem mensalmente para a “caixa escolar” a fim
de favorecer os mais necessitados. O ensino religioso, como já comentado neste trabalho,
continuou sendo de caráter facultativo para alunos, porém, o professor não era mais obrigado
a ministrá-lo.
Uma novidade na Constituição de 1937 foi instituir no artigo 129 o dever das
indústrias e dos sindicatos de criarem escolas de aprendizes a fim de educar para o trabalho os
filhos de operários. Isto demonstra-nos a preocupação do Estado com a preparação de mão-
de-obra especializada para trabalhar no setor industrial que, neste período, estava em franco
desenvolvimento.
O Estado demonstrou sua intenção de contribuir para a manutenção das desigualdades
sociais ao afirmar também no artigo 129, que o ensino pré-vocacional profissional destinava-
se “às classes menos favorecidas”. Como bem observou Romanelli (1978, p. 153, grifo da
autora) “oficializando o ensino profissional como ensino destinado aos pobres, estava o
Estado instituindo oficialmente a discriminação social, através da escola. E fazendo isso,
estava orientando a escolha da demanda social de educação”. Mais uma vez o dualismo na
educação foi reforçado ao propor um tipo de educação para os filhos dos trabalhadores e outro
para as elites.
O fato de a educação brasileira ser marcada em toda sua história pelo dualismo do
ensino oferecido para a elite e para as camadas populares da sociedade é digno de nota.
Quando decidimos compreender a forma como as normalistas foram educadas e para que fim,
esbarramos inevitavelmente na questão mais profunda da educação, que diz respeito ao tipo
de ensino que se pretende ministrar aos filhos dos trabalhadores, de forma a garantir uma
inserção rápida e desvantajosa no mercado de trabalho, e outra destinada à elite que ocupará
os postos de comando, gestão de pessoas, bens e serviços. Neste sentido, um retorno de longa
duração à história da educação no Brasil se faz necessário, para visualizarmos melhor como
46
se processou o desenvolvimento do ensino como instrumento de controle e manutenção da
sociedade desigual e injusta.
A preocupação com a formação da elite ficou evidente com a criação da Universidade
de São Paulo em 1934 e Universidade do Distrito Federal, um ano depois. No entanto, a
educação primária continuou restrita, não havendo interesse em expandir o sistema de ensino
a fim de atender a demanda existente.
A letra e do parágrafo único do art. 150 instituiu: “limitação da matrícula à capacidade
didática do estabelecimento e seleção por meio de provas de inteligência e aproveitamento,
ou por processos objetivos apropriados à finalidade do curso.” (BRASIL.
CONSTITUIÇÃO..., 1937, art. 150, grifo nosso). Assim, como observou Romanelli (1978, p.
153), “A constituição não se refere a um plano de expansão das escolas, mas sim a um plano
de limitação de matrícula, prova que, por parte do Governo, se cuidou de conter a expansão
do ensino em limites estreitos.” Contrário aos preceitos defendidos pelos renovadores que
propunham a educação como dever do Estado e direito de todos, na prática continuou a existir
um sistema educacional cruelmente seletivo e excludente da maior parte da população
brasileira.
Com o fim do Estado Novo em 1945, umas das primeiras medidas do governo que se
instituiu após as eleições, foi a convocação de uma Assembleia Constituinte para redigir uma
nova Constituição. Nela permaneceram aspectos da gratuidade e obrigatoriedade do ensino
primário. Entretanto, o Estado não assumiu definitivamente o ensino ulterior ao primário. Ao
contrário, no item II do art. 168 lê-se: “O ensino primário oficial é gratuito a todos: o ensino
oficial ulterior sê-lo-à para quantos provarem falta ou insuficiência de recursos.” Notamos
assim que a tendência de expansão da gratuidade do ensino para além do primário defendida
na Constituição de 1934, (BRASIL. CONSTITUIÇÃO..., 1934, art. 150, parágrafo único,
letra b) ficou restrita aos “necessitados” e não a todos os brasileiros, independente das
condições sociais e financeiras. O ensino religioso não foi excluído definitivamente,
continuando a ser de matrícula facultativa (item V, art. 168). Assim, o Estado não adotou a
laicidade do ensino público de maneira categórica, e este perfil dúbio da educação se arrastou
por toda a história do ensino do Brasil Republicano.
A educação primária dos trabalhadores e dos filhos destes passou a ser um dever das
empresas industriais, comerciais e agrícolas que tivessem mais de 100 pessoas em seu quadro
funcional. Também cabia a estas instituições prover “em cooperação, aprendizagem a seus
trabalhadores menores.” (itens III e IV do art. 168). Fica claro que a preocupação do Estado
era garantir uma educação mínima para os trabalhadores a fim de prepará-los para
47
desempenharem suas funções da forma mais eficiente possível. A introdução de menores
aprendizes na indústria e comércio denuncia o caráter empírico que a educação deveria
assumir para os filhos dos operários.
Outro aspecto da Constituição de 1946 foi a descentralização da administração do
ensino, deixando à União a tarefa de organização do sistema federal do ensino, enquanto que
os Estados e o Distrito Federal ficariam responsáveis pela sua própria organização
administrativa e pedagógica. (art. 170 e 171) Neste sentido, as aspirações dos pioneiros da
Educação Nova foram atendidas no quesito denominado por eles de “doutrina federativa e
descentralizadora” (AZEVEDO, 1932, p. 195).
1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional n° 4024/61
No ano de 1948, o então Ministro da Educação, Clemente Mariani, reuniu um grupo
de educadores e intelectuais com o objetivo de elaborar um projeto de reforma da educação
nacional. Embora os debates em torno do tema tenham se iniciado neste ano, somente em
1961, 13 anos depois, o Brasil recebia o produto final, a saber a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação 4.024 de 20 de dezembro de 1961. Durante esse período ocorreram muitas
discussões em torno da educação por parte dos grupos historicamente oponentes –
conservadores católicos versus renovadores liberais.
Um dos principais pontos de discórdia entre estes dois grupos se relacionava à questão
do monopólio estatal sobre o ensino. Embora a Constituição de 1946 garantisse em seu artigo
167, a existência de um sistema particular de ensino paralelo ao oficial, a preocupação em
garantir os direitos de educação da elite frente à democratização apregoada pela Carta era
evidente.
O substitutivo apresentado pelo Deputado Carlos Lacerda em 1959 direcionou as
discussões para a liberdade do ato de ensinar. Partindo das premissas de que “a educação da
prole é direito inalienável e imprescritível da família”, (art. 3°) e que “a escola é,
fundamentalmente, prolongamento e delegação da família” (art. 4º), o dispositivo conclui no
art. 5º que:
Para que a família, por si ou por seus mandatários, possa obrigar-se do
encargo de educar a prole, compete ao Estado oferecer-lhe os suprimentos e
recursos técnicos e financeiros indispensáveis, seja estimulando a iniciativa
48
particular, seja proporcionando ensino oficial gratuito ou de contribuição
reduzida.
Desta forma, como observou Romanelli (1978, p. 174) “O centro do interesse não
estava no direito da família, mas na reivindicação de recursos que se fazia em favor desta ao
Estado para beneficiar a iniciativa privada antes mesmo que o ensino oficial.” Nos artigos 6º e
7º fica evidente o que o substitutivo Lacerda pretendia:
Art. 6º – É assegurado o direito paterno de prover, com prioridade absoluta,
a educação dos filhos; e dos particulares, de comunicarem a outros os seus
conhecimentos, vedado ao Estado exercer ou, de qualquer modo, favorecer o
monopólio do ensino.
Art. 7º – O Estado outorgará igualdade de condições às escolas oficiais e às
particulares:
a) pela representação adequada das instituições educacionais nos órgãos
de direção de ensino;
b) pela distribuição das verbas consignadas para a educação entre as
escolas oficiais e as particulares proporcionalmente ao número de alunos
atendidos;
c) pelo conhecimento, para todos os fins, dos estudos realizados nos
estabelecimentos particulares.
Estas propostas vinham de encontro aos interesses privatistas dos donos de escolas e
da Igreja que ainda dominava boa parte da educação privada.
No entanto, Romanelli (1978, p. 178) traduziu as aspirações do substitutivo Lacerda
como sendo uma luta contra a democratização do ensino e como consequência, da “vida
nacional”.
O ensino público, com o ser obrigatório e gratuito, era democrático e
possibilitava, de um lado, às camadas populares uma via de acesso à
participação na vida econômica, de forma menos discriminante, mais justa,
de outro lado, acenava com a possibilidade de participação política mais
consciente e de bases mais amplas, o que vinha a minar pela base, o
sustentáculo político das velhas elites. (ROMANELLI, 1978, p. 178).
Todavia, sabemos que as escolas públicas neste período representavam mais uma
concorrência com o ensino privado – visto que os grupos emergentes economicamente
recorriam ao ensino oficial como meio de ascensão social – o que, de fato, promovia uma
democratização e, como quer Romanelli (1978, p. 178), “uma via de acesso menos
discriminante e mais justa às camadas populares”. O acesso à escola, mesmo pública, ainda
era vetado à maior parte da população pobre que, em busca da sobrevivência não tinha
condições de permanecer nela e concluir nem mesmo, o ensino primário.
49
Em resposta ao substitutivo Lacerda foi publicado em 1º de julho de 1959, no jornal O
Estado de São Paulo, um novo Manifesto dos Educadores, novamente redigido por Fernando
de Azevedo e assinado por 189 signatários, incluindo desta vez estudantes, profissionais de
outras áreas e líderes sindicais. Este documento foi fruto de um movimento denominado pelos
seus líderes como Campanha em Defesa da Escola Pública. Tinha por objetivo, como exposto
em sua introdução, “apresentar e submeter ao julgamento público os novos pontos de vista
sobre os problemas da gravidade e complexidade com que se apresenta a educação.”
(AZEVEDO, 1959, p. 205).
Reconhecendo as propostas do Manifesto de 1932 como atuais, reforçou os conceitos
básicos defendidos no mesmo, chamando à atenção para o papel que a educação pública devia
assumir diante do processo de modernização que incidia sobre o país. Reiterou a importância
de preservar a descentralização no campo educacional que a Constituição democrática de
1946 havia restabelecido, após quase uma década de governo centralizado e de caráter
autoritário.6 Acima de tudo, defendeu com veemência a escola pública e gratuita atacada pelo
substitutivo Lacerda, chamando a atenção para as verdadeiras intenções do mesmo: o aspecto
econômico, ou seja, transferir os recursos financeiros destinados à escola pública para a escola
particular.
Vale salientar que o Manifesto de 1959 reforçou a importância da educação pública
para a preparação do jovem para o trabalho. A educação não podia mais se basear na “ciência
desinteressada”, preparatória para o nível superior. Era imperativo diante do contexto
econômico desenvolvimentista que se estabelecia na década de 50, preparar o maior
contingente populacional em idade escolar para o trabalho produtivo e o domínio de técnicas
sofisticadas. Desta forma, Sanfelice (2007, p. 552) definiu assim o objetivo da educação
exposta no Manifesto de 1959:
A educação pública tem que ser reestruturada de maneira que contribua para
com o progresso científico e técnico, para o trabalho produtivo e o
desenvolvimento econômico [...] Os objetivos da escola são agora práticos,
mais profissionais, da ciência aplicada e menos da ciência pura e
desinteressada. (SANFELICE, 2007, p. 552).
A educação devia, segundo o Manifesto “incutir-lhe [na mocidade] o respeito e a
estima para com o trabalho e ensiná-la a utilizar de maneira ativa, para o bem estar do povo,
6 A constituição outorgada em 1937 durante o Estado Novo suprimiu a disposição que legitimava a
descentralização no campo educacional, pois isto era incompatível com a ideia centralizadora do regime
autoritário.
50
as realizações da ciência e da técnica.” (AZEVEDO, 1959, p. 216). Fica evidente o papel
fundamental da educação em infundir o espírito liberal de trabalho como instrumento de
envolvimento humano na população destinada à escola pública.
Dos debates que se seguiram em torno das propostas do substitutivo Lacerda e do
Manifesto dos Educadores de 1959, nasceu o projeto que foi transformado em lei em 1961.
Como era de se esperar, a LDB nº 4.024/61 trazia em seu bojo aspirações e elementos tanto
progressistas-liberais como conservadores. Como observou Sanfelice (2007, p. 555)
Os interesses realmente antagônicos estavam sendo forjados no movimento
operário, no movimento dos camponeses, em certos setores das camadas
médias ou de grupos de intelectuais que foram derrotados na seqüência dos
acontecimentos políticos ocorridos no transcorrer dos governos de Jânio
Quadros e João Goulart, culminando com a vitória do movimento civil-
militar de 1964. (SANFELICE, 2007, p. 555).
Por representarem as elites do país, estes dois grupos, embora aparentemente
antagônicos, conseguiram concluir seus interesses nas leis que se seguiram aos embates
ideológicos por eles travados. Podemos dizer, apropriando- nos de parte das conclusões de
Sanfelice, (2007, p. 554) que “entre o passado, a modernidade e a revolução, era preciso
garantir pelo menos a modernidade” para os progressistas ou, na pior das hipóteses até o
retrocesso, mas nunca a verdadeira revolução.
1.3.5 O nacional-desenvolvimentismo e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº
4.024/61
No Brasil a década de 50 do século XX foi marcada profundamente pelo ideário
modernizante. O governo de Jucelino Kubetschek, de cunho nacional-desenvolvimentista
assumiu o poder em 1955, com o slogan político “50 anos em 5” em que propunha trazer para
o Brasil em cinco anos de mandato o progresso que não havia alcançado no último meio
século. Com um projeto arrojado e inovador, o governo JK atraiu para o país cada vez mais
capital estrangeiro a fim de investir na industrialização.
O desenvolvimento do setor econômico-industrial do país se tornou evidente neste
período. O crescimento na geração de emprego na indústria mudou de uma vez por todas a
feição do Brasil. Em busca de trabalho, a população rural migrou em levas do campo para as
cidades que assistiram nesta década um crescimento assustador.
51
No entanto, é evidente que o sistema educacional do Brasil era totalmente deficiente e
não acompanhava as transformações econômicas que se davam no país. Consequentemente o
Brasil ficava preso à tecnologia importada por não ter mão-de-obra especializada e preparada
para lidar com ela. Como observou Skidmore (1988, p. 32):
O sistema educacional não somente deixava de cumprir as metas mínimas de
alfabetização para o povo em geral, mas também não procurava preparar a
força de trabalho qualificada que a industrialização reclamava. O Brasil
dependia quase totalmente de tecnologia importada possuída por empresa
como Brown Boveri (geradores), Bayer (medicamentos), Bosch
(equipamentos elétricos), Coca-Cola (refrigerantes) e Volkwagem
(veículos). (SKIDMORE, 1988, p. 32).
Os idealizadores do Manifesto dos Educadores de 1959, antenados que estavam nas
transformações que ocorriam no Brasil, já sugeriam neste documento, uma educação voltada
para a formação técnica e profissional do indivíduo. Neste respeito, é possível notarmos a
influência de suas propostas na lei nº 4.024/61, que instituiu as bases para a educação
nacional.
Logo no artigo 1º letra e instituiu-se que a educação nacional tinha por fim “o preparo
do indivíduo e da sociedade para o domínio dos recursos científicos e tecnológicos que lhes
permitam utilizar as possibilidades e vencer as dificuldades do meio”, acenando assim para o
papel da escola em formar mão-de-obra especializada que seria absorvida rapidamente pelo
setor industrial em expansão.
O ensino primário continuou sendo o único de caráter obrigatório, reconhecendo o
Estado o dever de oferecê-lo paralelamente com a iniciativa privada. Neste sentido, os
interesses dos donos de escolas particulares confessionais ou leigas foram preservados, apesar
de o ensino oficial não assumir o caráter supletivo na educação, como havia sugerido o
substitutivo Lacerda.
A lei, nos artigos 31 e 32, outorgou às grandes empresas industriais, comerciais e
agrícolas o dever de oferecer ensino primário gratuito para os seus funcionários e os filhos
destes. Os proprietários rurais que não tivessem escola para atender os filhos dos
trabalhadores deviam prover condições para que estes se dirigissem para as escolas mais
próximas ou permitir que se instalassem em suas glebas escolas públicas. Desta forma,
procurava-se garantir o mínimo de instrução necessária aos filhos dos trabalhadores.
As mudanças econômicas refletiram de maneira direta na sociedade brasileira. A
mulher, anteriormente destinada aos cuidados do lar, do marido e dos filhos, passou a
constituir mão-de-obra em diversos setores da economia. Apercebendo-se disso a lei nº
52
4.024/61, em seu artigo 24, estabeleceu a criação de creches que atendessem crianças menores
de 7 anos, em cooperação entre empresas e poderes públicos.
Vale salientar que a obrigatoriedade do ensino primário estava sujeita a algumas
exceções através dos quais o governo isentava tanto a si próprio como aos pais de aplicá-la.
(FAZENDA, 1985, p. 46).
O artigo 30, parágrafo único, dispunha:
Constituem casos de isenção (da obrigatoriedade), além de outros previstos
na lei:
a) comprovado estado de pobreza do pai ou responsável;
b) insuficiência de escolas ;
c) matrículas encerradas;
d) doenças ou anomalia grave da criança. (BRASIL. LEI 4.024/61, art.
30, parágrafo único).
Como podemos observar, estes dispositivos não obrigavam o Estado criar instituições
suficientes para atenderem a demanda (item b – insuficiência de escolas), nem os pais de
proverem educação para os filhos se provassem “estado de pobreza”, em outras palavras, se
precisassem destes filhos para ajudar nas despesas do lar com seu trabalho. Isso denunciava o
caráter utilitário da lei, que demonstrava maior interesse na mão-de-obra infantil dos filhos
dos pobres do que na sua educação, ou seja, tal lei funcionava mais para o crescimento
econômico do país e reservava, obviamente, a educação àquelas famílias possuidoras de
recursos financeiros, que tinham seu status renovado pela educação, que lhe permitia
formação técnica avançada para ocupar os melhores empregos.
Neste aspecto a Lei de Diretrizes e Bases parecia trazer em seu seio uma ambiguidade:
enquanto o artigo 30 letra a acima citado isentava os pais pobres do dever de matricular seus
filhos na escola primária, sob o título II estabelecia:
Art. 3º O direito à educação é assegurado:
II – pela obrigação do Estado de fornecer recursos indispensáveis para que a
família e, na falta desta, os demais membros da sociedade se desobriguem
dos encargos da educação, quando provada insuficiência dos meios, de modo
que sejam asseguradas iguais oportunidades a todos. (BRASIL. LEI
4.024/61).
Embora na letra da Lei fosse garantida igualdade de direito e oportunidade para todos,
a educação continuava sendo excludente e elitista.
Após as quatro séries do ensino primário, a lei estabelecia o prosseguimento dos
estudos no ensino médio. No entanto, o ingresso neste ciclo era um verdadeiro desafio. No
53
artigo 36 da Lei instituiu-se “exame de admissão” em que o aluno deveria demonstrar
desempenho satisfatório para passar para o ensino médio. O exame de admissão funcionava
exatamente como gargalo de um funil que selecionava de maneira extremamente precisa e
rigorosa os alunos que dariam continuidade aos estudos.
Estes escolhidos, os mais capazes segundo o sistema, ingressavam no ensino médio e
ali, tinham a oportunidade de receber uma educação mais técnica. O artigo 34 definia que “o
ensino médio será ministrado em dois ciclos, o ginasial e o colegial, e abrangerá, entre outros,
os cursos secundários, técnicos e de formação de professores para o ensino primário e pré-
primário”.
O curso técnico assumiu um relevo nesta Lei. O artigo 47 instituiu o ensino técnico no
grau médio nas seguintes áreas: industrial, agrícola e comercial que, segundo o artigo 49,
podiam ser ministradas nos ciclos ginasial e colegial.
Porém, a formação técnica empírica não foi deixada de lado. A formação de menores
empregados no próprio estabelecimento de trabalho foi assegurada no artigo 51 e o parágrafo
2º validava os certificados de conclusão de curso de aprendizagens ou carta de ofício para o
acesso aos ginásios de ensino técnico.
Isto demonstra-nos o quanto o Estado e a burguesia industrial e comercial estavam
pactuados em busca do crescimento econômico via formação de mão-de-obra especializada.
Os cursos de aprendizagem e ofício, oferecidos pelas empresas técnicas e comerciais
em cooperação (art. 51), passaram pelo crivo dos Conselhos Estaduais de Educação dos
estados e nos territórios, pelo Conselho Federal de Educação.
Enquanto o ensino religioso continuou a funcionar em caráter facultativo (art. 97),
outro dispositivo de controle das mentes e dos corpos foi instituído na LDB 4.024/61 – a
Educação Moral e Cívica (art. 38 item III). Fica evidente que o pensamento nacionalista que
aflorou com a modernização do país nos anos anteriores se refletia sobre a educação com
grande êxito. Não se falava mais em ensino religioso propriamente dito, para não ferir a
liberdade de consciência e de culto defendida pelo pensamento liberal; agora se falava em
educação “moral” que podia abarcar todas as crenças, mas que, na realidade, pregava a “moral
cristã” de obediência irrestrita, respeito pelas autoridades, trabalho como meio de libertação e
enobrecimento da alma. Já o civismo era defendido pelo apelo ufanista de defesa do território
nacional, de luta pelo crescimento do país, “gigante pela própria natureza”. Estes conceitos,
incutidos nas crianças seriam úteis no futuro, como trabalhadores dóceis das fábricas.
54
No entanto, para que fosse possível implementar essa lei, era necessário que se
contemplasse a formação dos educadores, que seriam os porta-vozes do modelo de educação
proposto.
O capítulo IV da Lei 4.024/61 discorre sobre a formação dos professores de todos os
níveis:
Art. 53. A formação de docentes para o ensino primário far-se-á:
a) em escola Normal de grau ginasial no mínimo de quatro séries anuais
onde além das disciplinas obrigatórias do curso secundário ginasial será
ministrada preparação pedagógica;
b) em escola Normal de grau colegial, de três séries anuais, no mínimo,
em prosseguimento ao vetado grau ginasial.
Art. 54. As escolas Normais, de grau ginasial expedirão o diploma de
regente de ensino primário, e, as de grau colegial, o de professor primário.
Art. 55. Os Institutos de Educação além dos cursos de grau médio referidos
no artigo 53 ministrarão cursos de especialização, de administradores
escolares e de aperfeiçoamento, abertos aos graduados em escolas Normais
de grau colegial.
Art. 59. A formação de professores para o ensino médio será feita nas
faculdades de filosofia ciências e letras e de professores de disciplinas
específicas de ensino médio técnico em cursos especiais de educação
técnica.
Parágrafo único. Nos Institutos de Educação poderão funcionar cursos de
formação de professores para o ensino normal, dentro das normas
estabelecidas para os cursos pedagógicos das faculdades de filosofia,
ciências e letras. (BRASIL. LEI 4.024/61).
É perceptível a relevância dos cursos de formação de professores através da lei. O
curso Normal, para onde se dirigia a maior parte das moças que chegavam até este nível de
escolaridade, era destinado à preparação dos docentes que ministrariam aulas ao ensino
primário. É exatamente a essa categoria profissional que dirigimos nossos estudos. A elas
cabia a educação de um grande contingente da população que a partir desse momento passou
a ter acesso à escola. Analisaremos posteriormente como foi a formação destas profissionais
da educação e sua prática de ensino através da análise de entrevistas por elas cedidas.
Nos Institutos de Educação, como é o caso do IETC (Instituto de Educação Torquato
Caleiro), frequentado por algumas das colaboradoras, formavam-se também especialistas em
educação e administradores escolares. Como veremos adiante, durante muito tempo esses
Institutos formaram gestores em educação, cumprindo a função que, mais tarde, foi assumida
pelos cursos de Pedagogia.
A formação do professor de ensino médio dava-se preferencialmente nas faculdades
de ciências e letras. No entanto, o parágrafo único abria uma brecha para professores
55
lecionarem matérias pedagógicas no curso Normal, com formação apenas nos cursos de
especialização oferecidos nos Institutos de ensino.
No caso dos cursos técnicos, dado à sua necessidade crescente e poucos professores
habilitados, a lei permitia o aproveitamento de “profissionais liberais de cursos superiores
correspondentes ou técnicos diplomados na especialidade”. (Art. 118).
Podemos concluir desta forma, que a LDB 4.024/61 representou para a história da
educação brasileira uma tentativa de colocar no mesmo ritmo educação e economia, para que
a primeira pudesse dar suporte para que a segunda seguisse rumo à modernização.
1.3.6 O regime militar e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 5692/71
Em 1˚ de abril de 1964, o Brasil assistiu à deposição do então presidente João Goulart,
pelo Exército Revolucionário7. Isto significou para o país o fim do Regime democrático
iniciado em 1945 e a introdução de uma nova fase: a ditadura militar.
Durante duas décadas, o Brasil esteve sob o comando dos Militares que se revezavam
no poder. Sob o pretexto de salvar a nação do perigo comunista e colocá-la no caminho do
desenvolvimento, os militares se instalaram no poder após o golpe de 1964, instituindo um
regime de caráter nacionalista, que atendia bem aos interesses dos setores tradicionais
industriais, bem como os interesses internacionais.
Foi neste período, que o Brasil, através de recursos financeiros externos, conseguiu
atingir no campo econômico o que os militares denominaram “Milagre brasileiro”. Gaspari
(2002, p. 208), assim descreveu o período:
Vivia-se um ciclo de crescimento inédito na história nacional. Desde 1968, a
economia mostrava-se não só revigorada, mas também, reorientada. O ano
de 1969 fechava sem deixar margem de dúvidas; 9,5% de crescimento do
Produto Interno Bruto, 11% de expansão do setor industrial e inflação
estabilizada pouco abaixo dos 20% anuais. Depois de quinze anos de virtual
estagnação, as exportações chegaram à 1,8 bilhão de dólares, com um
crescimento de 23% em relação ao ano anterior. A taxa de poupança bruta
ficara em 21,3%, índice jamais atingido e jamais igualado. A indústria
automobilística estava em pleno vapor e a construção civil entrara em tal
atividade que faltou cimento. Os números do primeiro semestre de 1970
indicavam que, a prosperidade prosseguiria (fechou o ano com crescimento
7 Assim se autodenominou o Exército brasileiro, que encabeçou o golpe militar e instituiu a Ditadura no Brasil.
Nas palavras do então General Cordeiro de Farias “o exército dormiu janguista no dia 31 e acordou
revolucionário no dia 1º ” - Aspásia Camargo e Walter Góes, Meio Século de Combate –Diálogo com Cordeiro
de Farias, p 566 . In Gaspari Élio - A Ditadura Envergonhada p.81-83.
56
de 10,4%). O Brasil tornara-se a décima economia do mundo, oitava do
ocidente e primeira do hemisfério sul. (GASPARI, 2002, p. 208).
Este foi o resultado do trabalho do tecnocrata Delfim Neto, que permaneceu como
Ministro da Fazenda, durante boa parte do período militar.
A lógica econômica de Delfim Neto parecia bastante simples: era preciso aumentar o
bolo econômico para depois reparti-lo. Nas palavras do ministro “não se pode colocar a
distribuição na frente da produção. Se o fizermos, acabaremos distribuindo o que não existe.”
(SKIDMORE, 1988, p. 286).
O resultado dessa política econômica foi mais além do que um visível
desenvolvimento do país - também levou a maior parte da população brasileira, alienada do
processo político, a acreditar que vivia uma fase de prosperidade. O reflexo dos indicadores
econômicos e seus efeitos na sociedade são descritos da seguinte forma por Gaspari (2002, p.
208-209):
A consistência da explosão econômica podia ser aferida também por
indicadores como o aumento das importações de máquinas equipamentos
(23%) e do consumo de energia elétrica (10%). As montadoras do ABC
paulista havia posto na rua 307.000 carros de passeio, quase o triplo de sua
marca em 1964. Os trabalhadores , tinham em suas casas 4,58milhões de
aparelhos de televisão, contra 1,66 milhão em 1964. Um em cada dois
brasileiros, achava que o nível de vida estava melhorando, e sete em cada
dez, achavam que 1971 seria um ano de prosperidade econômica superior a
70. Era o Milagre Brasileiro. O século XX terminaria sem que o país
passasse por semelhante período de prosperidade. (GASPARI, 2002, p.
208-209).
O desenvolvimento econômico refletiu-se fortemente na educação. A lógica científica
e tecnocrata de planejamento minucioso e averiguação dos resultados, foi absorvida pelo
sistema educacional. Agora era preciso, mais do que nunca, adequar a educação e preparação
de mão-de-obra à realidade da política econômica nacional.
Nas palavras do então Ministro da Educação, Jarbas Passarinho:
Num país que decidiu planejar-se também na educação, a palavra de ordem
terá de ser a racionalização dos investimentos para que ela própria venha a
construir o investimento nobre, por excelência, sobre a qual há de assentar-se
o processo de desenvolvimento. (LEIS..., p.15 apud FAZENDA, 1985, p.
88,).
57
Este planejamento envolvia a LDB, que devia adequar o projeto educacional ao
Projeto Nacionalista. O ministro declarou no documento:
A idéia dominante é a organização de escolas e sistemas escolares sob
critério que lhes permitam atualizarem-se ou reformarem-se constantemente
para refletir no quadro de uma grande Educação erigida em grande Projeto
Nacional, as tendências e necessidades de cada momento e de cada
comunidade. (LEIS..., p. 15 apud FAZENDA, 1985, p. 91).
Após a convocação de dois Grupos de Trabalho, um em 1969 e outro em 1970, pelo
Ministro Jarbas Passarinho, para fazerem propostas para a reforma do Sistema de ensino, em
30 de março de 1971, foi encaminhado ao presidente da república o anteprojeto da lei de
diretrizes e bases para o ensino de 1˚ e 2˚ graus. Cinco meses depois, em 11 de agosto de
1971, a Lei de Diretrizes e Bases da educação Nacional, foi sancionada pelo Congresso.
Segundo Ivani Fazenda (1985, p. 93-94, 101), a postura do Congresso diante do
anteprojeto apresentado, foi de total apatia e isto se justificava pelo contexto político
existente:
É relevante assinalar que estávamos a um ano e meio do ato Institucional
n˚5, e o Congresso não havia ainda recuperado suas prerrogativas. Além
disso, a composição da Comissão Mista, era praticamente a ARENA, foi
contrária à Lei. Nenhum dos itens antes questionados: ensino público, ensino
privado, centralização, descentralização, ocorreu. Parecia ser uma Lei que
expressava o anseio de todos [...] a apatia ocorrida no Congresso, deveu-se
sobretudo, ao enfraquecimento de seus poderes, após extinção de 13 partidos
políticos existentes no Brasil em 1965 e sucessivas cassações de direitos
políticos. (FAZENDA, 1985, p. 93-94, 101).
Assim, diferentemente das reformas efetuadas anteriormente no ensino que
provocavam a polarização de interesses de grupos divergentes e, consequentemente, longas
discussões até chegarem a um denominador comum, o anteprojeto parece ter seguido um
percurso “suave” até a sua aprovação, devido ao silêncio imposto pela repressão.
As mudanças econômicas ocorridas durante os primeiros anos da ditadura acabaram
por desencadear um aumento “da demanda social da educação, o que provocou
consequentemente, um agravamento da crise do sistema educacional, crise que já vinha de
longe.” (ROMANELLI, 1978, p. 196).
A fim de enfrentar a crise na educação, o MEC fez convênio com a Agency for
International Development (AID) para receber ajuda técnica e financeira que seriam
direcionadas à reforma do ensino. A primeira medida do MEC-USAID foi procurar adequar o
58
sistema educacional ao modelo econômico. Daí a adoção do modelo tecnocrata na educação,
como já dito anteriormente. Do ponto de vista dessas agências internacionais:
O problema do subdesenvolvimento deve ser tratado, predominantemente
como um problema técnico. Daí a superioridade do planejamento sobre a
ação não planejada, a necessidade de se incluir nos investimentos feitos
pelos países centrais nos países periféricos, a educação como fator
importante na produção de recursos humanos, para o desenvolvimento
desejado. (ROMANELLI, 1978, p. 199).
A crise do sistema educacional brasileiro foi marcada por diversos fatores como:
Aumento da procura pelo ensino primário e médio;
Déficit de pessoas com qualificação de nível médio;
Sistema de ensino incapaz de fornecer mão-de-obra preparada para atender a
demanda da economia;
Aumento desproporcional entre a procura e a oferta de vagas nas universidades.
Como já assinalamos anteriormente, o desenvolvimento do setor industrial provocou
no Brasil o êxodo rural e, consequentemente, o aumento da população urbana que passou a
buscar a qualificação profissional para entrar no mercado de trabalho, via escolarização. O
aumento na procura por escolas de ensino primário e médio pressionava o Estado a construir
mais escolas públicas. Por outro lado, os setores médios passaram a ver na educação um meio
de ascensão social e manutenção do status visto que, naquele momento, “o processo de
concentração de capital, renda e mercado, os canais „tradicionais‟ de ascensão tornaram-se
cada vez mais estreitos.” (ROMANELLI, 1978, p. 205).
Tornou-se cada vez mais comum às famílias de donos de pequenos negócios
procurarem formar seus filhos para profissões liberais, garantindo-lhes seu status social. Isto
pressionou severamente o Estado, pois aumentou, consequentemente, a procura pelas
Universidades Públicas, ainda escassas para atender a demanda.
Assim, a Lei 5.692/71 procurou sanar estes principais problemas apontados através da
reforma do ensino de 1˚ e 2˚ graus.
59
Logo em seu 1˚ artigo, a Lei deixou claro os objetivos práticos que deviam permear o
ensino de 1˚e 2˚ graus8 “Art 1º O ensino de 1º e 2º graus tem por objetivo geral proporcionar
ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de sua potencialidade como elemento
de autorealização, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício consciente da
cidadania.” (LEI 5692/71, art. 1º).
Além da formação integral, o ensino desenvolveria as potencialidades do indivíduo
para que este, sendo útil na sociedade, pudesse “autorrealizar”. Em seguida se esclareceu o
caminho para atingir este resultado: “a qualificação para o trabalho”. Associando o trabalho
ao exercício da cidadania, a lei expunha claramente suas intenções para com a educação – esta
deveria servir para inculcar nos indivíduos valores burgueses sobre o trabalho como forma de
emancipação do homem. Em outras palavras, o homem que se propunha formar era aquele
que, por meio da educação desenvolvesse ao máximo suas capacidades a fim de usá-las a
serviço do crescimento da nação. Este era o verdadeiro cidadão que à escola cabia formar.
A organização do ensino de 1º e 2º, também denunciava outras intenções:
primeiramente, ao unir o ensino primário ao 1º ciclo da escola média (antigo ginásio), a lei
procurou eliminar a compartimentação do sistema educacional e, ao mesmo tempo, banir de
vez com o temido “exame de admissão” que se interpunha entre estes dois períodos, sendo um
dos grandes obstáculos à continuidade dos estudos da maior parte da população pobre.
Comentando sobre a dificuldade de enfrentar tal exame D. Cleuza relata: “[...] tinha que fazer
um curso de admissão para entrar no quinto ano. [...] É a gente fazia um cursinho particular.
Eu fiz com o professor Augusto Bittencourt, a gente pagava né, tinha aula com ele pra
preparar. Muita gente não entrava, barrava ali”. (ARQUIVO 27, p. 8-9).
D. Dulce contou-nos sobre a dificuldade que o exame de admissão impunha e fez uma
crítica a Lei 5692/71 que estabeleceu o seu fim:
Automática [a passagem do 4º para o 5º ano]. Na minha época você tinha
uma admissão minha filha, que eu tive que fazer o ano inteirinho outra vez
no Colégio de Lourdes pra mim ter base pra mim passar pra 1ª série que hoje
vem ser a 5ª, corresponde a 5ª série, né. Então, mas eu tive de fazer. Mas era
ali ó. [...] Bem mas a gente estudava com aquela irmã Tereza! Tinha aquelas
Matemática, Português nem se fala. Tinha que você não podia errar nem
uma acentuação. Olha e tinha inspetor tomando conta. Você pensa? O
negócio era ali [batendo na mesa com o indicador e o polegar]. Não é essa
bambeza não de passar de 1ª passa pra 2ª. Olha eu tinha um empregado lá na
roça, a mulher dele falou assim: “D. Dulce a minha irmã ta na 5ª série mas
8 O 1ºgrau fundiu os cursos primário e ginasial, perfazendo um período de 8 anos (hoje conhecido como ensino
fundamental pela lei 9394/96); o 2º grau correspondia ao colegial com 3 ou 4 anos de duração (LEI 5692/71 arts.
18 e 22).
60
só que ela não sabe nem lê”. Eu falei assim: “Olha, mas por que na 5ª série
não sabe ler?” “Não sabe” “Uai ensina você pra ela”. “Eu não. Meu pai tá lá
pelejando pra vê se ela aprende qualquer coisa” Vai passando assim, eles não
sabe. Fiquei boba. Fiquei boba. E existe. (ARQUIVO 36, p. 9).
A essa altura, pensamos ser importante abrir um parênteses para explicar outro aspecto
citado na evidência oral e relevante ao assunto hora apresentado – diz respeito à
democratização do ensino. Neste sentido é comum muitas professoras confundirem o
processo de democratização do ensino, que permitiu a abertura da escola a um grande
contingente da população até então não atendido pela instituição de ensino, com a progressão
continuada, implantada pelo governo do Estado de São Paulo a partir de 1997 e aprovada pelo
CEE (Conselho Estadual de Educação) nº 09/97, que prevê a organização do sistema de
ensino por ciclos, o que eliminou o processo contínuo de retenção e evasão escolar.
Sempre que indagadas sobre sua opinião a respeito da democratização do ensino,
promovidas pelas Leis 4024/61 e 5692/71, as normalistas normalmente responderam:
Cristina. Posso falar na progressão continuada? [...] Eu não sou a favor da
progressão continuada, sabe por que bem? O aluno falta, o aluno não estuda,
o aluno chega numa determinada época ele não sabe, ele está lá na quinta,
sexta, sétima série ele não sabe nada, certo? Então em parte não é bom. Até
concordo numa progressão continuada que dá até mais oportunidade mesmo
para o indivíduo. Porque repetir um ano às vezes por causa de uma coisa à
toa. Mas tem que ser bem colocada, tem que ser bem feita. Agora o aluno
não aparece, o aluno não faz nada, o aluno não escreve, como é que esse
aluno pode passar de ano? Então aproveita a situação, quer o diploma. Então
nesse ponto, na minha opinião, está errado. [...] Muito. Não há dúvida, não
há dúvida. A democratização do ensino, por exemplo, para os adultos, para
os jovens e adultos que não tiveram oportunidade é ótimo. Se você não teve
oportunidade de frequentar a escola, mas agora você tem, que beleza. Então
nesse ponto não há dúvida, sou mais que favorável. Agora há certas coisas
que ainda atrapalham, como a progressão continuada que vai passando, vai
passando sem saber nada, não é? (ARQUIVO 21, p. 13-14).
O processo de abertura da escola para todos, inclusive para os grupos sociais pouco
privilegiados, causou na memória das normalistas uma associação com a desqualificação do
ensino público, que se verificou através das reformas educacionais constantes, que visavam
aumentar os dados quantitativos de educação da população brasileira aos olhos dos órgãos
internacionais. Para elas, democratização do ensino e progressão continuada são sinônimos,
embora saibamos que a última apenas vem atender o escoamento do fluxo de alunos para que
a demanda da primeira seja possível.
Outro fato curioso foi que uma de nossas colaboradoras negou o fato de que houve a
partir da Lei 5692/71 um maior fluxo de alunos para a escola pública. Ela disse:
61
Não. Toda vida [a escola] recebeu [todos os alunos]. [...] Ah eu ficava meio
nervosa sabe por quê? Porque você tava adiantada já com os alunos, chegava
o diretor na porta: “Ah D. Dulce, tá precisando porque removeu pra cá,
precisa por na coisa”. Aí ele já vinha mais atrasado um pouco, né. Nunca
vinha adiantado. Sempre mais atrasado. Então a gente pelejava. Até que
também acompanhava os outros. E acompanhava. (ARQUIVO 36, p. 10).
Na visão da colaboradora, a escola sempre recebeu toda a população em idade escolar,
não havendo um momento específico em que a instituição abriu suas portas para todos. A
negação de uma escola pública elitista na memória de uma normalista da rede, se caracterizou
uma surpresa. É pertinente que haja uma confusão entre a democratização do ensino e a
progressão continuada, pois era de se esperar que, com a primeira mudança, a escola pública
que antes era elitista e servia aos interesses de formação de um grupo hegemônico, agora não
preservasse as mesmas características cultuadas e valorizadas pela categoria social e
profissional das normalistas. O mesmo não ocorre, porém, com a negação de que a escola
pública foi durante muito tempo elitista e que, apenas com as transformações ocorridas
durante a segunda metade o século XX, viu a necessidade de transformar-se e abrir-se para
formar a grande parcela da população, até então excluída de seus bancos.
Retomemos agora a questão do fim do exame de admissão. Como nem todos
dispunham de recursos para pagar um professor particular para passar no exame, muitos
ficavam pelo caminho. Desta forma, alguns professores viram com bons olhos essa mudança:
Quanto à extinção da admissão, achei maravilhoso. Sabe por que bem? É
uma barreira. Às vezes o aluno fez e tal, mas não foi muito bem, então ele
não podia entrar no ginásio. É a continuidade, é a oportunidade de estudo.
Então a eliminação do exame de admissão, pra mim foi maravilhoso, certo?
(ARQUIVO 21, p. 11).
Todavia, nem todas as normalistas partilhavam da mesma opinião. D. Leila comentou:
Olha, sempre que havia alguma reforma no ensino, a gente sempre esperava
pra melhor, né. Então, a gente acreditava, a gente fazia tudo pra melhor. Mas
eu acho que na época da admissão, parece que os alunos se dedicavam, não
sei se dedicavam mais, ou porque precisavam fazer aquele exame. Então, pra
poder entrar no ginásio, vamos assim dizer, naquela época né, e porque a
diferença substancial era grande, era uma coisa assim de... Porque ali o aluno
de 1ª a 4ª ele só tinha um professor né, num ano dava tudo. Depois ele já ia
passar mesmo para o ensino mais específico né, das disciplinas. E eu achei
que foi muito, a admissão ajudava assim, a selecionar mais os alunos, os
alunos parece que com mais, não vou dizer que sabendo mais, com mais
base, porque mesmo naquela época o ensino primário era muito bem feito.
Talvez foi eliminado porque acho que não havia necessidade mesmo dele.
Porque o ensino era muito bem feito, havia assim todos os anos, havia os
62
exames, o aluno que não era aprovado repetia o ano. Então quando ele
chegava na 4ª série, ele já estava apto mesmo. [...] É. Eu sou assim, que se
tivesse continuado o exame, teria sido o ideal. Mas as mudanças são tantas
que surgem que a gente não é capaz de dizer assim: “foi bom, foi ruim.”
(ARQUIVO 32, p. 1-2).
Segundo o seu argumento, o exame de admissão ajudava “a selecionar mais os alunos
[...] pra poder entrar no ginásio [...] porque a diferença substancial era grande”. Entretanto,
asseverou que na sua época “o ensino primário era muito bem feito”, o que talvez eliminasse a
“necessidade mesmo dele [do exame de admissão]”. Apesar de não questionar o fim do exame
pela Lei 5692/71, a colaboradora concluiu que “se tivesse continuado o exame, talvez seria o
ideal”. Em sua argumentação, percebemos que não há uma preocupação com o fator exclusão
social do grande contingente populacional da educação, e sim com a qualidade que esse
ensino deveria ter. Isso reforça a ideia de que o pensamento elitista também foi absorvido
pelas normalistas, sendo característico de seu discurso.
Em segundo lugar, a lei transformou o 2º ciclo do ensino médio, agora 2ºgrau, não
mais em um passaporte que o preparava para concorrer às vagas da Universidade (que eram
poucas para atender à demanda), mas em um curso técnico, que proporcionava ao formando,
uma profissão. Desta forma, o 2ºgrau, adquiriu um caráter de terminalidade, desviando o
fluxo da procura pelos cursos universitários, o que do ponto de vista do Governo, parecia
resolver parte da crise da educação brasileira.
Vale salientar que a lei 5692/71, ao instituir que o 1ºgrau teria duração de 8 anos,
sendo, de acordo com o Art.20, “obrigatório dos 7 aos 14 anos”, aumentou o compromisso
que o governo devia assumir para com a educação.
Comentando sobre o aumento previsto na Lei 5692/71, da obrigatoriedade do ensino
para oito anos, D. Leila explicou:
É. Eu acho que era isso, que não tinha estrutura porque pra, porque foi muito
difícil pra organizar. E outra, eu acho que a lei vinha de acordo com a
evolução, o desenvolvimento, porque até certo ponto, de 1ª a 4ª era o
suficiente para terminar o primário, quer dizer, ele recebia um diploma e
coisa e tal, já podia trabalhar, podia fazer alguma coisa e tudo bem. Tudo
bem. Só que com o passar do tempo, as coisas iam mudando e de fato tinha
que haver mesmo uma coisa, essa mudança que passou a ser oito anos né, de
1ª a 8ª obrigatório. Isso foi muito bom, né. Nesse sentido, nesse sentido foi
muito bom. Foi muito bom. Porque aqueles que pegavam, que iam pra escola
de 5ª série era uma minoria. Quer dizer que a maioria parava na 4ª série.[...]
Uma, que começava a estudar sempre a estudar mais tarde um pouco, né.
Então quando chegava na 4ª série, já tava grande, doze, treze, quatorze anos,
né. Então, já tava na hora de procurar, de trabalhar, fazer alguma coisa.
Então eram poucos os que iam continuar de 5ª a 8ª. Então as escolas, essas
63
escolas que tinham de 5ª a 8ª aliás não é de 5ª a 8ª, é da 1ª a 5ª do ginásio,
que seria o ginásio, era o suficiente. Aí com a obrigatoriedade, com essa
nova lei, foi um passo muito grande, muito bom, que previa essa
obrigatoriedade do ensino até a 8ª série. (ARQUIVO 32, p. 5).
De acordo com o comentário feito pela normalista, notamos que havia uma percepção
de que as mudanças imprimidas pela Lei na educação acompanhavam “a evolução, o
desenvolvimento” do país como um todo. Ela explicou que no seu tempo, ou seja, quando ela
estudava, “de 1ª a 4ª série era o suficiente para terminar o primário [...] já podiam trabalhar”,
isso se referindo, é claro, às crianças pobres que não continuavam os estudos. “A maioria
parava na 4ª série [...] uma, que começava a estudar já grande, doze, treze, quatorze anos”,
explica, “então já tava na hora de procurar, de trabalhar, de fazer alguma coisa”, pois por
serem pobres precisavam se sustentar. Apenas “poucos [a elite] os que iam continuar de 5ª a
8ª série”. Seguindo a linha de raciocínio da colaboradora, com a evolução do país, se fez
necessário prover maior instrução à população que antes saía da escola para trabalhar muito
cedo. Completando os oito anos de ensino obrigatório os alunos poderiam ingressar em cursos
técnicos e se preparar melhor para o mercado de trabalho, que exigia mão-de-obra
especializada para o exercício de diferentes funções. “Aí, com a obrigatoriedade, com essa
nova lei, foi um passo muito grande, muito bom, que previa essa obrigatoriedade do ensino
até o 8ª série.”
A abertura das portas das escolas para todos, não era bem vista pelos educadores que
vivenciaram as transformações da lei durante sua docência. A democratização do ensino, do
ponto de vista das normalistas, fez com que o ensino diminuísse sua qualidade.
O binômio, quantidade-qualidade, se apresenta na fala das colaboradoras como
característica da democratização do ensino:
É. E essa explosão aí ó. E houve tempo que a escola pública foi divina viu?
Melhor que escola particular. Professores capacitados, maravilhosos. E
[INCOMPREENSÍVEL] o ensino médio, tem ensino médio, né. Depois essa
abertura assim, não sei se é sem planejamento, não sei se é a qualificação
que foi abaixando o nível dos professores. A escola para todos acho que
tirou a qualidade. Classes lotadas, professores mal pagos, desvalorizados até
como pessoas, sem poder investir na cultura deles mesmos. E a exigência
para se dar aula, caiu a qualidade, caiu a qualidade. E o prejuízo foi nosso.
Ter que pagar, tendo escola pública, ter que pagar uma escola particular, né.
(ARQUIVO 42, p. 6).
A época de ouro da escola pública se refere ao período em que esta atendia a elite do
país. “Depois essa abertura” da escola, “foi abaixando o nível dos professores”, afinal, até
64
mesmo estes, já não representava mais os grupos economicamente privilegiados. “A exigência
para se dar aula, caiu a qualidade, caiu a qualidade”. A elite passou a procurar as escolas
particulares para seus filhos: “ter que pagar, tendo escola pública, ter que pagar uma escola
particular, né”.
A escola pública não servia mais para educar seus filhos. Relatando esse processo de
transformação pela qual passou a escola pública, D. Leila relata:
Então a escola ficou assim, saturada sabe? Ela não comportava aquele
número de alunos. De modo geral ela não comportava aquele número de
alunos [...] Eu acho que isso aí é que trouxe muitos problemas para a
educação, muita dificuldade até, muito assim. E os alunos meio perdidos,
vinha de uma escola, vinha de outra, de outra, sabe? Então era um
agrupamento muito heterogêneo, muito desigual. Trouxe muito problema.
Ninguém conseguia. [...] Aí começou aquela procura pelo ensino particular.
(ARQUIVO 32, p. 3-4).
Em sequência, ela justifica a migração de parte da clientela da escola pública para a
particular:
Geralmente é o medo do novo. Acho que os pais sentiam assim, que aqueles
alunos que estavam passando por aquela fase, os mais, vamos supor, aqueles
que já estavam cursando né, o ginásio, vamos supor, sentiram o baque, a
coisa diferente. Porque mudando de escola, mudando de professor, mudando
de tudo, sentiram sim. Então eu acho que para não ser prejudicado esse, não
digo o aluno que ia entrar na 5ª série não, porque esse que já saiu da 4ª e ia
para a 5ª, ele ia encontrar diferença em qualquer lugar que fosse né, se ele
fosse continuar. Então eu acho que aqueles outros, os da 6ª, 7ª, 8ª séries.
Então eu acho que ai nesse momento, eu acho que os pais principalmente,
sentiram assim, que o filho ia ser prejudicado, que não tava sendo muito bem
desenvolvidas as aulas e coisa e tal. Não estou te falando no problema de
professores não, tô falando só do problema da transição, da mudança. Então
eu acho que nesse momento eles apelaram para a particular. [...] Isso me
aconteceu também né. Nessa época eu tinha uma filha terminando a 8ª série
e ai ela queria fazer o... tinha o científico e o clássico né? [...] que tinha que
fazer. E na escola mais perto só tinha o clássico. Então pra fazer não tinha o
científico. [...] Então foi onde procuramos escola particular. [...] E um outro
caso que eu tive também, o meu filho tava na, tinha feito a 5ª série, tava na
6ª, passando para a 6ª série. É por isso que eu te falo. Então a mudança ele
foi para uma escola pública. Foi. Mas como eu sempre observava,
continuava, como sempre acompanhei os estudos dos filhos e tudo, e esse
era o meu filho caçula, quer dizer, tinha passado por outros e tudo. Então a
gente observou que aquele ano ele, foi péssimo para ele, assim em termos de
aprendizagem [...] Aproveitamento. E a gente naturalmente sabia como ele
era. Então foi onde eu fiz isso; transferi no ano seguinte pra uma escola
particular. [...] Ficou um ano, a gente viu, acompanhou. Então não é que eu
estava, não é desfazer das coisas não. [...] Porque eu sempre fui defensora
do ensino público, porque eu fazia parte dele. Eu trabalhei, a gente lutou
para que o ensino fosse o melhor possível. Nós fizemos, a gente fazia de
65
tudo. E os meus filhos, os mais velhos só frequentaram a escola pública. O
tempo todo. [...] Eu tive a experiência, esperei um ano. Depois no ano
seguinte eu passei [Para a escola particular] (ARQUIVO 32, p. 6-8).
Finalmente, no mesmo relato, nossa colaboradora deixa escapar o sentido que a
educação deveria ter na formação de seus filhos:
[...] a gente quer que continue os estudos que faça uma faculdade e tudo o
mais, né. A gente lutava para isso tudo. Então como ainda não tava muito
bem estruturado, tudo. Talvez depois tudo bem né. Eu sei que o primeiro
ano, o ano de transição é muito problema, é mais difícil mesmo. Mas eu
sempre fui uma defensora da escola pública, porque eu pra mim, eu sabe,
sempre fui. Meus filhos frequentaram mesmo. Só nessa época que aconteceu
isso ai. (ARQUIVO 32, p. 8).
A defesa pela escola pública nesse momento se dava como professora, membro
atuante do sistema de ensino. No entanto, era evidente que o ensino público não se destinava
mais à formação da elite. Essa maneira de pensar representava não só a mentalidade deste
grupo profissional; expressava os temores das camadas médias que tinham na escola pública
até então, um meio de ascensão social. E era a esses que a escola altamente seletiva havia
servido até este período. Como podemos notar através do relato, as transformações ocorridas
com as leis de Diretrizes e Bases, geraram uma migração dos alunos das escolas públicas com
certo poder aquisitivo, para as escolas particulares que expandiram no período.
Podemos concluir, portanto, que o dualismo na educação foi finalmente reforçado
pelas Leis de Diretrizes e Bases, como algo inerente às sociedades capitalistas no qual está
inserida. Não poderia ser diferente. Não podemos falar em uma escola una, como queriam os
pioneiros da educação em 1932 em uma sociedade compartimentada, com interesses sociais
divergentes que pedem por uma educação de base para formar mão-de-obra qualificada para
gerar lucros, e uma educação de gestores que precisam aprender como administrar os recursos
humanos e materiais e explorá-los de forma eficiente, a fim de maximizar seus rendimentos e
manter seu status quo.
A escola pública não mais servia às aspirações das camadas emergentes da população,
pois seu objetivo era preparar mão-de-obra especializada, porém, barata para ser absorvida
pelo mercado em expansão. No artigo 5º que estabelecia o currículo para o 1º e 2º graus,
determinava que existisse uma educação geral, predominante no ensino de primeiro grau, e
uma formação especial, destinada ao 2ºgrau. No item b do art 5º lemos:
b) no ensino de 2º grau, predomine a parte de formação especial.
66
§2º A parte da formação especial do currículo:
a) terá o objetivo de sondagem de aptidões e iniciarão para o trabalho, no
ensino de 1ºgrau e de habilitação profissional, em consonância com as
necessidades do mercado de trabalho local ou regional, à vista de
levantamentos periodicamente renovados. (BRASIL. LEI 5692/71).
Torna-se evidente que o currículo, principalmente da formação especial, ou
profissional, deveria seguir as tendências do mercado de trabalho a fim de atender a demanda
de mão-de-obra qualificada.
A Educação Moral e Cívica, a Educação Física, a Educação Artística e o Programa de
Saúde (art. 7º) tornaram-se obrigatórios. Enquanto que a Educação Moral e Cívica, como já
salientado anteriormente, tinha por objetivo a preparação para a obediência, o trabalho e a
docilidade. Já a Educação Física, seguindo o modelo Militar, primava pela ordem, postura e
preparação do corpo saudável – orientado pelo Programa de Saúde – para exercer a função
desejada no mundo do trabalho.
O ensino Religioso continuou em caráter facultativo, sendo ministrado nos horários
normais.
Pois bem, para que essas mudanças fossem colocadas em prática era imprescindível a
atuação de professores em todos os níveis de ensino. O capítulo V da LDB é dedicado aos
“Professores e Especialistas”. O Artigo 30 determina:
Art.30. Exigir-se-á como formação mínima para o exercício do magistério:
a) no ensino de 1ºgrau, da 1ª à 4ª séries, habilitação específica de 2ºgrau;
b) no ensino de 1ºgrau, da 1ª à 8ª séries, habilitação específica de grau
superior, ao nível de graduação, representada por licenciatura de 1ºgrau,
obtida em curso de curta duração;
c) em todo ensino de 1ºe 2º graus, habilitação específica obtida em curso
superior de graduação correspondente a licenciatura plena.
§ 1º os professores a que se refere à letra “a” poderão lecionar na 5ª e 6ª
séries do ensino de 1ºgrau se a sua habilitação houver sido obtida em quatro
séries ou, quando três, mediante estudos adicionais correspondentes a um
ano letivo que incluirão, quando for o caso, formação pedagógica.
§ 2º os professores a que se refere à letra “b” poderão alcançar, no exercício
do magistério, a 2ª série do ensino de 2ºgrau mediante estudos adicionais
correspondentes no mínimo a um ano letivo.
§3º os estudos adicionais referidos aos parágrafos anteriores poderão ser
objeto de aproveitamento em cursos ulteriores.
Através do artigo 39, a lei instituiu uma política de incentivo à formação docente por
meio de aumento de salários:
Art.39 Os sistemas de ensino devem fixar a remuneração dos professores e
especialistas de ensino de 1º e 2º graus, tendo em vista a maior qualificação
67
em cursos e estágios de formação, aperfeiçoamento ou especialização, sem
distinção de graus escolares em que atuem. (BRASIL. LEI 5692/71).
Muitas professoras primárias, que já estavam prestes a aposentar procuraram cursos de
especialização, motivadas que estavam com um possível aumento de seus vencimentos que
também se refletiria em sua aposentadoria.
Houve assim aquele plano de carreira que mudava de referência. Então foi
assim, quem tinha só o magistério ganhava x. Referência tal. Referência era
o valor do pagamento. E quem tivesse pedagogia, ou outra faculdade. A
princípio foi só pedagogia, depois abriu outras faculdades. Subia quatro
referências. Dava um salto no salário muito grande, então isso foi um
estímulo muito grande, correu todo mundo pra pedagogia. (ARQUIVO 27,
p. 10).
Esse incentivo dado pelo governo proporcionou às professoras a oportunidade de
buscar outros postos dentro da educação como o de direção e supervisão.
[...] conversando com a Cleuza eu falei que nós nos formamos em setenta e
quatro... ela falou “não foi Edna. Em setenta e quatro nós já prestamos
concurso pra diretor...” [...] Eu formei primeiro, eu devo ter formado em
setenta e dois. [...] Ela não fez a pedagogia junto comigo, ela fez depois. Eu
devo ter formado em setenta e dois. Em setenta e quatro nós prestamos
concurso pra diretor. Ela e eu... passamos as duas né. (ARQUIVO 28, p.
10-11).
Como veremos mais adiante, esta formação complementar permitiu que as normalistas
sobrevivessem enquanto categoria profissional a estas transformações no ensino e, mais do
que isso, atingissem outros cargos dentro deste sistema durante sua carreira, adquirindo ampla
experiência na área educacional. Desta forma, os depoimentos das normalistas são
fundamentais para compreendermos como se processaram no imaginário, no comportamento,
nas práticas pedagógicas desta categoria de profissionais, as transformações ocorridas no
âmbito político, econômico, social e, sobretudo, educacional que se deram no Brasil durante
as décadas de 60 a 80 do século XX.
68
CAPÍTULO 2 – MEMÓRIA E SOCIEDADE: A FORMAÇÃO DA COLÔNIA DE
NORMALISTAS COMO CATEGORIA SOCIAL E PROFISSIONAL
Durante o século XX, a educação brasileira foi alvo de transformações estruturais
profundas, reflexo das mudanças ocorridas nos meios político, econômico e social da nação.
As disputas de grupos divergentes pelo poder incidiram diretamente na educação através de
manifestos, decretos e leis, visto ser esta considerada um instrumento eficaz de legitimação e
manutenção da hegemonia política dominante.
O grande impulso ocorrido na educação, a partir da década de 30, refletiu as mudanças
sociais, econômicas e políticas ocorridas no Brasil no início do século XX. Com o advento da
República, os ideais liberais passaram a fazer parte dos discursos políticos. Era necessário
imprimir uma nova face para a nação e a educação passou a ocupar um papel fundamental
neste aspecto. No campo econômico, o Brasil assistiu durante as primeiras décadas do século
XX a uma grande transformação. A crise mundial de 1929 desencadeou a crise do café,
principal produto de exportação do Brasil. Neste contexto, houve a migração de capital da
economia agrário-exportadora em crise, para a indústria até então incipiente no país. Para
Franca representou o crescimento da indústria coureiro-calçadista, crescimento industrial que
representava forte transformação na tradição artesanal, consolidada há bom tempo na cidade.
Na esteira das transformações econômicas, vieram as transformações sociais:
crescente migração de braços do campo para a cidade em busca de trabalho, desenraizamento
cultural, transformações das relações sociais e produtivas. Isto tornou imperativo o
surgimento de escolas primárias para ensinarem a ler e escrever a crescente massa de
operários. Era necessário destituí-los de seus “acervos culturais” (FERNANDES, 1989, p.
144), de sua autonomia e auto-suficiência produtiva e revesti-los do caráter alienante
imprescindível no ambiente fabril.
Devido à constante urbanização e industrialização, tornou-se imperativo a abertura das
portas das escolas à população até então apartada do mundo letrado. O analfabetismo era
comum às pessoas que habitavam nos campos e fazendas por questões de sobrevivência, e se
fazia impor diante das dificuldades que encontravam em ter acesso à educação: poucas
escolas rurais esparsas em um grande território, grandes distâncias existentes entre as
fazendas e as escolas, necessidade de as crianças, desde a tenra infância, trabalhar na roça,
não tendo tempo para frequentar a escola e, finalmente, a escassez de inscrições e da
69
utilização da escrita nas fazendas para indicar algo, qualquer coisa que fosse tais como:
embalagens, placas jornais e livros que pudessem promover ou incentivar a leitura e a escrita.
Mas que educação se pretendia ministrar a essa classe trabalhadora que saíra do
campo, do trabalho com a terra e viera para a cidade participar no trabalho produtivo dentro
de fábricas de calçado? O ritmo, as técnicas e a organização da produção não eram mais os
mesmos utilizados no campo. Tornava-se de extrema importância, neste momento, adequar o
ensino às necessidades impostas pelo desenvolvimento do capitalismo industrial.
No entanto, para compreendermos a prática pedagógica das normalistas, que se
dedicaram à formação elementar destinada aos filhos dos trabalhadores, é importante que nos
reportemos à sua própria educação formativa recebida tanto no lar como em colégios de
ensino laico e confessional.
2.1 A Família: Berço das Tradições
Nas primeiras décadas do século XX, a República brasileira criada sobre as bases
tradicionais do latifúndio monocultor, de produção para exportação e trabalho, até pouco
antes de seu advento, escravista, continuou servindo aos interesses do grupo hegemônico que
detinha o poder político e econômico – os cafeicultores.
Franca, localizada na região nordeste do Estado de São Paulo, juntamente com outras
cidades como Ribeirão Preto, formou o que se convencionou chamar de Alta Mogiana, alusão
feita à ferrovia que chegou à região em 1887, com o objetivo de escoar a produção do café até
o porto de Santos, de onde seguia de navio para o exterior.
Junto com a ferrovia, chegaram também grandes levas de imigrantes para trabalhar na
colheita do café e substituír a mão-de-obra escrava. Entretanto, alguns destes imigrantes, mais
tarde, tornaram-se proprietários de grandes glebas produtoras de café da região. Outros se
dedicaram ao comércio, tradição de seu povo, como é o caso dos libaneses, judeus e sírios.
Independentemente da ocupação econômica a que se dedicaram, os imigrantes trouxeram
consigo, como parte de sua cultura social, o valor da educação, como forma de alcançar e ou
manter o status quo que desejavam na sociedade que se formava.
É curioso notar que a formação institucional, principalmente de nível superior, que
titulava com um diploma os filhos destes fazendeiros, era muito valorizada, embora isso não
significasse na prática, o abandono da terra para o exercício da profissão estudada.
70
Ah, o papai? Eu vou te falar, o papai era agricultor né, mas a profissão dele
mesmo, ele formou, ele era farmacêutico. Mas ele não exerceu, ele foi
mesmo pra fazenda, porque os pais lá eram muito filhinhos de papai né, e
muito rico e ele então era o caçula sabe. Aqui eles ó [mostrando foto
antiga] tem eles pequeninhos aqui. Têm meu avô, minha avó, aqui os três
irmãos, com ele quatro. [...] A raspa do tacho. E a raspa do tacho você sabe
como é que é né, não exerceu a profissão de farmacêutico. [...] Foi ficar
junto com o pai. (ARQUIVO 33, p. 1-2).
Como fica evidente no depoimento, o pai da colaboradora era farmacêutico de
profissão, mas, como “eram muito filhinhos de papai né, muito rico”, não havia necessidade
de exercê-la. Como era a “rapa do tacho”, o caçula, “não exerceu a profissão de farmacêutico.
[...] foi ficar junto com o pai”, ou seja, dar continuidade aos negócios da família e, para
cumprir esse papel, a formatura pouco valor prático tinha, pois administrar a fazenda de café
se aprendia no cotidiano, de forma empírica, lado a lado com o pai.
O mesmo se dava com as moças: formavam no Magistério, recebiam seu diploma,
mas, na maior parte das vezes se casavam e nunca exerciam a profissão. Embora todas as
colaboradoras aqui entrevistadas tenham exercido de fato a profissão – o que foi um critério
para a escolha das mesmas – é comum, em seus relatos, citarem colegas que não tiveram o
mesmo destino. Neste sentido, podemos concluir que, possuir o diploma do Curso Normal,
para as moças casadouras, fazia parte do dote de casamento – dava-lhes a formação e o
refinamento necessário para serem futuras “rainhas do lar”.
D. Leila assim define o valor do Curso Normal para a mulher:
É então, aí eu acho que a gente valorizava a formação, o estudo, a
aprendizagem, aquela coisa tudo. Era necessário. Não com o intuito de
trabalho, nem nada. Mas era necessário. Tanto é que havia muitas, por
exemplo, que casaram logo e se não tivesse condição de trabalhar não
trabalhava, só que ia trabalhar mais tarde. Quantas que talvez até fizesse o
melhor, tinha os filhos e tudo. Depois dos filhos grandes elas iam começar
trabalhar, né. Tinha muito, tinha isso também. Então a gente queria estudar
assim, mais para uma formação, pra aprender, pra sabe, a importância do
estudo. Depois [VOZES CRUZADAS] era outra coisa. Depois cada uma
ia ver o que podia fazer, o que devia fazer. (ARQUIVO 32, p.19, grifo
nosso).
Para a mulher, a educação “era necessário”. Mas veja: “Não com o intuito de trabalho,
nem nada”, ou seja, o objetivo não era necessariamente profissionalizar-se, trabalhar. A
justificativa se apresenta em seguida: “Então, a gente queria estudar assim, mais para uma
formação, pra aprender, pra sabe, a importância do estudo”. Uma educação mais refinada para
as filhas dos fazendeiros, comerciantes, profissionais liberais era fundamental. O trabalho na
71
profissão vinha como consequência: “Depois [VOZES CRUZADAS] era outra coisa. Depois
cada uma ia ver o que podia fazer, o que devia fazer”. Ao falar “o que podia fazer”, a
colaboradora refere-se ao que teria condições de fazer após casar-se, ou seja, o que seria
permitido pelo marido que a aspirante à professora primária fizesse.
Embora alguns exercessem a profissão para a qual estudaram, mantiveram as fazendas
e, mais tarde, voltaram a dedicar-se exclusivamente a elas. Esse é o caso do pai da
colaboradora, D. Augusta, Sr. Antonio Ricardo Pinho, que exerceu a medicina durante muitos
anos em Franca e foi importante influência da fundação do Sanatório Santana, que funcionava
onde “hoje é uma dependência burocrática da Santa Casa, ali atrás [da Santa Casa]”.
(ARQUIVOS 8-10, p. 1) Ao deixar a medicina, o Sr. Pinho voltou para a fazenda,
introduzindo a criação do gado Gir na região de Franca, ao lado do filho que era formado em
Direito, mas que cuidava das fazendas do pai. D. Augusta conta:
[As fazendas] tinha pra descanso. Porque meu irmão é que gostava e
tomava conta, entendeu? Que depois se formou em Direito. O meu pai, eu ia
te contar uma coisa tão interessante... ele gostava do gado gir e ele
especializou-se gostando porque ele tinha um primo, o Zico, lá em Uberaba,
que o fez introduzir na criação do gado, sabe. E ele foi muito feliz, ele teve
uma criação de gir, muito, muito bem encaminhada. E meu irmão que
gostava de fazenda, já morava em fazenda sabia mexer com tudo isso. Então,
meu pai passou a gostar muito e a desanuviar um pouco a cabeça porque ele
tinha muita responsabilidade com os doentes. (ARQUIVO 6, p. 14).
Na década de 50, com a decadência do café e a crescente urbanização e
industrialização, tornou-se mais coerente transferir o capital da agricultura para a pecuária, na
criação de gado leiteiro ou de corte, ou para a indústria calçadista que se fortalecia.
A crise econômica de 1929 afetou sobremaneira a economia brasileira baseada no
sistema tradicional agrário-exportador. Nos primeiros anos da década de 30 era possível sentir
os efeitos da crise para os produtores de café.
D. Dulce conta:
Meu avô que nasceu na Itália. Ele veio da Itália, minha avó era imigrante.
Veio, começou a plantar café, né. Ele tinha sete fazendas e na queda do café
ele perdeu [...] Ficou só com essa. A melhor. Ele ficou com a melhor. Tanto
que eu herdei 42 alqueires. Bastante, né? [Após divisão de bens com dois
irmãos]. (ARQUIVOS 35-36, p. 5).
Como ficou evidente no depoimento, alguns não chegaram a perder todo patrimônio
construído, talvez pela sua extensão. Outros já não tiveram a mesma sorte. Uma das
72
colaboradoras contou que o pai perdeu a fazenda e entrou em ruína financeira com o
enfraquecimento do comércio do café. É digno de nota que, neste caso, o pai da colaboradora
era fazendeiro com escolaridade básica (nível de 1º ciclo do ensino fundamental) não tendo
uma profissão de diploma como os demais, para recorrer em caso de crise financeira na
agricultura. Também, diferentemente dos outros progenitores, não tinha um segundo
investimento ou negócio, como no caso do pai da D. Dulce que também tinha um comércio,
onde empregava parte de seus lucros.
Ele [o pai] tinha o bar e tinha a mercearia do lado assim, sabe, um negócio.
Ali vendia, uma mercearia como vende arroz, feijão, tudo essas coisas, né. E
o bar tinha do lado de cá. Aí tinha uma sorveteria. E tanto que ele me formou
ali, negócio. Vendia muito. (ARQUIVOS 35-36, p. 5).
Nesse pequeno trecho percebemos a visão empreendedora que alguns fazendeiros
imigrantes tinham. Embora fossem ligados à terra e ao trabalho na lavoura, isso não impedia
que tivessem uma visão mais à frente, mais apurada, que lhes permitia investir parte dos
ganhos em outro setor, diversificando assim suas atividades econômicas e os possíveis
retornos que estas podiam lhes conferir.
Como observou Freitas (1979, p. 29)
Enquanto crescia a lavoura cafeeira, as necessidades brasileiras em outros
setores também cresciam, notadamente no setor de manufaturados. A
superprodução de café a partir de 1880, a baixa nos preços deste produto, as
oscilações de câmbio, o início da formação de um mercado consumidor,
após a abolição da escravatura em 1888, a proclamação da República no ano
seguinte e as modificações que naturalmente se fizeram sentir no plano
político-administrativo do país, deram origem a um movimento mais
acentuado em prol da sua industrialização. (FREITAS, 1979, p. 29).
Estes homens, atentos que estavam às transformações sociais e econômicas do
período, com um crescente mercado consumidor de produtos manufaturados, viam no
comércio e no setor industrial, condições de ampliar seus rendimentos.
Outra preocupação destes homens de negócios era dedicar-se a um único produto
como o café, sujeito às oscilações do mercado, que poderia – como ocorreu no passado de
nossa história econômica com outros produtos como o açúcar, a madeira e o ouro – entrar em
decadência, levando-os à ruína financeira, o que de fato ocorreu na crise de 1929 com os
fazendeiros que não tinham o mesmo espírito empreendedor. Esta qualidade de algumas
personalidades francanas aparece na evidência oral com clareza de detalhes:
73
Olha, eu sempre tenho que ressaltar que a minha mãe foi sempre uma pessoa
assim muito enérgica, entendeu? Ela era Maria Augusta Caleiro Pinho, filha
do, do Hygino de Oliveira Caleiro. Família mesmo muito, muito tradicional.
E eu falo isso não com orgulho assim, mas eu falo com um sentimento assim
de admiração sabe, porque o Hygino de Oliveira Caleiro, meu avô, teve sete
filhas e ele era o espírito empreendedor. Ele além das fazendas que tinha, ele
montou a Casa Bancária Hygino Caleiro, a Casa Hygino ao lado, que era
toda aquela parte da esquina que hoje é a Casa das Novidades, do Dr. Jamil,
ele que comprou a Casa Hygino, que a Casa Hygino ia até lá embaixo
naquele, naquele quarteirão. E eu me lembro muito bem que naquele tempo
não se falava supermercado, se falava armazém. Então na sequência, a Casa
Hygino é uma esquina da Praça Nossa Senhora da Conceição e Voluntários,
certo, na esquina. Naquela esquina era tecido, confecções... e subia a escada
no segundo andar tinha assim armarinhos, como eles chamavam; na
seqüência tinha a seção de presentes; depois vinha a seção para homens e
depois o armazém. Então a Casa Hygino ia tomando conta de tudo aquilo. E
tem um detalhe interessante que quem tomava conta que era a gerente da
seção de presentes era a Nilza Trajano sabe, que formou o Magazine Luiza,
que era nossa funcionária. (ARQUIVOS 8-10, p. 2).
Esse fragmento mostra-nos o poderio econômico da família Caleiro que figurava entre
as mais importantes da cidade de Franca. D. Augusta comentou: “O Hygino de Oliveira
Caleiro, meu avô [...] era o espírito empreendedor [...] além das fazendas que tinha, ele
montou a Casa Bancária Hygino Caleiro, a Casa Hygino” (loja de departamentos). É notório,
neste relato, que seu avô era fazendeiro, banqueiro e comerciante. Essa diversidade de
empreendimentos lhe conferia prestígio social, econômico e político.
Hygino de Oliveira Caleiro, avô de D. Augusta, colaboradora em nossa pesquisa, era
um dos homens mais ricos e influentes da região. Hygino Jacintho Caleiro, seu neto e esposo
de D. Augusta, de quem era primo, escreveu sua biografia, exaltando a importância que
conferiu à cidade de Franca como homem de negócios e articulador de riquezas. Em sua
Monografia de Conclusão de Curso de História na então Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Franca, Hygino Jacintho Caleiro descreveu assim o espírito empreendedor do avô:
Ao elaborarmos pesquisa em tôrno de Hygino de Oliveira Caleiro, devemos
salientar, de comêço, as condições de comércio interiorano do seu tempo.
Processava-se êle com características próprias, fazendo do comerciante, não
só transacionador de mercadorias, como também um conselheiro, misto de
oráculo e vidente, onde não poderia faltar, como condição sine qua non, a
reputação, o bom nome e o conceito reunidos. As funções “extras” de
compadre e padrinho de muitos, estavam perfeitamente enquadradas
naqueles moldes de comércio cabôclo, quando, principalmente aos
lavradores, eram fornecidas mercadorias com a célebre ressalva, “em prazo
de colheita”. Para melhor esclarecer esta parte, o produto da venda do
comerciante era para ser pago apenas na época das colheitas, fossem elas de
café, cereais ou outros gêneros de montante vultoso. Apenas nestas ocasiões,
ficava o lavrador apto a regularizar seus débitos, ressalvadas as exceções das
74
trocas por queijo, farinha, rapaduras e outras rendas de menor monta que a
todo tempo eram válidas. Conclui-se daí que o comerciante, mesmo
cobrando algum juro pela espera na regularização dos débitos, deveria
possuir um capital apreciável, pois ao lado do suprimento de suas prateleiras,
deveria arcar com o financiamento dos seus fregueses. Surgiram, em razão
disto, os embriões, as primeiras células de muitos organismos bancários do
interior, pois, nesta altura, já se confundiam as figuras do negociante com a
do banqueiro. Foi o que se deu com o próprio Hygino de Oliveira Caleiro,
com o grupo Moreira Salles de Poços de Caldas, com o grupo Artur Scatena
de Batatais, e muitos outros que poderíamos enumerar. Para melhor elucidar
o problema da carência de recursos, creditícios de estabelecimentos
bancários própriamente ditos, tenhamos em mente que em cidades do
interior do porte de Franca, só a partir da segunda década do nosso século é
que os créditos específicos começaram a afluir, como foi o caso da fundação
do Banco de Custeio Rural francano, a partir de 1911. (CALEIRO, 1967,
p. 9-10, grifos do autor).
Esse fragmento descreve bem o embrião dos primeiros sistemas de crédito, de onde
surgiram as casas bancárias, neste caso, o BHC ou Banco Hygino Caleiro, que mais tarde
foi comprado pelo grupo Bradesco.
A Casa Hygino, fundada originalmente em 1883, em parceria com o sogro Francisco
Martins Ferreira da Costa, como Caleiro e Andrade, por volta de 1903 “passou a ter a razão
social Hygino Caleiro e Sandoval [...] no ponto de confluência da Pça. N. S. da Conceição e
R. Voluntários da Franca” (CALEIRO, 1967, p. 15). Foi somente em 1918 que o
estabelecimento recebeu o nome de Casa Hygino sendo Hygino de Oliveira Caleiro seu
único proprietário juntamente com a Casa Bancária Hygino Caleiro.
No entanto, a elite da sociedade de Franca e região não se constituíam apenas de
fazendeiros. Como já referido acima, os comerciantes e profissionais liberais também
cobravam seu quinhão na hierarquia da sociedade que se definia em meados do século XX. O
comércio sempre ocupou um espaço privilegiado na sociedade e, no caso de Franca e cidades
adjacentes, não era diferente.
Nessa época, as lojas ou armazéns, vendiam de tudo um pouco: utilidades domésticas,
panos ou fazendas, como diziam, para fazer roupas, alimentos básicos como arroz, feijão,
açúcar, querosene para lampião, botinas de couro, produtos de selaria – enfim, tudo o que se
precisava, encontrava ali.
Era esse o tipo de comércio que o pai da D. Leila tinha em Rifaina9. “Ele era
comerciante”. Tinha “uma loja que vendia de tudo [...] É. Vendia de tudo”. (ARQUIVO 30, p.
2).
9 Cidade turística do interior do Estado de São Paulo encontra-se às margens do Rio Grande, divisa com o Estado
de Minas Gerais. Localiza-se a 73 quilômetros da cidade de Franca.
75
Os comerciantes de cidades vizinhas enviavam suas filhas para fora, a fim de obterem
sua educação em regime de internato, no Colégio de Nossa Senhora de Lourdes.
Outra profissão que gozava de certo status era a de alfaiate; afinal eram eles que
faziam as roupas que vestiam os grandes fazendeiros, os doutores, os políticos. Era essa a
profissão do pai de D. Cleuza.
O meu pai, ele foi um homem muito simples, filho de imigrantes italianos.
Por muito tempo, quando criança, ele ajudou os pais com uma lenhadora e
depois, como dizia antigamente, foi aprender um ofício, e ele aprendeu
assim o serviço de alfaiate, e desempenhou essa função por muitos anos e foi
um excelente alfaiate, se destacou aí na alta costura, na sociedade francana...
venceu na vida assim. (ARQUIVO 12, p. 1).
“Aprender o ofício” com um mestre de ofício que já o dominava e depois exercer a
profissão a vida toda era o costume desde a Idade Média. No Brasil, essa forma de
aprendizado se propagou até o surgimento dos cursos técnicos e colégios industriais, que
suprimiram a figura do mestre de ofício, responsável por ensinar a profissão em sua oficina
aos jovens aprendizes que para lá eram enviados pelos pais, caso estes não fossem os próprios
mestres que passavam o saber para as próximas gerações, como um segredo de família. Mas
esse não era o caso da nossa colaboradora. Ele era filho do dono de uma lenhadora e foi
aprender a profissão com um alfaiate. E foi assim, cortando e costurando que seu pai “se
destacou aí na alta costura, na sociedade francana”.
Esse fenômeno social que provocou a transferência da educação profissional, que
ocorria na informalidade das oficinas para a formalidade das instituições de ensino técnico,
foi característica marcante do processo de modernização econômica que o Brasil mergulhou a
partir de segunda metade do século XX. O mestre que dominava os conhecimentos relativos
ao seu ofício, com o desenvolvimento da manufatura e a consequente industrialização foi
destituído de sua posição privilegiada de guardião de um saber importante.
Nesse contexto, a escola passou a assumir um papel anteriormente nulo neste aspecto:
agora era para lá e não para as oficinas que as crianças e adolescentes deveriam se dirigir para
aprender as habilidades necessárias para o trabalho na indústria, setor que crescia em todo
país particularmente em Franca.
Partindo da profissão dos pais das colaboradoras, é possível reconstruir o perfil das
normalistas, sua origem, as tradições familiares, os valores, a educação recebida no lar e,
acima de tudo, compreender como toda essa gama de relações influenciou na formação do que
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vamos chamar de cultura social da colônia das normalistas. É como se o cenário estivesse
delineado e, a partir daí, os atores pudessem tomar os seus postos e iniciar o ato.
2.2 A Educação Familiar Cristã
Nas primeiras décadas do século XX, eram escassas as escolas em todo território
nacional. Mesmo regiões economicamente mais ricas, como a região sudeste, contavam com
poucas e esparsas escolas de primeiras letras, sustentadas pelo Estado, de caráter confessional,
ou de iniciativa de alguns poucos fazendeiros que as mantinham em suas glebas e atendiam
boa parte das regiões circundantes.
Era comum as crianças entrarem direto na primeira série, com sete anos completos e
até esta idade recebiam educação no lar, tendo suas progenitoras como mestras, os irmãos (se
houvessem) como companheiros de aprendizagem e o quintal, o pomar, a rua (no caso das
crianças da cidade) como a sala de aula. Eram quase inexistentes os chamados Jardins da
Infância, a pré-escola da época. Tudo o que a criança deveria aprender a fim de estar
preparada para o ingresso no mundo da educação formal e sistematizada era aprendido no seu
cotidiano.
Daí, podemos compreender a importância da rigidez dessa educação familiar: ela
sinalizava o comportamento que a criança deveria ter, não só ao ingressar na escola, mas
servia-lhe de parâmetro para a vida adulta. Aliás, é curioso notar que uma das evidências de
boa educação dizia respeito à criança se vestir, se arrumar e, acima de tudo, se comportar
como um adulto em miniatura.
Referindo se à educação recebida no lar, as recordadoras, de modo geral comentam
sobre a rigidez: “[a educação] Era rígida também. Antigamente os pais era diferente. Nossa!
Eu era filha única, apanhava, me batia. Mas eu fazia muita arte também.” (ARQUIVO 34, p.
10).
Os valores tradicionais, os preceitos religiosos faziam parte do currículo da educação
familiar:
Bom, a gente sempre foi, sempre orientado pelos pais em todas as situações
eles nos educaram assim com muito rigor e na época a gente era também
muito obediente, eu acho que nós recebemos assim toda a espécie de valores
né, que a gente pode conservar né. Eu acho que foi a melhor possível, apesar
de eles serem, ter vindo há pouco assim da Síria, eles eram imigrantes,
falavam pouco né, mais quanto a parte da educação eles foram muito, muito
77
bons. Tanto a gente recebia uma educação religiosa como a formação de
valores né, foi muito expressiva, muito boa. (ARQUIVO 30, p. 2).
Fazendo uma releitura da educação recebida no lar, D. Edna com seus conhecimentos
sobre filosofia concluiu que teve uma “educação dos sentimentos”:
Olha Cristina, foi muito importante porque como eu te falei família assim
mais antiga não tinha esse costume de logo colocar as crianças na escola,
quer dizer que a formação era mesmo no lar né. E isto foi muito importante
pra mim mesmo depois, para eu trabalhar depois com as crianças viu, porque
minha mãe sempre orientava pra a gente sempre dizer a verdade, nunca
mentir, pedir desculpas pras pessoas, se errar errou, procura corrigir... então
essa formação foi muito importante pra mim bem, e eu ainda hoje insisto na
formação dos sentimentos no lar, certo? (ARQUIVO 21, p. 1).
Essa educação dos sentimentos se refletiu na sua prática profissional como veremos
mais adiante. Isso torna evidente que a educação recebida no lar foi fundamental para a
formação do perfil profissional da futura educadora, da normalista. “Sempre dizer a verdade,
nunca mentir”, eram preceitos cristãos que mais tarde seriam reforçados tanto nas missas
como na educação de caráter confessional que receberiam no Colégio de Lourdes. Não
podemos negar que esses valores eram fundamentais para a formação das normalistas, pois,
na medida em que acreditassem profundamente neles, naturalmente os defenderia em sua
prática pedagógica, inculcando-os em seus futuros alunos. Estes últimos, como produto de um
sistema educacional pautado nos interesses capitalistas e na reprodução das desigualdades,
aprenderiam assim na escola o que verdadeiramente é importante para o trabalhador:
obedecer, não mentir, não roubar tempo do patrão, ser diligente no trabalho, obedecer às
regras, o controle do tempo e hierarquia, primeiro da escola, depois das fábricas.
Um relato interessante sobre a educação familiar mostra-nos a importância da mulher
progenitora nesse processo, além de chamar-nos a atenção para um aspecto interessante – o
currículo oculto (APPLE, 1982) está presente todo o tempo na cultura social das normalistas
sem que elas, nem seus pais se apercebam disso:
Bom, era uma educação assim bastante rígida, meu pai com costumes
italianos bastante assim, severos. E minha mãe era bem mais nova que o meu
pai, assim, muito mais nova. E assim, era uma submissão amorosa assim
muito grande, feliz, não tinha nada de sofrimento. E ela acompanhava meu
pai. Era tudo, nós duas éramos tudo. Mas uma educação assim pautada pela
fé, pela moral, pelos bons costumes, pela ética, pela cidadania... sem eles
saberem de nada que eles estavam fazendo. Então eles, minha mãe me
ajudava muito nos afazeres de escola assim, mesmo antes, eu fui entrar em
escola com seis anos. (ARQUIVO 12, p. 2).
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Esse fragmento é muito rico em informações: reforça a rigidez da educação familiar, e
nos dá uma possível origem nos “costumes italianos, bastante [...] severos.” Outra tradição
que podemos observar aqui é o casamento de jovens moças com homens mais velhos: “minha
mãe era bem mais nova que meu pai, assim, muito mais nova.” A submissão da mulher ao
marido, era considerada como algo natural que fluía com certo prazer, afinal, as mulheres
eram criadas para esse papel: “era uma submissão amorosa assim, muito grande, feliz, não
tinha nada de sofrimento.” Em outra entrevista esse aspecto da submissão feminina reaparece
no momento em que a mulher conquista o direito do voto. As mães das colaboradoras são
contemporâneas a essa transformação e sentem dificuldade em escolher seus próprios
representantes – são os maridos que decidem por elas. D. Cleuza contou: “Interessante
lembrar assim que a mamãe quando ela ia votar, ela ia votar, ela votava no candidato que meu
pai trazia pra ela o nome, o número e sempre foi assim.” (ARQUIVO 40, p. 1). O dever da
esposa era acompanhar seu marido. E a educação familiar resumia-se nos pilares da „fé,
moral, bons costumes, ética e cidadania‟. Hoje, fazendo uma reelaboração do passado a
colaboradora chega a dizer: “[...] sem eles saberem de nada que eles estavam fazendo”, ou
seja, que seus pais não tinham noção desses conceitos atuais, mas que, na realidade, no
cotidiano do lar era isso que eles ensinavam.
A mãe, primeiro modelo de mulher que a normalista tinha como exemplo perfeito, era
submissa ao marido, de poucas palavras, recatada, de semblante sério ou de uma docilidade
imensa. D. Augusta descreveu sua mãe da seguinte maneira:
Minha mãe era uma pessoa assim, de modos austeros, a minha mãe nunca
deu uma risada, ela me achava escandalosa... verdade. Ela curtia meu
programa de rádio e falava, “que horror! Você deu risada!”, “ah, mas a coisa
tava engraçada...”. (ARQUIVO 6, p. 13).
Rir era proibido para a mulher, pois esse comportamento se destinava a pessoas
vulgares. A espontaneidade na demonstração dos sentimentos era controlada desde cedo, tanto
pelo exemplo da mãe, como pelas reprimendas que os filhos levavam até a fase adulta, como
vimos neste relato em que a colaboradora já trabalhava no rádio.
Além da educação moral e cristã, as crianças recebiam no lar a disciplina que
acompanhava a mesma rigidez que se seguiria no colégio: os castigos eram comuns, embora
alguns pais ainda fossem mais severos, como já observamos no fragmento citado
anteriormente, em que a recordadora diz que „apanhava‟ dos pais por ser muito „arteira‟. D.
Edna conta como era o castigo: “Ah minha filha, sentada em determinado lugar, sem sair,
79
ficar tantas horas sem comer, certo. Enfim, um castigo mesmo, para sentir que estava sendo
castigado”. (ARQUIVO 15, p. 2).
Por meio desses mecanismos moldava-se a criança para entrar na escola. A liberdade
de brincar de maneira solta pela fazenda, com quem desejasse ou como quisesse deveria ser
cerceada. A hierarquia se aprendia logo cedo, na escolha dos coleguinhas de jogos infantis: se
não tivesse irmãos ou primos para brincar, brincava sozinha, mas nunca com os filhos de
colonos. “[Irmãos] não tinha. Brincava sozinha. Porque filha única tinha gente na fazenda,
mas já os pais não deixavam brincar. Brincava sozinha.” (ARQUIVO 34, p. 10).
Desta forma, aprendia-se desde muito cedo que não devia misturar pessoas de
situações econômicas e culturas diferentes. A hierarquia também era ensinada para as meninas
pelas mães na administração do lar. Era proibido um contato informal com os criados, devia
manter o respeito, a distância necessária:
[O relacionamento] Era de muito respeito. A minha mãe era muito séria e
muito, muito brava, a minha mãe... meu pai não. Então o que é que
acontecia? A minha mãe tinha um regime que eu brigava com ela, que era o
regime germânico dentro de casa, tanto que não era permitido ficar
conversando com a empregada, tinha que tratar muito bem, mas não era pra
ficar conversando, brincando... nada, nada, nada. Era uma coisa respeitosa,
as empregadas, eu nunca entrei na cozinha, era proibido. Eu vim aprender
tudo depois de casada. Hoje eu cozinho muitíssimo bem, modéstia às favas
eu cozinho muito bem. Mas é porque eu fui aprendendo com um, com outro,
porque eu gostava e gosto até hoje né, mas não é porque... lá em casa não
aprendi. (ARQUIVOS 17-18, p. 5).
A distância entre empregados e patroa devia ser mantida: “era o regime germânico
dentro de casa.” A menina, filha da elite local não precisava aprender os afazeres domésticos,
pois haviam muitos criados para cumprir tais tarefas. Ela precisava apenas saber dar ordens:
“eu nunca entrei na cozinha, era proibido.” O resultado era o total despreparo para as tarefas
do lar após o casamento, pois os grupos sociais privilegiados economicamente continuariam
cercados de muitos empregados.
Embora a rede de normalistas de modo geral gozasse de uma boa condição financeira,
seus depoimentos demonstram-nos que a criatividade infantil e as brincadeiras folclóricas
predominavam sobre os brinquedos sofisticados.
Uma vez eu balancei no rabo do cavalo. Tomei uma surra que foi [...] Quando era criança? Deixa eu te contar. Então era na roça. Eu tinha umas
bonecas. Brincava de boneca. Depois eu enjoava daquelas bonecas então,
você vai vendo. Eu pegava chuchu – já te contaram isso? [...] Então eu
pegava o chuchu e fazia cavalinho, fazia vaquinha. Pegava laranja e falava
80
que era bola. Muitas vão falar isso pra você. E é mesmo. Hoje em dia eles
tenham tudo, né. Isso daqui acho que dava uma sala de brinquedo. O pai
comprava assim ó, vinha assim [mostrando grande quantidade com os
braços]. Porque falava que ele não teve então, dava pra eles. Eles, não faltou
nada, entendeu? Eu já, eu não ligava muito também não. Mas minha mãe
comprava, tadinha. Ela comprava. Eu uma vez lembro que ela comprou
umas panelinhas sabe, umas panelinhas pra mim brincar. Acho que eu
brincava um pouco porque eu brincava sozinha, né? Conversava sozinha [...]
Fui filha única. Se eu tivesse uma companheirinha. (ARQUIVO 34, p. 10-
11).
Neste aspecto das brincadeiras de infância, as normalistas criadas na cidade, filhas de
profissionais liberais e comerciantes, gozavam de certa liberdade que as filhas dos fazendeiros
não tinham – brincar na rua.
Na década de 30, Franca ainda era uma cidade pequena, com ruas não pavimentadas,
de terra nua, por onde passavam carroças, cavalos e muito raramente um automóvel. Também
era o lugar preferido para as brincadeiras infantis, pois não havia os perigos de hoje com o
intenso trânsito de automóveis. Lembrando de como era o entretenimento na infância, D.
Cleuza nos fez uma bela descrição de como era a cidade no seu tempo de menina:
[...] a nossa diversão em família como eu estou dizendo assim, eram
reuniões na própria família era assim, os avós tinham lenhadora, e tinham
caminhões. Então nós íamos assim, nadar na Piçarra. Juntava a família toda
em cima do caminhão [RISO], nós íamos nadar na Piçarra. A Piçarra você
sabe que é aqui próximo, então. É um hotel, até está desativado. É um hotel,
uma piscina natural, as pessoas naquele tempo iam nadar, brincar, porque
nós não tínhamos clube aqui na cidade naquele tempo assim, igual hoje tem
o Castelinho, o Clube de Campo, pra se levar os filhos né. Meus pais
passeavam muito com a gente assim na Praça Nossa Senhora da Conceição,
era obrigatório todo o domingo vir e ouvir a banda municipal que tocava no
coreto. E ficavam todos ali em volta e as crianças brincavam muito ali na
praça. E também assim, na mesma atividade de usar esse caminhão do meu
avô, ia colher gabiroba, chupar gabiroba na época da gabiroba ou de
jabuticaba em algum lugar com pessoas conhecidas sabe. E eu brincava
muito na rua, muito. Porque a rua onde a gente morava não tinha asfalto, é a
rua Estevão Borroul, que hoje é uma rua maravilhosa. Aquilo ali já era
assim, já não era centro. Era chamado Campo das Galinhas ali, então na terra
eu brincava muito com a molecada como se dizia na época né. Cabeça ao
varo, [INAUDÍVEL], jogar bolinha de gude, essas brincadeira que
envolviam também meninos né, e a rua era muita criançada né. Era aquela
faquinha, não sei se você sabe aquele jogo com crianças na terra e joga a
faquinha sabe? Então, essa diversão também. E o que mais que nós
tínhamos? Meu pai era um craque de futebol super espetacular da Francana,
era um zagueiro maravilhoso. Então domingo era certo, ia ver o papai jogar,
ia a família inteira e depois ele até se dedicou muito sempre ao futebol
amador sabe? Então, eu tenho muita lembrança boa disso daí. Bicicleta que a
gente andava demais de bicicleta pela rua. Hoje não, as crianças precisam ser
levadas pra algum lugar né, pra andar de bicicleta... e a gente andava de
81
bicicleta na rua, achava gostoso, não tinha perigo nenhum. (ARQUIVO 26,
p. 1-2).
Os passeios na praça com a família, para “ouvir a banda municipal que tocava no
coreto” era uma tradição nas cidades. A rua Estevão Leão Borroul, que hoje situa-se na parte
central da cidade, na época “já não era centro”. Meninas e meninos brincavam juntos, sem
distinção de sexo: “eu brincava muito com a molecada, como se dizia na época [...] jogar
bolinha de gude, essas brincadeiras que envolviam também meninos né, e a rua era muita
criançada.”.
Embora as crianças da cidade contassem com maior liberdade para se desenvolverem
através dos jogos infantis isso não quer dizer que fossem criadas soltas, sem qualquer
vigilância. D. Leila relatou:
Ah, você sabe que lugar pequeno, as famílias também eram assim mais
numerosas né. Então era muita criança, tudo da mesma idade, quase tudo
assim... então a gente entrosava muito, brincava muito. Tinha liberdade de
andar na rua, nas casas de um, do outro, tudo casas assim espaçosas né.
Então a gente brincava muito né, principalmente assim na rua, na casa de
um, do outro, vizinhos e parentes, tinha os parentes também, os primos.
Então a gente foi criado assim tudo junto né, tudo com muita assim, muita
liberdade né. Mas assim sempre nos olhos dos pais, não deixava também...
porque onde estivesse tinha, tava junto né, tava junto com os adultos e tudo.
(ARQUIVO 31, p. 4).
Sim, as crianças sempre estavam junto aos pais, sob seu controle. Essa liberdade dos
primeiros anos da infância logo era interrompida, quando aos sete anos as meninas iam para o
Colégio. Lá não era permitida tanta vivacidade, espontaneidade e alegria. Era preciso uma
extirpação urgente destes costumes e a introdução de outros, mais desejáveis, porém, pouco
desenvolvidos através da educação familiar cristã.
No modelo de família patriarcal burguesa o homem assumia o papel de provedor
único. A geração das mães das normalistas, de modo geral, foi formada por mulheres que se
dedicaram ao lar a vida toda. Somente na próxima geração, das normalistas propriamente
ditas, que a mulher, em melhores condições econômicas, saiu para conquistar seu espaço no
mercado de trabalho. Esse parêntese é importante para compreendermos o perfil do homem
dentro da família tradicional nas primeiras décadas do século XX.
Sendo o chefe da família, direito conferido pela doutrina cristã e pelo poder como
provedor único era a autoridade máxima do clã. Os filhos de fazendeiros, que tiveram
oportunidade de cursar faculdade nas capitais ou mesmo no exterior, tinham uma educação
um tanto refinada para os padrões da época, o que lhes permitia uma visão mais cosmopolita.
82
Os pais de duas colaboradoras tinham esse perfil. D Augusta comentou sobre a formação de
seu pai:
Além de ele ser cirurgião ele era um médico que sabia tudo, a formação
alemã, europeia era coisa de louco né. Imagina um homem, depois que ele
fez o curso todo na Alemanha, em Berlim – onde eles moravam – ele foi pra
Suíça, pra Suíça francesa e ficou interno lá no hospital Charité e fez mais de
uma especialização também na língua francesa e na medicina francesa.
Naquele tempo a medicina europeia era muito adiantada, entendeu? Tanto é
que quando ele voltou ele trouxe todo o instrumental cirúrgico pra cá. Coisas
que aqui não tinha ele trouxe da Europa, e montou o sanatório Santana, atrás,
aquele prédio atrás da Santa Casa, que hoje é uma dependência burocrática
da Santa Casa, ali era o sanatório Santana, o primeiro hospital de Franca.
Quem instalou foi meu pai, doutor Antonio Ricardo Pinto, contemporâneo
de doutor Alonso. Quem trouxe doutor Alonso pra Franca foi meu pai.
(ARQUIVO 6, p. 8).
Quando D. Augusta fez 16 anos, seu pai permitiu que fizesse uma viagem
internacional pela Europa e todo o Oriente Médio, claro, acompanhada de algumas primas
mais velhas. Esse episódio chama-nos a atenção pela suntuosidade do presente dado a uma
jovem debutante – o que nos mostra a riqueza das famílias da elite francana – e pela
mentalidade do Dr. Pinho que parecia estar décadas à frente:
[...] meu pai perguntou se eu queria uma festa, se eu queria uma roupa nova.
[...] Ou um anel de brilhante bonito, que papai gostava de dar joia. Eu falei:
“eu não quero nada disso, eu quero ir pra Europa!”. Então quando eu lembro
disso eu falo meu Deus, eu era adiantada mesmo, sabe. Ainda mais com uma
educação repressora, como era a da minha mãe, não tanto a do meu pai, mas
a da minha mãe sabe... tanto que ela não gostava que lesse livros durante a
semana, tinha que bordar, entendeu? Essa era a atividade das moças de
então. (ARQUIVOS 8-10, p. 8-9).
O contraste entre o pensamento da mãe, muito rígida e do pai, homem esclarecido é
inevitável. „Boas moças tinham de bordar‟, não viajar – pensava a mãe. Ler também era uma
forma de viajar, afinal dava asas à imaginação. Penso que os romances fossem os grandes
vilões, pois D. Augusta contou:
[...] eu toda a vida gostei de ler e minha mãe não gostava que moça, mocinha
lesse. Não, não... ela dizia que leitura durante o dia era se jogar fora um
tempo que eu poderia ta bordando, entendeu? Era outra educação. Então ela
me pôs numa aula de bordado com [INAUDÍVEL] que era prima do meu
pai e fazia as toalhas pra igreja [INAUDÍVEL], pra catedral, né. E eu me
lembro que eu fiquei muito tempo fazendo, bordando uma toalha de linho
branca pro altar de São Sebastião. (ARQUIVOS 8-10, p. 3).
83
Mas havia também o fazendeiro rústico, homem de poucas palavras, com estudo
básico, conhecedor do trabalho no campo. Esse era o típico fazendeiro ligado às tradições,
criado e educado na zona rural, avesso aos modernismos da vida urbana. Para ele, a educação
elementar adquirida nos bancos das escolas de fazenda era suficiente para garantir o manuseio
com a terra, o gado e a administração dos negócios. Mas as futuras gerações necessitavam de
mais estudo – sim, era importante a educação para manter o status e posição na sociedade.
Assim, os filhos deveriam estudar. D. Edna contou sobre o pai:
Era fazendeiro, e ali ele mexia com gado, com café, gostava muito lá da
fazenda né. E tinha os seus negocinhos próprios da fazenda [...] [Educação]
O básico, naquela época era o básico [...] [A mãe] Tinha, [preocupação
com a educação formal dos filhos] tinha... porque ela sempre dizia que
queria que os filhos fossem além do que ela fez, certo. O pai não, o pai não
era muito chegado a isso, mas a mamãe sim, haja vista que quando eu me
formei lá no magistério foi uma honra, foi uma coisa maravilhosa, porque
até então Cristina, na família não havia ninguém formado, eu fui a primeira a
formar. (ARQUIVO 15, p. 1-3).
Fica evidente quão importante era ter uma filha normalista: “foi uma honra, foi uma
coisa maravilhosa”, evidenciando o status que tal formação usufruía na comunidade. Sim, as
normalistas eram, na visão da sociedade, as portadoras do conhecimento, as guardiãs do saber.
Como detentoras do conhecimento acumulado durante séculos, ocupavam um lugar nobre na
hierarquia social, pois seu papel era fundamental para a modernização da sociedade que, por
volta das décadas de 40 e 50 se transformava. Mas voltaremos a essa discussão mais à frente,
quando trataremos especificamente da formação da normalista.
Voltando ao perfil do patriarca, ficou claro nas entrevistas a sociedade machista em
que as normalistas foram criadas: ser mãe, ser mulher não garantia visibilidade, mas sempre
papéis sociais secundários e coadjuvantes, àquela que orientava, escutava, resolvia os
conflitos familiares com sabedoria, porém, sempre se reservando ao seu lugar imposto pelo
homem. Esse era o perfil que as normalistas deveriam adotar quando adultas. O homem, preso
à terra e às tradições também orientava a família no seguimento religioso, mesmo que não
fosse pessoalmente tão ligado às liturgias.
Mas houve a tradição da religião católica. E tanto um quanto o outro eram
religiosos né, da religião católica... e isso passou pra nós. [...] Bom, lá não
havia culto, não... nada disso. Na casa da minha avó de vez em quando
celebrava uma missa e tal e nós íamos em outra fazenda. Mas na minha casa
mesmo não havia essa preocupação de cultos religiosos. [...] Não, nós só
rezávamos juntos, fazíamos orações, aliás, antes da refeição a gente já fazia
oração. [...] Já é uma tradição né. [...] Importante... rezávamos e
84
agradecíamos o alimento bem, antes da gente começar a alimentar.
(ARQUIVO 15, p. 4).
Ao presidir a família em oração todos os dias à mesa, o patriarca indicava ser ele o
chefe, aquele que podia mediar os pedidos e agradecimentos a Deus, Ser Supremo, em nome
da família. Isso delimitava a hierarquia no lar e o padrão que devia ser seguido pelas próximas
gerações.
Todas as colaboradoras entrevistadas foram criadas por famílias católicas e educadas
em colégios de caráter confessional católico. Apenas uma delas mais tarde se converteu ao
cardecismo por achá-lo mais coerente às suas convicções, mas todas as outras mantêm a
tradição católica fortemente arraigada, como um forte traço de formação. À frente
discutiremos como essa formação influenciou na prática profissional das normalistas.
O patriarca urbano também era homem muito religioso. Fazia questão de educar as
filhas em colégio de freiras, pois ali teriam a educação escolar e religiosa paralelamente:
O colégio não só deu assim essa base da informação, do conhecimento,
como da formação, dessa parte dos valores, tão complicado no mundo de
hoje, né, aqueles valores imutáveis. Eu acredito que não perdi mesmo o
caminho e essa, vamos dizer isso que me foi assim apresentado né, desde o
início da minha vida, que é a vontade dos meus pais me colocando em
colégio católico e justamente pra isso. (ARQUIVO 26, p. 5).
Desta forma, os profissionais liberais e comerciantes garantiam às suas filhas uma
“boa educação”, o que incluía os valores morais e cristãos. Sendo imigrantes ou descendentes
destes, viam na educação um facilitador na inserção das futuras gerações em melhores postos
na sociedade brasileira.
Olha, apesar de os meus pais serem sírios, pessoas mais assim... olha, meu
pai tinha uma cabeça muito diferente. Porque quando nós estávamos
estudando e tudo, ele já falava pra nós que a maior riqueza que ele poderia
deixar pra nós era o estudo, entendeu? Ninguém falava isso, a gente nunca
ouviu falar nisso naquela época, e já faz muito tempo. Pois o meu pai falava
isso, papai falava isso pra nós. Tanto é que você vê, na época não tinha
assim sair de uma cidade pra pôr em colégio, ainda mais menina. Menino
ainda mandava estudar fora [...] Menina não, tinha que aprender a costurar,
bordar né. [...] Terminava lá o quarto ano e ficava lá pra aprender a costurar,
bordar [...] Já o papai, a cabeça era diferente. Tanto é que ele pôs nós
internas no colégio, duas. Não era fácil de pôr, era dispendioso.
(ARQUIVO 31, p. 7-8).
Não era costume que meninas de famílias menos favorecidas financeiramente fossem
se dedicar aos estudos após concluir o 4º ano. Reforçando a mentalidade machista do seu
85
tempo a colaboradora disse “[...] sair da cidade para pôr em colégio, ainda mais menina.
Menino ainda mandava estudar fora [...] menina não, tinha que aprender a bordar, costurar
né.”
Mas para os comerciantes imigrantes a equação era simples: estudo + estudo =
riqueza. Sim, na visão dos grupos sociais dominantes, através do estudo, os filhos poderiam
alcançar melhores posições na sociedade. Esse discurso seria internalizado e reproduzido
pelas normalistas no seu cotidiano pedagógico.
Até aqui procuramos traçar o perfil das famílias em que as normalistas receberam sua
primeira educação e que interferiu, daí para frente, no seu modo de ver o mundo, de se
comportar e de reagir diante das situações experienciadas em sua história de vida e trabalho.
Agora descreveremos a formação primária e ginasial das normalistas que inclui o
ensino em escolas rurais, colégios estaduais urbanos e o Colégio Nossa Senhora de Lourdes,
por onde as colaboradoras passaram a fim de adquirir o ensino fundamental, da época.
2.3 A Escola: Aparando as Arestas
Aos sete anos de idade aproximadamente, as crianças eram enviadas à escola de
primeiras letras para serem alfabetizadas. Uma pequena parte da população brasileira, nessa
faixa de idade, completava a instrução primária. Em Franca, o quadro não era diferente. No
início do século XX, a cidade contava com apenas cinco escolas, sendo duas católicas,
(Colégio de Lourdes e Champagnat) que atendiam a elite feminina e masculina
respectivamente, e os Colégios Cândido Alves, Santa Maria e Culto às Letras, até então
predominando instituições de ensino de caráter particular. A maior concentração de escolas se
localizava no centro da cidade e apenas uma na periferia. Essa tendência continuou durante a
criação dos cinco primeiros Grupos Escolares que, em sua maioria, se concentraram na região
central da cidade. O primeiro Grupo Escolar inaugurado na cidade de Franca, no ano de 1905,
foi o “Cel Francisco Martins”. Também havia escolas isoladas nos bairros da Estação, Cidade
Nova e Santa Cruz, que atendiam o grosso da população pobre da cidade, que não tinha
acesso ao Grupo Escolar localizado no centro. As escolas isoladas funcionavam em situações
precárias e tinham o aluguel de seus cômodos pago pelos próprios professores.
A situação de Franca, com respeito ao oferecimento de vagas no ensino público,
permaneceu precária até a primeira metade do século XX. Um estudo feito pela Diretoria de
Ensino de Franca sobre a memória das escolas mostra-nos que até 1943 havia no município:
86
4 Grupos Escolares no Distrito da sede, e 4 outros espalhados nos distritos
de São José da Bela Vista, Restinga, Cristais Paulista, e Jeriquara, 10 Cursos
Primários, 1 Escola Normal Oficial, 1 Ginásio e 1 Colégio Universitário, 28
Escolas Isoladas Estaduais e 25 isoladas municipais, além das particulares,
que envolviam 1 Seminário, 1 Escola Profissional Secundária Mista, 1
Escola de Comércio, atingindo um total de 7.000 alunos matriculados.
(AIMOLI, SILVA, 2007, p. 15).
De fato, após a inauguração do primeiro Grupo Escolar em 1905, a cidade recebeu em
1926, o “Grupo Escolar da Estação”, mais tarde denominado Grupo Escolar Barão da Franca;
em 1928 a Escola Normal Oficial; em 1933 o Grupo Escolar da Cidade Nova que em 1949
passou a se chamar “Grupo Escolar Caetano Petráglia” e, finalmente em 1935, o Grupo
Escolar do Cubatão que, em 1956, recebeu o nome de Escola Estadual Homero Alves. Até a
década de 50, estas eram as escolas da cidade, que aumentaram consideravelmente a partir
daí, acompanhando o ritmo de urbanização e industrialização que impulsionaram a demanda
de vagas oferecidas pelo poder público.
A situação da educação no Brasil, nas primeiras décadas da República, era caótica e,
embora Franca se encontrasse em uma posição privilegiada, dentro do Estado de São Paulo,
com a economia em pleno apogeu, seu quadro educacional não era menos alarmante.
De acordo com dados do IBGE sobre o recenseamento em 1920, no Brasil, o número
de pessoas que sabiam ler e escrever passou de 15% em 1890, para 35% em 1920. O número
de analfabetos em 1920 era aproximadamente 65%. No Estado de São Paulo a constatação era
similar:
Em 1920 do total de 732.081 crianças em idade escolar, apenas 289.291
estavam matriculadas, cerca de 39%, ou seja, 61% ficavam fora das salas de
aula. Uma comparação com a frequência escolar e a evasão escolar traria,
sem sombra de dúvida, índices ainda menores do que estes. (TEIXEIRA,
2000, p. 94).
Em Franca, os dados do IBGE apontam para uma população, em 1920, de 44.133
habitantes, sendo que, 31.620 eram analfabetos e 12.513 alfabetizados. (TEIXEIRA, 2000, p.
95).
Isso nos leva à conclusão de que o índice de analfabetos em Franca era de 71% da
população, número maior que o auferido ao Brasil como um todo, o que tornava imperativa a
criação de uma Escola Normal, a fim de formar professoras para preencherem os quadros do
magistério público do ensino primário.
Esse problema não passou despercebido aos políticos que se embrenharam nas lutas
pelo poder no início da República. Comentando a entrevista do então candidato ao Governo
87
do Estado de São Paulo, Júlio Prestes, dado à imprensa em dezembro de 1927, o Prof.
Homero Alves escreveu no Jornal Comércio da Franca as referidas palavras do acima citado:
Estou grandemente impressionado com a quantidade de crianças que na
idade escolar não encontram vagas nas Escolas públicas e que amanhã irão
avolumar a massa da população analfabeta, e mais impressionado estou
diante do número diminuto de professores diplomados pelas nossas 11
Escolas Normais. O recenseamento escolar desse ano acusa, com as
possíveis faltas, 150.000 crianças sem escolas, o que implica na carencia de
mais de 5.000 professores quando as Escolas Normais nos deram neste ano
de 1927, 328. Si a população escolar não aumentasse como aumenta num
Estado como o de São Paulo, seriam precisos 20 anos para obtermos o
número de educadores que a criança paulista reclama e tem direito.
(COMÉRCIO DA FRANCA, 1941, p. 3).
Desta forma, os filhos da elite agrária e urbana e uns poucos filhos dos trabalhadores
que moravam próximos a alguma escola rural ou grupo escolar compunham a clientela que
freqüentava a escola primária. Essa tendência de excluir boa parte da população brasileira da
educação não parava por aí. Havia mais tarde uma segunda seleção, o exame de admissão,
que excluía do processo educacional muitos dos alunos que haviam completado o quarto ano.
Estes não concluíam seus estudos por causa desse fator de estrangulamento do fluxo de
alunos, como discutiremos mais à frente.
Sendo o primeiro contato da criança com a educação formal, a escola primária
funcionava como uma aparadora de arestas, ou seja, era ela que dava os retoques finais, que
destituía da criança sua individualidade para prepará-la para viver de acordo com os moldes
que a sociedade cobraria dela no futuro. Neste sentido, para a futura normalista, essa educação
era fundamental para traçar o seu perfil profissional. Suas primeiras professoras tornaram-se
modelos positivos ou negativos que determinaram sua ação no futuro como profissionais.
Experiência negativa teve uma de nossas colaboradoras que nos relatou:
No colégio, no externato São José, eu continuei aquilo que eu tinha em casa
assim, uma educação com regras, com normas... uniforme perfeito, sapato
verniz engraxado, meia branca comprida, saia pregueada azul-marinho,
camisa de manga comprida com gravata, época até que usou boina,
chapeuzinho. E o respeito era cobrado assim de uma forma muito rígida e as
irmãs eram assim bastante, assim mais severas do que amigas. Mas nós
tínhamos professoras de fora, leigas, que também seguiam. Na sala de aula,
tinha por sinal uma professora na primeira série que eu acompanhei a vida
dela, ela morreu recentemente. Mas ela foi assim de uma rigidez muito
grande. Eu apavorei demais no primeiro ano meu de escola e me fez mal
aquilo ali, o tipo de alfabetização que eu não conseguia. Com isso, meus pais
acharam que eu deveria fazer a primeira série outra vez, por eles próprios. E
eles me matricularam novamente na primeira série, eu cursei novamente a
88
primeira série. Então eu cheguei muitas vezes a sonhar, falar a noite,
levantar, que eu era sonâmbula e ta falando o que a professora falava na sala.
Então foi assim... como é que eu vou dizer? Tentar ficar quieta, calar a
boquinha, ouvir, é desse jeito, é pra seguir assim... e a gente não tinha muito
direito a vez e nem a voz, certo?. Isso porque eu era uma aluna assim que eu
destoei demais. Eu sempre fui assim muito falante, muito polêmica, muito de
fazer as coisas que eu queria fazer... eu enfrentava. E eu fui uma aluna que
dei trabalho. [...] Eu fui bastante brecada, fui bastante brecada... eu fui tida
assim como uma aluna que dava problema. Eu era uma aluna difícil pro
colégio. [...] Tinha um livro, que falava “livro negro” [...] (ARQUIVO 12,
p. 3-4).
Podemos afirmar, a partir desse relato, que a escola era uma continuidade do que
aprendia no lar: “No colégio, no externato São José, eu continuei aquilo que eu tinha em casa
assim, uma educação com regras, com normas.” Esse é um tópico frasal que se repete na fala
das colaboradoras – a escola funcionava como uma continuidade, um apêndice da educação
familiar. Outra colaboradora comenta como foi à transição do lar para a escola. Diz: “Não,
não sofri porque em minha casa a coisa era mais ou menos igual [...] Entendeu? Não sofri
não.”(ARQUIVO 15, p. 5) A rigidez e as regras já faziam parte do cotidiano das normalistas
antes de entrar na escola: “É. E outra, porque como fala, era uma continuação do lar, os pais
eram severos também né. Então a escola continuava, era um aluno, eles eram também
severos.” (ARQUIVO 30, p. 8).
Porém, nesses relatos, fica evidente o papel da escola em aparar as arestas deixadas
pela educação materna, talvez mais parcial – uma das colaboradoras justifica seu sofrimento
em acatar as regras: “Eu sempre fui assim muito falante, muito polêmica, [...] eu enfrentava.
[...] Eu fui bastante brecada, fui bastante brecada... eu fui tida assim como uma aluna que dava
problema. Eu era uma aluna difícil para o colégio.” O que era ser uma aluna difícil para o
colégio? Uma aluna que não aderia às regras de obediência e submissão, “tentar ficar quieta,
calar a boquinha, ouvir, é desse jeito, é pra seguir assim... e a gente não tinha muito direito a
vez e a voz, certo?” A futura normalista deveria primeiro aprender e internalizar a submissão
e obediência para depois inculcá-la em seus alunos. Ensinar aos filhos dos trabalhadores que a
sociedade funciona como a escola, com uma hierarquia rígida, em que eles não têm direito “a
vez e a voz”, mas devem “calar a boquinha e ouvir” o que os seus superiores determinam.
D. Edna conta de sua primeira professora, que ensinava em uma escola rural que
ficava na fazenda de uns parentes:
Eu tinha, entrei com sete anos, numa escola na fazenda, mas não na minha
fazenda, era na fazenda de um tio que aí até eu fui e ficava na fazenda deles
lá, durante a semana e no fim de semana eu voltava pra minha casa. Fiquei lá
89
até a terceira série. [...] Muito boa, muito boa. Essa escola que eu frequentei,
minha primeira professora, a dona Palmira, maravilhosa certo... e vamos
dizer assim, ela conseguia alfabetizar e trabalhar com a segunda, com a
terceira e com a quarta série, tudo ao mesmo tempo. Educação muito boa
viu, boa mesmo. (ARQUIVO 15, p. 4).
Esse relato nos mostra que mesmo as escolas rurais eram poucas – na fazenda do pai
da colaboradora não havia escola, sendo necessário que ela ficasse três anos em fazenda do tio
para estudar, voltando para casa só aos finais de semana. Isso significa que as pessoas que não
podiam locomover-se a longas distâncias de onde moravam ou ficar em outros lugares
ficavam sem estudo.
Das cinco colaboradoras entrevistadas, apenas uma fez parte do ensino primário em
escola de fazenda. Duas delas que não moravam em Franca, mas sim em Pedregulho10
e
Rifaina respectivamente, estudaram até o 4º ano em Grupos Escolares Estaduais existentes em
suas próprias cidades e, mais tarde, após prestar a admissão, vieram para Franca que oferecia
o curso ginasial em colégio confessional das irmãs de São José e aqui ficaram como internas.
As outras duas normalistas, moradoras da cidade, frequentaram o Colégio de Lourdes como
externas durante toda sua formação, salvo um período em que, por motivo de mudança, o pai
de D. Augusta que era médico a transferiu para o Des Oiseaux (Colégio das Cônegas de Santo
Agostinho) um colégio de elite da capital, de tradição francesa. Lá ela cursou parte do ginásio
como interna. D. Augusta contou: “Eu comecei aqui no Colégio de Lourdes. [...] Depois eu
fui pro Des Oiseaux, as Cônegas de Santo Agostinho [...]. O ensino do colégio Des Oiseaux
era qualquer coisa de extraordinário, sabe. [...] Eu já peguei a quarta série”. (ARQUIVOS 8-
10, p. 3-4). O Des Oiseaux foi descrito como um colégio moderno, onde as freiras de Santo
Agostinho tinham uma postura mais liberal, menos rígida que no Colégio de Lourdes dirigido
pelas irmãs de São José:
[...] para completar ainda me enviaram pro colégio Des Oiseaux, o colégio
das Cônegas de Santo Agostinho. O colégio Des Oiseaux era um colégio
famoso naquele tempo. Tinha o colégio [INCOMPREENSÍVEL] e o
colégio Des Oiseaux, e meu pai não sei porque preferiu que eu fosse pro Des
Oiseaux. E lá a gente era obrigado a falar francês, o que ajuda muito né.
Tinha uma disciplina rigorosa, o ensino era perfeito [ÊNFASE], tanto que
eu tinha até professora de dança, madame Morissete, era uma francesa. Aos
sábados, como eu era interna, eu aos sábados nós tínhamos aula durante o
dia de dança. Então tudo, tudo eu aprendi lá, nós tínhamos as aulas de dança.
Então tudo, tudo eu aprendi lá. Nós tínhamos as horas de recreio, as horas de
fazer uma atividade qualquer, como por exemplo, um jogo de tênis,
basquete, vôlei. Nós tínhamos essas atividades lúdicas também que a gente
10
Cidade do interior do Estado de São Paulo, distante de Franca cerca de 40 quilômetros.
90
escolhia com qual é que a gente se dava melhor. Tinha natação, tudo com
professor, organizado pra, pra orientar, entendeu? Então quer dizer que eu
tenho só que agradecer a educação que eu tive porque eu fiquei no meio de
gente formada, de gente categorizada, de gente doutorada né, gente que
tinha a educação pra oferecer a todo momento, sabe? Então foi muito, muito
bom [...]. [Comparando os dois colégios] Não tem nem comparação. As
freiras de lá [do Des Oiseaux] eram alegres, sabe? Conversava com a
gente. Na hora do estudo era uma coisa, na hora de conversar eram alegres,
cantavam... aqui [no Colégio de Lourdes] era uma coisa fechada sempre
né. Muito, muito diferente. Eu ainda abusava um pouco porque o meu pai
era médico do colégio, então eu abusava. Eu saia pela portaria e a freira lá da
portaria ou a moça lá da portaria me chamavam eu falava assim: “eu sou
filha do médico do colégio, doutor Pinho me chamou, to saindo... tchau”.
(ARQUIVOS 17-18, p. 1-2, 8, grifo nosso).
Neste Colégio, de “gente categorizada” aprendia-se dança, jogar tênis, natação, enfim,
atividades que enriqueciam o currículo das filhas da elite paulistana. “As freiras de lá [do De
Oiseaux] eram mais alegres, cantavam... aqui [no Colégio de Lourdes] era uma coisa fechada
sempre, né”, comparou D. Augusta, que se aproveitava da sua posição de filha do médico do
Colégio para burlar as regras. “Eu saia pela portaria e a freira lá da portaria ou a moça lá da
portaria me chamavam eu falava assim: „eu sou filha do médico do colégio, doutor Pinho me
chamou, to saindo... tchau‟”.
O quadro que segue demonstra os processos de formação escolar da rede de
colaboradoras nas respectivas instituições de ensino:
QUADRO DE FORMAÇÃO DAS NORMALISTAS
NOMES PRIMÁRIO TANSIÇÃO GINÁSIO NORMAL
D. EDNA Escola da
fazenda até 3º
ano
(Arq. 15, p. 4)
Colégio de
Lourdes – Franca
(externa)
4º ano
(Arq.15, p. 5)
Colégio de Lourdes –
Franca
(Arq. 15, p. 5)
IETC – Franca
(Arq. 15, p. 5)
D. LEILA Escola Pública –
Rifaina
1º ao 4º ano
(Arq. 30, p. 4)
Admissão Colégio de Lourdes –
Franca (Interna) até o
3º ano
Colégio de Freira –
Piracicaba (Externa)
4ºano
(Arq. 30, p. 4)
Escola Pública –
Piracicaba 6 meses
Científico
Pré-normal 1º ano
IETC – Franca
2º ano em diante
(Arq. 30, p. 4)
91
D. AUGUSTA Colégio de
Lourdes – Franca
(Externa)
(Arq. 8-10, p. 3)
Admissão Colégio de Lourdes –
Franca (Externa)
até o 3º ano
Colégio Dês Oiseaux
– São Paulo 4º ano
(Arq. 8-10, p. 3)
Colégio de
Lourdes – Franca
(Externa)
D. DULCE Grupo Escolar
Artur Belém
Júnior –
Pedregulho
(Arq. 33, p. 11)
Admissão Colégio de Lourdes –
Franca (Interna)
(Arq. 33, p. 11)
Colégio de Lourdes
– Franca (Externa)
(Arq. 33, p. 14)
D. CLEUZA Colégio de
Lourdes – Franca
(Externa)
(Arq. 12, p. 2)
Admissão Colégio de Lourdes –
Franca (Interna)
(Arq. 12, p. 2)
Colégio de Lourdes
– Franca (Externa)
(Arq. 12, p. 2)
Fonte: Da autora.
Como vimos no capítulo 1, para poder cursar o Ginásio todas as crianças deviam
passar pelo exame de admissão. Uma colaboradora relatou:
Então com seis anos eu fui ali, que também era das irmãs religiosas da
França né, e daí eu cursei até o quarto, era quarto ano. Depois a gente fazia
uma prova de admissão pra entrar no quinto ano e eu entrei no colégio Nossa
Senhora de Lourdes, que eu fiquei até completar o magistério. Entrei com
seis anos e saí com dezoito. (ARQUIVO 12, p. 2).
Somente com a Lei 5692/71 o exame de admissão foi extinto do sistema educacional
brasileiro, permitindo que um maior fluxo de alunos completasse a educação fundamental que
passou de quatro, para oito anos.
Durante o curso Ginasial, todas as normalistas frequentaram o Colégio Nossa Senhora
de Lourdes, as moradoras da cidade em regime de externato e as que moravam fora, como
internas. D. Edna, que morava na fazenda, contou que veio para Franca morar com a avó e
com a tia para ficar como externa. “Eu vim morar com a minha avó e tinha uma tia [...]”
(ARQUIVO 15, p. 12).
É digno de nota que, pelo histórico de formação da rede de normalistas, percebemos
que o Colégio Nossa Senhora de Lourdes, de caráter confessional, era um destino certo para
todas elas. Todas, sem exceção, fluíram para ele em algum momento de sua formação
92
educacional – umas desde o começo, outras geralmente após o exame de admissão, para
cursar o ginásio.
Isso nos indica que o Colégio de Lourdes, fundado pelas irmãs de São José no ano de
1888 em Franca, que resistiu até sua extinção em 1967, era um ponto de referência na
educação de toda a região.
Outro aspecto importante a considerar, é o valor que o ensino confessional tinha para
as famílias tradicionais. Os pais, sempre que podiam, escolhiam dar aos filhos a educação
escolar juntamente com a educação religiosa: “Naquela época não precisava de escola
particular não, escola pública era de primeira grandeza. Eu estudei em colégio de irmã porque
meu pai optou, porque ele queria o ensino religioso, foi por isso.” (ARQUIVO 12, p. 15).
Apesar de a escola pública ser de qualidade, “o pai [...] queria o ensino religioso”. O
colégio de caráter confessional auxiliava os pais na formação moral e católica dos filhos.
Esses conceitos hegemônicos, mais tarde, fariam parte do ser da normalista, de tal forma, que
se apresentariam de diversas maneiras em seu modo de ensinar os alunos. No capítulo que se
segue, mostraremos exemplos nítidos de como isso ocorreu na prática pedagógica das
normalistas, embora nos apercebamos que muitas não têm plena consciência de como se deu
esse processo, enquanto outras refletem e questionam sua prática diante da releitura
proporcionada pelo lembrar.
Embora as colaboradoras tenham recebido sua educação primária em diferentes
instituições – públicas, particulares, laica e confessional – fica evidente o caráter rígido do
ensino. Em nenhum relato houve comentários referentes aos castigos corporais que, por volta
das décadas de 30 e 40, já não eram utilizados nas citadas instituições de ensino.
Por meio do controle e vigilância, era possível punir eventuais condutas indesejáveis.
O castigo físico, como a palmatória, não era usado no colégio, segundo os depoimentos
colhidos. Entretanto, outros castigos permaneciam como ficar de pé, virado para a parede, ser
colocado para fora da sala de aula. (GOMES, 1996, p. 68).
Castigos mais sutis ainda eram aplicados. Por exemplo, para as alunas que viviam no
sistema de internato, havia o castigo de perder o direito de passar um domingo do mês com a
família. O símbolo que demonstrava se a aluna estava sujeita ou não a esta sanção, eram as
fitas de comportamento, que elas recebiam a cada semana, caso houvessem se comportado
bem:
Todos os primeiros domingos as alunas saíam com os pais, ficavam e
voltavam na segunda cedo. E aquelas que perdiam suas fitas, porque eram
quatro semanas, quando perdiam duas fitas, por exemplo, se conversou na
93
fila, se não fez os deveres da escola, sabe. Eram as duas espiãs que
verificavam sem que as outras soubessem. Não havia ninguém para policiá-
las. Então quando havia falta de duas... em duas semanas a aluna perdesse a
fita, no primeiro domingo ela não podia sair.[...] A fita é uma fita de
comportamento. Porque no domingo era um dia de gala [...] a gente ia a
missa mais tarde, depois ia fazer um passeio na chácara [...] das irmãs São
José [...], então a gente ia para a chácara e com a fita. A fita era o distintivo
do bom comportamento. E aquelas que não conseguiam a fita iam sem a fita.
Então isso demonstra que ela não era bem comportada [...] E todos os
domingos a gente desfilava o dia todo com a fita amarela. E se ganhasse
todas as fitas durante as quatro semanas, tinha o direito de folga. (GOMES,
1996, p. 113-114).
Desta forma, o controle disciplinar era conseguido por meio da vigilância e das
sanções aplicadas, de forma a conseguir um comportamento desejado, o adestramento dos
corpos. “A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis”
(FOUCAULT, 1987, p. 119).
A perda da fita de comportamento sempre foi citada pelas alunas interna nas
entrevistas como um castigo:
Sabe que punições que tinha? Uai, era de cortar a fita. [...] A fita. [...] A fita
era uma punição. Porque ali tinha regulamento. Se você fosse, aonde você
fosse, você não podia conversar. “Sempre em fila” – era a ordem da escola.
Sempre com disciplina. Você tinha que ir para o refeitório: ia tudo em fila,
sem prosa sem nada. Se proseasse, tinha a que tomava conta, tinha uma das
alunas que tomava conta, as mais velhas. Eles escolhiam as mais de idade e
ali elas marcavam, né. De acordo com as marcas, por exemplo, se eu tinha,
por exemplo, tivesse 20 cruzinhas no meu nome, eu perdia a fita, entendeu?
(ARQUIVO 34, p. 3).
Se saísse fora do regulamento perdia a fita e o direito de passar o único final de
semana do mês em casa com a família. É interessante nesse fragmento que D. Dulce se
lembra que “se proseasse, tinha a que tomava conta, tinha uma das alunas que tomava conta,
as mais velhas. Elas escolhiam as mais de idade e ali elas marcavam, né.” Sim, as próprias
alunas vigiavam o comportamento das demais colegas e delatavam os desvios. “De acordo
com as marcas, por exemplo, se eu tinha [...] vinte cruzinhas no meu nome, eu perdia a fita,
entendeu?” Esse recurso de vigilância era muito eficaz: alunas que observavam o
comportamento das demais colegas e até mesmo de mestres [no caso, leigos] e faziam
relatórios para as irmãs. Uma prática tão comum que se consolidou através das décadas.
Este método, criado por Batencour e utilizado nas escolas paroquiais para resolver o
problema da indisciplina gerada com o aumento do número de alunos que passa atender, é
citado por Foucault:
94
Os observadores devem anotar quem sai do banco, quem conversa, quem
não tem o terço ou o livro de orações, quem se comporta mal na missa, quem
comete alguma imodéstia, conversa ou grita na rua; os admunitores estão
encarregados de tomar conta dos que falam ou fazem zunzum ou estudar
lições, dos que não escrevem ou brincam. (FOUCAULT, 1987, p. 147).
No Colégio Nossa Senhora de Lourdes, estas vigilantes existiam, embora sua
identidade fosse preservada. Quando indagada sobre quem deveria ser vigiado, o professor ou
as alunas, uma ex-interna relatou:
Eu acredito que os dois. Porque elas [as freiras] queriam saber se o
professor estava cumprindo e se os alunos... porque cada classe tinha duas
vigilantes, mas vigilantes assim, que a classe não sabia quem era, sabe.[...] Eram as alunas mesmas. As próprias alunas. Existiam duas que fazia
relatórios todos os dias, para a madre superiora. Só que era uma espécie de
espiã, né. Eram duas espiãs. (GOMES, 1996, p. 111).
Internas e externas eram proibidas de ficarem juntas. Uma ex-externa explicou o
motivo de não haver contato entre estes dois grupos: “Não, não podia ter. Porque senão
achava que a gente estava trazendo coisas do mundo externo lá pra elas. Então, lá era um
mundo fechado demais. Neste ponto eu acho que a gente ficou um pouco prejudicada [...] mas
valeu”. (GOMES, 1996, p. 103).
Desta forma, podemos dizer que se usava a “arte da distribuição dos sujeitos no
espaço” (FOUCAULT, 1987, p. 121) a fim de controlar até mesmo as informações que
entravam e saíam do colégio. Assim, elas deviam ficar o tempo todo, separadas e vigiadas.
O mecanismo de distinção entre um grupo e outro era o próprio uniforme:
Porque era saia, né. Na época era saia. Saia e nós tínhamos um corpetinho e
as outras, externas tinha só a sainha com a blusinha branca, sabe? Já as
externas era a blusinha e nós tinha o corpetinho. Tinha uma gravata também,
sabe? [...] Era o que diferenciava do internato para o externato. (ARQUIVO
34, p. 9).
O uniforme sinalizava o grupo a que a aluna pertencia, o que facilitava o controle de
seu comportamento.
A ordem se manifestava também nas filas para entrar e sair da sala de aula e da
organização das alunas no espaço. Atividades pedagógicas em um grupo não eram
incentivadas. Cada uma ocupava seu espaço na sala de aula, o que permitia o maior controle
de suas ações. Nas palavras de Foucault:
95
Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar um indivíduo. Evitar as
distribuições por grupos, decompor as implantações coletivas [...] estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar o
indivíduo, instaurar as comunicações úteis, interromper outras, poder a cada
instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir a
qualidades e os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e
utilizar. (FOUCAULT, 1987, p. 123).
D. Cleuza contou:
Aí as internas, quando a gente entrava, as internas já sentavam do outro lado
do internato, onde elas dormiam e elas não podiam sentar misturadas
conosco. [...] Aí as externas sentavam de cá e as internas sentavam de lá. E a
gente não podia conversar muito com as internas, tinha que ser mais
afastado. [...] Lá tinha muita preocupação de mulher com mulher estar muito
junto. Mas as internas... eu não sei assim, eu sei que elas tinham que ficar
sentadas separadas. Não podia sentar assim uma externa aqui, uma... não
podia misturar, sabe. Era uma regra, era uma regra. Trabalho em grupo não
podia fazer com interna. (ARQUIVO 12, p. 10-11).
A separação dos corpos sinalizava também a preocupação com o homossexualismo.
Em várias entrevistas as normalistas comentaram a preocupação das freiras com as
manifestações de afetividade entre as alunas. “Lá tinha muita preocupação de mulher com
mulher estar muito junto”.
Comentando sobre a relação existente entre as alunas, uma ex- aluna do internato
disse: “Mas a disciplina era rígida. Não se ficava sozinha com ninguém, certo? Não se podia
dar as mãos, não se podia assim ter contato mais afetivo, de maneira nenhuma”. (GOMES,
1996, p. 110).
Havia preocupação entre as freiras do colégio com o homossexualismo. Por isso era
comum reprimir qualquer manifestação afetiva entre as alunas. Outra ex- aluna comenta:
“Banho... essa coisa toda... muito sigilosa... não podia, por exemplo, duas colegas ficarem
conversando porque já formava mal juízo dessas colegas. Ali o regime era bastante rigoroso
mesmo no internato”. (GOMES, 1996, p. 103).
Quando questionada sobre a influência deste tipo de educação na sua vida ela
comenta:
[...] mas eu acho que pode ter sido ótimo sob certo aspecto, mas, por
exemplo, em relação [...] afetiva, eu acho que prejudicou bastante, porque
sendo uma educação muito rígida, todos os sentimentos refreados, não é.
Barbaramente refreados mesmo, seguros. Então a gente não tinha como. E
na idade adulta, porque nós éramos adolescentes, na idade adulta, então
aquele comportamento mais fechado, mesmo no uso de roupas, por exemplo,
96
isso influiu muito, eu nunca consegui colocar um decote! Tudo isso influiu
nos mínimos detalhes da educação. (GOMES, 1996, p. 110).
Até mesmo o modo como a futura normalista ia se arrumar, se vestir e se comportar
era influenciado por essas regras acima descritas.
Os recreios também eram vigiados, embora não houvesse uma programação de
atividades monitoradas pelas freiras.
Olha, no recreio não tinha monitoramento não. Tinha uma irmãzinha que até
tinha assim a fama de bravinha, a irmã Rosa, ela ficava assim sabe [...] Por
ali, mas não era monitoramento não. Mas assim as quadras, as redes de vôlei
já estavam armadas, e você comia o lanche correndo pra jogar, o basquete
tava lá funcionando. Outros ficavam tentando, outros ficavam andando, que
o pátio era muito grande, sabe? Aí dava o sinal e voltava a mesma coisa... e a
assim era a, a rotina era essa aí. [...] Geralmente no recreio a gente era
recomendado assim, dá um cheguinho na capela, então todas as alunas
costumavam ir na capela, rezar um pouquinho. (ARQUIVO 12, p. 11).
Até na hora do recreio, as meninas eram incentivadas a ir rezar. Assim desviava o
fluxo de meninas do banheiro onde podiam ocorrer práticas ilícitas.
Tópicos frasais que aparecem de forma recorrente nas entrevistas estão relacionados à
rigidez na organização do tempo, dos espaços, das tarefas a serem cumpridas, e da disciplina.
Havia regras para tudo no Colégio de Lourdes.
Tinha, você pode por, tinha regulamento pra tudo, pra tudo tinha um
regulamento sabe, pra tudo, tudo. E muita ordem, muita ordem, sabe? Não é
aquele vai... não é mesmo? Lá não. Hoje que é assim. Antigamente não.
Hoje tem aquela liberdade, aquela coisa. Foi tanta liberdade que eles deram
que está dando o que ta dando. Entendeu? Nós era ali ó [batendo o polegar
e o indicador na mesa]. [...] No Colégio. Ah, lá porque a gente era interna
né bem, ás vezes saía um pouco dos estudos, né. A gente lá assim, muito
rígido, tinha tudo que rezar, não é mesmo? Ás vezes tinha tudo no horário,
tudo com horário, pra rezar, pra alimento, pra tudo, janta. Tinha os
refeitórios. Tudo horário. Tudo a poder de horário. Mas era rígido. E... Tudo
que você vê num colégio interno, né. (ARQUIVO 34, p. 3, 7).
O controle do tempo para a realização das tarefas obedecia aos sinais. Esse padrão de
controle, que impunha uma rotina rígida no cotidiano das normalistas, se seguiu durante o
restante de suas vidas. Formação duradoura do caráter. O perfil da normalista é característico
de alguém apegada às regras, apegada à vida encadeada pela rotina pré-determinada, mesmo
após a aposentadoria.
97
O enraizamento desses conceitos rígidos de disciplina e administração do tempo
tornaria essenciais para instrumentalizar a prática pedagógica das normalistas, afinal, a escola
seria a primeira a introduzir estes mecanismos de controle no cotidiano dos alunos que, mais
tarde, seria exigido no mundo do trabalho.
D. Dulce justificou em sua fala o porquê devia haver regras no colégio: “Então eu
precisava ter rigor, porque onde há ordem há o progresso, né. Porque senão não tinha ordem.
Como é que ia fazer uma escola sem ordem. Tinha de ter. Mas sempre tinha as que não
obedecia, né”. (ARQUIVO 34, p. 3).
A visão positivista de “onde há ordem há progresso”, foi internalizada pela
colaboradora. Crer nisso era fundamental para que ela desempenhasse de forma satisfatória
seu papel de “guardiã de um saber”, uma ideia da elite dominante que se queria fazer
acreditar, ser portadora da verdade, do exemplo e da correta conduta social. É importante que
se entenda aqui que, para ser um canal eficiente de uma cultura social, de uma ideologia que
se quer impor como verdade universal, é preciso contar com a fé, o poder da convicção das
pessoas que serão os porta-vozes de tal contexto. A eficiência de nossas colaboradoras dentro
do sistema educacional que buscava promover uma escola pública gratuita e obrigatória para
todos, a fim de formar mão-de-obra qualificada para o trabalho na indústria, destituída dos
costumes do homem do campo, ligado à terra, estava intimamente ligada à sua formação
enquanto pessoas.
Através das entrevistas com ex-alunas do Colégio de Lourdes, tanto internas como
externas, obtivemos uma descrição detalhada de como era a rotina escolar dentro da
instituição para cada um dos grupos. Sobre o internato D. Leila relatou:
Então. Tinha o sinal né, que dava o sinal pra levantar né. Porque geralmente
nos dormitórios, lá tinha sempre uma irmã que dormia naquele dormitório,
mas era fechadinho assim, né. E ela ficava, quer dizer, qualquer coisa que
acontecesse ela tava ali, em todos os dormitórios que tinha. Então tinha o
sinal pra levantar, todo mundo levantava... já ia pro banheiro né, pra escovar
os dentes, lavar a roupa e aí já ia pra igreja pra assistir a missa. Depois vai
tomar o café né, no refeitório e aí passava pra sala de aula né, ou sala, a sala,
cada série né tinha uma sala né. Ali você, pra estudo... porque aula
geralmente era à tarde, então de manhã, a gente tinha aulas de estudo, depois
nesse período tinha aula de educação física né, a hora do banho. Então todos
os dias já tinha, então a hora do banho, aí depois do almoço tinha o intervalo,
ficava lá no pátio a vontade. E aí na hora das aulas, cada um ia... [...]
Normal. Assistia às aulas. Terminando... [...] Não. Ficava a noite. Às vezes
ficava um pouco em aula, estudando, qualquer coisa. Não me lembro direito
aí no horário de dormir não. [...] É. Tinha no intervalo das aulas, tinha o
recreio né, e era servido um lanche. Mas a aluna podia ter alguma coisa. Os
pais às vezes mandavam uma bolachinha, uma rosquinha, alguma coisa né.
98
Então era guardado lá e nessa hora você podia ir lá, pegar e comer né. [...]
Mas tudo era muito bem dosado, muito bem organizado. (ARQUIVO 30,
p. 10).
Até mesmo na hora de dormir, as meninas não eram deixadas só: “Nos dormitórios lá,
tinha sempre uma irmã que dormia no dormitório”. De manhã levantava, lavava a roupa,
tomava café e ia para a missa. Havia missa diariamente. Os estudos e tarefas eram feitos pela
manhã e à tarde se misturavam às aulas.
Nos finais de semana que as internas não iam para casa dos pais, as freiras promoviam
passeios:
Toda quarta-feira também tinha o passeio, sabe. Tinha o passeio. [...] Passeava na cidade de Franca. E tinha uma vez por mês assim, ou aos
domingos, quando elas combinavam, nós íamos para uma chácara, uma
chácara do Colégio, e ali a gente levava o lanche. Cada um levava o lanche
que quisesse, entendeu? Porque os pais sempre mandava né, assim uns
doces, umas coisas, sabe? Porque era interna, era igual casa. Era assim nossa
vida no Colégio Nossa Senhora de Lourdes. Assim me formei lá. Sempre
estudando. (ARQUIVO 34, p. 9).
A descrição do externato foi feita por D. Cleuza:
Bom a gente chegava cedo, tinha o lugar de formar a fila. Aí tinha o sinal,
sinalzinho... ia pra, subia as escadas porque era um prédio muito grande, os
pequenos em baixo, os maiores mais em cima. Entrava sempre o primeiro
professor e rezava com a gente. Ah, tinha muito a parte do civismo que eu
não falei. A parte dos hinos pátrios né, tanto é que isso é uma marca muito
grande em mim, eu tenho um lado forte muito com relação a isso na
formação dos meus alunos né. E a gente rezava, entrava e não sentava não.
Ficava em pé do lado da carteira individual, vocês ficavam em pé, a irmã
chegava, “em nome do Pai” rezava, agradecia a aula, agradecia o dia e tudo
que tinha que fazer, sentava, tinha o jeito das boas maneiras de sentar – igual
eu fiz barulho na cadeira – não podia fazer barulho na cadeira. (ARQUIVO
12, p. 10).
A mesma educação religiosa era repetida todos os dias com as externas: chegavam,
formavam fila, entravam para a sala e rezavam. Outro aspecto muito ressaltado na educação
recebida pelas normalistas era o civismo: “Ah, tinha muito a parte do civismo que eu não
falei. A parte dos hinos pátrios”. O amor a Pátria, a convicção de estar servindo a nação
movia as normalistas à ação, a realizarem com afinco seu papel de perpetuadoras destes
conceitos. Analisaremos mais de perto como isso se deu em sua prática pedagógica mais à
frente, no terceiro capítulo. No entanto, não podemos deixar passar despercebido o fato de que
a evidência oral comprova o quanto tais valores estavam enraizados na colônia de
99
normalistas, ao ponto da colaboradora admitir: “tanto é que isso [hinos pátrios] é uma marca
muito grande em mim, eu tenho um lado forte, muito com relação a isso na formação dos
meus alunos”.
Não é à toa que as normalistas lembram com riqueza de detalhes as comemorações
cívicas de seu tempo de estudante:
[As comemorações cívicas] eram feitas assim, da melhor maneira
possível. Olha, mesmo na época que eu estudei, desde o 1º ano, desde o
primário, vamos se dizer né, a gente era assim, comemorado nas escolas,
tinha desfiles, tinha comemoração muito bonita sabe, manifestação,
participação de todos, do povo em geral. Quando eu vim estudar no colégio a
gente tinha até o uniforme de gala pra desfile. [...] Uniforme de gala! Que o
Colégio de Lourdes era para as meninas e tinha o Champagnat que era para
os meninos. Os desfiles do Champagnat chamava a atenção do povo tudo.
Eles desfilavam em cavalo com aquela roupa e tudo. Mas era uma beleza!
Uma fanfarra que dava gosto! Era dia de festa! E todo mundo sabia porque
que tava comemorando, o que que estava. Então as solenidades eram muito
bem feitas, muito bem preparadas, muito bem aceitas, porque todo mundo
esperava. Passava na rua aquele movimento, aquela coisa. Era dia de festa,
dia que tinha um desfile. (ARQUIVO 32, p. 13).
As datas de 7 de setembro, de 15 de novembro eram aguardadas com grande
expectativa pela população que vinha para as ruas assistir e prestigiar os filhos e filhas da elite
de Franca e região que desfilavam em seus trajes de gala. Nessas comemorações, a sociedade,
embora desigual, parecia compartilhar de um mesmo sentimento de identidade que
proporcionava uma falsa impressão de harmonia.
Os trajes deveriam se apresentar impecáveis em todas as ocasiões, mas especialmente
nestas. Havia até uma nota para a arrumação. D. Cleuza lembrou:
Cantar nas datas específicas era um luxo. Olha, a independência do Brasil,
minha filha, era um luxo nas ruas. Além da comemoração a gente saia com o
uniforme de gala que a gente tinha um uniforme comum e um uniforme de
gala. A gente saia com o uniforme de gala, abafava minha filha. Era assim
olha, mas vinha uma mulher, aquela coisa. Sabe a barra da saia da gente?
Tinha que ser tudo, por exemplo, tinha... a mãe tinha que medir do chão à
barra da saia, vamos supor, trinta centímetros pra todo mundo. Não
importava se você era alto ou baixo. Então olhava assim, era um
comprimento só a barra da saia, o sapato de verniz... tudo, tudo, tudo aquela
coisa lindíssima. Tinha nota pro uniforme. Quando eu era uma aluna assim
bem tipo, bonitinha, [RISOS] meu pai pegava meu boletim, tinha boletim, e
falava assim, “olha!”... acho que chamava “ordem”, não sei como é que
chamava essa nota.[...] Ele falava assim: “Olha! Único...”, não, “Olha dois
dez! Um é da sua mãe!”. Era a “ordem”. [RISOS] “Que sua mãe manda
com a camisa impecável, isso não sei o que, o sapato aquilo... e o outro era
100
das brincadeiras de educação física”. Mas era fora de série viu, formidável,
uma saudade imensa. (ARQUIVO 12, p. 12).
Eram nas aulas de canto orfeônico que as meninas do Colégio aprendiam e treinavam
os hinos pátrios. Fazia parte do currículo. “[Os hinos pátrios] sempre eram cantados nas aulas
de música.” A ex-normalista reconheceu o valor de tal instrução para sua prática profissional
ao contar:
O canto orfeônico? [...] Acho importante Cristina, acho bem. Porque deixa
eu te falar uma coisa. Na minha época não havia, acho que até eu já falei isso
pra você, educação artística. [...] Então eu tenho dificuldade de fazer um
desenho... acho que eu já te falei isso. [...] É então. Justamente agora, o
canto orfeônico é muito importante, eu acho, muito importante. [...] Ah
lógico, as crianças também, ensinar a cantar... é muito importante. Porque
hoje bem, a criança não sabe nem cantar o Hino Nacional, não é verdade?
[...] E quando eu me formei aí na Pedagogia, que e fiz administração, escolhi
a escola de Patrocínio Paulista, que eu passei a ser a diretora de lá, no início
das aulas eu mandava cantar o Hino Nacional todo o dia, por quê? Porque o
aluno tem que saber o Hino Nacional, não é verdade? Então, isso foi uma
orientação mesmo da dona Lúcia Ceraso, de fazer com que o aluno
aprendesse os nossos hinos. (ARQUIVO 21, p. 6).
Aprender a cantar para ensinar os alunos – esse era o objetivo do curso de canto. E não
era qualquer música que se ensinava; apesar dos depoimentos citarem cantigas de roda, os
hinos pátrios eram parte central do currículo das aulas de canto orfeônico, dada a importância
do patriotismo na educação ministrada. “[...] ensinar a cantar... é muito importante. Porque
hoje bem, a criança não sabe nem cantar o Hino Nacional, não é verdade?”
Havia uma orientação no curso Normal por parte da professora de canto orfeônico,
sobre a relevância do ensino dos hinos pátrios: “Porque o aluno tem que saber o Hino
Nacional, não é verdade? Então, isso foi uma orientação mesmo da D. Lúcia Ceraso, de fazer
com que o aluno aprendesse os hinos.” Endossar o patriotismo e o civismo de forma a imbuir
na criança o sentimento de identidade, amor e respeito à nação era fundamental para a
formação do indivíduo, pois estes mesmos aspectos contribuiriam para o controle e a
dominação social.
Também faziam parte do currículo, as aulas de polidez. Nelas, as futuras professoras,
esposas e mães, aprendiam os verdadeiros dons femininos: como se portar à mesa, regras de
etiqueta que determinava como falar, sorrir e até mesmo, preparar uma mesa de jantar para
uma ocasião importante.
101
Polidez. [...] Quem dava? Ah era as irmãs mesmo, mas a irmã que eu não
lembro o nome. Eu acho que é irmã Laurinha. Acho que era ela. [...] Irmã
Olga dava Música, irmã Olga. A Polidez? Aprendia, por exemplo, como
você ia sentar numa mesa, como você, como, por exemplo, como você ia
comer, punha o guardanapo assim, como pegar o garfo, como pegar na faca,
comer com garfo, faca. Como você comportava numa mesa, né.
(ARQUIVO 34, p. 5).
Desta forma, as meninas recebiam uma educação à altura da elite da qual se
originavam, perpetuando assim seus valores. Seriam excelentes esposas e, ao lado de seus
maridos, personalidades importantes da região, se apresentariam com a postura desejada de
educação, delicadeza e cortesia. A própria palavra polidez, nome dado ao curso de etiqueta,
designa o seu objetivo: lustrar, polir, alisar algo, como por exemplo, uma pedra bruta, a fim de
que ela brilhe. A menina chegava ao colégio desta forma, como um diamante bruto, que
precisava ser polido, lapidado a fim de bem representar seus pais e futuros maridos na
sociedade. “Nós nascemos um diamante bruto que vamos lapidando no decorrer dos anos né,
é isso que nós somos. E quanto mais você tem um grande, um dedicado, um especial
educador, você vai ser uma pedra brilhante, não é.” (ARQUIVO 11, p. 9).
Mais tarde tal formação tornou-se parte vital do currículo oculto que as normalistas,
atuantes na profissão, deixaram transparecer em sua prática pedagógica. A postura da
professora em si ensinava aos alunos como deveriam se comportar. D. Cleuza descreve o
currículo extra:
Nós tínhamos aulas de boas maneiras. Nós tínhamos o ensino religioso, que
estudava a bíblia, o catecismo. Nós tínhamos aulas de boas maneiras: sentar
numa mesa, usar um talher, se levantar, sentar, receber uma autoridade, de...
o que mais que a gente tinha de diferente? E essa parte de correr atrás de
quem, do necessitado assim, de trabalhar, vamos supor, campanha... só que
não tinha esse nome sabe. [...] A gente já fazia, já ajuda, pessoas. E agora de
currículo mesmo... porque a música era dentro, trabalhos manuais era dentro,
educação física elas valorizavam demais... (ARQUIVO 12, p. 9).
A educação católica incentivava a caridade, o assistencialismo como forma de
amenizar as desigualdades sociais: “E essa parte de correr atrás [...] do necessitado assim,
vamos supor, campanha [...] a gente já fazia, ajudar pessoas”.
No Colégio Des Oiseaux, das Cônegas de Santo Agostinho, também ensinava etiqueta
no cotidiano.
Etiqueta. O francês sempre bateu muito com isso. Tanto que na hora do
jantar a gente sabia como colocar o prato sem debruçar, levar a xícara à boca
e não a boca na xícara né. A postura na mesa... Tipo não deitar com os
102
cotovelos né. E tudo isso era, tinha uma das freiras que passava pelas mesas
orientando as alunas. Muito boa. Extraordinariamente boa. (ARQUIVOS 8-
10, p. 5).
Habilidades manuais incluíam bordado, ponto cruz, crochê, tricô, macramê e
confecção de flores. Como já dito anteriormente pelas próprias colaboradoras, as meninas que
acabavam o quarto ano e não iam para o colégio, deviam aprender artes manuais, porém, as
que se dirigiam para lá não escapavam de ter o mesmo destino ou instrução.
Olha, eu tinha irmãs muito competentes, capacitadas, sabe. Nós tivemos
assim na área de português, no magistério. Nossa, eu tive uma irmã muito
boa mesmo. E nós tivemos trabalhos manuais menina, incrível. Eu não tenho
essa habilidade, esse dom. Mas a gente aprendeu tudo. Em panos de amostra,
bainhas de todo o jeito, amarrar toalhas de todo o jeito, todo o pontinho de
bordado, sabe. Todos aqueles panos maravilhosos que tinha na aula de
trabalhos manuais... aula de música, a irmã Olga, naquele piano, a gente
naquele gradem. Se você soubesse que coisa linda, o gradem era um banco
assim que ia subindo e a gente naquela postura assim, naquele canto. Era a
coisa mais encantadora do mundo aquilo. E eu tô falando pra você, parece
que eu estou vendo. (ARQUIVO 12, p. 8).
Apesar desse aprendizado não ocupar o cotidiano das normalistas que se formaram e
foram trabalhar fora de casa – o que foi uma revolução para a época, pelo menos para as
mulheres originárias de um grupo social privilegiado economicamente – hoje está presente
como ocupação de algumas delas.
Não sei. Eu me habituei tanto dentro de casa, acho tão bom aqui dentro da
minha casa... gosto tanto do meu artesanato, desse trabalho de mão sabe, que
eu não gostava antes não. Tanto que a primeira vez que eu fiz um trabalho de
ponto de cruz lá no colégio [INAUDÍVEL], eu gostava tão pouco que eu
pus a toalhinha aqui no, em cima da saia do uniforme e fiquei fazendo ponto
de cruz... quando eu levantei a toalha. [...] Ela tava costurada na minha saia
[RISOS]. E pra não perder a nota eu fui assim ó, a saia e a toalha costurada
na saia. Você viu como eu não gostava, e agora eu adoro. Aqui esse pano fui
eu que fiz olha, tá vendo? Eu procuro fazer tudo agora. Aquelas
bombonieres de crochê eu que fiz também. (ARQUIVO 6, p. 16).
Alguns pais pagavam à parte para suas filhas terem aula de algum instrumento musical
como piano ou violino. Era comum as moças bem educadas saberem tocar, de preferência o
piano, em ocasiões importantes em que podiam manifestar seus dotes. “Eu aprendi [a tocar],
mas pagava particular [...] E, tinha [aula] de piano, de violino. Eu aprendi violino, um pouco,
sabe? É, eu aprendi três anos.” (ARQUIVO 34, p. 4).
103
O método de ensino largamente utilizado na época da formação das normalistas que
fazem parte deste estudo, é o método tradicional. (GOMES, 1996) Não cabe aqui fazer uma
crítica do método em si. Como vimos no Capítulo 1, a educação brasileira, pautada no método
Jesuíta, católico e europeu, trouxe em seu bojo as características tradicionais que a República,
em mais de meio século, não conseguiu se desvencilhar. Os ideais liberais apresentados pelos
escolanovistas como educação laica, gratuita, obrigatória e mista tomaria corpo apenas na
segunda metade do século XX, quando as normalistas já estavam em plena atuação.
No entanto, como veremos mais adiante, as professoras reproduziram muitas vezes os
mesmos “modos de fazer” ou metodologias de ensino aprendidas enquanto alunas, com
algumas adaptações necessárias. Longe de ser uma crítica ao seu trabalho, esse comentário
apenas reforça a ideia de que não só o aprendizado (currículo escolar), mas o modo como foi
ensinado (currículo oculto), foram engendrados na educação integral das normalistas de forma
tão eficiente que, após muitos anos as mesmas acreditavam que aquele era o melhor método
de ensino.
A alfabetização era na cartilha e através de exercícios repetitivos as crianças
aprendiam a ler:
Era cartilha. [...] É. Cópia, isso, cópia, ditado... eram aquelas palavrinhas o
livro né, depois é que vinha o global né. [...] Começava né. Começava com
as letras né. a, e, i, o, u né, o alfabeto né. Depois normalmente, acho que
igual a sua mãe mesmo. Acho que tirou daquilo. [...] Era bem rígido, uma
pessoa muito boa, muito enérgica, sabe. Ela queria que a gente passava né.
Era ali ó [batendo com o dedo indicador dobrado sobre a mesa]. Era
muito bom o ensino antigamente. (ARQUIVO 33, p. 11).
Esse método era repetido em escolas de fazenda, grupos escolares e colégios
particulares. Repetir a mesma tarefa para memorizar e assim, cumpri-la de modo eficiente: eis
a função do método. Não podemos negar que esse método funcionou tanto na escola, para os
alunos, como nas fábricas, para os trabalhadores, que se tornaram eficientes em sua função
através da repetição das tarefas.
Para a eficiência no processo de memorização, a atenção do indivíduo devia ser
canalizada estritamente para os estudos. Não podia haver distrações.
Estudar. Estudar muito em silêncio, em lugar de silêncio. Não é possível
você estudar ouvindo música, eu acho que não. Entendeu? Então toda a vida
eu estudei muito foi por causa disso. Queria silêncio. Silêncio e no estudo lá,
à noite era silêncio quando eu estudava à noite. Tanto que eu lembrei, latim
né, a declinação em latim, não sei se você estudou... você nunca estudou
104
latim, então... nós estudamos...[INAUDÍVEL]. Aí, eu to com a cabeça
ainda naquilo que eu aprendi, faz quantos anos? A declinação, primeira
declinação [INAUDÍVEL], depois vem a segunda declinação
[INAUDÍVEL], e eu ainda me lembro, entendeu? E eu fazia as traduções
em latim. Versões de canções de alguns verbos... na primeira declinação e na
segunda declinação, entendeu? Era um estudo muito puxado. (ARQUIVO
11, p. 9).
Assim como os Jesuítas, as freiras usavam as dramatizações como método eficaz de
ensino. D. Cleuza recorda:
A gente rezava muito, tinha uns retiros espirituais que, nossa, marcaram a
minha vida até hoje, sabe. Elas deram uma contribuição pra minha formação
muito grande, formação religiosa, na minha formação mesmo de cidadã
sabe, de ser assim uma pessoa no mundo... de transformação, agente de
mudança, sabe. Nos retiros espirituais com sacerdotes de outras cidades.
Nós, tinha muita dramatização assim, da vida de Nossa Senhora, sabe essa
parte de teatro, de dança... essa parte artística foi, nossa. Até hoje eu tenho
essa coisa sabe. [...] Tinha dança, tinha teatro... nossa, a gente participou
muito de teatro viu. (ARQUIVO 12, p. 4, 9).
O latim era uma das línguas ensinadas para meninas do Colégio de Lourdes, além do
francês e o inglês. As missas eram ministradas em latim e apenas quem tinha essa educação
podia entender o que se dizia ali.
Além das referidas “batalhas de verbos” presente nos depoimentos que fazem alusão
às avaliações orais, haviam outras formas de avaliação:
A prova escrita existe até hoje, e tinha a prova oral que a gente era chamado,
o professor ficava em outra sala e a gente ficava em uma sala da gente. E a
gente tinha que ir lá fazer a prova oral, tinha que fazer na lousa se era uma
aula de desenho, se era matemática, aquela raiz quadrada, equação, etc... a
gente tinha que fazer na lousa. Eu nunca fui boa de matemática, até hoje.
Quando eu preciso dessa parte eu sempre tenho algum assistente que é
competente nisso, mas estudei bastante, consegui utilizar em concursos que
eu prestei. Mas não é meu campo. (ARQUIVO 12, p. 14).
As alunas deviam resolver questões diante dos professores a fim de demonstrar suas
habilidades, o que não excluía as provas escritas.
A estrutura do sistema educacional era bastante rígida, o que causava a exclusão de
boa parte da população dos bancos escolares. Os próprios processos metodológicos citados, o
sistema de regras, disciplina e punição não era assimilado por todas as meninas enviadas para
o Colégio de Lourdes e muitos outros. A evidência oral permite-nos concluir que muitas
desistiam dos estudos, sendo selecionadas apenas aquelas que, de alguma forma, com muita
105
ou pouca resistência, aderiram ao modelo de ensino proposto. Essas que ficaram e se
adaptaram, ou melhor, se conformaram – no pleno sentido da palavra, se encaixaram em uma
forma de modelar – tornaram-se as guardiãs do saber, e não podia ser diferente, afinal elas
assimilaram o currículo de forma integral e, por isso, foram eficientes em aplicá-lo. Dois
relatos de colaboradoras diferentes demonstram que mesmo as moças oriundas da elite
evadiam da escola:
Aí eu vim pro Colégio Nossa Senhora de Lourdes na época né. Estudei
interna. Minha irmã veio também comigo, nós terminamos o quarto ano
juntas. Ela veio, mas ficou um ano e depois não quis e voltou. Eu continuei.
[...] Ela não chegou a terminar os estudos não. Ela parou, casou mais nova,
não gostava assim muito né [de estudar]. (ARQUIVO 30, p. 3-4).
Somos em três, todas elas, nós três, só essa caçula que não formou. Não
formou porque arrumou namorado, o namorado quis casar e ela então...
Sabe, mas depois se arrependeu tanto né? Não forma, mas depois se
arrepende. Bem faz você que tá seguindo a sua vida. O verdadeiro
casamento é a sua formatura. (ARQUIVO 33, p. 4).
No primeiro fragmento é perceptível que a irmã da colaboradora não quis continuar os
estudos, mas o motivo não era o casamento e sim a adaptação, visto que ela fez apenas o
primeiro ano do ginásio no Colégio de Lourdes como interna e abandonou muito antes de
casar. Já no segundo caso, a colaboradora apresentou o casamento como motivo que levou a
irmã a deixar de estudar: “Não formou porque arrumou namorado, o namorado quis casar e
ela então...” Em seguida, deixou claro a importância que dá à educação: “O verdadeiro
casamento é a sua formatura”. Essa fala, improvável há 60 anos e muito comum nos tempos
atuais, faz parte da mentalidade própria das normalistas, que viam na educação uma forma de
emancipação da mulher, não em sentido financeiro propriamente dito, mas profissional, ao
adquirir seu espaço no mercado de trabalho, até então ocupado apenas pelas mulheres de
baixa renda. No capítulo que se segue mostraremos como essa mentalidade contribuiu para
que as normalistas enfrentassem as dificuldades e desafios de sua carreira.
Além de a adaptação ser uma forma de seleção da aspirante à normalista, havia outros
meios de captação das alunas mais talentosas – as que se destacavam pela boa memorização,
facilidade de falar em público e desenvoltura. Essas alunas sempre eram chamadas para
participar de eventos importantes e, aos poucos, iam tomando gosto pela posição que lhes
conferiam no futuro ser professora.
106
Eu era boazinha no francês, que a gente estudava duas línguas. E tanto que
quando veio a madre superiora, ela era da França, a gente falava má mère, a
madre superiora, era a mãe da gente. Então teve aquela solenidade, aquela
coisa linda e eu aquela danadinha, lá... aquela danadinha de quinta série ou
sexta, eles foram me catar: “Dona Tozzi, a senhora é que vai falar para a
madre, para a má mère...”, falei, “mas eu?”, “ah porque a sua pronúncia de
francês é muito boa, só que você vai ter que decorar a poesia. E lá vai eu,
peguei , e eu gostava mesmo de subir no banquinho. Achei bom demais da
conta, [RISO] e meu pai achava muito mais, porque meu pai sempre achou
assim que eu era muito boa pra falar, muito boa pra cantar... tanto é que me
pôs em estudo de música desde criança, desde piano, formei em acordeom,
violão, e ele gostava da casa cheia, gente tocando, sabe. E aí eu falei essa
poesia, eu não lembro, era uma poesia grande. Só lembro que era assim, eu
falava. Aí eu não me lembro mais. Era uma poesia grande que eu decorei e
falei pra freira. Foi muito legal, foi muito legal. Eu tenho recordações muito
boas. (ARQUIVO 12, p. 8-9).
E mais infância, quando eu educava a voz, eu fiz uma apresentação com um
grupo de alunos desse professor no Teatro Santa Maria eu vesti de espanhola
e cantei Granada. Eu lembro perfeitamente. Fiquei lindinha de espanhola,
cantei Granada no Teatro Santa Maria. “Granada, terra sonhada por mim.”
Conhece né? [RISO]. (ARQUIVO 26, p. 4).
Em várias ocasiões a mesma colaboradora comentou sobre suas participações em
eventos importantes da cidade, incentivada tanto pelos mestres como pelo pai: “Achei bom
demais da conta, [RISO], e meu pai achava muito mais, porque meu pai sempre achou assim
que eu era muito boa pra falar, muito boa pra cantar.” O pai não só acreditava, mas também
incentivava o desenvolvimento de suas habilidades: “[...] tanto é que me pôs em estudo de
música desde criança, desde... piano, formei em acordeom, violão, e ele gostava da casa cheia,
gente tocando, sabe.”
O gosto de “subir no banquinho” (como dizia brincando nas entrevistas), de liderar,
acompanhou a história de vida dessa normalista que sempre foi participativa no meio
profissional, religioso e social da cidade de Franca.
Uma coisa a gente tinha como certo: que quem não nasceu com facilidades,
tinha que ir à luta. Isso ficou na minha vida e não me larga. Então é assim ó,
“quer lute. Nada cai do céu”. Então isso ficou muito forte, muito forte. Onde
que eu tenho essa dificuldade imensa de sair de cena. Muito. [...] Como se
diz: “descer do pódio”. (ARQUIVO 42, p. 1).
Até a conclusão do Ginásio, muito do perfil da normalista já estava formado através
do currículo oculto absorvido durante todos esses anos em contato com a instituição escolar.
A próxima fase incluía a escolha, que parecia quase natural, de fazer o curso Normal. Porém,
vários fatores influenciavam na decisão das moças de cursarem o Normal e um,
107
especificamente, será discutido agora: a carreira da normalista e o status que esta
proporcionava.
2.4 O Curso Normal: A Produção do Modelo de Professor
Ao concluírem o Ginásio, algumas moças abandonavam os estudos enquanto outras
seguiam o que parecia ser a sequência lógica da formação educacional feminina – o curso
Normal.
Como já foi dito anteriormente, vários fatores influenciavam nessa escolha, mas
alguns especificamente aparecem em tópicos frasais repetidas vezes nas evidências orais. O
que faremos aqui é analisar cada um desses fatores de influência na escolha da profissão, bem
como o curso Normal propriamente dito sob o prisma das recordadoras. Para tanto,
descreveremos o surgimento dos cursos Normais de caráter laico e confessional na cidade de
Franca e sua influência no contexto social, econômico e político do período estudado.
A Escola Normal Livre de Franca foi fundada em 1928, oitenta e três anos mais tarde
que a primeira Escola Normal no Brasil, criada em 1835 em Niterói. Entretanto, se
analisarmos o processo de abertura de cursos Normais pelo Brasil, notaremos que ele ocorreu
de forma bem lenta até o início da República, quando passou a postular entre as primeiras
necessidades defendidas pelos ideais liberais.
Com a República, urgia dar continuidade ao projeto civilizador da Nação
com a meta de estender a educação para todos, nos moldes de uma ação
democrática que visava fortalecer o país, o que poderia ser alcançado através
da escola. A formação de bons professores era parte integrante desse projeto.
(ALMEIDA, 2005, p. 113).
Neste sentido, podemos considerar que, embora Franca fosse uma cidade pequena do
interior paulista, devido sua importância econômica, não ficou para trás no sentido de
conseguir introduzir, logo na segunda década do século XX, um curso Normal laico na
cidade. E essa era uma luta antiga de personalidades da elite francana. O jornal A Tribuna de
Franca, de 18 de dezembro de 1913, em artigo assinado pelos professores Homero Alves e
Sabino Loureiro, convocavam os cidadãos francanos para a peleja com outras cidades como
Mogi Mirim e Ribeirão Preto, que disputavam com ela a sede de uma Escola Normal Livre no
interior paulista: “[...] nós os francanos devemos nos empenhar seriamente para a vinda da
108
Escola Normal para Franca, unirmos e sermos fortes pela união, fortes pela energia de nosso
querer [...] lutemos pelo progresso de nossa terra natal, não importa que sejamos vencidos.”.
O entusiasmo presente no discurso destes homens ilustres que se empenhavam para
introduzir o curso na cidade demonstra-nos que Franca seguia passo a passo o
desenvolvimento nacional e que a elite estava atenta às transformações ocorridas no país.
Todavia, o Curso Normal tornou-se realidade somente em 1927 com a lei que permitia
a criação de escolas normais pela iniciativa privada e pelo município. O então prefeito da
cidade Major Torquato Caleiro, o Sr. Hygino de Oliveira Caleiro e o Dr Ricardo Pinho,
respectivamente tio-avô, avô e pai de D. Augusta Caleiro, uma de nossas colaboradoras,
estiveram entre os articuladores do movimento de implantação da Escola Normal Livre de
Franca que sob o decreto de lei nº 443 de 20 de setembro de 1949 passou a se chamar Colégio
Estadual e Escola Normal Major Torquato Caleiro em homenagem a esse personagem ilustre.
Fazendo referência à homenagem feita ao Major Torquato Caleiro, o Jornal Comércio da
Franca de 25 de setembro de 1949 justificou:
Torquato Caleiro criou a Escola Normal Livre de Franca, dirigiu-lhe a
construção do prédio para funcionamento efetivo, viu-a crescer, florescer e
frutificar. Nos primeiros momentos, arrancos iniciais de grande empresa,
havia a parte financeira que era precípua: a ela também se dedicou com
carinho o falecido Major Torquato, assistindo com seus recursos às
necessidades da Escola, provendo-as e satisfazendo-as. Assim, graças à
dedicação do saudoso ex-Prefeito, muitas e muitas gerações de jovens
puderam receber, sob o teto amigo, a formação profissional de professor
normalista, indo participar ativamente da obra educadora de nossa gente.
Mais tarde, foi criado, no mesmo prédio em que funcionava a Escola
Normal, o Ginásio Municipal; com o tempo, o Ginásio e a Escola Normal
passavam para a administração estadual, recebendo Franca, então,
colaboração efetiva dos poderes estaduais, mais tarde ampliada e solidificada
por outros administradores do Município e do Estado. (COMÉRCIO DA
FRANCA, 1949, p. 1).
De fato, a iniciativa de implantar um curso Normal em Franca partiu de esforços e
interesses da elite francana que percebeu a necessidade de formar quadros profissionais
competentes para atuar na formação da crescente população que migrava do campo rumo à
cidade e carecia de instrução fundamental para compreender e adaptar ao sistema produtivo
que passou a enfrentar.
Não haviam professores normalistas qualificados em número suficiente para enfrentar
a empreitada liberal de trazer o progresso ao país via educação da grande massa de iletrados
aqui existentes. Ciente da situação o professor Homero Alves escreveu em dois de março de
1941, no Jornal Comércio da Franca:
109
Sou testemunha da carencia de professores em nossa terra e quase que
poderei afirmar sem mêdo de erro ou exagero que antes de 1928 não existia
na comarca um único professor normalista filho de Franca. Poucos eram os
normalistas, todos vindos de outras cidades. As Escolas primárias, na sua
quasi totalidade, eram regidas por professores leigos que merecem a nossa
estima pelo esforço e dedicação dispendidos não obstante a sua visivel falta
de preparo pedagogico. Eram esses pobres servidores das Comarcas mal
pagos e sem a menor garantia. Ser professor público era avisinhar se da
miseria, sofrendo quase sempre o despreso social, relegados para a classe
dos párias, a todos e a tudo sujeitos. (COMÉRCIO DA FRANCA, 1941,
p. 3).
Essa descrição da situação precária em que vivia os professores leigos não condiz, em
nada, com a situação das normalistas que, por serem filhas da elite, já traziam consigo de
valorização e status quo que derivavam do grupo social do qual originavam. Essa condição foi
transferida para o papel da normalista e, posteriormente, para o professor formado que, como
veremos, encontrou um lugar de prestígio na sociedade brasileira na primeira metade do
século XX.
A Escritura de Constituição da Sociedade Civil “Escola Normal Livre de Franca”,
atenta-nos ao fato de que personalidades importantes, inclusive o Patrono da escola,
contribuíram para a fundação da Escola Normal Livre de Franca, inclusive financeiramente,
pois o seu retorno, em formação de mão-de-obra preparada para o mercado de trabalho
industrial, via formação de professores era certo. No artigo 1º da escritura lemos:
Sob a denominação de Escola Normal Livre de Franca, Estado de S. Paulo,
onde tem sua sede, uma sociedade civil de caráter não econômico, cuja
duração é por prazo indeterminado, com o fim de ministrar instrução
secundária a pessoas de ambos os sexos, no regime de externato, nos termos
da lei n. 2.269 de 31 de Dezembro de 1927. [...] Parágrafo único. – Serão no
estatuto admitidos com o título de sócios beneméritos todos aqueles que
fizeram doações ou importantes contribuições para a sociedade o houverem
prestado a esta serviços notáveis, dependendo a concessão desse título da
aprovação da Assembléia dos sócios effectivos. (DIÁRIO OFICIAL,
1930).
Os membros da sociedade civil “Escola Normal Livre de Franca” fizeram as seguintes
subscrições ou contribuições para pôr em funcionamento o externato:
A lista de subscrições atingiu no mesmo dia a quantia de 12:600$000, e foi
subscrita por Cel. André Martins de Andrade, 2:000$000, Major Torquato
Caleiro, 2:000$000; Cel. Francisco de Andrade Junqueira, 2:000$000;
Joaquim de Paula Costa, 1:000$000; Azarias Martins Ferreira, 1:000$000;
Hygino de Oliveira Caleiro, 1:000$000; Bernardo Avelino de Andrade,
500$000; dr. Ricardo Pinho, 500$000, dr. João Marciano de Almeida,
110
200$000; prof. Olívio Peixoto, 200$000; Luiz de Lima, 200$000; Antonio
Constantino, 200$000; dr. Walfrido Maciel, 200$000; dr. Roberto Tedesco,
200$000; dr. Jonas Ribeiro, 200$0000; Dolor de Oliveira Dias, 200$000; dr.
Américo M. Castro, 200$000; Benevides Barbosa Sandoval, 200$000; Plínio
Vilela de Andrade, 200$000 e Nilo Pirro, 200$000. (COMÉRCIO DA
FRANCA, 1941, p. 3).
Vale salientar que até a instituição passar para a administração estadual, o curso
Normal cobrava uma taxa de seus alunos.
Na Secretaria da Escola achava-se fixada a lista das contribuições e taxas
devidas para cada aluno:
Inscrição 50$000
Matricula 100$000
Exames finais 150$000
Mensalidades, 9 meses a 40$ 360$000
Soma 660$000
96 alunos, 10 masculinos e 86 femininos, chegaram ao fim do ano, sendo a
renda prevista para esse primeiro ano de 43:560$000, quantia que deveria,
como o fez, cobrir todas as despesas, visto como fundo de patrimônio estava
todo distribuído para a construção do atual Prédio do Ginásio e compra do
material didático, carteiras, etc. (COMÉRCIO DA FRANCA, 1941, p.
3).
Desta forma, o curso Normal tornava-se um curso de elite, pois somente quem tinha
condições financeiras para cobrir tais despesas podia matricular-se na Escola Normal Livre de
Franca. No entanto, a escola previa seis lugares gratuitos a alunas com excelente rendimento
escolar:
De conformidade com a chamada de matrícula publicada pela imprensa local
são matriculados neste ano na escola 127 alunos, sendo 84 no 2º ano e 43 no
1º. Destes 127 alunos a escola concede 6 lugares gratuitos a alunas
reconhecidamente pobres e que tivessem se distinguido em seus estudos.
(COMÉRCIO DA FRANCA, 1941, p. 5).
Difícil, porém, era encontrar “alunas reconhecidamente pobres”, que tivessem
conseguido driblar todas as agruras do sistema e chegado ao tão almejado curso. De qualquer
forma, em 1930 a Escola Normal Livre de Franca formou sua primeira turma de normalistas.
No ano de 1929 ocorreu uma primeira tentativa de abrir, anexo ao Colégio Nossa
Senhora de Lourdes, uma Escola Normal Livre dirigida pelas irmãs de São José. Todavia, a
empreitada não logrou êxito devido a concorrência com a instituição pública que foi pioneira
na introdução do curso Normal. Assim, o Colégio de Lourdes fechou o curso Normal em 1930
e reabriu-o novamente em 1945, funcionando até a extinção do Colégio, em 1967.
111
Isso explica porque duas de nossas colaboradoras, cuja data de ingresso no curso
Normal coincidiu com a extinção do mesmo no Colégio de Lourdes, migraram para o colégio
Torquato Caleiro a fim de completar seus estudos. D. Edna explicou:
Aí depois eu fiz o Ginásio, até o Ginásio. Na minha época não havia o curso
Normal no Colégio de Lourdes. Aí eu fui para o Torquato Caleiro. [...]
quarenta e quatro... [data do ingresso] porque eu me formei em quarenta e
sete. Foi isso mesmo. [...] [Depois o curso Normal] Voltou. Voltou. Aliás
depois eu tive uma irmã que formou aí [no Colégio de Lourdes].
(ARQUIVO 15, p. 5).
De acordo com as datas, tanto D. Edna como D. Leila, que nasceram no mesmo ano,
entraram no Magistério no ano de 1944 e só no ano seguinte o Normal reabriria suas portas no
Colégio de Lourdes. Como a D. Leila já havia concluído, boa parte de seus estudos fora da
cidade, por motivo de mudança, em um colégio público, ao voltar optou por concluir seus
estudos na Escola Normal Oficial de Franca. Todas as outras colaboradoras com idade para
concluírem os estudos no Colégio de caráter confessional, incluindo o Normal, o fizeram, à
revelia das despesas envolvidas.
Isso torna evidente o caráter elitista atribuído à formação da normalista e a
importância que ainda se dava ao ensino religioso há mais de meio século após a proclamação
da República. Embora os ideais republicanos liberais defendessem a laicidade do ensino, a
elite católica presa à tradição sustentou a existência dos colégios confessionais, concretizando
o dualismo da educação brasileira.
O glamour da profissão estava diretamente relacionado a quem o ocupava – as filhas
da elite. Almeida (2005, p. 116) explicou:
Essas oligarquias, símbolo de um país agrário e atrasado, que tinham como
base social os latifundiários, representados em São Paulo e Minas Gerais
pelos denominados barões do café, são deslocadas do poder em
conseqüência da crise econômica que se desencadearia no setor cafeeiro.
Isso vai promover mudanças na organização social, e as filhas dos oligarcas
falidos pela quebra financeira, pressionadas pela urgência econômica,
também irão sentar-se nos bancos escolares da Escola Normal já ocupados
pelas jovens filhas de comerciantes, profissionais liberais e pequenos
fazendeiros. (ALMEIDA, 2005, p. 116).
Exatamente esse é o perfil da rede das colaboradoras que participaram deste estudo e
representam o que, de fato, era o grupo das normalistas: moças ricas, bem criadas, originárias
de famílias tradicionais ou oriundas das camadas emergentes da sociedade, geralmente
112
formada por imigrantes, profissionais liberais e comerciantes que aspiravam ascensão social
via educação.
Assim, o que conferia status a profissão professor era quem, ou seja, que tipo de
pessoa podia obter tal educação e não o contrário, tanto que a partir da década de 1950, com a
introdução do curso Normal noturno para alunos trabalhadores e paulatinamente à
democratização do ensino, houve a decadência e a desvalorização da profissão. Uma das
colaboradoras comenta acertadamente o processo de ascensão e queda do papel da normalista:
O professor era super respeitado. O professor era visto como uma pessoa
culta, bem intencionado, colaborador das famílias e ele tinha um salário
digno, que dava pra ele vestir razoavelmente, calçar, ter seus passeios,
adquirir, investir em cultura nele, e era respeitado por tudo, por pais, por
autoridades, entendeu? Um professor não podia ir dar aula sem um cabelo,
com um cabelo desarrumado, com um lenço na cabeça, com um vestido de
alça, com um vestido sem costa, com uma saia, com roupa curta. Nada disso.
Era uma coisa que era assim, exemplo. De vestir, de postura, de ética. Não se
falava em ética nesse tempo não, mas se vivia. Vivia-se. [...] É. Daí quando,
deixa ver que começou essa decadência. Começou com a desvalorização
assim... quando começou a escola para todos, isso daí também contribuiu um
pouco porque começou a entrar no magistério assim, às vezes pessoas que
não tinham uma postura, uma dignidade pra tratar diante de uma sala de
aula. Como é que eu vou falar isso? Não é bem assim que eu quero falar.
Quando abriu para todos, perdeu essa história do... era seletivo, vamos dizer
assim. [...] Quem tinha mais conhecimento... aí abriu a escola para todos e
passava a ter promoção direta assim, começou a chegar um pessoal assim,
mais sem capacidade, vamos dizer assim. Não sei se é assim que eu falo. E a
desvalorização dos nossos governos em termos do nosso salário ter aquele
crescimento, fez com que a procura fosse mais por pessoas que não, mais é
isso que eu quero falar, que a procura foi feita pelos menos capazes,
daqueles que não davam certo em outras coisas, optavam pelo magistério, foi
assim que eu percebi. E que foram assim os nossos governos, do tempo do
Mário Covas principalmente pra cá, que até o Montoro foi um governo
muito bom que valorizou o professor, do Mário Covas pra cá então, o
professor partiu pra rua com o holerite na mão. Eu me lembro direitinho
disso. Eu me neguei a sair. Saíram todos nas praças, arrumaram um galho de
árvore seco e penduraram o xerox de holerite de todo mundo. Eu acho que o
professor nesse dia, ele perdeu a dignidade. Assim, querendo ser valorizado.
Eu penso assim. Mas eu acredito que os nossos governantes, eles têm muita
culpa nisso aí, sabe por quê? Se desmotivou demais. O ganho insuficiente
pra vestir, pra calçar, pra comer, pra estudar os próprios filhos... porque o
professor ensina os filhos dos outros não pode dar uma faculdade pro filho
dele você entendeu? Só se ele passar em uma faculdade pública. E deixa ver
o que mais que eu vou te falar que eu acho que contribuiu. A mudança do
mundo, as próprias sabe... essa mudança do mundo que revolucionou tudo,
que o respeito em todos os setores assim deixou de existir. Deixou de existir
nas famílias e chegou esse aluno pro professor despreparado e ele com
vontade de não ser também um bom aluno, não é? Eu fico triste hoje de ver
assim, bate em professor em sala de aula, o ponto que nós chegamos, gente.
Olha esses professores que citei pra vocês, nossa senhora. Sabe, eles iam dar
aula de terno e gravata bem, eles davam aula de terno e de gravata! Meu
113
esposo como delegado de polícia, de terno e de gravata. Hoje bem, o povo
anda de camisa, revolve, não sei o que... então, final dos tempos que nós
mesmo fizemos. Quem faz os tempos? A humanidade. Não é? Quem ta
destruindo? Nós mesmos. [...] Mas o professor não tinha dinheiro pra
investir na cultura e no conhecimento dele. Como é que você quer que ele
esteja atualizado? [...] Eu trabalhava no Caetano Petraglia, eu trabalhava lá.
A minha vida era lá, a minha vida era lá, o meu corpo, o meu coração, a
minha cabeça inteira lá. Hoje os professores infelizmente... eu tenho pena,
não sei, eles são uns heróis. Eles conseguem trabalhar em quatro, cinco
escolas. Porque inclui do Estado, Prefeitura, municipal e ainda precisa
estudar... eu não sei, é muito complicado. [...] Eu acredito que quando eu
converso assim com uns mais próximos, eu só escuto desânimo deles, só
escuto desânimo. (ARQUIVO 27, p. 18-20, grifo nosso).
Esse fragmento, embora extenso é muito rico em informações. Primeiramente a
colaboradora descreveu de forma nítida o perfil da professora: “pessoa culta, bem
intencionado, colaborador das famílias e ele tinha um salário digno”.
Essa era a imagem que a sociedade tinha do professor. Em outro depoimento uma
recordadora comentou a posição do professor na sociedade: “Porque antigamente era juiz,
padre e professor né, hoje infelizmente não é mais.” E admite que isso influenciou em sua
escolha: “Porque antigamente o professor era respeitado meu bem. Então tudo isso, devido
minha formação parece que colaborou para que eu fosse professora, certo?” (ARQUIVO 15,
p. 13).
O motivo da decadência da profissão é associado no fragmento à democratização do
ensino e, consequentemente, do curso Normal: “quando começou a escola para todos [...]
começou entrar no magistério [...] pessoas que não tinham uma postura, uma dignidade pra
tratar diante da sala de aula”. Essa observação é interessante porque mostra-nos o valor do
currículo oculto apreendido durante toda a educação formal e informal que a elite recebia para
ter a „postura adequada‟ para lidar com os alunos. Com o fim do exame de Admissão
implantado pela Lei 5692/71, “abriu a escola para todos e passava a ter promoção direta
assim, começou a chegar um pessoal [...] mais sem capacidade”, ou melhor, os pobres, filhos
dos trabalhadores. Estes “menos capazes, daqueles que não davam certo em outras coisas,
optavam pelo magistério”. A profissão se pauperizou, se proletarizou na medida em que
começou a afluir para ela parte da população até então excluída dos estudos.
Enquanto ser normalista era profissão de status, apenas uma elite escolhida a dedo se
formava. Quando o curso Normal deixou de ser elevado à categoria de formação superior, e as
professoras formadas para ganharem mais, precisaram fazer a Pedagogia que lhes conferia um
título acadêmico, o status da profissão acabou. O Normal, igualado ao nível do 2º grau,
começou a ser procurado por trabalhadores ansiosos de buscarem melhores condições
114
econômicas via educação profissional. No entanto, com o aumento de mão-de-obra
qualificada para lecionar nas primeiras séries do ensino fundamental, a tendência foi a
promoção de uma política de desvalorização dos salários, o que causou greves históricas na
década de 80, como relatou a colaboradora: “o professor partiu para a rua com o holerite na
mão. Eu me lembro direitinho disso. Eu me neguei a sair. Saíram todos nas praças [...]. Eu
acho que o professor nesse dia, ele perdeu a dignidade.”
Outra característica do professor, “era assim, exemplo de vestir, de postura, de ética.
Não se falava em ética nesse tempo não, mas se vivia. Vivia-se”, reforçou. A idéia do
professor modelo é um tópico frasal que se repete em diferentes entrevistas. Defere-se desse
fato que, o professor educava pelo modelo mais do que pela aula.
O currículo oculto entrava em vigor nos aspectos sutis de sua postura, arrumação e
tom de voz. Após descrever o figurino impróprio do professor de hoje, a colaboradora contou:
“Olha esses professores que citei para vocês, nossa senhora! Sabe, eles iam dar aula de terno e
gravata bem, eles davam aula de terno e gravata!”
Outra recordadora descreve a vestimenta e postura das normalistas mais
especificamente:
Olha, ela sempre assim, principalmente o traje da professora. Então era
parece que padronizado: sapato de professora, aqueles sapatos que usava na
época, com aqueles saltos solo né; a roupa assim, sempre muito bem,
estavam sempre muito bem vestidos né. Então ela se distinguia na sua
postura né, e sempre com as roupas muito bem assim, não sei se eu vou falar
“decentes” ou qualquer coisa assim [...] Se era o termo né. [...] Tinha aquela
preocupação né. Por exemplo, você vê que naquela época ninguém usava
calça comprida e nada, era saia né, uma blusa, uma blusa bem recatada, de
manga. Aquela postura né, de professora. Que eu também cheguei a pegar
essa fase também como professora. [...] Então a gente usava aquele sapato,
sapato né, fechadinho, característico né. Então tinha... e os trajes também,
saia bem mais, usava tudo mais comprido e tudo. Então eu acho que era uma
maneira mais também, bom, era da época né. Não sei se era pra, não tinha
nada assim que, era da época. E os professores eram assim muito respeitados
né, que às vezes o aluno passava na rua, via a professora, até ia mais longe,
desviava, sempre o receio, o respeito pelos professor. Embora né... era.
(ARQUIVO 30, p. 7).
As roupas deveriam ser “decentes”, para demonstrar a postura de recato da mulher,
afinal a normalista servia de exemplo ou modelo para inúmeras moças que constituiriam
família no futuro. As meninas, por sua vez, observavam com expectativa os trajes das
professoras em quem se espelhavam:
115
Era roupa da época né. E a gente acostumada a só conviver com as freiras, a
gente adorava ver as professoras se apresentarem, cada dia elas iam com
uma roupa diferente. A gente então dava palpite: “hoje a senhora ta mais
chique...”, entendeu? Então, era a roupa da época. [...] Eu não lembro direito
como é que era o tipo de roupa, mas eu lembro que elas eram muito
alinhadas, sabe. (ARQUIVO 11, p. 7).
Não era só a vestimenta, mas a postura de integridade, a delicadeza nos gestos, a
suavidade da voz, que faziam da normalista um exemplo. É muito comum as colaboradoras
compararem tal postura com a ética, conceito muito propagado nos nossos dias.
Aliás Cristina, eu trabalho com ética profissional aí na universidade. E eu
insisto muito com meus alunos que professor é exemplo. Não adianta você
falar em justiça, você falar da verdade, se você é injusta, se você às vezes faz
uma malandragem também... a humildade do professor. Nunca um aluno
perguntar uma coisa pra você, que você não saiba, e você queira tapear esse
aluno. Não, seja honesto: “olha bem, eu não sei...”, ou então “eu já vi isso,
mas esqueci. Vamos pesquisar, vamos procurar?”. Nunca querer tapear o
aluno. Isto é uma questão de ética, certo? E não adianta você falar que a
pessoa tem que ser assim, tem que ser desse jeito e você proceder errado,
certo? Horário, por exemplo, a gente insiste no horário com os alunos, agora
eu devo chegar atrasada na sala de aula? Nunca! Nunca. E graças à Deus
Cristina, nunca cheguei atrasada, sabe bem? Aliás eu digo uma coisa pra
você, que pra mim, não precisa de sinal nenhum em escola. É oito horas que
eu tenho que estar lá? Oito horas que eu estarei lá. Vai até as dez? Termino a
minha aula às dez horas. E eu falo isso pra eles, que todo o profissional tem
que obedecer o horário. Porque afinal de contas, se ele não cumpre com o
horário, ele está dando exemplo para os alunos, exemplo para outras pessoas.
Então isso aí é uma questão de ética profissional, viu? (ARQUIVO 21, p.
3-4).
Ressaltando a importância do exemplo que o educador deve ser para os alunos, a
colaboradora deixou claro que até hoje se apega aos padrões morais de obediência, verdade,
honestidade, justiça e disciplina. “A gente insiste no horário com os alunos, agora eu devo
chegar atrasada na sala de aula? Nunca! Nunca. E graças a Deus Cristina, eu nunca cheguei
atrasada.” Esse é um aprendizado importante que os alunos, futuros trabalhadores devem ter:
serem diligentes no serviço, cumpridores do horário, disciplinados. “É oito horas que eu tenho
que estar lá [na faculdade]? Oito horas que eu estarei lá. Vai até as dez? Termino a minha aula
às dez horas. E eu falo isso pra eles, que todo profissional tem que obedecer o horário.” É
notável no discurso da normalista a influência do currículo oculto em sua prática profissional.
Conceitos atualmente em pauta como a ética são apropriados e transformados, revestidos de
um sentido moral fortemente influenciado pela educação e cultura social recebida durante sua
formação.
116
O exemplo de algumas professoras do curso era eleito pelas normalistas para ser
copiado quando fossem exercer a profissão:
Olha, eu tive uma professora no pré-Normal lá, em Piracicaba que se
chamava dona Olga Milhomens. Ela tinha obtido assim, acho que o primeiro
lugar no concurso, ela era uma sumidade, era uma professora de português
mais... e eu a admirava muito sabe. Era uma professora que sabia e que sabia
transmitir. Então essa professora me marcou, marcou muito. Agora depois,
no Normal mesmo, eu tive ótimos professores aqui: seu Júlio Delia, foi
professor; dona Vanda Valério; dona... tive professores muito bons. Então eu
acho que cada um. [...] Contribui de uma maneira. (ARQUIVO 30, p.13).
É possível concluir que tanto o status da profissão, que de certa maneira, já era
usufruído pelas aspirantes normalistas, como o referencial de modelo que tinham, foram
grandes atrativos para escolherem a carreira. Vale lembrar, porém, que nas primeiras décadas
do século XX, o curso Normal foi apresentado como única opção de educação profissional
feminina. Era quase que o destino natural das moças que desejavam continuar os estudos após
completarem o Ginásio.
Associar a mulher ao papel de educadora nata, com o dom divino de educar, por ser
também mãe, fez dela a professora primária por excelência. Quem melhor que a mulher para
compreender e educar as crianças? Foi a partir desse pensamento que se difundiu a ideia de
que a profissão – professor era essencialmente feminina e que a normalista se tornou uma
questão de gênero. (ALMEIDA 2005, p. 114) explicou:
Os movimentos pela educação feminina seriam reforçados principalmente
pelo Positivismo. Seus seguidores admitiam a inferioridade orgânica e
intelectual das mulheres, porém, as consideravam superiores do ponto de
vista moral, o que as fazia merecedoras da abnegada missão de educar as
crianças, rompendo assim com as idéias anteriores de destinar à parcela
feminina apenas a função de procriar, embora mantivessem a estreita relação
professora-mãe. (ALMEIDA 2005, p. 114, grifo da autora).
Tal visão foi registrada na Poliantéa Comemorativa dos 50 anos do Colégio Nossa
Senhora de Lourdes, onde o Sr Altino Arantes, casado com uma ex-aluna do colégio, presta
uma homenagem à instituição:
[...] pode-se afirmar, sem lisonja e sem exagero, que o Colégio Nossa
Senhora de Lourdes conferiu, [...] um legítimo primado moral e intelectual.
Pois, para ali correram, como para um centro de benéfica irradiação, em
número sempre crescente, alunas [...] E todas elas daí partiram afinal,
terminado o curso, em alegres e formosas revoadas, para fundar lares e criar
novas famílias, comprovando por toda a parte, pelas suas virtudes e pela
117
integridade do seu procedimento, a beleza, a força e a prodigiosa
fecundidade da verdadeira educação católica. (POLIANTÉA, 1938, rolo
28).
A função do Colégio de natureza confessional era dar a “verdadeira educação católica”
para as moças constituírem suas famílias dentro dos preceitos cristãos. Era do pensamento
religioso que também se originava a ideia de seguir a vocação e de ter no magistério uma
missão e não uma profissão. Uma recordadora comentou:
Acho que ser professor e gostar da profissão, eu acho que você tem uma
coisa sobrenatural que te ajuda a ver, olhar o aluno e conhecer o aluno e
tratar cada um assim, do seu jeito, muito importante. Eu acho que o
professor, a gente teve muito disso. E no olhar, naquela convivência, aquela
coisa, a gente sabia lidar. E a gente observava muito né. Não deixava as
coisas passarem assim. Então a gente conhecia, enquanto ia conhecendo
cada um né. E fazendo o que for preciso, o melhor pra cada um deles.
(ARQUIVO 32, p. 23).
Nota-se que o termo vocação em si não aparece, mas a ideia sim: “Acho que você tem
uma coisa sobrenatural”, o que poderíamos traduzir em outras palavras por dom, “que te ajuda
a ver, olhar o aluno, conhecer o aluno e tratar cada um assim, do seu jeito”. Para isso era
preciso antes de tudo, gostar da profissão.
Em outra entrevista com a mesmo colaboradora, o assunto voltou à pauta quando
comentávamos sobre a importância do modelo do professor para a educação integral do aluno.
A essa altura da entrevista a colaboradora fez o seguinte comentário:
Então, essa postura numa sala de aula, a maneira de falar, a maneira de tratar
cada um, porque o tom de voz era muito importante né, pro aluno entender...
então eu falo assim que o professor, ele tem que ter o dom sabe, porque o, a
escola, o aluno, é como se fosse assim um sacerdócio, ou alguma coisa assim
muito sabe, que você precisa ir lá e deixar, e se dedicar ali de corpo e alma
em uma sala de aula. Não é fácil, mas é necessário. Então o, naquele
momento, é assim, procurar, por exemplo, usar conforme os termos. Sempre
tratar o aluno com educação, não usar assim termos que possam ofender, ele
vai falar a mesma coisa, o que você fala, ele vai falar. (ARQUIVO 43, p.
10-11).
O professor precisa “ter o dom sabe, porque o, a escola, o aluno, é como se fosse um
sacerdócio, ou alguma coisa assim muito sabe que você precisa ir lá e deixar, e se dedicar de
corpo e alma em uma sala de aula”. É isso. A normalista devia dedicar-se à escola como se
dedicava ao lar. Os relatos demonstram como essas mulheres, de fato, dedicaram suas vidas à
118
tarefa de ensinar, pois incorporaram em suas mentes isso como um dever sagrado, parecido à
maternidade.
Bom, eu toda a vida pensei em ser professora. Toda a vida pensei, certo?
Em primeiro lugar, aqui em Franca não tinha outro curso, era só o magistério
mesmo. Quer dizer, foi uma coisa assim, um impulso mesmo que eu tive.
Mas toda a vida eu pensei em ser professora, e... eu me realizei Cristina, eu
sou sincera em dizer pra você, viu bem. (ARQUIVO 21, p. 7).
Sem dúvida, a formação recebida no lar, o status que a profissão auferia às
normalistas, a crença no dom e o direcionamento do curso Normal para o gênero feminino
contribuíram para a escolha de nossas colaboradoras.
Uma frase interessante, inúmeras vezes repetida nas entrevistas de D. Augusta é: “[...]
eu tenho a didática na alma”. (ARQUIVO 6, p. 7). Ela traduz a ideia do desejo nato de ensinar
– que é parte intrínseca da alma, do grego psy – khé, que significa vida – podendo assim
concluir que educar e viver são sinônimos na vida desta categoria social e profissional aqui
estudada.
A maioria de nossas colaboradoras cursou o Normal sob a vigência da Lei Orgânica do
Magistério de 1946. Em seu decreto 8.530, de 2 de janeiro de 1946, a lei institucionalizava
como objetivo do ensino Normal:
1. Prover a formação do pessoal docente necessário às escolas primárias;
2. Habilitar administradores escolares destinados às mesmas escolas;
3. Desenvolver e propagar os conhecimentos e técnicas relativas à educação
da infância.
Logo na descrição da primeira finalidade do curso Normal, fica evidente a
preocupação do governo em promover formação para professores em número suficiente para
suprir a demanda crescente de cargos em ensino primário que, até então, era em grande parte
ocupado por professores não qualificados ou com pouca instrução.
Segundo o quadro abaixo, podemos observar a situação precária do funcionamento das
escolas primárias através da qualificação dos professores que, apesar da Lei Orgânica de
1946, não conseguiu eliminar o professor leigo.
119
TABELA 1: Situação da qualificação do magistério primário no Brasil entre 1940 e 1957
Anos Percentagem Números índices
Normalistas Não-normalistas Normalistas Não-
normalistas
1940
1945
1950
1955
1957
60
62
52
52
53
40
38
48
48
47
100
118
137
186
221
100
110
192
264
297
Fonte: Maria José Garcia Werebe, Grandezas e Misérias do Ensino Brasileiro.
O segundo item que previa a formação de administradores escolares promoveu a
implantação dos Institutos de Educação. Estes ofereciam os cursos de 1º ciclo, com duração
de quatro anos, para a formação de regentes de ensino primário, conhecido como Escolas
Normais Regionais e cursos de 2º ciclo, com duração de três anos para formação de
professores primários em Escolas Normais. (ROMANELLI, 1978).
Foi nesse período, de 1953 a 1976, que a Escola Normal de Franca tornou-se Instituto
Estadual de Educação Torquato Caleiro (IEETC) e passou a oferecer o Curso Normal além de
cursos de administração escolar para professores que já haviam completado o magistério. D.
Leila conta que fez cursos no IEETC após ter concluído o magistério, quando já era
professora.
Rodei muito. Fui pra Patrocínio Paulista. E em Patrocínio Paulista fiquei um
ano... aí abriu o curso de aperfeiçoamento. Aqui no IETC abriu o curso de
aperfeiçoamento. Aí eles ofereceram assim pra quem fizesse assim o curso
de aperfeiçoamento, pros professores já efetivos, que a gente já era efetiva
nessa época né, os primeiros colocados, eu não sei se era três ou cinco, uma
coisa assim... os primeiros colocados ficava comissionado. Então, você já
viu, a gente estudou bastante e eu consegui ficar comissionado. [...] Curso
comissionado eu fiquei aqui só pra estudar, não precisava lecionar. [...] É.
Eu não lecionei naquele ano e fiquei aqui só pra estudar. Estudava,
freqüentava a escola né, aqui no IETC. [...] Fazendo, eu fiz, era um ano o
aperfeiçoamento. E a gente conseguia, ganhava pontos também né. E com
isso eu consegui mais pontos, então no ano seguinte, já consegui. Depois que
eu terminei, já entrei em remoção e já vim pra Franca. [...] Aí eu vim pro
“Jerônimo Barbosa”, aquela escola ali em cima e fiquei. Acho que um ano
depois ou dois anos a gente podia fazer o curso... aí abria o curso de
administradores. Administrador escolar e já era quase que pra formação,
pedagogia mesmo, sabe? E eu fui tentar outra vez. Aí parece que era só três
vagas pra comissionado e eu consegui também. Aí fiquei dois anos, eram
dois anos o curso. [...] Era aqui no IETC. [...] E depois voltei pra lecionar e,
e... aí surgiu que o curso de administradores valia pra pedagogia. Então
podia entrar no terceiro ano de pedagogia. (ARQUIVO 30, p. 21-22).
120
Neste fragmento a colaboradora contou que fez cursos de administração escolar no
Instituto Estadual de Educação “Torquato Caleiro”, após ter concluído o curso Normal e já
estar lecionando. De fato, o Estado de São Paulo promoveu tais cursos para professores
efetivos de caráter comissionado, em que estes não perdiam nem os pontos de tempo de
serviço, embora ficassem afastados do cargo, nem o salário. Sobre tais cursos, Lourenço Filho
escreveu: “Os cursos extraordinários são organizados, especialmente, para atender a
professores dos Estados, que sejam comissionados pelos respectivos governos, para
especialização, aperfeiçoamento ou continuação dos estudos pedagógicos, em geral.”.
(LOURENÇO FILHO, 2001, p. 27).
Esse curso de administração escolar, segundo a colaboradora, “já era quase [...]
pedagogia mesmo [...] o curso de administradores valia pra pedagogia. Então podia entrar no
terceiro ano de pedagogia”. Isso demonstra-nos quanto a cidade se beneficiou de possuir um
Instituto de Educação que preparava profissionais com a melhor qualificação oferecida pelo
Estado até aquele momento.
Podemos dizer sem exagero, que a formação Normal adquirida nos Institutos de
Educação tinha na época de seu funcionamento, o status de um curso universitário, o que fica
evidente no seguinte comentário que Lourenço Filho fez sobre a mudança da Escola Normal
da capital em Instituto de Educação:
Desaparecida a tradicional escola de preparação do magistério,
transformada, como foi, numa organização inteiramente nova, tanto na
forma como no espírito. Quebrava-se decididamente, o velho padrão francês,
de formação do magistério no ramo dos estudos primários. Destruíam-se as
divisões estanques características desse padrão, entre o ensino normal e o
secundário geral, isto é, entre a habilitação inicial, requerida para os cursos
do magistério, e o curso do ginásio, exigido para matrícula nas escolas
superiores. Eleva-se a formação do mestre, mesmo primário, ao nível dos
estudos universitários. (LOURENÇO FILHO, 2001, p. 34).
Esse fator em muito contribuiu para manter o status da profissão-professor por um
bom tempo, até ser substituída pelos cursos superiores de Pedagogia que, com a Lei 5692/71,
atrairia boa parte das professoras primárias em exercício que buscavam melhorar seus
rendimentos via qualificação. Como já comentado no Capítulo 1, o artigo 39 da Lei 5692/71
estipulava que a remuneração do professor deveria ser de acordo com sua formação, e não
segundo o grau de ensino em que atuasse, o que motivou nossas colaboradoras a buscarem o
diploma de nível superior, a saber, a Pedagogia. O Instituto de Educação Caetano de Campos
foi incorporado à Universidade de São Paulo, criada em 1934. No ano de 1938, o Instituto de
121
Educação foi suprimido e seus professores, finalmente encaminhados para a seção de
Educação da Faculdade de Filosofia da USP. Essa mudança elevava o curso Normal à
categoria de curso superior, que mais tarde seria denominado Pedagogia. (LOURENÇO
FILHO, 2001, p. 22).
É digno de nota que é essa mesma lei que põe fim ao Instituto Estadual de Educação
(IEETC) que em 1976, com a reorganização da rede física de ensino de Franca, transformou-
se Escola Estadual Torquato Caleiro (EETC) e passou a atender apenas o ensino médio,
embora mantivesse o curso de Magistério, porém, em nível de segundo grau. Era o fim do
estatuto que conferia ao professor primário status.
Embora as recordadoras tivessem frequentado colégios, tanto de caráter laico como
confessional durante o curso Normal, ficou evidente em seus depoimentos que havia pouca
diferença no currículo escolar e oculto aplicado nas diferentes instituições de ensino.
As colaboradoras que foram obrigadas a transferir do Colégio de Lourdes para uma
Escola Normal Pública durante o fechamento do curso na instituição religiosa revelam não
terem sentido tanta diferença quanto ao rigor e o ensino.
Não. Não senti não. Porque aqui no colégio na hora da aula é aula normal,
nada de religião. [...] Bom, Colégio de Lourdes um pouco mais rigoroso,
mas minha filha, na minha época no IETC também a coisa era bastante
rigorosa, certo? Não posso dizer pra você que era a mesma coisa, mas lá a
coisa era bem rigorosa também viu. [...] Bem, vamos usar a expressão:
vigiada, controlada. Certo? Nós tínhamos aulas de educação física, a gente
tinha aula de, de desenho... tudo isso, mas tudo dentro das normas, nada de
exagero. (ARQUIVO 15, p. 8-9).
No Colégio de Lourdes havia a hora de se dedicar aos cultos religiosos, mas como
Dona Edna explicou “no Colégio, na hora de aula, é aula normal, nada de religião”. Por isso
explica que não sentiu muita diferença ao transferir de uma instituição para outra.
Outro aspecto que não causava tanta estranheza nas meninas que mudaram de
instituição de ensino, é que muitos dos professores leigos que lecionavam no Colégio de
Lourdes eram os mesmos que davam suas aulas na Escola Normal Livre de Franca, fundada
em 1928.
Em visita de inspeção a então fundada Escola Normal Livre de Franca, o professor
Ataliba de Oliveira, Inspetor das Normais do Estado, pôde constatar que a instituição não
deixava a desejar em nada, aos modelos educacionais estipulados para a época:
122
Na qualidade de Inspetor de Escolas Normais Livres, visitei esta casa de
ensino, confiada á direção do sr Torquato Caleiro e á orientação e
fiscalização do sr prof. Luiz Castanho de Almeida. O Estabelecimento, que
está magnificamente instalado em prédio, conta com 127 alunos dos quais 43
frequentam o 1º ano e 84 o 2º que está dividido em 2 classes. [...] A
escrituração dos Livros oficiais está certa e em dia. Reinam ordem e
disciplina na Escola. [...] Assistindo as aulas de geografia, física, aritmetica,
desenho e trabalhos manuaes, tive oportunidade de trocar com os Professores
e com o sr. Inspetor-fiscal ideias sobre a orientação do Ensino que aliás vem
sendo feito com acerto. (COMÉRCIO DA FRANCA, 1941, p. 5).
Falando sobre a formação que obteve D. Leila contou:
[...] quando eu fiz o normal, nossa formação no normal foi muito, muito boa
mesmo, você aprendia a falar, a lecionar, a ensinar o aluno, a postura e
tudo... então a gente já levou essa bagagem com a gente, ninguém foi, nós
levamos essa bagagem junto. Então a gente já saiu da escola normal com
essa bagagem, essa maneira de agir, esse comportamento e tudo. E a gente
foi levando, quando viu você tava transmitindo pro aluno. [...] De uma
maneira natural, sem pensar. [...] Então a nossa formação, nós tivemos
formação pedagógica, formação sociológica, tudo assim muito, muito bom.
E mesmo a prática, a prática foi excelente. Então nós saímos com essa
bagagem toda, que eu acho que os professores têm essa dificuldade porque
eu não sei se eles têm essa bagagem. A nossa bagagem foi excelente, nós
saímos com tudo pronto já, só chegar... você entrava na sala de aula pronto
pra ensinar, pra tudo. A maneira, porque eu acho que isso aí que é o mais
importante. A motivação, a maneira, verificar, ver o aprendizado, a maneira
de... tudo. Até a maneira de escrever, tudo. Então nós fomos preparadas pra
isso, então eu acho que nós não fizemos nada de extraordinário, entendeu?
Eu acho que nós assim, normalistas, nós não fizemos nada de extraordinário,
apenas levamos a nossa bagagem, que adquirimos na escola. (ARQUIVO
43, p. 11).
É curioso que nesse fragmento a colaboradora demonstra como foi incorporado o
currículo oculto em sua prática pedagógica ao dizer: “você aprendia a falar [...] a postura e
tudo [...]”. A normalista estava pronta para sua tarefa: “E a gente foi levando, quando viu,
você tava transmitindo pro aluno [...] de uma maneira natural, sem pensar.” A “bagagem” que
a colaboradora se refere é a formação integral da normalista: “a motivação, a maneira,
verificar, ver o aprendizado, a maneira de... tudo. Até a maneira de escrever, tudo.” E conclui
como se sentia após concluir o curso: “A nossa bagagem foi excelente, nós saímos com tudo
pronto já, só chegar. Você entrava na sala de aula pronto para ensinar, pra tudo”. Na sua
visão, com o preparo recebido durante a formação escolar, a normalista apenas correspondeu
ao que se esperava dela: “Eu acho que assim, nós, normalistas, não fizemos nada de
extraordinário, apenas levamos nossa bagagem, que adquirimos na escola.”
Mas como era que se constituía tal “bagagem” da normalista durante o curso Normal?
123
O Curso Normal era dividido em pré-Normal, de um ano e o Normal com duração de
dois anos. D. Leila explicou como era dividida a base curricular:
Mas assim eu me lembro muito bem do pré-Normal, porque nós tivemos
professores assim excelentes, sabe. Professores assim concursados, aqueles
que obtinham os primeiros lugares. Então a gente teve uma formação muito,
mas muito boa. Uma base muito... excelente. [...] É. Porque tinha as matérias
todas. Tinha português, matemática né, todas, todas essas matérias, seria
como... depois no Normal é que a gente começou, no primeiro ano é que a
gente começou com as matérias específicas né. (ARQUIVO 30, p. 12).
Além das disciplinas comuns do currículo como Português, Matemática, Geografia,
História, Ciências, Educação Física, havia disciplinas mais específicas, voltadas à educação
da normalista propriamente dita. Dentre estas estavam o Desenho, o Canto Orfeônico [que
como já ressaltado nas entrevistas era muito importante para as normalistas aprenderem os
hinos pátrios], a Caligrafia que ensinava às meninas a “maneira de escrever” (ARQUIVO 43,
p. 11), os Trabalhos Manuais (afinal quem não se tornasse professora certamente seria uma
refinada dona de casa), Higiene (para ensinar os alunos a evitar doenças), Didática e Prática
de Ensino (que envolvia os estágios) e a Psicologia muito citada por todas as recordadoras por
sua utilidade na prática pedagógica.
A metodologia das aulas do curso Normal não diferia muito das demais: são citadas
aulas expositivas e seminários. No caso do curso Normal, parece que as alunas podiam
participar mais das aulas, o que não é citado nos outros níveis de ensino [primário e ginásio]:
É. Então aula expositiva, mas também seminários que nós tínhamos que
preparar e apresentar, certo? Não vou dizer pra você que era aquela aula
expositiva cansativa não. Dava expositiva, mas fazendo perguntas, nos
fazendo colocar exemplos... porque havia bem a participação do aluno, havia
bem. (ARQUIVO 15, p 7-8).
Sobre as aulas de Metodologia ou Prática de Ensino D. Leila comentou:
Porque as matérias do curso né, foram assim muito boas. Dona Olívia, Olívia
Correia, ela também foi professora, foi muito boa. Ela era de metodologia.
Então as aulas práticas que a gente teve muito, foram ótimas, excelentes né.
Então a gente teve uma formação assim não só teórica, mas prática também.
Então as aulas práticas eram muito, muito... eram ótimas. A gente preparava
muito bem as aulas, as colegas assistiam o professor. Então depois havia a
crítica de todo o jeito né, a boa e corrigir alguma coisa também né. Então foi
muito bom. De um modo geral, os professores assim, me deixaram assim
muita coisa boa né, que eu acho que a gente seguiu durante a vida da gente
toda né. (ARQUIVO 30, p. 13).
124
As aulas práticas envolviam regência, ou seja, as alunas preparavam as aulas e as
ministravam, sendo observadas por suas colegas de classe e seus professores que faziam
críticas e davam sugestões sobre onde podiam melhorar. Tanto colaboradoras que cursaram o
Colégio de Lourdes como as que fizeram a Escola Normal de Franca contaram que faziam o
mesmo tipo de estágio11
. A observação das colegas e da professora ou professor era
minucioso, pois havia didática para tudo:
Até a maneira de a gente escrever na lousa era olhado pelas colegas. A gente
tinha a maneira até de pegar o giz pra escrever na lousa. Por exemplo, não
podia escrever de costas assim pros alunos sabe, tinha que ir escrevendo e o
aluno tava vendo a gente escrever de lado e tudo. Assim, a maneira de usar a
lousa, a maneira de escrever. Então tudo, a postura né, a maneira como você
ia andando na sala, como é que tinha que ser né. [...] Tudo, mas tudo...
aquilo que a gente falava, se estava no português correto, a maneira como
que você fazia a verificação do aprendizado né. Como é que a gente fazia a,
como se diz, a aula em si né. Se estava interessante ou não. (ARQUIVO 30,
p. 14).
A postura da normalista devia ser impecável desde a forma como falava, andava, até
como pegava o giz e escrevia na lousa. Em outra entrevista, quando indagada sobre o que os
professores do curso Normal ressaltavam como importante D. Leila voltou a falar sobre a
postura como algo que ficou muito marcado em sua educação profissional:
Olha, era muito importante assim, a maneira de falar, a tonalidade da voz, a
maneira de escrever. Mesmo, além disso, como é que fala? A postura do
professor dentro da sala de aula. Por exemplo, ficar andando na sala e
falando né, num... Então tinha muitas coisas que não podia ser feito. Então
havia muitas regras mesmo pra gente observar pras aulas. E observar assim,
tinha que ter o conteúdo, tinha que ter uma motivação pra poder dar sua aula,
uma verificação depois. Então acho que era tudo muito bem. Eu falo que eu
fiz um curso Normal excelente, excelente. E que fornecia assim, tudo pra
gente. A maneira como você dirigia os alunos, como fazer. Tonalidade da
voz era muito importante também, né. Não gritar, não falar alto. Não sentar
na cadeira. Cadeira, nem não precisava pôr cadeira, porque o professor não
sentava. Também não precisa, não ficava assim andando não. Ele tinha que
manter um lugar certo, assim, na hora que está escrevendo, falando, tá
sempre. E o principal era assim, preparação da aula, né. Você tinha que estar
bem informada do assunto, procurar fazer, motivar e procurar despertar o
interesse do aluno. (ARQUIVO 32, p. 20-21, grifo nosso).
“O professor não sentava” em sala de aula. “Tinha que manter um lugar certo” e dali
ele explicava e observava os alunos. Essa era a postura desejada. Também nesse fragmento
11
Para detalhes sobre como eram direcionadas as observações das normalistas das aulas das colegas, ver anexo
1, elaborado por Lourenço Filho para as alunas do curso Normal, ministrado por ele no Instituto de Educação de
Piracicaba no ano de 1922. (LOURENÇO FILHO, p.71-72, 2001).
125
notamos como a aula devia ser dividida: motivação, conteúdo e verificação ou avaliação. A
professora, “tinha que estar bem informada do assunto” para “ motivar e procurar despertar o
interesse do aluno”. No entanto, é difícil entender como era possível verificar realmente se os
alunos estavam motivados em uma época de disciplina rígida em que era vedado qualquer
tipo de manifestação das crianças. O ensino tradicional baseava-se na ideia de que o aluno
pouco ou nada tinha a contribuir para sua própria aprendizagem. Quem definia a educação era
o professor, o detentor do conhecimento. Esse foi o modelo de educação que as normalistas
receberam e, portanto, reproduziram durante sua prática, com poucas transformações. Essa
visão se manifestou na fala da colaboradora que disse que o Normal foi excelente, pois
ensinou “a maneira como você dirigia os alunos, como fazer.” As crianças do ensino primário
deviam ser dirigidas pelo professor na escola e aprender a obediência para serem dirigidas
pelo chefe nas fábricas e darem uma boa produção.
O modelo de regência tripartido contado pela colaboradora era o mesmo adotado no
Magistério quatro décadas mais tarde, o que posso afirmar por experiência própria, pois como
parte da colônia de normalistas, minha memória se funde à da rede aqui estudada, fazendo
conexões inevitáveis. Isso demonstra-nos a sobrevivência do modelo tradicional em cursos
considerados renovadores como foi o CEFAM (Centro Específico de Formação e
Aperfeiçoamento do Magistério) no qual me formei. Também a proposta de estágio em que as
regências eram acompanhadas por alunas e professores que avaliavam o desempenho da
normalista regente foi um modelo levado para o CEFAM por duas normalistas integrantes
dessa rede, que ali atuariam como Diretora e Supervisora de Estágio. D. Cleuza lembrou esse
fato em uma entrevista:
Pesquisadora: E os estágios, no curso Normal. Existia algum tipo de
estágio?
Cleuza Tosi: Lá tinha o Externato São José, que era de primeira a quarta
série e a gente fazia lá.
Pesquisadora: Como é que eram esses estágios?
Cleuza Tosi: Ah, ficava... era dentro do período mesmo, não retornava não.
Pesquisadora: Assistiam e depois davam as aulas.
Cleuza Tosi: Dava as aulas, a gente ia lá pra ver as aulas das professoras.
Muito pouco viu, bem pouco essa parte prática, muito pouco. Era mais a
gente dava aula pra nós mesmos sabe, na própria sala de aula. E aí fazia as
correções, a professora de prática fazia as correções junto com... ficava o
grupo todo avaliando sabe. Naquele tempo era bom, era isso, que hoje não
tem. Porque a sala toda ficava vendo você dar aula.
Pesquisadora: Lá no CEFAM a gente fez isso.
Cleuza Tosi: Fez.
Pesquisadora: Eu lembro que a gente fez isso na Colméia mesmo.
Cleuza Tosi: Fez.
126
Pesquisadora: Lembra?
Cleuza Tosi: Aí depois todos davam aquela contribuição: “olha, eu acho que
ela poderia ter feito isso quando ela falou aquilo...”. Isso ajudava muito, viu.
Sabe por quê? Hoje muitas pessoas ainda hoje não aceitam correções,
críticas... se acham assim muito poderosas, que não erram. Mas a gente
aprende desde esse tempo que é preciso ouvir as pessoas, que as coisas que
nós não fazemos corretamente nós podemos melhorar né, dessa forma.
(ARQUIVO 12, p. 14-15).
As aulas de Psicologia sempre apareceram na evidência oral como disciplina marcante
do currículo.
Foi a parte da psicologia. Eu tive uma professora que foi de psicologia da
educação que ficou marcada para mim. Então ela sempre falava: “gente, o
ser humano é uma pessoa assim. Porque você sabe que o homem não nasce
homem, ele se torna homem através da educação”. Então ela sempre insistia
com a gente essa parte assim psicológica da pessoa, certo? E isso me
influenciou muito mesmo. (ARQUIVO 21, p. 2).
A importância dada à psicologia na educação talvez se deva ao fato dos estudos na
área evoluírem bastante na passagem do século XIX para o XX e haver uma tendência na
educação de buscar nela, soluções para os problemas no ensino. A visão da professora de
psicologia de que “o homem não nasce homem, ele se torna homem através da educação”,
vinha justificar tanto as instituições educacionais em si como a própria profissão da
normalista. Era ela que se incumbia da tarefa de transformar o homem, de lhe dar a
consciência de si. Essa visão conferia à normalista uma posição privilegiada, de poder, de
transformação. Nesse sentido é possível afirmar que as normalistas, após receberem toda essa
formação, podiam se considerar e eram consideradas pela sociedade como as “guardiãs do
saber”, detentoras do conhecimento. D. Cleuza lembrou-se de seus professores e contou:
[O professor era] O dono do saber, uma pessoa distante da gente porque
tava em cima, assim, feito um palco né. Tinha um tablado alto né, com uma
mesa onde ele ficava. Respeito. Vixe, ninguém podia contestar um professor
não, dono do saber mesmo, e da verdade. Por isso que foi muito perigoso.
Porque pra um aluno às vezes uma verdade que não era verdade ficou como
verdade né. Não só no conhecimento. Hoje não, hoje o aluno pode
conversar, curtir um pouco né. (ARQUIVO 12, p. 15).
Não era à toa que o professor antigamente se posicionava em um tablado: era
necessário reforçar aos alunos a sua posição superior, como “dono do saber mesmo, da
verdade”. Ao comentar sobre a forma como o professor é visto hoje, desabafou:
127
Eu tive, acho que foi a semana passada, nós fomos conversando, eu
conversando num grupo diferente que não me conhecia e eu falei, “não
quando eu me casei eu não fiquei aqui não, eu fui embora. Meu marido era
professor, eu e ele”. A pessoa falou assim, “vixe!”. Falou isso “vixe!”.
Entende que situação que nós ficamos? E hoje em dia assim, parece
descartável. Em escola pública assim: quando tá interessado, daqui um
pouquinho manda embora. Vai retrocando. (ARQUIVO 42, p. 6-7).
Atualmente, grupos sociais privilegiados com quem a colaboradora convive, pensam
como um casal de professores podia viver com tal salário. É perceptível uma mudança nos
valores sociais e a colaboradora conclui: “hoje em dia [o professor] parece descartável”. Em
nossa sociedade a tecnologia tomou o espaço que antes era do professor. A criança não
precisa mais tanto da escola para “vencer na vida” porque se ela aprender os jogos de
videogame ou da Internet conseguirá adquirir as habilidades básicas para atuar no crescente
mercado de novas tecnologias. O professor, antes tão valorizado, agora tem se tornado
obsoleto.
Na visão da colaboradora, a decadência da profissão e da posição anteriormente
gozada pelas normalistas se encontra no descuido dos governantes:
É. Mas os nossos governantes, eles descuidaram disso aí viu. Professor tinha
que manter aquela posição que ele sempre teve né. Como é que falava? Era o
detentor do saber né. Saber agora, ninguém acredita! Infelizmente. Você vê,
a Edna é mais ou menos mais velha que eu. Bastante tempo, mas da mesma
época. Vivemos juntas lá, e a dela, a educação dela acho que foi mais rígida
que a minha viu. [...] Mais rigorosa, bem mais rigorosa. E eu fico pensando
como é que ela aceita essa mudança porque até aí na faculdade, até hoje os
alunos dela vão pra aprender mesmo, que é a postura dela, que ela ainda
exige. (ARQUIVO 27, p. 20).
O saudosismo do discurso parece-nos inevitável e soa como um apelo: “[O] professor
tinha que manter aquela posição que ele sempre teve né.” E pergunta: “Como é que falava?”.
Respondendo em seguida: “Era o detentor do saber né. Saber agora, ninguém acredita!
Infelizmente!” As conjugações no passado e no presente demonstram a sobriedade da
conclusão da colaboradora.
No entanto, acreditarem que eram detentoras do saber motivou as normalistas agir de
acordo com o que se esperava delas: uma prática pedagógica voltada para inculcação de
valores e posturas apropriadas ao trabalho fabril à clientela que por suas mãos passassem.
É sobre essa prática pedagógica que discutiremos no capítulo que se segue.
128
CAPÍTULO 3 – A PRÁTICA PEDAGÓGICA DA NORMALISTA E A PRODUÇÃO
DO TRABALHOR NOS BANCOS ESCOLARES
3.1 As Primeiras Experiências Pedagógicas: Adaptações e Transformações
Após concluírem o curso Normal, as jovens normalistas tomavam dois caminhos, que
embora fossem distintos, não se anulavam necessariamente: umas logo se casavam e
abandonavam a carreira por um período ou toda a vida e outras procuravam uma cadeira,
como se chamava na época o cargo de professor.
No caso da rede aqui pesquisada todas as colaboradoras ingressavam na profissão
assim que se formavam. D. Edna nos contou que a melhor aluna da turma saía com cadeira
garantida, como se fosse concursada, para exercer a função de professora primária:
Não. Eu não tinha idéia. Quando eu me formei... aliás, naquela época bem,
quem formava em primeiro lugar no Estado ganhava uma cadeira, e nós
estávamos em cinco disputando o primeiro lugar. Infelizmente eu, na parte
em que nós vamos dizer assim artística... não desenvolveram isso em mim,
então eu pra fazer um desenho, porque nós tínhamos o desenho pedagógico
na lousa. Aí até a professora chegou perto de mim e disse: “ai Edna, melhora
um pouquinho o desenho...”, eu virei pra ela e disse “não tem jeito”. Então
eu perdi a cadeira premio bem, por causa disso... mas logo no ano seguinte
não precisava de concurso, eu já ingressei com a nota do diploma. Então eu
formei em quarenta e sete e em quarenta e oito eu comecei a trabalhar já,
certo. (ARQUIVO 15, p. 14).
As alunas que não conseguiam a “cadeira prêmio”, por não terem aproveitamento
suficiente para lhes conferir o “primeiro lugar no Estado”, ingressavam “com a nota do
diploma”, ou seja, eram classificadas de acordo com seu rendimento durante o curso, o que
lhes garantia uma escola para lecionar.
D. Leila contou como funcionava o concurso por pontos:
Depois eu vim e ia ter um concurso né, de escolha. O concurso era por
pontos, então, pontos do diploma e pontos dos anos que a gente trabalhou,
ganhava pontos né. Então juntou pra poder fazer a classificação. A gente
entrou em concurso pra ingresso né, não tinha prova não, era só por pontos e
como aqui na nossa região quase que não criava escolas, eram poucas as
escolas, e as escolas já estavam com professores e tudo. Então quase que a
minha turma toda né, a gente tinha se formado fazia um ano e pouco, criou-
se uma delegacia de Votuporanga, e lá era sertão naquela época, São José do
Rio Preto e depois pra lá era tudo, era assim sertão. Mas criou a delegacia,
porque era tudo em São José do Rio Preto. Então naquele ano criou a
129
delegacia de Votuporanga que era mais longe e muitas vagas. Escolas pra
tudo quanto é lado lá né. Então nós optamos na época, tinha que indicar a
região. Então se a gente indicasse Franca, tinha que ser só Franca. Então, e
como aqui não tinha [...] Com poucos pontos... então nós indicamos a região
de Votuporanga. E fomos chamadas pra escolher e tudo né, e só podia
escolher aquela região mesmo. [...] E aí que eu ainda tive sorte assim, eu
falo que eu tive sorte, porque eu não fui muito lá pro sertão não. Porque em
Monte Aprazível, que é uma cidade que fica perto de São José do Rio Preto,
mas já pertencia... uma cidade já bem desenvolvida, sabe? Só que não fiquei
na cidade, fiquei numa escola isolada, que tava perto e eu fui pra essa escola.
(ARQUIVO 30, p. 18-19).
Neste fragmento percebemos que não havia escolas suficientes na Região de Franca
para absorver o número de normalistas formadas pela Escola Normal Oficial. Era preciso que
as normalistas escolhessem outra delegacia de ensino e aos poucos pedissem remoção,
conforme a criação de novos Grupos Escolares e respectivas cadeiras na região de Franca.
Entretanto, para conseguir uma classificação razoável nos concursos por pontos,
juntavam-se os “pontos do diploma e os pontos dos anos que a gente trabalhou”, contou D.
Leila, ou seja, no início de carreira as normalista trabalhavam como substitutas, quase sempre
em escolas rurais.
Muitas viajavam todos os dias para dar aulas, em precárias estradas de terra, ocupando
boa parte do seu tempo com o deslocamento. D. Dulce lembrou como foi o progresso nos
meios de transporte por ela utilizados para este fim: “Eu, na escola de roça eu ia de trole [...]
De trole é uma charrete assim. [...] Depois ia de jipe. Mudou, melhorou.” (ARQUIVO 34, p.
1).
D. Edna contou seu trajeto:
Não, não... morava aqui. Eu pegava o ônibus de manhã que ia pra Ribeirão
Preto. Então quando chegava na fazenda, lá no ponto eu descia e tinha um
aluno me esperando. Eu ia à cavalo. [...] Do ponto da estrada até lá na
fazenda, certo? E dava aula e tal. Aí ficava esperando um determinado
tempo porque aí o ônibus ia de volta a Ribeirão, aí voltava novamente,
pegava o ônibus e vinha pra Franca. [...] Todo o dia. [...] Claro. Não é fácil
não. (ARQUIVO 21, p. 9).
Como as outras colaboradoras, D. Dulce passou por diversas fazendas até transferir-se
para uma escola pública de Franca, criada em 1970:
De primeiro a gente pegava escola de roça. Então eu fui na que se chamava
Santa Cruz e custei vim. Porque eu efetivei né, escolhi a Santa Cruz perto de
Patrocínio. Santa Cruz, era uma Santa Cruz mesmo. [...] Você nem pode
imaginar. Eu nem vou te contar. [...] Porque era uma novela [ÊNFASE] Era
130
uma novela. Mas os meninos eram inteligentes. [...] Claro. Sempre
aprendiam muito, bom aprendizado, aprendiam, tudo gente assim, que queria
aprender. Um amor. Depois eu fui pra uma fazenda... teve outra fazenda que
se chamava São Luís, dos Couto Rosa aqui de Franca. [...] É. Fernando
Couto Rosa. Fazenda São Luís, os meninos muito bons também. Aí fiquei
um ano também. Depois eu fui pra Restinga. Não. É, eu era efetiva, aí eu fui
pra Restinga, fiquei quatro anos lá. Fui pra Restinga. [...] E depois pro
Suzana Ribeiro. Aí eu não saí. [...] Ah eu fiquei uns bons, uns 20 anos.
(ARQUIVO 34, p. 1-2).
D. Edna também passou por duas fazendas: a Limoeiro, perto de Marília e a Boa
Esperança na estrada velha de Batatais. Depois de alguns anos retornou à Franca para lecionar
num dos primeiros grupos escolares de Franca, o Caetano Petraglia (1933). (ARQUIVO 21, p.
9).
Eram nas escolas mistas de roça, onde em uma única classe se ensinava crianças em
todos os níveis de ensino, que as normalistas adquiriam experiência com a docência e os
pontos necessários para conseguirem ingressar no Estado como professoras concursadas.
D. Cleuza contou-nos sobre 1ª experiência em escola de fazenda:
A minha primeira experiência de trabalho foi, Nossa Senhora, eu passei
muito aperto. Eu, parece que eu não sabia fazer nada... e tinha que viajar, era
uma escola de roça, meu pai foi junto, não quis deixar porque tinha que
andar um pedaço a pé e ele teve medo. E ele criou a gente muito assim,
agarradinha. E eu não sabia, eu tinha que alfabetizar. Era primeiro com
terceiro ano numa sala só e eu não sabia de método, eu não sabia de nada
mais, eu não sabia como aplicar. Olha, foi um sufoco. (ARQUIVO 12, p.
16).
Como vimos neste relato, nem sempre as normalistas se sentiam preparadas para
enfrentar a uma realidade tão complexa quanto às escolas multiseriadas de fazenda. “Parece
que eu não sabia fazer nada [...] E eu não sabia, eu tinha que alfabetizar”. Também havia a
dificuldade de acesso à fazenda que “tinha que andar um pedaço a pé”. Por isso, a
colaboradora explicou que o pai “teve medo” e foi com ela. “Ele criou a gente assim,
agarradinha”, explicou a colaboradora justificando os cuidados do pai.
As classes das escolas de roça além de mistas (com alunos de 1ª a 4ª séries do ensino
fundamental) eram numerosas, o que exigia das normalistas certa habilidade na utilização de
métodos de ensino que possibilitasse um domínio sobre o grupo de alunos e aproveitamento
dos mesmos. D. Leila relatou como fazia para ensinar alunos de várias séries ao mesmo
tempo:
131
Ah, devia ter uns trinta e cinco, quarenta... por aí, mais ou menos isso. [...] Então, dava exercícios, ocupação pra uma série, e a outra né. Levava às
vezes também algumas fichas e organizava fichas com alguns exercícios né,
sobre aquela aula que tinha dado, qualquer coisa, ou questionário... enquanto
uma turma fazia, a outra a gente era mais direto. (ARQUIVO 30, p. 16).
Assim, alternava-se aula expositiva com exercícios de fixação do conteúdo estudado,
como maneira de driblar as dificuldades com a clientela diversificada, o que não fugia aos
moldes do ensino tradicional, também aplicado em grupos escolares de classes regulares.
Onde quer que fossem lecionar as normalistas eram tratadas com muito respeito. D.
Leila relatou como foi sua experiência quando ingressou na Delegacia de Ensino de
Votuporanga como professora efetiva:
E aí que eu ainda tive sorte assim, eu falo que eu tive sorte, porque eu não
fui muito lá pro sertão não. Porque em Monte Aprazível, que é uma cidade
que fica perto de São José do Rio Preto, mas já pertencia... uma cidade já
bem desenvolvida, sabe? Só que não fiquei na cidade, fiquei numa escola
isolada, que tava perto e eu fui pra essa escola. [...] Mas assim, tinha que
pegar o ônibus pra ir e tudo. A escola, aí depois lá, pra ficar, pra arrumar
uma casa pra hospedar a gente né, e o professor naquela época também era
muito bem considerado, então as pessoas procuravam ajudar, fazer o melhor
possível. E mesmo na escola, lá, quando chegamos, por exemplo, lá em
Monte Aprazível pra tomar posse e tudo, o diretor lá, fez questão de ir com a
gente, pra levar a gente na escola. Então eles davam muita assistência pra
gente. Mesmo o pessoal que morava. E como era assim, não tinham lugares
próximos da escola pra morar, eu fiquei morando num sítio que ficava a um
quilometro da escola. Então eu andava todo dia um quilometro pra ir na
escola. Desse sítio até [...] É. Pagava [...] Era uma casa de família, pagava e
tudo. (ARQUIVO 30, p. 19).
Embora os pais apoiassem a filha ingressar na profissão e isso significasse sair da
cidade e ir morar fora, vemos que lhe foi dada toda a assistência: “quando chegamos [...] lá
em Monte Aprazível pra tomar posse e tudo, o diretor lá, fez questão de ir com a gente, pra
levar a gente na escola. Então eles davam muita assistência pra gente.” O status da profissão
ajudava as normalistas a se sentirem mais seguras “pra arrumar uma casa pra hospedar a gente
né, e o professor naquela época também era muito bem considerado, então as pessoas
procuravam ajudar, fazer o melhor possível.” Quando havia necessidade de morar fora da casa
dos pais, as normalistas procuravam uma pensão: “Era uma casa de família, pagava e tudo.”
Assim as moças protegiam sua boa reputação.
É digno de nota que as normalistas faziam parte da primeira geração de mulheres da
elite de Franca e região que saíram do lar e dos afazeres costumeiramente a elas destinados,
132
para atender a demanda do mercado de trabalho. Esse fenômeno social se fazia presente em
todo o país em meados da década de 50.
Entretanto, cabe salientar que o trabalho feminino para as mulheres provenientes de
grupos sociais abastados, era visto com estranheza e até certa intolerância pela elite, arraigada
aos costumes tradicionais. D. Leila comparou a mentalidade do pai, homem de negócios e
imigrante, com a sociedade de modo geral, a respeito desse assunto:
Então a cabeça dele era diferente. Ele valorizava o estudo. Ele falava assim
que a maior riqueza que podia deixar pra nós era o estudo. [...] Não é? Então
pra época era muito difícil né. [...] Então eu sempre assim, considerei meu
pai uma cabeça muito boa né. Pensava muito bem e tudo. Então quando eu
formei e, ele fez questão que eu fosse trabalhar. [...] Ele não se opôs de jeito
nenhum. Foi comigo, me levou até lá onde tinha que ir... Tudo, sabe? Então
ele não se opôs. E como havia muitos aí que os pais não deixaram. E muita
gente que ainda falava pra mim: “nossa! Mas seu pai vai deixar você sair!”.
Então foi um [...] [para a sociedade era uma coisa] Escandalosa mesmo.
Era escandalosa. [...] Não tinha isso né. [da mulher sair para trabalhar]
[...] Mas pros meus pais, não. [...] Não teve obstáculo nenhum. [...] [a mãe
também aceitou] Nossa... tudo. Muito boa, cabeça muito boa. Então eu me
dediquei mesmo, acho que o estudo era o que eu gostava, é o que eu fiz.
Acho que o estudo era o que eu gostava, é o que eu fiz, eu fiz o curso que eu
gostava, que eu gostaria mesmo de fazer. (ARQUIVO 31, p. 8-9).
É possível notar, nesse fragmento, a mentalidade liberal presente no discurso do pai da
colaboradora, que tinha na educação uma via de ascensão social: “Ele falava assim que a
maior riqueza que podia deixar pra nós era o estudo.” De modo geral, mas principalmente
para o imigrante, o diploma funcionava como um ingresso, que permitia o acesso das futuras
gerações a uma posição mais privilegiada na sociedade em que se inseria. Daí o incentivo
dado tanto ao estudo como também o ingresso na profissão, que abriria as portas para as filhas
da elite econômica perpetuarem seu status quo na sociedade.
Ao se casarem, as normalistas entrevistadas continuaram trabalhando. Formou-se
naquele momento um novo perfil de família, em que o homem continuou sendo o chefe da
casa, quem decidia o destino dos familiares, porém, mais liberal, ao dar ouvidos às sugestões
da esposa, que agora já se permitia opinar e não simplesmente silenciar, como antes.
D. Leila, assim que casou, contou-nos que foi para Uberaba que, por ser cidade do
Estado de Minas Gerais, não lhe dava condições de continuar a exercer o cargo efetivo,
conquistado como funcionária pública do Estado de São Paulo. Por isso, pediu afastamento
sem vencimentos por dois anos, até decidir o que ia fazer:
133
[...] porque como eu comecei a trabalhar eu era solteira, eu era solteira
ainda. Eu era solteira, já era, já tinha prestado concurso, já tinha escolhido.
Eu era efetiva antes de casar. Mas eu fui porque eu tive apoio dos meus pais.
[...] Quando eu casei, eu encontrei uma barreira. Tanto é que eu falei que eu
tirei um afastamento. [...] De dois anos sem vencimentos devido o
casamento que foi uma barreira. Uma que eu fui morar noutro Estado e não
tinha nem jeito d‟eu trabalhar né. E como aconteceu? Com a situação que a
gente tava assim, eu fui assim analisando, que eu devia voltar a trabalhar,
que era melhor para nós. Aí meu marido aceitou, a família dele não. Tanto é
que botou obstáculos e tanta coisa, mas assim mesmo a gente acabou vindo e
ficando e trabalhando. (ARQUIVO 32, p. 20).
Como podemos observar, a colaboradora contou que com o tempo foi “assim
analisando” “que devia voltar a trabalhar [...] que era melhor” para o casal e o marido aceitou
a sugestão. Esse era um comportamento estranho à geração anterior à rede que, como já
vimos, era formado por mulheres totalmente submissas aos seus maridos.
Outro aspecto interessante relatado pela rede de normalistas foi sobre a carga horária
da professora primária, que permitia conciliar os papéis de esposa, mãe e profissional. O
trabalho para as mulheres de grupos socialmente privilegiados não tinha o caráter de
sustentação das necessidades do lar como era o caso da mulher operária. Era possível até
manter empregadas que auxiliassem nos afazeres domésticos, para que pudessem se dedicar
às aulas. No caso das famílias mais abastadas terem empregados que cuidavam da casa já era
tradição, não interferindo no trabalho das normalistas. D. Leila contou como organizava seu
tempo:
Era coisa nova, era nova [sair para trabalhar fora]. [...] Não tinha, era
muito difícil. Não podia fazer isso. Então eu sou dessa geração que nós
lutamos pra poder trabalhar. Só que a gente lutou pra trabalhar, mas pra
trabalhar um período só. Ninguém queria ficar o dia inteiro fora de casa. E a
gente tinha a responsabilidade de casa. Ninguém dividia nada com a gente.
Você podia ter uma auxiliar em casa, qualquer coisa, mas o homem, o
marido, tava no trabalho dele. Ele não vinha pra fazer comida em casa, nem
cuidar de filho. Não tinha nada disso. Então a gente tinha que pensar nesse
sentido. Então, se nós lutamos para trabalhar fora, mas era aquele trabalho
assim, um período, pra trabalhar fora de casa. [...] [não deixava os filhos] A Deus dará. Então, o que eu senti, por exemplo, que eu fiz. Como tava
começando, então eu procurava assim, uma maneira de ficar fora de casa só
naquele período. Quatro horas fora de casa né, por exemplo, das 8:00 ao
12:00 ou senão das 1:00 as 5:00. Então eu sempre preferi o período da tarde.
[...] À tarde. Por quê? Porque eu queria ficar em casa de manhã, porque era a
hora dos filhos ter levantando, pra cuidar da alimentação, fazer a comida,
fazer o almoço. Então já cuidava daquilo. Chegava no período da tarde já era
mais fácil você deixar com alguém né. (ARQUIVO 32, p. 17).
134
Após vencerem os primeiros obstáculos do início de carreira discutidos até agora –
como o pioneirismo do trabalho feminino, dos grupos economicamente abastados, a saída de
casa para trabalhar em outra região sendo mulher, as dificuldades de acesso e permanência
nas escolas de fazenda e grupos isolados – as normalistas enfrentaram lutas mais sutis no
cotidiano escolar, imprescindíveis para a sobrevivência delas como “guardiãs do saber” e do
sistema educacional como o fomentador do progresso da nação.
Essa ideologia empregada em suas mentes durante toda a formação familiar e escolar
devia ser reimpressa, como verdade absoluta, nas mentes de seus alunos que formariam o
grosso da população trabalhadora no futuro. Os métodos de ensino e o currículo oculto
tornaram-se instrumentos eficientes para a transmissão dessas ideias e valores, difundidos
amplamente pelos grupos hegemônicos dominantes.
O que propomos agora, através das evidências orais captadas da rede de normalistas, é
analisar como, no fazer pedagógico do cotidiano escolar, conceitos e valores dos grupos
sociais que detinham o poder político e econômico foram reproduzidos no seio da escola
primária por meio do currículo oculto.
3.2 A Metodologia e o Currículo Oculto em Ação – A Produção do Trabalhador
A educação durante toda a história sempre esteve associada ao poder. Como vimos no
Capítulo 1, desde a época do Brasil Colônia a educação foi extensamente utilizada pelos
jesuítas como forma de controle dos nativos que aqui viviam, com certa medida de sucesso,
perpetuando-se como instrumento eficaz de dominação.
Com a introdução do sistema capitalista, a escola continuou sendo de caráter dual,
oferecendo uma formação para os filhos dos grupos sociais dominantes e outra para os filhos
dos trabalhadores. Até agora falamos sobre a educação das filhas da elite, as normalistas que,
ao exercerem sua função, dariam sustentação para o outro modelo educacional – o ensino
público elementar para os pobres, que comporiam o exército de mão-de-obra para o setor
industrial em franco crescimento na região de Franca no período estudado.
Neste contexto, a escola primária devia ensinar aos alunos não só os saberes
sistematizados, acumulados através das gerações; devia ensiná-los, sobretudo, as habilidades
fundamentais para sua adaptação ao mundo do trabalho. Oder José dos Santos em sua obra
Pedagogia dos Conflitos Sociais observou:
135
O aumento da instrução, ou melhor, o domínio das três habilidades – ler,
escrever e contar – responde muito mais às exigências impostas pela
complexidade da vida urbana [...] As unidades de produção, consoante a sua
organização do processo de trabalho em inevitável divisão hierárquica de
tarefas, exigem, ao lado de uma grande massa de trabalhadores pouco
qualificada, um quadro de técnicos qualificados. E é justamente o
atendimento hierárquico dessas qualificações pelo sistema de ensino que as
unidades produtivas reclamam. (SANTOS, 1992, p. 56).
O currículo escolar das instituições educacionais se incumbiu da tarefa de ensinar as
habilidades essenciais exigidas dos trabalhadores, que em sua maioria, abandonaram a vida no
campo e vieram tentar a sorte na cidade. Saber ler, escrever e contar era fundamental para sua
adaptação à cidade, cheia de símbolos e códigos escritos que precisavam dominar.
Já o currículo oculto que devia ser transmitido de maneira sutil, ensinou desde cedo às
crianças, futuros operários, a obediência, o respeito à hierarquia, a ordem, a disciplina, a
diligência no cumprimento das tarefas que moldariam o comportamento desejado no interior
das fábricas.
Nas entrevistas com a rede de normalistas ficou evidente que as colaboradoras não
tinham consciência de sua função na instituição de ensino como transmissoras de um
currículo oculto que fazia parte delas, de suas crenças, de sua cultura como grupo social e que
servia como poderoso instrumento de perpetuação da dominação. Neste sentido, podemos
afirmar que esse era um fator importantíssimo para a eficiência de sua prática pedagógica –
reproduziam conceitos internalizados durante anos de formação familiar, religiosa e escolar e,
por isso, acreditavam neles e os defendiam.
Isso ocorreu porque as normalistas, como qualquer outra categoria profissional, foram
esvaziadas de seu conteúdo de humanidade ao entrarem na instituição escolar e perderem sua
autonomia produtiva. Esse processo de alienação iniciado desde a educação infantil recebida
no lar não permitiu que as mesmas se atentassem ao fato que sua função não seria tão nobre
quanto era propagado pela sociedade.
Em diversos fragmentos da evidência oral notamos como se deu a reprodução dos
valores pertencentes aos grupos hegemônicos na prática pedagógica. Tomemos como
exemplo as comemorações cívicas. Como vimos no capítulo anterior, tais comemorações
eram realizadas com muita pompa durante os anos em que nossas normalistas eram apenas
estudantes, engendrando nelas valores como patriotismo, civismo e ordem. Quando
questionadas sobre sua prática pedagógica, num período em que o Brasil estava submetido à
ditadura militar e esses valores eram ressaltados sobremaneira, percebemos que, para as
normalistas, a transmissão dos mesmos ocorria de forma natural, quase imperceptível.
136
O Cristina, eu acho que não houve assim... [uma imposição da ditadura
com respeito à comemorações das datas cívicas] é lógico que a gente
tinha com mais rigor e tudo, mas que eu me lembre, não coisas diferentes.
Porque desde que eu me entendo por gente, tanto como estudante, tanto
como normalista e como já professora, a gente fazia o desfile... no Colégio
de Lourdes então você precisava de ver como é que a gente preparava pra
esses desfiles. Eu não sei e há alguma, vamos dizer assim, imposição maior
na ditadura. [...] Já havia uma tradição. (ARQUIVO 28, p. 4).
Outra colaboradora comentou a importância das comemorações cívicas para a
inculcação do respeito, valor importante a ser cultivado pelo trabalhador que deve reconhecer
os símbolos e sinais de comando:
[SILÊNCIO] Olha, na época, eu acho que tinha um valor muito grande
naquilo que formava o espírito cívico, né. Eu acho que trazia pro, uma
formação cívica muito importante. Eu acho que sempre que se fala num
assunto, que se fala bem, que aborda um assunto de uma maneira muito
significativa e tudo, não deixa de trazer um benefício, principalmente pra
formação cívica que eu acho que é muito importante o patriotismo. Então, o
orgulho da terra, orgulho da Pátria, né. Quando se falava em bandeira, o
respeito pela bandeira. Então as cores, por exemplo, da bandeira, o
significado, aquilo tudo não deixa de tocar nas pessoas né, os alunos de
modo geral. [...] É porque olha, pra começar: é claro que eu acho muita
diferença e que eu sou mais a favor a outra, as coisas como eram feitas
antigamente. Mas hoje eu vejo assim, que falta o principal, que ta faltando o
respeito. [...] Eu acredito que é. Então, o respeito a tudo. No fim você vai
olhar, abrange tudo né. Não só os símbolos da Pátria, as coisas, mas a vida
de modo geral. Por exemplo, a maneira como os professores eram
respeitados na época. Por exemplo, toda a época que eu trabalhei eu não tive
problema nenhum, aluno desrespeitando nem respondendo. Nunca tive esse
problema. Então, isso aí é uma coisa muito importante. E a gente é o respeito
dos filhos com os pais, dos alunos com os professores, com a Pátria, com os
tudo. Então, hoje eu acho que falta às vezes o respeito. Por quê? Você às
vezes, muita coisa não pode nem ser falado, porque não é aceito ou é
recebido de uma maneira crítica, ou... (ARQUIVO 32, p. 14-15).
Como bem observou a colaboradora, a formação do “espírito cívico” influenciaria no
respeito que o indivíduo demonstraria em todos os aspectos da vida: “o respeito dos filhos
com os pais, dos alunos com os professores, com a Pátria, com tudo” e podia se completar, do
trabalhador com o patrão, do operário com o chefe e assim por diante.
O espírito cívico formado durante anos de educação escolar das normalistas foi
reforçado no curso Normal. Em um Programa de Prática de Ensino datado de 1922, o então
professor da Escola Normal de Piracicaba, Lourenço Filho arrolou sob o título “Metodologia
especial”, o que chamou de “orientações didáticas”. Dentre estas podemos citar:
137
j) Metodologia da História. A história pode ser ensinada no curso primário?
Como a criança chega à noção de sucessão do tempo. Partir do conhecido: a
história do aluno, da família, da escola, da cidade, do bairro ou da fazenda. A
história do país pelos fatos mais recentes. Banimento absoluto do ensino de
cor. A história e o patriotismo. Marcha do ensino.
k) Metodologia do Ensino Moral e Cívico. Importância deste ensino nas
primeiras idades. A formação do cidadão e do homem social. O civismo não
pode ser ensinado só por fórmulas, pelo culto abstrato de símbolos, mas,
sim, basear-se no conhecimento do país, pela geografia, pela história e pelo
idioma nacional. O escotismo como auxiliar do civismo. O problema moral
na escola. Responsabilidade do professor primário. A lição do exemplo.
n) Metodologia da Música. Importância do canto coral como fator
dinamogênico no ensino. Como preparar o canto e como fazê-lo cantar. A
popularização dos hinos patrióticos. Marcha do ensino. (LOURENÇO
FILHO, 2001, p. 67, grifo do autor).
Nesses três fatores podemos ressaltar alguns pontos que aparecem na evidência oral
como preponderante na formação e, consequentemente, na prática da normalista.
O primeiro diz respeito à educação moral e cívica que devia estar presente no currículo
desde as primeiras séries do ensino fundamental. O método principal destacado para atingir a
“formação do cidadão e do homem social” é a “lição do exemplo”, ou seja, é da
“responsabilidade do professor primário” ensinar através da sua própria postura, que devia ser
irrepreensível, como já analisado no capítulo anterior, ao tratarmos a questão do professor
modelo.
No item anterior, que trata da Metodologia da História – disciplina completamente
banida do currículo nos anos da ditadura militar, no período em que nossas colaboradoras
exerceram boa parte do magistério – observamos que devia ser ressaltado a “A História e o
Patriotismo”, o que não fugia muito aos moldes do que, mais tarde, seriam impostos nas
disciplinas de Educação Moral e Cívica e OSPB.
Na Metodologia da Música – como já vimos em relatos anteriores de colaboradoras
que usavam largamente esse recurso com seus alunos – o programa de ensino da escola
Normal destacava a importância de „popularização dos hinos patrióticos‟, através das aulas de
canto orfeônico. Outros fragmentos citados no Capítulo 2, em que as normalistas justificaram
a importância da matéria de canto para aprenderem os hinos pátrios, que seriam ensinados
mais tarde a seus alunos, reforçam o conceito que este programa de ensino, embora datado de
1922, era um modelo válido mesmo na formação de nossa rede, duas décadas depois.
Por outro lado, notamos que estes valores foram tão fortemente arraigados durante a
formação de algumas normalistas que, no decorrer de sua prática pedagógica houve uma
dificuldade de adaptação e abertura à diversidade cultural, que atualmente propõe o respeito
aos alunos que não participam de comemorações cívicas por questão de consciência.
138
Bom o civismo, eu sou fruto disso, daí até, né. Porque nossa, eu com o Hino
Nacional e outras coisas mais, os símbolos nacionais, a vivência do amor à
Pátria, isso eu peguei muito. [...] Eu peguei muito. Eu tive até mães que
proibiram filhos de participar porque não aceitavam o culto à Pátria e, o
culto à bandeira, que culto só pode ser feito à Deus, sabe? Deixa eu ver que
mais que eu, nesse tempo na educação. Era autoridade, né. Que eu sou fruto
desse regime aí, autoritário. Aonde eu te falei que precisa muito esforço pra
mudança, sabe? Muito esforço. [...] Como diretora já passou um pouco, já
tinha passado um pouco. Mas o ranço fica, né. [...] O ranço fica. Muitos
gostam. Interessante, falam: “Ah, não pode deixar escolher muito não,
porque ninguém sabe o que quer, tem que...” (ARQUIVO 41, p. 3-4).
A colaboradora comentou sobre o “ranço” que a acompanhou durante sua carreira
profissional por ter sido, em suas palavras, “fruto desse regime aí, autoritário” e concluiu que
“muitos gostam”, ou aceitam o autoritarismo, porque assimilam a ideologia dominante: “Ah,
não pode deixar escolher muito não, porque ninguém sabe o que quer, tem que...”.
Em outra entrevista, anterior a essa, a mesma colaboradora descreveu como eram
ressaltadas as datas cívicas quando lecionava e, posteriormente, quando se tornou Diretora de
escola:
Amor à Pátria. [...] Isso aí foi marcante na minha vida. E marcou, tanto é que
a minha vida profissional eu sou lembrada muito por conta disso, muito.
Quando eu estava em sala de aula nós plantamos aquele grupo lá no Caetano
Petraglia de estar ensinando os hinos sacros. Que nós tínhamos que dar aula
de música, né. E na nossa programação nós tínhamos o toca CD direitinho
né, e uma emprestava pra outra e até a criança aprender a ler a letra e a
música de todos os hinos a gente fazia, por exemplo, lá no Caetano a gente
fazia comemorações cívicas. Aí só quando eu fui pro Caetano Petraglia, não
só essa parte, mas a gente trabalhava. Hoje eu não vejo isso, porque quando
tinha Educação Moral e Cívica a meninada já seguia vendo isso. OSPB que
também foi tirado. Então a gente trabalhava até o quarto ano, tinha aula
mesmo, o uso da bandeira. Tinha aula assim sobre os símbolos da pátria e
coisas mesmo. A gente sabia nome de governador, de presidente e de mais
todos os chefes da nação assim, a gente sabia os nomes todos na ponta da
língua. Pergunta quem sabe um ministro, uma coisa, um secretário? A gente
sabia tudo, meus menininhos. Era uma gracinha. E quando eu fui pro
Caetano [escola], pro Coronel [escola] como diretora, eu instituí o
momento cívico. [...] Era uma vez por semana, na sexta-feira. Então, e aqui,
quando eu vim pra cá a gente também fez isso, faz até hoje, no Alto Padrão
[escola particular]. Fica cada semana um professor responsável, tem um
tema, um tema de patriotismo ou de formação né, de formação tipo valores.
Ou então de algum conhecimento do ambiente sabe, que nós estamos na
poluição, no ambiente, essas coisas todas. E colocando música, achando
músicas que falam sobre o sistema, sabe. Nossa, sabe aquela coisa da
postura, eu lembro do pátio do Coronel, aquela voz brava, tudo bonitinho.
Eu tinha mania de subir... eu não falei que eu subia no banquinho quando
criança? O Coronel tinha um banquinho também. Eles falam: “eu lembro da
senhora no banquinho ou na cadeira, não sei...”, eu ficava então alta assim,
enxergava todo mundo. Encontrei com uma aluna e ela falou “dona Cleuza,
139
a senhora enxergava todo mundo, quem tava mexendo, quem não tava na
postura certa, e canta bonito...”. E a gente ensaiava os hinos, bem. Até que
apresentasse a gente ia aprendendo, pedaço por pedaço, sabe? E os desfiles.
Ah meu Deus, como eu amava desfilar! Preparar o tema, as roupas sabe? A
bandeira. Uma mãe evangélica não entendeu isso e ela falou assim: “vou
pedir um favor pra senhora. Na hora do momento cívico a senhora dispensa
meus filhos?”. Aí eu quis saber por que e ela falou: “não! A minha religião,
culto é só a Deus. E aqui ta cultuando o pavilhão nacional...”. Eu falei “não!
É um respeito, é o símbolo da pátria...”, aí ela falou “não, mas não pode...”.
Então eu falei “ta dispensado.” Então na sexta-feira eles entravam mais
tarde. [...] Nessa época eu já estava melhorzinha. [...] Se fosse em outras
épocas.[RISOS] (ARQUIVO 27, p. 17-18).
Esse fragmento é riquíssimo, pois mostra-nos o quanto a formação da normalista
contribuiu para sua atuação profissional. O “Amor à Pátria” ensinado no Colégio e Lourdes,
segundo a colaboradora, “foi marcante em minha vida. E marcou, tanto é que a minha vida
profissional eu sou lembrada muito por conta disso, muito”. Os “hinos pátrios”, os símbolos
nacionais, o “uso da bandeira”, os nomes dos governadores, presidentes, “chefes da nação”,
tudo isso “tinha aula mesmo”, ou seja, fazia parte do currículo, das matérias de “Educação
Moral e Cívica” e “OSPB” (Organização Social e Política do Brasil) – que foram implantadas
pelo regime militar em substituição à disciplina de História exatamente para este fim – e “a
gente sabia tudo na ponta da língua [...] meus menininhos. Era uma gracinha”, comentou a
recordadora com entusiasmo. Quando já era diretora, nossa colaboradora contou como
controlava a disciplina no “momento cívico”, que era o dia da semana em que todos os alunos
no pátio deviam cantar os hinos pátrios: “O Coronel [escola] tinha um banquinho também [...]
eu ficava então alta assim, enxergava todo mundo [...] quem tava mexendo, quem não tava na
postura certa”. Com o tempo a colaboradora foi se adaptando melhor às mudanças e nessa fala
ela já comentou ter respeitado o aluno que pediu dispensa do momento cívico por questão de
consciência e admitiu rindo: “Nessa época eu já estava melhorzinha [...] Se fosse em outras
épocas.”
Não podemos ignorar o fato que a rede de normalistas selecionada para esta pesquisa,
atuou no sistema público de ensino durante o período da ditadura militar no Brasil. A escola
como aparelho do Estado (ALTHUSSER, 1974) juntamente com as demais instituições
sociais, devia colaborar para que a nova estrutura de governo encontrasse condições
favoráveis de dominação.
Neste contexto, a escola e o professor deveriam ressaltar de maneira intensa o amor à
Pátria, o espírito cívico, o que significava aos olhos do governo, o apoio irrestrito ao seu
autoritarismo. Na visão das normalistas, a ditadura implantada no Brasil em 64 foi um mal
140
menor, a salvação do país do perigo comunista, que pairava sobre o mundo no período da
Guerra Fria:
É. Eu acho que foi isso mesmo. Porque a hora que o golpe de Estado, essa
mudança, então foi mesmo pra salvar do comunismo. Porque assim,
ninguém queria mesmo. O povo tinha medo era do comunismo, como tem
até hoje e coisa e tal. Então tinha medo do comunismo. Porque a gente
vivendo num país como o nosso né, sempre mais liberdade de ação, de
escolha, de fazer o que fosse. Então o comunismo naquela época era, falava-
se muito horrores né, na maneira de vida do povo que estava sob o
comunismo. Então eu acho que foi a salvação mesmo. Naquela época sim.
Eu acho que não tinha outra maneira né. (ARQUIVO 32, p. 11).
O depoimento nos parece contraditório, mas, na visão da colaboradora, a ditadura não
era o fim da “liberdade de ação, de escolha”, e sim o comunismo. Esse era o inimigo que
devia ser combatido. A Igreja, por sua vez, endossava tal visão:
Bom, na Igreja principalmente o Comunismo era visto como um Demônio,
vamos dizer assim. E como eu falo pra você que eu sempre estive ligada à
Igreja, então o Comunismo era uma coisa que a gente não podia nem
conversar, nem conviver com ele né. Era tido como uma coisa muito ruim. E
naquele tempo até eu acreditava assim também né, às vezes até por
desconhecimento, porque depois que a gente vai entender ou estudar melhor
a filosofia de cada segmento e tudo, você vê que a coisa não é tão por aí
assim, né. E esse que eu te falei, preso aí, esses presos eram todos tidos
como “comunistas”, e o meu vizinho era pessoa mais encantadora do mundo.
[...] Era pessoa solidária, com família. Ele partilhava o que ele tinha com
todo mundo, sabe? E comunista. Então comunista não prestava, certo? [...] Não podia. O comunista, o comunista oferecia perigo, vamos dizer assim.
Oferecia perigo. E eu fiquei por muito tempo com essa visão por
desconhecimento. [...] Era sofrido. Na minha época tinha-se medo demais da
conta. Medo porque era tido como uma coisa muito ruim. [...] Na verdade
[SILÊNCIO]. Na verdade eu acho que aconteceu isso mesmo. Tidos como
salvadores. [...] É como salvadores. E, foi isso mesmo. [...] Porque você está
dentro da religião que você acredita que você segue aquela comunidade. E lá
pensava assim, na sua família pensava assim também, que era uma coisa
prejudicial, né? (ARQUIVO 40, p. 5-6).
Como vimos neste fragmento a colaboradora reconheceu que o medo do comunismo
estava fortemente associado à imagem que a Igreja fazia dele: “era tido como uma coisa muito
ruim”. Só mais tarde, depois de “estudar melhor a filosofia de cada segmento e tudo”, a
colaboradora entendeu “que a coisa não era tão por aí assim”. Neste caso a colaboradora
lembrou-se de pessoas conhecidas que foram perseguidas pelo governo, mas que não
“oferecia perigo” como o comunista deveria oferecer. Era difícil pensar diferente se, “dentro
141
da religião que você acredita que você segue, aquela comunidade. E lá pensava assim, na
família pensava assim também, que era uma coisa prejudicial, né?”.
Essa reflexão sobre a ideologia imposta pela ditadura militar e endossada pela Igreja
Católica foi feita, segundo a colaboradora somente no momento da entrevista: “mas isso que
agora estou recordando, eu nunca refleti sobre isso. Só agora, com a sua pergunta. Eu
admirava de paixão essas pessoas [perseguidas].” (ARQUIVO 40, p. 7) Assim, como podia
alguém bom ser preso porque era comunista, sendo que todo comunista era mal? Parece que
estas não eram questões comumente feitas pela sociedade, de modo geral, nem pelas
normalistas, mais especificamente. D. Leila comentou como ela e as demais pessoas com
quem se relacionava lidaram com o novo regime político:
Eu acho assim, a gente já é assim uma... já veio vindo assim na vida de
trabalho, de coisa né, a vida ali de, de, cumprir ali as suas obrigações, seus
deveres e tudo e nunca teve assim na minha família ninguém assim,
envolvido mesmo em política assim. Porque eu acho que as pessoas assim
que se envolvem já nascem com essa tendência ou é influenciado por outros
né, ou às vezes até as próprias escolas, faculdades e coisas existe né. Mas a
gente assim não teve assim influência e também continuou a vida. [...] Normalmente né. Cumprindo as obrigações, cumprindo os deveres, as coisas
que tinham que fazer e tudo bem né. Como a gente não tinha aquela coisa de
manifestações e coisa, a gente não tinha isso. Então. [...] Agia de
[INAUDÍVEL] assim, não foi assim como uma defesa nem nada, mas eu
acho que foi uma coisa normal da vida da gente, cada um dentro daquilo que
gostava ou que fazia né, sem influência de nada. (ARQUIVO 43, p. 5).
De modo geral, a sociedade parecia alheia ao que estava acontecendo em nosso país.
Enquanto uns poucos grupos pegavam em armas, a fim de derrubar a ditadura e eram
massacrados por ela, a grande maioria da população “continuou a vida [...] normalmente, né.
Cumprindo as obrigações, cumprindo os deveres”. De fato, para essa parcela alienada da
população, só restava cumprir obrigações e deveres, pois era isso que o governo esperava
dela. Essa postura se refletia no trabalho em sala de aula:
Então, eu acho que desde que a gente tava ali pra escola, de um modo geral,
você não levando nada de política para a escola [RISO], a gente não era do
ramo nem nada, né. Então dava as aulas normalmente, trabalhando da
mesma maneira. Não houve nada que pudesse modificar. [...] É que não saía
daquilo. Então, às vezes a gente ouve falar alguma coisa que a pessoa foi
exilada, que a pessoa foi não sei aonde, pá, pá, pá, passou por isso e por
aquilo. Mas na ocasião a gente não sabia de ninguém. Não sabia de ninguém,
porque as coisas eram muito fechadas, muito coisa, sabe? Quem participava
disso, ou os políticos ou as pessoas jornalistas, sei lá quem né, as pessoas, sei
lá quem, que era de, que tinha opiniões contrárias e tudo o mais, era muito
fechado. Então a gente também não ficava procurando porque senão, você
142
teria que ser um deles, né? [...] Então a gente evitava até saber, de procurar.
Não ficava sabendo de nada. Então na época eu não fiquei sabendo de
ninguém. (ARQUIVO 32, p. 12-13).
A normalista não se encarava como sendo “do ramo”, ou seja, não achava que tinha
compromisso com a educação política dos seus alunos. “Então dava as aula normalmente,
trabalhando da mesma maneira. Não houve nada que pudesse modificar”. Percebemos neste
relato que as normalistas não haviam sido formadas para ter uma visão política da sociedade
em que estavam inseridas e nem para formar pessoas críticas, que pudessem provocar
mudanças em seu meio através da ação consciente. A colaboradora justificou sua atitude não
como “uma defesa nem nada”, mas como uma “coisa normal”, em sua primeira entrevista.
Todavia, no segundo fragmento aqui citado a mesma normalista legitimou seu
comportamento como maneira de definir de que lado estava na questão do governo
autoritário: “Então a gente também não ficava procurando [saber detalhes da política] porque
senão, você teria que ser um deles [da oposição], né?” O silêncio era, desta forma, um
mecanismo de defesa, pois identificava as normalistas como apoiadoras do regime militar.
Outra colaboradora comentou sobre a influência do governo ditatorial no currículo
escolar:
Não. Na verdade a gente teve aí, vamos dizer assim, um susto né, um susto.
Porque afinal de contas a ditadura é uma forma de governo bastante pesada,
como eu te falei, a gente tinha que seguir a risca as coisas que vinham. Te
falei... a programação vinha pronta, você tinha que seguir aquela
programação. Mês de março, tem que dar isso, mês de abril... nada de você
fazer o seu plano de aula como hoje faz, de acordo com a realidade que você
ta trabalhando. Então são essas coisas que realmente eu sentia, mas da parte
política... (ARQUIVO 28, p. 7).
Na prática não mudou muita coisa: “tinha que seguir a risca [...] aquela programação”,
que vinha da Secretaria da Educação. No entanto, o currículo oculto permanecia intocado: o
modo de pensar e a postura das normalistas, as comemorações cívicas, as regras de
comportamento, a organização dos espaços, a religiosidade presente no cotidiano escolar.
Todos estes fatores trabalhavam juntos, a fim de garantir o poder instituído pela força, mas
preservado pela formação das mentes e dos corpos.
Outra questão que podemos analisar que está presente na evidência oral é a
perpetuação dos valores e da moral cristã na prática pedagógica das normalistas. Como vimos
no Capítulo 2, todas as colaboradoras que compõe a rede aqui pesquisada passaram, em
algum momento de suas vidas, pelo Colégio Nossa Senhora de Lourdes, onde receberam uma
143
educação religiosa paralelamente à educação escolar. Essa educação, adquirida no colégio,
vinha complementar a formação moral e cristã do lar e dos cultos religiosos que as
normalistas estavam sujeitas desde a infância, mesmo antes de ingressar na instituição escolar.
É evidente que as crenças e valores absorvidos durante anos de educação formal e informal se
refletiriam de maneira contundente na prática pedagógica das normalistas.
É comum, nas evidências orais, ouvirmos relatos em que as colaboradoras contam-nos
que fazia parte da rotina escolar, quando lecionavam, rezar com alunos em sala de aula.
Curioso que isso de fato era comum, pois eu ainda era criança quando as colaboradoras
estavam próximas da aposentadoria e me lembro bem que, por volta do início da década de
80, todas as aulas começavam com reza e algumas músicas religiosas.
A escola laica apregoada pelos Pioneiros da Educação Nova nos idos de 1932 ainda
não era fato no fim do século XX. Sem falar no crucifixo grande pregado na parede da sala de
aula – de escola pública, que em sua essência deveria ser laica – que eu guardo na memória,
com as palavras sugestivas escritas embaixo: “Deus me vê”. O que parece incoerente ao
discurso republicano liberal e às reformas educacionais implantadas não parece, porém,
incoerente do ponto de vista da lógica capitalista. Como já foi discutido em capítulos
anteriores, o medo e o castigo presente na doutrina Católica foram fundamentais para reforçar
a obediência às autoridades, fossem elas padres, madres, freiras, pais, mães, professores,
chefes ou patrões. Era preciso ensinar a subordinação e o medo como o mecanismo de
controle.
D. Dulce contou como conseguia a disciplina dos alunos:
Tinha de ter um jeito especial. Porque com brutalidade, tinha que ter muita
paciência se você quiser ter alguma coisa. Usufruir do que você está
ensinando. Então eu fazia isso. Eu lidava com meus meninos com
psicologia. Com carinho, sabe, com conselho, entendeu? Eu fazia isso.
Agora eu não sei se as outras professoras faziam, né. Tanto que eu tinha
disciplina assim. Tinha, os meninos gostavam muito de mim. Eu rezava
muito com os meninos. Muito. Na hora do recreio, na hora de sair do recreio,
na hora de entrar, entendeu? Ensinava muita religião pra eles. Muita mesmo.
[...] Tanto hoje que eles me encontram na rua eles perguntam se eu to
rezando: “Ai que bom D. Dulce.” Você vê que gracinha que eles são.
(ARQUIVO 35-36, p. 1).
Ensinar religião para os alunos era o meio de conseguir disciplina. Na prática, a
normalista observou que “com brutalidade” não conseguia nada. “Tinha que ter muita
paciência” para ter disciplina e isso era alcançado com sutileza, nas palavras da colaboradora,
com “psicologia”.
144
De fato, fazia parte da psicologia a “disciplina de persuasão e, por ela, o
desenvolvimento do raciocínio e do auto governo”. (LOURENÇO FILHO, 2001, p. 65).
Era assim que também conseguia controlar o mau aluno, aquele que não aderia às
regras que a escola impunha por perceber nelas uma estratégia de dominação. Esse tipo de
aluno que se manifestava contra a disciplina se recusando ao processo de remodelagem feito
pela instituição escolar, era e ainda é encarado pelos profissionais da educação como o aluno
problema.
Entretanto, a colaboradora conta-nos como foi bem sucedida em educá-los, dentro do
que acreditava ser o correto:
Mas você sabe, quando eu faltava também da escola, que eu tinha de faltar
por alguma coisa, eu tinha uns meninos muito impossível sabe. Uns. Mas
como eles gostava muito de mim, entendeu, então eles ficava quieto, sabe. A
disciplina era outra, punha ali perto de mim, perto da mesa, sabe. E quando
eu ia faltar, eu falava assim: “Carlos e Gilmar, amanhã vocês não vem não,
porque amanhã a D. Dulce não vem, entendeu?” Ai eles já nem vinha. Às
vezes ia até capinar quintal antigamente, aqui era quintal do lado de lá, então
vinha capinar quintal pra mim. E porque senão ele acabava com a
professora, com a substituta. Então pra não ter isso, eu falava pra eles,
porque faltou só um dia, não ia atrapalhar em nada, porque depois eu só
[expressão com os dedos de que ia por em dia o conteúdo]. E eles era
aluno melhor assim, melhor não era, mas dava pra ir bem. Mas com a
substituta eles subia em cima da mesa, da cadeira, eles pintava. Os meninos
falava: “Ih dona [INCOMPREENSÍVEL] que lambança que eles
aprontaram com a substituta. Ah também aquela substituta, não sei o que!”
[RISO]. Era desse jeito. (ARQUIVO 35-36, p. 6-7).
A disciplina era conseguida mesmo desses “meninos muito impossível”, porque
“como eles gostavam muito [da professora] [...] então eles ficava quieto, sabe”. Quando a
professora faltava, estes alunos avisados de antemão, “às vezes [...] vinha capinar quintal pra
mim”, pois essa era uma forma eficiente de mantê-los ocupados para não perturbarem a
substituta, que não teria os mesmos mecanismos de controle sobre eles: “com a substituta eles
subiam em cima da mesa, da cadeira, eles pintava”.
Dar uma tarefa extra curricular para eles como carpir o quintal, também era uma forma
de ensinar o papel que deveriam ocupar na sociedade mais tarde, como trabalhadores dóceis e
diligentes.
Ainda sobre como lidar com alunos “indisciplinados” ou “maus alunos” é possível
perceber o quanto os valores religiosos fortemente arraigados nas colaboradoras educadas em
colégio católico, estavam presentes na maneira como elas enxergavam e lidavam com o
assunto. Comentando sobre a responsabilidade do professor frente à profissão, D. Edna disse:
145
Muita responsabilidade, o professor tem que ter muita responsabilidade... ele
tem que ter um domínio do conteúdo que ele vai passar. Ele tem que ter uma
metodologia, porque pra cada conteúdo você tem uma metodologia... então
nunca bem, entrar em uma sala de aula sem preparar o que você vai
trabalhar. Então a responsabilidade do professor é muito grande, muito
grande viu. Você dominar bem o conteúdo, dominar bem a metodologia...
saber trabalhar com os alunos também é importante, certo? Nada de
menosprezo de ninguém, são todos iguais... porque tem que considerar seus
alunos como todos iguais. E outra coisa viu Cristina, não ver só o lado mau
do aluno, embora ele não seja um aluno assim bem aplicado, bem
acomodado, mas ele tem o lado bom dele. Então você, se você procurar o
lado bom desse aluno às vezes você muda muita gente. Então a
responsabilidade do professor é muito grande, muito grande... (ARQUIVO
15, p. 14-15, grifo nosso).
O bom professor na visão dela é aquele que tem domínio não só do conteúdo, do
método, mas que “sabe trabalhar com os alunos também, não menospreza ninguém, considera
todos iguais”. A visão cristã de igualdade foi notadamente assimilada pela colaboradora e
reproduzida no seu discurso, embora não seja, de fato, a realidade social refletida na esfera
escolar. Continuando seu discurso, D. Edna explica seu critério de classificação do lado mau
do aluno, segundo o modelo aprendido por ela e cobrado das crianças no sistema escolar
capitalista: “embora ele não seja um aluno assim bem aplicado, bem acomodado, mas ele tem
o lado bom dele”.
O aluno que não é bem acomodado ou bem aplicado é aquele que não se sujeita aos
moldes impostos pelo sistema. Logo, na compreensão da normalista, esse aluno tem um lado
mau, indisciplinado, que deve ser trabalhado com jeito, pois o pensamento religioso a leva a
acreditar que há também um lado bom, humano, divino ou “a imagem e semelhança de Deus”
a ser resgatado a seu favor, o que, na realidade significa a favor ou a serviço do sistema. Neste
sentido, o professor tinha muita responsabilidade de ajudar a „mudar o aluno‟, fazê-lo
conformar-se ao currículo escolar e ao que a sociedade esperava dele. Na sequência da
entrevista, a colaboradora relatou uma experiência:
Vou te contar uma passagem assim bem rapidinha. Um aluno, naquela época
ainda tinha reprovação, já era o quarto ano que, a quarta vez que ele ia fazer
o quarto ano. O diretor chegou perto de mim e eu estava na quarta série
nessa época: “dona Edna, a senhora vai ter que ficar com fulano de tal”, eu
arrepiei bem, porque eu sabia da indisciplina dele. Mas eu não sei o que é
que me deu na cabeça que eu falei “olha seu [INCOMPREENSÍVEL], ta
tudo bem, o que é que eu vou fazer?”. Então Cristina, eu pensei justamente,
foi nesse lado bom. Foi quando eu comecei a pensar que o aluno tem o lado
bom. Entrou tal, no primeiro dia e eu coloquei bem na frente e disse para ele,
“agora você vai ser o meu auxiliar”, então eu esquecia de propósito o
apagador, o giz, uma porção de coisas que eu precisava e ele ia buscar pra
mim. Apagar a lousa ele apagava pra mim. Então eu coloquei como meu
146
auxiliar. Eu consertei o aluno. Passou... “uns quatro ou cinco anos depois eu
encontro com ele na rua e ele veio me abraçar, eu nem me lembrava mais do
que tinha acontecido: “eu vim abraçar a senhora dona Edna e agradecer que
a senhora me fez virar gente”, eu falei “uai, por quê?”, “uai, a senhora não
lembra?”. Aí lembramos lá. Eu ainda pensei comigo, nem lembrava mais do
aluno, nem nada. Que coisa boa que eu fiz. Mas porque eu comecei a pensar
que o aluno tem o lado bom também, não é só o lado mau, certo? E passo
muito isso pros meus alunos, porque às vezes minha filha a pessoa ta tão
acostumada “você não presta, você é isso, você é aquilo...”, que ele acaba
não prestando mesmo. Então vamos procurar um pouquinho o lado bom
dessa pessoa. E graças a Deus eu consertei. (ARQUIVO 15, p. 16).
Como vemos, esse relato de experiência é representativo do pensamento e da ação das
normalistas em casos de alunos resistentes ao sistema escolar, como meio de manipulação
social e de exploração do trabalho. A colaboradora contou que ao receber a notícia que teria
em sua sala um aluno multirrepetente e famoso pela indisciplina – diga-se de passagem, o que
justificava, segundo o sistema de ensino excludente do „mau aluno‟, a sua retenção – ela
„arrepiou‟. A moral cristã falou mais alto e, „ao pensar no lado bom do aluno‟, aceitou o
desafio de educá-lo; colocou-o na frente e disse: “agora você vai ser meu auxiliar”. Nesse
momento a colaboradora deu a oportunidade para que o aluno desenvolvesse suas habilidades.
Desde aquele momento, e direcionada por outros conceitos, a professora otimizou a
capacidade do aluno por usar o que ele tinha de melhor e aí conseguiu que ele se
desenvolvesse ou, em suas palavras, “consertei o aluno‟. De fato, essa é a tendência da
pedagogia atual: aproveitar as habilidades e competências dos alunos e, a partir delas,
desenvolver sua autonomia a fim de serem diligentes, criativos e produtivos no mercado de
trabalho.
É nítida neste e em outros relatos, a influência dos conceitos religiosos na formação do
currículo oculto amplamente utilizado pelas normalistas em sua prática pedagógica. Uma de
nossas colaboradoras que sempre se manteve engajada em movimentos religiosos católicos
durante toda sua vida, desde a sua formação no Colégio de Lourdes, fez a seguinte reflexão
sobre a importância dos valores e da moral cristã para sua atuação profissional:
O colégio não só deu assim essa base da informação, do conhecimento,
como da formação, dessa parte dos valores, tão complicado no mundo de
hoje, né, aqueles valores imutáveis. Eu acredito que não perdi mesmo o
caminho e essa, vamos dizer isso que me foi assim apresentado né, desde o
início da minha vida, que é a vontade dos meus pais me colocando em
colégio católico e justamente pra isso. [...] E uma vez assim casada eu
participei muito de movimentos religiosos. Eu participei do Encontro de
Casais Com Cristo, e participo até hoje quando precisam de um casal, meu
esposo e eu, e damos palestra e uns quinze anos também dando palestras,
curso de noivos, onde mais? Curcílio, trabalhei muito em Curcílio,
147
Renovação Carismática. [...] E eu queria dizer assim que isso teve uma
importância muito grande sabe, muito. E mesmo no meu trabalho, durante
todo o meu trabalho. E hoje se eu estou aqui é porque eu tenho essa parte,
essa humanização, vamos dizer assim essa evangelização assim de estar
colaborando nesse sentido da formação dos alunos, entendeu? Pra mim isso
é mais importante. É muito importante passar em vestibular, mas é muito
importante a gente poder contribuir com os pais nessa formação. [...] Dos
valores. [...] Não só do aluno, mas também com as pessoas que convivem
com ele né, tentando passar um pouco daquilo que passaram pra mim né.
(ARQUIVO 26, p. 5-6).
De acordo com o fragmento, a colaboradora reconheceu que seus pais tinham um
objetivo ao escolher um Colégio Católico para que fosse educada, a saber, a formação de
valores. Concluiu que sua formação religiosa “teve uma importância muito grande [...]
durante todo o [...] trabalho” como professora, porque a “humanização” e a “evangelização”
colaboraram para a “formação dos alunos”.
Independente das normalistas reconhecerem ou não tal influência sobre sua prática
profissional, ao fazerem essa releitura sobre o seu passado, é evidente o fato que a formação
dos valores religiosos e cívicos incidiu diretamente no cotidiano escolar e no seu fazer
pedagógico.
O método utilizado pelas normalistas no Ensino Primário era o tradicional: na primeira
série se alfabetizava usando a cartilha e as famílias silábicas; outros recursos de que
dispunham eram gravuras, o ábaco nas aulas de matemática, músicas e dramatizações.
Eu não sei se isso eu posso chamar de analítico-sintético, eu não sei como é
que é... eu não me lembro muito bem assim da coisa né, mas eu acho assim
que era mais objetivo né, usando às vezes figuras, gravuras, usando [...] Não
tinha muito não. Tinha por exemplo, de matemática, aquele ábaco que
chamava né? [...] E pra, por exemplo, português, tinha umas gravuras,
gravuras grandes, bonitas até, pra fazer uma redação. Então eram muitas
gravuras que colocava num cavalete e cada dia a professora dava, mandava
escrever sobre aquilo que tava vendo né, sobre as gravuras. (ARQUIVO
30, p. 14-15).
A influência das aulas de Psicologia, amplamente citadas pelas normalistas como
marcantes em sua formação, foi observada nos relatos orais das experiências pedagógicas.
De fato, neste ponto do trabalho, podemos dizer que a evidência oral mais uma vez foi
responsável por levantar questões e direcionar a pesquisa a fim de elucidá-las. Compreender
porque as lições de Psicologia do curso Normal bem como sua utilização em sala de aula
foram temas recorrentes na evidência oral, tornou-se fundamental para esclarecer a relação
148
deste fator com o produto final que a escola primária desejava formar naquele momento
histórico, a saber, o aluno da escola pública.
Um estudo mais detalhado dos temas apontados pelos tópicos frasais nos levou ao
pensamento escolanovista, amplamente difundido no país por volta de 1930. A psicologia
aplicada à educação, que teve em Lourenço Filho (um pioneiro do Manifesto de 1932), seu
maior expoente no Brasil, pelo que indicam a evidência oral e obras de sua própria autoria,
esteve fortemente presente na formação da normalista e como consequência, em sua prática
pedagógica.
Lourenço Filho, professor diplomado pela Escola Normal Primária de Pirassununga
(SP), em 1914, e pela Escola Normal Secundária de São Paulo, em 1917, tornou-se Diretor
Geral da Instituição Pública do Estado de São Paulo no período do Governo Provisório de
Getúlio Vargas, de 1930 a 1931. (MONARCHA, 2001, p. 11). Durante esta fase efetivou
importantes reformas no ensino normal, a fim de garantir uma formação mais completa das
normalistas. Sobre tais reformas escreveu:
Com o estabelecimento do Governo Provisório, consequente à Revolução de
1930, o ensino normal, em quase todo o País, entrou em nova e auspiciosa
fase. Nos primeiros meses de 1931, tivemos o prazer de colaborar na
reforma das escolas normais do Estado de São Paulo, de modo a prepará-las
para a sua definitiva reorganização. É assim que se restabeleceu o curso de
quatro anos e se reorganizaram os programas das matérias preparatórias, de
modo a imprimir-lhes, desde os primeiros anos do curso complementar, o
cunho do estudos secundários, conforme a reforma pouco antes decretada
pelo Governo Provisório. Fez-se mais. Criou-se o curso de Aperfeiçoamento
Pedagógico, de dois anos, para cuja matrícula era exigido o diploma de
escola normal ou de ginásio. (LOURENÇO FILHO, 2001, p. 22).
Essa iniciativa de ampliar o período do curso normal de três para quatro anos tinha por
objetivo dar uma formação específica ampliada aos professores primários que, segundo
Lourenço Filho, ficava a desejar com a divisão do normal em ensino propedêutico e
profissional:
A brevidade do curso, o exíguo preparo dos alunos, por ocasião da matrícula
inicial, nas escolas normais, e a inadequação dos processos de ensino,
principalmente nas matérias de cunho técnico, tem impedido que essa
preparação se tenha podido fazer de modo cabal. As matérias de cunho
profissional, na maioria das escolas, têm-se limitado a duas ou três, enquanto
as de ensino propedêutico, dadas de mistura com essas, têm sido 10 ou 12,
absorvendo o tempo e as preocupações do estudante, que não as pode
distinguir nem hierarquizar. (LOURENÇO FILHO, 2001, p. 33).
149
Essas reformas no ensino normal seriam responsáveis, mais tarde, pela formação dos
Institutos de Educação que, como vimos, procurariam sanar as deficiências na formação do
professorado.
Durante a efervescência dos debates dos educadores em torno do tema que discutia
ampliação do curso Normal – a fim de inserir matérias de cunho específico à pratica
educacional – que se introduziu com grande força a psicologia aplicada à educação.
Foi por volta de 1920, quando lecionava na Escola Normal Piracicaba e num colégio
particular mantido por uma fundação norte-americana, que Lourenço Filho começou a ter
contato com a psicologia educacional dos Estados Unidos. Em 1925, reativou o Laboratório
de Psicologia Experimental da Escola Normal e passou a formular os primeiros testes
psicométricos aplicados à educação. (MONARCHA, 2001, p. 12).
Particularmente, a psicologia aplicada à educação recebeu um poderoso
impulso, inserindo-se de forma duradoura na cultura escolar da época, graças
ao fortalecimento do chamado “movimento dos testes” no âmbito de várias
Escolas Normais e Diretorias-Gerais da Instituição Pública.
(MONARCHA, 2001, p. 14).
Essa tendência promovida pelo chamado “movimento dos testes”, que passou a
selecionar e classificar os alunos, idealizando a formação de classes homogêneas, viria ao
encontro de aspirações tecnicistas da lógica capitalista.
No momento histórico em que a educação das massas e o trabalho urbano
ganham centralidade na vida urbano-industrial, aguçando a percepção das
tensões contraditórias, a psicologia objetiva irrompe como ciência aplicada à
organização da sociedade. Nesse momento, Lourenço Filho eleva-se a uma
posição dominante no ambiente intelectual paulista. (MONARCHA, 2001,
p. 32).
Desta forma, a psicologia aplicada à educação serviria muito mais do que apenas
selecionar e organizar alunos de acordo com sua capacidade intelectual: visava, na verdade,
legitimar a exclusão social de um grupo, sua dominação e exploração. Piéron, renomado
psicologista e um dos responsáveis pela introdução da psicologia científica no Brasil
reconheceu:
Conforme puderam verificar os leitores, seguimos com o maior interesse as
lições do eminente professor da Sorbonne, convencidos, como estamos de
que cabe à psicotécnica um grande papel não só na renovação dos processo
de organização do trabalho industrial, como, principalmente, na remodelação
150
das bases em que deve assentar-se todo o trabalho de educação popular.
(PIÉRON, p. 25 apud MONARCHA, 2001).
Essa racionalização do ambiente escolar promovido pelos testes também visava um
maior gerenciamento do trabalho pedagógico:
Ora, no caso, a mais simples reflexão demonstra que os benefícios sociais
foram inúmeros. Primeiro, em relação à maior confiança na escola pública,
por parte dos pais: as escolas puderam ensinar mais, em menor prazo.
Depois, em relação a um melhor critério de julgamento do trabalho docente,
por parte da administração: sabendo que material humano recebeu cada
mestre, pode a administração avaliar o esforço real de cada docente.
(LOURENÇO FILHO, p. 37 apud MONARCHA, 2001).
Assim, começava-se a introduzir nas escolas um modelo de avaliação da produtividade
do professor, segundo o “material humano” que recebeu cada mestre e não segundo o
desempenho da classe. Devia ser levado em consideração o desenvolvimento do aluno
segundo o seu enquadramento nos testes psicométricos e não com relação ao todo. Neste
sentido, a escola começou a ser gerenciada como uma fábrica, levando em consideração o
fator produtividade.
Os testes ABC, como foram chamados exames psicométricos para a organização de
classes homogêneas foram largamente utilizados nos cursos Normais durante um longo
período que vai de 1933 a 1974.
Magnani (1987) comentou sobre a repercussão dos testes ABC:
A 2ª edição (3 mil exemplares) de Testes ABC é lançada em junho de 1937, e
a última de que se teve notícia, a 12ª (3 mil exemplares), em 1974, tendo-se
alcançado, no conjunto das 12 edições, uma tiragem total de 62 mil
exemplares. A análise do percurso editorial da obra ao longo dessas quatro
décadas, revela uma trajetória ascendente, com gradativa diminuição do
intervalo entre as edições e significativo aumento do número de exemplares
por tiragem, sobretudo nas décadas de 1950 a 1960, coincidindo com o ápice
da carreira de Lourenço Filho e a consolidação de seu prestígio no Brasil e
no exterior. O ponto mais alto nessa trajetória editorial verifica-se, em 1967
– dez anos após a aposentadoria do autor – com o lançamento de duas
edições no mês de agosto (8ª, 6 mil exemplares, e 9ª, 8 mil exemplares) e a
maior tiragem – a 10ª edição (em dezembro de 1967, 10 mil exemplares) –
alcançando 12 edições. (MAGNANI, 1987, p. 37-38 apud
MONARCHA, 2001).
Esse parêntese explicativo sobre a introdução da psicologia na educação se fez
necessário para, a partir daqui, compreendermos os depoimentos orais e a relevância de tal
aspecto no cotidiano das normalistas.
151
Analisemos agora um relato significativo sobre o modo como as normalistas lidavam
com os alunos:
Mas de qualquer maneira, eu acho assim que nós procurávamos na época
assim, incentivar o aluno, o interesse do aluno, mas dentro daquela, dentro
assim daquilo que a gente achava importante era acompanhar o aluno de
acordo com o seu desenvolvimento sabe, de acordo com a aprendizagem
dele, e buscando sempre o aluno em primeiro lugar, mas sempre a gente
junto com o aluno, porque a gente não podia esperar às vezes dos pais pra
ajudar e pra orientar. Então a escola, era procurava suprir toda a dificuldade
do aluno, então, mas quanto a isso, a gente procurava os meios mais, mais...
eficaz pra, pro aluno aprender. Às vezes buscando numa cartilha nova ou
buscando introduzindo outra coisa junto, outro método junto. Então a gente
tava sempre no, não podia assim abandonar uma coisa e pegar outra de uma
vez assim sabe, porque a gente pegou muito, muito [...] Então, nessa
transição, nessa transição a gente sempre procurava o melhor e, e, e... fazer
daquelas duas coisas né, o melhor visando o aluno. [...] E outra, a gente não
deixava assim o aluno só ou o aluno ir buscar as coisas... porque nem sempre
ele era capaz disso. A gente tava sempre junto, sempre orientando,
procurando ajudá-lo. A gente não contava com a família pra ajudar na tarefa
da escola. Então a escola procurava suprir todas as necessidades do aluno.
(ARQUIVO 43, p. 8).
O “interesse do aluno” era sempre colocado como o norteador do trabalho do
professor segundo a psicologia educacional.
No programa de ensino de Lourenço Filho, então professor da Escola Normal de
Piracicaba de 15 de janeiro de 1922, lemos o seguinte: “d) A atividade intelectual dos alunos é
condicionada pelo jogo dos seus próprios interesses. Uma classe bem dirigida é uma classe
em que o regente espicaça nos alunos, a cada momento, o interesse oportuno à lição”.
(LOURENÇO FILHO, 2001, p. 65).
Considerar o interesse do aluno era, de fato, algo ensinado nos cursos normais e
aplicado na prática escolar como forma eficaz na condução da aprendizagem do aluno. Dentro
dessa visão o aluno passou a ser o centro em torno do qual a educação deveria orbitar. “A
gente achava importante era acompanhar o aluno de acordo com o seu desenvolvimento, de
acordo com a aprendizagem dele, e buscando sempre o aluno em primeiro lugar.”
(ARQUIVO 43, p. 8). Como já comentado no Capítulo 1, não havia nada de novo neste
conceito escolanovista. O que ocorria era apenas um resgate da pedagogia defendida por
Comenius, revestida com uma nova roupagem. O aspecto do desenvolvimento cognitivo do
aluno passou a ser considerado. As normalistas deviam procurar „os meios [ou métodos] mais
eficazes pro aluno aprender‟. Esses métodos giravam em torno dos materiais oferecidos pelo
152
Estado e amplamente utilizados na época: “buscando uma cartilha nova ou buscando,
introduzindo outra coisa junto, outro método junto.” (ARQUIVO 43, p. 8).
A colaboradora citou a dificuldade de adaptação às transições pedagógicas que
surgiriam, modelos metodológicos diferentes no ensino: “Então, nessa transição, nessa
transição, a gente sempre procurava o melhor e, e, e... fazer daquelas duas coisas [o método
anterior e o atual], o melhor visando o aluno.” (ARQUIVO 43, p. 8).
Outro aspecto que fica evidente nesse fragmento é que a escola passou a assumir para
si o dever de formar integralmente o indivíduo, tarefa anteriormente dividida com a família.
“A gente não contava com a família pra ajudar na tarefa da escola. Então a escola procurava
suprir todas as necessidades do aluno.” (ARQUIVO 43, p. 8). De fato, ao assumir o controle
sobre a educação do sujeito, o Estado passou a ter um maior domínio sobre o tipo de homem
que se pretendia formar.
Em classes heterogêneas onde os testes ABC não eram aplicados havia, porém, uma
divisão organizacional em fileiras de alunos fracos, médios e fortes. Desta forma, era possível
que a professora atendesse os alunos de acordo com o seu grau de aprendizado. Continuando
o relato, D. Leila contou:
Porque às vezes um aluno aprendia, tinha mais facilidade pra aprender, então
ele ia bem naquilo. O outro já era mais difícil, então você tinha que usar um
outro método, uma outra maneira pra ele adquirir o conhecimento né. Então
a gente às vezes assim ensinava o aluno individual, porque cada um tinha um
aprendizado, principalmente na primeira série né, que uns aprendiam mais
fácil, outros demoravam mais, outros coisos. Mas a gente procurava uma
hora fazer, por exemplo, dar uma lição da classe maioria, mas não queria
dizer que todos já sabiam né. Mas a gente no momento que dava uma lição,
dava pra todos os meninos, todos os alunos. E depois a gente ia em particular
com aquele que tava mais pra, que não conseguiu. Então existia esse
trabalho todo e eu acho que a gente tinha um pouco mais assim da psicologia
da criança né. Então a gente olhava muito, via muito essa parte da
aprendizagem de um, de outro, então a gente procurava às vezes de outra
maneira, ou um ou outro método, ver se o aluno [...] Aprendia. [...] Todo um
desenvolvimento cognitivo, as coisas né. [...] Porque às vezes você dava
assim, também tinha que ter muito assim um cuidado porque às vezes a
cartilha o aluno decorava né. Então a gente tinha que ter o cuidado na hora
de ver ali se ele ta decorando, se ele ta lendo. [...] Então a gente tinha que
usar métodos assim né, pra verificar mesmo a aprendizagem do aluno. Então
a gente usava, é o que eu falo assim que nós estudamos assim o normal,
ofereceu assim uma psicologia pra gente, nós estudamos psicologia, mas eu
acho assim que foi uma psicologia assim quase de uma faculdade mesmo
viu. [...] Nossa, e como, e como. E a gente pode aplicar isso tudo no dia a
dia, de cada criança, de cada um. Então era muito, isso era muito importante.
(ARQUIVO 43, p. 8-9).
153
Entender “um pouco mais da psicologia da criança” dava à normalista condição de
observar o “desenvolvimento cognitivo” do aluno e perceber qual o método mais eficiente
para ensiná-lo. É interessante que a colaboradora faz menção de métodos de „verificação da
aprendizagem do aluno‟, porque alguns decoravam a lição da cartilha, mas não sabiam ler.
Neste sentido, pôde concluir, “eu falo assim o Normal, ofereceu assim uma psicologia pra
gente, nós estudamos psicologia, mas eu acho assim, que foi uma psicologia assim, quase de
uma faculdade mesmo viu.”.
Algumas normalistas procuravam inovar os métodos de ensino costumeiramente
utilizados o que causava certa estranheza nas demais colegas de trabalho. D. Cleuza relatou:
Lá, [no Grupo Escolar] vendo as professoras trabalhar, foi um céu pra
mim. Foi um estágio verdadeiro né. Aprendi muito com a professora
Yolanda Guedine já falecida. E aí eu assumi uma classe lá como efetiva de
primeira série com quarenta e cinco alunos que era sempre assim né. E tinha
que alfabetizar, concorrer com um monte de professora famosa sabe, aí eu
pensava, falava, “como que eu vou fazer?” Tinha a cartilha, mas eu queria...
era Caminho Suave [o nome da cartilha] que tinha né. Aí eu tinha também
aquela Sodré: “o pato nada, a pata pá, nada na...”, e a Caminho Suave,
“barriga bá, cachorro ca”, daí eu, como eu tinha muito recurso na música,
que eu estudei música a vida inteira, eu, e como eu sempre fui, tive
dificuldade pra ficar feito boba, escutando alguma coisa alguma coisa, eu
falei “eu vou pôr a música nisso daí”. Aí comecei através da música a fazer
letrinhas pra eles cantarem que era a alfabetização. Aí eu comecei naquele
ano assim do jeito que eu inventei, cantando sabe [RISO]. E aí chegou no
final do ano, que foi um samba... valia ponto por aluno promovido. Ponto
pra você escolher a classe do ano seguinte, pra você manter o seu lugar, um
monte de coisa, valia ponto. Cada aluno valia um ponto. Aí, uma professora
famosíssima, que depois se tornou uma grande amiga minha, a dona Alzira...
como é que era o sobrenome dela? Esqueci o sobrenome dela, ela na hora
dessa avaliação de classificação de pontos o diretor falou: “quem quer falar
alguma coisa?”, “eu quero saber que vantagem eu levei esse ano, porque eu
trabalhei feio, garrei, lutei e promovi X alunos, estou lá com X pontos. A
dona Cleuza chegou esse ano, pegou a classe, ela cantou o ano inteirinho,
toda a vez que ia na classe dela era cantando e dançando com menino
pirolando, passou o mesmo tanto de alunos que eu... gostaria de entender...”.
Aí eu não expliquei nada, ninguém explicou, mas eu ganhei ela. Então foi
assim que eu comecei, cantando e eu sempre fui continuando e usando
recursos da música, você sabe. E a gente fez uma coisa tão linda sem saber,
que foi integração. Era o nosso diretor o seu Dante Guedini e eu tinha uma
amiga que trabalhava na classe ao lado, Neusa Morelli Barbosa com uma
facilidade incrível em matemática, e eu com uma dificuldade incrível em
matemática. E ela com dificuldade incrível na alfabetização e eu com
facilidade porque eu usava esse recurso. Daí ele concedeu que a gente
trocasse. Na hora da matemática ela vinha pra cá e no português na
alfabetização. E vice e versa. (ARQUIVO 12, p. 17).
154
Nesse relato D. Cleuza admitiu que “foi um estágio verdadeiro” aprender “vendo as
professoras trabalhar”. Quando deparou com uma classe de alfabetização pensou: “como eu
vou fazer?”. Por não querer trabalhar apenas com o recurso da cartilha Caminho Suave, a
colaboradora lançou mão do que sabia fazer bem: “eu tinha muito recurso da música, que eu
estudei música a vida inteira”. Aí decidiu: “vou por música nisso daí”, se referindo às lições
da cartilha, que eram repetidas incansavelmente pelos alunos a fim de serem memorizadas.
“Aí comecei através da música a fazer letrinhas para eles cantarem que era a
alfabetização”. Como observamos, o recurso da memorização começou a ser utilizado, porém
de maneira lúdica, com a utilização da música. Qual foi o resultado desse trabalho? D. Cleuza
contou com entusiasmo: “E aí chegou no final do ano, que foi um samba... valia ponto por
aluno promovido. Ponto pra você escolher a classe do ano seguinte, pra você manter o seu
lugar”. Esse mecanismo de controle e estímulo que o Estado oferecia ao professor que
conseguisse o maior índice de aproveitamento dos alunos, causou polêmica entre as
professoras que não entendiam como alguém que só “cantou o ano inteirinho [...] passou o
mesmo tanto de alunos” que elas.
Mais tarde, com o apoio do Diretor Dante Guedini, ela, juntamente com a professora
Neuza Morelli trabalhariam por disciplina nas classes de primeira série, revezando aulas de
alfabetização com matemática.
Todas as entrevistadas comentaram que na prática faziam uma junção dos métodos
educativos e abordagens teóricas a fim de tirar o que cada um deles oferecia de melhor:
É. Então o meu método de alfabetização que eu sempre colocava na época
era misto né. Porque ao mesmo tempo era, eram analíticas, sintético,
analítico-sintético, misturava... como é que era, o fonético lá, era tudo né.
Depois trabalhei na Dinâmica Espiral l com Montessori. Lá era monitório
quando eu peguei, fiquei no Estado e lá. (ARQUIVO 12, p. 18).
Construtivismo... olha, eu sempre me interei de tudo, porém, na minha
prática, eu nunca defini, assim dizer “eu agora estou seguindo isso”. Não. Na
minha sala de aula, como se diz? Miscelânea. Misto tudo aquilo que eu li,
que eu aprendi de bom em cada um, em cada coisa, você entendeu? Que nem
falava construtivismo, que ninguém sabia o que é que era e todo mundo pá,
pá, pá [onomatopéias de repetição]. Então sem saber como fazer. Porque a
gente precisa ter segurança não é? Então eu nunca pendi assim, dessa forma
né, nunca. Eu sempre aprendia, sabia e aplicava. Porém dentro daquilo que
eu conhecia, que eu já fazia e dava certo, então sempre que eu fui perguntar
em metodologia eu falava isso, misto, é misto. E principalmente agora, de
uns anos pra cá, vinte anos pra cá, mais assumi a educação libertadora né.
Que é justamente isso, ajudar o aluno a se libertar né. (ARQUIVO 27, p.
21).
155
Notamos nesse fragmento que os métodos de ensino e as abordagens pedagógicas se
confundem na fala da colaboradora, o que é muito comum na medida em que muitos
conceitos, apropriados pelos teóricos educacionais, tiveram sua origem em outras áreas do
conhecimento como é o caso dos estudos de Maria Montessori (1870-1952) e Jean Piaget
(1896-1980). No entanto, não cabe aqui neste trabalho discutirmos a origem e a natureza das
abordagens pedagógicas utilizadas pelas normalistas em sua prática escolar e sim,
percebermos como se apropriavam desses conceitos e os introduziam em sua prática
pedagógica.
Com o tempo, a colaboradora afirmou ter assumido “a educação libertadora” a fim de
“ajudar o aluno a se libertar”. Essa visão de educação que teve em Paulo Freire (1921-1997)
um dos seus maiores defensores no Brasil propõe uma prática diversa da assimilada pelas
normalistas durante o curso Normal, através do currículo escolar e oculto ali ministrado.
Em artigo escrito por Paulo Freire em que compara a “educação bancária”, recebida
nos bancos da escola tradicional à educação libertadora, o autor descreveu assim o papel do
educador:
Sua ação, identificando-se desde logo com a dos educandos, deve orientar-se
no sentido da doação, da entrega do saber. Sua ação deve estar infundida da
profunda crença nos homens. Crença no seu poder criador. [...] A educação
libertadora, problematizadora, já não pode ser mais o ato de depositar, ou de
narrar, ou de transferir, ou de transmitir “conhecimentos” e valores aos
educandos, meros pacientes, à maneira da educação “bancária”, mas um ato
cognoscente. Como situação gnosiológica, em que o objeto cognicível, em
lugar de ser término do ato cognoscente, educador, de um lado, educandos,
de outro, a educação probematizadora coloca, desde logo a exigência da
superação da contradição educador-educando [...] Em verdade, não seria
possível à educação problematizadora, que rompe com os esquemas verticais
característicos da educação bancária, realizar-se como prática da liberdade,
sem superar a contradição entre o educador e os educados. Como também
não lhe seria possível fazê-lo fora do diálogo. É através deste que se opera a
superação de que resulta um termo novo: não mais educador do educando do
educador, mas educador-educando com educando-educador. (PATTO,
1997 apud FREIRE, p. 66, 71-72).
É possível notarmos, nos depoimentos da colaboradora, alguma influência desse
pensamento. O que propomos aqui é fazer alguns recortes na evidência oral e analisá-los à luz
do que Paulo Freire caracterizou como o perfil do educador-educando, dentro da visão da
educação libertadora.
Comparando como foi educada e como procurou educar, a colaboradora disse:
156
A forma que eu fui educada eu te expliquei, agora como eu eduquei, eu senti
que eu dei mais abertura e eu vi mais o ser humano assim, eu fui mais
humana, acredito assim. Embora no início muito da minha vida, da minha
história tenha influenciado pra eu ser assim mais rígida, sabe. Eu sou assim,
eu cobro até, eu me cobro também, eu sou assim comigo. Nesse ponto eu
não mudei, eu exijo que as pessoas sejam responsáveis e compromissadas,
ou então comigo é difícil de trabalhar, é bem difícil. Então, talvez porque eu
tenha sido criada num compromisso entendeu? Tinha que assumir
compromisso. Então eu acho que eu levei pra lá a alegria que eu tinha lá, as
festas, o teatro, a música, o civismo, as exigências... algumas não tão
exageradas né, não tão exageradas. Agora, eu senti assim, que eu tinha um
crescimento agora que eu digo assim, eu não sou mais aquela Cleuza, a cada
dia eu sou uma outra Cleuza. Eu costumo falar muito, ela escuta muito isso...
que eu não sou mais aquela Cleuza, porquê? Porque a gente começa a ter
uma visão diferente, é um novo olhar, um novo olhar do mundo, do ser
humano, até do sofrimento, porque nem todos são assim, como que eu quero
dizer? Você prepara um copo de água... não pode ser dado pra todos na
mesma quantidade né. Pra uns uma dose, pra outros metade, pra outros um
copo inteiro. Então nós temos que descobrir essas diferenças né. Eu, eu acho
que a gente fica mesmo mais humanizada, sabe. (ARQUIVO 12, p. 19).
Como percebemos neste fragmento, embora a colaboradora admitisse ser “rígida”,
“exigente”, acredita que hoje tem uma postura mais “humanizada”. Isso permitiu que ela
passasse a ver o aluno com outros olhos, ver “mais o ser humano”. Neste sentido, é possível
observar uma adesão à visão libertadora que coloca a criança como alguém que pode criar,
por ser humano e não um mero depositário de informações. No entanto, existe o perigo de, ao
perceber as diferenças individuais e buscar humanizar o sujeito, cair na tendência religiosa
fortemente arraigada nas normalistas, e ver a educação como redentora e não, libertadora.
Esse pareceu-nos o caso em outra entrevista, em que a mesma colaboradora disse:
Você sabe que hoje todo mundo quer só bom aluno não é? Isso é muito
comum em todo lugar. Aquele aluno que... porque ser professora de bons
alunos é tão fácil. Agora ser professora de quem tem dificuldade – sejam
elas quais forem as dificuldades – esse é o verdadeiro professor, sabe. Que
não reclama, que não queixa, que busca saber por que, que busca ajudar, que
busca compreender, que tem misericórdia, compaixão sabe, que estende a
mão, que dá o ombro, então é... (ARQUIVO 12, p. 7).
Nesse relato o professor aparece como aquele ser dotado de um perfil quase que
divino: ele tem „misericórdia, compaixão, compreensão, estende a mão, dá o ombro‟. Ele não
está no mesmo patamar que o aluno no sentido de aprender e ensinar ao mesmo tempo, num
processo dialético como propõe Freire. O professor está acima do aluno e, por isso, pode
„estender-lhe a mão‟, num ato de misericórdia. Ele não é um colaborador do seu aluno na
busca do conhecimento e sim alguém dotado de poder para ampará-lo, „dar o ombro‟. Há
157
nessa fala sempre uma posição vertical na relação aluno-professor em que o primeiro está em
condição superior de auxílio, enquanto o outro precisa urgentemente de sua bondade, ou como
quer a colaboradora, „compaixão‟. No entanto, em outro depoimento a normalista comentou:
“Ser professor é uma riqueza muito grande. Você aprende. A lição que a criança te dá é uma
coisa linda”. (ARQUIVO 42, p. 9).
Assim, podemos concluir que houve certa contradição na fala da colaboradora que,
embora tenha se colocado como adepta da educação libertadora, em muitos aspectos da
evidência oral reforçou os pensamentos oriundos de sua formação escolar-religiosa.
Isso de modo algum desqualifica a evidência oral como uma fonte propensa a grandes
contradições e, por isso mesmo, inválida. Ao contrário, percebemos que a fonte oral por ser
captada em diferentes situações e ocasiões, tem a capacidade de coletar informações variadas
que, quando trazidas à nossa atenção e, cuidadosamente comparadas, podem nos revelar o que
de fato pensam as pessoas que as produziram. Não queremos dizer com isso que existe
intencionalidade por parte das colaboradoras em ocultar dos depoimentos as verdadeiras
motivações que induziram o seu trabalho docente. Embora em algumas pesquisas possa haver
essa intencionalidade devido o teor do tema em pauta, não é esse o caso de nosso trabalho. O
que ocorre é que, de fato, muitas de nossas colaboradoras presenciaram diversas mudanças de
abordagens teóricas e metodológicas aplicadas à educação, o que levou à confusão e à
dificuldade de posicionar-se diante de outra corrente pedagógica.
É fato, porém, que como temos observado em todo trabalho, os valores introjetados
nas normalistas através de sua educação familiar, profissional e religiosa, marcaram
sobremaneira seu modo de ver a educação e sua prática profissional. Isso ficou evidente neste
relato em que notamos a presença do pensamento cristão na ação pedagógica da colaboradora.
Outro aspecto que merece nossa atenção, no tocante aos valores aprendidos pelas normalistas
durante sua formação e, mais tarde, reproduzidos na sua prática profissional, diz respeito ao
conceito sobre a educação.
Como já dissemos anteriormente, para que a normalista realizasse com eficiência sua
tarefa de educar as futuras gerações de trabalhadores, era preciso que adquirisse um novo
conceito de educação.
O novo contexto social, econômico e político, exigia que os futuros trabalhadores
assimilassem novos valores, ligados à vida urbana e ao ambiente fabril, e ao mesmo tempo,
num processo de desenraizamento, rejeitassem os valores e a cultura das gerações passadas,
ligadas ao campo, que representavam o velho, o ultrapassado e que, por isso, deviam ser
158
substituídos urgentemente pelo progresso, que só viria através do letramento da maior parte
da população brasileira.
De fato, a desvalorização de cada geração de trabalhadores se dá na medida em que a
próxima geração consegue maior qualificação, via sistema escolar, para a realização de uma
determinada tarefa que exige habilidades específicas e, portanto, maior tempo de trabalho
incorporado à sua formação. (BERNARDO, 1989, p. 8-9). Isso explica o processo de
desvalorização da cultura do homem do campo e analfabeto dentro do contexto estudado,
embora não estejamos afirmando que isso tenha ocorrido apenas naquele período
especificamente, visto que é uma característica inerente ao sistema capitalista e, por isso
mesmo, sempre presente.
Na visão da rede, a educação é fundamental, é transformadora:
[A educação] Fundamental, pra mim está em primeiro lugar. Depois da
educação vem a saúde porque você tendo a educação você procura a saúde,
você procura o seu bem estar, procura um trabalho. Pra mim a educação é
fundamental, fundamental. (ARQUIVO 15, p. 15, grifo nosso).
Era pra ter um mundo melhor né. Era pra ser feliz, que todo mundo tem
direito a ser feliz, de estar em paz, de ter lazer, de ter trabalho, de ter comida.
E sempre meu motivo foi mesmo essa razão social, essa responsabilidade
social de estar formando gente feliz, você entendeu? O que adianta educar só
pra aprender a ler, escrever e contar. É pra melhorar a vida, não é? E eu
usava sempre aquilo que eu tinha facilidade, que eu te falei, a música e a
organização de apresentações. Meus alunos aprenderam a coisa mais linda
do mundo. E nessas músicas, nessas poesias, nesses teatrinhos estava tudo
incluído. Era esses assuntos. (ARQUIVO 42, p. 1).
A educação é colocada como fundamental, pois dá o suporte necessário para o
indivíduo de modo geral: „na procura da saúde, do bem estar, do trabalho‟. O homem, por
meio da educação, passa a ser produtivo. Há também uma “razão social” para formar: “a
responsabilidade social de estar formando gente feliz”. Essa convicção de que educar era um
meio de promover a felicidade, de „melhorar a vida‟ do próximo é o que moveu muitas
normalistas à ação, a usar o que tinham aprendido da melhor forma possível.
Outra colaboradora comentou não só o papel da educação, mas o papel da escola e do
professor do seu tempo de magistério:
Eu, eu acho assim, o que talvez seja o objetivo da escola além de transmitir
conhecimentos né, ela também eu acho que influi muito na formação né, na
formação. Porque principalmente aquelas crianças já, desde assim, vamos
supor, dos primeiros anos da escola, do ensino fundamental, ele tem muita
influência né. Além do desenvolvimento normal ele tem influência de
159
outros, outros professores, outros alunos, o meio que, é muito importante na
formação. [...] Ela é formativa também. Então não é só transmitir o
conhecimento, ela forma também, ela forma. Ele adquire muita coisa,
valores né. Então, por isso que precisa ter muito cuidado né, isso tudo.
Porque de qualquer maneira, mesmo transmitindo conhecimento, o
professor, ele ta transmitindo, ta formando o aluno, ta transmitindo valores.
[...] É. Agora, a verdade, a família influi na educação dos filhos e coisa e tal
né, mas eu acho que a escola também tem um papel muito importante né.
Não sei hoje, não posso falar nada de hoje, a escola de vinte anos atrás e esta
eu não posso falar nada né. [...] Eu não posso falar nada né, eu não posso
falar. Mas na época que eu trabalhei, o que eu vi, a escola era muito... muito
formativa também e muito informativa. [...] Cumpria as duas funções sim.
Agora não posso falar. [...] É. Porque além da parte do patriotismo, depois
de tudo que era muito relevante na escola, eu acho assim que a gente
procurava também a formação moral né, do aluno e eu não sei, eu acho
assim que a maneira, o exemplo do professor, eu acho que na época ele era
muito, muito forte, eu acho que era muito assim, o professor era objeto assim
de observação sabe, parece assim que os alunos olhavam com muito carinho
pro professor, e era um modelo, um modelo. Então houve época em que era
modelo mesmo. (ARQUIVO 43, p. 9-10).
Como já fora dito anteriormente, dentro da pedagogia tradicional a escola tinha por
objetivo „transmitir conhecimentos‟. Nesse aspecto, podemos concluir que o aluno era um
sujeito passivo no processo ensino-aprendizagem, mero depositário de conhecimentos
sistematizados, acumulados pela sociedade. A colaboradora reconheceu a influência que os
professores, os alunos e o meio tinham sobre a formação do indivíduo nos primeiros anos
escolares e, por isso, concluiu: “[a educação] é formativa também”. O professor tem que ter
cautela, “precisa ter muito cuidado [...] porque de qualquer maneira [...] o professor [...] tá
formando o aluno, ta transmitindo valores”. O exemplo do professor falava mais alto na
„formação moral, na parte do patriotismo‟. “O professor era objeto assim, de observação [...]
que os alunos olhavam com muito carinho [...] houve uma época em que ele era modelo
mesmo”.
Isso evidencia que ainda na época de exercício da profissão da colaboradora, a questão
do modelo do professor era muito valorizada como método eficiente de ensino. Na sua leitura
a escola cumpria, de fato, dois papéis: o de formar e o de informar, sendo que o primeiro,
como procuramos reforçar em toda a pesquisa, é o que a instituição escolar tem conseguido
maior sucesso.
Um comentário muito interessante sobre o papel da educação foi feito por outra
colaboradora da rede:
A educação é política. E é justamente na parte política refere-se à formação
do cidadão, certo? É lógico que você não pode descuidar do conteúdo e de
160
tudo isso, mas então o professor tem que estar a par da situação econômica,
da situação política, enfim... para ele ir orientando os alunos, né? [...] Eu
sempre falo Cristina, primeiro eu falo em dever pra depois ter direitos.
Porque você primeiro, você tem que cumprir o seu dever, pra depois você ter
os seus direitos. Certo? Então essa é a parte política. Nada de ficar
defendendo fulano ou cicrano. Não, de jeito nenhum. (ARQUIVO 28, p. 9-
10).
De acordo com a visão da colaboradora “a educação é política”, ou seja, o professor
deve „orientar o aluno‟ para que ele esteja a par dos seus deveres e direitos. A ordem das
coisas deve ser esta: “primeiro eu falo o dever para depois ter direitos [...] Você tem que
cumprir o seu dever, pra depois ter os seus direitos. Certo?” Essa é a lógica que a escola em
que as normalistas estudaram e, mais tarde atuaram, desejava imprimir na mente das crianças:
se você não cumpre bem os seus deveres, não terá direitos, ou melhor, o trabalhador não tem
direitos porque não cumpre bem os seus deveres. Assim, esse conceito, legitimou as injustiças
econômicas e sociais desviando o foco do verdadeiro responsável – o sistema capitalista –
para o trabalhador, que passou a ocupar o lugar deste, no sentido de assumir toda a culpa pelo
seu insucesso, já que este estava diretamente relacionado ao nível de educação que conseguiu
obter. Neste sentido, a instituição escolar cumpre sua função na sociedade caracterizada pelas
desigualdades sociais, a saber, legitimá-las e sancioná-las, responsabilizando o indivíduo pelo
seu fracasso escolar e pelas consequências advindas dele. Bourdieu e Passeron (1970), assim
explicaram a função da instituição escolar:
[...] a Escola detém simultaneamente a função técnica de produção e de
comprovação das capacidades e uma função social de conservação e de
consagração do poder e dos privilégios [...] Delegando cada vez mais
completamente o poder de seleção à instituição escolar, as classes
privilegiadas podem parecer abdicar, em proveito de uma instância
perfeitamente neutra, do poder de transmitir o poder de uma geração à
outra e renunciar assim ao privilégio arbitrário de transmissão hereditária
dos privilégios. Mas, por suas sentenças formalmente irrepreensíveis que
servem sempre objetivamente as classes dominantes, pois não sacrificam
jamais os interesses técnicos dessas classes a não ser em proveito de seus
interesses sociais, a Escola pode melhor do que nunca e, em todo o caso,
pela única maneira concebível numa sociedade que proclama ideologias
democráticas, contribuir para a reprodução da ordem estabelecida, já que ela
consegue melhor do que nunca dissimular a função que desempenha. Longe
de ser compatível com a reprodução da estrutura das relações de classe, a
mobilidade dos indivíduos pode concorrer para a conservação dessas
relações, garantindo a estabilidade social pela seleção controlada de um
número limitado de indivíduos, ademais modificados por e pela ascensão
individual, e dando assim uma credibilidade à ideologia da mobilidade social
que encontra sua forma realizada na ideologia escolar da Escola libertadora.
(BOURDIEU, PASSERON, 1970, p. 175-176, grifo nosso).
161
É relevante o fato que a elite não se contentou em transferir para a escola a
responsabilidade de ser transmissora “dos privilégios” por ela conquistados, como “instância
perfeitamente neutra”, que devia estar acima de qualquer interesse de grupos sociais – ela
garantiu seu lugar dentro dessa instituição colocando as normalistas como suas porta-vozes, a
fim de reproduzirem o discurso legitimador das desigualdades sociais. O tópico frasal tantas
vezes repetido nas entrevistas de que a função da educação era „vencer na vida”, é mais uma
das ideologias impregnadas na fala das colaboradoras. É interessante o argumento de
Bourdieu e Passeron (1970) de que mesmo os poucos indivíduos oriundos das camadas
populares que conseguem burlar o sistema de seleção e alcançarem a mobilidade social via
educação, são “modificados por e pela ascensão individual”, legitimando assim „as
ideologias democráticas da Escola libertadora‟.
Entretanto, a maioria dos que introjetaram a idéia de que através do estudo era
possível „vencer na vida‟, perceberam da maneira mais cruel possível que essa teoria, quando
aplicada ao filho do trabalhador, não funcionava da mesma maneira. Um exemplo típico é o
próprio magistério, que teve durante o período aqui abrangido, seu apogeu de glória e
declínio. Isso se deu, como já comentamos no capítulo anterior, porque a partir da lei 5692/71,
o magistério foi destituído de sua posição, tornando-se um curso preparatório em nível de 2°
grau (atual Ensino Médio), funcionando até em período noturno, podendo assim receber entre
os aspirantes a professores primários, trabalhadores que desejavam melhor colocação no
mercado de trabalho. No entanto, quando esta geração alcançou a tão sonhada escola Normal,
seus sonhos de „melhorar de vida‟ se desfizeram porque, junto ao ingresso desse novo
contingente social na Educação, o Magistério perdeu o seu caráter de profissão valorizada,
respeitada como percebemos na fala das colaboradoras citada outrora.
Na prática, ficou difícil perceber a veracidade desse conceito impregnado na cultura
social e repetido no discurso dos professores que, por meio dele, procuram valorizar seu
trabalho.
As crianças, por sua vez, desde muito cedo ouvem que devem ir para a escola para ser
alguém na vida, mas, após anos de esforço, driblando todos os obstáculos que a escola impõe
ao filho do trabalhador que insiste em se qualificar cada vez mais, exigindo um espaço que é
seu por direito nas universidades públicas, percebe que a história não é bem assim. Ser
alguém na vida não depende somente da educação escolar obtida e do esforço individual de
cada um, como a ideologia dominante quer fazer acreditar. E é percebendo esses mecanismos
de dominação que alguns indivíduos se insurgem contra a instituição escolar, como vimos na
introdução, o fragmento oral em que uma empregada da fazenda questionou o valor da
162
educação e o porquê seu filho deveria frequentar a escola. Para ela era difícil compreender
como a educação é o caminho para alcançar o sucesso, se isso não era facilmente observável
em seu meio, com quem se relacionava.
Por último, falaremos aqui sobre a formação continuada das professoras primárias e
como isso afetou sua experiência profissional.
3.3 Formação Continuada: O Curso de Pedagogia e a Experiência na Gestão Escolar
Como vimos no Capítulo 1, com a implantação da Lei 5692/71 o sistema de ensino
passou por profundas transformações. Um de seus artigos, o de nº. 39, direcionou a história
profissional de nossa rede, ao instituir a remuneração do professor segundo sua qualificação,
independente do grau escolar em que atuasse.
Podemos dizer que esse incentivo por parte do Governo foi um fator preponderante
para que as professoras primárias, que já se encontravam bem próximas à aposentadoria,
ingressassem nos cursos de Pedagogia. Da rede entrevistada, composta de cinco normalistas,
apenas uma abandonou o magistério, indo dedicar-se ao jornalismo e aos programas de Rádio.
Esta, porém, logo depois de casada, concluiu o curso de História na então Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Franca, sendo da primeira turma de formandos. As demais, que
atuaram na rede pública de ensino como professoras primárias, neste período ingressaram no
curso de Pedagogia, a fim de conquistarem progressão acadêmica e salarial.
Para a época isso representava um grande esforço, pois o curso Pedagogia, que
anteriormente existia na cidade de Franca, foi transferido para outra cidade no ano de 1976,
com a integração da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Franca à UNESP, o que
obrigou muitas normalistas a viajarem até a cidade mais próxima – Ribeirão Preto12
– que
oferecia o curso em universidades particulares.
D. Edna, a veterana da rede, chegou a se formar em Pedagogia na Faculdade de
Filosofia Ciências e Letras de Franca, fazendo apenas as especializações em Ribeirão Preto, já
na época da extinção do curso na cidade. Ela contou:
Eu me formei primeiro [que a Cleuza], eu devo ter formado em setenta e
dois [...]. Mas foi lá no Moura Lacerda, foi lá em Ribeirão Preto [...] lá foi
especialização. A pedagogia eu fiz aqui. Ainda não era UNESP, era
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras. [...] Desde que a pedagogia veio
12
Ribeirão Preto está situada a 98 km de Franca.
163
aqui pra Franca, que foi em sessenta... sessenta e sete, por aí mais ou menos,
nem não era aqui, ali no prédio não [...]. Acho que era no Homero Alves,
não sei. Funcionava lá... não sei. Eu tinha vontade de fazer. Aí minha filha,
mas o meu marido não queria que eu fizesse, aí chegou numa época que eu
falei: “não, eu vou fazer...” Certo? E acabei fazendo o curso muito bom, a
pedagogia aí foi muito boa. Embora um pouco tradicional mesmo, mais na
leitura, decorada... Hoje não! Hoje a coisa é diferente, mas foi um curso
muito bom, com professores muito bons [...] Em Ribeirão [Preto]. Na Barão
de Mauá... fiz na Barão de Mauá [especialização] e uma na Moura Lacerda.
E fiz a supervisão também na Moura Lacerda... Barão de Mauá”.
(ARQUIVO 28, p. 11-12).
Neste relato ainda fica evidente a sobrevivência da postura tradicional machista do
homem, que não incentivava que a mulher, que já se encontrava atuante no mercado de
trabalho, continuasse a se especializar através da educação. Em contraponto, notamos que a
mulher oriunda dos grupos mais abastados, educada a se calar diante da vontade do marido,
ao sair para trabalhar, mudou sua postura, se posicionando diante das situações, como um ser
com vontade própria: “Aí minha filha, mas o meu marido não queria que eu fizesse
[Pedagogia], aí chegou numa época que eu falei: „não, eu vou fazer...‟ Certo? E acabei
fazendo o curso”. Era inimaginável para a geração das progenitoras das normalistas a mulher
afrontar a vontade soberana do marido.
Caso inverso contou-nos D. Cleuza, de como ela e o marido acordaram sobre o
revezamento para estudar mais após casados:
Aconteceu também na nossa vida uma coisa, na vida adulta que marcou
tanto o meu esposo quanto eu, é que ele também vem de uma família simples
e que não pode assim prosseguir os estudos, que ele tinha um grupo de
colegas da sala dele, de alunos assim brilhantes. E todos eles tinham o ideal
de fazer faculdade no Largo São Francisco em São Paulo, a de Direito. E
todos foram e ele não pode ir porque ele não tinha condições, o pai dele de
manter ele em São Paulo, então ele era solteiro né, mas nós já estávamos
quase pra casar também. Quase não, depois nós fomos casar daqui uns três
ou quatro anos. E ele começou já a trabalhar. Trabalhar. Como ele formou
também no magistério, ele fez contabilidade, magistério, ao mesmo tempo.
Então ele começou a dar aula. E aí estruturando nossa vida e tudo, quando as
minhas filhas já estavam assim com três, quatro, cinco aninhos que abriu
faculdade de Direito aqui em Franca; ele prestou vestibular e ele fez a
faculdade de Direito aqui, e ele conseguiu se formar brilhantemente, passar
em concurso, que ele foi delegado de polícia aqui na cidade, muitos anos até
aposentar. E isso também foi um motivo muito grande na nossa vida que eu
também fui fazer. Ele falou: “primeiro eu, que você vai ficar com as crianças
e tal, e agora você.” Então eu também fui fazer faculdade em Ribeirão Preto
né, que aqui não tinha pedagogia. [...] E aí eu viajava de van todas as noites.
A gente, aí que eu deixava minhas filhas e viajava pra fazer faculdade. Então
esse acontecimento foi marcante na nossa vida porque a gente mudou nosso
padrão de vida, uma série de coisas porque meu marido passou a ser
164
delegado de polícia e eu prestei concurso pra ser diretora de escola.
(ARQUIVO 27, p. 4-5).
Percebemos mudanças na cultura social tradicional, em que já se fazia presente a
divisão de tarefas e acordos mútuos entre os cônjuges. Também notamos neste fragmento que
a ampliação dos estudos estava diretamente relacionada a busca de melhor posição social e
econômica, haja vista que o marido da colaboradora, de professor, tornou-se delegado de
polícia e ela, por sua vez, diretora, o que a permitiu concluir: “mudou nosso padrão de vida”.
Após concluir o curso de Pedagogia a alternativa de continuidade dos estudos estava
nos cursos de especialização. Foi nessa época que a rede toda se encontrou, estudando juntas:
Você pensa que nós contentamos só com terminar a pedagogia? A gente
voltou no ano seguinte porque sabe essas habilitações? Hoje você se forma
com todas né, supervisão, magistério, orientação. Naquele ano voltava pra
fazer um ano. Naquele tempo, você terminou a pedagogia e você voltava pra
fazer um ano inteirinho de supervisão. Toda a sexta à noite e sábado dia
todo. E depois voltei pra fazer orientação, voltei pra fazer inspeção, eu fiz
todas as habilitações. Depois as disciplinas para o Magistério, e depois, o
que mais? São cinco orientações, sabia? (ARQUIVO 27, p. 13).
Nós íamos de, arrumávamos van. Não era van na época, era [...] É. Kombi.
E tinha muita gente né, muitos que queriam fazer, a gente ia pra lá. [...] Dois
anos. Nós tínhamos que fazer, fizemos dois anos lá. Aí depois ainda ficamos
fazendo, fizemos o curso de administradores que nós saia pra administrar.
Daí fizemos a, depois foi mais um ano pra gente fazer supervisão, orientação
escolar. Todas aquelas habilidades né, habilitações que tinha nós fizemos
também. Então ficamos com todos os títulos né, da pedagogia. Logo surgiu o
concurso pra diretor, fazia muitos anos que não tinha concurso pra diretor e
logo surgiu. Nós fomos fazer né. Aí conseguimos aprovação... (ARQUIVO
30, p. 22-23).
A disposição das normalistas ficou evidente em todo o relato de experiência
profissional. As adversidades enfrentadas no início de carreira nas escolas da zona rural, como
transporte difícil, longas distâncias a percorrer em lugares ermos, o frio, a chuva, a distância
da família não foram obstáculos suficientemente grandes para abandonarem a profissão. Após
dois terços da carreira profissional cumprida, as normalistas, com a mesma disposição,
enfrentaram trabalhar a semana toda em suas salas de primeira a quarta série e, na sexta feira,
viajarem de Kombi para a cidade de Ribeirão Preto, ficando ali sexta à noite e sábado
estudando. Por alguns anos as normalistas abdicaram, por assim dizer, do descanso para
continuarem a estudar.
Como vimos nos relatos, após concluírem a Pedagogia e as especializações
envolvidas, as normalistas prestaram concurso para Diretor escolar. É digno de nota que das
165
quatro normalistas que fizeram Pedagogia, apenas uma não quis sair da sala de aula para
assumir cargo de gestão escolar. Explicou que não tinha vocação para cargos de gestão e que
fez a Pedagogia apenas para aumentar o salário:
[aposentou] Como professora. Não, eu não prestei [concurso para
diretora]. Porque quando saiu esse negócio de diretora, que começou todo
mundo de primeiro era só diretor, diretor, diretor, não tinha quase diretora.
Eu já tava quase pra aposentar. Eu falei: “eu vou mexer com isso? Eu não
vou mexer é nada.” E eu não tinha vocação. Esse negócio de papel, ir nessa
Delegacia, essa amolança. Outra coisa que eu não tive vocação é essa
Coordenadora Pedagógica. [...] Não quis [ser diretora]. Porque é muita
antipatia. Eu fiz pedagogia eu sei como é que é, sabe. Você não aprende. Ah
eu tenho dó de quem fala “Ah eu vou fazer pedagogia”. Eu tenho dó, porque
não vira nada, nada, nada, nada. Só pra ter uma coisa. Uma pedagoga no
estabelecimento e não. Uma coisa que não dá certo é o tal de pedagogia. [...]
[Fez a Pedagogia só para] Aumentar salário. Você pode por aí.
(ARQUIVOS 35-36, p. 3).
Como já dissemos anteriormente, as demais colaboradoras prestaram junto o concurso
de Direção Escolar. D. Leila lembrou:
A Edna, a Cleuza... nós fizemos juntas. Pedagogia lá em Ribeirão [Preto] eu
fiz até junto com a Cleuza, lá nós éramos até do mesmo grupo, estudando
mesa, a gente fazia os trabalhos, a gente fez juntas... fiz junto com a Cleuza.
[...] Aí eu fiquei muito bem assim classificada e eu consegui ficar aqui em
Ribeirão Corrente. [...] Então eu fiquei, eu fui pra Ribeirão Corrente. Como
eu já tinha tempo até pra aposentar na época, porque eu já tava com muito
tempo de serviço. [...] É. Mas eu já tava com mais, eu já tava com vinte e
nove quando eu peguei direção de escola. Porque era trinta e de repente
passou pra... aí eu prestei o concurso, aí juntou tudo e eu acabei ficando. [...] Fiquei dois anos e... dois anos, três anos? Fiquei três em Ribeirão Corrente.
Aí vim pra cá, eu vim aqui pro Leporace. [...] Removi pro Leporace, fiquei
lá na escola do Antônio Fachada. (ARQUIVO 30, p. 23-24).
Eu removi pro Antonio Fachada e, tava começando o “Antonio Fachada”, fui
a primeira diretora de lá. Ainda tava o prédio, assim ainda em construção.
[...] Fiquei lá dois anos, dois anos. Porque aí eu completei os cinco anos que
eu precisava pra ficar na jornada integral [...] Por causa da jornada que eu
fiquei. Como professora a minha jornada era parcial. [...] E eu peguei como
diretora a jornada integral. Teria que ficar cinco anos pra receber os
vencimentos integrais né. E fiquei até junho, junho... julho de oitenta e
quatro quando eu aposentei. [...] Acabei ficando, vou dizer, porque como
diretora acabei ficando cinco anos e meio e, como professora, vinte e nove e
meio né. Porque aí eu fiquei mais um pouco como diretora porque eu já ia
completar trinta e cinco anos de magistério. Então eu já esperei completar e
aposentei. Então ao todo, trabalhei trinta e cinco anos. (ARQUIVO 31, p.
1).
166
Como vimos a colaboradora lecionou durante um período de vinte e nove anos,
dedicando aproximadamente mais seis anos de sua vida à gestão escolar. Durante os trinta e
cinco anos de trabalho no magistério público D. Leila fez o seguinte balanço:
Então nós estávamos sempre atualizando sabe, sempre fazendo curso. E eu
gostava demais de, pra mim, a escola foi tudo pra mim sabe, o magistério...
eu posso falar assim com orgulho que eu me dediquei todo esse tempo como
diretora, como professora, eu me dediquei muito, procurava sempre me
atualizar, sempre métodos novos, modernos, sempre me atualizando. E eu
posso assim lhe dizer com sinceridade que foi um trabalho, que foi uma
época muito boa e que eu fiz com muito carinho e com muito amor. [...] Muito. E eu vou te falar uma coisa... que às vezes a gente fica até assim. Eu
tirei aquele afastamento de dois anos né, sem vencimento. Mas depois disso
eu consegui todas as licenças prêmio que tinha... porquê? Eu nunca tirei uma
licença pra tratamento de saúde, durante trinta e cinco anos minha filha.
Nunca tirei uma licença pra nada, nem pra tratamento meu, nem dos meus
filhos, nada. A única coisa que eu tirava era a licença especial gestante. [...]
E licença prêmio que eu tinha [...] Que eu tinha direito, sabe? Só. Então eu
consegui as licenças prêmio, depois do afastamento eu consegui todas as
licença prêmio que eu tinha direito. E eu nunca tirei bem, nenhuma licença
pra tratamento de saúde, nem minha nem dos meus filhos. Olha, eu levanto
as mãos pro céu e eu agradeço toda a hora isso. Então eu acho que eu me
realizei de todo o jeito. De toda a maneira eu me sinto realizada, sinto assim,
muita paz interior. Eu tenho assim muito... agradecida mesmo a Deus por
tudo que eu fiz. (ARQUIVO 31, p. 1-2).
A busca pelo conhecimento, „por novos métodos de trabalho, mais modernos‟ que
permitissem se atualizar durante sua carreira, deram à colaboradora a sensação de ter feito um
bom trabalho. O senso de responsabilidade, incutido desde a infância pela educação familiar,
escolar e religiosa, levou a colaboradora a assimilar o papel que devia assumir diante seus
alunos e diante a sociedade, como modelo de auto-disciplina e diligência no trabalho. Assim
pode falar com orgulho: “nunca tirei uma licença pra nada, nem pra tratamento meu, nem dos
meus filhos, nada. A única coisa que eu tirava era a licença especial gestante [...] e a licença
prêmio que eu tinha direito”. Esse aspecto da memória das normalistas é muito interessante
porque foi repetido por outras colaboradoras da rede. D. Edna fez o seguinte balanço de sua
carreira:
Eu tenho a dizer a você assim que eu me considero uma pessoa realizada
profissionalmente, certo? Não posso dizer pra você que sou a tal. Eu me
considero cumpridora do meu dever. Nunca deixei de, aliás, falei pra você
faltas... eu não tinha faltas. [...] Eu não tinha falta. Eu não faltava. Nós
tínhamos o direito de seis faltas por ano. Não, eu não faltava. Quando estava
trabalhando, nem férias eu tirava, porque constantemente entrando, como
diretora né. Voltando na escola, então... uma formação meio tradicional,
trabalhei de uma forma meio tradicional, depois fui me atualizando, certo, e
167
estou parando de trabalhar, mas não é porque eu quero não. Eu gostaria de
continuar. (ARQUIVO 28, p. 20).
A sensação de haver „cumprido com o dever‟, de „nunca ter faltado‟, dá ao discurso da
normalista um tom épico de quem fez algo sobrenatural, digno de heroínas. No entanto, é
mais coerente concluirmos que isso se deve ao fato de que a própria educação por elas
recebida, engendrou-lhes valores de excelência de produtividade no trabalho, que foi exigida
não só de seus alunos, mas delas próprias, como é evidente no depoimento oral.
Uma das normalistas de nossa rede chegou a ser supervisora de ensino. Ela contou:
Pouco tempo. Eu ingressei em setenta, setenta e nove... É. Fevereiro de
setenta e nove. Então eu fiquei setenta e nove, oitenta. Aí eu prestei concurso
pra supervisor. Porque do [colégio] Jorge Falleiros eu vim para o CEDE,
Davi Carneiro Ewbank. Lá eu fiquei um ano e meio mais ou menos, aqui
fiquei um ano. Aí prestei o concurso pra supervisor e fui pra Ituverava.
Escolhi Ituverava. E como eu já tinha o tempo para aposentar, trinta e cinco
anos bem, aposentei com trinta e cinco anos. E de modo que foi pouco
tempo. (ARQUIVO 28, p. 12-13).
Após aposentar-se no ensino público como supervisora, nossa colaboradora continuou
até os 80 anos a lecionar no curso de Pedagogia da UNIFRAN, tendo concluído Mestrado e
Doutorado. Entretanto, quando foi questionada em que função mais gostou de atuar, ela
respondeu “Para ser sincera, foi na sala de aula. [...] Alfabetização. [...] Com alfabetização eu
devo ter trabalhado assim uns quatro anos, quatro anos”. (ARQUIVO 15, p. 16).
Apesar das colaboradoras terem, em sua maioria, exercido cargos de gestão escolar,
houve uma unanimidade em reconhecer a sala de aula como o lugar da normalista por
excelência. Foi para educar crianças que elas foram preparadas e isso ficou evidente em suas
histórias de vida e trabalho.
168
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa aqui empreendida teve por objetivo trabalhar a memória de uma
categoria social e profissional representativa na história da educação brasileira: as
normalistas. Um estudo pormenorizado sobre como se desenvolveu o sistema de ensino no
Brasil, permitiu-nos traçar um fio condutor através do qual desenvolvemos a pesquisa, a
saber, a educação como meio de produção das condições necessárias para a manutenção da
hegemonia de determinados grupos.
A dualidade do sistema de ensino, que prevê um tipo de educação para os filhos
oriundos da elite, e outro, para os filhos dos trabalhadores, têm suas raízes no modelo
educacional colonial excludente. Tal modelo oferecia aos índios e filhos de colonos – os
braços responsáveis por manter o sistema colonial em funcionamento até a chegada do negro
africano, que ficou alijado do sistema educacional – uma educação adequada às atividades
que ocupariam na sociedade. Como vimos, bem outra era a situação dos filhos dos grandes
latifundiários, que recebiam uma educação literária, com pouco sentido prático, mas que
chancelava seu status quo.
Esse mesmo modelo se repetiu durante o Império e, com a introdução da República,
passou a sofrer algumas alterações, não na estrutura dualista propriamente dita, que
permaneceu inalterada, mas nos discursos liberais introduzidos na medida em que os grupos
emergentes começavam a ver na educação, um meio de alcançar maior poder. Por outro lado,
os velhos grupos hegemônicos buscavam na educação uma forma de não perder seu status,
anteriormente garantido economicamente, como foi o caso da elite cafeeira em decadência, a
partir da década de 1930.
Podemos verificar, por meio dos relatos orais, como se deu de fato, na mentalidade
desses dois grupos, a busca da educação como instrumento de poder. Para as normalistas,
filhas de fazendeiros decadentes, estudar significava manter o status outrora adquirido
economicamente, no auge do café. Já para as normalistas, filhas de comerciantes e alfaiates
economicamente emergentes, a mentalidade era outra: estudar garantiria o reconhecimento
que seus pais – em alguns casos com menos estudo que elas – não tinham da elite cafeeira
local. Apesar de, com o crescimento da cidade, ocorrer um grande impulso no comércio, e
florescer uma nova elite urbana, esta não era considerada pelos cafeicultores como seus pares,
talvez por não ter o requinte que a formação tradicional exigia. Assim, para sentirem-se
membros desse grupo, era preciso absorver sua cultura social, seus costumes, sua tradição, e a
escola era o melhor lugar para aprender tal conteúdo. Vale lembrar que muitos desses
169
profissionais, por serem imigrantes, tinham como única via de acesso à língua e às tradições
locais, os filhos, que eram enviados para a escola a fim de aprender e, depois ensiná-los em
casa. Dona Leila contou-nos como seus pais, de origem síria aprenderam o português:
[Aprenderam] A falar [português], mas não aprenderam. [...] A escrever.
[...] Porque na época eles não tinham oportunidade pra isso né. Porque só
vieram assim, numa situação muito difícil pra trabalhar mesmo. Então
lutaram muito no começo, pra conseguir sustento e tudo, então eles não
sabiam nem ler e nem escrever o português assim.
Cristina: Então eles tinham uma certa, eu to perguntando isso pra saber se
eles tinham uma certa dificuldade na orientação dos filhos quando os filhos
estavam na escola. Na realidade o que vocês aprendiam é que vocês levavam
pra casa. Não era o contrário, não eram os pais que conseguiam auxiliar
vocês nas tarefas...
D. Leila: É. Porque na ocasião também a escola era também uma, oferecia
assim... tudo pro aluno [INAUDÍVEL]. Com as explicações dos
professores e tudo mais, não só eu, mas todos da época não tinham a
necessidade dos pais orientarem nada quanto a aprendizagem. Acho que a
gente já adquiria na escola [...] Com aquilo de adquirir hábitos bons né. A
escola colaborava com tudo. (ARQUIVO 30, p. 2-3. grifo nosso).
Ter filhas bem criadas, com a educação das filhas dos grandes fazendeiros, dava a
esses homens ligados ao comércio e às profissões liberais, em sua maioria imigrantes ou
descendentes diretos deles, a sensação de pertencimento ao grupo, e o status que talvez não
tivessem, por não pertencerem a um família rica, tradicional. Esse status não era alcançado
apenas pelo sucesso econômico, mas, sobretudo, pelo diploma, o que as normalistas tinham
com muito orgulho: “Mas isso [ser a primeira na família a se formar como normalista] foi
uma honra, para a família, certo. E ela, a mamãe sentia assim gloriosa de ter conseguido com
que eu me formasse como normalista”. (ARQUIVO 15, p. 4).
As transformações econômicas e políticas ocorridas no limiar do século XX no
Brasil foram responsáveis pelas disputas de poder entre os grupos emergentes e a elite
dominante, ligada ao sistema agrário-exportador. A educação tornou-se a pauta das discussões
entre intelectuais, dando origem ao Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, que lançou
temas pertinentes como a laicidade, a obrigatoriedade e a coeducação dos sexos, que foi
retomado nas Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional dando um caráter liberal a
elas.
É importante observar que estas transformações legislativas foram todas vivenciadas
pelas normalistas, ora como alunas, ora como professoras e gestoras, o que nos ajuda a
compreender como foram sentidas na prática, no cotidiano escolar. Isso permitiu-nos uma
discussão pertinente sobre o abismo existente entre os modelos educacionais discutidos e
170
definidos pelos intelectuais e legisladores que pensam e escrevem sobre educação e o ponto
de vista de quem vivencia a prática pedagógica. Percebemos a incompreensão das normalistas
com respeito às mudanças ocorridas nas leis, como foi o caso da reorganização do ensino
(LEI 5692/71) que, do ponto de vista delas, causou uma desordem, “Então, era uma coisa
muito, muito, não sei como vou te falar, assim, desorganizada e não tinha jeito de organizar
aquilo. Então a escola ficou assim, saturada sabe? Ela não comportava aquele número de
alunos.” (ARQUIVO 32 p. 3).
O modo como as normalistas foram educadas ditou a forma como elas se portaram,
como porta-vozes dos interesses de uma elite dominante, que tinha no sistema educacional,
uma função determinada: a formação de braços operantes e mentes dóceis para o sistema
fabril então em desenvolvimento no Brasil.
A escola precisava se abrir, tornar-se obrigatória, formar tanto homens como
mulheres, eliminar o exame de admissão (LEI 5692/71) para garantir ao jovem alcançar a
educação técnica que a lei anterior (4.024/61 art. 1º) previa, como fundamental para o
desenvolvimento econômico do país. Foi difícil para as normalistas assimilar e compreender
tantas mudanças.
A educação recebida no lar, inspirada na organização da família patriarcal
tradicional, adicionada que foi aos valores religiosos e morais ministrados nos colégios
confessionais que ofereciam o Curso Normal, com suas marcantes características de civismo,
obediência, ordem, moral e religião, foi a base sobre a qual se formou a identidade das
normalistas.
Ficou evidente nos relatos a força do currículo oculto na formação dos conceitos das
normalistas e na sua prática pedagógica. Percebemos isso em tópicos frasais como „o
professor modelo‟, em que a descrição da normalista, feita por diferentes colaboradoras se
confunde. Nesse momento, diferentes memórias se mesclam, como se fizessem parte do
mesmo depoimento, mostrando-nos quão forte era a presença e a postura do professor, como
meio ou instrumento de ensino, pois isso ficou marcado, tanto na memória, como na sua
prática profissional.
A „escola de qualidade‟, alardeada pelas normalistas nas entrevistas, com educação
de altíssimo nível, nada mais era que uma instituição reforçadora de modelos tradicionais, que
a elite devia cultuar a fim de se distinguir dos demais grupos sociais e, ao mesmo tempo,
dominá-los. Percebemos através dos relatos orais, a ausência de conhecimentos científicos no
currículo das normalistas, que não citam conteúdos relativos às grandes áreas do
conhecimento (exatas, biológicas, humanas) ministrados no curso. O que certificamos foi o
171
quanto o currículo escolar, principalmente do curso Normal, priorizava a formação da mulher
enquanto cuidadora do lar e dos filhos, sendo a escola, uma extensão da casa, e os alunos a
continuidade da família. Isto justificava a inclusão de disciplinas como artes manuais, polidez
e música, em detrimento de outras, mais consistentes para formação das futuras professoras.
De fato, o que ficou para as normalistas, gravado como que com ferro de marcar sua memória,
foi o currículo oculto, reforçador das ideias dos grupos dominantes e o currículo escolar,
baseado na formação do perfil da normalista; estes se tornaram a base sobre a qual foi
desenvolvido todo o discurso hegemônico que deviam tomar para si e apregoar durante sua
prática pedagógica.
Neste sentido, é impossível não pensar que a educação das normalistas, forjadas
sobre a égide das ideias de igualdade e democracia, foi eficiente em reproduzir as
desigualdades de um sistema dualista de ensino e sociedade, na medida em que priorizou um
currículo vazio de conteúdo e recheado de conceitos, modelos e práticas reforçadoras do
status do grupo.
No entanto, quando levantamos a questão da prática pedagógica das normalistas
como reprodutora de um sistema de exclusão, no qual os grupos sociais, através da educação,
continuam a ocupar o espaço que lhes é conferido na sociedade, não estamos de modo algum
afirmando que as normalistas tinham plena noção do papel que ocupavam nesse jogo de
interesses. De fato, as normalistas receberam uma educação eficiente tanto no lar, quanto na
igreja, assim como na escola, o que permitiu a elas formar um conjunto de valores
correspondente à ideologia que deviam transmitir, e por crerem nela, o fizeram com grande
eficácia.
Notamos na evidência oral a importância que as normalistas davam à educação, que
demonstra-nos o quanto absorveram o discurso liberal de que a educação era uma forma clara
de ascensão social ou, nas palavras das normalistas de „vencer na vida‟. Neste aspecto a
pesquisa mostrou que as normalistas, como porta-vozes do sistema, assimilaram o discurso
liberal e o legitimaram em sua prática pedagógica sem, no entanto, notarem quão
contraditório é o discurso da realidade que se vê no cotidiano escolar, permeado pela
exclusão, em que nem sempre estudar, significa vencer na vida.
Quando convocadas a lembrar, as normalistas tratam com serenidade o passado,
como quem tem a certeza que cumpriu com a tarefa que lhe foi conferida:
Eu acho que é o que eu queria fazer, que eu gostei de fazer e que. [...] Eu me
senti realizada na profissão. Realizada e muita paz. Não tenho nada de
arrependimento, nem nada assim, nada. Pra mim o tempo foi muito bom,
172
valeu. Eu acho que eu fiz aquilo que tava ao meu alcance fazer, eu fiz o
melhor possível. Eu deixei as coisas que eu deixei por fazer, não por
omissão, ou porque não quis, nada. Naturalmente eu não tinha condições de
fazer. Mas tudo o que eu pude fazer, eu fiz. Então eu me sinto mesmo
realizada. Já tô fazendo quase vinte e cinco anos que eu aposentei né. Vai
fazer agora, esse ano, vinte e cinco que eu aposentei. (ARQUIVO 32, p.
25).
Não apenas no breve trecho citado acima, mas também em outras frases ditas é
possível compreender até que ponto as normalistas tinham noção de seu papel no sistema
educacional. Fica evidente que o que reproduziram em sua prática pedagógica foi o conjunto
de crenças e valores fortemente enraizados na cultura do grupo social onde tiveram origem, e
que, justamente por isso, foram tão eficientes em cumprir o papel de educadoras. Narcisismo
educacional, é verdade, educação pelo espelho: educar no outro aquilo que vê em si.
Durante as entrevistas, foi possível perceber que quando sua memória, conjunto de
valores e crenças foram confrontados com fatos, demonstrando as contradições existentes
entre a ideologia apregoada por elas, e a prática no cotidiano escolar, em muitos casos houve
momentos de choque e tentativa de elaboração do próprio discurso, a fim de adequá-lo ao
real, sanando as discordâncias evidenciadas.
Esses foram os casos de temas polêmicos como a eliminação do exame de admissão
ou a democratização do ensino, que provocaram um discurso elitista que defendia que a
escola de qualidade e não quantidade, como se estes conceitos fossem excludentes. No
entanto, ao serem confrontadas com a ideia de exclusão social da educação anterior à
democratização do ensino, as normalistas, nas próprias entrevistas ou em conversa à parte,
com gravadores desligados, justificaram que a abertura da escola para todos teve sua parte
positiva, ao dar maior condição de acesso à grande massa alijada do processo educacional.
Contudo, as normalistas não compreenderam que a escola, mesmo após reformas
como a 5692/71, continuou excludente, pois embora a lei garanta a obrigatoriedade do ensino
até a 8° série (atualmente 9° ano), a exclusão se dá no seio da escola, durante o processo
educacional, direcionando os grupos para ocuparem suas respectivas funções na sociedade.
Como vimos, tentar burlar tal seleção, na maior parte das vezes, resulta em insucesso, como é
o caso hoje do magistério, antes considerado profissão de status e atualmente pouco procurada
por membros da elite, e reconhecido por muitos, como trabalho para quem não conseguiu
sucesso em carreira melhor, dado o nível de desqualificação e desvalorização do professor na
sociedade brasileira.
173
As reformulações dos discursos por parte das normalistas, longe de desqualificar a
História Oral como método capaz de resgatar a memória de um grupo, mostrou, pelo
contrário, que é flexível. Através dela é possível penetrar no passado, trabalhar com o vivido
no tempo distante, e retrabalhar ideias e pontos de vista que pareciam fossilizados no tempo,
mas que, pela ação do pensamento e do relembrar de pesquisador e colaborador, são
chamados novamente à arena das ideias no tempo presente. Debater, questionar e reformular
na medida em que o sujeito se permite lembrar.
174
REFERÊNCIAS
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178
ANEXO
Questionário pelo qual os praticantes guiam a crítica das aulas dadas pelos seus colegas
(4º ano)
I. Higiene
1) Os utensílios e o material didático empregados e a maneira de empregá-los corresponderam
às boas normas da higiene pedagógica?
2) O tempo destinado à aula podia por si só provocar a fadiga?
II. Governo dos alunos
1) O professor soube provocar e manter a atenção de toda a classe?
2) De que recurso usou para isso?
3) Teve palavras ou gestos de persuasão aos desatentos e aos tímidos? Soube usar de pausas?
Movimentou bem o material didático?
III. Método
1) O assunto estava perfeitamente delimitado? Para a classe, cabia no tempo?
2) O material usado foi o melhor de que podia dispor? Foi pouco? Foi demasiado? Mostrado
muito apressadamente?
3) O desenvolvimento do assunto seguiu os passos formais do método?
a) o professor exigiu a atividade dos alunos?
b) a apresentação dos novos conhecimentos foi feita com base nos conhecimentos já
adquiridos?
c) o trabalho mental (análise e generalizações) estava adequado à idade e ao desenvolvimento
da classe?
d) o professor apressou-se a dar alguma conclusão que podia e devia esperar dos alunos?
e) não divagou inutilmente?
f) não ensinou pelo erro? Se o fez, como e quando?
4) A atitude do professor foi sempre correta e conveniente? Havia entusiasmo na lição, sem
exagerado calor que a tornasse ridícula? A linguagem esteve clara? A pronúncia foi correta e
elegante?
5) Que utilidade teve a aula? Foi meramente instrutiva? Abusou da memória das palavras?
179
6) Que coisas novas diria, ou que coisas não diria, se a aula estivesse em suas mãos? No seu
plano organizado para a mesma aula há alguma particularidade interessante? Qual?
Escola Normal de Piracicaba, 15 de janeiro de 1922.
O professor:
M. Bergström Lourenço Filho