PDL Projeto Democratizao da Leitura
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A Heinrich Blcher
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Wder dem Vergangenen anheimfallen noch dem Zuknftigen. Es kommt darauf ein ganz gegenwrtig
zu sein.
Karl Jaspers
No almejar nem os que passaram nem os que viro. Importa ser de seu prprio tempo.
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PREFCIO PRIMEIRA EDIO
Duas guerras mundiais em uma gerao, separadas por uma srie ininterrupta de guerras locais e
revolues, seguidas de nenhum tratado de paz para os vencidos e de nenhuma trgua para os vencedores,
levaram anteviso de uma terceira guerra mundial entre as duas potncias que ainda restavam. O mo-
mento de expectativa como a calma que sobrevm quando no h mais esperana. J no ansiamos por
uma eventual restaurao da antiga ordem do mundo com todas as suas tradies, nem pela reintegrao
das massas, arremessadas ao caos produzido pela violncia das guerras e revolues e pela progressiva
decadncia do que sobrou. Nas mais diversas condies e nas circunstncias mais diferentes,
contemplamos apenas a evoluo dos fenmenos entre eles o que resulta no problema de refugiados,
gente destituda de lar em nmero sem precedentes, gente desprovida de razes em intensidade inaudita.
Nunca antes nosso futuro foi mais imprevisvel, nunca dependemos tanto de foras polticas que
podem a qualquer instante fugir s regras do bom senso e do interesse prprio foras que pareceriam
insanas se fossem medidas pelos padres dos sculos anteriores. como se a humanidade se houvesse
dividido entre os que acreditam na onipotncia humana (e que julgam ser tudo possvel a partir da adequada
organizao das massas num determinado sentido), e os que conhecem a falta de qualquer poder como a
principal experincia da vida.
A anlise histrica e o pensamento poltico permitem crer, embora de modo indefinido e genrico, que
a estrutura essencial de toda a civilizao atingiu o ponto de ruptura. Mesmo quando aparentemente melhor
preservada, o que ocorre em certas partes do mundo, essa estrutura no autoriza antever a futura evoluo
do que resta do sculo XX, nem fornece explicaes adequadas aos seus horrores. Incomensurvel
esperana, entremeada com indescritvel temor, parece corresponder melhor a esses acontecimentos que o
juzo equilibrado e o discernimento comedido. Mas os eventos fundamentais do nosso tempo preocupam do
mesmo modo os que acreditam na runa final e os que se entregam ao otimismo temerrio.
Este livro foi escrito com mescla do otimismo temerrio e do desespero temerrio. Afirma que o
Progresso e a Runa so duas faces da mesma medalha; que ambos resultam da superstio, no da f. Foi
escrito com a convico de serem passveis de descoberta os mecanismos que dissolveram os tradicionais
elementos do nosso mundo poltico e espiritual num amlgama, onde tudo parece ter perdido seu valor
especfico, escapando da nossa compreenso e tornando-se intil para fins humanos. A passividade de
ceder ao processo de desintegrao converteu-se em tentao irresistvel, no somente porque esse pro-
cesso assumiu a espria aparncia de "necessidade histrica", mas tambm porque os valores em vias de
destruio comearam a parecer inertes, exangues, inexpressivos e irreais.
A convico de que tudo o que acontece no mundo deve ser compreensvel pode levar-nos a
interpretar a histria por meio de lugares-comuns. Compreender no significa negar nos fatos o chocante,
eliminar deles o inaudito, ou, explicar fenmenos, utilizar-se de analogias e generalidades que diminuam o
impacto da realidade e o choque da experincia. Significa, antes de mais nada, examinar e suportar
conscientemente o fardo que o nosso sculo colocou sobre ns sem negar sua existncia, nem vergar
humildemente ao seu peso.Compreender significa, em suma encarar a realidade sem preconceitos e com
ateno, e resistir a ela qualquer que seja.
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Assim, deve ser possvel, por exemplo, encarar e compreender o fato, chocante decerto, de que
fenmenos to insignificantes e desprovidos de importncia na poltica mundial como a questo judaica e o
anti-semitismo se transformaram em agente catalisador, primeiro, do movimento nazista; segundo, de uma
guerra mundial; e, finalmente, da construo dos centros fabris de morte em massa. Tambm h de ser
possvel compreender a grotesca disparidade entre a causa e o efeito que compunham a essncia do
imperialismo, quando dificuldades econmicas levaram, em poucas dcadas, profunda transformao das
condies polticas no mundo inteiro; a curiosa contradio entre o "realismo", como era cinicamente
enaltecido pelos movimentos totalitrios, e o visvel desdm desses sistemas por toda a textura da realidade;
ou a irritante incompatibilidade entre o real poderio do homem moderno (maior do que nunca, to grande que
pode ameaar a prpria existncia do seu universo) e a sua incapacidade de viver no mundo que o seu
poderio criou, e de lhe compreender o sentido.
A tentativa totalitria da conquista global e do domnio total constituiu a resposta destrutiva encontrada
para todos os impasses. Mas a vitria totalitria pode coincidir com a destruio da humanidade, pois, onde
quer que tenha imperado, minou a essncia do homem. Assim, de nada serve ignorar as foras destrutivas
de nosso sculo.
O problema que a nossa poca interligou de modo to estranho o bom e o mau que, sem a
expanso dos imperialistas levada adiante por mero amor expanso, o mundo poderia jamais ter-se
tornado um s; sem o mecanismo poltico da burguesia que implantou o poder pelo amor ao poder, as
dimenses da fora humana poderiam nunca ter sido descobertas; sem a realidade fictcia dos movimentos
totalitrios, nos quais pelo louvor da fora por amor fora as incertezas essenciais do nosso tempo
acabaram sendo desnudadas com clareza sem par, poderamos ter sido levados runa sem jamais saber o
que estava acontecendo.
E, se verdade que, nos estgios finais do totalitarismo, surge um mal absoluto (absoluto, porque j
no pode ser atribudo a motivos humanamente compreensveis), tambm verdade que, sem ele,
poderamos nunca ter conhecido a natureza realmente radical do Mal.
O anti-semitismo (no apenas o dio aos judeus), o imperialismo (no apenas a conquista) e o
totalitarismo (no apenas a ditadura) um aps o outro, um mais brutalmente que o outro demonstraram
que a dignidade humana precisa de nova garantia, somente encontrvel em novos princpios polticos e em
uma nova lei na terra, cuja vigncia desta vez alcance toda a humanidade, mas cujo poder deve permanecer
estritamente limitado, estabelecido e controlado por entidades territoriais novamente definidas.
J no podemos nos dar ao luxo de extrair aquilo que foi bom no passado e simplesmente cham-lo
de nossa herana, deixar de lado o mau e simplesmente consider-lo um peso morto, que o tempo, por si
mesmo, relegar ao esquecimento. A corrente subterrnea da histria ocidental veio luz e usurpou a
dignidade de nossa tradio. Essa a realidade em que vivemos. E por isso que todos os esforos de
escapar do horror do presente, refugiando-se na nostalgia por um passado ainda eventualmente intacto ou
no antecipado oblvio de um futuro melhor, so vos.
Hannah Arendt
Vero de 1950
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Parte I
ANTI-SEMITISMO
Este um sculo extraordinrio, que comea com a Revoluo e termina com o Caso Dreyfus. Talvez
ele venha a ser conhecido como o sculo da escria.
Roger Martin du Gar
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PREFCIO
Entre o anti-semitismo como ideologia leiga do sculo XIX (que de nome, embora no de contedo,
era desconhecida antes da dcada de 1870) e o antisemitismo como dio religioso aos judeus, inspirado no
antagonismo de duas crenas em conflito, obviamente h profunda diferena. Pode-se discutir at que ponto
o primeiro deve ao segundo os seus argumentos e a sua atrao emocional. A noo de que foram
ininterruptamente contnuas as perseguies, expulses e massacres dos judeus desde o fim do Imprio
Romano at a Idade Mdia, e, depois, sem parar, at o nosso tempo, freqentemente conjugada com a idia
de que o anti-semitismo moderno nada mais seno uma verso secularizada de populares supersties
medievais,1no menos preconceituosa (embora seja, naturalmente, menos nociva) que a noo anti-semita
de uma secreta sociedade judaica, que dominou ou procurou dominar o mundo desde a Antiguidade.
Historicamente, o hiato entre os fins da Idade Mdia e a poca moderna, no que se refere questo judaica,
ainda mais marcante do que a brecha entre a Antiguidade romana e a Idade Mdia, ou o abismo
freqentemente considerado o ponto decisivo e o mais importante da histria judaica que separou os
massacres perpetrados pelas primeiras Cruzadas e os primeiros sculos medievais. Esse hiato durou quase
duzentos anos, do incio do sculo XV at o fim do sculo XVI, quando as relaes entre judeus e gentios
estiveram mais frgeis do que nunca, quando a "indiferena [judaica] s condies e eventos do mundo
exterior" foi mais profunda do que antes, e o judasmo se tornou "um sistema fechado de pensamento". Foi
por essa poca que os judeus, sem qualquer interferncia externa, comearam a pensar que "a diferena
entre o povo judeu e as naes era, fundamentalmente, no de credo, mas de natureza interior", e que a
antiga dicotomia entre judeus e gentios "provinha mais provavelmente de origem tnica do que de
discordncia doutrinria".2 Essa mudana na avaliao do carter diferente do povo judeu que s surgiu
entre os no-judeus muito mais tarde, na Era do Esclarecimento constituiu certamente a condio sine
qua non do nascimento do anti-semitismo, e de certa importncia observar que ela ocorreu primeiro no ato
da auto-interpretao judaica, surgido na poca da fragmentao da cristandade europia em grupos tnicos,
os quais depois alcanariam a autonomia poltica, formando o sistema de Estados-naes.
1 O exemplo mais recente dessa idia o livro de Norman Cohn, Warrant for genocide. The myth of the Jewish world-conspiracy
and the "Protocols of the Eiders of Zion", Nova York, 1966 [publicado no Brasil sob o ttulo A conspirao mundial dos judeus: mito ou realidade?, Ibrasa, So Paulo, 1969]. O autor nega implicitamente a existncia da historia judaica. Na sua opinio, os judeus so "pessoas que (...) viviam disseminadas em toda a Europa, desde o canal da Mancha at o Volga, tendo muito pouco em comum, exceto o fato de descenderem de seguidores da religio judaica" (p. 15). Os anti-semitas, ao contrrio, podem segundo ele reivindicar uma ascendncia ininterrupta, no espao e no tempo, desde a Idade Mdia, quando "os judeus haviam sido considerados agentes de Sat, adoradores do diabo, demnios com forma humana" (p. 41) e a nica restrio que o erudito autor de Pursuit ofthe Millenium achou adequado fazer a tais generalizaes abrangentes foi a de que ele trata apenas "da espcie mais mortfera de anti-semitismo, da qual resultam massacres e tentativas de genocdio" (p. 16). O livro tenta ainda provar, embora de modo bastante forado, que "as massas da populao alem nunca realmente se fanatizaram contra os judeus", e que o extermnio destes "foi organizado e levado a cabo pelos profissionais do SD e da SS", entidades que "de modo algum representavam a amostra tpica da sociedade alem" (pp. 212 ss). Como seria bom se esta afirmao se ajustasse aos fatos! O resultado que se l o livro como se ele tivesse sido escrito quarenta anos atrs por um membro excessivamente engenhoso do Verein zur Bekmpfung des Antisemitismus (Liga para o Combate do Anti-semitismo), de infeliz memria.
2 Todas as citaes so de Jacob Katz, Exclusiveness and tolerance, Jewish-Gentile rela-tions in medieval and modem times, Nova York, 1962
(captulo 12), estudo inteiramente original, de elevado nvel, que realmente devia ter destrudo "muitas noes caras ao povo judeu contemporneo", como est escrito na capa, mas que no o fez porque foi quase completamente ignorado pela imprensa em geral. Katz pertence jovem gerao de
historiadores judeus, muitos dos quais ensinam na Universidade de Jerusalm e publicam suas obras em hebraico. Com eles, acabou realmente a verso
"lacrimognea" da histria judaica, contra a qual Saio W. Baron protestou h quase quarenta anos.
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A histria do anti-semitismo, como a histria do dio aos judeus, parte integrante da longa e
intrincada histria das relaes que prevaleciam entre judeus e gentios desde o incio da disperso judaica.
O interesse por essa histria, praticamente nulo antes dos meados do sculo XIX, surgiu coincidindo com a
ecloso do anti-semitismo, hostil aos judeus emancipados e assimilados. Obviamente, esse foi o pior
momento para a pesquisa historiogrfica objetiva.3Desde ento, tanto os historigrafos judeus quanto os no-
judeus dedicaram-se embora por motivos opostos nfase dos elementos mutuamente antagnicos,
encontrados nas fontes crists e judaicas. Ambos os lados sublinhavam as catstrofes, expulses e
massacres que pontilharam a histria dos judeus, do mesmo modo como os conflitos armados e
desarmados, guerras, fome e pestilncia que pontilharam a histria da Europa. Desnecessrio dizer,
enquanto os historigrafos judeus, com sua tendncia polmica e apologtica, detectavam da histria crist
as ocorrncias caracterizadas pelo dio aos judeus, os anti-semitas, de modo intelectualmente idntico,
faziam o mesmo, procurando as anunciaes das antigas autoridades judaicas que tivessem dado incio
tradio judaica de antagonismo, muitas vezes violento, contra os cristos e gentios. "A opinio pblica
judaica ficou ento no s perplexa, mas genuinamente pasmada",4 to bem tinham seus porta-vozes
conseguido convencer a todos inclusive a si mesmos da veracidade do antifato que apresentava a
segregao dos judeus como resultado exclusivo da hostilidade dos gentios e do seu completo
obscurantismo. Desde ento, os historiadores judeus passaram a afirmar ter sido o judasmo sempre superior
s outras religies, pelo simples fato de crer na igualdade e tolerncia humana. Essa teoria perniciosa, aliada
convico de que os judeus sempre constituam objeto passivo e sofredor das perseguies crists, na
verdade prolongava e modernizava o velho mito de povo escolhido; assim, s podia levar a novas e
freqentemente complicadas prticas de segregao, destinadas a manter a antiga dicotomia numa
daquelas ironias que parecem reservadas aos que, por quaisquer motivos, buscam enfeitar e manipular os
fatos polticos e os registros histricos. Pois, se os judeus tinham em comum com os seus vizinhos no-
judeus algo que justificasse a sua recm-proclamada igualdade, era precisamente o passado de mtua
hostilidade determinada religiosamente, passado to rico em realizao cultural no nvel mais alto quanto
abundante em fanatismo e supersties no nvel das massas ignorantes.
Contudo, at os irritantes esteretipos desse setor da historiografia judaica apiam-se mais
solidamente em fatos histricos que as obsoletas necessidades polticas e sociais do povo judeu na Europa
do sculo XIX e do comeo do sculo XX. Embora a histria cultural judaica fosse infinitamente mais diversa
do que se supunha naquela poca, e embora as causas do desastre judeu variassem ao longo das
circunstncias histricas e geogrficas, a verdade que se alteravam mais em funo do ambiente no-
judeu do que das comunidades judaicas. Dois fatos reais foram decisivos para a formao dos conceitos
errneos e fatdicos que ainda permeiam as verses populares da histria judaica. Em parte alguma e em
tempo algum depois da destruio do Templo de Jerusalm (no ano 70) os judeus possuram territrio
prprio e Estado prprio; sua existncia fsica sempre dependeu da proteo de autoridades no-judaicas,
embora se lhes concedessem, em vrias regies, alguns meios de autodefesa, como por exemplo, aos
3 interessante notar que o primeiro historiador judeu moderno, Isaak Markus Jost, que escreveu na Alemanha no sculo XIX, rejeitava mais
acentuadamente os preconceitos comuns da historiografia secular judaica que seus sucessores.
4 Katz, op. cit., p. 196.
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"judeus da Frana e da Alemanha at comeos do sculo XIII",
5 o direito de portar armas. Isso no significa
que os judeus nunca tiveram fora, mas a verdade que, em qualquer disputa violenta, no importa por que
motivos, os judeus eram no apenas vulnerveis como indefesos. Assim, no admira que, especialmente no
decorrer dos sculos em que era completa a sua separao do meio no-judeu e que foram anteriores
sua ascenso igualdade poltica , todas as mltiplas exploses da violncia lhes parecessem meramente
normais. Alm disso, as catstrofes eram entendidas, dentro da tradio judaica, em termos de martirologia,
o que por sua vez tinha base histrica tanto nos primeiros sculos de nossa era, quando judeus e cristos
desafiavam o poder do Imprio Romano, quanto nas condies medievais, quando se oferecia aos judeus o
batismo como alternativa para se livrarem das perseguies, mesmo se a causa da violncia fosse poltica e
econmica, e no religiosa. Essa seqncia de eventos conduziu iluso que desde ento afeta tanto os
historiadores judeus como os no-judeus, j que ambas as partes do mais nfase ao fato de "os cristos se
desassociarem dos judeus do que do inverso".6
Assim, escondem o seguinte fenmeno: a separao dos
judeus do mundo gentio, e mais especificamente do ambiente cristo, tem tido maior relevncia na histria
judaica do que o seu oposto, pela razo bvia de que a prpria sobrevivncia do povo judeu como entidade
identificvel dependia dessa separao, que era voluntria, e no, como se costumava supor, resultante da
hostilidade dos cristos e no-judeus em geral. S nos sculos XIX e XX, depois da emancipao e em
conseqncia da assimilao dos judeus, o anti-semitismo veio a ter alguma importncia para a preservao
do povo judeu, pois s ento os judeus passaram a aspirar a serem aceitos pela sociedade no-judaica.
Embora os sentimentos antijudaicos fossem correntes entre as classes educadas da Europa no sculo
XIX, o anti-semitismo como ideologia constitua, com muito poucas excees, rea de atuao dos malucos e
lunticos. At os duvidosos produtos do judasmo apologtico, que nunca convenceram ningum seno os
que j estavam convencidos, formavam exemplos de elevada erudio e cultura, se comparados com o que
os inimigos dos judeus tinham a oferecer em matria de pesquisa histrica 7 Quando, aps o fim da Segunda
Guerra Mundial, comecei a organizar o material para este livro, coletado a partir de documentos e
monografias, s vezes excelentes, que cobriam um perodo de mais de dez anos, no encontrei uma nica
obra sobre o anti-semitismo compatvel com os padres mais elementares da apreciao histrica. E de l
para c a situao pouco mudou. Isso deplorvel, pois a necessidade do tratamento fiel e imparcial da
histria judaica tornou-se recentemente maior do que jamais. Os acontecimentos polticos do sculo XX
atiraram o povo judeu no centro do turbilho de eventos; a questo judaica e o anti-semitismo, fenmenos
relativamente sem importncia em termos de poltica mundial, transformaram-se em agente catalisador,
inicialmente, da ascenso do movimento nazista e do estabelecimento da estrutura organizacional do
Terceiro Reich, no qual todo cidado tinha de provar que no era judeu ou descendente dos judeus; e, em
seguida, de uma guerra mundial de ferocidade nunca vista, que culminou, finalmente, com o surgimento do
genocdio, crime at ento desconhecido em meio civilizao ocidental. Creio ser bvio que isso exige no
5 Ibid, p. 6.
6 Ibid.,p. 7.
7 A nica exceo o historiador nazista e anti-semita Walter Frank, chefe do Reichs-institut fr Geschichte des Neuen Deutschlands [Instituto
Estatal para a Histria da Nova Alemanha] e editor de nove volumes de Forschungen zur Judenfrage [Pesquisas sobre a questo judaica] publicados entre 1937 e 1944. As contribuies de Frank ainda podem ser consultadas com proveito.|
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apenas lamentao e denncia, mas tambm compreenso. Este livro uma tentativa de compreender os
fatos que, primeira vista, pareciam apenas ultrajantes.
Repito: compreender no significa negar o ultrajante, subtrair o inaudito do que tem precedentes, ou
explicar fenmenos por meio de analogias e generalidades tais que se deixa de sentir o impacto da realidade
e o choque da experincia. Significa antes examinar e suportar conscientemente o fardo que os
acontecimentos colocaram sobre ns sem negar sua existncia nem vergar humildemente a seu peso,
como se tudo o que de fato aconteceu no pudesse ter acontecido de outra forma. Compreender significa,
em suma, encarar a realidade, espontnea e atentamente, e resistir a ela qualquer que seja, venha a ser
ou possa ter sido.
Para essa compreenso indispensvel embora no seja suficiente uma certa familiaridade com
a histria judaica na Europa do sculo XIX e a conseqente evoluo do anti-semitismo. Os captulos que
seguem tratam apenas daqueles elementos da histria do sculo XIX que realmente importam para o estudo
das origens do totalitarismo. Ainda est por ser escrita a histria analtica do anti-semitismo, o que foge ao
escopo deste volume. Enquanto existir essa lacuna, justifica-se a publicao dos captulos seguintes como
contribuio para o estudo mais completo, embora tenham sido originalmente concebidos to-s como parte
integrante da pr-histria do totalitarismo. Alm disso, no apenas a histria do anti-semitismo tem sido
elaborada por no-judeus mentecaptos e por judeus apologticos, sendo em geral evitada por historiadores
de reputao: mutatis mutandis, com quase todos os elementos que se cristalizariam no fenmeno totalitrio
ocorreu o mesmo. Ambos os fenmenos o anti-semitismo e o totalitarismo mal haviam sido notados
pelos homens cultos, porque pertenciam corrente subterrnea da histria europia, onde, longe da luz do
pblico e da ateno dos homens esclarecidos, puderam adquirir virulncia inteiramente inesperada.
Quando a derradeira catstrofe cristalizante a Segunda Guerra Mundial trouxe tona essas
correntes subterrneas, surgiu a tendncia de confundir o totalitarismo com os seus elementos e com as
suas origens, como se cada exploso de anti-semitismo ou racismo pudesse ser a priori identificada com o
"totalitarismo". Essa atitude to enganadora na busca da verdade histrica como perniciosa para a
anlise poltica. A poltica totalitria longe de ser simplesmente anti-semita, ou racista, ou imperialista, ou
comunista usa e abusa de seus prprios elementos ideolgicos, at que se dilua quase que
completamente com a sua base, inicialmente elaborada partindo da realidade e dos fatos realidade da luta
de classes, por exemplo, ou dos conflitos de interesse entre os judeus e os seus vizinhos, que fornecia aos
idelogos a fora dos valores propagandsticos. Constituiria certamente grave erro subestimar o papel que o
racismo puro tem desempenhado e ainda desempenha no governo dos estados do sul dos Estados Unidos,
mas seria uma iluso ainda mais grave chegar concluso retrospectiva de que amplas reas desse pas
eram submetidas ao regime totalitrio h mais de um sculo. A nica conseqncia direta e no-adulterada
dos movimentos anti-semitas do sculo XIX no foi o nazismo mas ao contrrio o sionismoque pelo menos
em sua forma ideolgica ocidental, assumiu o aspecto de consciente contra-ideologia, de "resposta ao" anti-
semitismo. Isso no significa que a autoconscincia grupai dos judeus resultasse do anti-semitismo; at
mesmo o conhecimento superficial da historia judaica, cuja preocupao central, desde o exilio babilnico,
sempre foi a sobrevivncia do povo a despeito da disperso, seria suficiente para destruir esse mito sobre o
assunto, mito que se tornou at elegante, a ponto de vir a ser repetido nos crculos intelectuais, depois da
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interpretao existencialista de Sartre, segundo a qual o judeu era algum que os outros consideravam e
definiam como tal.
O que melhor exemplifica tanto a diferena como a relao entre o anti-semitismo pr-totalitrio e o
totalitrio talvez a historia dos "Protocolos dos sbios do Sio". O emprego dessa falsificao pelos
nazistas, que a usaram como livro-texto, certamente no pertence histria do anti-semitismo, mas s a
histria do anti-semitismo pode explicar porque era vivel o uso da mentira para os fins de propaganda
antijudaica. Mas essa histria no explica por que se transformou em fenmeno poltico a alegao,
obviamente totalitria, do suposto domnio global a ser exercido com mtodos esotricos pelos membros de
uma sociedade secreta. A atrao poltica decorrente do uso dos "Protocolos" importante, na medida em
que suas origens esto no imperialismo em geral, como foi elaborado em verso europia continental,
altamente explosiva, a partir dos movimentos nacionalmente, ou melhor, etnicamente unificadores,
principalmente pangermnicos e pan-eslavos.
Este livro, portanto, limitado no tempo e no espao, tanto quanto no assunto. Suas anlises cuidam
da histria judaica na Europa central e ocidental desde o tempo ps-medieval dos judeus-da-corte at o Caso
Dreyfus, naquilo em que ele foi, de um lado, relevante para o nascimento do anti-semitismo e, do outro,
influenciado por ele. Trata dos movimentos anti-semitas que ainda se baseavam de modo bastante slido
nas realidades factuais das relaes entre judeus e gentios, isto , no papel desempenhado pelos judeus no
desenvolvimento do Estado-nao e no seu papel dentro da sociedade no-judaica. O surgimento dos
primeiros partidos anti-semitas nas dcadas de 1870 e 1880 marca o instante em que foi superado o
elemento factual (e limitado) do conflito de interesses e ultrapassada a experincia convivencial, abrindo-se
assim o caminho que levou "soluo final" genocida. Da por diante, na era do imperialismo, j no
possvel isolar a questo judaica ou a ideologia anti-semita de questes que, na verdade, quase nada tm a
ver com as realidades da moderna histria judaica. Isso no ocorre apenas e basicamente porque essas
questes sejam to importantes nos negcios mundiais, mas porque o prprio anti-semitismo agora
utilizado para fins que transcendem a problemtica aparente, e os quais, embora sua implantao faa dos
judeus as principais vtimas, deixam para trs todas questes de interesse judaico e antijudaico.
Hannah Arend
Julho de 1967
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1. O ANTI-SEMITISMO COMO UMA OFENSA AO BOM SENSO
Muitos ainda julgam que a ideologia nazista girou em torno do anti-semitismo por acaso, e que desse
acaso nasceu a poltica que inflexivelmente visou a perseguir e, finalmente, exterminar os judeus. O horror do
mundo diante do resultado derradeiro, e, mais ainda, diante do seu efeito, constitudo pelos sobreviventes
sem lar e sem razes, deu "questo judaica" a proeminncia que ela passou a ocupar na vida poltica diria.
O que os nazistas apresentaram como sua principal descoberta o papel dos judeus na poltica mundial
e o que propagavam como principal alvo a perseguio dos judeus no mundo inteiro foi considerado
pela opinio pblica mero pretexto, interessante truque demaggico para conquistar as massas.
bem compreensvel que no se tenha levado a srio o que os prprios nazistas diziam.
Provavelmente no existe aspecto da histria contempornea mais irritante e mais mistificador do que o fato
de, entre tantas questes polticas vitais, ter cabido ao problema judaico, aparentemente insignificante e sem
importncia, a duvidosa honra de pr em movimento toda uma mquina infernal. Tais discrepncias entre a
causa e o efeito constituem ultraje ao bom senso a tal ponto que as tentativas de explanar o anti-semitismo
parecem forjadas com o fito de salvar o equilbrio mental dos que mantm o senso de proporo e a
esperana de conservar o juzo.
Uma dessas apressadas explicaes identifica o anti-semitismo com desenfreado nacionalismo e suas
exploses de xenofobia. Mas, na verdade, o anti-semitismo moderno crescia enquanto declinava o
nacionalismo tradicional, tendo atingido seu clmax no momento em que o sistema europeu de Estados-
naes, com seu precrio equilbrio de poder, entrara em colapso.
Os nazistas no eram meros nacionalistas. Sua propaganda nacionalista era dirigida aos simpatizantes
e no aos membros convictos do partido. Ao contrrio, este jamais se permitiu perder de vista o alvo poltico
supranacional. O "nacionalismo" nazista assemelhava-se propaganda nacionalista da Unio Sovitica, que
tambm usada apenas como repasto aos preconceitos das massas. Os nazistas sentiam genuno
desprezo, jamais abolido, pela estreiteza do nacionalismo e pelo provincianismo do Estado-nao. Repetiram
muitas vezes que seu movimento, de mbito internacional (como, alis, o movimento bolchevista), era mais
importante para eles do que o Estado, o qual necessariamente estaria limitado a um territrio especfico. E
no s o perodo nazista mas os cinqenta anos anteriores da histria anti-semita do prova contrria iden-
tificao do anti-semitismo com o nacionalismo. Os primeiros partidos anti-semitas das ltimas dcadas do
sculo XIX foram os primeiros a coligar-se em nvel internacional. Desde o incio, convocavam congressos
internacionais, e preocupavam-se com a coordenao de atividades em escala internacional ou, pelo menos,
intereuropia.
Tendncias gerais, como o declnio do Estado-nao coincidente com o crescimento do anti-
semitismo, no podem ser explicadas por uma nica razo ou causa. Na maioria desses casos, o historiador
depara com situao histrica complexa, na qual tem a liberdade (e isto quer dizer perplexidade) de isolar um
determinado fator como correspondente ao "esprito da poca". Existem, porm, algumas regras gerais que
so teis. A principal delas a definio, por Tocqueville (em L'Ancien Regime et ta Rvolution, livro II,
captulo 1), dos motivos do violento dio das massas francesas contra a aristocracia no incio da Revoluo
dio que levou Burke a observar que a Revoluo se preocupava mais com "a condio de um cavalheiro"
do que com a instituio de rei. Segundo Tocqueville, o povo francs passou a odiar os aristocratas no
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momento em que perderam o poder, porque essa rpida perda de poder no foi acompanhada de qualquer
reduo de suas fortunas. Enquanto os nobres dispunham de vastos poderes, eram no apenas tolerados
mas respeitados. Ao perderem seus privilgios, e entre eles o privilgio de explorar e oprimir, o povo
descobriu que eles eram parasitas, sem qualquer funo real na conduo do pas. Em outras palavras, nem
a opresso nem a explorao em si chegam a constituir a causa de ressentimento: mas a riqueza sem
funo palpvel muito mais intolervel, porque ningum pode compreender e consequentemente aceitar
por que ela deve ser tolerada.
O anti-semitismo alcanou o seu clmax quando os judeus haviam, de modo anlogo, perdido as
funes pblicas e a influncia, e quando nada lhes restava seno sua riqueza. Quando Hitler subiu ao
poder, os bancos alemes, onde por mais de cem anos os judeus ocupavam posies-chave, j estavam
qua-sejudenrein desjudazados , e os judeus na Alemanha, aps longo e contnuo crescimento em
posio social e em nmero, declinavam to rapidamente que os estatsticos prediziam o seu
desaparecimento em poucas dcadas. verdade que as estatsticas no indicam necessariamente
processos histricos reais: mas digno de nota que, para um estatstico, a perseguio e o extermnio dos
judeus pelos nazistas pudessem parecer uma insensata acelerao de um processo que provavelmente
ocorreria de qualquer modo, em termos da extino do judasmo alemo.
O mesmo verdadeiro em quase todos os pases da Europa ocidental. O Caso Dreyfus no ocorreu
no Segundo Imprio, quando os judeus da Frana estavam no auge de sua prosperidade e influncia, mas
na Terceira Repblica, quando eles j haviam quase desaparecido das posies importantes (embora o do
cenrio poltico). O anti-semitismo austraco tornou-se violento no sob o reinado de Metternich e Francisco
Jos, mas na Repblica austraca aps 1918, quando era perfeitamente bvio que quase nenhum outro
grupo havia sofrido tanta perda de influncia e prestgio em conseqncia do desmembramento da
monarquia dos Habsburgos, quanto os judeus.
A perseguio de grupos impotentes, ou em processo de perder o poder, pode no constituir um
espetculo agradvel, mas no decorre apenas da mesquinhez humana. O que faz com que os homens
obedeam ou tolerem o poder e, por outro lado, odeiem aqueles que dispem da riqueza sem o poder a
ideia de que o poder tem uma determinada funo e certa utilidade geral. At mesmo a explorao e a
opresso podem levar a sociedade ao trabalho e ao estabelecimento de algum tipo de ordem. S a riqueza
sem o poder ou o distanciamento altivo do grupo que, embora poderoso, no exerce atividade poltica so
considerados parasitas e revoltantes, porque nessas condies desaparecem os ltimos laos que mantm
ligaes entre os homens. A riqueza que no explora deixa de gerar at mesmo a relao existente entre o
explorador e o explorado; o alheamento sem poltica indica a falta do menor interesse do opressor pelo opri-
mido.
Contudo, o declnio dos judeus na Europa ocidental e central forma apenas o pano de fundo para os
eventos subsequentes, e explica to pouco esses eventos como o fato de a aristocracia ter perdido o poder
explicaria a Revoluo Francesa. Conhecer essas regras gerais importante, para que seja possvel refutar
as insinuaes do aparente bom senso, segundo as quais o dio violento ou a sbita rebelio so
necessariamente decorrentes do exerccio de forte poder e de abusos cometidos pelos que constituem o alvo
do dio, e que, consequentemente, o dio organizado contra os judeus s pode ter surgido como reao
contra sua importncia e o seu poderio.
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Mais sria parece outra argumentao: os judeus, por serem um grupo inteiramente impotente, ao
serem envolvidos nos conflitos gerais e insolveis da poca, podiam facilmente ser acusados de
responsabilidade por esses conflitos e apresentados como autores ocultos do mal. O melhor exemplo e a
melhor refutao dessa explicao, que to grata ao corao de muitos liberais, est numa anedota
contada aps a Primeira Grande Guerra. Um anti-semita alegava que os judeus haviam causado a guerra. A
resposta foi: "Sim, os judeus e os ciclistas". "Por que os ciclistas?", pergunta um. "E por que os judeus?",
pergunta outro.
A teoria que apresenta os judeus como eterno bode expiatrio no significa que o bode expiatrio
poderia tambm ser qualquer outro grupo? Essa teoria defende a total inocncia da vtima. Ela insinua no
apenas que nenhum mal foi cometido mas, tambm, que nada foi feito pela vtima que a relacionasse com o
assunto em questo. Contudo, quem tenta explicar por que um determinado bode expiatrio se adapta to
bem a tal papel abandona nesse momento a teoria e envolve-se na pesquisa histrica. E ento o chamado
bode expiatrio deixa de ser a vtima inocente a quem o mundo culpa por todos os seus pecados e atravs
do qual deseja escapar ao castigo; torna-se um grupo entre outros grupos, todos igualmente envolvidos nos
problemas do mundo. O fato de ter sido ou estar sendo vtima da injustia e da crueldade no elimina a sua
co-responsabilidade.
At h pouco, a falta de lgica aparente na formulao da teoria do bode expiatrio bastava para
descart-la como escapista. Mas o surgimento do terror como importante arma dos governos aumentou-lhe a
credibilidade.
A diferena fundamental entre as ditaduras modernas e as tiranias do passado est no uso do terror
no como meio de extermnio e amedrontamento dos oponentes, mas como instrumento corriqueiro para
governar as massas perfeitamente obedientes. O terror, como o conhecemos hoje, ataca sem provocao
preliminar, e suas vtimas so inocentes at mesmo do ponto de vista do perseguidor. Esse foi o caso da
Alemanha nazista, quando a campanha de terror foi dirigida contra os judeus, isto , contra pessoas cujas
caractersticas comuns eram aleatrias e independentes da conduta individual especfica. Na Rssia
sovitica a situao mais confusa, j que o sistema bolchevista, ao contrrio do nazista, nunca admitiu em
teoria o uso de terror contra pessoas inocentes: tal afirmao, embora possa parecer hipcrita em vista de
certas prticas, faz muita diferena. Por outro lado, a prtica russa mais "avanada" do que a nazista em
um particular: a arbitrariedade do terror no determinada por diferenas raciais, e a aplicao do terror
segundo a procedncia scio-econmica (de classe) do indivduo foi abandonada h tempos, de sorte que
qualquer pessoa na Rssia pode subitamente tornar-se vtima do terror policial. No estamos interessados
aqui na ltima consequncia do exerccio do domnio pelo terror, que leva situao na qual jamais ningum,
nem mesmo o executor, est livre do medo; em nosso contexto, tratamos apenas da arbitrariedade com que
as vtimas podem ser escolhidas, e para isso decisivo que sejam objetivamente inocentes, que sejam
selecionadas sem que se atente para o que possam ou no ter feito.
primeira vista, isso pode parecer confirmao tardia da velha teoria do bode expiatrio, e verdade
que a vtima do terror moderno exibe todas as caractersticas do bode expiatrio: no sentido objetivo
absolutamente inocente, porque nada fez ou deixou de fazer que tenha alguma ligao com o seu destino.
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H, portanto, uma tentao de voltar explicao que automaticamente tira toda a responsabilidade
da vtima: ela parece corresponder realidade em que nada nos impressiona mais do que a completa
inocncia do indivduo tragado pela mquina do terror, e a sua completa incapacidade de mudar o destino
pessoal. O terror, contudo, assume a simples forma do governo s no ltimo estgio do seu
desenvolvimento. O estabelecimento de um regime totalitrio requer a apresentao do terror como
instrumento necessrio para a realizao de uma ideologia especfica, e essa ideologia deve obter a adeso
de muitos, at mesmo da maioria, antes que o terror possa ser estabelecido. O que interessa ao historiador
que os judeus, antes de se tornarem as principais vtimas do terror moderno, constituam o centro de
interesse da ideologia nazista. Ora, uma ideologia que tem de persuadir e mobilizar as massas no pode
escolher sua vtima arbitrariamente. Em outras palavras, se o nmero de pessoas que acreditam na
veracidade de uma fraude to evidente como os "Protocolos dos sbios do Sio" bastante elevado para dar
a essa fraude o foro do dogma de todo um movimento poltico, a tarefa do historiador j no consiste em
descobrir a fraude, pois o fato de tantos acreditarem nela mais importante do que a circunstncia
(historicamente secundria) de se tratar de uma fraude.
A explicao tipo bode expiatrio escamoteia, portanto, a seriedade do anti-semitismo e da importncia
das razes pelas quais os judeus foram atirados ao centro dos acontecimentos. Igualmente disseminada a
doutrina do "eterno anti-semitismo", na qual o dio aos judeus apresentado como reao normal e natural,
e que se manifesta com maior ou menor virulncia segundo o desenrolar da histria. Assim, as exploses do
anti-semitismo parecem no requerer explicao especial, como consequncias "naturais" de um problema
eterno. perfeitamente natural que os anti-semitas profissionais adotassem essa doutrina: o melhor libi
possvel para todos os horrores. Se verdade que a humanidade tem insistido em assassinar judeus durante
mais de 2 mil anos, ento a matana de judeus uma ocupao normal e at mesmo humana, e o dio aos
judeus fica justificado, sem necessitar de argumentos.
O aspecto mais surpreendente dessa premissa o fato de haver sido adotada por muitos historiadores
imparciais e at por um elevado nmero de judeus. Essa estranha coincidncia torna a teoria perigosa e
desconcertante. Em ambos os casos, seu escapismo evidente: como os anti-semitas desejam fugir
responsabilidade dos seus feitos, tambm os judeus, atacados e na defensiva, ainda mais naturalmente
recusam, sob qualquer circunstncia, discutir a sua parcela de responsabilidade. Contudo, as tendncias
escapistas dos apologistas oficiais baseiam-se em motivos mais importantes e menos racionais.
O aparecimento e o crescimento do anti-semitismo moderno foram concomitantes e interligados
assimilao judaica, e ao processo de secularizao e fenecimento dos antigos valores religiosos e
espirituais do judasmo. Vastas parcelas do povo judeu foram, ao mesmo tempo, ameaadas externamente
de extino fsica e, internamente, de dissoluo. Nessas condies, os judeus que se preocupavam com a
sobrevivncia do seu povo descobriram, num curioso e desesperado erro de interpretao, a ideia
consoladora de que o anti-semitismo, afinal de contas, podia ser um excelente meio de manter o povo unido,
de sorte que na existncia de anti-semitismo "eterno" estaria a eterna garantia da existncia judaica. Essa
atitude decerto supersticiosa, relacionada com a f em sua "eleio" por Deus e com a esperana
messinica, era fortalecida pelo real fato de ter sido a hostilidade crist, para os judeus, autntico fator que,
durante muitos sculos, desempenhava o papel do poderoso agente preservador, espiritual e poltico. Os
judeus confundem o moderno anti-semitismo com o antigo dio religioso anti-judaico. Esse erro
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compreensvel: na sua assimilao, processada margem do cristianismo, os judeus desconheciam-lhe o
aspecto religioso e cultural. Enfrentando o cristianismo em declnio, os judeus podiam imaginar, em toda a
inocncia, que o anti-semitismo correspondia a uma espcie de retrocesso, medieval e anacrnica "Idade
das Trevas". A ignorncia ou a incompreenso do seu prprio passado foi, em parte, responsvel pela
fatal subestimao dos perigos reais e sem precedentes que estavam por vir. Mas preciso lembrar tambm
que a inabilidade de anlise poltica resultava da prpria natureza da histria judaica, histria de um povo
sem governo, sem pas e sem idioma. A histria judaica oferece extraordinrio espetculo de um povo, nico
nesse particular, que comeou sua existncia histrica a partir de um conceito bem definido da histria e com
a resoluo quase consciente de realizar na terra um plano bem delimitado, e que depois, sem desistir dessa
ideia, evitou qualquer ao poltica durante 2 mil anos. Em consequncia, a histria poltica do povo judeu
tornou-se mais dependente de fatores imprevistos e acidentais do que a histria de outras naes, de sorte
que os judeus assumiam diversos papis na sua atuao histrica, tropeando em todos e no aceitando
responsabilidade precpua por nenhum deles.
Aps a catstrofe final, isto , aps a aniquilao quase completa dos judeus da Europa, a tese do
anti-semitismo eterno tornou-se mais perigosa do que nunca, pois ela poderia levar at absolvio os mais
tenebrosos criminosos entre os anti-semitas. Longe de garantir a sobrevivncia do povo judeu, o anti-
semitismo ameaou-o claramente de extermnio. Contudo, essa explicao do anti-semitismo, tal como a
teoria do bode expiatrio e por motivos semelhantes , sobreviveu ao confronto com a realidade, pois ela
acentua a absoluta inocncia das vtimas do terror moderno, o que aparentemente confirmado pelos fatos.
Em comparao com a teoria do bode expiatrio, ela tem at a vantagem de responder incmoda questo
"Por que os judeus e no outros?" de maneira simplria: eterna hostilidade.
deveras notvel que as doutrinas que ao menos tentam explicar o significado poltico do movimento
anti-semita neguem qualquer responsabilidade especfica da parte dos judeus e se recusem a discutir o
assunto nestes termos. Ao implicitamente recusarem abordar o significado da conduta humana,
assemelham-se s modernas prticas e formas dos governos que, por meio do terror arbitrrio, liquidam a
prpria possibilidade de ao humana. De certa forma, nos campos de extermnio nazistas os judeus eram
assassinados de acordo com a explicao oferecida por essas doutrinas razo do dio:
independentemente do que haviam feito ou deixado de fazer, independentemente de vcio ou virtude
pessoais. Alm disso, os prprios assassinos, apenas seguindo ordens e orgulhosos de sua desapaixonada
eficincia, assemelhavam-se sinistramente aos instrumentos "inocentes" de um ciclo inumano e impessoal de
eventos, exatamente como os considerava a doutrina do eterno anti-semitismo.
Esses denominadores comuns entre a teoria e a prtica no indicam, por si ss, a verdade histrica,
embora espelhem o carter oportunista das opinies popularmente propaladas, revelando e explicando por
que elas so to facilmente aceitveis pela multido. O historiador se interessa por elas enquanto so parte
da histria de que tratam, e na medida em que se interpem no caminho de sua busca verdade. Mas,
sendo contemporneo dos eventos, o historiador to sujeito ao poder persuasrio dessas opinies como
qualquer outra pessoa.
Para o historiador dos tempos modernos especialmente importante ter cuidado com as opinies
geralmente aceitas, que dizem explicar tendncias histricas, porque durante o ltimo sculo foram
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elaboradas numerosas ideologias que pretendem ser as "chaves da histria", embora no passem de
desesperados esforos de fugir responsabilidade.
Plato, em sua luta contra os sofistas, descobriu que a "arte universal de encantar o esprito com
argumentos" (Fedro, 261) nada tinha a ver com a verdade, mas s visava conquista de opinies, que so
mutveis por sua prpria natureza e vlidas somente "na hora do acordo e enquanto dure o acordo" (Teeteto,
172b). Descobriu tambm que a verdade ocupa uma posio muito instvel no mundo, pois as opinies
isto , "o que pode pensar a multido", como escreveu decorrem antes da persuaso do que da verdade
(Fedro, 260). A diferena mais marcante entre os sofistas antigos e os modernos simples: os antigos se
satisfaziam com a vitria passageira do argumento s custas da verdade, enquanto os modernos querem
uma vitria mais duradoura, mesmo que s custas da realidade. Em outras palavras, aqueles destruam a
dignidade do pensamento humano, enquanto estes destroem a dignidade da ao humana. O filsofo
preocupava-se com os manipuladores da lgica, enquanto o historiador v obstculos nos modernos
manipuladores dos fatos, que destroem a prpria histria e sua inteligibilidade, colocada em perigo sempre
que os fatos deixam de ser considerados parte integrante do mundo passado e presente, para serem
indevidamente usados a fim de demonstrar esta ou aquela opinio.
certo que seria difcil encontrar o caminho no labirinto dos fatos desarticulados, se fossem
abandonadas as opinies e rejeitada a tradio. Contudo, essas perplexidades da historiografia so
consequncias nfimas se forem consideradas as profundas transformaes do nosso tempo e o seu efeito
sobre as estruturas histricas do mundo ocidental. Dessas transformaes resultou o desnudamento dos
componentes, antes ocultos, de nossa histria. Isso no significa que o que desabou na crise (talvez a mais
profunda na histria do Ocidente desde a queda do Imprio Romano) foi mera fachada que encobria esses
componentes, embora no passassem de fachada muitas coisas que, h apenas algumas dcadas, eram
consideradas essenciais.
A simultaneidade entre o declnio do Estado-nao europeu e o crescimento de movimentos anti-
semitas, a coincidncia entre a queda de uma Europa organizada em naes e o extermnio dos judeus,
preparado pela vitria do anti-semitismo sobre todos os outros ismos que competiam na luta pela persuaso
e conquista da opinio pblica, tm de ser interpretadas como srio elemento no estudo da origem do anti-
semitismo. O anti-semitismo moderno deve ser encarado dentro da estrutura geral do desenvolvimento do
Estado-nao, enquanto, ao mesmo tempo, sua origem deve ser encontrada em certos aspectos da histria
judaica e nas funes especificamente judaicas, isto , desempenhadas pelos judeus no decorrer dos ltimos
sculos. Se no estgio final da desintegrao os slogans anti-semitas constituam o meio mais eficaz de
inspirar grandes massas para lev-las expanso imperialista e destruio das velhas formas de governo,
ento, a histria da relao entre os judeus e o Estado deve conter indicaes elementares para entender a
hostilidade entre certas camadas da sociedade e os judeus. Trataremos disso no captulo seguinte.
Se, alm disso, a contnua expanso da ral moderna isto , dos d-classs provenientes de todas
as camadas produziu lderes que, sem se preocuparem com o fato de serem ou no os judeus
suficientemente importantes para se tornarem o foco de uma ideologia poltica, repetidamente viram neles a
"chave da histria" e a causa central de todos os males, ento a histria das relaes entre os judeus e a
sociedade deve conter indicaes elementares para explicar a hostilidade entre a ral e os judeus.
Trataremos da relao entre os judeus e a sociedade no terceiro captulo.
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O quarto captulo ocupa-se do Caso Dreyfus, que foi uma espcie de ensaio geral para o espetculo
do nosso prprio tempo. Analisamos o caso em todos os detalhes, dada a peculiar oportunidade que oferece
de, num breve momento histrico, revelar as potencialidades do anti-semitismo, at ento ocultas, como
importante arma poltica dentro da estrutura poltica do sculo XIX, e isto apesar da sua relativa sanidade.
Os trs captulos seguintes analisam, porm, apenas os elementos preparatrios, que chegaram ao
estgio da completa realizao quando a decadncia do Estado-nao e o surgimento do imperialismo se
destacaram concomitantemente no cenrio poltico.
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2. OS JUDEUS, O ESTADO-NAO E O NASCIMENTO DO ANTI-
SEMITISMO
1. OS EQUVOCOS DA EMANCIPAO E O BANQUEIRO ESTATAL JUDEU
No pice do seu desenvolvimento no sculo XIX, o Estado-nao concedeu aos habitantes judeus a
igualdade de direitos. Esconde contradies profundas e fatais a evidente incoerncia do fato de que os
judeus receberam a cidadania dos governos que, no decorrer dos sculos, haviam feito da nacionalidade um
pr-requisito da cidadania, e da homogeneidade de populao, a principal caracterstica da estrutura poltica.
As leis e ditos que outorgavam aos judeus o direito emancipao seguiam na Europa, lenta e
hesitantemente, a lei francesa de 1792. Esses decretos foram precedidos e acompanhados pela atitude
ambgua da parte do Estado-nao em relao aos seus habitantes judeus. Do colapso da ordem feudal
surgiu o conceito revolucionrio de igualdade, segundo o qual no se podia mais tolerar uma "nao dentro
de outra nao". Por conseguinte, as restries e os privilgios dos judeus tinham de ser abolidos juntamente
com todos os outros direitos especiais. Contudo, essa expanso da igualdade dependia em grande parte do
crescimento da fora de uma mquina estatal independente que, sob forma de despotismo esclarecido ou de
governo constitucional, superior s classes e aos partidos, pudesse, em esplndido isolamento, funcionar,
governar e representar os interesses da nao como um todo. Assim, quando a partir do fim do sculo XVII a
expanso econmica estatal aumenta a necessidade de crditos e o alargamento da esfera de influncia
econmica do Estado, era natural que se recorresse ao auxlio dos judeus, velhos e experimentados empres-
tadores de dinheiro, com ligaes com a nobreza europeia, qual deviam muitas vezes proteo local e
cujas finanas costumavam administrar, enquanto nenhum outro grupo entre as populaes da Europa
estava disposto a conceder crdito ao Estado, ou a participar ativamente da evoluo dos negcios estatais.
Era do interesse dos Estados conceder aos judeus certos privilgios em troca e trat-los como grupo parte.
De modo algum o Estado poderia consentir que os judeus fossem assimilados pelo resto da populao, a
qual lhe recusava crdito, negando-se a participar dos negcios do Estado e a foment-los.
Portanto, a emancipao dos judeus, como lhes foi concedida pelo sistema de Estados nacionais na
Europa durante o sculo XIX, tinha dupla origem e o significado ambguo. Por um lado, ela decorria da
estrutura poltica e jurdica de um sistema renovado, que s podia funcionar nas condies de igualdade
poltica e legal, a ponto de os governos, para seu prprio bem, precisarem aplainar as desigualdades da
velha ordem do modo mais completo e mais rpido possvel. Por outro lado, a emancipao resultava
claramente da gradual extenso de privilgios originalmente concedidos a apenas alguns indivduos e,
depois, a pequenas camadas de judeus ricos e que passaram a ser outorgados a todos os judeus da
Europa central e ocidental, para que atendessem s crescentes exigncias dos negcios estatais, a que os
limitados grupsculos de judeus ricos no conseguiam mais fazer face sozinhos.1
1 Para o historiador moderno, os direitos e liberdades concedidos aos judeus-da-corte durante os sculos XVII e XVIII podem parecer precursores da
igualdade: esses judeus podiam viver onde quisessem, tinham permisso de viajar livremente dentro do reino do seu soberano, podiam portar armas e
contavam com a proteo especial das autoridades locais. Na verdade, esses judeus-da-corte, caracteristicamente chamados, na Prssia, Generalprivilegierte Juden, gozavam no apenas de melhores condies de vida que seus correligionrios ainda sujeitos a restries quase medievais,
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Assim, a emancipao significava, ao mesmo tempo, igualdade e privilgios: a destruio da antiga
autonomia comunitria judaica e a consciente preservao dos judeus como grupo separado na sociedade; a
abolio de restries e direitos especiais e a extenso desses direitos a um grupo cada vez maior de
indivduos. A igualdade de condio para todos os cidados constituiu a premissa do novo corpo poltico e,
embora essa igualdade houvesse sido realmente posta em prtica pelo menos no tocante privao das
antigas classes governantes do privilgio de governar e das classes oprimidas do direito de serem protegidas
, o processo coincidia com o nascimento de uma sociedade de classes, as quais novamente separavam os
cidados, econmica e socialmente, de modo to eficaz quanto o antigo regime. A igualdade de condio,
como entendida pelos jacobinos da Revoluo Francesa, s se tornou realidade na Amrica do Norte; no
continente europeu, foi substituda por uma simples igualdade perante a lei.
A contradio fundamental entre o corpo poltico baseado na igualdade perante a lei e a sociedade
baseada na desigualdade do sistema de classes impediu o desenvolvimento de sistemas eficazes e o
nascimento de uma nova hierarquia poltica. A intransponvel desigualdade da condio social outorgada
ao indivduo e quase garantida por nascimento coexistia paradoxalmente com a igualdade poltica.
Somente pases politicamente atrasados, como a Alemanha imperial, haviam conservado alguns vestgios
feudais. L, os membros da aristocracia, que, pouco a pouco, adquiriam a conscincia de serem uma classe,
dispunham de condio poltica privilegiada e, assim, podiam conservar, como grupo, certa relao especial
com o Estado. Mas tratava-se apenas de vestgios do passado. O sistema de classes completamente
desenvolvido e maduro define a condio do indivduo por sua associao com uma determinada classe
dentro do relacionamento dela com as outras, e no por sua posio pessoal no Estado.
Os judeus constituam a nica exceo a essa regra geral. No formavam uma classe nem pertenciam
a qualquer das classes nos pases em que viviam. Como grupo, no eram nem trabalhadores nem gente da
classe mdia, nem latifundirios, nem camponeses. Sua riqueza parecia fazer deles membros da classe
mdia, mas no participavam do seu desenvolvimento capitalista; mal eram representados nas empresas
industriais; e, se, na ltima fase de sua histria europeia, chegavam a conduzir importantes empresas,
dirigiam pessoal burocrtico ou intelectual e no o operariado. Em outras palavras, embora seu status fosse
definido pelo fato de serem judeus, no o era por suas relaes com as outras classes. A proteo especial
que recebiam do Estado (quer sob antiga forma de privilgios, quer sob forma de leis especiais de
emancipao, de que nenhum outro grupo necessitava e que, muitas vezes, precisava de reforo legal
ulterior, por causa da hostilidade da sociedade) e os servios especiais que prestavam a governos impediam,
ao mesmo tempo, que submergissem no sistema de classes, e que se estabelecessem como classe.2 Assim,
mesmo que ingressassem na sociedade, formavam um grupo bem definido que preservava a sua identidade
mesmo dentro de uma das classes com as quais se relacionavam, fosse esta aristocracia ou burguesia.
mas viviam at melhor que seus vizinhos no-judeus. Seu padro de vida era muito mais alto que o da classe mdia da poca, e seus privilgios, na
maioria dos casos, superavam os que eram concedidos aos outros mercadores. Essa situao no deixou de ser percebida por seus contemporneos.
Christian Wilhelm Dohm, eminente advogado da emancipao judaica na Prssia do sculo XVIII, queixou-se da prtica, em vigor desde o tempo de Frederico Guilherme I, de conceder aos judeus ricos "toda sorte de favores e apoio", muitas vezes "s custas e ao descaso de cidados diligentes e legais
[isto , no-judeus]". Em Denkwrdigkeiten meinerZeite [Feitos memorveis do meu tempo], Lemgo, 1814-9, IV, p. 487.
2 Jacob Lestschinsky, numa discusso anterior do problema judaico, salientou que os judeus no pertenciam a nenhuma classe social, e falou de uma
Klasseneinschiebsel [interposio de classe] (em Weltwirtschafts-Archiv, 1939, vol. 30, p. 123 ss), mas viu apenas as desvantagens dessa situao na
Europa oriental, no suas grandes vantagens nos pases da Europa ocidental e central.
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No h dvida de que o interesse do Estado-nao no sentido de conservar os judeus como grupo
especial, e evitar que fossem assimilados pela sociedade de classes, coincidia com o interesse dos judeus
no sentido de sobreviverem como grupo. Tambm mais do que provvel que, sem essa coincidncia, as
tentativas dos governos teriam sido vs: as fortes tendncias de igualar todos os cidados, por parte do
Estado, e de incorporar cada indivduo numa classe, por parte da sociedade, implicavam claramente a
completa assimilao dos judeus e s podiam ser frustradas por uma combinao de dois elementos:
interveno do governo e cooperao voluntria. Afinal, a poltica oficial em relao aos judeus no era
sempre to consistente e inflexvel como poderamos pensar, se apenas considerssemos os resultados
finais.3 realmente surpreendente ver com que uniformidade os judeus desprezaram as oportunidades de se
engajar em empresas e negcios capitalistas normais.4 Mas, sem os interesses e as prticas dos governos,
os judeus mal poderiam ter conservado sua identidade grupal.
Em contraste, os judeus eram definidos pelo sistema poltico, e a sua posio era determinada por ele.
Como, porm, esse sistema poltico carecia de base assentada em realidade social, eles se situavam,
socialmente falando, no vcuo. Sua desigualdade social era bem diferente da desigualdade decorrente do
sistema de classes; novamente, ela resultava da relao com o Estado, de modo que, na sociedade, o
prprio fato de o indivduo ter nascido judeu significava que ou era superprivilegiado por receber proteo
especial do governo ou subprivilegiado, privado de certos direitos e oportunidades, negados aos judeus
para impedir a sua assimilao.
O esquema da ascenso e queda do sistema de Estados-naes europeus com relao ao povo judeu
segue, grosso modo, os seguintes estgios:
1. Nos sculos XVII e XVIII, o lento desenvolvimento dos Estados-naes processava-se sob a tutela
dos monarcas absolutos. Em toda parte, judeus emergiam individualmente do profundo anonimato
marginalizador para as posies s vezes atraentes e quase sempre influentes de judeus-da-corte, que
financiavam os negcios do Estado e administravam as transaes financeiras dos seus soberanos. Essas
modificaes afetavam de maneira insignificante os judeus em geral e as massas que continuavam a viver
dentro dos padres correspondentes antiga ordem feudal.
2. Aps a Revoluo Francesa, que alterou bruscamente as condies polticas de todo o continente
europeu, surgiram Estados-naes no sentido moderno, cujas transaes comerciais exigiam muito mais
capital e crdito de que jamais dispuseram os judeus-da-corte. Somente poderia satisfazer s novas e
3 Por exemplo, na Prssia de Frederico II, aps a Guerra dos Sete Anos, fez-se um esforo para incorporar os judeus numa espcie de sistema
mercantil. O antigo Juden-reglement de 1750 foi substitudo por um sistema de licenas regulares concedidas apenas queles habitantes que investiam parte considervel de sua fortuna nas novas empresas manufatureiras. Mas ali, como em toda parte, essas tentativas governamentais falharam
completamente 4 Felix Priebatsch, no ensaio "Die Judenpolitik des frstlichen Absolutismus im 17 und 18 Jahrhundert" [Poltica judaica do absolutismo principesco
nos sculos XVII e XVIII], publicado em Forschungen und Versuche zur Geschichte des Mittelalters und der Neuzeit [Pesquisas e estudos da histria medieval e moderna] (1915), cita um exemplo tpico do incio do sculo XVIII: "Quando a fbrica de espelhos em Neuhaus, na Baixa ustria, que era
subsidiada pela administrao, deixou de produzir, o judeu Wertheimer deu ao imperador dinheiro para compr-la. Quando lhe pediram que assumisse
a direo da fbrica, ele recusou, afirmando que seu tempo estava todo tomado por suas transaes financeiras". Ver tambm Max Khler, "Beitrage zur neueren jdischen Wirtschaftsgeschichte. Die Juden in Halberstadt und Umgebung" [Contribuies para a nova
historia econmica judaica. Os judeus em Halberstadt e Umgebung],em Studien zur Geschichte der Wirtschaft und Geistkultur [Estudos para a histria
da economia e da cultural, 1927, vol. 3. Essa tradio, que evitou que os judeus ricos tivessem posies de real poder no capitalismo, corroborada pelo fato de que, em 1911, os Rothschild de
Paris venderam sua parte nos campos petrolferos de Baku ao grupo Royal Shell, aps haverem sido os maiores magnatas de petrleo do mundo depois
de Rockefeller. O incidente narrado em Richard Lewinsohn, Wie sie gross und reich wurden [Como se tornaram poderosos e ricos], Berlim, 1927. Pode ser tomada como regra geral a afirmao de Andr E. Sayou no ensaio "Les Juifs", publicado na Revue Economique Internationale, maro de
1932, como parte da polmica com Werner Sombart, o qual identificava os judeus com o desenvolvimento capitalista: "Os Rothschild e outros israelitas
que estavam quase exclusivamente engajados no lanamento de emprstimos estatais e no movimento internacional de capital, no procuraram absolutamente [...] criar grandes indstrias" (p. 531).
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maiores necessidades governamentais a fortuna combinada dos grupos judeus mais ricos da Europa
ocidental e central, confiada por eles a banqueiros judeus que, por conseguinte, como banqueiros,
precisavam de coletividades judaicas organizadas como fontes da captao do dinheiro, e as apoiavam
nesse sentido. Nesse perodo, portanto, comeou a concesso de privilgios at ento s necessrios,
individualmente, aos judeus-da-corte camada rica que havia conseguido estabelecer-se, no decorrer do
sculo XVIII, nos centros urbanos e financeiros mais importantes. Por fim, foi concedida aos judeus a
emancipao em todos os Estados-naes, exceto naqueles pases em que os judeus, devido ao seu
elevado nmero e ao atraso social geral (como na Rssia), no conseguiram organizar-se como grupo
especial, parte, de funo econmica especificamente destinada a apoiar financeiramente o governo.
3. Essa ntima relao entre judeus e governos era facilitada pela indiferena geral da burguesia no
tocante poltica em geral e s finanas do Estado em particular. Esse perodo terminou com o surgimento
do imperialismo, no fim do sculo XIX, quando os negcios capitalistas em expanso j no podiam ser
realizados sem a interveno e o apoio poltico ativo do Estado. O imperialismo, por outro lado, minou as
prprias bases do Estado-nao e introduziu no conjunto de naes europeias o esprito comercial de
concorrncia competitiva. Os judeus perderam ento sua posio exclusiva nos negcios do Estado para
homens de negcios de mentalidade imperialista, e a sua importncia como grupo declinou, embora alguns
judeus conservassem individualmente sua influncia como consultores financeiros e como mediadores
intereuropeus. Esses judeus, contudo, em contraste com os banqueiros estatais, no precisavam do apoio e
solidariedade das comunidades judaicas, como os judeus-da-corte dos sculos XVII e XVIII. Assim, isolavam-
se delas. Alis, as comunidades judaicas j no eram financeiramente organizadas e, embora alguns judeus
em altas posies ainda representassem aos olhos do mundo gentio o povo judeu como um todo, havia
pouca ou nenhuma realidade material nesse fato.
4. Como grupo, o povo judeu do Ocidente europeu desintegrou-se juntamente com o Estado-nao
nas dcadas que precederam a deflagrao da Primeira Guerra Mundial. O rpido declnio da Europa aps a
guerra j os encontrou destitudos do antigo poder, atomizados num rebanho de indivduos mais ou menos
ricos. Mas, na era imperialista, a riqueza dos judeus havia se tornado insignificante; para a Europa,
desprovida de equilbrio de poder entre as naes que a compunham, e carente de noes de solidariedade
intereuropeia, o elemento judeu, intereuropeu e no nacional, tornou-se objeto de dio, devido sua riqueza
intil, e de desprezo, devido sua falta de poder.
Os primeiros governos a necessitarem de renda regular e de finanas seguras foram as monarquias
absolutistas, sob as quais o Estado-nao viria a nascer. Antes, prncipes e reis feudais tambm
necessitavam de dinheiro, e at mesmo de crdito, mas apenas para fins especficos e operaes
temporrias; mesmo no sculo XVI, quando os Fugger puseram seu prprio crdito disposio do Estado,
ainda no cogitavam de estabelecer crdito estatal especial. Inicialmente, os monarcas absolutos cuidavam
de suas necessidades financeiras em parte pelo velho mtodo de guerra e pilhagem, e em parte pelo sistema
de monoplio de impostos, o que solapava o poder, pois arruinava as fortunas da nobreza, sem aplacar a
hostilidade da populao.
Durante muito tempo, as monarquias absolutistas procuraram na sociedade um grupo do qual
pudessem depender com a mesma segurana que a nobreza dava monarquia feudal. Na Frana, desde o
sculo XV desenvolvia-se incessante luta entre as corporaes e a monarquia, esta querendo integrar
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aquelas no sistema do Estado. A mais interessante dessas experincias foi, sem dvida, o surgimento do
mercantilismo e as tentativas do Estado absolutista para impor o monoplio absoluto ao comrcio e
indstria nacionais. O consequente desastre do Estado absolutista e a sua bancarrota provocada pela
resistncia da burguesia em ascenso so suficientemente conhecidos.5
Antes dos ditos de emancipao, cada casa principesca, cada monarca da Europa, j possua seu
judeu-da-corte para administrar as finanas. Durante os sculos XVII e XVIII, esses judeus-da-corte eram
sempre indivduos isolados, que mantinham, decerto, conexes intereuropeias e dispunham de fontes de
crdito intereuropeias mas no constituam entidade financeira internacional.6 Os judeus individualmente e as
primeiras ricas pequenas comunidades judaicas dispunham ento de poder to elevado que se permitiam
abordar com maior franqueza no s as discusses sobre seus privilgios mas tambm sobre o direito de
obt-los, enquanto as autoridades se referiam de maneira muito cuidadosa importncia dos servios que os
judeus prestavam ao Estado.7 No h sombra de dvida quanto conexo entre os servios prestados e
privilgios concedidos. Na Frana, na Baviera, na ustria e na Prssia os judeus privilegiados recebiam
ttulos de nobreza, de modo que ultrapassavam o status de meros homens ricos. Sobrepujadas as
dificuldades enfrentadas pelos Rothschild em conseguir o ttulo de nobreza (aprovado pelo governo austraco
em 1817), findava cabalmente uma poca.
Em fins do sculo XVIII j era evidente nos vrios pases que nenhuma das camadas ou classes
estava desejosa ou tinha capacidade de tornar-se classe governante, isto , de identificar-se com o governo
como a nobreza o havia feito no decorrer dos sculos.8 O fato de a monarquia no ter conseguido encontrar
uma classe que substitusse a aristocracia dentro da sociedade levou ao rpido desenvolvimento do Estado-
nao e presuno de que esse sistema estivesse acima de todas as classes, completamente
independente da sociedade com sua pluralidade de interesses particulares que a perfaziam enfim, o
verdadeiro e nico representante da nao como um todo. Esse sistema resultou, por outro lado, no
aprofundamento da brecha entre o Estado e a sociedade, na qual repousava a estrutura poltica da nao.
Sem essa brecha, no seria necessrio nem possvel incluir os judeus na histria europeia em termos de
igualdade.
5 Contudo, dificilmente pode ser superestimada a influncia das experincias mercantilistas em acontecimentos futuros. A Frana foi o nico pas onde
o sistema mercantilista foi seriamente experimentado e resultou no precoce florescimento de manufaturas que deviam sua existncia interveno do Estado e o pas jamais se recuperou disso. Na era da livre iniciativa, sua burguesia evitava investimentos no garantidos em indstria, enquanto que sua burocracia, tambm produto do sistema mercantilista, sobreviveu ao colapso. Embora a burocracia tenha perdido todas as suas funes produtivas,
, ainda hoje, caracterstica do pas, dificultando mais que a burguesia a sua recuperao. 6 Esse havia sido o caso na Inglaterra desde o banqueiro marrano da rainha Elizabeth e os financistas judeus dos exrcitos de Cromwell, at que um dos
doze corretores judeus admitidos na Bolsa de Londres foi apontado como agenciador de um quarto de todos os emprstimos governamentais de seu
tempo (ver Saio W. Baron, A social and religious history of lhe Jews, 1937, vol. II: Jews and capitalism); na ustria, onde em 44 anos (1695-1739) os
judeus creditaram ao governo mais de 35 milhes de florins, e onde a morte de Samuel Oppenheimer em 1703 resultou numa grave crise financeira tanto para o Estado como para o imperador; na Baviera, onde em 1808 quase 80% de todos os emprstimos governamentais eram endossados e
negociados por judeus [ver M. Grufiwald, Samuel Oppenheimer und sein Kreis (S. O. e seu crculo), 1913]; na Frana, onde as condies mercantis
eram especialmente favorveis aos judeus, a ponto de Colbert j ter louvado sua grande utilidade para o Estado (Baron, op. c/r., loc. cit.), e onde, em meados do sculo XVIII, o judeu alemo Liefman Calmer recebeu um baronato de um rei agradecido, que apreciava servio e lealdade a "Nosso Estado
e Nossa pessoa" (Robert Anchel, no ensaio "Un baron juif tranais au 18me sicle, Liefman Calmet", publicado em Souvenir et Science, (1930, pp. 52-
5); e tambm na Prssia, onde os Mnzjuden (judeus cunhadores de moedas) de Frederico II tinham ttulos de nobreza e onde, no fim do sculo XVIII, quatrocentas famlias judias constituam um dos grupos mais ricos de Berlim. [Uma das melhores descries de Berlim e do papel dos judeus em sua
sociedade no limiar do sculo XVIII pode ser encontrada em Wilhelm Dilthey, Das Leben Schleier-machers [A vida de S.], 1870, pp. 182 ss.]. 7 No comeo do sculo XVIII, os judeus austracos conseguiram banir o Entdecktes Ju-dentum [O judasmo desnudo], de Eisemenger, de 1703, e, no
fim desse sculo, O mercador de Veneza de Shakespeare s podia ser representado em Berlim com um pequeno prlogo em que se pediam desculpas ao
pblico judeu. 8 A nica e irrelevante exceo constituda pelos coletores de impostos, chamados fer-miers-gnraux, da Frana, que alugavam do Estado o direito
de cobrar impostos, garantindo uma quantia fixa ao governo. Ganhavam da monarquia absoluta elevadas fortunas, e dela dependiam diretamente, mas eram numericamente por demais insignificantes como grupo, e por demais efmeros como fenmeno, para exercerem influncia econmica de per si.
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Quando falharam todas as tentativas de aliar-se a uma das classes principais da sociedade, restou ao
Estado impor-se como poderosa empresa comercial. O crescimento dos negcios estatais foi causado pelo
conflito entre o Estado e as foras financeiramente poderosas da burguesia, que preferiu dedicar-se ao
investimento privado, evitando a interveno do Estado e recusando-se a participar de maneira ativa no que
lhe parecia ser empresa "improdutiva". Foram assim os judeus a nica parte da populao disposta a
financiar os primrdios do Estado e a ligar seu destino ao desenvolvimento estatal. Com o seu crdito e suas
ligaes internacionais, estavam em excelente posio para ajudar o Estado-nao a afirmar-se entre os
maiores empregadores e empresas da poca.9
Acentuados privilgios e mudanas decisivas na condio da vida dos judeus constituam o preo pela
prestao de tais servios e, ao mesmo tempo, a recompensa por grandes riscos. Quando os Mnzjuden
judeus financistas de Frederico da Prssia ou os judeus-da-corte do imperador austraco receberam, sob
forma de "privilgios gerais" e "patentes", o mesmo status que, meio sculo mais tarde, todos os judeus da
Prssia receberiam com o nome de emancipao e igualdade de direitos; quando, no fim do sculo XVIII, no
pice de sua fortuna, os judeus de Berlim conseguiram impedir o influxo dos judeus das provncias orientais
ex-polonesas do imprio germnico, porque no desejavam dividir a sua "igualdade" com os
correligionrios mais pobres e menos cultos, os quais no reconheciam como iguais; quando, ao tempo da
Assemblia Nacional Francesa, os judeus de Bordeaux e de Avignon protestaram violentamente contra a
concesso de igualdade, por parte do governo francs, aos judeus das provncias orientais Alscia
principalmente , ficou claro que os judeus no pensavam em termos de direitos iguais, mas, sim, de
privilgios e liberdades especiais. E realmente no nos surpreende que os judeus privilegiados, intimamente
ligados aos negcios de governos e bem conscientes da natureza e condio de seu status, relutassem em
aceitar a outorga para todos os judeus dessa liberdade, que eles conseguiram em troca por seus servios, e
a qual, portanto, vista sob esse aspecto, no podia, segundo eles, tornar-se um direito a ser compartilhado
por todos.10
S no fim do sculo XIX o imperialismo em evoluo levou as classes proprietrias mudana da
opinio inicial sobre a suposta improdutividade dos negcios estatais. A expanso imperialista, juntamente
com o gradativo aperfeioamento dos instrumentos de violncia monopolizados de modo absoluto pelo
Estado, tornou interessantes os negcios comerciais com o Estado como parceiro. Isso significou,
naturalmente, que os judeus, gradual, mas automaticamente, perderam sua posio exclusiva e singular.
Mas a boa sorte dos judeus e a sua sada da obscuridade para a importncia poltica teriam sido mais
breves, se eles se houvessem restringido a meras funes comerciais dentro do Estado-nao em
crescimento. Em meados do sculo XIX, alguns Estados adquiriram suficiente crdito para dispensar o
financiamento e a garantia dos judeus para seus emprstimos.11
Ademais, a crescente conscincia por parte
9 As necessidades que estreitavam os laos entre os governos estatais e os judeus podem ser avaliadas pela ambivalncia entre as idias antijudaicas e a
prtica poltica do governo que as professava. Assim, Bismarck, em sua juventude, fez alguns discursos anti-semitas, mas veio a tornar-se, como
chanceler do Reich, amigo ntimo de Bleichroeder e fiel protetor dos judeus contra o movimento anti-semita de Stoecker em Berlim. Guilherme II, embora, como prncipe da Coroa e membro da antijudaica nobreza prussiana, tenha simpatizado com os movimentos anti-semitas da dcada de 80,
mudou suas convices e abandonou seus protegidos anti-semitas da noite para o dia, quando subiu ao trono. 10
J no sculo XVIII, onde quer que grupos de judeus se tornassem suficientemente ricos para serem teis ao Estado, gozavam de privilgios coletivos e separavam-se, como grupo, de seus irmos menos ricos e menos teis, ainda que fosse no mesmo pas. Como os Schutzjuden (judeus protegidos) da
Prssia, os judeus de Bordeaux e de Bayonne na Frana gozavam de igualdade muito antes da Revoluo Francesa, e foram at convidados a apresentar
suas queixas e proposies, juntamente com os outros grupos, na Convocation des Etats Gnraux de 1787. 11
Jean Capefigue (Des grandes oprations financires, vol. III: Emprunts bourses etc, 1855) pretende que, durante a Monarquia de Julho, s os judeus, e especialmente a casa dos Rothschild, invalidaram a solidificao do crdito esiatal baseado no Banco da Frana. Diz ele que os acontecimentos de
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dos cidados de que seus destinos particulares se tornavam cada vez mais dependentes dos destinos do
pas fez com que eles se dispusessem a conceder ao governo mais crdito necessrio. A prpria igualdade
era simbolizada pelo fato de qualquer um poder comprar papis do governo aes, aplices, bnus etc., j
considerados a mais segura modalidade de investir capital, na medida em que o Estado, totalmente soberano
para travar guerras e dispor da vida dos sditos, tornou-se a nica entidade que podia realmente proteger as
propriedades dos cidados. A partir de meados do sculo XIX, os judeus mantiveram posio de destaque
porque ainda desempenhavam papel importante, intimamente ligado participao nos destinos do Estado.
Sem territrio e sem governo prprios, os judeus constituam elemento intereuropeu; e o Estado-nao
necessariamente conservava-lhes essa condio, porque dela dependiam os servios financeiros prestados
por eles. Mas, mesmo aps o desaparecimento da sua utilidade econmica, a condio intereuropeia dos
judeus continuava sendo de suma importncia para o Estado, principalmente em tempo de conflitos e
guerras entre as naes.
Enquanto a necessidade dos servios dos judeus aos Estados-naes surgira de modo lento e lgico,
evoluindo a partir do contexto geral da histria da Europa, a ascenso dos judeus posio de destaque
poltico e econmico foi sbita e inesperada, tanto para eles prprios como para os seus vizinhos. No fim da
Idade Mdia, o emprestador de dinheiro judeu perdeu a sua antiga importncia, e j no comeo do sculo
XVI os judeus comearam a ser expulsos de cidades e centros comerciais para lugarejos e vilas do interior,
trocando assim a uniforme proteo das autoridades centrais por uma posio insegura, concedida
desigualmente por pequenos nobres locais.12
O momento crtico surgiu no sculo XVII quando, durante a
Guerra dos Trinta Anos, esses judeus, insignificantes e dispersos emprestadores de dinheiro, podiam
garantir, com o auxlio de judeus mercadores, provises para os exrcitos mercenrios dos chefes guerreiros
situados em terras ocupadas e estranhas. Como essas guerras eram semifeudais e mais ou menos
particulares dos prncipes, sem envolver quaisquer interesses de outras classes, o que os judeus ganhavam
em status era muito limitado e quase imperceptvel. Mas o nmero de judeus-da-corte aumentava, porque
cada casa feudal precisava do seu financista particular.
Esses judeus-da-corte eram servos de um grupo social apenas: serviam to s a pequenos senhores
feudais, que, como membros da nobreza, no aspiravam a representar qualquer autoridade centralizada. As
propriedades que administravam, o dinheiro que emprestavam e as provises que compravam constituam
problemas particulares do senhor, de modo que essas atividades no podiam envolver os judeus em
questes polticas. Portanto, odiados ou favorecidos, os judeus tampouco podiam transformar-se em questo
poltica de alguma importncia.
Quando, contudo, mudou o status do senhor feudal, quando ele se tornou prncipe ou rei, alterou-se
tambm a funo do judeu-da-corte. Os judeus, como elementos estranhos, desinteressados pelas
mudanas, mal percebiam a gradativa melhora de sua posio. No que lhes tocava, continuavam a
administrar negcios privados, e sua lealdade continuava a ser questo pessoal, que nada tinha a ver com
consideraes polticas. A lealdade significava honestidade: no obrigava a tomar partido nos conflitos ou a
1848 tornaram suprfluas as atividades dos Rothschild. Raphael Strauss ("The Jews in the economic evolution of Central Europe", em Jewish Social
Studies, III, 1, 1941) observa tambm que, depois de 1830, "o crdito pblico j se tornava risco menor, de modo que bancos cristos comearam a
entrar no negcio cada vez mais". Contra essas interpretaes h o fato de que prevaleciam excelentes relaes entre os Rothschild e Napoleo III, embora no possa haver dvida quanto tendncia geral da poca 12
Ver Priebatsch, op. cit.
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permanecer fiel por motivos polticos. Comprar provises, vestir e alimentar um exrcito, emprestar dinheiro
para o recrutamento de mercenrios refletia apenas o interesse pelo bem-estar de um scio comercial, fosse
ele quem fosse.
O tipo de relao entre os judeus e a aristocracia impediu que o grupo judeu se ligasse a outra camada
da sociedade. Depois que desapareceu, no comeo do sculo XIX, nunca foi substitudo. Como seu vestgio,
entre os judeus permaneceu a inclinao por ttulos aristocrticos (especialmente na ustria e na Frana) e,
no tocante aos no-judeus, uma espcie de anti-semitismo liberal, que colocava judeus e nobreza no mesmo
nvel, por alegar que ambos se aliavam financeiramente contra a burguesia em ascenso. Esses
argumentos, correntes na Prssia e na Frana, eram plausveis antes da emancipao geral dos judeus, pois
os privilgios dos judeus-da-corte realmente se assemelhavam aos direitos e s liberdades da nobreza; os
judeus demonstravam o mesmo medo da aristocracia de perder os seus privilgios, e usavam os mesmos
argumentos contra a igualdade de todos. A plausibilidade tornou-se ainda maior quando, no sculo XVIII,
maioria dos judeus privilegiados foram outorgados ttulos menores de nobreza e, no comeo do sculo XIX,
quando os judeus ricos, tendo perdido seus laos com as comunidades judaicas, buscaram status social
seguindo o modelo da aristocracia. Mas tudo isso era inconseqente, primeiro, porque j era bvio que a
nobreza estava em declnio, enquanto os judeus, ao contrrio, subiam continuamente em sua posio social;
e, segundo, porque a prpria aristocracia, especialmente na Prssia, veio a ser a primeira classe a esboar
uma ideologia baseada no anti-semitismo.
Os judeus eram fornecedores em tempo de guerra, mas, embora servos do rei, jamais participavam
dos conflitos; nem se esperava que o fizessem. Quando os conflitos cresceram e se tornaram guerras
nacionais, eles continuaram mantendo a caracterstica de grupo internacional, cuja importncia e utilidade
decorriam precisamente do fato de nunca se terem ligado a qualquer causa nacional. No sendo mais
banqueiros estatais nem fornecedores em tempo de guerra (a ltima guerra financiada por um judeu foi a
guerra austro-prussiana de 1866, quando Bleichroeder ajudou Bismarck, depois que o parlamento da Prssia
negou a este ltimo os crditos necessrios), os judeus tornaram-se consultores financeiros e assistentes em
tratados de paz e, de modo menos organizado e mais indefinido, mensageiros e intermedirios na trans-
misso de notcias. Os ltimos tratados de paz elaborados sem assistncia judaica foram os do Congresso
de Viena, entre a Frana e as demais potncias da Europa. O papel de Bleichroeder nas negociaes de paz
entre a Alemanha e a Frana em 1871 foi mais significativo do que seu auxlio na guerra, e ele prestou
servios ainda mais importantes no fim da dcada de 1870, quando, atravs de suas ligaes com os
Rothschild, proporcionou a Bismarck um meio de comunicao indireta com Benjamin Disraeli.13
Os tratados
de paz aps a Primeira Guerra Mundial foram os ltimos nos quais os judeus desem