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Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VI, Nº 7 - Dezembro de 2005

SIDNEY GUERRA E LÍLIAN MÁRCIA BALMANT EMERIQUE 295

HERMENÊUTICA DOS DIREITOSFUNDAMENTAIS

Sidney Guerra*

Lílian Márcia Balmant Emerique**

SUMÁRIO: Introdução. 1. Noções gerais deHermenêutica Jurídica. 2. A interpretação dasnormas constitucionais. 3. O intérprete. 4. Osprocessos hermenêuticos. 5. A interpretação dasnormas constitucionais de direitos fundamentais. 7.Conclusão.

RESUMO: O presente trabalho procura descreveralguns pontos relevantes da nova hermenêutica, apontandosuas contribuições para a interpretação das normasconstitucionais que são carregadas de peculiaridades.Como também defende a idéia de que esta abordagemhermenêutica melhor se adequa a interpretação dos direitosfundamentais tão caros as sociedades contemporâneas.

ABSTRACT: The present work seeks to describe somerelevant aspects of the new hermeneutica, pointing to itscontributions for the interpretation of constitutional norms thatare filled with peculiarities. It is also defended the idea that suchhermeneutical approach better suits the interpretation of thefundamental rights so expensive to contemporary societies.

* Doutor e Mestre em Direito. Professor Adjunto da Faculdade Nacional deDireito (UFRJ). Professor Titular e Coordenador de Pesquisa Jurídica daUNIGRANRIO. Professor do Programa de Mestrado da Faculdade de Direitode Campos. Membro da Inter American Bar Associaiton, da AssociaçãoNacional de Direitos Humanos Ensino e Pesquisa e da Sociedade Brasileirade Direito Internacional. ([email protected] e [email protected])** Doutora e mestre em Direito. Professora e pesquisadora da UNIGRANRIO eUNIFLU (FDC).

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1. Introdução

Durante muitos anos a hermenêutica constitucionalno Brasil esteve pautada nos métodos tradicionais(gramatical, histórico, sistemático e teleológico) e oformalismo tomou conta da atividade interpretativa emquase sua maioria. Poucos ousaram desenvolverconsiderações e críticas que questionassem o alcanceda interpretação promovida pelo único e exclusivoemprego desta metodologia.

Atualmente pode-se perceber a influência dahermenêutica estruturada na Alemanha a partir da décadade cinqüenta e que vem pondo em discussão um novométodo, além de questionar o alcance da atividadeinterpretativa, inserindo novos atores sociais no quadrodaqueles que tomam parte desta atividade com base nateoria democrática.

O presente trabalho procura descrever alguns pontosrelevantes da Nova Hermenêutica, apontando suascontribuições para a interpretação das normasconstitucionais que são carregadas de peculiaridades.Como também defende a idéia de que esta abordagemhermenêutica melhor se adequa a interpretação dos direitosfundamentais tão caros as sociedades contemporâneas.

Para tanto, primeiramente relacionam-se asparticularidades das normas constitucionais que tornam atarefa de interpretá-las mais dificultosa do que ainterpretação dos comandos infraconstitucionais. Emseguida mencionam-se algumas razões que justificam anecessidade de uma nova hermenêutica mais apropriadaa interpretação da Constituição, privilegiando na abordagemo emprego do método hermenêutico concretizante.

Como desdobramento dos principais componentesdeste método se expõe o pensamento de três autores(Peter Häberle, Konrad Hesse e José Joaquim GomesCanotilho), fazendo referência ao contributo de suas obraspara o desenvolvimento de uma Nova Hermenêutica.

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Depois se desenvolve um pouco mais osmeandros do método hermenêutico concretizante.Finalizando o estudo com a defesa de tal método comosendo o mais indicado para a interpretação das normasde direitos fundamentais, descrevendo as razõesjustificadoras desta posição.

2. Noções gerais de Hermenêutica Jurídica

A hermenêutica,1 segundo Saldanha,2 correspondea “teoria dos fundamentos do interpretar”, ou seja, seexterioriza como sendo o processo coordenador queampara e fornece os trilhos de atuação da atividade dainterpretação técnica, que, por sua vez, consiste na buscaprática e investigativa da verdadeira essência de cada textoque lhe é apresentado, de modo que seja possível retiraro correto entendimento, conteúdo e significado da normaanalisada. A conclusão em cadeia dos métodos doprocesso hermenêutico, via interpretação técnica, permitea boa aplicação do resultado final ao fato pertinente,confirmando-o, moldando-o ou negando-lhe validade, ouseja, cada agente interpretador, conforme a suacompetência, atribuição ou condição, irá adequar e moldar,aos verdadeiros ditames das respectivas normas jurídicasinterpretadas, os fatos concretos a ele subjugados.

Prima a visão didática que relaciona separadamentea hermenêutica da interpretação e da aplicação. VicenteRáo assevera que: “A hermenêutica tem por objetoinvestigar e coordenar por modo sistemático os princípios

1 Para melhor entendimento da matéria, recomenda-se a obra de GUERRA,Sidney; MERÇON, Gustavo. Direito constitucional aplicado à funçãolegislativa. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002.2 SALDANHA, Nelson. Ordem e hermenêutica: sobre as relações entre asformas de organização e o pensamento interpretativo, principalmente nodireito. Rio de Janeiro: Renovar, 1992. p. 246.

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científicos e leis decorrentes, que disciplinam a apuraçãodo conteúdo, do sentido e dos fins das normas jurídicas ea restauração do conceito orgânico do direito, para o efeitode sua aplicação; a interpretação, por meio de regras eprocessos especiais, procura realizar, praticamente, estesprincípios e estas leis científicas; a aplicação das normasjurídicas consiste na técnica de adaptação dos preceitosnelas contidos e assim interpretados, às situações de fatoque se lhes subordinam.”3

De fato, a hermenêutica jurídica tem por objeto o estudoe a sistematização dos processos aplicáveis para determinaro sentido e o alcance das expressões do Direito. As leispositivas são formuladas em termos gerais; fixam regras,consolidam princípios, estabelecem normas, em linguagemclara e precisa, porém ampla, sem descer a minúcias. (...) Ainterpretação, como as artes em geral, possui a sua técnica,os meios para chegar aos fins colimados. Foi orientada porprincípios e regras que se desenvolveu e aperfeiçoou amedida que envolveu a sociedade e desabrocharam asdoutrinas jurídicas. A arte ficou subordinada, em seudesenvolvimento progressivo, a uma ciência geral, o Direito,obediente, por sua vez, aos postulados da Sociologia; e aoutra, especial, a Hermenêutica.4

Habermas lembra que a hermenêutica jurídica teveo mérito de contrapor ao modelo convencional, que vê adecisão jurídica como uma subsunção do caso sob umaregra correspondente, a idéia aristotélica de que nenhumaregra pode regular sua própria aplicação. (...) Ahermenêutica propõe um modelo processual deinterpretação.5

3 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 5. ed. anot. e atual. por OvídioRocha Barros Sandoval. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 456.4 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 17. ed. Rio deJaneiro: Forense, 1998. p. 1.5 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre facticidade e validade. Riode Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 247

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3. A interpretação das normas constitucionais

Primeiramente, cabe conceituar o que vem a ser aatividade de interpretação no âmbito jurídico. A doutrinavem geralmente entendendo que interpretar é atribuir umsignificado a norma. Contudo, este conceito está longede apaziguar as tensões que envolvem a atividade dointérprete ou mesmo concluir que tal tarefa destina-seapenas aos casos nos quais não há consenso sobre osignificado atribuído a uma norma jurídica.

As questões hermenêuticas suscitam temas ligadosao texto, ao intérprete e a interpretação em si mesma.Um ponto que não pode ser deixado de lado diz respeitoao texto que será objeto da interpretação, até porque ésobre ele que se concentram os esforços para que umsignificado lhe seja atribuído como resultado da atividadedesenvolvida.

Excluindo-se o texto toda a idéia de interpretaçãofica comprometida, entretanto, não se defende a única eexclusiva relevância do texto, pelo contrário, a interpretaçãonão prescinde dos fatos, ela atribui um significado a normadentro de uma realidade espacial e temporal. Atualmentea corrente da hermenêutica jurídica que mais impactoapresenta na literatura nacional sustenta que o problemaé fundamental para a interpretação da norma.

O texto necessariamente está relacionado com alinguagem, com a teoria da comunicação. Por meio dalinguagem se trava a comunicação. A linguagem designa,mas também é fonte de incertezas em função daambigüidade, do caráter vago e da textura aberta. Contudo,não se pode negar que ela é uma forma de expressão ricae cheia de complexidade.

Cada vez mais a linguagem desperta o interessedos estudiosos, especialmente no campo da semiótica,de onde surgem discussões de interesse para o Direito,dando origem a um segmento preocupado com asemiótica jurídica inquieta com as relações entre direito,

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lógica e linguagem, buscando estabelecer uma triangularconexão entre sintaxe, semântica e pragmática.

A hermenêutica também deve dedicar-se ao estudodaquele que desenvolverá a atividade interpretativa, poisinterpretar consiste em dotar de significado e nesta tarefao intérprete é uma espécie de mediador que comunicaaos demais o significado que se atribui as coisas, aossignos ou aos acontecimentos.

O sujeito interpreta um mundo já compreendido, ouseja, sua tarefa é executada em meio a pré-compreensõesque poderão ou não influenciá-lo. Daí a importância do auto-conhecimento por parte do intérprete para que o mesmonão caia em armadilhas criadas por suas pré-compreensões ao interpretar uma norma e,principalmente, ao decidir um caso.

A hermenêutica igualmente dedica-se ao debatesobre a própria interpretação, os métodos a seremutilizados, seus aspectos positivos e negativos, asdificuldades inerentes à atividade interpretativa etc. Aimportância da interpretação decorre, dentre outrosfatores, da constatação de que ela é sempre necessária,mesmo quando não provoque maiores divergências quantoao significado atribuído à norma.

Por outro lado, é preciso tomar em consideraçãoque a própria linguagem normativa, freqüentemente, nãopossui um único sentido. Muitos são os termosempregados com múltiplos significados ou obscuros,havendo situações, inclusive, nas quais são detectadoserros de ordem gramatical, lógica ou sintática naconstrução da norma.

Todas essas referências ganham maior relevânciaquando o texto a ser interpretado é uma normaconstitucional, isto porque a Constituição é o documentonormativo mais importante de um Estado. Todo oordenamento jurídico deverá nela buscar sua validade, poisocupa o topo da pirâmide normativa (Kelsen), sendoreconhecido pela doutrina, de um modo geral, a

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supremacia das normas constitucionais, ensejando,inclusive, o controle de constitucionalidade das leis, cujoobjetivo é impedir a permanência dentro do ordenamentojurídico de leis e atos normativos que não estejam emharmonia com os seus dispositivos.

Em face desta peculiar condição das normasConstitucionais dentro do ordenamento jurídico do Estadoconclui-se sobre a relevância da interpretação das normasconstitucionais, posto se tratar de criar as diretrizes paraa compreensão de toda a ordem jurídica, podendo, atémesmo, conforme seja interpretada uma normaconstitucional, concluir-se pela inconstitucionalidade deuma determinada lei ou ato normativo.

Logo, a interpretação da Constituição não é tarefadas mais fáceis, pois apresenta certas dimensões que adiferenciam da interpretação das demais leis e devido aocaráter singular pelo qual é criada uma Constituição e oque ela representa para um Estado, encontram-se dadosque tornarão a atividade ainda mais necessária e criteriosapara chegar a um bom termo dentro da ordem social.

Dentre as peculiaridades que ensejam umtratamento diferenciado para uma atividade interpretativada Constituição, indica-se a posição destacada dasnormas constitucionais, visto que inauguram oordenamento jurídico estatal, na sua formação emprega-se normalmente uma linguagem mais sintética, marcadaela presença abundante de princípios em lugar de regras,além de dar margem a uma jurisdição constitucional.6

Outro dado importante é que a Constituição contémnormas de caráter aberto que permitem a sua atualizaçãoe são capazes de renovar constantemente a ordem jurídicapara comportar dentro dos limites por ela traçados àsmudanças operadas na sociedade, isto é, o caráter aberto

6 Cf. o assunto de acordo com a abordagem exposta por BASTOS, CelsoRibeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. São Paulo: CelsoBastos Ed.; Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1997. p. 49-63.

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permite que seja arejada toda a ordem constitucional,acompanhando dentro dos padrões que ela ditou astransformações sociais.

A linguagem utilizada na Constituição é mais umapeculiaridade, pois não visa tratar de todas asnecessidades de um determinado povo em umdeterminado espaço, mas tão somente abordar osassuntos considerados relevantes por seus elaboradoresno momento em que a criaram. Resta ainda mencionar aamplitude dos termos empregados, incluindo palavras designificação imprecisa ou de conceitos que escapam doâmbito meramente jurídico, merecendo, por esta razão, apresença de princípios destinados à resolução deproblemas de interpretação.

Por fim, há ainda o fato de que na Constituição estãoconsubstanciadas as opções políticas de um Estado, oque certamente acabará por influenciar a aplicação danorma, permitindo-se caminhar para uma informalmutação normativa. De tudo que foi exposto até o momentofica evidente a importância de uma hermenêuticaconstitucional ajustada e coerente com uma Teoria daConstituição.

Os métodos hermenêuticos tradicionais desdealgum tempo vêm mostrando insuficiência no atendimentodas necessidades impostas pelas mudanças ocorridascom o desenvolvimento da sociedade e do DireitoConstitucional. No Brasil, as abordagens interpretativasmais tradicionais foram disseminadas amplamente peladoutrina, sendo certo que um nome que se destacou nasua divulgação foi Carlos Maximiliano.7 Inúmeras são asedições de seu trabalho que foi durante anos bem aceitopelos operadores jurídicos.

7 Um clássico na doutrina brasileira sobre interpretação, de sua autoria,consiste na obra Hermenêutica e aplicação do Direito, com mais de dezesseteedições publicadas.

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Contudo, conforme já referido anteriormente, aConstituição apresenta peculiaridades na interpretaçãoque as demais leis do ordenamento jurídico não possueme tudo isto contribui para uma visão própria, um estudodirecionado para suas particularidades e um método maisadequado de interpretação que não se fixe apenas numaabordagem gramatical, histórica, sistemática e teleológica.

A concepção tradicional, cujo objeto de estudoconsiste apenas nas técnicas de interpretação das leis,em linhas gerais privilegia a vontade objetiva da lei. Avontade subjetiva do autor da lei, ou seja, de quem lhe deuorigem, ainda que um corpo colegiado ceda lugar àvontade da lei, presente no momento de sua aplicação,quando é chamada a produzir os seus efeitos.8

A constatação das limitações da linha hermenêuticatradicional impulsionada pelas críticas, resultou, entre osautores alemães, numa nova abordagem em relação aosmétodos hermenêuticos, construindo uma novahermenêutica direcionada a dar resposta a aspectos darealidade social que não foram devidamente contempladospela ótica clássica.

O que se percebe por nova hermenêutica consistena visão produzida na Alemanha, que foi construída a partirda tópica e que levou mais adiante a formulação do métodoconcretizante.9

4. O intérprete

Vencido o intróito conceitual, neste momento, o quese clama indagar é exatamente: a quem cabe fazer o

8 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação.Riode Janeiro: Renovar, 1999. p. 5.9 Existem autores que também estudam o impacto da Nova Retórica de ChäimPerelman sobre a interpretação. Embora consideremos relevante a abordagemproposta por Perelman, no presente trabalho não o tomará como referênciade estudo, priorizando trabalhar com a idéia de sociedade aberta dosintérpretes da Constituição e com o método concretizante.

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procedimento interpretativo? Quem pode exercer aatividade de interpretação técnica de normas jurídicasdiante dos fatos envolvidos?

A resposta a tais perguntas é essencial paraautorizar ou reconhecer o trabalho daqueles que visaminterpretar as normas jurídicas e as aplicarem aos fatos.

Prepondera na doutrina uma grave restrição deingresso no grupo daqueles autorizados a realizar ainterpretação de normas jurídicas. Nesse sentido restritivo,observa-se a corrente doutrinária10 indicando que somenteserão autorizados a proceder à interpretação os seguintesagentes: os experts doutrinários (interpretação particular),os juízes (interpretação judicial) e os legisladores(interpretação legislativa, legal ou autêntica). Por outro lado,há a corrente que exclui desse rol o último mencionado;e, ainda, é possível encontrar uma terceira correntedoutrinária, de cunho mais restritivo, que defende seremos experts doutrinários os únicos com permissãoverdadeira e própria para promover à interpretação.

Peter Häberle,11 ao discorrer acerca da visãorestritiva, vale-se da expressão proferida por Ehmkeé, quea denominou de “sociedade fechada”. Entretanto, Häberlenão coaduna com essa limitação de competência para ainterpretação; defende ser interpretação toda aquelarealizada pelos que vivem a norma (“sociedade aberta”),independente de serem estes capazes de levar a cabo auma análise interpretativa sem paixões ou tendências ecom observância de todos os preceitos e processoshermenêuticos e, ainda, se são legitimados ou não paraaplicá-la ao fato. Denomina essa categoria de “intérpretes

10 As variantes doutrinárias estão expostas com maestria na obra de RÁO,Vicente. O direito e a vida dos direitos. 5. ed. anot. e atual. por Ovídio RochaBarros Sandoval. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 468-9.11 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dosintérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e“procedimental” da constituição. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1997. p. 12.

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constitucionais em sentido lato”, e define as suas atuaçõescomo de, pelo menos, “pré-intérpretes” (Vorinterpreten).

Dessa forma, quanto ao processo de interpretaçãoconstitucional, observa-se o posicionamento do supracitado autor: “Propõe-se, pois, a seguinte tese: no processode interpretação constitucional estão potencialmentevinculados todos os órgãos estatais, todas as potênciaspúblicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possívelestabelecer-se um elemento cerrado ou fixado comnumerus clausus de intérpretes da Constituição.

Interpretação constitucional tem sido, até agora,conscientemente, coisa de uma sociedade fechada. Delatomam parte apenas os intérpretes jurídicos ‘vinculados àscorporações’ (zünftmässige Interpreten) e aquelesparticipantes formais do processo constitucional. Ainterpretação constitucional é, em realidade, mais umelemento da sociedade aberta. Todas as potências públicas,participantes materiais do processo social, estão nelaenvolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultanteda sociedade aberta e um elemento formador ou constituintedessa sociedade (... weil Verfassungsinterpretation dieseoffene Gesellschaft immer von neuem mitkonstituiert undvon ihr konstituiert wird). Os critérios de interpretaçãoconstitucional hão de ser tanto mais abertos quanto maispluralista for a sociedade.” 12

Häberle reafirma ainda a amplitude do elenco deintérpretes constitucionais: “Todo aquele que vive no contextoregulado por uma norma e que vive com este contexto é,indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessanorma. O destinatário da norma é participante ativo, muitomais ativo do que se pode supor tradicionalmente, doprocesso hermenêutico. Como não são apenas osintérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, nãodetêm eles o monopólio da interpretação da Constituição.” 13

12 Ibid., p. 13.13 Ibid., p. 15.

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Em especial nos Estados democráticos, não deveexistir vedação à práxis de interpretação exercida porqualquer cidadão. O cuidado que se deve ter é com oresultado dessas interpretações “leigas”, ou seja, aconclusão de interpretação de norma jurídica eivada depaixões e tendências ou realizada fora dos bons métodoshermenêuticos não poderá prevalecer em detrimento daconclusão técnica, oriunda da imparcialidade e realizadaconforme os processos hermenêuticos. A doutrinadominante defende a restrição do número daquelesautorizados a interpretar as normas jurídicas, para, destarte,garantir uma aplicabilidade mais justa, técnica e harmônicadas interpretações aos fatos, resultando proteção tanto aoordenamento jurídico quanto à ordem social.

De toda sorte, o agente interpretador, quanto aosprocedimentos hermenêuticos, deverá atentar para ascinco fases da interpretação conforme o fim por elepretendido. Tomando por base o ensinamento de Ráo,14

as fases consistem nas seguintes:

1) Diagnóstico do Fato;2) Diagnóstico Jurídico ou Qualificação Jurídica;3) Críticas Formal e Substancial;4) Processos Hermenêuticos; e5) Aplicação Teórica e/ou Prática da Conclusão ao Fato.

O Diagnóstico do Fato objetiva definir e descrever ofato em estudo, reduzindo-o a termo, conforme alinguagem e os significados comuns ou gramaticais.Nessa fase, levam-se em consideração todos oselementos instrutórios e probantes relacionados ao caso.

Após, inicia-se a segunda fase, denominadaDiagnóstico Jurídico ou Qualificação Jurídica, que tem por

14 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 5. ed. anot. e atual. por OvídioRocha Barros Sandoval. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 457-63.

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fim a pesquisa e a identificação das normas jurídicasregulamentadoras do fato posto a termo na fase anterior.

Em seguida, a terceira fase se impõe, partindopara as Críticas Formal e Substancial. A primeiraconsiste em investigação para apurar a autenticidade efidelidade do conteúdo e dos processos respectivos decada norma jurídica envolvida. A segunda crítica buscacertificar-se da validade, vigência e eficácia das normasjurídicas coletadas.

Com o atendimento das fases anteriores, recebemos agentes hermeneutas autorização para iniciar osProcessos Hermenêuticos, de modo a realizar ainterpretação metódica e formal das normas jurídicas.

Com a conclusão final e única das interpretaçõesoriundas dos diversos processos hermenêuticos, cabe aoagente, por fim, a Aplicação Teórica e/ou Prática daConclusão ao Fato, que equivale declarar ou impor àsituação decorrente do fato, o resultado extraído dostrabalhos hermenêuticos.

5. Os processos hermenêuticos

Conforme anteriormente esclarecido todas asnormas jurídicas estão sujeitas a interpretação, inclusiveaquelas de clareza reconhecida, mesmo porque a própriacaracterística de ser “clara” carrega relatividade diante dosfins pretendidos pela norma, pois dúvidas podem serdescobertas ou suscitadas pela evolução das relaçõessociais envolvidas. Não obstante, muitas das vezes o labordo intérprete enfrentará textos imprecisos, contraditóriose obscuros, e a interpretação será o meio adequado parasanear esses percalços e, assim, chegar ao bomentendimento do preceito e, conseqüentemente, à boasolução do caso enfrentado. Na própria definição deinterpretação apresentada por Paulo Bonavides, vem a

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indicação de ser a interpretação o remédio para asenfermidades dos textos das normas jurídicas:“Interpretação é a reconstrução do conteúdo da lei, suaelucidação, de modo a operar-se uma restituição desentido ao texto viciado ou obscuro. Trata-seevidentemente de operação lógica, de caráter técnicomediante a qual se investiga o significado exato de umanorma jurídica, nem sempre clara ou precisa.”15

Como é sabido todas as normas jurídicas são passíveisde interpretação e aplicação, devido ao seu efeito jurídico.Não obstante, ressalta-se que não correspondem exceçãoa essa regra os comandos constitucionais formais, pois, aoserem instituídos e emanados, tornam-se jurídicos e serão,a rigor e com as devidas ressalvas, objeto do mesmoprocesso de interpretação técnica das demais normasinfraconstitucionais. Tal ocorre com a Constituição, apesarde sua origem ser política e, não, jurídica, ou seja, sua vigênciareside nela própria e o grau de sua eficácia correlaciona-secom a realidade vivida pelo Estado e pelos “fatores reais depoder”. Igualmente, é imprescindível que em um diplomaconstitucional todas as normas, nele contidas, produzamalgum efeito jurídico, dispondo, assim, de juridicidadesuficiente para ser objeto de interpretação e aplicação.

Entretanto, urge ser cuidadoso o intérprete de normaconstitucional formal no sentido, também, de não considerarcom extremo o fator jurídico dessa norma, sob pena deextirpar a sua natureza política em tal grau que inviabilizarásua fonte de axiologia principiológica diretora, emanada dasideologias acolhidas, que guardam e propulsionam oordenamento jurídico. A boa interpretação constitucional nãopode descartar da norma superior o fator político e nem ofator jurídico. Destarte, cabe ao agente interpretadorponderar e equilibrar o seu trabalho nesses dois campos.

15 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11. ed. rev., atual. eampl. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 398.

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Além da compreensão do conteúdo normativo, oaplicador do direito deve ter o escopo de delinear tanto oseu alcance quanto a sua coercitividade.

Com efeito, aquele que fará a análise do textoconstitucional deverá manter-se dentro do vínculo dafinalidade regulamentadora objetivada por cada dispositivoe, em especial, pelo seu conjunto. A visão da Constituiçãocomo uma reunião de normas superiores que proferemum sentido único e global advém do método integrativo deRudolf Smend, que dinamiza e atribui grau de legitimidadedistinto para os “fatores” constitucionais envolvidos. Nessesentido, Paulo Bonavides: “A modernidade do novo métodointerpretativo – também conhecido pela designação demétodo científico-espiritual – começa portanto com essavisão de conjunto, essa premissa fundamental de que aConstituição há de ser interpretada sempre como um todo,com percepção global ou captação de sentido. Sentidosempre geral e de totalidade, que coloca tudo mais subspecie do mesmo conjunto, ao contrário pois damodalidade de interpretação empregada pelo métodousual dos positivistas e formalistas como Laband, oconstitucionalista da era bismarckiana, a quem Smendrepreende o ignorar a realidade e o conteúdo da norma.”16

Tarefa precípua em qualquer processo hermenêuticoé realizar a análise dos dispositivos das normas jurídicasque versarem acerca de dado caso concreto, de maneiraque será necessário o auxílio de vários métodos deinterpretação para que se atinja o verdadeiro idealnormativo. Esses métodos não são excludentes, isto é, autilização de um não implicará a desconsideração dosdemais; muito pelo contrário. Têm o intuito de secomplementarem e produzirem uma única interpretação(conclusão única), proporcionando uma aplicaçãocoerente e justa dos preceitos.

16 Ibid., p. 436.

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Não obstante, independentemente da pretensão aser alcançada por cada agente interpretador (cientistajurídico, estudiosos do direito, cidadão comum, legisladorinfraconstitucional, julgador etc.), o exercício dainterpretação à Constituição formal deverá ser,preferencialmente, teleológico e, ainda, não poderá seafastar do valor hierárquico (axiologia das normasconstitucionais) que possui em relação às normasinfraconstitucionais, sujeitando-se a alguns ditamesconcernentes aos processos hermenêuticos e, também,aos cânones interpretativos (regras de interpretação).

Os processos hermenêuticos correspondem amétodos científicos de interpretação de normas jurídicas,sendo que cada um deles produz o seu próprio resultadointerpretativo. Porém, a doutrina dominante informa que taisresultados não devem ser utilizados insuladamente, mas,sim, de forma complementar, ou seja, cada qual completaou aprimora o resultado interpretativo obtido pelo outro.

Basicamente, os processos mais importantes sãotrês: processo filológico, lógico e histórico. Nota-se quecada técnica hermenêutica remete à outra que iráaprimorá-la.

Assim, o método filológico é suporte inicial para ointérprete técnico alcançar o suporte da interpretaçãológica que, por sua vez, lança-o ao da interpretaçãohistórica. Considerando tais correlações, tem-se que osomatório de todos resulta na boa técnica de interpretaçãoconstitucional. Uma observação importante, quanto aosprocessos hermenêuticos, refere-se ao fato de que entreos doutrinadores as denominações supra mencionadasnão são unânimes, podendo, inclusive, ocorrer fusões,desmembramentos ou mistura dos elementos de pesquisade cada investigação. Como ilustração, destacamos ainterpretação sistemática, pois há quem entenda ser essemétodo uma categoria autônoma; todavia, outros, incluindoos nossos entendimentos, contemplam-na como sendoparte integrante do processo lógico.

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Os “cânones interpretativos”, por seu turno, incidirãonos processos hermenêuticos, com a finalidade dedelimitar as ações e opções do agente interpretador. Semembargo, verifica-se que nem todos os cânones têm efeitogenérico, pois haverá modalidades deles que só recairãoem processos hermenêuticos específicos. Os principaissão seis: influência sociológica, efeitos dos resultados dosprocessos hermenêuticos, leitura dogmática, métodovoluntarista da Teoria Pura do Direito, observância dospreceitos implícitos e o princípio da proporcionalidade.

Não é imprópria a nossa extrema cautela em alertaro leitor de que tanto os processos hermenêuticos quantoos cânones interpretativos são tratados pela doutrina deforma não unânime e não é incomum a divergência. Citam-se alguns pontos controversos: a) podem ser consideradoscomo espécies diferentes ou, em oposição, como espéciesiguais (tratando-se da mesma figura hermenêutica); b)podem ter suas modalidades ampliadas ou restringidas(em comparação ao exposto por essa obra); c) podeocorrer cânone figurando como processo hermenêutico(exemplo, Ráo17 considera o cânone sociológico comoprocesso hermenêutico) ou processo hermenêuticofigurando como cânone etc. Uníssono a afirmação e indoalém, Robert Alexy18 ensina que: “Os cânones deinterpretação têm sido tema de discussão ampla desde aépoca de Savigny. Mesmo atualmente ainda não há acordoquanto ao seu número, sua formulação precisa, sua ordemhierárquica e seu valor.”

Segundo Konrad Hesse na interpretação éfundamental o processo de realização através do qual asnormas constitucionais adquirem efetiva vigência. Este

17 RÁO, Vicente, O direito e a vida dos direitos. 5. ed. anot. e atual. por OvídioRocha Barros Sandoval. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 494.18 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. A teoria do discursoracional como teoria da justificação jurídica. traduzida por Zilda HutchinsonSchild Silva. São Paulo: Landy, 2001. p. 227.

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processo de atualização e concretização se encontrasubordinado as condições de realização da Constituição,entre as quais destaca a vontade da Constituição.19

A interpretação constitucional proposta por KonradHesse, parte da necessidade de prescindir do dogma davontade. O propósito da interpretação é o de achar oresultado constitucionalmente “correto”, através de umprocedimento racional e controlável, fundamentar esteresultado de modo igualmente racional e controlável,criando deste modo certeza e previsibilidade jurídica e nãoo acaso, ou a decisão pela decisão.

Os métodos ou regras tradicionais de interpretação(gramatical, histórico, sistemático e teleológico) não sãoinválidos, mas são insuficientes para enfrentar ainterpretação das normas abertas. Para o autor, ainterpretação é concretização. Precisamente o que nãoaparece de forma clara como conteúdo da Constituição éo que deve ser determinado mediante a incorporação darealidade de cuja ordenação se trata. Para cumprir estatarefa é necessário previamente compreender ou havercompreendido o conteúdo da norma a concretizar.

Contudo, o intérprete não encara a norma com amente completamente vazia, mas o faz a partir de umapré-compreensão que o permitirá abordar o preceito e arealidade desde uma visão de conjunto já formada, maisou menos coerente, integrada por uma série deexpectativas. O qual não implica que o intérprete se limitea executar diretamente as antecipações de sua própriapré-compreensão; pelo contrário, esta deve ser posta aprova e retificada em cada operação interpretativa.

A operação da concretização hermenêutica daConstituição é feita através do emprego do método“tópico”, embora com reservas, pois é orientada e limitada

19 HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. 2. ed. Madrid: Centrode Estúdios Constitucionales, 1992. p. 25-29.

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pela norma, ou seja, vinculada a norma, onde haverão deencontrar-se e provar-se pontos de vista que, procuradospor via da inventio, sejam submetidos ao jogo das opiniõesfavoráveis e contrárias e fundamentar a decisão demaneira mais clarificadora e convincente possível (topoi).

Konrad Hesse incorpora a concepção de F. Müllerda norma constitucional na que se integram por igual, emuma relação de mútua influência, o programa normativo(o mandato contido basicamente no texto da norma) e oâmbito normativo (setor concreto da realidade presentena norma, sobre o qual o programa normativo pretendeincidir).20 Tanto o programa normativo como o âmbitonormativo devem ser submetidos a um esforço deconcretização: as regras tradicionais de interpretaçãoencontraram sua função na interpretação do programanormativo; normalmente, ainda que não se exclua ocontrário, a concretização do texto deverá ser completadapela do âmbito normativo.

O processo de concretização das normasconstitucionais não pode desconsiderar sua dependênciada interpretação da norma de cuja concretização se tratalevando em conta a pré-compreensão do intérprete e orespeito do problema concreto que, em cada caso, se tratade resolver. O que supõe não haver um método deinterpretação autônomo, desvinculado desses fatores, ouseja, o processo de interpretação deve vir determinadopelo objeto da interpretação - a Constituição - e peloproblema em questão. Posto que o programa normativose ache contido basicamente no texto da norma aconcretizar, deverá ser apreendido mediante ainterpretação do dito texto no que se refere a suassignificações vinculante para a solução do problema.

20 Ver MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. p.51-112; onde o autor desenvolve considerações sob o método por ele mesmodesenvolvido.

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Porém, normalmente a mera interpretação do textonão proporciona uma concretização suficientemente exatado mesmo. É preciso recorrer aos dados contidos noâmbito normativo em relação ao problema em questão.Visto que as normas constitucionais buscam a ordenaçãoda realidade das situações concretas de vida, terá queapreender dita realidade nos termos marcados noprograma normativo, em sua forma e carátermaterialmente determinados. Esta forma de atuar trazelementos adicionais de concretização e umafundamentação racional e controlável, além de garantir emboa parte a adequada solução do problema. Possibilitauma solução sobre a base da coordenação objetiva dasrelações ou âmbitos vitais e uma exposição dos pontosde vista objetivos que a sustentam; neste sentido possuium caráter sistemático que vai mais além da orientaçãosistemática relativa à interpretação do texto da norma,embora mantenha relação direta com o mesmo.

Assim, a concretização do conteúdo de uma normaconstitucional, bem como sua realização, só é possívelincorporando as circunstâncias da realidade que essanorma procura regular. As singularidades destascircunstâncias compõem o âmbito normativo, o qual, apartir do conjunto dos dados sociais afetados por umpreceito, e através do comando contido sobre todo o textoda norma, o programa normativo é elevado à condição departe integrante do conteúdo normativo. Posto que estassingularidades, e com elas o âmbito normativo, se achamsubmetidas a mudanças históricas, os resultados daconcretização da norma podem mudar, apesar de que otexto da norma, e com ele, o programa normativo, continuasendo idêntico. De todo isso resulta uma mutaçãoconstitucional constante, mais ou menos notável, que nãoé fácil de captar e que raramente se manifesta com nitidez.

A interpretação tópica orienta-se e limita-se pelanorma, mas, apesar disso, conta com a presença decertos princípios diretores da interpretação suscetíveis de

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adicionar a esta uma dose de racionalidade eprevisibilidade, os princípios de interpretaçãoconstitucional: primeiramente o princípio da unidade daConstituição, seguido dos princípios da concordânciaprática, da correção funcional, do efeito integrador e daforça normativa da Constituição.

O autor não se ilude a respeito das possibilidadesdo método proposto: a racionalidade total não écompletamente possível no direito constitucional; o quenão implica que se deva renunciar a ela, mas anelar aracionalidade possível.

O texto da Constituição constitui o limite dainterpretação: qualquer imposição do intérprete em relaçãoà Constituição gera a sua modificação ou quebra. Aspossibilidades de compreensão do texto delimitam ocampo de suas possibilidades tópicas.

No método interpretativo proposto por KonradHesse, há um esforço de recuperação da normatividadeque se acha perdida no método tópico, especialmentequando este é levado as suas últimas conseqüências.Este esforço se centraria em dois pontos firmes jámencionados: a função orientadora dos princípios dainterpretação constitucional e a posição assumida pelotexto como seu limite.21

Também a Constituição contém a metodologia pararesolver os conflitos dentro da comunidade. Regula aorganização e o procedimento de formação da unidadepolítica e a atuação estatal. Cria as bases e estabeleceos princípios da ordem jurídica em seu conjunto. Em tudoa Constituição é um plano estrutural básico, orientado adeterminados princípios para a conformação jurídica deuma comunidade. A Constituição engloba a ordenação davida estatal e a ordenação da vida não estatal. Daí aimportância da interpretação constitucional como meio para

21 CRUZ VILLALON, Pedro. Escritos de Derecho Constitucional. p. 20.

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concretizar a Constituição e realizar seus objetivos nacomunidade, compondo os conflitos que dela emergem.

Quanto aos limites da interpretação constitucional,cumpre dizer que a interpretação se encontra vinculada aalgo estabelecido. Por isso, os limites da interpretação sesituam ali de onde não há algo estabelecido de formavinculante pela Constituição, de onde encerram aspossibilidades de uma compreensão lógica do texto danorma ou de onde uma determinada solução encontra-seem clara contradição com o texto da norma. A existênciadeste limite é pressuposto da função racionalizadora,estabilizadora e limitadora do poder que lhe correspondea Constituição. Dita função admite a possibilidade de umamudança constitucional por meio da interpretação; masexclui o seu quebrantamento - desviar do texto em umcaso concreto - e a reforma da Constituição por meio dainterpretação. Nas situações onde o intérprete se impõe aConstituição deixa de interpretá-la para mudá-la ouquebrantá-la. Quaisquer das condutas lhe estão vedadaspelo direito vigente. Inclusive quando o problema não poderesolver-se adequadamente por meio da concretização,o juiz, que se encontra submetido à Constituição, não podeeleger livremente os topois.

Para uma interpretação constitucional que parte daprimazia do texto este constitui o limite de sua atuação.As probabilidades de compreensão do texto delimitam ocampo de suas possibilidades tópicas. Conclui-se que ométodo concretizante não se fixa apenas nos parãmetrosoferecidos pelos métodos tradicionais de interpretação,vai mais além, inserindo outros elementos tais como apré-compreensão e o âmbito normativo, mas nãodespreza o texto normativo, antes o tem como limite paraa interpretação.

O método concretizante é incorporado por JoséJoaquim Gomes Canotilho, que explicitará com diligênciae mais clareza elementos referidos por Müller e Hesse.Tal método para o autor tem um alcance mais amplo para

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suprir as necessidades do constitucionalismocontemporâneo, visto sua referência à Constituiçãodirigente, que procura estender a dimensão do alcancedas normas constitucionais, especialmente pela referênciade que as mesmas são de duas espécies, a saber: regrase princípios; dando especial atenção ao papel dos princípiosna ordem constitucional.

Numa Constituição escrita, considerada como ordemjurídica fundamental do Estado e da sociedade, pressupõe-se como ponto de partida normativo da tarefa deconcretização-aplicação das normas constitucionais: aconsideração de norma como elemento primário doprocesso interpretativo; a mediação (captação, obtenção)do conteúdo (significado, sentido, intenção) semântico dotexto da Constituição, como tarefa primeira da hermenêuticajurídico-constitucional; e independentemente do sentido quese der ao elemento literal, o processo concretizador danorma constitucional começa com a atribuição de umsignificado aos enunciados lingüísticos do textoconstitucional.

Embora sendo o texto constitucional o primeiroelemento do processo de interpretação-concretizaçãoconstitucional, ele não contém já a decisão do problema aresolver. É necessário tomar em conta que a letra da leinão dispensa a averiguação do seu conteúdo semânticoe que a norma constitucional não se identifica com o texto,bem como a delimitação do âmbito normativo, feita atravésda atribuição de um significado à norma, deve ter ematenção elementos de concretização relacionados com oproblema a ser solucionado.

Interessa tornar mais claras as várias dimensõesda norma, a saber: programa normativo, isto é, ocomponente lingüístico da norma que é resultado de umprocesso parcial de concretização pautado, sobretudo, nainterpretação do texto normativo; e o domínio ou setornormativo, ou seja, o componente real, empírico, fático danorma que resulta de um segundo processo parcial de

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concretização baseado na análise dos elementosempíricos (dados da realidade recortados pela norma). Anorma é a junção do programa normativo com o domínionormativo, é um modelo de ordenação orientado para umaconcretização material, constituído por um limite deordenação, expresso através de enunciados lingüísticose por um “campo” de dados reais (fatos jurídicos, fatosmateriais etc.). A normatividade é o efeito global da normanum determinado processo de concretização.

O programa normativo não é apenas a soma dosdados lingüísticos relevantes do texto, captados a nívelsemântico. Outros elementos a considerar são: asistemática do texto normativo, o que corresponde àexigência de recurso ao elemento sistemático; a genéticado texto; a história do texto; a teleologia do texto queaponta para a insuficiência de semântica do texto: o textonormativo quer dizer alguma coisa a alguém e daí orecurso à pragmática.

Relevante para o processo de concretização nãoé apenas a delimitação do âmbito normativo a partir dotexto de uma norma. O significado do texto aponta paraum referencial, para um universo material, cuja análiseé fundamental num processo de concretização queaspira uma racional idade formal e material .Compreende-se que é preciso delimitar um domínio ousetor de norma constituído por uma quantidade dedeterminados elementos de fato (dados reais) que sãode diferente natureza (jurídico, econômico, social,psicológico, sociológico) e a análise do domínio danorma será tanto mais necessária quanto mais umanorma faça menção a elementos não-jurídicos e oresultado de concretização da norma dependa, em largamedida, da análise do domínio de norma; e quanto maisuma norma for aberta, carecendo de concretizaçãoposterior, através dos órgãos legislativos.

A análise dos dados lingüísticos (programanormativo) e a análise dos dados reais (domínio

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normativo) não são dois processos parciais, separadosentre si, dentro do processo de concretização. Aarticulação dos dois processos é necessária desdelogo, porque o programa normativo tem uma função defiltro do domínio normativo: como limite negativo e comodeterminante positiva do domínio normativo, istosignifica que é ele que separa os fatos com efeitosnormativos dos fatos que, por extravasarem desseprograma, não pertencem ao setor ou domínio normativo(função positiva do programa normativo), por sua vez oefeito de limite negativo do texto da norma, significa aprevalência dos elementos de concretização referidosao texto (gramaticais, sistemáticos) no caso de conflitodos vários elementos de interpretação. Assim, o âmbitode l iberdade de interpretação do apl icador-concretizador das normas constitucionais tem o textoda norma como limite. O programa normativo é tambémo elemento fundamental do espaço de seleção de fatosconstitutivos do domínio normativo.

O processo de concretização conduz a umaprimeira idéia de norma jurídico-constitucional: modelode ordenação material prescrito pela ordem jurídicacomo vinculativo e constituído por: uma medida deordenação lingüísticamente formulada e um conjunto dedados reais selecionados pelo programa normativo(domínio normativo). Para a norma jurídica passar danormatividade concreta é preciso que ela se revista docaráter de norma de decisão.

A verdadeira normatividade é aferida em uma normajurídica quando com a “medida de ordenação” se decideum caso jurídico quando o processo de concretizaçãose completa através de sua aplicação ao caso jurídico adecidir através da criação de uma disciplinaregulamentadora (concretização legislativa); de umasentença judicial (concretização judicial); prática de atosindividuais pelas autoridades (concretizaçãoadministrativa). A norma jurídica ganha uma

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normatividade atual e imediata através da sua passagemà norma de decisão.

O trabalho metódico de concretização énormativamente orientado, com os seguintes corolários: ojurista concretizador deve trabalhar a partir do texto da normae a norma de decisão deve reconduzir-se à norma geral.

A distinção positiva das funções concretizadorasdestes vários agentes depende da própria Constituiçãoem que acontecem convergências concretizadoras devárias instâncias: nível primário de concretização:princípios gerais e especiais, normas que densificamoutros princípios; nível político-legislativo: a partir do textoos órgãos legiferantes concretizam, através de “decisõespolíticas com densidade normativa - os atos legislativos_, os preceitos da constituição; e nível executivo-jurisdicional: com base no texto e das subseqüentesconcretizações desta no campo legislativo, desenvolve-se o trabalho concretizador, de forma a obter uma normade decisão solucionadora dos problemas concretos.22

O autor ainda faz menção aos princípios deinterpretação da Constituição: princípio da unidade daConstituição, princípio do efeito integrador, princípio damáxima efetividade, princípio da “justeza” ou daconformidade funcional, princípio da concordância práticaou da harmonização e princípio da força normativa daConstituição. Também expõe alguns limites da intepretação.

5. A interpretação das normas constitucionais dedireitos fundamentais

As normas constitucionais referentes aos direitosfundamentais demandam ainda mais atenção por parte

22 CANOTILHO, José Joaquim Gomes Canotilho. Direito constitucional e teoriada Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1230.

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do intérprete, tendo em vista que elas consubstanciamum núcleo de direitos que ocupam um lugar privilegiadodentro de nossa ordenação.

Na doutrina, várias expressões são utilizadas paradesignar direitos fundamentais, tais como: direitos naturais,direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais,direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais,liberdades públicas e direitos fundamentais do homem.

A classificação adotada pela Constituição de 1988,estabeleceu cinco espécies ao gênero direitos e garantiasfundamentais: direitos e garantias individuais e coletivos;direitos sociais; direitos de nacionalidade; direitos políticos;e direitos relacionados à existência, organização eparticipação em partidos políticos. A doutrina, por sua vez,classifica os direitos fundamentais em gerações,baseando-se na ordem histórica cronológica quepassaram a ser constitucionalmente reconhecidos.

A exposição, até este instante, dedicou-se aapresentar a Nova Hermenêutica, também denominadade concretização. Neste contexto, interpretar significaconcretizar. Desde agora será tratada algumas de suasimplicações em relação aos direitos fundamentais.

Para Peter Häberle, a sociedade aberta dosintérpretes da Constituição tem repercussões diretassobre os direitos fundamentais, em função disto é precisoindagar sobre como os direitos fundamentais hão de serinterpretados de modo específico. Em um sentido maisamplo, defende que se poderia introduzir uma interpretaçãoorientada pela realidade da moderna democraciapartidária, a doutrina da formação profissional, a adoçãode um conceito ampliado de liberdade de imprensa ou deatividade pública ou da interpretação da liberdade decoalizão, desde que considerada a concepção de coalizão.A relevância dessa concepção e da atuação de indivíduosou grupos, bem como dos órgãos estatais configuram umaforma produtiva de vinculação da interpretaçãoconstitucional em sentido lato ou estrito, servindo,

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inclusive, como um elemento objetivo dos direitosfundamentais.23

Esta ampliação da participação dos intérpretes nãofica adstrita às regiões em que ela se achainstitucionalizada como nos órgãos da Justiça do Trabalho,mas estendem-se as pessoas interessadas da sociedadepluralista. O que significa que não apenas o processo deformação, como também o desenvolvimento posterior,revela-se pluralista: a Teoria da Democracia, a Teoria daConstituição e da hermenêutica permitem aqui umamediação entre Estado e sociedade.

A questão da legitimação sob uma perspectivademocrática é recorrente no modelo de Estadoconstitucional-democrático. Numa sociedade aberta, tallegitimação se desenvolve também por meio de formasrefinadas de mediação do processo público e pluralistada política e da práxis cotidiana, especialmente atravésda realização dos direitos fundamentais.

O povo é também um elemento pluralista parainterpretação que se faz presente de forma legitimadorano processo constitucional. A sua competência objetivapara a interpretação é uma extensão do direito dacidadania. De modo que, os direitos fundamentais fazemparte da base de legitimação democrática para ainterpretação aberta tanto no que se refere ao resultado,quanto no que diz respeito ao círculo de participantes.

No Estado constitucional-democrático, o cidadão éintérprete da Constituição. Por isso, tornam-se relevantesas cautelas adotadas com o objetivo de garantir aliberdade: a política de garantia dos direitos fundamentaisde caráter positivo, a liberdade de opinião, aconstitucionalização da sociedade. A democracia docidadão aproxima-se mais da idéia que concebe ademocracia a partir dos direitos fundamentais e não a partir

23 HÄBERLE, Peter. Op. cit., p. 16-17.

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da concepção segundo a qual o povo soberano limita-sea assumir o lugar do monarca. Para Peter Häberle, aliberdade fundamental (pluralismo) e não o povo converte-se em ponto de referência para a Constituiçãodemocrática.24

Enfim, a conseqüência de um modelo hermenêuticobaseado numa sociedade aberta dos intérpretes daConstituição, incide sobre os direitos fundamentais tantopela ampliação democrática que proporciona à medida quetodos são admitidos como intérpretes prováveis, bemcomo pelos possíveis resultados advindos dessainterpretação promovida para além das esferas judiciais.

Deste modo, os direitos fundamentais são tratadosdentro de uma ótica interpretativa que permeia a leitura detoda a Constituição. Há uma relação de reflexos e influxosentre direitos fundamentais e a instituição. Vista peloângulo institucional, a liberdade, debaixo desta teoria,comunica a tais direitos concretude existencial, conteúdo,efetividade, segurança, proteção, limitação e fim; osespaços de liberdade ficam mais amplos.

Além destas considerações ligadas aos direitosfundamentais, baseadas no pensamento de Peter Häberle,que postula a ampliação, com base nos direitos do cidadão,do círculo de intérpretes da Constituição; faz-se mençãoao impacto do método concretizante sobre as questõesdos direitos fundamentais, principalmente quando ressalta-se o papel exercido pela pré-compreensão e pelo âmbitonormativo dentro deste método.

Cumpre lembrar que os direitos fundamentais,normalmente, não se esgotam numa mera interpretação,mas sim, numa concretização. Daí a impossibilidade dahermenêutica tradicional, isoladamente, contribuir parauma efetivação destes direitos. Por isso, importa utilizaros métodos tradicionais e os novos, sem esquecer que

24 Ibid., p. 36-38.

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interpretar a Constituição é concretizá-la, e esta atividadefunda-se em princípios interpretativos, dentre os quais sedestaca o princípio da unidade da Constituição, poispreserva o espírito constitucional, especialmente quandorelacionados aos direitos fundamentais, colocando-osnuma condição de prestígio e autoridade, visto que tempor objetivo atribuir um significado a norma capaz deeliminar contradições e afiançar a unidade do sistema.

A nova hermenêutica visa concretizar o preceitoconstitucional, de tal maneira que concretizar é algo maisdo que interpretar, é aperfeiçoar e conferir sentido à norma,ou seja, é interpretar com criatividade, seguindo princípiosque direcionam a atividade e preconizam a ponderaçãonas situações conflituosas, inclusive aquelas queenvolvem problemas relativos aos direitos fundamentais.Os princípios que pela ponderação não são utilizados emplena força na solução do caso não são expurgados dosistema normativo, ao contrário, nele permanecempodendo ser utilizados em situações futuras de conflito.25

A interpretação mobiliza com freqüência certoscomponentes fundamentais: a) as pré-compreensões queconformam e projetam o “mundo”; b) a tradição ouconfiguração histórico-cultural objeto da interpretação, queparticipa do diálogo resistindo às projeções do sujeito; c)instrumentos metodológicos; d) a imaginação produtiva,sem a qual a projeção de pré-compreensões resultariaem simples reiteração.26 Assim, estabelecer contato comas pré-compreensões, identificando-as e reconhecendosua influência, retira a imagem da interpretação como umaatividade mecânica, despersonalizada e abre espaço paraa criatividade dentro das possibilidades oferecidas pelotexto normativo, indo além da reiteração dos julgadosexistentes. Esta abertura é ainda mais significativa quando

25 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 585.26 SOARES, Luiz Eduardo. O rigor da indisciplina. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 13.

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o objeto da interpretação recai sobre direitos fundamentais,que em função da dinâmica social constituem uma texturaaberta e inacabada, construída historicamente e emconstante processo de mudança e expansão.

Em relação ao lugar de destaque com que é tratadoo papel do âmbito normativo para a concretização, cumprelembrar que as determinações referentes a direitosfundamentais, como a liberdade de domicílio e a liberdadede ir e vir ou a liberdade de crença, estão abstraídas emgraus diferentemente elevados na linguagem. Isso não sedeve a maiores ou menores graus de determinação dasformulações lingüísticas (programa normativo), porém àsdiferenças entre as matérias garantidas, à diferença dosâmbitos das normas. Os direitos fundamentais estãoespecialmente reforçados nos seus âmbitos de normas.Em virtude da sua aplicabilidade imediata eles carecemde critérios materiais de aferição que podem ser tornadosplausíveis a partir do seu próprio teor normativo, sem viverà mercê das leis ordinárias.27

Um método de interpretação que não toca a questãodo âmbito normativo para interpretar normas de direitosfundamentais corre o risco de produzir uma interpretaçãoafastada de uma noção de retidão ligada à realidade social,tendo em vista que o âmbito normativo pode ter sido ounão gerado pelo direito e representa o recorte destarealidade na sua estrutura básica, que o programanormativo escolheu para si ou em parte criou para si comoseu âmbito de regulamentação.

7. Conclusão

A interpretação das normas constitucionais não étarefa das mais fáceis devido às particularidades inerentesà ordem constitucional, tais como o caráter inicial das

27 MÜLLER, Friedrich. Op. cit., p. 74-78.

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normas constitucionais; a sua abertura que permite erequer atualizações; a linguagem sintética e algumasvezes lacunosa; a amplitude dos termos empregados e apresença de princípios; além das opções de ordempolíticas nela arrolada.

Todas estas peculiaridades ensejam umahermenêutica constitucional fundadas em técnicas quenão desprezem o seu efeito sobre a sociedade e tornema interpretação de uma norma constitucional uma merainterpretação legal sem maiores repercussões. Nesteponto, cabe dizer que a hermenêutica tradicional nãoconstitui o melhor instrumento para promover umainterpretação dinâmica do texto constitucional, capaz dese adequar a uma teoria constitucional cada vez maisrelevante num contexto de Estado Democrático de Direito.

A necessidade de uma nova hermenêutica voltadapara a realidade social e menos mecânica e formalista,torna-se cada vez mais clara diante das deficiênciasdo emprego isolado dos métodos tradicionais. Esta novahermenêutica tem por objetivo a concretização danorma. O pensamento de Peter Häberle, a respeito dasociedade aberta dos intérpretes da Constituição, bemcomo as diretr izes do método hermenêuticoconcretizante que ganham força em Konrad Hesse eJosé Joaquim Gomes Canotilho, constituem importanteinstrumento para fortalecer uma nova compreensãosobre a interpretação, alicerçada em conceitos depossível ampliação do rol de intérpretes, além da uniãodos métodos tradicionais com elementos de pré-compreensão e referências ao âmbito normativo.

A concretização e os seus correspondentesmomentos, mostram a importância do métodoconcretizante para a configuração de uma NovaHermenêutica projetada para melhor responder asdemandas de uma sociedade plural e complexa, pois nãoperde de vista a realidade onde se insere. Tal abordagemnão preconiza uma ausência total de influências de ordem

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subjetiva, como se a interpretação fosse uma atividademecânica, tendo em vista a alusão a pré-compreensõesdo intérprete que participam do processo deconcretização da norma.

Este método também valoriza a realidade social,sem com isso perder de vista a sua cientificidade, aconcretização não se realiza sem a avaliação dos influxosrecebidos do ambiente normativo de onde a norma seoriginou. Assim, com a referência as pré-compreensõese ao âmbito normativo, somadas aos métodos tradicionais,operam-se uma importante mudança na hermenêutica queestará apta a atender de forma mais satisfatória asquestões de interpretação dos direitos fundamentais.

Isto porque a Nova Hermenêutica propõe umaampliação do círculo dos intérpretes da Constituição paraincluir outros agentes sociais, até o momento excluídosdo processo interpretativo, o que favorece a consolidaçãode um Estado Democrático de Direito, esteio de umaordem social preocupada com a garantia dos direitosfundamentais.

Outra significativa contribuição do métodoconcretizante para a interpretação dos direitosfundamentais consiste na identificação das pré-compreensões do intérprete, o que possibilita um desviode uma visão viciada sobre determinadas demandas epode, inclusive, abrir espaço para a criatividadeinterpretativa, fugindo um pouco do esquema de reiteraçãodas decisões, embora não escapando da moldura dadapelo texto legal que lhe serve de limite. Esta abertura criativado intérprete possibilita inovações que, se bem articuladas,podem provocar arejamento e renovação na interpretaçãodos direitos fundamentais.

Por fim, a Nova Hermenêutica exerce uma influênciapositiva para a interpretação dos direitos fundamentais àmedida que toma em consideração a realidade socialevidenciada pelo âmbito normativo. Tem especialimportância para tais direitos esta referência, por que,

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dentre outros fatores, o seu rol é aberto, sujeito amodificações e recheado de normas-princípios, o quetorna ainda mais necessário o reconhecimento daimportância do âmbito normativo para a inclusão darealidade na tarefa de interpretação da norma.

O tema da hermenêutica jurídica foi envolvido pordiversas escolas, sendo que o universo de doutrinascontempladas dinamizam e pluralizam as vertentes deconceitos, entendimentos, inversão de objetos e métodosconsiderados, restando aos intérpretes técnicos aponderação, bom-senso e cuidado no momento deproceder à interpretação das normas jurídicas. Devido agama de escolas e teorias desenvolvidas, é impossívelesgotar o tema da hermenêutica. Assim, o nosso objetivoé indicar ao leitor os primeiros passos da interpretaçãotécnica e aguçar-lhe o interesse no caminho de umapesquisa mais profunda e completa.

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