Heróis de todos os tempos por: Valéria Martins Gilgamesh, na antiga Mesopotâmia, buscava a imortalidade; Lancelote, na Inglaterra medieval, partiu da corte do rei Artur para se meter em aventuras; El Cid, na Espanha invadida pelos Mouros, conquistou a fama entre crentes e infiéis. Todos eles são personagens que, transfigurados pela magia da lenda, encarnam o que de melhor têm seus povos de origem. Esses e outros heróis ainda mais famosos, como Alexandre o Grande, da Macedônia, ou menos conhecidos entre nós, tais como Yoshitune (Japão), Sigurd (Escandinávia) e Saktivega (Índia), têm sua trajetória descrita no livro Mitos e lendas: Heróis do Ocidente e do Oriente (http://www-di.inf.puc-rio.br/~furtado/Lendas.ppt#1), ed. Nova Era, do Grupo Editorial Record, de Antonio L. Furtado. Professor titular no Departamento de Informática da PUC-Rio, o autor usa mitos e lendas em seus projetos de Entretenimento Digital, nova área da informática. E é, além disso, membro
da Sociedade Internacional Arturiana, cujos participantes se dedicam a traduzir e editar obras em torno da figura do rei Artur. Nesta entrevista, ele conta como concilia interesses tão diferentes, fala sobre a essência de ser herói e explica por que essas histórias continuam fascinando a humanidade através dos tempos.
1. O senhor é doutor em Ciência da Computação e, ao mesmo tempo, já
escreveu e traduziu diversas obras sobre mitos e lendas. Como consegue
conciliar dois interesses tão distintos e que exigem, igualmente, dedicação?
Antonio Furtado – No Departamento de Informática da PUC-Rio, onde trabalho
como professor e pesquisador, tenho a sorte de poder conciliar os dois interesses
em um único projeto, em uma área que está crescendo muito no mundo todo,
chamada Entretenimento Digital. Nosso objetivo é apoiar a criação interativa de
histórias, tanto em mundos fictícios quanto em ambientes empresariais. Eu e
meus colegas usamos técnicas de Programação em Lógica para gerar enredos,
os quais são depois dramatizados e exibidos sob forma de animação, através de
técnicas de Computação Gráfica. Para compor os enredos, é preciso recorrer a
teorias da área de Letras e também a boas histórias, tais como os mitos e lendas
de heróis.
2. Como o senhor definiria os mitos?
AF – Nosso maior especialista em mitologia, Junito Brandão (1926-1995),
escreveu que cada mito relata algum acontecimento que se acredita ter ocorrido
em um tempo remoto, mediante a intervenção de entes sobrenaturais. Uma das
antigas ambições humanas é entender todos os fenômenos, desde os maiores,
como a criação do mundo, até coisas pequenas, como a serpente que troca de
pele. Em seu conjunto, os mitos de um povo constituem um sistema que tenta, da
maneira mais coerente possível, explicar o mundo e o homem.
3. Escritores e roteiristas recorrem aos mitos quando necessitam de
inspiração para criar uma boa história. Como e por que os mitos e lendas
continuam fascinando a humanidade, apesar da passagem do tempo?
AF – Até histórias verdadeiras tendem a sofrer a ação dos mitos, que vai
acrescentando aos fatos reais uma série de episódios fantásticos. O resultado é
que elas se transformam em lendas. A história verdadeira de Yoshitsune (1159-
1189 A.D.), guerreiro invencível que suplantou em luta interna a família dos Taira,
até então dominante no Japão do século doze, deu origem à lenda de Yoshitsune.
Por que esse fenômeno, e por que a versão lendária nos parece ainda mais
fascinante do que a original? Uma explicação possível é a de que os mitos têm
origem em um "inconsciente coletivo" – idéia do psicanalista suíço Carl Gustav
Jung (1875-1961) –, ou seja, cada um de nós nasce com uma herança
subconsciente comum a toda humanidade. Naturalmente não percebemos isso, do
contrário não seria inconsciente, mas quando ouvimos uma dessas lendas ela nos
fala bem fundo.
4. Existem semelhanças notáveis entre mitos e lendas com origens
históricas, geográficas e culturais diferentes. Qual é a explicação mais
adequada para isso?
AF – Jung achava que o inconsciente coletivo é universal, compartilhado por todos
os seres humanos, em todas as terras e em todos os tempos. Esta seria uma
resposta. Outros dizem que os mitos nasceram originariamente na Índia e foram
sendo espalhados por viajantes. Há quem cite as Mil e Uma Noites como exemplo;
os relatos de Sherazade teriam passado da Índia à Pérsia, à Arábia e finalmente
ao Egito. Seja qual for a explicação, os estudiosos reconhecem que existem
padrões, revelados nos contos folclóricos, que se repetem. O lingüista russo
Vladimir Propp (1895-1970) sugeriu um elenco de 31 "funções" (eventos típicos) e
o folclorista finlandês Antti Aarne (1867 – 1925) propôs um enorme índice de
"tipos" (esquemas recorrentes de histórias) e "motivos" (temas), que aparecem em
todas as narrativas folclóricas através dos tempos. Esses estudos têm sido
utilíssimos em nosso projeto na PUC-Rio.
5. Um dos mitos mais freqüentes, que aparece em histórias de quase todos
os tempos e lugares, é Cinderella. O senhor acha que, apesar de todas as
conquistas femininas, esse mito influencia o modo de pensar e os desejos
das mulheres até hoje?
AF – A história de Cinderella está classificada sob os números 510 e 510A entre
os tipos do índice de Aarne-Thompson. Esse índice relaciona exemplos de cada
tipo em países diversos, em alguns casos com variações devidas a diferenças
culturais. Por exemplo, a Cinderella árabe das Mil e Uma Noites não dança em
público com o príncipe... Psicanalistas, como o norte-americano Bruno Bettelheim
(1903-1990), achavam positiva a leitura de contos de fadas na formação de
meninos e meninas, pois estes representam seus conflitos com os pais (às vezes
padrastos e madrastas) e irmãos, assim como o medo do desconhecido associado
ao encontro com o sexo oposto, como no caso de A Bela e a Fera. Entretanto os
problemas – e suas soluções – evoluem com o tempo, e a Cinderella e a Bela
talvez precisem ser adaptadas aos dias de hoje.
6. O senhor diz que, talvez, a virtude mais característica do herói seja a
obstinação, não desistir nunca. Algumas pessoas possuem essa força de
vontade e, coincidência ou não, acabam vencendo na vida. Isso quer dizer
que cada um de nós poderia ser um herói?
AF – Não é fácil ser obstinado, pois isso implica querer uma coisa a qualquer
preço, que muitas vezes pode ser alto demais. É duro sacrificar o conforto, correr
riscos, renunciar a bens ou oportunidades de ganhar dinheiro, desagradar aos
outros fazendo coisas diferentes do que eles esperam de nós. Ser obstinado é um
compromisso a longo prazo e, ao mesmo tempo, são as pequenas decisões
tomadas a cada instante. Seria possível ser herói, nesse sentido, mesmo sem ser
superdotado? Gandhi não era dotado de força física, não comandava exércitos, e
prevaleceu sobre o Império Britânico com seu pacifismo teimoso. E, ainda que a
obstinação nem sempre garanta a vitória, lembremos que, mesmo vencido, don
Quixote não deixa de ser herói.
7. O senhor poderia citar um herói dos dias de hoje, que apareça
freqüentemente nos jornais? Por que ele (ou ela) é a personificação do
herói?
AF – O recém-falecido papa João Paulo II foi de muitos modos herói. Durante a
segunda guerra mundial trabalhou na defesa de judeus na Polônia. Lembro dele
na primeira vez que veio ao Brasil, cheio de energia. E nem com o doloroso
declínio da saúde abandonou sua missão apostólica. Entre as mulheres, madre
Tereza de Calcutá é também mais do que admirável. Nascida na antiga
Iugoslávia, saiu de sua terra e, como religiosa, trocou a vida contemplativa por
anos de dedicação completa aos pobres na Índia. Entre os heróis guerreiros, os
pracinhas brasileiros que lutaram com recursos mínimos na Europa são exemplos
modernos de bravura.
8. Na história dos mitos, o amor é freqüentemente uma vítima da dedicação
obsessiva à missão. É impossível ter tudo ao mesmo tempo?
AF – Quem se dedica a uma missão, como madre Tereza, muitas vezes tem de
deixar tudo para trás. Ter força para renunciar – desistindo, portanto, de "ter tudo
ao mesmo tempo" – é um dos traços da obsessão heróica. Mas, em um sentido
mais profundo, os melhores heróis continuam ligados de corpo e alma à mulher
amada mesmo que, como El Cid – cuja trajetória é descrita no livro –, tenham de
perdê-la temporariamente ou em definitivo.
9. Quais critérios o senhor usou para escolher os mitos e lendas retratados
no seu livro?
AF – Eu quis reunir uma boa amostra das histórias mais emocionantes, às vezes
divertidas, de heróis guerreiros de países diversos, criadas na Antigüidade e na
Idade Média. Nelas se vê como pode ser variada a missão do herói. Gilgamesh
busca a imortalidade, Perseu a destruição de monstros, Alexandre faz uma pausa
nas batalhas para descobrir as maravilhas de uma terra inexplorada, Saktivega dá
tudo pela posse de mulheres divinas, Yoshitsune luta para exterminar o clã
inimigo, Cuchulainn vive seu primeiro dia com armas de verdade, Sigurd arrebata
o tesouro de um dragão, Ilya ganha o dom de uma força sobre-humana, Sharr Kan
arrisca a vida em um jogo de amor na casa do inimigo, Rolando se sacrifica pela
pátria, Lancelote parte da corte do rei Artur para se meter em aventuras, El Cid
conquista fama entre crentes e infiéis.
10. O senhor é membro da Sociedade Internacional Arturiana. O que isso
significa?
AF – A maioria dos membros da Sociedade é constituída por pesquisadores
dedicados a editar, traduzir ou analisar as obras de todos os tipos surgidas, desde
a Idade Média aos dias de hoje, em torno da figura lendária do rei Artur. A
Sociedade realiza conferências trianuais, cada vez em um país, e edita um
catálogo anual de livros e de estudos acadêmicos. O ramo norte-americano, ao
qual sou filiado, edita um periódico trimestral intitulado Arthuriana
(www.arthuriana.org) e patrocina a rede de discussão Arthurnet, cujas condições de
participação podem ser encontradas nesse mesmo "site".
11. Com qual dos heróis do livro o senhor, pessoalmente, mais se identifica?
Por quê?
AF – Como não sou herói, a resposta é simples: com nenhum deles... Mas, meu
filho, Alberto Antonio, um dia me deu de presente a História dos Samurais (São
Paulo: Instituto Brasileiro de Difusão Cultural, 1993) do jornalista José Yamashiro
(1913 -). Foi com ele que aprendi sobre Minamoto Yoshitsune, e finalmente me
animei a iniciar este livro.
Por Yoshitoshi Tsukioka, 1885 (http://en.wikipedia.org/wiki/Minamoto_Yoshitsune)