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HeterogeneidadeIn: Figueiredo Eurídice (org.). Conceitos em literatura e cultura. Niterói: EDUFF; Juiz de Fora: editora da UFJF, 2005.

GRACIELA RAQUEL ORTIZ UNIVERSIDAD NACIONAL DE ROSARIO

No âmbito da crítica literária e cultural, deve-se o conceito de heterogeneidade ao trabalho de reflexão desenvolvido, desde o começo dos anos 70, pelo crítico peruano Antonio Cornejo Polar, que encaminhou suas pesquisas à elucidação dos processos de produção das literaturas, sobretudo andinas, pensadas sempre em relação com os problemas sociopolíticos e econômicos dos países envolvidos.

Nos anos 70, diante do sucesso que a crítica imanentista tinha alcançado nos âmbitos universitários latino-americanos, e apesar de reconhecer o avanço que ela significou pelo seu grau de formalização e objetivação nas análises feitas quando comparadas com o impressionismo ou a estilística utilizados até então, Cornejo Polar salientava os limites que tal aproximação impunha ao texto literário ao considerá-lo desligado “do processo histórico da cultura”.

A necessidade de elaborar uma teoria literária que, com seus princípios e métodos, fosse capaz de dar conta da especificidade da literatura produzida na América Latina se constituiu, naquela época, em um dos temas centrais na agenda de um grupo de intelectuais latino-americanos, entre os quais se achavam Angel Rama, Roberto Fernandez Retamar, Antonio Candido e Antonio Cornejo Polar. Tal atitude estava determinada pela necessidade de tomar distância crítica dos pressupostos teóricos elaborados na Europa e dominantes nos âmbitos acadêmicos e intelectuais latino-americanos.

No ensaio Problemas atuais da crítica publicado em 1977, Cornejo Polar chama a atenção para a necessidade de elaborar uma crítica aberta e interdisciplinar para poder dar conta do “conflito implícito numa literatura produzida por sociedades internamente heterogêneas, inclusive multinacionais dentro dos limites de cada país, ainda marcadas por um processo de conquista e uma dominação colonial e neocolonial” (CORNEJO, 2000, p.21).

No ano seguinte, Cornejo Polar publica o ensaio fundamental, O indigenismo e as literaturas heterogêneas: Seu duplo estatuto sociocultural, onde apresenta uma leitura crítica de textos indigenistas interpretados numa ótica da duplicidade dos mundos socioculturais que intervêm na produção literária, insistindo na idéia de conflito já assinalada no ensaio de 1977: “As literaturas heterogêneas, [ao contrário,] se caracterizam pela duplicidade ou pluralidade dos signos socioculturais do seu processo produtivo: trata-se, em síntese, de um processo que tem pelo menos um elemento não coincidente com a filiação dos outros, e que cria necessariamente uma zona de ambigüidade e conflito” (CORNEJO 2000, p.162).

O conceito de heterogeneidade parte do reconhecimento — como a priori epistemológico — que a realidade andina em particular e latino-americana em geral está marcada pelas diferenças radicais das culturas indígenas, européias e africanas, que se confrontaram desde a descoberta e a conquista da América. Além disso, Cornejo Polar leva em conta a existência de três sistemas na literatura andina: o culto, o popular e o indígena, que têm a particularidade de estarem instalados no mesmo espaço literário e de

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estabelecerem imprevisíveis relações de natureza contraditória. Nessa perspectiva, Cornejo segue de perto as reflexões feitas por José Carlos Mariátegui nos “Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana”, quando em 1928 defendia a necessidade de procurar um método crítico que considerasse a coexistência do quíchua e do espanhol, com o intuito de definir uma literatura nacional que não ignorasse a situação da conquista.

Apesar de visar a compreensão da literatura andina e do mundo andino ao elaborar o conceito de heterogeneidade, Cornejo Polar amplia a possibilidade de compreender vastas produções simbólicas da América Latina nessa perspectiva baseada na diversidade. “O indigenismo das nações andinas, o negrismo centro-americano e caribenho, mas também, de certo modo, a literatura gauchesca do Rio da Prata, e a ligada ao conceito do “real maravilhoso” podem entender-se como variáveis do fenômeno que preocupava José Carlos Mariátegui. Em todos esses casos trata-se de literaturas situadas no conflituoso cruzamento de duas sociedades e duas culturas” (CORNEJO, 2000, p.158).

Visões “homogeneizadoras”

Convencido que a realidade andina estava conformada por uma multiplicidade de universos socioculturais diversos, como já foi assinalado, Cornejo confrontou o conceito de heterogeneidade com o conceito de “literatura nacional”, ao considerar que este estava alicerçado no pressuposto da unicidade. Com a maioria dos movimentos de emancipação ocorridos durante o século XIX na América Latina, surgiram e se fortaleceram no final do século os discursos que homogeneizavam as diferenças apagando-as, com o intuito de consolidar as representações que organizavam de maneira coesa a comunidade em torno da idéia de “nação”. Nesse sentido, a crítica literária configurou seu objeto a partir da delimitação do que era a “literatura nacional”: tratava-se, no caso do Peru, da literatura culta escrita em espanhol e produzida segundo o cânone das elites dominantes que, por sua vez, seguiam os padrões europeus.

Na segunda metade do século XIX, Ricardo Palma leva adiante o projeto lingüístico-literário de introduzir nos seus textos expressões populares e coloquiais, com o intuito de tornar sua escrita representativa de uma linguagem nacional pelo fato de ela integrar tanto a expressão culta quanto a fala popular estilizada. Cornejo afirma que, “diluindo as fronteiras entre o oral e a escrita, o culto e o popular”, Palma elaborou uma política da língua que deu como resultado a aceitação sem questionamentos dessa linguagem literária, como se fosse realmente a conciliação feliz das diversas línguas. O espaço lingüístico assim criado, regido pela norma culta permeável a ponto de se apropriar dos usos populares, apresentava-se como homogêneo.

O modernismo hispano-americano continuou na linha de Palma em relação à inegável representatividade e legitimidade nacional da linguagem literária mas de um ponto de vista hierárquico, isto é, tratava-se da linguagem que melhor pudesse representar a nação ou, em última análise, o setor culto.

Quanto à historiografia literária, ela levou em conta os textos literários escritos em espanhol culto, fato que significou um recorte que escamoteou as produções populares orais ou escritas em espanhol e excluiu, é claro, as literaturas orais em língua quíchua ou aimará, confinadas, como afirma Cornejo, ao espaço do folclore. Além disso, ao organizar a sua matéria numa concepção linear do tempo, a historiografia impunha uma sucessividade que deixava fora a “perturbadora simultaneidade de opções literárias contraditórias” na busca de uma unidade que sacrificava a diversidade.

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Essas razões, entre outras, levam o crítico a afirmar de maneira enfática que a delimitação do “objeto [nossa literatura] não depende só de uma opção própria da teoria literária mas também, e sobretudo, de uma opção inocultavelmente política sobre quem (e quem não) formamos parte de ´nossa América’”(CORNEJO, 1992, p.11).

Debate Cornejo Polar/Roberto Paoli

No fim da década de 70 houve um interessante debate entre o crítico italiano latino-americanista Roberto Paoli e Antonio Cornejo Polar, que foi publicado na Revista de Crítica Literária Latinoamericana n. 12 e, após, retomado no livro Asedios a la heterogeneidad cultural que é importante lembrar pois permite acompanhar as precisões que o crítico peruano fez a respeito do conceito de heterogeneidade. A questão central levantada por Paoli se relaciona à não pertinência epistemológica desse conceito para caracterizar a essência do indigenismo, pois ele serviria também para definir toda uma série de universos que não necessariamente têm a ver com a cultura, a produção ou a recepção do texto literário. Ao atingir tal abrangência de referentes e fenômenos, o conceito de heterogeneidade perde a eficácia e se faz desnecessário. Paoli assinala também a possibilidade de pensar a literatura produzida por escritores urbanos do norte da Itália, cujo tema era o mundo arcaico dos camponeses do sul do país, como heterogênea. Além disso, ele argumenta que, ao postular a concepção do mundo indígena como impenetrável para os escritores indigenistas, Cornejo Polar estaria contradizendo o que se dá de fato na história dos homens: a diferença e a ininteligibilidade têm a ver com situações históricas que se modificam com o tempo, o que faz com que o que era ininteligível num dado momento do passado possa ser compreensível a posteriori, afirma Paoli.

Partindo do esclarecimento que o seu campo de estudo é a literatura e não as questões sociais, Cornejo Polar concorda com Paoli que o escritor indigenista — que não é índio e produz a sua literatura fora do sistema sociocultural indígena — tem a possibilidade de conhecer o mundo indígena, mas isso não significa que na sua prática de escrita, ele possa expressá-lo “de dentro”, do interior. O conceito de heterogeneidade é utilizado justamente para definir uma produção literária complexa e plural, fruto da convergência conflitiva de pelo menos dois universos socioculturais diferentes.

Cornejo salienta que a heterogeneidade é um conceito teórico que abrange várias literaturas além da indigenista — aspecto que de fato ele mesmo assinala em seus ensaios em relação ao negrismo, à gauchesca e ao real maravilhoso entre outras — mas as particularidades que esse conceito adquire em cada uma dessas expressões literárias só podem ser reconhecidas quando estudadas em seus processos históricos específicos. A esse respeito, ao considerar o indigenismo, o crítico peruano utiliza um duplo critério de elucidação: por um lado, “o grau de assimilação dos interesses sociais autênticos” dos índios (no oposto, o modo em que esses interesses são apagados ou tergiversados); por outro lado, a assunção de certas estruturas temático-formais indígenas e a sua eficácia produtiva no discurso literário indigenista, como por exemplo recursos da oralidade quíchua utilizados numa estrutura narrativa ocidental como o romance (e no oposto, como essa forma ocidental rejeita tais estruturas).

Além disso, o conceito de heterogeneidade permite fazer uma leitura da literatura indigenista que vai além das leituras tradicionais centradas nos textos, ao levar em conta os processos sociais conflitivos — os dois universos socioculturais — que estão envolvidos na sua produção. Ele afirma:

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“É interessante sublinhar, em todo caso, que a complexa trama do indigenismo não se esgota na difícil vinculação de duas culturas, pois abarca, ao mesmo tempo, a não menos difícil ligação entre duas formações sociais tão dissímiles que, por vezes, ao longo da história, fundam-se em contrapostos modos econômicos de produção. A categoria de heterogeneidade procura cobrir ambos os campos, o cultural e o social. Por isso, é preferida à categoria mais recortada de transculturação” (CORNEJO, 2000, p.194).

Manifestações da heterogeneidade

As Crônicas do Novo Mundo constituem, na perspectiva de Cornejo Polar, as primeiras manifestações da heterogeneidade, donde decorre seu caráter fundador, pois nelas se inscrevem dois universos em confronto. Por um lado, o produtor do texto se dirige a um leitor europeu que ignora ou conhece muito mal a realidade americana, por outro lado, esse mundo desconhecido e enigmático tem que ser apresentado de maneira inteligível para o público receptor, situação que leva os cronistas a compará-lo permanentemente com as referências européias.

Cornejo Polar dedicou longos períodos de sua vida intelectual ao estudo do indigenismo e particularmente do romance indigenista por ser ele um dos espaços privilegiados de manifestação da heterogeneidade. Nas primeiras décadas do século XX houve uma renovação dos códigos literários através das criações das vanguardas e do novo indigenismo que muitas vezes atuaram de maneira relacionada, renovação que deu lugar ao surgimento de um “novo sujeito produtor de cultura” oriundo, em geral, das cidades provincianas e pertencente à camada social média. Escritores como César Vallejo e José Carlos Mariátegui se preocuparam em refletir no que estava envolvido no uso de uma nova linguagem para que não fosse só uma casca ou um mero artifício, inquietação que tinha provavelmente sua origem na consciência do enorme atraso das sociedades andinas em contraste com a modernização das formas artísticas proposta pelas vanguardas. Cornejo salienta que, grande parte do trabalho poético de Vallejo consistiu no confronto de uma visão e umas palavras contemporâneas com “uma ordem referencial pouco menos que primitiva”, e no uso de uma linguagem que “situa o antigo num horizonte semântico que o transmuda sem o extraviar, em experiências e em palavras pontualmente contemporâneas” (CORNEJO, 1994, p.167).

Uma outra maneira de mudar a linguagem artística consistiu em trazer o quotidiano à forma escrita. Os esforços de incluir nas narrações formas que remetiam à oralidade, sobretudo à fala das classes populares, das camadas mais baixas da sociedade, inclusive do quíchua, traduziam a necessidade de oralizar a escrita como tentativa de ampliar a abrangência do literário. Contudo, tal projeto estava atravessado pelas tensões produzidas, por um lado, pelo fato dessas narrativas estarem afastadas das práticas comunicativas das massas representadas através de suas próprias falas, já que o analfabetismo lhes impedia o acesso à leitura; por outro lado, ao não saber escrever, essas camadas eram escritas pelos intelectuais que assumiam o papel de representantes de algo que eles mesmos não eram. Porém, Cornejo Polar salienta que tal perspectiva não anula a legitimidade ou condena a intencionalidade do projeto dos vanguardistas e dos indigenistas mas evidencia a complexidade das relações entre a voz e a letra numa sociedade que, nas primeiras décadas do século XX, estava conformada por uma população em sua maioria analfabeta e bilíngüe.

Com efeito, para o crítico peruano, todos os indigenistas dessa época assim como alguns vanguardistas reivindicavam, como uma das estratégias para se opor às oligarquias, a

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origem indígena das nações andinas que tinha sido abafada, até então, pela minoria dominadora. Colocaram em foco a questão indígena, ao mostrar que os índios tiveram o triste papel histórico de serem a maioria da população e, ao mesmo tempo, os mais marginalizados, designando os índios como a origem e como o componente primordial da nacionalidade.

No ensaio intitulado O indigenismo andino publicado em 1994, Cornejo afirma:“A definição do indigenismo como literatura heterogênea aponta, principalmente, para a evidência de que se trata de uma produção discursivo-imaginária sobreposta entre dois universos socioculturais diversos –e mesmo opostos e beligerantes, quando se incorpora o dado histórico da conquista e a subseqüente dominação de um deles sobre o outro. É óbvio que na América Latina o indigenismo não é a única literatura heterogênea... Assim, deve ficar claro que se trata de uma categoria crítica, de certo modo teórica, cujo uso tem de recorrer à história para distinguir uma heterogeneidade de outra...” (CORNEJO, 2000, p.195)

Cornejo interessa-se pelos conflitos que transparecem nos romances indigenistas, isto é, nos paradoxos que mostram que esses conflitos não foram resolvidos pelos romancistas, muitas vezes por carecerem dos instrumentos apropriados.

Sendo seu objetivo contar a história da exploração dos índios, o romance indigenista se construiu com base nos códigos realistas, apresentando as histórias como fatos realmente acontecidos que narravam a situação de marginalidade e injustiça sofrida pelos índios. Mas esse é um dos conflitos que marcaram o romance indigenista, pois se ele tivesse acabado com a mera descrição da situação abjeta, não apresentaria nenhuma solução às injustiças descritas, o que, de um ponto de vista ético, os escritores não podiam aceitar. A solução estava no abandono do código narrativo realista e na passagem para um final alegórico onde se vaticinava um tempo em que a rebelião dos índios triunfaria. Final que marca também outro paradoxo que tem a ver com a dificuldade do romance indigenista em imaginar os processos que permitiriam a entrada na modernidade, pois se, por um lado, a rebelião triunfal significava acabar com a opressão — em muitos casos imaginada como a entrada à modernidade —, por outro lado, essa rebelião apontava igualmente para o resgate do passado e a conservação de uma ordem arcaica — às vezes com o perigo de cair em alguma situação pior — que o próprio romance condenava.

Os escritores indigenistas levaram adiante a defesa dos índios reivindicando-os enquanto origem da nação, como já foi assinalado, tomaram a palavra em seu nome e se tornaram seus representantes. Porém, essa reivindicação deixava de fora os mesmos que a proclamavam pois eles não eram índios, situação paradoxal que colocava os escritores numa posição subsidiária em relação à identidade nacional. O sujeito migrante

A partir do estudo dos textos de José María de Arguedas e sobretudo do romance Os rios profundos, no livro de ensaios Escribir en el aire, publicado em 1994, Cornejo coloca em foco a construção do discurso do migrante, fato que o leva a postular a emergência de um novo sujeito como aprofundamento da categoria de heterogeneidade. Trata-se de um sujeito mestiço, que tenta articular a sua dupla origem para atingir um equilíbrio instável e por ser migrante, deve conviver com o passado ancorado num espaço longínquo e num tempo arcaico e com o presente urbano marcado por um tempo fugidio, tempos diversos mas contemporâneos. Obrigado a falar a partir de vários lugares, o sujeito tece uma trama textual nos seus deslocamentos realizados entre essas múltiplas possibilidades.

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O narrador-protagonista do romance de Arguedas citado, sujeito mestiço que se sente índio mas que pode escrever utilizando um instrumento cultural moderno como é o romance, cujo referente “obedece a outras normas socioculturais (...) signo de uma modernidade desigual (...) que só pode produzir uma nova e inclusive mais incisiva forma de heterogeneidade” (Cornejo, 1994, p.211). A narração escrita em espanhol é fragmentada pela presença de cartas, que por sua vez remetem a outras cartas escritas em quíchua, que aludem a canções cantadas nessa língua pelas índias e ouvidas no passado submerso na memória. Tanto o sujeito quanto seu discurso são plurais, oscilantes “no limiar de dois mundos, oral e escrito, romance e canção, moderno e antigo, urbano e camponês, espanhol e quíchua” (Cornejo, 1994, p.213).

As múltiplas vozes e línguas que se deixam ouvir no romance constrõem, seguindo o conceito bakhtiniano de polifonia, um espaço textual onde as identidades fragmentadas se elaboram em termos relacionais, muitas vezes conflitivos, e não se estabilizam numa posição única, rejeitando a lógica dialética que aponta para uma síntese superadora. O conceito do sujeito que no discurso monolítico sustentaria uma identidade forte e sem fissuras entra em crise.

A partir da visão do mundo arguediana que não tenta ser totalizadora no sentido de conciliação dos conflitos, Cornejo Polar elaborou, já na década de 80, o conceito de totalidade contraditória. Trata-se de pôr em jogo uma pluralidade, inclusive contraditória, de vozes em diálogo num espaço “que em si mesmo parece ou carecer de limites ou ser — inclusive no seu centro — só uma aberta, instável e porosa borda” (Cornejo, 1994, p.218), que torna dispensável a construção imaginária de uma nação homogênea, na qual as diferenças são apagadas numa operação de ocultamento da diversidade em prol de uma fictícia unidade nacional tranqüilizadora.

Alberto Moreiras no seu livro A exaustão da diferença destaca que a idéia de Cornejo da necessidade de elaborar uma historiografia literária latino-americana alicerçada no conceito de “´totalidade contraditória´ superou todos os esforços historiográficos anteriores pelo respeito demonstrado a todas as implicações da irredutibilidade da diferença cultural e da heterogeneidade histórica do hemisfério” (MOREIRAS, 2001, p. 77). Contudo, Moreiras afirma de maneira contundente que a teoria da heterogeneidade da literatura latino-americana “foi amplamente ignorada” pelos críticos que se circunscreveram a utilizar as idéias da transculturação de Angel Rama, numa versão simplificada, que se impôs como paradigma dominante. Nesse sentido ele salienta que a transculturação aponta para a conciliação dialética, o que implica que “deve funcionar e mesmo se alimentar da rasura sistemática do que não cabe nele” (MOREIRAS, 2001, p.234).

A partir das análises apresentadas no livro Escribir en el aire, Mabel Moraña sustenta que o campo conceitual que abrangia no começo a noção de heterogeneidade, que guia o desenvolvimento crítico dos textos abordados, é ampliado ao não se limitar a postular só a diversidade dos sistemas culturais pelo fato de apresentarem algum elemento diferencial nas instâncias de produção/recepção ou referente/representação. É o conceito de “totalidade contraditória”, em consonância com a idéia de “equilíbrio instável”, o que permite passar de uma análise centrada nos produtos culturais a uma outra que considera os processos envolvidos na produção cultural. Porém, a crítica observa que o conceito de “totalidade contraditória” atua na fronteira do paradoxo ao aludir o primeiro termo à vontade de exaustão que caracterizou, nessa época, as perspectivas críticas elaboradas por intelectuais como Losada, Rama, Osorio entre outros, ao passo que o segundo termo apontaria para as

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lutas e tensões da múltipla realidade latino-americana, assinalando “as linhas de fração que terminariam pondo em crise a estratégia mesma de totalização” (MAZZOTTI, 2000, p. 487)Em relação com o pós-modernismo

Na introdução ao livro Escribir en el aire, Cornejo faz um balanço do percurso realizado pela crítica literária latino-americana. A despeito do fracasso do projeto dos anos 70 na elaboração de uma teoria literária latino-americana, a historiografia literária e a crítica acharam, através do impulso produzido por esse projeto, formas próprias para dar conta das produções literárias marcadas pelo multiculturalismo. Contudo, apesar da especificidade que possa achar-se no pensamento crítico, Cornejo destaca a coincidência que em determinado momento existiu entre as idéias sustentadas pela crítica latino-americana e aquelas do pós-estruturalismo e do pós-modernismo em relação com a crítica do sujeito, a heterogeneidade discursiva, o questionamento sobre o valor e legitimidade dos cânones. Porém, ao notar o uso que se faz nos âmbitos intelectuais pós-modernos metropolitanos dos autores latino-americanos, ele assinala por um lado o paradoxo de ler a literatura latino-americana com o “cânone crítico de uma literatura que não acredita nos cânones”, por outro lado pelo caráter central que têm o marginal e a periferia no pensamento pós-moderno, alertando para o perigo de cair na armadilha de estetizar as injustiças pelo viés do marginal.Mestiçagem, transculturação e heterogeneidade

Em 1995, Cornejo Polar elaborou um documento de trabalho para ser discutido durante as Jornadas Andinas de Literatura Latinoamericana (JALLA) realizadas na cidade de Tucumán, Argentina, intitulado “Mestiçagem, transculturação, heterogeneidade” incluído em Asedios a la heterogeneidad cultural, livro publicado em 1996 que reúne uma série de estudos realizados pelos alunos e discípulos de Antonio Cornejo Polar, convocados pela Associação Internacional de Peruanistas. Esses estudos, que dialogam com os conceitos e a metodologia crítica construídos pelo crítico peruano, foram redigidos como uma homenagem a seu prolífico trabalho docente que abrangia, naquele momento, quase trinta e cinco anos.

Nesse documento, o crítico coloca uma série de questões como tarefa a levar adiante pela crítica literária latino-americana nos debates futuros, texto que, de alguma maneira, poderia ser lido na atualidade como um intenso e breve balanço de suas convicções e interrogações ao levar em conta que Cornejo morreu em 1997. Se a tarefa da teoria crítica consiste em procurar instrumentos teórico-metodológicos que permitam construir e compreender o objeto chamado literatura, ao considerar a literatura latino-americana perpassada pelas tensões em conflito que surgem como produto de sua multiplicidade, Cornejo Polar formula a hipótese que talvez seja a conflitividade o objeto que a crítica deve dar-se.

Três conceitos chaves — mestiçagem, transculturação e heterogeneidade — que articularam durante décadas o pensamento crítico latino-americano são confrontados mais para colocar perguntas que para achar respostas.

Quais os fundamentos e os limites teóricos desses termos?A categoria de mestiçagem, considerada por Cornejo como “o mais poderoso e

extenso recurso conceitual com que América Latina se interpreta a si mesma” (MAZZOTTI, 1996, p.52) numa perspectiva sociopolítica, respondia à necessidade de pensar um lugar de encontro harmonioso entre as duas correntes culturais e raciais mais importantes que conformavam essa América após a descoberta: a indígena e a hispânica, lugar de conciliação

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que legitimava a priori o que era definido como a “identidade nacional” ou regional. Por sua vez, como conceito definidor da especificidade da literatura latino-americana — falava-se de “literatura mestiça” — ele careceu, segundo a análise de Cornejo, de fundamentações teóricas sólidas.

Quanto à categoria de transculturação de Ortiz e Rama — de grande poder hermenêutico — Cornejo sugeria a necessidade de avaliá-la como possível fundamento epistemológico do conceito de mestiçagem e, caso a transculturação fosse a resolução conciliadora das contradições socioculturais existentes entre os elementos em contato, ele sustentava a exigência de pensar uma outra categoria para as situações onde as diferenças socioculturais dos elementos que entram em relação são enfatizadas e não há uma instância sincrética. Nesse nível de não resolução tem que se pensar o conceito de hibridação de García Canclini que, sem negar a síntese, a desestabiliza ao lhe conferir um caráter provisório.

Tanto a categoria da heterogeneidade, elaborada em relação à literatura para elucidar os discursos nos quais uma das instâncias produtoras tem uma origem sociocultural ou étnica diferente, quanto o caráter do histórico, que aponta para o fato que temporalidades diferentes coexistem fragmentando a linearidade da história, deviam ser problematizados em confronto com o conceito de “literatura alternativa” proposto por Martin Lienhard.

Uma última sugestão para o debate tem a ver com a abrangência do conceito de “literatura nacional” que, no caso andino, deveria considerar também as literaturas em línguas quíchua ou aimará, o que leva a definir o objeto como singular ou plural e a pensar as relações que se dão entre essas literaturas. Cornejo, convencido que nunca se chega a definições absolutas, considerava que a sua hipótese de “totalidade contraditória”, elaborada para tentar entender a situação de coexistência de múltiplas literaturas em inter-relação, devia ser estudada para poder dar conta de seu funcionamento pois naquele momento ele ainda o ignorava.

Olhares sobre o conceito de heterogeneidade

Para Raúl Bueno, co-responsável da publicação da Revista de Crítica Literária Latinoamericana, fundada por Cornejo Polar em 1976, o potencial hermenêutico do conceito de heterogeneidade em relação com outros conceitos que arquitetam os estudos literários na América Latina se baseia no fato de ser, por um lado, um conceito ancorado não só nos processos culturais mas também histórico-sociais, por outro lado não se trata de mostrar a variedade de elementos que compõem as diversas realidades em contato mas de abordá-los a partir das diferenças que os constituem.

Partindo da “heterogeneidade básica” como condição essencial da América Latina, que funciona como um a priori epistemológico e como uma categoria de análise para Cornejo Polar, Bueno apresenta sua própria análise das diferenças existentes entre os conceitos de heterogeneidade, transculturação e mestiçagem partindo da oposição: processo/resultado. Assim, ele considera a transculturação como um processo cultural de passagem de conteúdos culturais de uma cultura para outra sem pensar necessariamente o deslocamento como perda. A respeito dos outros dois conceitos, Bueno os define como “os resultados polares da transculturação” salientando que “resultado” em nenhum caso significa algo inerte, pelo contrário, trata-se de “um conjunto dinâmico de distintos processos secundários controlados pela mesma polaridade” (MAZZOTTI, 1996, p. 29). Na mestiçagem cultural existe a tendência a um apagamento das diferenças no intuito de estabelecer uma

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continuidade que visa, como alvo final, a homogeneidade. Por sua vez, a noção de heterogeneidade — chamada de secundária para diferenciá-la da básica — define-se pela ratificação das diferenças dos elementos em contato, fato que afirma a descontinuidade onde se lêem as fissuras culturais. Estabelecidas essas relações, Bueno propõe então a transculturação como um “operador de mestiçagem ou de heterogeneidade”.

Bueno salienta o caráter ético da proposta de Cornejo Polar ao não ficar num plano meramente cognoscitivo das diferenças. A ênfase colocada na diversidade, na afirmação e na defesa das diferenças, que estão na base das produções literárias heterogêneas, não significa para Cornejo a aceitação das desigualdades e das situações de exploração, muito pelo contrário, a aposta intelectual de crítico peruano implica também o compromisso político de lutar contra as múltiplas formas de opressão, uma das quais tem a ver com a visão unificadora, que desde o literário impõe um padrão universal de compreensão do objeto literário.

Heterogeneidade literária e transculturação na leitura de Friedhelm Schmidt

Salienta Schmidt que Rama, ao considerar que a literatura latino-americana apresenta uma unidade, produto da homogeneização provocada pela dependência cultural, estabelece um só sistema literário para a América Latina, ponto central de diferenciação com a posição de Cornejo, que afirma a existência de uma pluralidade de sistemas literários no interior de cada país, colocando o acento no caráter plural.

Olhando para o termo de transculturação, Schmidt faz questão de sublinhar uma divergência no uso do conceito de transculturação que fazem Fernando Ortiz, que cunhou a palavra, e Angel Rama. Ortiz assinala as transformações que a cultura dominante experimenta pela influência das culturas dominadas, ao passo que Angel Roma se detém na análise da dependência cultural na perspectiva dos processos que provocam as mudanças das culturas dominadas. Contudo, Schmidt lembra que, nas postulações de Rama, as culturas dominadas correspondem à literatura culta modernizada, situação que o leva a deixar de lado as produções de importantes setores marginalizados. Pelo contrário, na conceituação de Cornejo Polar “os sistemas subordinados não cultos (a literatura popular e as literaturas em línguas nativas) são considerados produtores de seus próprios significados, que não são meras variantes do sistema hegemônico” (MAZZOTTI, 1996, p. 42).

Apesar das contradições assinaladas entre as teorias, é preciso considerar que podem existir processos de transculturação nas literaturas latino-americanas, mas que eles não podem apagar os sistemas “não cultos” nem representar a conciliação “das contradições internas das literaturas heterogêneas”

A heterogeneidade e o compromisso intelectual de Cornejo Polar

Não podemos terminar este percurso sobre o conceito de heterogeneidade sem salientar que ele não foi simplesmente uma noção teórico-prática que permitiu a Cornejo trabalhar com textos literários pois, em última análise, tratava-se de um conceito que se integrava com seu profundo compromisso ético com o homem e com seu tempo.

Antonio Candido, ao escrever uma palavra em homenagem a Cornejo Polar, evoca a consciência continental que tinha o crítico peruano a tal ponto que, no projeto de pesquisa que levava adiante sobre literatura do mundo andino e sobre a literatura latino-americana em geral, ele incorporou a cultura e a literatura brasileiras, pois estava convencido da

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necessidade do conhecimento e do intercâmbio interamericano. Avaliando o peso intelectual de Cornejo Polar, afirmava que a sua acuidade crítica lhe permitia tanto trabalhar no plano prático das análises quanto transpor as verificações no plano conceitual, possibilitando-lhe ter “algumas das posições mais lúcidas para o estudo de nossas literaturas”.

Por sua vez, Mabel Moraña salienta que Cornejo Polar, ao desmontar o discurso da harmonia — imposta entre outras pela ideologia da mestiçagem —, leva-nos a captar as tensões internas e contraditórias da América Latina. Liberado das periodizações da historiografia literária assim como das restrições impostas pela literatura canônica, Cornejo recolhe os discursos subterrâneos “que interpelam e em muitos casos nutrem a produção canônica”, o que possibilita a recuperação dos pequenos relatos históricos, culturais e literários que são os que “realmente importa resgatar” e que permitem construir uma historicidade alternativa, longe das conceituações totalizantes.

Bibliografia

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