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FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DO PORTO

Instituto de Farmacologia e Terapêutica

FARMACOLOGIA

5-Hidroxitriptamina

Enteramina, serotonina e 5-hidroxitriptamina são três nomes para a mesma substância. O primeiro foi dado por Erspamer em 1930 a uma amina das células enterocromafins. O segundo nome foi dado por Rapport em 1948 a uma amina do soro sanguíneo vasoconstritora. Nos dois casos, o produto biologicamente activo foi identificado quimicamente com a 5-hidroxitriptamina, que veio depois a ser detectada também no sistema nervoso onde exerce a função de neurotransmissor.

A 5-hidroxitriptamina distribuiu-se no organismo nas seguintes percentagens: 90% nas células enterocromafins do tubo digestivo, 8% nas plaquetas e 2% no sistema nervoso central. Os neurónios e as células enterocromafins sintetizam e captam 5-hidroxitriptamina, mas as plaquetas não têm capacidade para a sintetizar. Toda a 5-hidroxitriptamina que as plaquetas transportam é captada do exterior já formada, sobretudo durante a travessia do sangue pela parede do intestino.

A via metabólica da síntese e degradação da 5-hidroxitriptamina tem uma enzima específica, a triptofano hidroxilase, que converte o triptofano em 5-hdroxitriptofano. Outras enzimas são comuns à via metabólica da síntese e degradação das catecolaminas. O 5-hidroxotriptofano é descarboxilado pela mesma enzima que descarboxila a DOPA (o nome da enzima é descarboxilase dos ácidos aromáticos, embora se designe frequentemente por DOPA descarboxilase). O produto da descarboxilação do 5-hidroxitriptofano é a 5-hidroxitriptamina. A degradação enzimática da 5-hidroxitriptamina faz-se selectivamente pela MAO-A. A 5-hidroxitriptamina, ao contrário das catecolaminas, não é substrato da COMT, nem tem boa afinidade para a MAO-B. O metabolito ácido que resulta da desaminação oxidativa da 5-hidroxitriptamina pela MAO-A é o ácido 5-hidroxiindolacético e o metabolito alcoólico é o 5-hidroxitriptofol.

O síndrome carcinóide foi das primeiras situações médicas que chamou a atenção para a variedade de efeitos farmacológicos da 5-hidroxitriptamina e para a sua potência. A causa mais comum do síndrome são os tumores carcinóides, 95% dos quais são malignos, do intestino delgado. Manifesta-se por diarreia, rubor facial, cólicas abdominais, broncoconstrição, pelagra e sinais de cardiopatia. As concentrações urinárias e plasmáticas de 5-hidroxitriptamina e ácido 5-hidroxiindolacético estão elevadas. É necessária cautela com os falsos positivos provocados pela ingestão de alimentos ricos em 5-hidroxitriptamina, como, por exemplo, bananas, abacaxis, nozes e abacates.

Há fármacos que interferem na síntese, no armazenamento e no transporte de 5-hidroxitriptamina. A síntese pode ser aumentada pelo L-triptofano e inibida pela p-clorofenilalanina e pelos inibidores da descarboxilase dos aminoácidos aromáticos, benzerazida e carbidopa. O armazenamento vesicular é diminuído pela reserpina, tal como acontece com o armazenamento vesicular de dopamina, noradrenalina e adrenalina, e, selectivamente, pela tetrabenazina. A 5-hidroxitriptamina é transportada

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na membrana neuronial pelo seu transportador específico (SERT, serotonin transporter) e pelos transportadores da noradrenalina (NAT ou NET, noradrenaline transporter ou norepinephrine transporter) e da dopamina (DAT, dopamine transporter). Há inibidores selectivos de cada um deles e inbidores não selectivos ou mistos. São do primeiro tipo a fluoxetina, paroxetina, fluvoxamina, sertralina, citalopram, zimelidina e tianeptina. São do segundo tipo a cocaína (inibidor do SERT, DAT, NAT) e a imipramina (inibidor do SERT e do NAT).

A metabolização da 5-hidroxitriptamina é reduzida pelos inibidores da MAO com afinidade, selectiva ou não, para a MAO-A. A clorgilina é o fármaco padrão dos inibidores selectivos da MAO-A.

Conhecem-se 7 tipos de receptores da 5-HT, numerados de 1 a 7. O receptor 5-HT3 é um canal iónico, permeável ao sódio e ao potássio, e todos os restantes tipos de receptores da 5-HT são receptores articulados com proteínas G.

Os receptores 5-HT1 de subtipo 5-HT1A e 5-HT1D são actualmente os mais importantes terapeuticamente. Os primeiros são especialmente importantes no sistema nervoso central e interferem na ansiedade, humor e no comportamento. Os segundos têm um interesse particular porque são os principais receptores vasoconstritores da 5-HT no território carotídeo. Parte da transdução do sinal faz-se por inibição da adenilciclase.

Há receptores 5-HT2 no músculo liso, nas plaquetas e nos neurónios. A sua activação causa, através da articulação com proteínas Gq e estimulação da fosfolipase C, broncoconstrição, vasoconstrição e agregação plaquetária. A cetanserina e a ritanserina são antagonistas selectivos destes receptores. Foram usados como anti-hipertensores mas a sua importância médica é reduzida. Não alteram a função plaquetária in vivo. Tem-se sugerido que a activação destes receptores no sistema nervoso central contribuiria para as alterações mentais causadas pelo LSD, dietilamida do ácido lisérgico. Este fármaco causa alucinações e tem uma estrutura química próxima da 5-hidroxitriptamina.

Os receptores 5-HT3 são canais iónicos. Existem na área postrema, que é um centro emético importante, e em terminais nervosos sensitivos. A estimulação dos receptores 5-HT3 provoca abertura do seu canal e a passagem de correntes catiónicas que excitam neurónios desencadeadores de vómito.

Os receptores 5-HT4 estão presentes nos terminais nervosos colinérgicos do tubo digestivo. A sua activação provoca aumento da libertação de acetilcolina e estimulação peristáltica.

Os restantes tipos de receptores não têm função conhecida.

Os efeitos fisiológicos e patofisiológicos da 5-hidroxitriptamina podem descrever-se do seguinte modo:

a) Vasoconstrição por acção sobre o músculo liso vascular, através de receptores 5-HT2 na maior parte dos territórios sanguíneos e de receptores 5-HT1D no território carotídeo; para além de uma acção própria, a 5-hidroxitriptamina tem sinergismo com a noradrenalina, a adrenalina e a angiotensina II, amplificando o efeito vasoconstritor de concentrações pequenas destes agonistas.

b) Vasodilatação por acção sobre o endotélio de algumas artérias, com libertação de substâncias vasodilatadoras. A importância deste efeito não é clara mas talvez

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contribua para que o débito coronário não se reduza tanto como seria de temer com a aplicação de agonistas como os triptanos.

c) Não se sabe a importância da estimulação cardíaca por acção directa.

d) A 5-hidroxitriptamina desencadeia o reflexo de Bezold-Jarisch: a estimulação de terminais nervosos cardíacos pela 5-hidroxitriptamina causa, por reflexo vagal, bradicardia. O efeito é mediado por receptores 5-HT3 e constitui um modelo experimental para testar potenciais antagonistas.

e) A 5-hidroxitriptamina plaquetária causa agregação, através da activação de receptores 5-HT2.

f) A 5-hidroxitriptamina estimula a motilidade gastro-esofágica e intestinal, em parte através da estimulação de receptores 5-HT4 dos terminais nervosos colinérgicos.

Tabela 1. Medicamentos de uso corrente que actuam sobre a 5-hidroxitriptamina ou sobre os receptores 5-HT

Fármaco Acção farmacológica Indicação terapêutica

buspirona, ipsapirona, gepirona agonista parcial 5-HT1A ansiedade

sumatriptano, zolmitriptano, rizatriptano, naratriptano, elitriptano

agonista 5-HT1D enxaqueca aguda

ondansetron, granisetron, tropisetron, zacopride antagonista 5-HT3 vómitos

cisapride (nota: depois de vários anos de emprego clínico generalizado, foi retirado de uso médico por associação com taquiarritmias ventriculares sérias; prevê-se o desenvolvimento de compostos análogos)

agonista 5-HT4 estimulação da motilidade esofágica e gastrointestinal

fluoxetina, paroxetina, fluvoxamina, sertralina, citalopram

inibidores selectivos do transportador da 5-HT (SERT, serotonin transporter)

depressão

cetanserina, ritanserina, risperidona (uso clínico escasso)

antagonista 5-HT2 hipertensão arterial, depressão, esquizofrenia

MAVC, DM. Dezembro 2003


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