Interrupção Voluntária
de Gravidez
O que a Psicologia pode e sabe dizer
Isabel Leal [Professora Associada do ISPA, Coordenadora do Departamento
de Psicologia Clínica da Maternidade Dr. Alfredo da Costa]
INTRODUÇÃO
O tema e a problematização da interrupção voluntária
de gravidez retorna ciclicamente à praça pública e
ao debate político repartido por dois grandes mo-
vimentos de opinião: um, que considera que as
razões que conduzem cada mulher a decidir inter-
romper uma gravidez são do seu foro íntimo e por-
tanto não podem, nem devem, ser alvo de legislações
e dispositivos normalizadores e outro que, por razões
e percursos diferentes conclui exactamente o con-
trário, considerando que o corpo grávido é um corpo
"socializado" e não pertencente apenas ao próprio.
No cerne desta segunda posição colocam-se, fre-
qüentemente, questões sobre o direito à vida, o di-
reito do embrião e do feto e mesmo da identidade
genética.
Independentemente das posições tomadas, aceita-se
consensualmente que a polêmica é uma questão polí-
tica com repercussões morais (ou vice-versa) em que,
na essência, se discute um poder social: o de legislar ou
não, sobre a procriação.
De facto, verifica-se que os poderes sempre encon-
traram meios de controle, discutivelmente eficazes,
para assegurar uma indispensável
transgeracionali-dade (Foulcault, 1977). Percebe-se
que assim tenha sido e que, de algum modo, assim
continue a ser. Percebe-se que, para lá dos interesses
dos sujeitos e da maior ou menor importância que cada
tempo e cada cultura tenha sido capaz de conceder à
jndividuali-dade, a sobrevivência de grupos sociais
seja um valor destacado. Estratégias múltiplas
asseguraram ao longo de séculos o controle da
reprodução assente
directamente no controle sexual e nas regras filiativas
decorrentes. Entretanto, as descobertas da Moderni-
dade, nomeadamente as que democratizaram as práti-
cas anticonceptivas de elevada eficácia, implicaram
importantes mudanças de costumes, de mentalidades
e também de dispositivos dos poderes.
Embora as diferentes práticas anticoncepcionais ten-
ham sido, desde sempre, uma possibilidade e um con-
hecimento efectivamente usado, apenas "no século XX
os defensores ocidentais da contracepção têm, de um
modo geral, procurado traçar uma linha clara entre o
controlo dos nascimentos e o aborto. No final da
Antigüidade raramente se faziam demarcações deste
tipo." (McLaren, 1990, p-97). Ou seja, durante muito
tempo, não se colocou nenhuma questão, socialmente
importante, sobre aquilo que designamos hoje como
interrupção voluntária de gravidez. Não se pressupôs
que o aborto provocado fosse outra coisa que não uma
forma de impedir o nascimento de um filho indesejado
e não se concedeu a essa prática um significado criminal
ou moralmente diferente da toma de chás e mezinhas
tradicionais eventualmente capazes de estancar gravi-
dezes sucessivas
A CLIVAGEM DO CORPO
O surgimento da interrupção voluntária de gravidez
como questão pública é concomitante a um extenso
conjunto de transformações societárias que carrega
ainda elaborações deficitárias de molde, aliás, a poder
permitir a existência de uma tão extraordinária e extra-
vagante discussão: a dos direitos do feto versus os
direitos das mulheres.
Sexualidade Planeamento Familiar • n° 32 • Novembro/Dezembro 2001
A inquietante estranheza desta discussão decorre da
clivagem fundamental que o corpo feminino sofre. De
um lado existe um corpo individualizado, com direitos
essenciais e liberdades próprias. De outro lado, existe
um corpo grávido que por o ser, perde o anterior
estatuto e se torna num corpo societário, com limites
precisos e objecto específico de interdições. Mesmo
sabendo-se que não existem dois sujeitos mas apenas
um, o discurso moral prevalecente obriga a que a mu-
lher se subdivida em duas e que a mãe potencial ou em
devir, seja o futuro de todas e cada mulher.
Esta circunstância - a do corpo clivado da mulher - é,
historicamente, a raiz de demasiados mal entendidos e
causa primeira de uma perpétua diferença, depois
subserviência, feminina. Como se, a possibilidade de
procriar na mulher a conduzisse directamente a um
estatuto à parte, diferente em qualquer caso do dos
homens e do das mulheres não mães. Estatuto esse
que despontaria e concederia à mulher características
e sentimentos particulares a partir do exacto momento
em que engravidasse.
Esta perspectiva, encapotada mas ainda dominante,
implica na prática uma ideologia "maternalista" que
atribui a cada mulher uma proximidade espantosa a um
biologismo primitivo, romântico e balofo que promove
não só a idéia de que todas as mulheres gostam sem-
pre dos seus filhos gerados como todas as mulheres
concedem a qualquer gravidez a sinonimia de um filho
que, na mesma lógica, é imediatamente investido.
Como esta saturadamente estudado não é assim.
Gravidez e maternidade são situações completamente
diferentes (Leal, 1990) que, por felizes acasos, ou mais
freqüentemente por trabalho árduo e investido, se tor-
nam coincidentes. Mesmo quando uma gravidez é
desejada e se inscreve num projecto de maternidade
séria e conscienciosamente pensado não existe
automatismo entre o conhecimento de que se está
grávida e a sensação de que o corpo está "ocupado"
por um outro ser. As primeiras doze semanas de
gravidez (i- trimestre) são habitualmente consideradas
de um ponto de vista psicológico como de grande
ambivalência, constituindo-se como tarefa psicológica
fundamental a aceitação da própria gravidez. É um
tempo de estranheza, de regresso a si mesma, de
reac-tivação de conflitos antigos, sem espaço ainda
para a construção mental de um filho, de uma criança,
de um bebê mesmo que imaginário.
Ora, e apesar da maior parte dos estudos levados a
cabo nos últimos 20 anos evidenciar o facto de que
a interrupção voluntária de gravidez, por si só, não é
indutor de distúrbios psicológicos graves na mulher
que o pratica (Nova & Leal, 1988) o facto é que os con-
textos morais e sociais são suficientes para culpabilizar
e desencadear angústias importantes nas mulheres
que resolvem de forma clandestina e mesmo legalmente
penalizada interromper uma gravidez.
CONSEQÜÊNCIAS DA INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DE
GRAVIDEZ
De facto, aquilo que a investigação nesta área tem
demonstrado é que a decisão de interromper ou não
uma gravidez depende da pressão, das normas sociais,
leis, crenças e valores em relação a esse acto (Smetana
& Adler.19/9).
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Nesse sentido é fácil perceber que os investigadores
considerem uma interrupção voluntária de gravidez
como um acontecimento de vida ("life event") sempre
assinalável e stressante (Sihvo, Hemminki, Kosune &
Koponen, 1998), cujas repercussões para a mulher
serão tanto mais complicadas quanto uma série de
outras contigências se verificarem.
De acordo com um estudo de Jamieson e Stein (1986)
sobre os acontecimentos de vida mais importantes
para centenas de mulheres, a interrupção voluntária
de gravidez é assinalada em 6a lugar numa listagem
possível de 13 acontecimentos traumáticos.
Habitualmente a interrupção voluntária de gravidez é
pensada como a resposta possível a uma situação de
gravidez indesejada pela própria, situação que se
constitui também como um acontecimento de vida
importante e que acarreta quadros sintomáticos
conhecidos: extrema ansiedade muito persistente, somatizações, insónias, sentimentos depressivos, culpa, desinteresse por sexo, diminuição da auto-estima,
afastamento das relações habituais, arrependimento,
anorexia ou bulimia e três em quatro mulheres nesta
situação experimentam ideação suicida (Senay,i974).
Quer dizer que a tomada de decisão de interromper
uma gravidez, nestes casos, prefigura-se como um mal
menor em que eventuais seqüelas podem ser supor-
tadas já que a própria interrupção pode reduzir o
stress resultante de uma gravidez indesejada. (Russo
& Zierk,i992).
A investigação demonstra aliás que a maioria das mu-
lheres que decidiu abortar apresentava no pós-aborto
uma maior intensidade de emoções positivas desta-
cando-se o alívio e o bem-estar (Adler e ai. 1990) mas,
é igualmente a investigação que nos ajuda a perceber
quais as situações e circunstâncias em que uma inter-
rupção voluntária de gravidez se pode transformar
num acontecimento de vida eventualmente
desen-cadeador de elevados patamares de
sofrimento.
A religião, sobretudo a católica (comparativamente
com protestantes e judeus) e a respectiva intensidade
de crença negativa a propósito da interrupção volun-
tária de gravidez é descrita como facilitadora de senti-
mentos negativos no pós-aborto (Adler,i975; 1979;
Payne e ai. 1976).
O suporte social oferecido por parceiros, amigos e pais
também merece destaque. Verifica-se que um suporte
social de pessoas significativas facilita a recuperação
emocional no pós-aborto embora pareça ser mais
importante a qualidade do suporte prestado (suporte
social percepcionado) (Bracken e ai. 1974; Payne, 1976;
Major, Mueller e Hildebrant.igSs, Ouro e Leal, 1998).
A idade em que se procede à interrupção voluntária de
gravidez parece também ser uma variável importante.
De facto, não só genericamente mulheres mais jovens
têm tendência para maiores traumas emocionais como
especificamente no caso da interrupção voluntária de
gravidez se verifica que assim é. Num estudo sobre
interrupção voluntária de gravidez e distúrbio pós
traumático de stress (Cosme e Leal, 1998) verificou-se
que a ocorrência deste sindrome era 4 vezes maior em
adolescentes que em mulheres adultas.
Também o tempo em que se procede à interrupção vo-
luntária de gravidez, parece ser da maior importância.
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De acordo com resultados de diferentes investigações
verifica-se que as conseqüências de um aborto é tanto
menor quanto mais precocemente se realizar. Estão
descritos maiores sentimentos de mágoa em mulheres
que abortam já no segundo trimestre e também uma
maior e estatisticamente significativa incidência de
distúrbio pós- traumático de stress (Turrell,i99o, Clare
e Tirrel, 1994, Cosme e Leal, 1998).
O QUE A PSICOLOGIA PODE E SABE DIZER
Independentemente da opinião que cada um de nós
enquanto cidadãos, livremente pensantes e detento-
res de um certo número de crenças e valores, possa
defender, é importante que os saberes organizados
disciplinarmente contribuam para um diálogo frutuoso
e para informar decisões que, ainda que políticas,
regem a nossa vida em sociedade.
À psicologia pode e deve pedir-se alguma coisa a
propósito deste recorrente tema: o da interrupção vo-
luntária de gravidez.
A Psicologia não tem tanto a dizer como se esperaria
mas ainda assim tem alguma coisa.
Tem, em primeiro lugar, que relembrar que a inter-
rupção de gravidez é historicamente o método mais
comum de controlo de natalidade (Barroso.igSs) o que,
sendo no mundo actual um desperdício de dinheiro,
recursos técnicos e até vidas, dá testemunho de um
arreigamento trans-cultural e trans-temporal impossí-
vel de ignorar. Significa por isso que sempre, na história
do mundo, mulheres não desejaram certas gravidezes e
correram riscos, até de vida, para que elas não
prosseguissem. Contra a corrente
"maternalista-natu-ralista" que vê em qualquer
gravidez uma assumpção de desejável feminilidade, o
recurso ancestral a práticas diversas de evitação de
gravidezes ou da sua continuidade, está aí a mostrar
como as gravidezes são diferentes dos filhos e como
umas e outros têm histórias próprias e diferentes.
Depois, a Psicologia baseada mais na empiria do que
em teorias aprioristicas e normalisadoras deve acolher
os resultados disponíveis. Estes dizem-nos que por
norma a interrupção voluntária de gravidez corres-
ponde a um acontecimento de vida stressante mas em
todo caso preferível a uma gravidez indesejada.
Dizem-nos que a minoria de mulheres para as quais a
interrupção de gravidez deixa seqüelas importantes
são mais ambivalentes na sua decisão, percepcionam
um suporte social mais frágil, são mais jovens, têm
crenças mais negativas a respeito da interrupção de
gravidez, adiam para mais tarde a interrupção e apre-
sentam na generalidade sentimentos ou personali-
dades pré-aborto mais predisponentes a maiores
impactos emocionais.
Não sendo conclusões grandiosas são apesar de tuc:
suficientemente sólidas e estabelecidas para serem
tomadas em conta, x
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