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INTRODUÇÃO

Como o próprio termo indica, a “teologia histórica”, também conhecida como

história da teologia ou história da doutrina, tem uma estreita conexão com duas áreas muito

importantes: a história da igreja e a teologia cristã. Levanta-se então a seguinte pergunta: A

teologia histórica é primordialmente história ou teologia? Qual das duas ênfases é

predominante? Variam as posições dos autores sobre essa questão, mas não seria incorreto

dizer que ela tem estreita e igual conexão com essas duas áreas correlatas. Inicialmente, é

necessário considerar como a teologia histórica se encaixa nas subdivisões dos estudos

históricos do cristianismo, que são apontadas a seguir.

A “história da igreja” é a mais ampla das disciplinas que tratam do passado cristão.

É o estudo da caminhada e do desenvolvimento da igreja através dos séculos, em muitas

áreas diferentes: missões e expansão geográfica; culto, liturgia e sacramentos;

espiritualidade e vida cristã prática; organização, estrutura e forma de governo; pregação ou

homilética, arquitetura e arte sacra; relação com a sociedade, a cultura e o estado. Enfim,

pode-se afirmar que a história da igreja ou história do cristianismo inclui tudo o que a igreja

faz no mundo, sendo essencialmente um estudo e uma narrativa de eventos, personagens e

movimentos. Inclui o que hoje se denomina história institucional e história social.

Todavia, a história da igreja, além de analisar a prática da igreja, também aborda o

pensamento da igreja, aquilo que a igreja ensina. E isto se relaciona mais concretamente

com a teologia histórica. Todos os tópicos mencionados acima podem ser considerados

desde duas perspectivas. Por exemplo, a prática da igreja na área de missões (história da

igreja) e a reflexão da igreja sobre a sua missão (história da teologia), ou a evolução das

práticas litúrgicas da igreja (história da igreja) e a reflexão sobre o significado e

implicações da liturgia (teologia histórica). Esse estudo do pensamento e ensino da igreja

pode ter várias abordagens.

A “história do dogma” é a análise de certos temas doutrinários particulares que

receberam uma definição oficial e normativa da igreja. Os historiadores entendem que

somente três áreas de doutrina se inserem na história do dogma: a doutrina da Trindade

(definida nos Concílios de Nicéia e Constantinopla), a doutrina da pessoa divino-humana

de Cristo (Concílio de Calcedônia) e a doutrina da graça ou, mais especificamente, a

relação entre a graça divina e a vontade humana no que se refere à salvação.

No outro extremo está a “história do pensamento cristão”, que identifica um vasto

campo de investigação, incluindo tópicos que estão além dos limites da teologia clássica,

como certas questões filosóficas, éticas, políticas e sociais. Os especialistas também

empregam os termos “história das idéias” e “história intelectual” para se referir a esse

contexto mais amplo dentro do qual se insere a teologia histórica.

A história da teologia não tem um campo tão limitado como a história do dogma,

nem tão amplo como a história do pensamento cristão, mas utiliza essas duas áreas em sua

elaboração. A teologia histórica considera todo o corpo de doutrinas existente na vida da

igreja em cada período da história.

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Por outro lado, é necessário verificar como a teologia histórica se posiciona no outro

campo de estudo com o qual está relacionada – a teologia cristã. Ao se considerar a

chamada “enciclopédia teológica”, ou seja, o conjunto de disciplinas que se dedicam ao

estudo da teologia, é comum se fazer a seguinte classificação:

Estudos bíblicos: é o estudo do texto da Escritura – a fonte primordial da teologia

cristã – em seus aspectos literários, históricos e teológicos, o que inclui a sua interpretação

através da hermenêutica e da exegese. Aqui também pode ser incluída a “teologia bíblica”,

que é o esforço de identificar as idéias teológicas de cada documento ou autor das

Escrituras. Por exemplo, a teologia dos salmos, a teologia de Paulo.

Teologia sistemática: é o esforço de apresentar os dados da teologia de maneira

organizada, inclusive para fins didáticos. No seu sentido tradicional, ela busca apresentar

um panorama claro e ordenado dos principais temas da fé cristã, com freqüência seguindo o

padrão do Credo dos Apóstolos, ou seja, indo desde a doutrina de Deus até as últimas

coisas ou escatologia.

Teologia filosófica: é o ramo da teologia que busca encontrar um terreno comum

entre a fé cristã e outras áreas de atividade intelectual. Historicamente tem havido uma

aproximação entre a teologia e a filosofia em alguns períodos específicos (patrística,

escolasticismo, período moderno) e em torno de certos temas particulares, como a doutrina

de Deus. Por outro lado, em todas as épocas alguns importantes pensadores cristãos têm

expressado reservas em relação à filosofia (dois exemplos antigos são Irineu de Lião e

Tertuliano de Cartago; um exemplo moderno é o teólogo neo-ortodoxo Karl Barth).

Teologia pastoral: esse aspecto da teologia preocupa-se em aplicar os dados da

teologia bíblica e sistemática às necessidades do ministério pastoral, especialmente na

orientação e cuidado dos indivíduos que compõem a igreja ou que são objeto da sua

atuação. Também é chamada teologia prática e inclui a pregação, a educação cristã e o

aconselhamento.

Finalmente, chega-se à teologia histórica, que, na definição do autor inglês Alister

McGrath, “é o ramo da investigação teológica que objetiva explorar o desenvolvimento

histórico das doutrinas cristãs e identificar os fatores que influenciaram sua formulação”.

Em outras palavras, a história da teologia documenta as respostas dadas às grandes questões

do pensamento cristão e ao mesmo tempo procura explicar os fatores que contribuíram para

a formulação dessas respostas.1 Esse campo de estudos surgiu no século 16, no contexto da

Reforma Protestante, principalmente por razões polêmicas. Nos intensos debates sobre

aquilo que era verdadeiramente cristão, tornou-se decisivo verificar a continuidade entre as

reformas protestante e católica e a igreja antiga.

A história da teologia é uma ferramenta pedadógica na medida em que oferece

informações sobre o desenvolvimento dos grandes temas teológicos, sobre os pontos fortes

e fracos das diferentes abordagens e sobre os marcos mais notáveis do pensamento cristão,

1 McGrath, Alister E. Historical theology: an introduction to the history of Christian thought [Teologia

histórica: uma introdução à história do pensamento cristão]. Oxford, Inglaterra: Blackwell, 1998, p. 9, 16.

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em termos de autores e documentos. É também uma ferramenta crítica, pois permite ver as

falhas, limitações e condicionamentos de certas formulações doutrinárias, permitindo assim

o seu contínuo aperfeiçoamento.2

Geoffrey W. Bromiley observa que a teologia histórica não é simplesmente uma

história da teologia cristã, mas ela mesma implica em fazer teologia.3 A teologia ou a

doutrina cristã pode ser conceituada como a palavra da igreja sobre Deus em resposta à

Palavra de Deus à igreja,4 ou como palavras humanas com as quais a igreja procura

testemunhar da Palavra de Deus.5 Portanto, a tarefa teológica envolve três pólos – Deus, a

Escritura e a igreja. Dessa maneira, sendo a teologia uma tarefa da igreja e dos cristãos, ela

exige envolvimento, participação responsável, objetivando engrandecer a Deus, valorizar a

sua revelação e contribuir para o ministério e a missão da igreja.

Ainda conceituando a teologia, Roger Olson faz algumas colocações pertinentes:

A teologia é inevitável na medida em que o cristão (ou qualquer outra pessoa)

procura pensar de modo coerente e inteligente a respeito de Deus. E não somente é

inevitável e universal, como também valiosa e necessária. Sem a reflexão formal a

respeito do significado do evangelho da salvação que é parte da teologia, ele se

degeneraria rapidamente para a condição de mera religião folclórica e perderia toda

a sua convicção da verdade e sua influência sobre a igreja e a sociedade.6

Como tal, a teologia não é uma atividade meramente especulativa de pensadores

isolados numa torre de marfim. Toda crença cristã relevante surgiu por razões urgentes e

práticas, em resposta a desafios internos e externos. Além disso, toda teologia e história da

doutrina é um reflexo das pressuposições teológicas do escritor. Nessa área, não existe a

possibilidade de neutralidade ou objetividade plena. Todavia, ainda que seguindo os seus

próprios pressupostos e compromissos, todo teólogo tem a responsabilidade de considerar

atentamente as contribuições do passado, antes de oferecer suas próprias respostas e

reflexões.

Os estudiosos expressam diferentes opiniões ao falarem sobre o objetivo específico

da teologia histórica. Roger Olson opina que a história da teologia é essencialmente a

história da reflexão cristã sobre a salvação e tudo o que está associado com ela.7 Para ele,

então, a soteriologia é o fio condutor dessa história. Bengt Hägglund, por sua vez, considera

que a teologia histórica é a análise de como a regra de fé cristã (a confissão cristã original)

tem sido interpretada na história e no contexto de diferentes grupos.8 Essa “regra de fé” era

um resumo de vocabulário variável, mas de conteúdo definido, que destacava as verdades

centrais da fé cristã na forma de pequenos credos usados na igreja antiga.

2 Ibid., p. 12-14.

3 Bromiley, Geoffrey W. Historical theology: an introduction [Teologia histórica: uma introdução]. Grand

Rapids, Michigan: Eerdmans, p. xxvi. 4 Ibid.

5 González, Justo L. História do pensamento cristão. 3 vols. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, vol. I, p. 27.

6 Olson, Roger. História da teologia cristã. São Paulo: Vida, 2004, p. 14.

7 Ibid., p. 13.

8 Hägglund, Bengt. História da teologia. 6ª ed. Porto Alegre: Concórdia, 1999, p. 10.

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Por sua própria natureza – o estudo de dois mil anos de reflexão teológica cristã –, a

teologia histórica é um campo extremamente vasto. Como a presente obra pretende apenas

traçar os fundamentos dessa história, ela não terá o grau de detalhe encontrado em outros

livros sobre o assunto, buscando tão somente destacar os elementos mais significativos de

cada período. O principal texto utilizado neste estudo foi História da teologia cristã, de

Roger Olson. De fato, boa parte dos capítulos consiste em uma síntese dessa excelente obra.

Todavia, em alguns tópicos, principalmente os que tratam da teologia reformada ou

calvinista, foi dada uma outra orientação. Outros autores utilizados foram, pela ordem,

Justo L. González, Uma história do pensamento cristão; Alister McGrath, Teologia

sistemática, histórica e filosófica; Tony Lane, Pensamento cristão; e Timothy George,

Teologia dos reformadores (capítulo sobre João Calvino).9

Como subsídio para informações complementares, são oferecidas no final de cada

seção informações bibliográficas de fontes primárias (documentos históricos) e secundárias

(estudos de especialistas) disponíveis em português. As principais coletâneas de textos

primários, principalmente para o período patrístico, são as seguintes: Cirilo Folch Gomes,

Antologia dos santos padres; Henry Bettenson, Documentos da igreja cristã; vários

organizadores, Coleção patrística. Quanto às fontes secundárias, além das já citadas, outras

obras de autores protestantes são as seguintes: Roger Olson, História das controvérsias na

teologia cristã; Bengt Hägglund, História da teologia; J. N. D. Kelly, Doutrinas centrais

da fé cristã; Louis Berkhof, A história das doutrinas cristãs; Paul Tillich, História do

pensamento cristão; Walter E. Elwell (org.), Enciclopédia histórico-teológica da igreja

cristã. Alguns autores católicos conhecidos são: A. Hamman, Os padres da igreja;

Berthold Altaner e Alfred Stuiber, Patrologia; Cláudio Moreschini e Enrico Norelli,

História da literatura cristã antiga grega e latina.

É importante destacar que a história da teologia pode ser estudada a partir de duas

perspectivas: temática e cronológica. A primeira aborda separadamente cada um dos

grandes temas da teologia cristã (Deus, Cristo, o ser humano, a salvação, a igreja, etc.),

mostrando como ele foi estudado ao longo dos séculos. A segunda perspectiva destaca os

principais autores e tópicos de discussão em cada período da história, começando com a

igreja antiga e prosseguindo até o período moderno. É essa a abordagem adotada por este

livro.

9 Para os dados bibliográficos completos, ver as Referências no final deste volume.

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PARTE 1

PERÍODO ANTIGO

A história da igreja, da qual a teologia histórica é um aspecto, teve início com o

surgimento da comunidade cristã original, que resultou de uma série de eventos redentivos

essenciais: a morte de Jesus Cristo na cruz, sua ressurreição dentre os mortos e ascensão

aos céus, e a descida do Espírito Santo no dia de Pentecoste. Além de seus elementos

peculiarmente “cristãos”, a igreja primitiva tinha um forte teor judaico: Jesus e os apóstolos

eram todos judeus, a primeira comunidade surgiu em Jerusalém e todo o seu ambiente

inicial foi moldado pela religião judaica. Os primeiros cristãos receberam do judaísmo

alguns elementos muitos importantes: as Escrituras Hebraicas (depois designadas Antigo

Testamento), a fé monoteísta em um só Deus, padrões de culto, organização e liderança, e

um grande conjunto de crenças e valores éticos e religiosos.

Todavia, esse ambiente judaico original estava inserido dentro de um contexto mais

amplo, definido por duas grandes culturas ou civilizações – a helenística ou grega e a

romana. Assim como o judaísmo daquela época, o cristianismo também sofreu desde o

início a influência desse complexo ambiente cultural. Nascida no ambiente judaico inicial,

muito cedo a fé cristã começou a fazer adeptos entre não-judeus e a interagir de modo

crescente com o mundo gentílico. Na verdade, o primeiro grande desafio enfrentado pela

igreja foi essa transição de uma cultura para a outra, que foi emblemática de muitas outras

que haveriam de ocorrer ao longo dos séculos, e continuam acontecendo até os nossos dias.

Outro fator que criou desafios especiais para o movimento nascente foi a ocorrência

de diferentes graus de diversidade. Ao lado da corrente principal do cristianismo, com a sua

relativa uniformidade, surgiu uma variedade de manifestações paralelas, algumas próximas

e outras bastante distanciadas da igreja majoritária. As razões para isso são várias: Jesus

não deixou escritos, apenas um conjunto de ensinos orais que levaram décadas para ser

compilados; as Escrituras especificamente cristãs – o Novo Testamento – foram redigidas

por um grande número de escritores, com estilos, ênfases e interesses distintos; surgiram

grupos cristãos nas mais variadas regiões do Império Romano e mesmo além das suas

fronteiras, os quais sofreram diferentes influências religiosas e filosóficas, bem como

articularam diferentes interpretações da fé cristã.

Além disso, esses ambientes originais do cristianismo – judeu e greco-romano –

muitas vezes foram hostis às comunidades cristãs. As concepções diferentes dos cristãos

em relação ao judaísmo e ao paganismo, e o fato de que a igreja buscava ativamente

adeptos nessas religiões, gerou preconceitos, críticas e finalmente hostilidade aberta.

Particularmente incômodos foram os questionamentos levantados contra a fé cristã por

judeus e pagãos cultos. Esses desafios internos e externos levaram os cristãos a refletirem

cuidadosamente sobre as suas convicções e a articularem com maior clareza o seu

pensamento sobre uma grande variedade de temas.

Ao fazerem essa reflexão, os pensadores cristãos não puderam deixar de sentir a

influência da principal tradição intelectual do seu tempo – a filosofia grega, em especial o

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platonismo e o estoicismo. Essa tradição tinha vários elementos que acabaram por influir na

história do pensamento cristão: (a) a doutrina dos dois mundos, ou seja, o mundo sensível

(material) e o mundo das formas ou idéias (espiritual); (b) Deus entendido como o Uno, o

Sumo Bem, transcendente, infinito, incompreensível, indescritível e impassível, isto é, não

sujeito a nenhuma espécie de mudança; (c) o Logos, a razão universal, o elemento de

ligação entre o Uno e a multiplicidade do mundo material; (d) a crença na imortalidade da

alma (e também na transmigração ou reencarnação, elemento rejeitado pela fé cristã); (e) o

conhecimento entendido como recordação ou reminiscência, o que pressupõe a pré-

existência da alma.

1. O início da teologia cristã

Obviamente os primórdios do pensamento cristão se encontram nos próprios livros

do Novo Testamento. Mesmo levando em conta o fato de que os autores apostólicos

escreveram sob inspiração divina, é possível ver nos seus escritos um esforço de reflexão

sobre a realidade de Cristo, sua vida, ensinos e obra redentora, e suas implicações para a

igreja. Os próprios evangelistas agiram como “teólogos” na maneira como selecionaram,

distribuíram e comentaram os materiais que vieram a compor os seus escritos. O quarto

evangelho foi ainda além no seu esforço de fazer reflexões profundas sobre a nova fé. Essa

preocupação ficou ainda mais evidente nas epístolas paulinas. O apóstolo Paulo era um

homem culto, experimentado e perspicaz que elaborou muitos dos grandes temas da fé

cristã com notável sensibilidade espiritual e criatividade intelectual.

Mesmo assim, o Novo Testamento não deu de forma clara e direta, e nem poderia

dar, todas as respostas que os cristãos precisavam ter. Colocando de outra maneira, os

escritos apostólicos continham todos os temas e dados relevantes, mas esses dados não

estavam apresentados de modo sistemático, com definições precisas, o que criava a

possibilidade de diferentes entendimentos. Além disso, esses escritos fundamentais para os

cristãos faziam afirmações profundas, carregadas de significado, mas não extraíram das

mesmas todas as suas implicações, não expressaram claramente todos os seus

desdobramentos. Essa tarefa foi reservada para as gerações posteriores de cristãos.

2. Os “pais apostólicos”

O início do pensamento cristão propriamente dito, ou seja, do esforço de reflexão a

respeito dos grandes temas das Escrituras (Deus, Jesus Cristo, o Espírito Santo, o ser

humano, o pecado, a salvação, a igreja, a vida cristã, etc.), é encontrado num antigo

conjunto de documentos conhecido como os “pais apostólicos”. Cabem aqui duas

observações. Em primeiro lugar, diferentes grupos pretensamente cristãos, particularmente

gnósticos, produziram uma razoável quantidade de escritos nos primeiros séculos da era

cristã, em especial na forma de evangelhos e epístolas. Todavia, esses documentos não são

considerados literatura genuinamente cristã, e sim heterodoxa ou herética, não sendo via de

regra incluídos na história da teologia cristã. Uma segunda observação diz respeito à

designação “pais”. Já na antiguidade convencionou-se dar tal tratamento aos grandes

escritores e mestres cristãos, os formadores da teologia cristã. Daí os termos “patrística”

(estudo da reflexão teológica dos pais da igreja) e “patrologia” (manuais de literatura

patrística ou estudo da vida e obra dos pais).

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Costuma-se dar o nome de “pais apostólicos” ao primeiro conjunto de literatura

cristã ortodoxa posterior ao Novo Testamento, escrita desde o final do primeiro século até

meados do segundo. Essa designação, utilizada pela primeira vez por J. B. Cotelier em

1672, decorre do fato de que esses textos ainda estão muito próximos da era apostólica. Os

pais apostólicos são os seguintes (alguns de autores conhecidos e outros anônimos):

1 Clemente – trata-se de uma longa carta dirigida pela igreja de Roma à igreja de Corinto

por volta do ano 96. Seu objetivo principal foi exortar os coríntios a restaurarem ao seu

ofício os presbíteros da igreja, que haviam sido afastados. Cerca de um quarto da epístola

contém citações do Antigo Testamento, usado como fonte de muitos modelos de ordem e

virtude. O documento pressupõe uma igreja governada por bispos ou presbíteros e

diáconos, que receberam o seu ofício em sucessão regular a partir dos apóstolos. A carta

fala do martírio dos apóstolos Pedro e Paulo em Roma. Sua autoria é tradicionalmente

atribuída a Clemente, um bispo romano.

II Clemente – apesar do título, esse documento não foi escrito por Clemente e nem é uma

carta. Trata-se de uma homilia ou pequeno sermão, produzido provavelmente em Corinto

por volta do ano 150, na forma de uma exortação ao arrependimento, um tema importante

naquele período de crescentes perseguições.

Cartas de Inácio – o idoso bispo Inácio de Antioquia foi preso e condenado à morte por

volta do ano 110, sendo levado por dez soldados até Roma, para a execução. Em Esmirna,

onde recebeu a visita de representantes de várias igrejas, ele escreveu cartas às igrejas de

Éfeso, Magnésia, Trales e Roma. De Trôade, escreveu também às comunidades de

Filadélfia e Esmirna, bem como ao bispo desta última, Policarpo. Essas sete cartas muito

pessoais e apreciadas tratam de vários temas: atacam uma heresia sincretista que negava a

encarnação de Cristo (docetismo), dão forte ênfase à figura do bispo como elemento de

preservação da unidade e ortodoxia da igreja e valorizam grandemente o martírio cristão.

Na carta aos esmirnenses, aparece pela primeira vez a expressão “igreja católica”.

Epístola aos filipenses – esse documento singelo, sem grande relevância teológica, foi

escrito pelo bispo Policarpo de Esmirna, que afirma ter ouvido na juventude o apóstolo

João. É basicamente uma coletânea de alusões e citações de pelo menos treze livros do

Novo Testamento e 1 Clemente. Adverte contra as heresias, o docetismo e a avareza, e

atesta que a igreja de Filipos ainda não tinha um bispo monárquico.

Martírio de Policarpo – é uma carta da igreja de Esmirna à igreja de Filomélio, na Frígia.

Relata a prisão, julgamento e execução do bispo Policarpo, morto na fogueira aos 86 anos,

provavelmente no ano 156. É o mais antigo relato de um martírio cristão, destacando-se

pela sua simplicidade e por sua descrição da fidelidade e coragem de Policarpo. Aponta

para o início da veneração dos mártires, que mais tarde deu origem ao culto dos santos

católicos.

Epístola de Barnabé – é talvez o mais estranho escrito dentre os pais apostólicos. Trata-se

de uma carta anônima, escrita provavelmente em Alexandria, no Egito, entre 130 e 140, que

dá grande ênfase à interpretação espiritual (alegórica) do Antigo Testamento.

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O Pastor de Hermas – é o documento mais longo dos pais apostólicos, tendo sido escrito

por volta de 140-150. O autor, Hermas, é um homem simples, talvez o irmão do bispo Pio,

de Roma. Embora possua fortes elementos apocalípticos (contém cinco visões, doze

mandatos e dez similitudes), seus temas principais são a pureza e o arrependimento pós-

batismal. Vários autores antigos o consideraram parte do Novo Testamento.

Didaquê – também conhecida como O ensino dos doze apóstolos, é o mais antigo manual

eclesiástico conhecido, tendo sido compilado na primeira metade do segundo século,

provavelmente na Síria. O texto esteve perdido por muitos séculos e só foi reencontrado em

1873. Os primeiros capítulos apresentam um conjunto de instruções morais denominado os

“dois caminhos” (o mesmo ocorre no final da Epístola de Barnabé). O restante da obra

contém instruções sobre a ministração do batismo, orações eucarísticas, regras sobre

profetas itinerantes, entre os quais havia muitos charlatães, e finalmente uma exortação a

que se elejam bispos e diáconos. A Didaquê demonstra a transição de um modelo de

liderança carismática (profetas, mestres) para a liderança hierárquica na igreja (presbíteros,

diáconos).

Epístola a Diogneto – nunca foi mencionada na antiguidade, tendo sido descoberta na era

moderna. Essa epístola anônima, escrita em um grego elegante e endereçada a um pagão,

foi escrita no final do segundo século. Trata-se de uma explicação ou apologia do

cristianismo. O final desse documento é parte de outro escrito, talvez uma homilia.

Explanações dos ditos do Senhor – uma obra em cinco livros escrita pelo bispo Papias de

Hierápolis por volta do ano 130. Consiste numa coleção de relatos das palavras e ações de

Jesus recolhidos da tradição oral. Somente algumas páginas de fragmentos sobrevivem,

incluindo relatos da origem dos evangelhos de Mateus e Marcos e uma passagem sobre a

morte de Judas. Devido a suas crenças milenistas, mais tarde Papias foi motivo de desdém.

Os pais apostólicos podem ser classificados em torno de três tendências ou escolas

de acordo com sua origem geográfica: (a) Ásia Menor (Inácio, Policarpo, Papias) – ênfase

na união com o Salvador pela qual se alcança a imortalidade; (b) Roma (Clemente e O

Pastor de Hermas) – ênfase no aspecto prático e ético: o cristianismo como obediência a

uma nova lei; (c) Alexandria (Epístola de Barnabé) – combina o interesse ético com a

abordagem especulativa por meio da interpretação alegórica. Os elementos comuns desses

escritos são, entre outros, o entendimento de Cristo como pré-existente, divino e humano; o

batismo e seu poder de purificação; a eucaristia como o centro do culto cristão.

Quanto à história da teologia, os pais apostólicos trazem poucas contribuições

novas. São escritos simples e práticos, dirigidos a um público interno, ou seja, aos próprios

cristãos, e se voltam para os problemas e desafios enfrentados numa época de transição em

que o cristianismo estava se organizando e se consolidando. Entre suas preocupações estão

a luta contra grupos heréticos (gnósticos, judaizantes, Márcion), o ministério e a liderança

da igreja, e a interpretação do Antigo Testamento, geralmente alegórica e cristológica. Sua

teologia é pouco desenvolvida e fica muito longe das ricas reflexões dos escritos dos

apóstolos Paulo e João. Mencionam vários temas importantes e apresentam alguns

conceitos novos, mas apenas de passagem, sem uma elaboração detalhada.

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Esses escritos refletem a situação da doutrina e do ensino cristão daquela época. Os

cristãos ainda não possuíam o cânon do Novo Testamento e suas autoridades eram as

tradições sobre o Senhor, o ensino dos apóstolos, o Antigo Testamento e os seus próprios

bispos e mestres. Eles aceitavam a divindade de Cristo e mostravam formas iniciais de

confissão trinitária. Os documentos mais ricos do ponto de vista teológico são as cartas de

Inácio. Uma coisa que chama a atenção de muitos leitores é o contraste de linguagem, teor

e conceitos entre os pais apostólicos e os livros do Novo Testamento, especialmente na área

da soteriologia. Ao invés da ênfase paulina na graça e na fé, a salvação agora é entendida

em termos de obediência a uma nova lei. Ela não é vista como uma dádiva graciosa de

Deus, mas como fruto do esforço e da fidelidade dos cristãos. A justificação graciosa é

substituída pela graça que ajuda a agir corretamente. Esse entendimento legalista ou

moralista da vida cristã foi em parte uma reação contra o crescente antinomismo (rejeição

da lei e dos mandamentos) que se difundia entre os cristãos.

Textos: Coleção Patrística, vol. I – Padres Apostólicos (Clemente Romano, Inácio,

Policarpo, O Pastor de Hermas, Carta de Barnabé, Pápias, Didaquê); Gomes, 17-61 (1

Clemente, Didaquê, Inácio – aos efésios, romanos e esmirnenses, Policarpo – aos

filipenses, Carta da igreja de Esmirna ou Martírio de Policarpo e O Pastor de Hermas).

Análises: Olson, 39-52; González, I:61-94; Lane, I:14-17; Hägglund, 13-20; Kelly, 66-71;

Berkhof, 37-41; Tillich, 38-43. Autores católicos: Altaner e Stuiber, 53-67, 87s, 89-91;

Hamman, 13-24 (Inácio); Padovese, 95-98, 137-140.

3. Os apologistas

Ao longo do 2° século, à medida que se expandia e se tornava mais conhecido, o

cristianismo atraiu crescentemente a atenção das autoridades e da sociedade pagã. Isso

levou ao aumento da hostilidade contra os cristãos, na forma de críticas e de perseguição

aberta. As críticas iam desde alegações simplistas e preconceituosas feitas pela população

em geral (incesto, canibalismo, ateísmo) até contestações sofisticadas vindas de intelectuais

pagãos como Luciano de Samosata, Galeno, Celso e Porfírio.

Esse fato causou o surgimento de um novo tipo de reflexão e de literatura cristã,

dirigida a um público externo com o duplo objetivo de defender o cristianismo das

acusações que lhe eram lançadas e apelar às autoridades por tolerância em favor dos

cristãos. Isso foi facilitado pelo crescente ingresso na igreja de homens dotados de sólido

preparo intelectual e filosófico. Esses escritores cristãos do 2° século, quase todos de língua

grega, ficaram conhecidos como os apologistas (de apologia = discurso de defesa). São

eles: Aristides, Justino Mártir, Melito de Sardes, Atenágoras de Atenas, Taciano e Teófilo

de Antioquia. Alguns estudiosos incluem nessa categoria outros autores menos conhecidos

(Quadrato, Hérmias, Hegésipo, Minúcio Félix, etc.), a Epístola a Diogneto (que já foi vista

entre os pais apostólicos), bem como Tertuliano e Orígenes. Devido à sua importância e ao

fato de que escreveram sobre muitos outros temas, estes dois últimos serão estudados à

parte.

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Um aspecto saliente da obra dos apologistas foi o seu uso da filosofia grega,

especialmente o platonismo. Esses escritores cristãos entendiam que não existia conflito

entre a fé cristã e o que havia de melhor na filosofia, e que esta era um recurso adequado

para comunicar a fé cristã a uma audiência greco-romana. Antes deles, o estudioso judeu

Filo de Alexandria já havia se empenhado em fazer uma interpretação filosófica do Antigo

Testamento. Já foi observado que a tradição filosófica predominante no 2° século tinha

vários elementos que a tornavam atraente para muitos cristãos: a crença em um ser

supremo, fonte e origem última de todas as coisas; a natureza espiritual suprema da

realidade; a imortalidade da alma e a importância de uma vida virtuosa. Como a pessoa de

Cristo era a dificuldade central para os pensadores pagãos, os apologistas encontraram no

conceito do Logos ou Verbo, comum ao platonismo e ao cristianismo (João 1.1,14), um

meio conveniente de tornar esse ensino aceitável à filosofia helenística.

Muitos escritores posteriores não fariam a mesma avaliação positiva da filosofia,

como foi o caso de Tertuliano, que fez a famosa pergunta: “O que Atenas tem a ver com

Jerusalém?”. De qualquer modo, os apologistas deram ao cristianismo uma teologia ligada

à filosofia. Eles contribuíram para transformar o pensamento cristão em uma teologia

propriamente dita – uma análise e defesa racional e coerente da mensagem cristã. Em

virtude da natureza altamente elaborada do seu pensamento sobre Deus e da influência que

exerceram sobre pensadores posteriores, três deles merecem destaque: Justino, Atenágoras

e Teófilo.

Por causa das suas idéias criativas sobre Cristo como o Logos e sobre o cristianismo

como a verdadeira filosofia, Justino Mártir é considerado o apologista mais importante do

2° século. Ele nasceu em uma família grega residente em Flávia Neápolis, a antiga Siquém,

na Palestina. Tornou-se filósofo platônico e mais tarde abraçou o cristianismo após

conversar com um misterioso ancião. Continuou a usar sua túnica de pensador, pois agora

se considerava um filósofo de Cristo. Chegou a Roma em torno do ano 150 e foi executado

por volta de 165. Três obras apologéticas profundas e breves de sua autoria sobreviveram.

A Primeira apologia, escrita por volta de 155, é endereçada em tom ousado ao

imperador Antonino Pio, conclamando-o a dar um tratamento mais justo aos cristãos e a

revogar os decretos de perseguição. Afirma que os cristãos são bons cidadãos e explica o

culto cristão, os sacramentos e o motivo da rejeição dos ídolos. A Segunda apologia foi

dirigida ao senado romano por volta de 160. Argumenta que a perseguição dos cristãos é

fruto da ignorância e do preconceito, compara Cristo com Sócrates e conclui que as

doutrinas cristãs são mais sublimes que toda a filosofia humana. O Diálogo com Trifão

narra as conversas de Justino com um judeu culto e alguns de seus amigos. Contém

reflexões sobre a sua jornada filosófica e responde a objeções do seu interlocutor,

especialmente sobre a encarnação.

Nos seus escritos, Justino explorou o conceito de Cristo como o Logos divino. O

Logos é o Espírito pré-existente de Deus que encarnou em Jesus Cristo. O “Logos

cósmico”, que está subordinado ao Pai, é o agente e mediador de Deus na criação, uma

idéia já existente nas filosofias gregas. Esse Logos estava presente no mundo antes da

encarnação, tendo falado tanto por intermédio dos profetas judeus quanto por meio dos

filósofos gregos. Ele é o Logos spermatikos (palavra geradora), presente em cada ser

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humano e a fonte de toda verdade genuína. Segundo Justino, o cristianismo incorpora os

conceitos mais nobres da filosofia helenística, sendo a verdade por excelência.

A obra mais importante de Atenágoras de Atenas é Súplica em favor dos cristãos,

dirigida por volta de 177 ao imperador Marco Aurélio e ao seu filho Cômodo, que estavam

prestes a visitar Atenas. Refuta sucessivamente três acusações feitas aos cristãos: ateísmo,

refeições libertinas e incesto, e possui linguagem, estilo e argumentação mais refinados e

claros que Justino. Atenágoras faz importantes reflexões sobre Deus e Jesus Cristo:

argumenta que o melhor do pensamento grego era monoteísta; descreve Deus

essencialmente com atributos negativos (incriado, impassível, incompreensível, etc.),

abordagem essa posteriormente denominada “teologia apofática”, e apresenta uma das

primeiras explicações teológicas da doutrina da Trindade, mas sem se aprofundar na

questão da encarnação.

Teófilo de Antioquia foi bispo e é conhecido por seus três livros A Autólico, escritos

por volta de 180. Busca responder aos comentários depreciativos feitos por seu amigo

pagão sobre o cristianismo e sua abordagem é menos filosófica que as de Justino e

Atenágoras. É o primeiro pensador cristão a apresentar o conceito de criação ex nihilo, ou

seja, a partir do nada, uma idéia estranha à filosofia grega, que ensinava a eternidade do

universo. Emprega o conceito do Logos para explicar o relacionamento de Deus com o

mundo. O Logos é o agente de Deus na criação e falou através dos profetas. Antes da

criação do mundo, Deus gerou externamente o seu Logos, que estava eternamente dentro

dele. Teófilo foi o primeiro a empregar o termo trias (Trindade) e a declarar expressamente

a inspiração do Novo Testamento.

Outros apologistas gregos de algum destaque foram Aristides, Taciano e Melito de

Sardes. Aristides foi o autor da mais antiga apologia conhecida, dirigida ao imperador

Adriano na década de 130. Deu ênfase aos cristãos – contrastados com os bárbaros, gregos

e judeus – como os únicos que encontraram a verdade. Eles constituíam uma nova nação ou

raça conhecida por seus costumes elevados e amor mútuo. Taciano foi discípulo de Justino

e autor de Discurso aos gregos, onde também procurou demonstrar a superioridade da

“religião bárbara” (o cristianismo) sobre a cultura e a religião dos gregos. O centro da sua

teologia é Deus e o seu Logos. Esse Logos, que procede do Pai, fez o mundo, não de um

material pré-existente, pois nada é sem começo, exceto Deus. Também escreveu o

Diatessaron, a primeira tentativa de harmonizar os quatro evangelhos, e outras obras.

Melito de Sardes foi um escritor profícuo, mas toda a sua produção se perdeu, exceto uma

homilia pascal, na qual faz uma interpretação tipológica e cristológica da história de Israel e

em especial do Êxodo. Cristo é pré-existente e divino; ele é, “por natureza”, Deus e

homem.

Os apologistas levaram a mensagem cristã a público, defendendo-a vigorosamente

contra mal-entendidos e falsas acusações. Realizaram os primeiros confrontos intelectuais

do cristianismo com a cultura circundante e fizeram um esforço de apresentar a fé cristã de

modo compreensível para os pagãos. Eles foram muito além das reflexões simples dos pais

apostólicos, articulando um pensamento formal, racional e sistemático sobre as implicações

da mensagem apostólica. Fizeram valiosa reflexão inicial sobre as crenças mais importantes

a respeito de Deus e de Jesus Cristo, embora não tenham traçado uma clara distinção entre

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o Logos pré-existente e o Espírito Santo. Sua doutrina do Logos representou uma busca de

diálogo entre a fé e a cultura, o que certamente envolvia alguns riscos.

Seu uso da filosofia grega criou dificuldades posteriores para a teologia cristã, em

especial quanto às doutrinas de Deus e da encarnação, levando a uma progressiva

helenização do cristianismo. Se por um lado eles deram ênfase à imutabilidade divina, por

outro lado também insistiram na encarnação e na ressurreição, idéias que não eram

atraentes para a mentalidade helenista. Apresentaram o cristianismo como uma doutrina

moral ou filosófica e Cristo como o mestre de uma nova moralidade ou da verdadeira

filosofia.

Informações adicionais

Textos: Coleção Patrística, vol. II – Padres Apologistas (Carta a Diogneto, Aristides,

Taciano, Atenágoras, Teófilo e Hérmias); vol. III (Justino de Roma: I e II Apologias,

Diálogo com Trifão); Gomes, 62-87 (Aristides, Justino, Melito), 98-114 (Atenágoras,

Teófilo, Epístola a Diogneto).

Análises: Olson, 53-66; González, I:95-118; McGrath, 44, 412s; Lane, I:17-19 (Justino);

Hägglund, 21-24; Kelly, 71-77 (a tríade divina), 107s (cristologia), 123-127 (o homem e a

salvação); Berkhof, 53-57; Tillich, 44-51. Autores católicos: Altaner e Stuiber, 68-89;

Hamman, 25-34 (Justino); Padovese, 47-50, 63-66, 140-142, 187-189.

4. Movimentos heréticos

Já foram feitas diversas referências a correntes heréticas que existiram no

cristianismo antigo e muitas outras serão mencionadas nas próximas seções. O

conhecimento dessas correntes é importante não só pela luz que lançam sobre a história da

igreja, mas pelo fato de que boa parte da reflexão teológica feita nos primeiros séculos foi

em reação aos ensinos desses grupos. Os principais movimentos heterodoxos do 2° e do 3°

séculos foram os seguintes:

Ebionitas – os ebionitas (“pobres”) eram uma seita de judeus cristãos que sobreviveram à

destruição de Jerusalém no ano 70. Sendo judaizantes, eles criam na salvação pela

obediência à lei, rejeitavam os escritos de Paulo e davam ênfase às cartas de Tiago e Pedro.

Para eles, Jesus era um profeta, o novo Moisés; era o filho de José que ao ser batizado foi

adotado como Filho de Deus por causa de sua obediência à lei.

Gnosticismo – era uma filosofia religiosa altamente especulativa e sincrética, reunindo

elementos mitológicos, helenísticos, cristãos e outros, que floresceu no 2° século. Consistia

acima de tudo numa doutrina de salvação. Na sua base estava um dualismo radical que

colocava em oposição o mundo espiritual e o mundo material. O Deus supremo era o

criador das realidades espirituais, inclusive a alma humana. Desse Deus procedia por um

processo de emanação uma hierarquia de divindades inferiores, a última das quais, por

vezes denominada Demiurgo, criou o mundo material. Por causa de uma desordem no

Pleroma (o mundo espiritual), as almas humanas ficaram aprisionadas em corpos materiais.

A salvação consiste na libertação do espírito imortal aprisionado na matéria, para que

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retorne ao seu mundo original divino. Para isso é necessário o conhecimento (em grego,

gnosis), ou seja, a compreensão da situação humana. Esse conhecimento especial teria sido

transmitido por Jesus a alguns de seus seguidores e agora era possuído somente pelos

gnósticos, que o comunicavam aos seus iniciados.

O profundo desprezo pela matéria fez com que os gnósticos representassem uma

ameaça para várias convicções cristãs: a doutrina da criação e do governo divino sobre o

mundo, o entendimento da salvação, a natureza da pessoa e obra de Cristo e a ressurreição

do corpo. O gnosticismo não era um movimento homogêneo, mas muito diversificado.

Havia várias escolas gnósticas, como a de Cerinto, na Ásia Menor, e as de Carpocrates,

Basílides e Valentino, em Alexandria. Este último foi para Roma, sendo expulso da igreja

por volta de 155. Ensinou que o Cristo divino desceu sobre o homem Jesus em seu batismo

e o abandonou antes da sua paixão. Sua missão foi trazer a gnosis, para que por ela os

espíritos humanos pudessem retornar para o Pleroma de onde vieram.

Docetismo – foi uma antiga manifestação de tendências gnósticas em certos setores do

cristianismo. Em virtude do seu desprezo pela matéria, os docetistas negavam que Cristo

tivesse um corpo real, dizendo que ele possuía apenas uma aparência de corpo. Daí o termo

“docetismo”, procedente do verbo grego dokéo, “parecer”. Esse ensino, que questionava a

encarnação e a morte de Cristo na cruz, é claramente combatido na literatura joanina do

Novo Testamento (ver 1Jo 4.2s; 2Jo 7) e nas cartas de Inácio de Antioquia.

Marcionismo – Márcion era filho de um bispo de Sinope, na província do Ponto, norte da

Ásia Menor. Por volta do ano 144, ele chegou a Roma e passou a divulgar as suas idéias,

sendo expulso da igreja. Influenciado por idéias dualistas e gnósticas, Márcion estabeleceu

um contraste radical entre o Antigo e o Novo Testamento: o primeiro representa o reino

deste mundo e a lei (retribuição); o segundo representa o reino celestial e o evangelho

(graça). Para ele, Jeová, o criador do mundo material, é um ser imperfeito e vingativo; o

Deus verdadeiro – o Pai de Jesus – é amoroso e perdoador. Portanto, os cristãos nada têm a

ver com o Antigo Testamento e sua divindade. O Deus verdadeiro perdoa a todos e assim

toda a humanidade será salva. A salvação é do espírito, não do corpo. Para Márcion, as

Escrituras cristãs deviam incluir somente o Evangelho de Lucas e as cartas de Paulo às

igrejas (sem as pastorais). Os marcionitas formaram sua própria igreja, que subsistiu por

alguns séculos.

Montanismo – foi um movimento de natureza carismática ou entusiástica – o primeiro da

história da igreja – surgido na Frígia, Ásia Menor, pouco após a metade do 2° século. Seus

líderes foram Montano, um cristão que alegava ser o instrumento do Paráclito (o Espírito

Santo), e duas profetizas, Priscila e Maximila. Seu movimento, que eles denominavam

“Nova Profecia”, visava preparar o caminho para a iminente volta de Cristo e o milênio. A

igreja devia ter uma vida moral rigorosa e sofrer o martírio. Por entenderem que eram

dirigidos diretamente pelo Espírito, os montanistas tinham a tendência de desprezar a igreja

institucional e seus líderes, sendo, assim, objeto da oposição dos mesmos.

Monarquianismo – este não foi propriamente um movimento ou grupo organizado, mas um

entendimento sobre a doutrina cristã de Deus. Os monarquianos eram fortes defensores da

unidade do Ser Divino (monarquia ou monoteísmo) e queriam evitar que a noção de Deus

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como Pai, Filho e Espírito Santo resultasse em triteísmo (três deuses). Nesse esforço, eles

acabaram adotando duas posições: alguns negaram a divindade de Cristo, afirmando que só

o Pai é Deus; outros afirmaram a divindade de Cristo e do Espírito, mas negaram a

existência de distinções pessoais no ser de Deus. A primeira posição ficou conhecida como

“monarquianismo dinâmico” ou adocionismo: o homem Jesus foi adotado por Deus como

filho e recebeu o poder (dynamis) divino. Foi essa a posição dos ebionitas e de Paulo de

Samosata, bispo de Antioquia (c. 260), para quem o Verbo era apenas a razão, poder ou

sabedoria de Deus que habitou no homem Jesus desde a sua concepção. A segunda posição,

denominada “monarquianismo modalista”, afirmava que Deus é uma só essência e uma só

pessoa, com três “modos” ou manifestações sucessivas – Pai, Filho e Espírito Santo. Esse

ensino também é conhecido como sabelianismo, por ter sido defendido no início do 3°

século por um certo Sabélio. Uma variante conhecida como patripassianismo, abraçada por

indivíduos como Práxeas e Noeto, afirmava que o Pai sofreu e morreu na cruz. A igreja

acabou condenando como antibíblicas todas essas posições.

A reação da igreja contra as heresias foi bastante uniforme, tendo como argumento

básico a autoridade apostólica. Isso se expressou de diversas maneiras. Em primeiro lugar,

mediante a ênfase na sucessão apostólica: Cristo e os apóstolos transmitiram os seus

ensinos e a sua autoridade a sucessores legítimos, os líderes da igreja, que a partir do

segundo século passaram a ser os bispos. Em segundo lugar, por meio do cânon ou

conjunto de livros reconhecidos do Novo Testamento, como expressão da ortodoxia cristã.

Esse conceito surgiu e se tornou firmemente estabelecido no 2° século, em reação ao cânon

de Márcion. Em terceiro lugar, mediante a regra de fé e os credos, ou seja, resumos

sistemáticos da fé cristã, primeiro em forma interrogatória (o chamado Antigo Símbolo

Romano) e depois em forma afirmativa, tendo forte ênfase cristológica e apologética. Outro

instrumento da atividade anti-herética da igreja foi justamente a reflexão teológica.

Informações adicionais

Textos: Bettenson, 77-82, 138-139.

Análises: Olson, 27-38; González, I:119-152; McGrath, 191-194, 381-384; Hägglund, 25-

34 (cristianismo judaico e gnosticismo), 57-62 (monarquianismo); Kelly, 16-21, 86-91;

Berkhof, 42-52, 71-76; Tillich, 52-55, 81-83; EHTIC: gnosticismo (II:202-206), docetismo

(I:488), Marcião (II:474), montanismo (II:551s), monarquianismo (II:543s). Autores

católicos: Altaner e Stuiber, 108-118; Padovese, 45-47, 50-51.

5. Irineu de Lião

Irineu exemplifica perfeitamente os três elementos mencionados acima, os quais,

segundo os estudiosos, surgiram no segundo século como fatores de fortalecimento

institucional e doutrinário da igreja antiga: o bispo monárquico, a regra de fé e o cânon do

Novo Testamento. O bispo de Lião foi o mais fértil e profundo teólogo do seu tempo e com

ele a reflexão cristã ultrapassou grandemente a obra dos pensadores que o antecederam. Ele

nasceu por volta do ano 130 na Ásia Menor, provavelmente na cidade de Esmirna. Em uma

carta preservada por Eusébio de Cesaréia, ele conta que tinha vívidas lembranças de

Policarpo (†c.155), o bispo de Esmirna que havia sido discípulo do apóstolo João. Isso era

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muito importante para Irineu, pois o colocava em contato direto com a era apostólica. Por

volta de 170, ele se transferiu para Roma e mais tarde para Lião (Lugdunum), no sul da

Gália, atual França, onde existia uma grande comunidade de língua grega, procedente da

Ásia Menor, na qual o cristianismo estava solidamente implantado.

Na época em que o imperador Marco Aurélio perseguiu os cristãos da Gália (ano

177), Irineu foi portador de uma carta desses cristãos para a igreja de Roma e seu bispo

Eleutério pedindo tolerância para os montanistas da Ásia Menor. Ao retornar a Lião,

descobriu que o bispo Potino havia sido martirizado, sendo eleito seu sucessor. Como bispo

de Lião, Irineu liderou a igreja daquela região, defendeu o seu rebanho contra movimentos

heréticos e lutou pela paz e unidade da igreja mais ampla. Por volta de 190, ele interveio na

controvérsia pascal quando Vítor, o bispo de Roma (189-198), ameaçou excomungar as

igrejas da Ásia Menor por causa de uma divergência quanto à data da Páscoa. Por isso, o

historiador Eusébio declarou que Irineu se portou à altura do seu nome, porque provou ser

um verdadeiro pacificador ou eirenopoios. Sua morte se deu por volta do ano 200.

Das muitas obras que escreveu, apenas duas sobreviveram: seu grande tratado

antignóstico Detecção e refutação da falsamente chamada gnose, mais conhecida como

Contra as heresias (Adversus haereses), e uma obra menor, Demonstração da pregação

apostólica, também conhecida como Epideixis, um tratado catequético e apologético

redescoberto no início do século 20. Em suas viagens a Roma e em seu trabalho em Lião,

Irineu ficou alarmado com o crescimento do gnosticismo, principalmente o da escola de

Valentino e de seu discípulo Ptolomeu, percebendo a ameaça que ele representava para a

igreja e para a fé cristã.

Nos cinco livros de Contra as heresias, Irineu fez um tríplice ataque contra o

gnosticismo: em primeiro lugar, ele procurou demonstrar o caráter absurdo dos ensinos

gnósticos, em boa parte uma mitologia sem fundamento e cheia de contradições; em

seguida, mostrou que a alegação dos gnósticos de ter uma autoridade que remontava a Jesus

e aos apóstolos era simplesmente falsa; finalmente, refutou o gnosticismo com base na

Escritura, demonstrando o caráter irracional da interpretação bíblica gnóstica. Contra o

dualismo gnóstico, Irineu afirmou a doutrina cristã de Deus como criador e redentor tanto

da existência espiritual quanto da material.

A maior contribuição do bispo de Lião à história de teologia está em sua

cosmovisão alternativa ao gnosticismo – a chamada “teoria da recapitulação” ou

anakephalaiosis (fornecer uma nova cabeça ou fundamento). Refletindo sobre a

comparação paulina entre Adão e Cristo em Romanos 5, Irineu ensinou que a obra de

Cristo na redenção é ser uma nova “cabeça” para a humanidade. Na cristologia gnóstica, a

obra de Cristo não requeria a encarnação. Para Irineu, o evangelho da salvação transmitido

pelos apóstolos centralizava-se na encarnação, a existência humana do Filho de Deus. Na

encarnação, a raça humana inteira renasceu, recebendo uma nova cabeça, uma nova base de

existência, que não é caída, mas pura e saudável, invertendo a queda de Adão. Essa idéia

ficou conhecida como “encarnação salvífica”. Assim, não só a morte e a ressurreição de

Cristo têm um sentido redentor, mas a sua vida humana, a sua encarnação. Aquele que

participa da nova humanidade de Cristo pelo arrependimento, pela fé e pelos sacramentos,

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experimenta uma transformação que o torna participante da natureza divina (2 Pe 1.4). Essa

idéia mais tarde foi denominada “divinização” ou “deificação” (theosis).

Em sua reflexão teológica, motivada principalmente por preocupações pastorais e

apologéticas, Irineu acabou fazendo valiosas contribuições para muitas áreas do

pensamento cristão. Ele não só foi o primeiro pensador que elaborou teorias abrangentes do

pecado original e da redenção, mas deu ênfase à unidade do Pai, do Filho e do Espírito

Santo na criação e na redenção. Ele também acentuou o conceito de tradição apostólica,

incorporada na “regra de fé” (credo embrionário) e transmitida pela sucessão dos líderes

das igrejas fundadas pelos apóstolos. A tradição permite que se mantenha fidelidade ao

testemunho apostólico diante de interpretações não-cristãs da fé. Finalmente, ele colocou os

escritos do Novo Testamento em pé de igualdade com o Antigo Testamento como Escritura

Sagrada e defendeu o cânon com quatro evangelhos, lançando assim as bases da ortodoxia

cristã.

Informações adicionais

Textos: Coleção Patrística, vol. IV (Contra as heresias); Gomes, 115-135; Bettenson, 69-

71, 125-128, 134-135.

Análises: Olson, 67-78; González, I:153-166; McGrath, 45, 344-345; Lane, I:19-23;

Hägglund, 35-41; Kelly, 26-30, 77-80, 107-110, 127-130; Berkhof, 60; Tillich, 56-67;

EHTIC, II:346s. Autores católicos: Altaner e Stuiber, 119-125; Hamman, 35-52; Padovese,

47, 63, 98.

6. Tertuliano de Cartago

Durante o 2° século, várias cidades se destacaram como centros de atividade e

reflexão teológica cristã: Roma, com Clemente e Justino; Antioquia, com Inácio e Teófilo;

Lião, com Irineu. No final desse século e no início do seguinte, despontou outra região, o

norte da África, com duas cidades que se tornaram célebres por suas contribuições à

história da teologia – Cartago e Alexandria, a primeira de língua latina e a segunda de

língua grega. Em Cartago, na província romana da Numídia (atual Tunísia), viveu

Tertuliano, um dos mais notáveis pensadores da igreja antiga, considerado o pai da teologia

latina.

Pouco se sabe da vida de Tertuliano. Ele nasceu por volta do ano 160 e viveu quase

toda a vida em Cartago, embora tenha ido muitas vezes a Roma. Em torno de 190, tornou-

se cristão em circunstâncias desconhecidas. Tendo recebido uma sólida formação

intelectual, dedicou os seus conhecimentos à explanação e defesa da fé cristã ortodoxa. Não

foi ordenado sacerdote, sendo provavelmente um catequista ou mestre. Por volta de 206,

abraçou o montanismo, abandonando a igreja católica. Após a morte da esposa, uma cristã,

não voltou a casar-se. Faleceu entre 220 e 225. É conhecido quase exclusivamente através

dos seus escritos, que cobrem o período aproximado de 196 a 212. Trinta e uma obras suas

em latim sobreviveram, tornando-se o primeiro corpo significativo de literatura cristã

latina. Quase todas são obras de controvérsia, revelando uma preocupação inicial com

apologética e moralidade cristã, e posteriormente com a refutação de heresias.

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Alguns dos escritos de Tertuliano ressaltam os absurdos legais e morais da

perseguição dos cristãos (Apologia, Aos mártires, O testemunho da alma, etc.). Suas obras

práticas defendem a separação da sociedade pagã (Idolatria, O vestuário das mulheres,

Espetáculos e outras). A sua adesão ao montanismo intensificou essa atitude rigorosa,

levando-o a modificar posições anteriores, como se pode ver em Monogamia (contra o

segundo casamento), Fuga na perseguição (condenação da fuga ao martírio) e A pureza

(rigor contra pecados graves após o batismo). Também produziu a mais antiga exposição da

Oração do Senhor (Oração) e o primeiro tratado conhecido sobre o Batismo. Todavia, foi

em seus escritos anti-heréticos que Tertuliano deu as suas maiores contribuições à teologia

cristã. Sua maior obra e, em muitos aspectos, a mais importante, é Contra Márcion, em

cinco livros, na qual defendeu a unidade dos dois testamentos e expôs de maneira nova

muitas crenças cristãs fundamentais. Em sua fase montanista, ele escreveu a importante

obra Contra Práxeas, fazendo uma crítica maciça contra um dos principais expoentes do

monarquianismo modalista. Com essas obras, Tertuliano exerceu uma influência imediata,

profunda e permanente sobre o cristianismo ocidental.

Uma característica interessante do pensamento de Tertuliano é a sua atitude

negativa em relação à filosofia, em contraste com autores anteriores (como Justino Mártir)

ou contemporâneos (como Clemente de Alexandria). Essa atitude surgiu pela primeira vez

em sua obra Prescrição contra os hereges, na qual ele faz a famosa pergunta: “Qual a

relação entre Atenas e Jerusalém, ou entre a Academia e a Igreja?” Para ele, o cristão devia

ater-se às Escrituras, aos ensinos dos apóstolos e à regra de fé da igreja, rejeitando as

especulações humanas e as racionalizações filosóficas. Assim sendo, foi um dos primeiros

defensores do princípio da suficiência das Escrituras. Segundo ele, outra característica do

cristão maduro era uma vida moralmente rígida.

A contribuição mais singular de Tertuliano no campo da teologia foi a sua reflexão

trinitária. Ele é considerado o pai das doutrinas ortodoxas da Trindade e da pessoa de

Cristo, antecipando em mais de um século as formulações dos concílios do 4° e do 5°

séculos a esse respeito. Em sua refutação do modalismo de Práxeas, segundo o qual existe

uma só identidade pessoal em Deus, Tertuliano elaborou o conceito de “monoteísmo

orgânico”. Deus tem uma substância e três pessoas, ou seja, existe uma multiplicidade e

distinção no Ser Divino que não implica em divisão ou separação. Embora o Pai, como

fonte suprema e governante de tudo, seja de certo modo “maior” que o Filho e o Espírito

Santo, ele nunca existiu sem eles e os enviou ao mundo como seus agentes. Tertuliano

aplicou os mesmos conceitos básicos a Jesus Cristo – este é tanto uma substância divina

como uma substância humana, porém unidas em uma só pessoa. Ironicamente, uma das

razões de sua ênfase na distinção das duas naturezas de Cristo é o fato de Deus ser

impassível, não estando sujeito à limitação e ao sofrimento (um conceito da filosofia

grega). Logo, para Jesus Cristo sofrer e ser divino, ele precisava ter duas naturezas ou

substâncias distintas, e somente uma delas, a humana, poderia ter sofrido e morrido.

Informações adicionais

Textos: Bettenson, 32-33, 35-36, 71-72, 128-130; Gomes, 160-171.

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Análises: Olson, 91-99; González, I:167-182; McGrath, 45; Lane, I:23-27; Hägglund, 42-

46; Kelly, 28-30, 84-86; Berkhof, 60-62; Tillich, 112-113; EHTIC, III:524s. Autores

católicos: Altaner e Stuiber, 156-171; Hamman, 53-64; Padovese, 51,67, 99.

7. Clemente de Alexandria

Além de Cartago, outra cidade norte-africana em que surgiu uma vigorosa tradição

teológica cristã foi Alexandria, no litoral do Egito. Essa cidade de cultura grega, resultante

das conquistas de Alexandre, o Grande, há vários séculos possuía uma numerosa

comunidade judaica e agora, no início do 3° século, também uma grande e dinâmica

população cristã. Em Alexandria, tanto os judeus como os cristãos sofreram a poderosa

influência da filosofia grega, especialmente o platonismo. Nesse ambiente estimulante

surgiu uma notável escola catequética cristã, voltada para o estudo e a interpretação das

Escrituras. Essa escola destacou-se pela utilização do método alegórico de interpretação,

que atribuía múltiplos sentidos ao texto bíblico, método esse que foi usado amplamente na

antiguidade cristã. Os grandes pioneiros da escola de Alexandria foram Clemente e

Orígenes.

Tito Flávio Clemente (que não deve ser confundido com Clemente de Roma, um

dos “pais apostólicos”) provavelmente nasceu em Atenas, em uma família pagã, em torno

de 150. Convertido ao cristianismo, estabeleceu-se como mestre cristão particular em

Alexandria, onde se tornou o líder da escola catequética quando da morte do seu fundador,

Panteno, por volta do ano 190. Em 202, durante a perseguição do imperador Septímio

Severo, deixou a cidade e se refugiou na Ásia Menor, onde morreu por volta de 215. Sua

ligação com a igreja de Alexandria é uma incógnita. Não parece ter sido sacerdote e seus

escritos não tratam da comunidade cristã, e sim da vida espiritual e intelectual do cristão

individual. Clemente é considerado o primeiro sábio ou intelectual cristão. Conhecia a

fundo não só a Escritura, mas quase toda a literatura cristã da época, bem como a literatura

grega.

Suas obras principais são uma trilogia de escritos interligados: Exortação aos

gregos (“Protrepticos”), O pedagogo (“Paidagogos”) e Miscelâneas (“Stromata”). A

primeira, dirigida aos gregos, começa com uma forte crítica das superstições e idolatria do

paganismo. A seguir, combate as idéias dos filósofos gregos sobre a essência divina, mas

reconhece que eles enunciaram muitas idéias verdadeiras sobre Deus. Por último, descreve

a sublimidade da revelação do Logos e a riqueza da graça divina. Afirma que tudo o que os

gregos falaram de verdade veio de fontes divinamente inspiradas, como Moisés, ou da

inspiração direta de Deus e do seu Logos. O pedogogo ou O instrutor é a continuação da

primeira obra. Propõe-se a orientar os pagãos convertidos sobre o seu proceder diário à luz

da nova vida. Cristo, o Logos ou Verbo de Deus, é o pedagogo de todos os remidos,

ensinando-os a ter uma vida disciplinada, equilibrada, consistente com a razão. Conclui

com um belíssimo hino a Cristo. As miscelâneas, com oito livros, contêm um apanhado das

mais diversas questões filosóficas e religiosas. Propõem-se a comprovar que a gnose cristã

é superior a qualquer outra, platônica ou gnóstica. Outra obra de Clemente é a bela homilia

Quem é o rico que será salvo?, baseada em Marcos 10.17-31.

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Ao contrário do seu contemporâneo Tertuliano, Clemente mostrou uma atitude

muito positiva em relação à filosofia, tendo sido fortemente influenciado pelo apologista

Justino Mártir. Mais do que outros escritores cristãos antigos, ele valorizou a integração da

fé cristã com a melhor cultura do seu tempo, abraçando o lema: “Toda verdade é verdade

de Deus, venha de onde vier”. Considerava a boa filosofia o modo de Deus preparar os

gregos para Cristo e procurou reunir os elementos de verdade divina dispersos em

diferentes sistemas filosóficos e religiosos e submetê-los às Escrituras (interpretadas

alegoricamente) e à tradição apostólica. Viu aspectos atraentes na filosofia (ênfase numa

única realidade espiritual suprema, conceito de vida além da morte, ideais éticos elevados),

mas rejeitou a idéia platônica de criação como um processo impessoal e eterno, insistindo

na doutrina cristã da criação “a partir do nada” pelo Deus das Escrituras.

Clemente manteve intenso debate com os gnósticos, que afirmavam ser a sua gnose

esotérica superior à fé dos cristãos comuns. Ele insistiu que a fé era o meio para se obter o

verdadeiro conhecimento. O “verdadeiro gnóstico” é uma pessoa que cultiva a sabedoria,

fica acima das paixões carnais e busca se tornar semelhante a Deus. O mestre em todo esse

processo é Cristo, o Logos eterno e divino. Ele dá aos homens o verdadeiro conhecimento

que liberta do pecado e conduz à imortalidade. Em sua reflexão, Clemente atribuiu pouca

importância à encarnação, paixão e morte de Cristo. A influência do pensamento grego em

sua teologia se deu em diversos aspectos: ao tratar o corpo e a matéria como uma “natureza

inferior”, em contraste com a alma; ao conceber a salvação como a busca da semelhança

com Deus mediante a contemplação racional e o abandono das paixões; e ao entender Deus

como um ser impassível, isto é, sereno, inalterável, isento de desejos e emoções. Clemente

interpretou as passagens bíblicas que atribuem emoções a Deus e a Cristo como linguagem

figurada ou como referências à humanidade do Filho de Deus.

Informações adicionais

Textos: Gomes, 136-139 (Exortação aos gregos), 140 (hino a Cristo), 141-146 (Sobre a

salvação dos ricos).

Análises: Olson, 85-91; González, I:183-200; Lane, I:27-30; Hägglund, 51-52; Kelly, 94,

114; Berkhof, 65-70; Tillich, 72-74; EHTIC, I:290. Autores católicos: Altaner e Stuiber,

197-203; Hamman, 77-88.

8. Orígenes

O outro grande expoente da escola de Alexandria foi também o mais genial, criativo

e controvertido teólogo da igreja grega antiga. Orígenes nasceu no Egito, em um lar cristão,

por volta de 185. Seu pai, Leônidas, foi martirizado na perseguição do ano 202; o jovem

desejou acompanhá-lo, só não o fazendo porque a mãe escondeu as suas roupas. Após

estudar com Clemente, ele havia se tornado um professor de literatura e filosofia. Foi

quando, com apenas 18 anos, o bispo Demétrio o colocou à frente da escola catequética.

Viveu de modo austero e ascético, chegando a castrar-se devido a uma interpretação literal

de Mateus 19.12, o que impediu a sua ordenação em Alexandria. Como sua fama se

espalhou, até mesmo pagãos destacados iam ouvi-lo. Durante a perseguição de Caracala,

em 215, visitou a Palestina e pregou a convite de alguns bispos. O seu bispo o chamou de

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volta porque ele era um leigo. Por volta de 230 foi de novo para a Palestina, onde os

mesmos bispos o ordenaram sacerdote. Dois sínodos convocados por Demétrio o

excomungaram e o despojaram da sua ordenação. Passou o restante da vida em Cesaréia,

onde fundou outra escola teológica, na qual ensinou por cerca de vinte anos. Foi torturado

na perseguição de Décio (250-251), morrendo pouco depois de ser solto, em Tiro, cerca do

ano 254, com quase 70 anos.

Sua produção literária foi gigantesca. São conhecidos os títulos de cerca de 800 de

suas obras, a maior parte das quais se perdeu. Muitos de seus escritos refletem a sua tarefa

principal – o estudo e a interpretação das Escrituras. A monumental Hexapla continha em

colunas paralelas seis versões do Antigo Testamento: o texto hebraico, sua transliteração

em letras gregas e as quatro versões gregas da época, as de Áquila, Símaco, Septuaginta e

Teodocião. Outras obras nessa área são suas homilias, geralmente na forma de exortações

morais, e seus muitos comentários, dos quais subsistem grandes porções dos referentes a

Mateus, João, Romanos e Cantares. Também escreveu uma famosa apologia, Contra Celso,

na qual refutou ponto por ponto uma obra desse filósofo pagão contra o cristianismo. Sua

maior obra foi Sobre os princípios fundamentais (De principiis), considerada a primeira

teologia sistemática, que contém o seu grande sistema de filosofia cristã.

Visto que Orígenes foi acima de tudo um intérprete das Escrituras, é importante

considerar a sua abordagem exegética. Ele cria firmemente na inspiração de cada palavra da

Bíblia, mas entendia que se deve buscar, por trás do sentido literal do texto, um outro mais

profundo, espiritual. Essa interpretação alegórica ou figurada lhe permitiu fazer as grandes

especulações que lhe eram tão caras, bem como lhe possibilitou encontrar pontos de contato

entre a filosofia platônica e a mensagem bíblica. Todavia, a sua exegese não foi puramente

subjetiva, pois ele procurou ser fiel à regra de fé, ou seja, a pregação e o ensino tradicional

da igreja, que incluía a interpretação tipológica.

Influenciado pelo platonismo, Orígenes afirmou que Deus é incompreensível, a

unidade absoluta que contrasta com a multiplicidade do mundo transitório. Contudo, esse

Uno inefável também é o Deus triúno da regra de fé da igreja. Ao falar a respeito do Filho

de Deus, Orígenes expressou duas posições que conseguiu manter em equilíbrio e que mais

tarde dividiram os seus seguidores. Por um lado, ele deu ênfase à divindade e eternidade do

Filho, e sua igualdade com o Pai; por outro lado, salientou a distinção entre o Pai e o Filho

e a subordinação deste ao Pai. O Logos era um ser intermediário entre o Uno inefável e a

multiplicidade do mundo, sendo, portanto, um pouco inferior ou menos divino que o Pai, e

subordinado a ele.

É na doutrina da criação que se percebe o quanto Orígenes foi influenciado pelo

idealismo platônico. Ele afirmou que Deus inicialmente criou um mundo invisível de

intelectos puros. O propósito destes era a contemplação do Verbo, a imagem de Deus.

Porém, sendo dotados de liberdade, muitos deles voltaram os seus olhares para a

multiplicidade, todavia em diferentes graus. Daí a existência de uma hierarquia de seres:

celestiais, humanos e demoníacos. O mundo visível foi criado para ser um lugar de prova

dos espíritos caídos. A criação desses dois mundos – espiritual e material – estaria descrita

nos dois relatos paralelos de Gênesis 1 e 2. Cristo encarnou para libertar os seres humanos

do poder do diabo e para iluminá-los a fim de que possam retornar à unidade e harmonia de

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todos os seres intelectuais. Na encarnação, o Verbo de Deus se uniu a um intelecto não

caído e por meio dele a um corpo. Assim, Cristo teve não apenas um corpo humano, mas

também um intelecto humano. A sua divindade e humanidade estão unidas de tal forma que

se pode atribuir a uma ações e condições próprias da outra (o futuro conceito de

communicatio idiomatum ou “comunicação de atributos”). Essa coexistência das duas

naturezas num único ser é o maior mistério da fé.

A escatologia de Orígenes também reflete as mesmas influências. Ele entendia que

todos os intelectos (inclusive demoníacos) retornariam ao seu estado original de harmonia e

comunhão com Deus. Trata-se do conceito de restauração universal ou apokatástasis. Ao

mesmo tempo, especulou que depois deste mundo poderão existir muitos outros numa

seqüência interminável. Com toda a riqueza e complexidade do seu pensamento, Orígenes

deixou um legado controvertido. Por um lado, ele foi um estudioso das Escrituras reverente

e dedicado e procurou expor fielmente aquilo que entendia ser a fé ortodoxa da igreja. Por

outro lado, a sua excessiva dependência da filosofia, tendência para a alegorização da

Bíblia e ousadia especulativa o levaram a expor idéias posteriormente consideradas

inaceitáveis, como a subordinação do Filho ao Pai, a pré-existência da alma e a restauração

universal. É verdade que ele sempre procurou distinguir entre as suas próprias opiniões e a

fé da igreja. Quando os seus ensinos mais radicais foram condenados pelo Concílio de

Constantinopla (553) ele já havia exercido uma vasta influência sobre a teologia da igreja

oriental e ocidental.

Informações adicionais

Textos: Gomes, 147-154 (Comentários de Cantares, João e Mateus), 155 (Sobre os

princípios), 155-159 (Contra Celso).

Análises: Olson, 101-116; González, I:200-221; McGrath, 45, 413, 497; Lane, I:30-35;

Hägglund, 52-56; Kelly, 94, 98, 114, 357; Berkhof, 65-70; Tillich, 74-81; Küng, 43-64;

EHTIC, III:68s. Autores católicos: Altaner e Stuiber, 203-215; Hamman, 89-106;

Padovese, 51-53, 67-70, 101-103.

9. Hipólito e Novaciano

No 3° século, o principal centro de atividade teológica cristã no oriente foi

Alexandria, com Clemente e Orígenes. Na mesma época, duas cidades da região ocidental

se destacaram por suas contribuições: Roma, com Hipólito e Novaciano, e Cartago, com

Cipriano. Havia importantes diferenças nas emergentes tradições teológicas das duas

regiões: a teologia alexandrina era influenciada pelo platonismo, especulativa, interessada

pela interpretação alegórica; a teologia ocidental recebeu influência estóica, tinha um

caráter prático e demonstrou uma tendência legalista, preocupando-se com temas como o

perdão dos pecados e a natureza da igreja.

Foi nessa época que Roma teve seus dois primeiros grandes teólogos, ambos

cismáticos e considerados antipapas. Hipólito foi muito respeitado entre os cristãos

romanos. Era grego e escreveu nesse idioma. Devido a questões pessoais e divergências

teológicas, entrou em atrito com vários bispos. Quando Zeferino foi sucedido por Calixto,

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em 217, Hipólito recusou-se a reconhecê-lo como bispo e provocou um cisma na igreja

romana, que passou a ter dois bispos. Na perseguição promovida pelo imperador

Maximiano, em 235, foi deportado para a Sardenha, onde teria morrido no ano seguinte. A

maior parte de suas obras se perdeu. Entre as que sobreviveram estão a notável Tradição

apostólica – uma ordem eclesiástica – e várias obras teológicas e anti-heréticas. Uma delas

foi Philosophumena ou A refutação de todas as heresias. Dois aspectos relevantes da sua

teologia são o seu rigorismo moral e a sua doutrina da trindade. Sua teologia foi muito

influenciada por Irineu e Tertuliano.

Hipólito entendia que, para a manutenção de elevados padrões morais na igreja, os

pecados graves cometidos pelos cristãos após o batismo, tais como homicídio, fornicação e

apostasia, deviam ser tratados com o máximo rigor. Essa foi uma das razões do seu conflito

com Calixto, que era mais tolerante. Quanto à doutrina da trindade, Hipólito se opôs ao

modalismo de Noeto de Esmirna e Sabélio (daí, sabelianismo), bem como à posição dúbia

de Calixto. Sob a influência de Tertuliano, deu ênfase excessiva à distinção entre o Pai e o

Filho, parecendo fazer do Verbo um Deus secundário, subordinado. Na área da cristologia,

afirmou que a união da divindade e da humanidade em Jesus Cristo é a união de “duas

naturezas”, cada qual mantendo as suas propriedades.

Novaciano também provocou um cisma na igreja de Roma ao adotar uma atitude

rigorosa quanto à restauração dos caídos que apostataram na perseguição de Décio (250-

251) em contraste com a atitude tolerante do bispo Cornélio. No aspecto doutrinário, ele é

importante por causa de sua obra Sobre a Trindade. À semelhança de Hipólito, seu

principal interesse foi mostrar que o Filho é distinto do Pai (contra o modalismo), mas o fez

enfatizando a subordinação do Filho, embora afirmasse a sua divindade, e considerou o

Espírito Santo inferior ao Pai e ao Filho. Essas duas questões – a restauração dos apóstatas

e os debates trinitários – refletiam questões candentes que ocupavam a atenção dos cristãos

naquele período de transição.

Informações adicionais

Textos: Gomes, 172-179 (Hipólito: Tradição Apostólica, Contra Noeto e Philosophumena),

197-201 (Novaciano: Sobre a Trindade); Bettenson, 135-137.

Análises: González, I:223-232; Hägglund, 47; Kelly, 82; EHTIC, I:287 (cisma novaciano);

II:251s (Novaciano). Autores católicos: Altaner e Stuiber, 171-176, 177-179; Hamman, 89-

106.

10. Cipriano de Cartago

Cipriano foi o mais notável personagem da igreja latina do norte da África no

período entre Tertuliano e Agostinho. Era filho de pais pagãos abastados e cultos, e foi

destacado mestre de retórica em Cartago antes de se converter ao cristianismo, com cerca

de 40 anos. Sua dedicação ao celibato, à pobreza e às Escrituras, bem como suas

qualificações pastorais e intelectuais, o conduziram rapidamente ao presbiterato e daí ao

episcopado (c.248), para insatisfação de alguns sacerdotes mais velhos. Eleito bispo na

véspera das perseguições de Décio e Valeriano (250-259), teve de guiar as igrejas africanas

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em meio ao sofrimento e divisões daquele período. Na perseguição inicial (250-251), fugiu

para um lugar seguro junto com outros líderes da igreja, justificando-se depois que o fizera

para o bem do rebanho, e não por covardia. Sua coragem e convicção foram provadas

alguns anos mais tarde, quando ofereceu sua vida como mártir, ao ser decapitado no ano

258.

A maior parte dos seus escritos tem caráter prático, refletindo suas preocupações

pastorais. Sofreu claramente a influência do “mestre” Tertuliano. Durante uma praga em

250, escreveu A Demetriano, respondendo a um pagão que havia culpado os cristãos pela

epidemia. No mesmo contexto, escreveu duas obras aos fiéis: Sobre a mortalidade e Sobre

obras e esmolas. Nos tratados Sobre a unidade da igreja e Sobre os caídos, reinterpretou a

concepção da igreja que havia herdado, à luz da problemática criada pelas perseguições.

Pressionados pelas autoridades a apostatarem sob ameaça de prisão ou morte, muitos

cristãos ofereceram sacrifícios (sacrificati) ou compraram certificados fraudulentos

(libellatici). Os confessores (aqueles que haviam sofrido pela fé) e alguns presbíteros

achavam que esses relapsos deviam ser readmitidos à igreja caso se mostrassem

arrependidos. Chegaram a promover um cisma por esse motivo. Cipriano convocou um

sínodo de bispos que decidiu como tais pessoas deviam ser tratadas. Esta era uma decisão a

ser tomada pelos bispos, não pelos confessores.

Isto tinha a ver com o entendimento de Cipriano acerca da igreja, sua principal

contribuição para a história da teologia. Cipriano entendeu que a igreja é indispensável para

a salvação: “Fora da igreja não há salvação”, “Ninguém pode ter a Deus como Pai se não

tem a igreja como mãe”. Os hereges e cismáticos não são a igreja e as suas ações não são

obras de Cristo. As características essenciais e inseparáveis da igreja são a verdade e a

unidade, fundamentadas no amor. A unidade da igreja reside no episcopado, do qual todos

os bispos participam por igual. Essa unidade não consiste na sujeição a um “bispo dos

bispos”, mas na fé, amor e comunhão dos bispos entre si (conceito federativo). Quanto à sé

romana, Cipriano exalta a primazia de Pedro e a importância da igreja de Roma. Esta e seu

bispo têm certa prioridade entre as igrejas cristãs, mas não possuem qualquer jurisdição em

assuntos externos a sua diocese.

Assim sendo, Cipriano padronizou o papel do bispo na igreja e equiparou a igreja

com a comunidade dos bispos. Porém, com isso relativizou a participação dos fiéis na vida

eclesial, aquilo que os reformadores protestantes chamariam “o sacerdócio de todos os

crentes”. Ciprinao foi um dos primeiros a afirmar claramente a regeneração batismal, isto é,

a remoção da culpa do pecado original pelo batismo. Teve uma controvérsia com Estêvão,

o bispo de Roma, na qual negou a validade do batismo ministrado por hereges. No seu

entendimento, a salvação é um processo vitalício que requer fidelidade à igreja, uma vida

de arrependimento e rigorosa obediência aos mandamentos de Cristo. Observa-se na sua

reflexão e ações o início do sistema penitencial católico.

Informações adicionais

Textos: Gomes, 182-196 (Sobre a unidade da igreja, Sobre a oração do Senhor, carta sobre

o martírio); Bettenson, 130-134.

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Análises: Olson, 117-128; González, I:232-239; Lane, I:35-39; Berkhof, 65-70; Tillich,

113-115; EHTIC, I:280s. Autores católicos: Altaner e Stuiber, 179-188; Hamman, 65-76;

Padovese, 99-101.

11. A controvérsia ariana e o Concílio de Nicéia

O início do 4° século foi um dos períodos mais importantes de toda a história do

cristianismo. Após as perseguições de Décio e Valeriano (250-259) houve quase meio

século de relativa paz em que a igreja cresceu extraordinariamente. Veio então a última e a

maior das perseguições, promovida pelos imperadores Diocleciano e Galério (303-311). No

ano 313 ocorreu um fato de enormes conseqüências para a igreja. O imperador Constantino

declarou-se cristão e, junto com o seu colega oriental Licínio, promulgou o Edito de Milão,

que tirou o cristianismo da ilegalidade e fez cessar definitivamente as perseguições. De uma

hora para outra a igreja viu-se livre, forte, rica e aliada do estado. Essa nova realidade

trouxe um preço: a crescente interferência do poder político na vida da igreja. Com o fim

das perseguições, a teologia saiu da obscuridade para se tornar uma questão de interesse

público.

Alguns anos após o Edito de Milão, surgiu em Alexandria uma grande controvérsia

acerca da pessoa de Cristo em virtude dos ensinos de Ário, um presbítero local, ordenado

em 311, que havia se tornado o dirigente da escola catequética. Ário tinha sido aluno de

Luciano de Antioquia, um mestre controvertido que era partidário da ênfase antioquina na

humanidade de Cristo. Além disso, recebeu a poderosa influência de Orígenes. Este, como

foi visto, mostrou duas posições distintas em relação ao Filho de Deus: por um lado, que

ele possuía uma eterna igualdade com o Pai; por outro lado, que era subordinado ao Pai.

Ário simpatizou-se com esta última posição, revelando a presença de outra influência, a

filosofia grega, segundo a qual o Deus perfeito, imutável e impassível não poderia se

encarnar, porque isto implicaria em mudança. Portanto, o Logos não era divino no mesmo

sentido que o Pai.

Assim sendo, Ário passou a ensinar que o Logos, o Filho pré-existente, não era

eterno, mas foi gerado, isto é, criado pelo Pai, antes da existência do tempo, e por sua vez

criou todas as outras coisas. Era, portanto, um ser intermediário entre Deus e a criação.

Somente o Pai é ingênito, não-gerado; o Filho foi criado antes de todas as eras pela vontade

do Pai. Portanto, é sujeito a mudança e variação. Com o seu ensino, Ário quis afastar-se de

duas posições extremas: o sabelianismo ou modalismo, que negava a distinção pessoal

entre o Pai e o Filho, e o adocionismo, a afirmação de que Jesus Cristo era um ser humano

divinizado. Essa posição, defendida por Paulo de Samosata, havia sido condenada pelo

Sínodo de Antioquia em 268. Outra razão da posição de Ário era soteriológica: somente se

Cristo tivesse se submetido voluntariamente à vontade do Pai ele poderia oferecer um

exemplo a ser seguido pelos seres humanos. Se ele fosse plenamente divino, isso não seria

possível.

Ário tinha uma personalidade carismática e obteve muitos seguidores devotos. O

povo cantava nas ruas as suas idéias. Entrou em conflito direto com o seu superior,

Alexandre, o bispo de Alexandria, que cria na plena divindade do Filho de Deus e achava

que a posição ariana é que representava um risco para a eficácia da salvação. Um Cristo

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que não fosse plenamente divino não poderia salvar. Além disso, era uma negação da

imutabilidade de Deus: se o Filho foi criado, Deus nem sempre foi Pai. Alexandre

convocou um sínodo regional em 318 que condenou as idéias de Ário e o depôs. Este se

refugiou junto ao influente bispo Eusébio de Nicomédia, que havia sido seu colega em

Antioquia e tinha as mesmas idéias sobre Cristo. Eusébio começou a escrever cartas aos

bispos em defesa de Ário.

Através do seu conselheiro pessoal, o bispo Ósio de Córdova, o imperador

Constantino ficou sabendo dessa controvérsia que estava dividindo os bispos orientais. Ele

esperava que o cristianismo fosse “o cimento do império”, mas agora um cisma ameaçava a

igreja. Assim sendo, ele convocou todos os bispos para se reunirem em Nicéia, na Ásia

Menor, no ano 325. O concílio foi presidido pessoalmente pelo imperador e teve a presença

de pouco mais de 300 bispos, quase todos da parte oriental ou grega do Império Romano,

de um total de aproximadamente 500. Só 28 bispos eram declaradamente arianos. Ário, que

não era bispo, foi representado por seus aliados Eusébio de Nicomédia e Teogno de Nicéia.

O bispo Alexandre teve como assessor o jovem diácono Atanásio, que se tornaria uma

figura de grande importância. A maioria dos bispos não tinha uma clara compreensão das

questões que estavam em jogo.

No início do encontro, Eusébio de Nicomédia cometeu um grave erro ao ler uma

declaração sobre a posição ariana que continha uma negação direta da divindade do Filho,

enfatizando que era uma criatura e de modo nenhum igual ao Pai. A reação foi imediata. O

imperador nomeou uma comissão para redigir o texto do credo que deveria ser assinado por

todos os bispos, inclusive os ausentes. Possivelmente instruído por um dos bispos, propôs

que se utilizasse para descrever Cristo a palavra homoousios, ou seja, “consubstancial”,

uma afirmação de que o Filho tinha a mesma substância divina que o Pai, partilhando dos

mesmos atributos. O Credo de Nicéia seguiu o modelo do Credo dos Apóstolos.

Ário foi deposto e condenado como herege. Foi a primeira vez que isso aconteceu

na história da igreja por ação de um governante secular. Todavia, o Concílio de Nicéia não

resolveu definitivamente a controvérsia. Muitos bispos ficaram insatisfeitos com o Credo,

achando que era um documento ambíguo e que abria as partas para outra heresia, o

sabelianismo, podendo ser interpretado como uma afirmação da unidade divina, mais que

da divindade do Filho. Um desses bispos foi Eusébio de Cesaréia (c.263-c.340), o famoso

pai da história da igreja. Haveriam de passar muitos anos até a solução final do problema.

Mesmo assim, Nicéia foi importante por ser o primeiro concílio universal, ou seja, para o

qual todos os bispos foram convidados e cujas ações e decisões se tornaram obrigatórias

para todos os líderes da igreja.

Esse grande concílio dividiu a história da teologia patrística em duas fases: antes e

depois de Nicéia. Já foi vista uma galeria de grandes pensadores pré-nicenos: Justino

Mártir, Irineu de Lião, Tertuliano, Clemente de Alexandria, Orígenes e Cipriano de

Cartago. A partir do Concílio de Nicéia, a era dos pais da igreja chegou ao seu apogeu. A

idade de ouro da patrística vai do início do 4° século até meados do 5° século, com teólogos

da envergadura de Atanásio, Basílio de Cesaréia, Gregório de Nissa, Gregório de Nazianzo

e Agostinho de Hipona, para citar os mais importantes. Nesse período, dois temas

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teológicos ocuparam de modo especial a atenção da igreja: o ser de Deus e a pessoa de

Jesus Cristo.

Informações adicionais

Textos: Bettenson, 61-64, 82-85.

Análises: Olson, 145-164; González, I:255-264; McGrath, 56-58, 414-417; Lane, I:41-44;

Hägglund, 63-67; Kelly, 169-181; Berkhof, 77-81; Tillich, 84-88; EHTIC, I:105-107

(arianismo), 309-311 (Concílio de Nicéia). Autores católicos: Altaner e Stuiber, 272-275;

Padovese, 53, 70; Moreschini e Norelli, II/1:44-54.

12. Atanásio

Os defensores das decisões de Nicéia predominaram por pouco tempo. Seguiu-se

um período de mais de meio século de grande turbulência teológica, causada em parte pelas

políticas hesitantes de Constantino e seus filhos. Ário e Eusébio de Nicomédia, que haviam

sido exilados, foram reabilitados. O segundo chegou a batizar Constantino no seu leito de

morte. Constâncio, o imperador oriental, deu decidido apoio aos arianos, o que levou em

355 à aprovação de uma fórmula pela qual o Filho era considerado claramente inferior ao

Pai, conhecida mais tarde como a “blasfêmia de Sirmium”. Surgiram três tendências

principais entre os opositores do termo homoousios, isto é, “consubstancial”: (1) os

anomoianos (de anomoios = “diferente”) ou eunomianos (de Eunômio), para os quais o

Filho era diferente do Pai em todos os aspectos; (2) os homoianos (de homoios = “similar”)

e (3) os homoiousianos (de um termo que significa “substância semelhante”), às vezes

chamados semi-arianos.

Como foi visto, uma das principais razões para as suspeitas acerca do Credo de

Nicéia foi o temor do sabelianismo ou modalismo, ou seja, de que afirmar que o Pai e o

Filho tinham a mesma substância pudesse significar que não havia nenhuma distinção entre

eles, de que eram a mesma pessoa com dois nomes. Isso era reforçado pela ambigüidade do

termo grego “hipóstase”, que podia significar tanto “pessoa” ou “subsistência pessoal”

como “substância” ou “essência”, ao contrário do latim, que tinha duas palavras bem

distintas: “substantia” e “persona”. A vitória da causa nicena somente foi assegurada graças

aos esforços de quatro grandes teólogos: Atanásio de Alexandria e os três capadócios

(Basílio de Cesaréia, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo).

Atanásio nasceu no Egito em uma família abastada por volta de 296. Na escola

catequética de Alexandria, comoveu-se profundamente com o martírio de cristãos durante a

última grande perseguição e foi muito influenciado pelo bispo Alexandre, que o ordenou

diácono. Um homem de pele escura e pequena estatura, ele foi um teólogo arguto e

habilidoso, um escritor prolífico e um cristão fervoroso. Opôs-se a Ário e ao arianismo

durante a maior parte do 4° século. Pode-se dizer que a história da igreja naquele século

acompanhou de perto os eventos da sua vida e ministério.

O jovem diácono não participou oficialmente das deliberações do Concílio de

Nicéia, mas, como secretário de Alexandre, as notas, circulares e encíclicas que escreveu

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em nome desse bispo exerceram grande influência sobre as decisões. Quando Alexandre

morreu em 328, ele o sucedeu como bispo de Alexandria aos 33 anos, por exigência dos

fiéis. A vitória de Nicéia permaneceu sob ameaça política por duas gerações, sendo

Atanásio o alvo principal dos ataques arianos. Num período de trinta anos (335-365), ele foi

exilado cinco vezes por Constantino e seus sucessores. No seu segundo exílio (339), visitou

Roma e estabeleceu fortes laços com a igreja do Ocidente, que apoiou a sua causa. Faleceu

em 373, após quarenta e cinco anos de episcopado.

Atanásio produziu uma grande variedade de escritos, geralmente motivados por um

interesse pastoral e prático, mais do que acadêmico e especulativo. Ainda bastante jovem

(c.318), escreveu Contra os pagãos e o brilhante tratado Sobre a encarnação do Verbo (De

incarnatione), que forneceu a base teológica para o partido ortodoxo em Nicéia. Outros

escritos doutrinários importantes são Discursos contra os arianos e Sobre os decretos do

Concílio de Nicéia. Seus ensaios polêmicos e históricos incluem Apologia contra os

arianos e Epístola aos bispos do Egito e da Líbia. Também deixou muitas cartas e

comentários sobre livros bíblicos. Através da sua Vida de Santo Antônio, influenciou

grandemente o movimento monástico, especialmente no Egito.

O principal interesse de Atanásio era religioso, especialmente em dois aspectos da

religião cristã: o monoteísmo (Contra os pagãos) e a salvação (Sobre a encarnação). O

Deus único criou, sustenta e governa o universo por meio da sua Razão, Sabedoria ou

Verbo. O Verbo é Deus no sentido mais estrito, porque somente Deus pode salvar a

humanidade, pagando a dívida dos pecadores e tornando-os semelhantes a Deus. O

arianismo é condenável por duas razões: aproxima-se do politeísmo e dá a entender que a

salvação provém de uma criatura, o que é impossível. Se Deus é o criador, Deus também

precisa necessariamente ser o salvador da criação. Deus é transcendente, mas isso não

impede que entre em contato direto com as criaturas. Portanto, o Verbo é Deus, mas pode

relacionar-se com a criação.

Um passo importante da carreira de Atanásio foi a realização de um sínodo em

Alexandria (362) que declarou que, diferenças verbais à parte, havia em Deus uma só

essência divina e três distinções pessoais, negando ao mesmo tempo que o Espírito Santo

fosse uma criatura. A partir de então a causa ariana estava perdida. Atanásio não deu

atenção especial ao Espírito Santo nem usou uma terminologia fixa para expressar a

unidade e a pluralidade dentro da Trindade. Essa tarefa foi deixada aos notáveis

capadócios.

Informações adicionais

Textos: Gomes, 202-212; Bettenson, 74-76, 86-90.

Análises: Olson, 165-176; González, I:283-293; McGrath, 46, 415-417; Lane, I:44-48;

Hägglund, 67-71; Kelly, 181-187, 192-195, 214-218; Tillich, 89-91; EHTIC, I:132-134.

Autores católicos: Altaner e Stuiber, 275-283; Hamman, 107-118; Padovese, 54-56;

Moreschini e Norelli, II/1:43-73.

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30

13. Os pais capadócios

Esses importantes pensadores cristãos dominaram o cenário teológico na segunda

metade do 4° século e trabalharam juntos para tornar vitoriosa a fé nicena. Eram amigos de

Atanásio e desenvolveram o seu pensamento teológico. Eles criaram as fórmulas que

tornaram possível o consenso da maior parte dos teólogos orientais em torno da questão

trinitária. Tomaram para si a tarefa de definir mais claramente a unidade e a diversidade

existentes na Divindade, inclusive a terminologia adequada para isto, ou seja, de que em

Deus há três hipóstases (subsistências individuais) e apenas uma “ousia” ou essência

divina. Todos os três viveram na Capadócia, a região oriental da Ásia Menor, parte da

moderna Turquia.

Nascido em uma família de posses e profundamente cristã, Basílio de Cesaréia

(330-379) foi o irmão mais velho de outro teólogo, Gregório de Nissa. Tinham uma irmã

muito inteligente, Macrina, que participava de suas discussões teológicas e os influenciou

fortemente. Basílio fez os primeiros estudos em sua terra natal (Cesaréia, na Capadócia) e

em Constantinopla, indo em 351 para Atenas, onde se tornou amigo de Gregório de

Nazianzo. Retornou a Cesaréia por volta de 356 e ensinou retórica com grande sucesso.

Abandonando uma promissora carreira na educação, resolveu dedicar-se à vida religiosa.

Após ser batizado, viveu por vários anos como eremita. Deixou o isolamento em

364, a pedido do seu bispo, que estava enfrentando muita oposição de arianos extremistas.

Foi ordenado presbítero e passou a escrever livros contra Eunômio, o líder desse grupo.

Após a morte de Eusébio em 370, sucedeu-o como bispo de Cesaréia, função que o levou a

envolver-se em controvérsias com os arianos, com os pneumatomacianos ou macedonianos

(que negavam a divindade do Espírito Santo) e com o imperador Valente (364-378).

Destacou-se como líder monástico, administrador e teólogo.

Todas as obras dogmáticas de Basílio objetivaram refutar os erros da época. As

principais foram Contra Eunômio e Sobre o Espírito Santo. Rebatendo o ariano extremado

Eunômio, argumentou que não há contradição em dizer que o Filho é gerado e eterno, ou

dizer que ele é eternamente gerado. Refutando a acusação de triteísmo, afirmou e defendeu

pela primeira vez a fórmula que resolveu em definitivo a controvérsia trinitária: no Ser

Divino há uma “ousia” (essência, substância) e três hipóstases (distinções pessoais). Sua

notável personalidade e enorme popularidade fizeram dele o mediador ideal entre o Oriente

e o Ocidente. Através da sua influência conciliadora, juntamente com a dos outros pais

capadócios, a confusão sobre a terminologia nicena eventualmente foi resolvida.

Basílio deu mais atenção ao Espírito Santo que os teólogos anteriores, mostrando

que a terceira pessoa da Trindade não é uma criatura, sendo consubstancial com o Pai e

com o Filho. A defesa da divindade do Espírito Santo fica mais clara em suas muitas cartas.

Seus argumentos são contidos, evitando polêmicas. Chegou a alterar a antiga doxologia

usada em Cesaréia: “Glória seja ao Pai, por meio do Filho, juntamente com o (ao invés de

simplesmente “no”) Espírito Santo”. Foi o primeiro teólogo cristão a escrever um tratado

inteiro sobre o Espírito Santo e por isso ficou conhecido como “o teólogo do Espírito

Santo”. Seu mérito foi introduzir definitivamente a terceira pessoa da Trindade na

controvérsia ariana.

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Gregório de Nazianzo (†390), um amigo e colega de Basílio, era filho de um bispo. Sendo

dotado de um temperamento sensível, tinha predileção pela vida contemplativa e destacou-

se como orador e poeta. Ficou conhecido na história como “o teólogo”. Foi patriarca de

Constantinopla por breve tempo e presidiu o Concílio de Constantinopla (381). O melhor

da sua produção teológica não está em tratados sistemáticos, mas em seus sermões, poemas

e cartas, especialmente nos chamados Discursos teológicos, um conjunto de cinco sermões.

Como Basílio, também refutou o ariano radical Eunômio, que afirmava que o Filho é

inteiramente diferente do Pai (anomoios). Sua grande contribuição à doutrina trinitária foi a

ênfase no relacionamento interno entre as três pessoas divinas. Argumentou que as únicas

distinções que podem ser estabelecidas entre as três pessoas da Trindade são aquelas

referentes à origem de cada uma: o Pai é não-gerado, o Filho é gerado e o Espírito Santo é

“procedente”. Daí falar-se na “processão” do Espírito.

Gregório de Nissa (†394) era um irmão mais novo de Basílio, o Grande, e destacou-

se como teólogo e expoente do misticismo. É considerado o mais brilhante dos capadócios,

tendo feito uso mais amplo e melhor da filosofia grega (neoplatonismo) do que os outros

capadócios. Recebeu grande influência de Orígenes, embora não o tenha seguido de modo

servil. Suas obras trinitárias são: Sobre a Santa Trindade, Não três deuses: para Ablábio e

Contra Eunômio, sendo esta última uma tentativa de continuar a obra de Basílio. Fez o

discurso inaugural do Concílio de Constantinopla.

À semelhança de Gregório de Nazianzo, afirmou que a única distinção possível das

pessoas da Trindade deve basear-se em suas relações internas. Ao contrário de Atanásio,

que relacionou a divindade do Filho com a salvação, o método teológico dos capadócios foi

fazer uso de argumentos lógicos e bíblicos. Sua principal contribuição ao pensamento

trinitário foi a refutação da acusação de triteísmo feita pelos adversários. A diferença que

existe entre três indivíduos humanos (como Pedro, Tiago e João) e as três pessoas da

Trindade é que, embora cada conjunto partilhe de uma natureza comum (respectivamente

humana e divina), os primeiros agem de modo distinto e independente um do outro, ao

passo que em Deus toda a atividade é uma só, toda operação é comum às três pessoas da

Divindade. A principal crítica feita aos capadócios é que eles deram ênfase quase exclusiva

às especulações sobre a Trindade imanente ou ontológica (os relacionamentos

intratrinitários na eternidade), enquanto que o Novo Testamento se concentra na Trindade

econômica, ou seja, as três pessoas ativas na história da salvação.

O Concílio de Constantinopla (381) foi convocado pelo imperador Teodósio I, que

no ano anterior havia oficializado o cristianismo católico e trinitário como a religião do

Império Romano. Esse concílio coroou de uma vez por todas os esforços de Atanásio e dos

três capadócios ao condenar todos os tipos de subordinacionismo e sabelianismo

(modalismo). Revisou o Credo do Nicéia, tornando mais claras certas expressões e

acrescentando um terceiro artigo sobre o Espírito Santo e a igreja. Esse importante

documento ficou conhecido na história como Credo Niceno ou Niceno-

Constantinopolitano.

Informações adicionais

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32

Textos: Gomes, 233-244 (Basílio), 245-263 (Gregório de Naziano), 264-274 (Gregório de

Nissa).

Análises: Olson, 177-200; González, I:295-314; McGrath, 364-366, 385s; Lane, I:49-56;

Hägglund, 71-72; Kelly, 195-203; Berkhof, 82-83; Tillich, 92-94; EHTIC, III:79s (pais

capadócios), I:148 (Basílio Magno), II:225s (Gregório de Nazianzo), II:226s (Gregório de

Nissa). Autores católicos: Altaner e Stuiber, 293-310; Hamman, 129-168; Moreschini e

Norelli, II/1, 118-171.

14. As controvérsias cristológicas

No século 4°, o principal tema de discussão teológica na igreja foi a natureza do Pai,

do Filho e do Espírito Santo, e a relação existente entre eles, o que resultou na elaboração

da doutrina da Trindade. No século seguinte, um novo debate doutrinário atraiu a atenção

dos cristãos, principalmente no oriente grego – o verdadeiro significado da pessoa de Jesus

Cristo, o Filho de Deus encarnado, e a relação entre a sua divindade e a sua humanidade.

Foram protagonistas desse debate os representantes das duas principais correntes de

pensamento da igreja antiga: as escolas de Alexandria (Egito) e Antioquia (Síria).

Essas duas importantes cidades tinham antigas e veneráveis tradições culturais e

teológicas. Os principais pensadores cristãos de Alexandria haviam sido Clemente de

Alexandria, Orígenes e Atanásio. Na Escola de Antioquia, mais recente, destacaram-se

Eustáquio de Antioquia, Diodoro de Tarso e Teodoro de Mopsuéstia. O único outro centro

cristão no Oriente grego que rivalizava com elas era Constantinopla, a capital que

Constantino havia inaugurado em 327, considerada a “nova Roma”. Tanto Alexandria

quanto Antioquia tinham ambições políticas em relação ao novo centro do poder imperial,

procurando colocar representantes seus nos cargos eclesiásticos mais destacados da capital,

principalmente o de bispo ou patriarca. O objetivo de cada cidade era ampliar a sua

influência e promover as suas ênfases teológicas, bastante diferentes entre si.

A primeira diferença entre as duas grandes escolas estava na sua hermenêutica. Os

alexandrinos eram partidários do método alegórico de interpretação bíblica. Tal método

havia sido desenvolvido no primeiro século da era cristã pelo estudioso judeu Filo, que,

através da alegorização, procurou harmonizar a sua tradição com a cultura helenística,

mostrando que as Escrituras eram compatíveis com a filosofia grega, especialmente o

platonismo. Ele atribuía pouca importância ao significado literal e histórico das narrativas

bíblicas, buscando antes o seu sentido alegórico ou espiritual. A exemplo de Clemente de

Alexandria e Orígenes, muitos estudiosos cristãos passaram a usar esse método

hermenêutico, buscando em todas as partes das Escrituras referências ocultas ao Logos e às

realidades espirituais. Alegavam que o próprio apóstolo Paulo havia utilizado esse método

ao falar da lei e do evangelho em Gálatas 4.21-31. Antioquia, por outro lado, sem desprezar

inteiramente a alegoria, deu mais ênfase à interpretação bíblica literal e histórica. Essa

abordagem foi exemplificada por Teodoro de Mopsuéstia (†428), considerado o maior

comentarista bíblico da igreja antiga, que se recusou a interpretar alegoricamente até

mesmo o livro de Cântico dos Cânticos, considerando-o uma verdadeira poesia de amor.

Esse diferente entendimento das Escrituras pelas duas escolas armou o palco para o conflito

cristológico.

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33

Em segundo lugar, as duas teologias divergiam quanto à idéia da salvação. A

soteriologia alexandrina, exemplificada por Orígenes e Atanásio, partia do antigo conceito

oriental de deificação. Para que a natureza humana fosse transformada pela natureza divina,

era necessária uma íntima união entre o divino (o Logos) e o humano em Cristo. Além

disso, a ênfase dessa escola no caráter imutável e impassível de Deus exigia que essa união

não transmitisse para a natureza divina as limitações e imperfeições próprias das criaturas.

Sem deixar de concordar com a idéia de divinização e com a diferença essencial entre as

duas naturezas, os antioquinos davam mais ênfase que os alexandrinos ao papel humano na

salvação. Em outras palavras, a soteriologia alexandrina entendia a salvação como um

mistério metafísico efetivado pelo Logos mediante a união com a humanidade em Jesus

Cristo. Para os antioquinos, a salvação foi uma realização moral e ética efetuada por um ser

humano ao unir sua vontade à do Logos divino. A principal diferença estava na percepção

da humanidade de Jesus Cristo, um instrumento passivo para os alexandrinos, um agente

participante para os antioquinos.

Essas duas perspectivas sobre as Escrituras e a salvação levaram a dois

entendimentos muito diferentes sobre a pessoa de Jesus Cristo. O modo como os

alexandrinos, a exemplo de Atanásio, falavam sobre a encarnação pode ser descrito como

uma cristologia “Verbo-carne”, ou seja, o Filho de Deus assumiu a carne humana sem de

fato entrar na existência humana em toda a sua plenitude. Os antioquinos consideraram essa

posição inaceitável por truncar a humanidade de Jesus Cristo. Sua posição ficou conhecida

como uma cristologia “Verbo-homem”, na qual a humanidade de Cristo não era passiva,

mas ativa, integral e completa. Enquanto os primeiros davam ênfase à união entre o divino

e o humano em Jesus Cristo (sua fórmula preferida era: “Uma só natureza após a união”),

sendo acusados de docetismo pelos antioquinos, estes insistiam na distinção entre as duas

naturezas, sendo acusados de adocionismo (Deus adotou um ser humano como filho). Em

suma, segundo os alexandrinos a salvação dependia de uma encarnação genuína, mas não

de uma natureza humana plena e integral, ao passo que para os antioquinos a verdadeira

encarnação exigia que Cristo fosse um homem exatamente igual aos demais homens,

embora sem pecado.

A posição de Alexandria (Verbo-carne) é tipificada pelo bispo Apolinário de

Laodicéia, que foi condenado por Gregório Nazianzeno e pelo Concílio de Constantinopla.

No esforço de defender o conceito alexandrino de salvação, ele negou a humanidade

integral de Jesus Cristo, resumindo-a ao corpo, sem incluir uma alma ou mente racional

humana, que foi substituída pelo Logos. Gregório de Nazianzo argumentou contra isso

dizendo que o Filho de Deus só poderia curar aquilo que ele assumiu. Se toda a natureza

humana pecou, ela precisava ser assumida plenamente pelo Logos a fim de ser redimida.

Por sua vez, o grande defensor da posição antioquina foi o já mencionado Teodoro de

Mopsuéstia, cuja cristologia se concentrou em três questões principais: a imutabilidade do

Logos, o livre-arbítrio de Jesus Cristo e a realidade da vida humana de Jesus. Para ele, a

encarnação foi o processo pelo qual o Logos assumiu uma pessoa humana e a recíproca

obediência dessa pessoa humana ao Logos. Em conclusão, os alexandrinos pareciam dizer

que Jesus Cristo é uma só natureza e uma só pessoa (divina), enquanto que os antioquinos

davam a entender que ele é duas naturezas e duas pessoas.

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34

Informações adicionais

Textos: Bettenson, 91-92.

Análises: Olson, 205-214; González, I:325-340; McGrath, 56s, 417-420; Hägglund, 75-78;

Kelly, 114-117, 228-234; Berkhof, 93-98; Tillich, 95-100; EHTIC, III:452-54 (teologia

alexandrina), III:463-65 (teologia antioquiana). Autores católicos: Padovese, 53-56.

15. Nestório, Cirilo e o Concílio de Éfeso

O conflito aberto entre as cristologias rivais teve início no Natal de 428, em

Constantinopla. O novo patriarca daquela cidade, Nestório, partidário da escola de

Antioquia, pregou um sermão contra um título muito popular atribuído a Maria – Theotokos

(portadora ou mãe de Deus). Esse termo não apenas revelava a grande reverência prestada à

mãe de Jesus, mas apontava para a plena divindade do seu filho. Ao proibir que esse termo

fosse utilizado, por entender que era teologicamente inadequado, esse patriarca atraiu a ira

dos alexandrinos.

Nestório nasceu na região de Antioquia no final do 4° século e morreu exilado no

deserto do norte da África por volta de 450. Provavelmente foi discípulo do grande erudito

Teodoro de Mopsuéstia. Em 428, o imperador Teodósio II, partidário da teologia

antioquina, o elevou ao cobiçado cargo de bispo de Constantinopla, para frustração dos

alexandrinos. O imperador e o patriarca perseguiram os cristãos da capital que favoreciam a

teologia de Alexandria. Nesta cidade egípcia, era patriarca Cirilo, cujo episcopado se

estendeu de 412 a 444. Sua reputação ficou manchada na história da igreja por duas razões:

teria enviado espiões a Constantinopla para apanharem Nestório em alguma heresia e o seu

pensamento serviu de ponte entre duas heresias: o apolinarismo, anterior a ele, e o

monofisismo, posterior.

Nestório não tinha problemas com a veneração de Maria, e sim com a confusão

entre as diferentes naturezas de Jesus Cristo. Seguindo o seu preceptor Teodoro de

Mopsuéstia, ele argumentou que a natureza divina não pode nascer nem morrer. Ela é

imutável, impassível, perfeita e incorruptível. Assim, o que nasceu de Maria foi a natureza

humana de Jesus, e não a natureza divina. O máximo que se podia dizer é que Maria é

Christotokos, ou seja, a portadora de Cristo. Com isso, Nestório não estava negando nem a

divindade, nem o nascimento virginal de Jesus Cristo. Ele acreditava tão firmemente na

divindade do Filho de Deus que negava qualquer atribuição a ele de características ou

experiências próprias da criatura. Por outro lado, a Virgem Maria deu à luz o homem Jesus

Cristo, que, desde o momento da sua concepção, estava intimamente unido ao Logos pré-

existente e divino.

Nestório publicou seus argumentos contra o termo Theotokos na encíclica pascal de

429, tornando oficiais as suas declarações. Em Constantinopla, os alexandrinos começaram

a fazer propaganda contra o patriarca, insinuando que ele era partidário do antioquino Paulo

de Samosata, cuja heresia adocionista havia sido condenada há quase dois séculos. Ao

mesmo tempo surgiu uma vigorosa troca de correspondência entre Cirilo e Nestório, na

qual eles defenderam suas respectivas posições. Torna-se difícil entender o pensamento

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desses líderes porque os seus argumentos são confusos, cheios de ambigüidades e, além

disso, evoluíram ao longo do tempo. Mas não há dúvida de que pensavam de modo diverso

sobre aspectos fundamentais da encarnação. No fim, a doutrina ortodoxa da pessoa de

Cristo, definida após a morte deles, veio a ser uma espécie de meio-termo entre os seus

conceitos.

A principal questão na cristologia de Nestório é que ele não podia conceber uma

natureza humana sem uma pessoa ligada a ela. A verdadeira humanidade não poderia

existir de modo algum sem uma pessoa humana individual que fosse o seu centro. Para ele,

prosopon (pessoa) e physis (natureza) estão juntos, tanto na humanidade como na

divindade. Por conseqüência lógica, ele teve de afirmar que Jesus Cristo era duas pessoas, a

encarnação sendo a habitação mútua dessas pessoas uma na outra: o eterno Filho de Deus e

o ser humano mortal Jesus. Tentando explicar como duas pessoas podiam ser uma só,

Nestório postulou um tipo especial de união que denominou synapheia, em latim

conjunctio (conjunção). Jesus Cristo era uma conjunção da natureza-pessoa divina com a

natureza-pessoa humana: o Logos divino e eterno e a pessoa humana de Jesus em íntima

união. Ele ilustrou essa relação com a analogia do casamento, em que duas pessoas

diferentes se juntam em uma união que transcende as diferenças.

No seu esforço de afirmar a absoluta distinção das naturezas, Nestório acabou

adotando, como acusou Cirilo, um adocionismo disfarçado, no qual o Verbo nunca assumiu

realmente uma existência humana. Na encarnação, o Filho de Deus e o Filho de Davi

formaram uma união – um vínculo de companheirismo e de cooperação de vontades – que

transcendia as naturezas diferentes, mas um não participou realmente das experiências do

outro. O Logos operou os milagres e o homem Jesus sofreu e morreu. Apesar do desejo

louvável de preservar a integridade das duas naturezas e de valorizar a humanidade de Jesus

Cristo, impedindo que fosse absorvida na divindade, Nestório não conseguiu explicar a

unidade de Cristo. O Cristo nestoriano tornou-se dois indivíduos, e não um. O Filho de

Deus não experimentou verdadeiramente a existência humana na carne.

A posição de Cirilo sobre a encarnação é expressa através da sua contribuição

original para a cristologia – a doutrina da “união hipostática”, ou seja, a união de duas

realidades em uma só hipóstase ou sujeito pessoal: o Logos. Isso significa que o sujeito da

vida de Jesus Cristo era o Filho de Deus que assumiu uma natureza e existência humana

sem deixar de ser divino. Não havia um sujeito pessoal humano na encarnação. A hipóstase

ou subsistência pessoal de Jesus Cristo era o eterno Filho de Deus que condescendeu em

assumir a carne humana através de Maria. Portanto, Maria deu à luz a Deus em carne. Para

Cirilo, a natureza humana de Jesus Cristo incluía todos os aspectos da verdadeira

humanidade – corpo, alma, espírito, mente, vontade -, mas não possuía uma existência

pessoal independente do Logos, sendo, portanto, impessoal. Da união hipostática decorre o

importante princípio da “comunicação de atributos” (communicatio idiomatum). Por causa

da união das duas naturezas na encarnação, as características de uma natureza podem ser

atribuídas à outra, isto é, são características da pessoa como um todo. Assim, é correto dizer

que o Verbo nasceu, cresceu e morreu, e que o ser humano, Jesus, operou milagres,

perdoou pecados e derrotou a morte.

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36

Na sua luta contra Nestório, Cirilo apelou ao bispo de Roma, que respondeu

condenando Nestório e recomendando a sua deposição. Em troca desse apoio, o papa exigiu

a condenação da heresia pelagiana, que será estudada mais adiante. Cirilo usou a carta do

papa para pressionar o imperador a convocar um concílio para resolver a controvérsia. O

terceiro concílio ecumênico reuniu-se em Éfeso no ano 431. Inicialmente compareceram

apenas Cirilo e seus partidários. O concílio aprovou a segunda carta de Cirilo a Nestório

como a interpretação autorizada do Credo Niceno acerca da pessoa de Jesus Cristo, bem

como condenou Nestório e sua cristologia. Não houve a promulgação de um novo credo, e

sim de uma fórmula dogmática: “O eterno Filho do Pai é um e exatamente a mesma pessoa

que o Filho da Virgem Maria, nascido no tempo e na carne; por isso, ela pode ser

corretamente chamada Mãe de Deus”. Pouco depois da conclusão dos trabalhos, o bispo de

Antioquia e seus colegas chegaram e se reuniram num concílio rival. Em seguida, os bispos

do Ocidente e os delegados papais também chegaram e se reuniram com o grupo de Cirilo,

que ratificou os atos anteriores.

O imperador acabou concordando com a deposição e exílio de Nestório depois de

obter a anuência de João, o bispo de Antioquia. Por sua vez, este exigiu que Cirilo

afirmasse que Jesus Cristo tinha duas naturezas, o que ele fez com relutância. Cirilo

defendeu seu acordo com Antioquia no documento conhecido como Fórmula de Reunião

(433), no qual insistiu que as duas naturezas são distintas somente no pensamento, e não de

fato. Essa fórmula foi assinada pelos dois bispos e ratificada pelo imperador, evitando o

cisma das duas cidades. Duas grandes heresias cristológicas haviam sido condenadas, o

apolinarismo (Cristo não tinha uma mente humana) e o nestorianismo (Cristo era duas

pessoas), mas muitas questões ainda permaneciam abertas e carentes de solução.

Informações adicionais

Textos: Gomes, 379-393 (Cirilo); Bettenson, 93-96.

Análises: Olson, 215-226; González, I:341-354; McGrath, 420s; Lane, I:71-75; Hägglund,

79-82; Kelly, 234-249; EHTIC, III:18s (Nestório), I:281s (Cirilo de Alexandria), I:308s

(Concílio de Éfeso). Autores católicos: Altaner e Stuiber, 287-291; Hamman, 245-254;

Padovese, 56-57; Moreschini e Norelli, II/2, 221-260.

16. O Concílio de Calcedônia

O Concílio de Éfeso e a Fórmula de Reunião foram soluções temporárias, pois as

questões estavam longe de ser resolvidas. As duas posições em conflito sobre as naturezas

de Cristo continuavam essencialmente as mesmas, cada grupo achando que a posição do

outro punha em risco a doutrina da salvação. Os antioquinos insistiam na plena humanidade

de Cristo, por causa de sua ênfase no papel humano na salvação. A ênfase soteriológica

alexandrina recaía mais na graça de Deus do que na realização humana. Os partidários

dessa posição alegavam com certa razão que os alexandrinos viam Jesus Cristo mais como

o exemplo humano do que como o Salvador divino. O fato de Pelágio – com sua forte

insistência na capacidade humana de obedecer a Deus sem o auxílio da graça – ter sido

acolhido por antioquinos da Síria e da Palestina pouco antes do Concílio de Éfeso, parecia

confirmar isso. No Ocidente latino esse debate não existia, pois a doutrina das duas

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naturezas de Cristo já havia sido definida satisfatoriamente por Tertuliano há mais de dois

séculos.

A controvérsia cristológica reacendeu em virtude do comportamento do novo

patriarca de Alexandria, Dióscoro, um ciriliano radical que insistia em “uma só natureza

encarnada do Logos divino”. Ocupava a sé de Antioquia um ardoroso defensor das duas

naturezas, Teodoreto de Ciro. O estopim do conflito foram as idéias de Eutiques, um velho

monge de Constantinopla, partidário de Alexandria. Ele foi um passo além de Cirilo não só

ao reduzir a humanidade de Cristo a “uma gota de vinho no oceano da sua divindade”, mas

ao negar que Cristo fosse consubstancial com os seres humanos, o que parecia uma clara

rejeição da fé de Nicéia. Para ele, Jesus Cristo não tinha uma personalidade humana e nem

mesmo uma natureza humana como a nossa. Ele era um ser híbrido entre o humano e o

divino (tertium quid ou terceiro algo), uma única natureza divina-humana que misturava as

duas naturezas de tal maneira que a natureza humana era absorvida pela divina.

No ano 448, o ardiloso Dióscoro fez com que Eutiques fosse condenado por um

sínodo em Constantinopla e em seguida lhe ofereceu refúgio em Alexandria visando forçar

uma confrontação com Antioquia. O quarto concílio ecumênico fora convocado para

reunir-se em Éfeso em 449. Dióscoro compareceu acompanhado de um bando de monges

armados e assumiu o controle do concílio. A fórmula de Eutiques foi aprovada como

ortodoxa – Jesus Cristo como o Deus-homem de uma só natureza cuja humanidade foi

absorvida pela divindade. Os representantes de Antioquia, a começar do patriarca

Teodoreto, foram condenados e depostos. Alguns alexandrinos chegaram a exigir que

fossem queimados! Pior sorte teve o patriarca de Constantinopla, Flaviano, que chegou ao

concílio trazendo um documento de Leão, o bispo de Roma, condenando Eutiques e

delineando a cristologia ortodoxa (o Tomo de Leão). Ao tentar ler a carta do papa, Flaviano

foi espancado com tamanha violência pelos monges de Dióscoro que morreu pouco depois.

Esse conclave infame passou à história como o Sínodo dos Ladrões.

O imperador Teodósio II, agora simpatizante de Alexandria, concordou plenamente

com as decisões do sínodo e negou um apelo do papa Leão I no sentido de que fossem

revogadas. O eutiquianismo, pouco diferente do docetismo, havia triunfado; a própria fé de

Nicéia foi questionada e a igreja estava a ponto de dividir-se. Providencialmente, no dia 28

de julho de 450 Teodósio morreu num acidente inesperado, ao ser lançado do seu cavalo.

Foi sucedido por sua irmã Pulquéria, que, com seu esposo Marciano, começou a desfazer os

atos do Sínodo dos Ladrões. Um novo concílio para substituí-lo como o quarto concílio

ecumênico foi convocado para reunir-se em Calcedônia, perto de Constantinopla, em 451.

A grandiosa cerimônia de abertura realizou-se no dia 8 de outubro, com a presença de 500

bispos. As atas do Sínodo dos Ladrões foram debatidas e os simpatizantes de Dióscoro

começaram a abandoná-lo; ele foi deposto e exilado.

O Tomo de Leão, que havia sido previamente distribuído, foi debatido durante

várias sessões. As deliberações teológicas se basearam na sua linguagem e conceitos, bem

como nas cartas de Cirilo a Nestório e João de Antioquia, e nos escritos de Tertuliano. A

Fórmula ou Definição de Calcedônia não seria um novo credo, mas uma interpretação e

elaboração do Credo Niceno de 381. Os bispos condenaram tanto Nestório como Eutiques,

afirmando que se deve confessar que Jesus Cristo é um só Filho, perfeito na sua divindade e

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na sua humanidade, possuindo corpo e alma racional, consubstancial com o Pai quanto à

divindade e conosco quanto à humanidade, à exceção do pecado. A parte principal diz que

ele foi “revelado em duas naturezas sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem

separação; a diferença de naturezas não pode ser eliminada de modo algum por causa da

união, mas as propriedades de cada natureza são preservadas e reunidas em uma só pessoa

(prosopon) e uma só hipóstase, não separada ou dividida em duas pessoas”. Assim sendo, a

declaração se afastou tanto da posição clássica alexandrina (“duas naturezas, sem confusão,

sem mudança”) quanto da antioquina (“uma só pessoa, sem divisão, sem separação”).

A Definição de Calcedônia expressa a doutrina da união hipostática, tendo como

objetivo maior proteger de distorções o mistério da encarnação. Sua parte essencial é

conhecida como “os quatro limites de Calcedônia” – as expressões “sem confusão, sem

mudança” protegem contra as heresias do eutiquianismo e do monofisismo, e “sem divisão,

sem separação”, contra o nestorianismo. Jesus Cristo é Deus com uma natureza humana, e

não um homem elevado a um relacionamento especial com Deus ou um híbrido de

existência divina e humana. Os bispos Leão (influenciado por Tertuliano) e Cirilo

(influenciado por Atanásio) pareciam entender que Cristo é o Logos divino que assume

uma natureza humana carente de existência própria, ou seja, impessoal. O centro pessoal de

consciência, vontade e ação é o Logos. Essa posição reflete o antigo princípio da

imutabilidade e impassibilidade divina, e tem sido questionada ao longo da história, tanto

por católicos quanto por protestantes, porque parece negar a genuína encarnação do Filho

de Deus.

Calcedônia não encerrou definitivamente os debates cristológicos na igreja grega. A

igreja ocidental estava preocupada com outras questões, como a natureza da salvação

(graça e livre arbítrio) e a natureza da igreja (luta com os donatistas). No Oriente, o

resultado das controvérsias cristológicas foram cismas permanentes: grande parte dos

cristãos da Síria, Pérsia e Arábia formou igrejas nestorianas; os cristãos do Egito

constituíram igrejas monofisitas independentes (coptas). Os bispos que permaneceram na

igreja majoritária se dividiram em três grupos: (a) diofisitas – antioquinos moderados

liderados por Teodoreto de Ciro, que continuaram a insistir na distinção radical das duas

naturezas, sem chegar ao nestorianismo; (b) monofisitas moderados – herdeiros de Cirilo e

liderados por Severo de Antioquia e Timótio Eluro (bispo de Antioquia); e (c)

neocalcedônios, cujo principal teólogo foi Leôncio de Bizâncio.

Os monofisitas persuadiram o imperador Zenão (476-491) a apoiar a sua posição

por algum tempo. Eles criticaram e por fim repudiaram a Definição de Calcedônia. Com

isso, o monofisismo cresceu na igreja oriental no final do século 5° e na primeira metade do

6°. A situação mudou com o grande imperador Justiniano (527-565), que convocou um

novo concílio para aclarar definitivamente qual era a interpretação correta de Calcedônia.

Ele confiou os preparativos do concílio ao teólogo Leôncio de Bizâncio (c.485-543), cujas

obras principais foram Contra nestorianos e eutiquianos, Trinta capítulos contra Severo e

Respostas aos argumentos de Severo. No 2° Concílio de Constantinopla (553), a maneira

pela qual Leôncio interpretou Calcedônia foi explicada a todos os bispos, que tiveram de

reafirmar a Definição de Calcedônia. O objetivo desse concílio foi aplacar os monofisitas

alexandrinos moderados para reafirmar a ortodoxia de Calcedônia. Constantinopla II

condenou o herói de Antioquia, Teodoro de Mopsuéstia, e também a teologia de Orígenes.

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A grande contribuição inovadora de Leôncio foi o princípio da enipostasia da

natureza humana de Cristo no Verbo divino. Ele argumentou que a natureza humana do

Salvador não era impessoal (como queriam os monofisitas alexandrinos), nem

propriamente pessoal (como queriam os diofisitas antioquinos), mas enipostática, isto é,

“personalizada na pessoa de outrem”. No seu entender, Jesus Cristo é o Verbo, o Filho de

Deus, com uma natureza humana e a sua própria natureza divina, sendo ele a “pessoa” das

duas naturezas.

Muitos cristãos atuais ficam perplexos com todas essas formulações, que parecem

tão abstratas, artificiais e especulativas. Por que não ficar somente com as afirmações das

Escrituras sobre a pessoa de Cristo, perguntam eles. Porém, é necessário entender que esses

debates foram ocasionados pelas circunstâncias da época, quando a igreja procurava definir

corretamente a sua fé a respeito da pessoa do Salvador em meio a diferentes opiniões e

posições sobre esse assunto fundamental. Hoje essa questão é pacífica para a maioria dos

cristãos, mas essa não era a situação daquele período da história da igreja.

Informações adicionais

Textos: Bettenson, 96-101, 156-160.

Análises: Olson, 227-240; González, I:355-366; II:75-85, 93-95; McGrath, 423s; Lane,

I:80-83 (Concílio de Calcedônia), 89-91 (Concílio de Constantinopla II); Hägglund, 82-87;

Kelly, 249-258; Berkhof, 98-99; Tillich, 100-104; Noll, 71-88; EHTIC, I:305s. Autores

católicos: Altaner e Stuiber, 357-361 (Leão Magno), 504-506 (Leôncio de Bizâncio);

Hamman, 255-266 (Leão Magno); Padovese, 56-60.

17. Agostinho de Hipona

Na mesma época em que se desenrolavam no Oriente grego as controvérsias

cristológicas, viveu no Ocidente aquele que seria considerado o maior dos pais da igreja:

Agostinho. Em sua genialidade, produtividade e influência, ele é o equivalente latino de

Orígenes. Foi o último dos grandes escritores cristãos da antiguidade e o precursor da

teologia medieval, tendo também influenciado profundamente a teologia protestante do

século 16. Deu à teologia ocidental características que a destacaram da oriental e

contribuíram para o rompimento final das duas tradições. Introduziu no pensamento cristão

o conceito de “monergismo”, ou seja, que tanto na história como na salvação a atuação de

Deus é totalmente determinante, em contraste com a posição “sinergista” aceita até então,

com sua ênfase na cooperação das agências humana e divina. Essa posição de Agostinho

nunca foi plenamente aceita pela sua igreja e foi rejeitada pela igreja oriental.

Por causa da sua autobiografia, Confissões, a vida de Agostinho é a mais conhecida

dentre os pais da igreja. Ele nasceu em 354 em Tagaste, no norte da África, não longe da

grande cidade de Cartago (na moderna Tunísia). Recebeu o nome de Aurelius Augustinus.

Seu pai, Patrício, um funcionário público de classe média, era um pagão que só se

converteu pouco antes de morrer em 372. Sua mãe, Mônica, era uma cristã piedosa de forte

personalidade. O jovem estudou em sua cidade natal e depois em Madaura e Cartago.

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Destacou-se na retórica latina, mas não conseguiu dominar a língua grega. Embora

fosse um catecúmeno desde a infância, tinha paixão pelo teatro e somente disciplinou a sua

sexualidade através da união com uma concubina (372-385), que lhe deu um filho,

Adeodato (†c.390). Desiludido com a Bíblia e fascinado pela filosofia, voltou-se para o

maniqueísmo, uma seita gnóstica, e depois para o ceticismo. Tornou-se professor de

retórica em Tagaste e Cartago, e foi então para Roma (383) e Milão (384), sendo logo

seguido por sua mãe, interessada em seu progresso profissional e em seu retorno à igreja.

Em Milão, Agostinho recebeu a influência da filosofia neoplatônica, que o

convenceu da existência do ser transcendente imaterial e lhe deu uma nova compreensão do

problema do mal (corrupção ou ausência do bem). Impressionou-se com a eloqüência

erudita do grande bispo Ambrósio (c.339-397) e com sua pregação alegórica. Sua

peregrinação culminou com a célebre experiência do jardim em agosto de 386, narrada com

detalhes nas Confissões. Enquanto conversava com o amigo Alípio sobre a mensagem do

apóstolo Paulo, sentiu-se tomado de profunda emoção. Afastando-se, ouviu uma criança

cantar repetidamente tolle lege (“toma e lê”). Abrindo ao acaso a carta aos Romanos, leu a

passagem de 13:13-14, convertendo-se afinal. Abandonando a carreira pública, abraçou a

vida monástica e na páscoa de 387 foi batizado por Ambrósio. Ao retornar a Tagaste, após

a morte de Mônica em Óstia, começou a escrever contra o maniqueísmo e formou uma

comunidade contemplativa. Ao fazer uma visita a Hipona, hoje na Argélia, foi ordenado

sacerdote quase à força (391). Tornou-se bispo coadjutor em 395 e no ano seguinte, o bispo

de Hipona, cargo que exerceu até sua morte em 430. Sendo agora um líder da igreja e

defrontando-se com grandes desafios, a perspectiva de Agostinho transformou-se

decisivamente. Ele passou a ter uma visão mais radicalmente bíblica do ser humano e da

história, em contraste com o seu anterior humanismo otimista neoplatônico.

A teologia de Agostinho foi forjada e amadureceu no contexto de três grandes

controvérsias em que se envolveu, a começar da sua luta contra os maniqueístas. Estes eram

seguidores de um profeta persa, Mani (c.216-276), que foi martirizado pelos romanos.

Criam em duas forças eternas e iguais, o bem e o mal, em luta perpétua. Como os

gnósticos, atribuíam o mal à matéria, criada pelo princípio do mal, e o bem ao espírito,

criado pelo Deus bom. A alma ou espírito do homem era uma centelha do poder benigno

que havia sido roubada pelas forças malignas e aprisionada na matéria. Quando jovem,

Agostinho se sentira atraído por essa filosofia religiosa, que parecia explicar melhor que o

cristianismo algumas das questões mais importantes da existência. Depois, decepcionou-se

com o movimento, principalmente após uma conversa com Fausto, seu filósofo mais

importante.

Em sua principal obra contra o maniqueísmo, Da natureza do bem (c. 405),

Agostinho argumentou que não é preciso postular duas forças iguais e opostas no universo

(dualismo) para explicar o mal. Este não é uma natureza ou substância, mas a corrupção da

natureza boa criada por Deus ou uma privatio boni (ausência do bem). Ele usou dois

argumentos: metafísico (toda natureza criada é inferior a Deus e passível de corrupção) e

moral (o mal moral decorre do mau uso do livre-arbítrio). Agostinho utilizou a filosofia (no

caso o neoplatonismo) contra o maniqueísmo, adaptando-a à fé cristã, algo que vinha sendo

feito desde a época de Clemente de Alexandria e Orígenes, por causa do entendimento de

que toda verdade é a verdade de Deus, venha de onde vier. Ao mesmo tempo, discordou do

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neoplatonismo quanto à natureza de Deus (pessoal x Uno impessoal) e à criação do mundo

(a partir do nada ou ex nihilo x eternidade da matéria). Demonstrou racionalmente, com a

ajuda da filosofia, a superioridade do cristianismo e forneceu padrões para o pensamento

cristão sobre temas como Deus, a criação, o pecado, o livre arbítrio e o mal. Empregou

argumentos já conhecidos, porém de forma nova e atraente.

A segunda grande controvérsia em que Agostinho se envolveu foi contra os

donatistas. Este cisma na igreja católica do norte da África, que resultou na formação de

uma igreja rival, havia surgido após a última perseguição contra os cristãos, no início do 4°

século (303-311). Os líderes iniciais do movimento, entre os quais estava um certo Donato,

afirmavam que os bispos que haviam cooperado com os perseguidores romanos não eram

bispos legítimos e que os homens que eles haviam ordenado não eram sacerdotes cristãos.

Os donatistas eram herdeiros da tradição rigorista ou moralista de O Pastor de Hermas e de

Tertuliano, e agora, na época de Agostinho, argumentavam que os bispos e sacerdotes

católicos eram corruptos ou heréticos, e por isso os sacramentos que ministravam não eram

válidos. Nessas alegações, apelavam inclusive aos escritos de Cipriano. Na luta de

Agostinho contra os donatistas, duas questões se tornaram salientes: a natureza da igreja e a

validade dos sacramentos.

A ênfase principal dos donatistas era a pureza da igreja: esta era considerada a

congregação dos santos, tanto na terra como no céu, sendo sempre um pequeno

remanescente fiel. Rejeitando essa eclesiologia, Agostinho argumentou que os donatistas é

que eram impuros, por destruírem a unidade da igreja e caírem no pecado do cisma. Para

ele, a igreja inclui todos os tipos de pessoas, contendo em si tanto o bem como o mal (o

trigo e o joio) até a separação definitiva no último dia. Quanto aos sacramentos, ele insistiu

que o batismo e a Eucaristia transmitem a graça de Deus ex opere operato, ou seja, “em

virtude do próprio ato”, independentemente da condição moral e espiritual do oficiante. Os

sacramentos provêm de Cristo e o seu poder e eficácia baseiam-se na santidade de Cristo,

que não pode ser corrompida por ministros indignos “assim como a luz do sol não é

corrompida ao brilhar através de um esgoto”. Portanto, um sacramento é válido mesmo

quando ministrado por um sacerdote imoral ou herético, contanto que tenha uma ordenação

válida e esteja em comunhão com a igreja. Ele é mero instrumento da graça de Cristo.

Sem dúvida, a controvérsia mais importante na qual se envolveu Agostinho, e

aquela que trouxe conseqüências mais profundas para sua teologia, foi a que manteve

contra o pelagianismo. Pelágio era um monge britânico nascido em meados do século 4°.

Por volta de 405 ele foi para Roma e depois seguiu para o norte de África, mas não chegou

a se encontrar com Agostinho. Foi então para a Palestina e escreveu dois livros sobre o

pecado, o livre-arbítrio e a graça: Da natureza e Do livre-arbítrio. Embora criticado

fortemente por Agostinho e seu amigo Jerônimo (†420), comentarista bíblico e tradutor da

Vulgata Latina, ele foi inocentado por um sínodo na Palestina em 415. Todavia, foi

condenado como herege pelo bispo de Roma (417-418) e pelo Concílio de Éfeso (431). Ele

era um cristão moralista que achava que a crença numa predisposição inata para o pecado

era um desestímulo para que os cristãos vivessem vidas virtuosas.

Pelágio foi acusado de três heresias. Primeiro, negou o pecado original no sentido

de culpa herdada, no que era acompanhado por muitos cristãos orientais. Dizia que as

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pessoas pecam porque nascem num mundo corrompido e são influenciadas pelos maus

exemplos ao seu redor, mas que elas não têm uma tendência natural para pecar. Se pecam é

porque decidem fazê-lo deliberadamente. Em segundo lugar, ele negou que a graça

sobrenatural de Deus seja essencial para a salvação. Tudo de que os cristãos precisam é a

iluminação dada pela Palavra de Deus e por sua própria consciência. Finalmente, afirmou a

possibilidade, pelo menos teórica, de se viver uma vida sem pecado mediante o uso correto

do livre arbítrio. Todo ser humano se encontra na situação de Adão antes da queda,

podendo optar por viver em perfeita obediência à lei de Deus.

Reagindo aos ensinos de Pelágio, Agostinho desenvolveu a sua própria soteriologia,

que parte de duas convicções centrais: a total corrupção dos seres humanos após a queda e a

absoluta soberania de Deus. Suas principais obras antipelagianas foram: Do Espírito e da

letra (412), Da natureza e da graça (415), Da graça de Cristo e do pecado original (418),

Da graça e do livre arbítrio (427) e Da predestinação dos santos (429). Ele também tratou

dessas questões em outras obras, tais como o Enchiridion (421) e A cidade de Deus (c. 413-

427).

Apelando a ensinos do apóstolo Paulo, como Romanos 5.12-21, Agostinho afirmou

que todos os seres humanos, inclusive os filhos dos cristãos, nascem culpados e totalmente

corrompidos por causa do pecado de Adão e da natureza pecaminosa herdada dele, estando

sujeitos à condenação eterna. Eles fazem parte de uma “massa de perdição”. Essa situação

só é desfeita pelo batismo (o sacramento da regeneração), pelo arrependimento e pela graça

sacramental. A vida cristã virtuosa é inteiramente uma obra da graça de Deus e de modo

algum um produto do esforço humano ou do livre-arbítrio, sem a graça capacitadora. Por

causa da corrupção herdada, o ser humano não tem liberdade para não pecar (non posse non

peccare). Para Agostinho, o livre-arbítrio era simplesmente fazer o que se deseja fazer, agir

de acordo com a própria natureza, não incluindo a capacidade da escolha contrária, como

era sustentado por Pelágio e seus seguidores. Assim, as pessoas são livres para pecar, mas

não para não pecar: pecar é tudo o que elas querem fazer sem a graça interveniente de

Deus.

Portanto, a graça soberana de Deus é absolutamente necessária para qualquer

decisão ou ação positiva do ser humano caído. As criaturas humanas estão de tal modo

corrompidas que, se Deus não lhes concedesse o dom da fé, nem sequer se voltariam para

ele. Se fosse possível alcançar a retidão somente pela natureza e pelo livre-arbítrio, sem a

graça sobrenatural, Cristo teria morrido em vão. Deus determina ou predestina de modo

soberano tudo o que acontece. Em sua última obra, Da predestinação dos santos,

Agostinho afirmou que Deus escolhe alguns do meio da massa humana de perdição para

receberem a dádiva da fé, e deixa os outros em sua merecida perdição. É aquilo que mais

tarde seria denominado “eleição incondicional” e “graça irresistível”. Agostinho não

explicou satisfatoriamente certas questões difíceis levantas pela sua soteriologia (Deus é o

autor do mal? Como conciliar a soberania de Deus e a responsabilidade humana? Por que

Deus não salva a todos?), deixando-as na esfera dos mistérios. Para ele, a verdade

fundamental é o fato de que Deus é a causa suprema de todas as coisas e não há nada no

universo que esteja fora do seu controle ou que possa frustrar a sua vontade.

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Além destes, o bispo de Hipona escreveu sobre muitos outros temas teológicos,

como um valioso tratado sobre a Trindade (De Trinitate), no qual deu uma contribuição

inovadora ao introduzir o “modelo psicológico”. A unidade de Deus é comparada com a

unidade do ser humano e a Trindade é equiparada a três aspectos da personalidade humana:

a memória, o entendimento e a vontade. Sua obra-prima foi A cidade de Deus, que

começou com uma apologia contra alegações de que o cristianismo em última análise fora

responsável pelo saque de Roma pelos visigodos em 410. Tornou-se uma grande

interpretação da história romana e cristã, analisada teológica e escatologicamente, através

dos complexos destinos terrenais de duas “cidades” criadas por amores conflitantes.

Segundo ele, o reino de Deus não se identifica com nenhuma civilização humana e não

seria afetado pelo declínio do Império Romano. Agostinho morreu quando a África romana

sucumbia diante dos vândalos que cercavam Hipona. Uma de suas últimas obras foi

Retractationes ou Revisões (426-27), nas quais arrolou seus escritos, corrigindo-se e

defendendo-se em alguns pontos. Ele é um dos quatro doutores da igreja latina.

Informações adicionais

Textos: Coleção Patrística (vários volumes); Gomes, 332-367; Bettenson, 102-111.

Análises: Olson, 259-281; González, II:15-54; McGrath, 46s, 345s, 386-388, 506-514, 530-

532, 545-547, 581s, 626s; Lane, I:63-71; Hägglund, 95-118; Küng, 69-96; Kelly, 205-210,

273-280, 296-300, 312-316; Berkhof, 119-126; Tillich, 117-144; EHTIC, I:32-34. Autores

católicos: Altaner e Stuiber, 412-446; Hamman, 225-244; Moreschini e Norelli, II/2, 13-68.

18. A Igreja Católica Romana

Embora a Igreja Romana afirme ser a mesma igreja que surgiu no período

apostólico, retratada no Novo Testamento, a história do cristianismo mostra que, ao longo

dos séculos, ela adquiriu feições que a distinguiram tanto da igreja primitiva quanto da

igreja grega ou oriental. Contribuíram para esse fato a controvérsia semipelagiana e o

pontificado de Gregório Magno, no século 6°. Até Agostinho, a igreja ainda não havia

definido claramente alguns aspectos da sua soteriologia, principalmente a relação entre

graça e livre arbítrio. O pensamento do bispo africano, que foi tão influente em tantos

aspectos, não encontrou plena acolhida nessa área crucial. A igreja católica aceitou alguns

aspectos do agostinismo e rejeitou outros, adotando uma posição intermediária e nem

sempre consistente a respeito do assunto. Ela condenou a posição de Pelágio, mas não

decidiu a questão em favor de Agostinho.

Ainda durante a vida de Agostinho surgiu um partido que procurou unir elementos

das duas posições, ou seja, uma doutrina da salvação que fizesse justiça tanto à soberania

de Deus quanto à livre decisão e atuação humana. Os teólogos conhecidos como

semipelagianos eram liderados por João Cassiano (c. 360-c.435), um monge de Marselha,

na França. Após conhecer o monasticismo na Palestina e no Egito, ele fundou o seu próprio

mosteiro em Marselha, sendo considerado o primeiro organizador do monasticismo

ocidental. Nesse mosteiro surgiu um foco de oposição à soteriologia monergística e à

predestinação defendidas por Agostinho. Cassiano e seus colegas Vicente de Lérins e

Fausto de Riez procuraram fazer distinções entre o sinergismo, que vinha sendo a posição

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mais aceita pela igreja, e o pelagianismo, condenado como herético, a fim de apresentar

uma alternativa aceitável ao monergismo agostiniano. Segundo a igreja, Cassiano fracassou

nesse intento.

O problema dos semipelagianos foi ensinar que a natureza humana, de si mesma,

podia dar o primeiro passo em direção a Deus (initium fidei ou fé inicial). Em outros

termos, o ser humano é salvo somente pela graça de Deus, mas esse processo começa com a

iniciativa de uma boa disposição do coração humano para com Deus. A declaração mais

famosa e controvertida de Cassiano foi aquela em que, na sua obra Conferências, ao referir-

se ao princípio da boa vontade para com Deus, ele disse que Deus aumenta “aquilo que ele

mesmo implantou ou que percebeu ter nascido de nossos próprios esforços”. Seus

adversários agostinianos, como Próspero de Aquitânia, alegaram com razão que isso não

era muito diferente do pelagianismo. Em suma, o semipelagianismo é a idéia de que a

natureza e a iniciativa humanas, por si sós, sem a graça sobrenatural auxiliadora, são

capazes de provocar a resposta de Deus no sentido de conceder a graça salvífica.

Essa controvérsia foi encerrada pelo Sínodo de Orange, em 529, que condenou os

principais aspectos da teoria semipelagiana, afirmou o conceito agostiniano da necessidade

e total suficiência da graça e condenou a crença na predestinação para o mal ou para a

perdição. O sínodo insistiu que todo ato de retidão dos seres humanos é resultado da graça

divina que neles atua. No entanto, deixou em aberto a questão da livre cooperação humana

com a graça. Com isso a igreja adotou na prática um tipo de sinergismo em que o livre-

arbítrio precisa cooperar com a graça para que a salvação se complete. Apesar de

oficialmente condenado, o semipelagianismo tornou-se a teologia popular mais aceita por

grande parte do catolicismo medieval, com sua ênfase em obras meritórias e no sistema

penitencial, que remonta ao século 3° com Cipriano.

Outro fator que contribuiu para moldar a tradição católica romana no início da Idade

Média foi o trabalho do papa Gregório I (590-604), considerado um dos quatro doutores da

igreja, ao lado de Ambrósio, Jerônimo e Agostinho. Muitos historiadores o consideram o

último dos pais da igreja e o primeiro papa e teólogo medieval. Ele nasceu por volta de 540

em uma família aristocrática romana e abraçou ainda jovem o monasticismo. Suas grandes

qualificações intelectuais, pastorais e administrativas o levaram ao papado contra a sua

vontade. Sua lista de realizações é notável: promoveu a absoluta primazia da sé romana

sobre as demais, proporcionou liderança e proteção à população no vácuo deixado pela

desintegração do império ocidental, forneceu aos bispos um conjunto de diretrizes resumido

em sua obra Regra pastoral, empreendeu grande esforço missionário na Grã-Bretanha e

entre as tribos bárbaras arianas, patrocinou o monasticismo, fundando comunidades

monásticas e oficializando o movimento de Bento de Núrsia (480-c.550) e sua Regra

beneditina. Em especial, aprovou e promoveu crenças e práticas populares relativas à

veneração dos santos, penitências e dias festivos. Por fim, criou um conceito híbrido de

salvação unindo o monergismo de Agostinho e o sinergismo de João Cassiano, com

grandes conseqüências para a teologia católica romana.

Gregório foi grande admirador de Agostinho, mas ironicamente o leu e interpretou

através de João Cassiano. Seu pensamento influenciou a maneira como Agostinho foi

entendido na Idade Média. Dependendo da perspectiva, ele pode ser considerado semi-

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agostiniano ou semipelagiano. Sua soteriologia é ambígua e repleta de tensões, ora

enfatizando a plena suficiência da graça, ora a absoluta necessidade de cooperação com a

graça pelo esforço humano. Na prática, insistiu mais no segundo aspecto. Para merecer a

graça e tornar-se um eleito, o indivíduo deve “ser crucificado com Cristo”, ou seja, buscar o

arrependimento máximo, o que inclui sacrifícios penitenciais, renúncia aos prazeres físicos,

participação ativa dos sacramentos e boas obras de amor. Quem quiser realmente agradar a

Deus, garantir a eleição divina e escapar ao purgatório, deve viver como um monge, um

penitente perfeito. Sua abordagem legalista também negou qualquer certeza ou garantia de

salvação para a maioria dos cristãos medievais. A teologia protestante de Martinho Lutero e

outros reformadores foi em grande parte uma reação contra a doutrina da salvação ensinada

por Gregório.

Informações adicionais

Textos: Gomes, 419-428 (Gregório Magno); Bettenson, 111-117.

Análises: Olson, 283-294; González, II:55-74; Lane, I:123-126 (Gregório Magno);

Hägglund, 119-125; Berkhof, 127-128; EHTIC, I:32-34. Autores católicos: Altaner e

Stuiber, 449-450, 463-469; Moreschini e Norelli, II/2, 94-100, 180-189.

19. A Igreja Ortodoxa Grega

Ao longo dos primeiros séculos da era cristã, vários fatores contribuíram para dar ao

cristianismo da parte oriental do Império Romano, a igreja grega, características próprias

que o distinguiram do cristianismo ocidental, latino. Em primeiro lugar, havia a própria

diferença geográfica, cultural e lingüística. Além disso, as duas partes da chamada Grande

Igreja tinham mentalidades diversas e desenvolveram suas próprias tradições teológicas,

com interesses, controvérsias e personagens específicos. Enquanto que o Ocidente

experimentou o impacto de Agostinho, a teologia grega também foi marcada de maneira

duradoura e profunda por uma mente brilhante – Orígenes –, com seu conceito fortemente

sinergístico da salvação, sua ênfase no caráter inefável e imutável de Deus e sua noção de

encarnação salvífica.

A teologia latina sempre foi mais objetiva, prática e racional. Por exemplo, ela se

apoiava em autoridades documentadas, via a teologia como uma espécie de filosofia e

considerava a salvação em termos jurídicos. A teologia grega era mais mística e

especulativa. Enquanto os latinos encaram o culto como um produto da reflexão sobre a

Escritura e a teologia, a abordagem grega é oposta: a sua teologia é fruto da tradição de

adoração (lex orandi, lex credendi – “a lei do culto é a lei da crença”). Para os cristãos

ortodoxos, a tradição governa a igreja e a vida do cristão. Ela inclui as Escrituras, mas seu

aspecto mais importante é a liturgia. Para a igreja oriental, a tradição se completou em 787,

no sétimo e último concílio de Nicéia II. Por isso ela às vezes é denominada a Igreja dos

Sete Concílios. Essa igreja acredita que o desenvolvimento do seu culto até Nicéia II,

especialmente no reinado de Justiniano, foi divinamente inspirado. Em suma, a teologia

ortodoxa oriental é a reflexão sobre a tradição, que inclui a adoração e as Escrituras. Ela é

mística, reconhece os mistérios e os paradoxos, e resiste à sistematização racional. Três

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notáveis teólogos e duas controvérsias foram fundamentais para moldar a ortodoxia oriental

como um ramo distinto da teologia cristã.

Por causa da importância atribuída à adoração, João Crisóstomo (c. 349-407) é um

dos pais da igreja mais reverenciados pela igreja ortodoxa. Ele nasceu em Antioquia e

abraçou a vida monástica. Destacou-se como pregador e expositor bíblico na melhor

tradição exegética da sua cidade, tendo deixado numerosos sermões e comentários da

Bíblia. Em 397, foi nomeado bispo de Constantinopla pelo imperador Teodósio I.

Empenhou-se em reformar a vida do clero local, começou a pregar contra a predominância

do imperador sobre a igreja (cesaropapismo) e condenou as desigualdades e injustiças

sociais da cidade, tornando-se um herói da população oprimida. Em 401, teve a ousadia de

comparar a imperatriz Eudóxia à rainha Jezabel. Impelido por motivações políticas, o bispo

Epifânio de Chipre começou a acusá-lo injustamente de ser um “herege origenista”. Em

setembro de 403, João foi condenado e deposto por órgãos eclesiásticos, sendo a seguir

exilado. Após uma série de retornos temporários, morreu em uma marcha forçada para um

exílio mais remoto (407). Anos mais tarde, seus despojos foram sepultados com honras em

Constantinopla e ele passou a ser conhecido como Crisóstomo – “boca de ouro”. Embora

tenha dado pequena contribuição à teologia, ele é considerado o paradigma de um teólogo,

pois, para a ortodoxia oriental, o bom teólogo é aquele que ora e prega bem.

Outro grande teólogo da igreja grega é Máximo, o Confessor (c. 580-662). Natural

de Constantinopla, ele seguiu a carreira pública e se tornou secretário pessoal do imperador

Heráclio. Pouco depois, abraçou a vida monástica. Numa visita a Cartago em 632, tomou

conhecimento do “monotelismo”, contra o qual lutou até a morte. Tratava-se da idéia de

que, embora Jesus Cristo fosse uma pessoa com duas naturezas completas, ele tinha uma

única vontade – a divina. Essa idéia foi uma proposta para reunificar a igreja, reconciliando

os cristãos ortodoxos (calcedonianos) e os monofisitas, insatisfeitos com a Definição de

Calcedônia. Máximo combateu o monotelismo em favor do diofisismo (duas vontades

naturais em Cristo) por entender que ele significava o retorno ao monofisismo, com sua

negação da verdadeira humanidade de Cristo. Isso colocava em risco tanto a cristologia

quanto a soteriologia ortodoxa. Numa visita a Roma, onde foi buscar o apoio do papa

Martinho I, Máximo foi preso por tropas bizantinas. Levado a Constantinopla em 655, foi

condenado por repudiar a autoridade do imperador sobre a igreja e a teologia. Após

recusar-se a negar suas opiniões duotelitas e fazer um acordo com os monofisitas, foi

torturado e exilado na região do Mar Negro, onde morreu. Mais tarde foi reconhecido como

grande defensor da fé de Calcedônia e recebeu o título honorífico de “o Confessor”. O

monotelismo foi oficialmente condenado no 3° Concílio de Constantinopla, em 681, o

sexto concílio ecumênico. Com isso, os monofisitas se separaram definitivamente da igreja

oriental.

Máximo também é conhecido por ter feito uma grande síntese da teologia oriental

que se tornou padrão para o ensino e a interpretação da fé ortodoxa, sendo considerado o

verdadeiro pai da teologia bizantina. Seu pensamento, expresso em cartas, discursos,

rascunhos e debates, é bastante complexo e por vezes enigmático. Sua ontologia ou visão

da realidade tem como ponto focal a encarnação, tida como o ápice da criação e o propósito

supremo de tudo. Na sua opinião, a encarnação teria ocorrido mesmo que os seres humanos

não tivessem pecado. Deus criou o mundo como uma expressão de si mesmo e decidiu

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unir-se a ele por meio do Logos, o Filho. O pecado humano impediu a unificação de todas

as coisas com Deus pelo Logos, visto que a raça humana ocuparia o centro dessa unidade

cósmica-divina habitada pelo Logos. A encarnação do Logos, que era o propósito natural

da criação, tornou-se, em vez disso, uma operação de salvamento. Todavia, ela também

retomou o projeto original de Deus de unir-se a toda a criação.

A tarefa da raça humana nesse processo é harmonizar todos os aspectos da realidade

para que a criação, como um todo, seja um veículo digno da presença de Deus. Portanto, a

encarnação universal depende da cooperação humana, mediante sua sujeição voluntária à

vontade de Deus. Para isso é necessária a encarnação, que dinamiza a criatura humana para

atuar com Deus na deificação cósmica. É o que Máximo designa com o termo “teândrico”:

Deus e o homem interagindo para o bem de toda a criação. Por causa da encarnação, tudo

tem uma dimensão teândrica. Para que ela funcione, o ser humano deve cooperar

livremente com Deus mediante o uso do livre-arbítrio. Essa visão teândrica foi a base da

total oposição de Máximo ao monotelismo. Se Cristo não tivesse uma vontade humana, a

sua humanidade não poderia cooperar livremente com o chamado do Logos para que se

consumasse o plano divino da criação e da redenção. Essa vontade humana sempre optou

livremente por cooperar com o Logos, porque, para Máximo, ao contrário dos seres

humanos, a natureza humana de Jesus Cristo não tinha livre-arbítrio no sentido de livre

escolha, ou a capacidade da escolha contrária, mas apenas a “liberdade de fazer o que se

deseja” (Agostinho).

O episódio que encerrou o período formativo da teologia ortodoxa foi a controvérsia

iconoclasta do século 8°, que teve como personagem principal João Damasceno, tido como

o último dos pais da igreja oriental. Na tradição bizantina, os ícones são quadros ou

pinturas (não estátuas) de Cristo e dos santos que desempenham um importante papel no

culto e na vida devocional. Em teoria, não são adorados, mas visam ajudar os fiéis nas suas

orações, como pontos de contato com Deus. No século 8°, alguns líderes civis e religiosos

ficaram preocupados com o seu uso crescente e o imperador Leão III ordenou a destruição

dos ícones (725). Houve violentos conflitos durante décadas, envolvendo principalmente

monges, com mortes e confusão geral. Os iconoclastas (destruidores de ícones) viam nos

ícones de Cristo uma forma de idolatria e uma deturpação do relacionamento das duas

naturezas. Também os consideravam obstáculos à conversão de muçulmanos e judeus.

João Damasceno (c.660-c.750) notabilizou-se entre outras coisas por fornecer a

justificativa teológica para o uso das imagens sagradas no culto. Ele nasceu em Damasco e

viveu muitos anos no mosteiro de São Saba, perto de Jerusalém. Nos seus Discursos contra

os iconoclastas (726-730), argumentou que a encarnação do Verbo produziu uma mudança

radical no relacionamento de Deus com o mundo físico, legitimando o uso da matéria para

representar o Ser divino. Ele também fez uma distinção importante entre adoração – latria

(somente a Deus) e veneração ou reverência – proskynesis (aos ícones como canais

sacramentais da energia divina). Graças à sua influência, o Segundo Concílio de Nicéia

(787), o sétimo e último concílio ecumênico da igreja oriental, condenou os iconoclastas.

João de Damasco também produziu a primeira grande síntese da teologia bizantina,

Exposição da fé ortodoxa, que salienta conceitos essenciais como a encarnação salvífica, a

deificação da humanidade em Cristo e o caráter inefável e inescrutável de Deus.

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Informações adicionais

Textos: Bettenson, 161-163.

Análises: Olson, 295-308; González, II:86-102, 187-195; Lane, I:59-61 (João Crisóstomo),

84-86 (A tradição oriental), 91-99 (Máximo, o Confessor; Concílio de Constantinopla III;

João Damasceno; Concílio de Nicéia II); Hägglund, 87-88; EHTIC, I:32-34. Autores

católicos: Altaner e Stuiber, 324-332 (João Crisóstomo), 516-518 (Máximo, o Confessor),

520-526 (João Damasceno); Hamman, 191-200; Moreschini e Norelli, II/1, 189-207.

20. O cisma católico-ortodoxo

Além das distinções apontadas no início da seção anterior, outros fatores

contribuíram para o progressivo afastamento dos cristãos gregos e latinos, entre eles suas

diferentes realidades políticas. Enquanto a igreja oriental se formou à sombra do duradouro

Império Bizantino, a igreja ocidental rapidamente se viu livre do império ocidental e mais

tarde contribuiu para o surgimento do Sacro Império Romano, com Carlos Magno (800).

Havia também diferenças quanto a práticas eclesiásticas. Entre os ortodoxos o celibato era

obrigatório somente para os monges, dentre os quais eram tradicionalmente escolhidos os

bispos; os sacerdotes paroquiais podiam se casar antes de serem ordenados. No catolicismo

romano, o celibato se tornou obrigatório para todos os religiosos. Também havia distinções

quanto ao estilo de culto, sacramentos e cânon bíblico. Todavia, o fator fundamental do

cisma foi o distanciamento intelectual entre os dois grupos: cada um valorizava somente

seus próprios pensadores e tinha sua própria perspectiva em áreas como a soteriologia,

sendo que a igreja grega dava mais ênfase ao livre arbítrio e ao sinergismo do que a igreja

latina.

Significativamente, as duas partes atribuem o cisma definitivo, no qual uma

excomungou a outra em 1054, a duas divergências especiais: a autoridade papal e a

cláusula filioque. Desde uma época remota, a igreja ocidental insistiu no primado ou

primazia de Pedro, isto é, Cristo teria confiado a Pedro o governo de toda a igreja (Mt

16.18-19) e a sua autoridade teria sido transmitida aos seus sucessores, os bispos de Roma.

Os bispos ocidentais resistiram ao poder imperial sobre a igreja e a teologia e alegaram que

no Oriente havia cesaropapismo, isto é, uma igreja governada pelos césares. Para os

cristãos bizantinos, os bispos de Roma estavam tentando dominar de modo ilegítimo as

outras grandes sés da cristandade, impondo uma “monarquia papal”. Desde Orígenes, os

orientais interpretaram a pedra sobre a qual Jesus edificou a igreja como a fé de Pedro e não

a sua pessoa. Eles consideravam todos os bispos verdadeiros sucessores de Pedro e os

grandes patriarcados – Roma, Constantinopla, Antioquia, Alexandria e Jerusalém – iguais

em dignidade e autoridade. Essa diferença básica quanto à autoridade eclesiástica tornava

difícil resolver até mesmo questões menores como o pão utilizado na eucaristia (asmo na

igreja ocidental e levedado na oriental). Um ardente crítico das pretensões papais foi Fócio

(c.810-c.893), um patriarca de Constantinopla.

Outro pomo de discórdia foi, e continua sendo, uma palavra – filioque (“e do

Filho”). Esse termo foi acrescentado pela igreja latina ao Credo Niceno de 381 (“Creio no

Espírito Santo... que procede do Pai e do Filho”) no Sínodo de Toledo, na Espanha, em

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589. Os bizantinos tomaram conhecimento dessa alteração em meados do século 9° e

protestaram com dois argumentos: o Ocidente não tinha o direito de alterar unilateralmente

o credo básico da cristandade e a palavra acrescentada revelava um conceito incorreto da

Trindade. A teologia trinitária ocidental, fundamentada em Agostinho, dava maior ênfase à

unidade da substância divina, da qual as três pessoas compartilham por igual. Em sua obra

De Trinitate, ele afirmou que o Espírito Santo é o princípio unificante na divindade, o

vínculo de amor entre o Pai e o Filho. Assim, pode-se dizer que o Espírito procede de

ambos e é enviado ao mundo por ambos. Todavia, o pensamento trinitário grego, apoiado

em Irineu, Orígenes e os capadócios, enfatizava a monarquia do Pai, no qual tanto o Filho

como o Espírito Santo encontram eternamente sua origem, princípio e causa. Os orientais

acusavam os latinos de subverteram a ordem tradicional da Trindade, não tratarem com

justiça a distinção das pessoas e subordinarem o Espírito. Por sua vez, os romanos

acusavam o Oriente de subordinar tanto o Espírito Santo quanto o Filho ao Pai. Alguns

teólogos modernos sugerem que o problema estava em não se fazer uma adequada distinção

entre a Trindade ontológica ou imanente (os relacionamentos internos das pessoas) e a

Trindade econômica (o relacionamento das pessoas com o mundo). O fato é que cada parte

da igreja considerou a outra não ortodoxa nessa questão. Em 16 de julho de 1054, o cardeal

Humberto, representante do papa Leão IX, colocou no altar da Igreja de Santa Sofia a

sentença de excomunhão do patriarca Miguel Cerulário e seus seguidores. Este convocou

um concílio que condenou o papa e o cristianismo ocidental como herético. Estava selado o

cisma, que já dura quase um milênio.

Informações adicionais

Textos: Bettenson, 163-167.

Análises: Olson, 309-315; González, II:122-125; McGrath, 395-398; EHTIC, I:32-34;

Noll, 135-155.

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50

PARTE II

PERÍODO MEDIEVAL

Durante vários séculos depois de Gregório Magno houve pouca criatividade

teológica no Ocidente. A situação começou a mudar após o ano 1000, no período central da

Idade Média, quando ocorreu um grande florescimento da reflexão teológica e filosófica,

além de um forte dinamismo em outras áreas. Essa foi a época em que começaram a ser

construídas as grandiosas catedrais góticas, foram criadas novas ordens religiosas voltadas

para o estudo e o ensino e surgiram as primeiras universidades. Até o século 11 a vida

intelectual e acadêmica concentrava-se nas escolas anexas aos grandes mosteiros e

catedrais. Surgiram então as associações de professores e estudantes leigos que resultaram

nas primeiras universidades, tais como as de Paris, Bolonha e Oxford.

1. O escolasticismo

Nas escolas eclesiásticas e nas universidades surgiu um novo tipo de teologia,

denominado escolasticismo, uma abordagem que dominou progressivamente a reflexão

teológica na Europa desde o século 12 até o século 15. Sua preocupação principal foi

demonstrar o caráter racional e coerente da teologia cristã, porém em um nível muito mais

profundo do que já havia ocorrido antes, no período patrístico. Os teólogos e filósofos

escolásticos revelaram grande otimismo quanto ao potencial da razão humana para

esclarecer as questões mais importantes da existência. Enquanto que alguns colocavam o

intelecto no centro de toda a reflexão teológica, muitos mantiveram seu compromisso

básico com a fé, a revelação e a tradição da igreja. A teologia passou a ser considerada a

“rainha das ciências” nos currículos das escolas e universidades.

Vale destacar algumas características salientes do escolasticismo medieval como um

todo. Em primeiro lugar, verificou-se um busca intensa do conhecimento racional das

verdades da fé, conforme se observa nos famosos lemas fides quaerens intellectum (“a fé

em busca de compreensão”) e credo ut intelligam (“creio para que possa entender”). Em

segundo lugar, houve o desejo de mostrar a harmonia existente entre a revelação cristã e as

filosofias não-cristãs, inicialmente o platonismo e depois o aristotelismo. Esta última

corrente se tornou preponderante na Europa depois que as obras de Aristóteles foram

redescobertas e traduzidas para o latim no século 13. Por último, ocorreu o uso de um

método específico de reflexão e debate por meio da lógica e da dialética (questionamento,

análise detalhada e solução). O objetivo era construir uma “catedral do intelecto”, um

sistema abrangente e coerente de pensamento sobre toda a realidade, dentro de uma

cosmovisão cristã.

Apesar desses elementos comuns, o escolasticismo foi um movimento diversificado

em vários aspectos. Alguns pensadores adotaram perspectivas platônicas e agostinianas,

abraçando uma visão negativa do mundo físico e da percepção sensorial; outros, como

Tomás de Aquino, tiveram uma atitude aposta, por influência da recém-descoberta filosofia

de Aristóteles. Outra área de divergência foi o entendimento dos “universais”, as

proposições ou características que todos os indivíduos de uma categoria têm em comum,

mas que transcendem os casos individuais, tais como “brancura”, “humanidade” e “justiça”.

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Essa questão tinha sido levantada pela primeira vez na Idade Média pelo grande

erudito cristão italiano Boécio (†525), um divulgador da filosofia grega no Ocidente. Os

platônicos entendiam que os conceitos universais têm existência real e concreta à parte dos

indivíduos (“realismo”); outros entendiam que eles eram simples nomes ou conceitos

(“nominalismo”). Essa questão era importante para os escolásticos porque indagava se os

valores cristãos eram objetivos ou subjetivos, relativos ou absolutos. Por fim, havia também

os críticos da escolástica, como os místicos e os humanistas, que a consideravam

excessivamente árida, intelectual e especulativa.

Os primeiros escolásticos ou os precursores do escolasticismo eram homens que

estavam dentro da antiga tradição platônica-agostiniana. Foram eles Anselmo de Cantuária,

Pedro Abelardo, Pedro Lombardo e Bernardo de Claraval. Destes, os dois primeiros foram

sem dúvida os mais brilhantes. Com eles começou uma nova etapa na história da teologia,

que iria culminar com a figura ímpar de Tomás de Aquino.

Textos:

Análises: Olson, 317-321; González, II: 223-231; Hägglund, 139-140; Tillich, 145-154,

154-166; McGrath, 70-74; Berkhof, 190-194.

2. Anselmo de Cantuária

Anselmo (1033-1109) nasceu em Aosta, no noroeste da Itália. Profundamente

religioso desde a infância, fez os primeiros estudos com monges beneditinos. Aos 27 anos

foi estudar no famoso mosteiro de Bec, na Normandia (norte da França), onde foi aluno de

Lanfranco, futuro arcebispo de Cantuária (1070-1089). Suas qualificações intelectuais e

administrativas o levaram a contragosto ao cargo de abade desse mosteiro em 1078, quando

da morte do seu fundador, Herluin. Anselmo transformou Bec num importante centro de

erudição monástica. Iniciou sua carreira de escritor com dois grandes livros de teologia

filosófica, Monologium (Monólogo, 1076) e Proslogium (Discurso, 1078), além de outras

obras importantes como a Epístola sobre a encarnação do Verbo. Em 1093, novamente

contra sua vontade, foi nomeado arcebispo de Cantuária, o principal cargo eclesiástico da

Inglaterra. Promoveu reformas na vida da igreja, lutando contra a simonia (comércio de

cargos eclesiásticos), nicolaísmo (casamento clerical) e as interferências dos governantes na

igreja. Por causa disso, foi exilado duas vezes (1097-1100 e 1103-1107). Nesse período,

escreveu o seu famoso estudo sobre a expiação, Cur Deus homo (Porque Deus se fez

homem) e outros textos significativos. Seu pensamento revela forte influência de

Agostinho.

A contribuição mais importante de Anselmo para a filosofia e a teologia é a sua

prova da existência de Deus conhecida como argumento ontológico. Partindo da afirmação

do autor sacro no Salmo 14: “Diz o insensato no seu coração: Não há Deus”, ele se propôs

a elaborar uma prova irrefutável da existência de Deus que não dependesse da fé na

revelação, mas somente de argumentos racionais. Esse intento o levou a escrever o

Monologium e o Proslogium, que constituem o primeiro tratado de “teologia natural” ou

estudo filosófico de Deus. Essas obras têm a forma de oração, na qual o autor se dirige a

Deus com perguntas, reflexões e louvor. Não expressam dúvida, falta de fé em Deus, mas o

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desejo de colocar a lógica a serviço da revelação para fortalecer a fé. Cada obra apresenta

uma versão distinta da explicação racional da existência de Deus. No Monologium, ele

argumenta à maneira platônica com base na existência de diferentes graus de bondade na

criação. Deve haver obrigatoriamente um ser supremo perfeito que é o padrão ou norma

suprema para avaliar as coisas individuais segundo o seu grau de bondade.

Não plenamente satisfeito com essa versão da prova da existência de Deus, ele

apresentou no Proslogium uma segunda versão que entendeu ser um argumento definitivo.

Essa prova depende totalmente de uma definição de Deus dada por Anselmo – “um ser tão

grande que não se pode conceber nada maior”. Ele argumentou que uma existência

unicamente na esfera mental é inferior a uma existência real. Portanto, o ser mais elevado

que se pode conceber deve existir tanto no intelecto quanto na realidade. Finalmente, ele se

propôs a demonstrar racionalmente os atributos desse Deus, o Bem Supremo: simples,

atemporal, imutável, impassível, sem limites, corpo, partes ou paixões. Ele atua, mas nunca

sofre uma ação. O objetivo maior de Anselmo foi mostrar como a lógica, fruto da mente

humana criada por Deus, aponta para o próprio Deus. Portanto, negar a existência de Deus

é irracional. Ele foi o primeiro teólogo que tentou articular uma exposição das convicções

cristãs baseada inteiramente no raciocínio lógico, sem apelar à revelação ou à fé.

Outra contribuição influente e duradoura de Anselmo foi uma nova teoria da

expiação, isto é, do significado da morte de Cristo na cruz. Naquela época, a explicação

mais aceita era a “teoria do resgate”, definida de forma mais clara pelo papa Gregório

Magno (c.600). A idéia era que, por causa do pecado, a humanidade ficou cativa de

Satanás. Deus então ofereceu Cristo a Satanás como resgate pelos seres humanos, mas o

diabo ignorava que não poderia manter Cristo no inferno. Na versão mais popular, Jesus

Cristo foi a “isca” que Deus colocou no “anzol” (a cruz) para enganar o diabo e livrar a

humanidade que ele mantinha cativa. Anselmo considerou essa teoria indigna de Deus por

colocá-lo quase no mesmo nível de Satanás.

Em Cur Deus homo, ele procurou explicar a expiação de um modo que justificasse

tanto a plena humanidade quanto a plena divindade de Cristo, sendo ao mesmo tempo

racional e consistente com a revelação. O livro, que tem a forma de um diálogo com seu

amigo Boso, propõe a “teoria da compensação”. Por causa da sua rebeldia e desobediência,

a humanidade contraiu uma grande dívida com Deus. Em razão da sua justiça, Deus exigiu

o pagamento de uma compensação, algo impossível para os seres humanos. Em sua

misericórdia, Deus ofereceu em troca um perfeito sacrifício que satisfaz a sua honra

ultrajada e preserva a ordem moral do universo. Anselmo achou a analogia perfeita dessa

explicação no conceito medieval do vassalo que paga compensação a um senhor quando

quebra o contrato feudal. Graças a Anselmo, a teoria da compensação substituiu a do

resgate na teologia católica. Mais tarde, o reformador João Calvino elaborou uma versão

bíblica dessa explicação, conhecida como “teoria da substituição penal”.

Textos: Bettenson, 224-228.

Análises: Olson, 323-332; González, II:151-161; Lane, I:129-132; Hägglund, 141-148;

Tillich, 166-174; McGrath, 79-80; Berkhof, 129-130, 155-157.

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53

3. Pedro Abelardo

À semelhança de Agostinho, a vida de Pedro Abelardo (1079-1142) é bem

conhecida pelo fato de ele ter escrito uma autobiografia, A história dos meus infortúnios.

Dotado de uma personalidade atraente, ele foi um dos maiores expoentes da teologia e

filosofia medievais. Chegou à idade adulta na época em que Anselmo entrava na fase final

da sua carreira. Nasceu na Bretanha (noroeste da França) e se tornou um afamado professor

em Paris, atraindo estudantes de toda a Europa. Foi um dos iniciadores da Universidade de

Paris. Um acontecimento inesperado mudou radicalmente a sua vida. Ele foi contratado

como tutor de Heloísa, a filha adolescente de um destacado cidadão parisiense. Os dois se

apaixonaram e tiveram um filho. Quando o escândalo se espalhou, o tio da moça, Fulberto,

enviou alguns homens que invadiram a casa de Abelardo e o castraram. Profundamente

humilhado, ele deixou a cidade e ingressou num mosteiro da sua região, do qual depois se

tornou abade. Ao longo dos anos, manteve assídua correspondência com Heloísa, que havia

se tornado freira. Por causa de suas posições teológicas, foi combatido por Bernardo de

Claraval (1090-1153). Algumas de suas opiniões foram condenadas por um sínodo em

Paris e pelo papa Inocêncio II. Adoeceu e faleceu no mosteiro de Cluny quando em viagem

a Roma, onde pretendia defender-se pessoalmente diante do papa.

Abelardo foi um contestador, questionando tradições reverenciadas pela igreja, mas

que ele considerava ilógicas ou antibíblicas. Não aceitava que a única tarefa da teologia era

repetir e interpretar os textos do passado. Foi o que fez em sua obra Sic et non (Sim e não),

na qual apontou problemas que ainda careciam de solução. Fez o mesmo em Teologia

cristã. Como Anselmo, esforçou-se por demonstrar a compatibilidade entre as verdades

teológica e filosófica. Todavia, na questão das proposições universais, rompeu totalmente

com o realismo de Anselmo e Agostinho. Influenciado pela filosofia aristotélica da forma e

da matéria, argumentou que os universais têm uma existência real, mas só em conexão

com as coisas individuais (realismo moderado ou conceitualismo). Esse foi uma posição

intermediária entre o realismo e o nominalismo medieval posterior, que encarou os

universais como simples nomes ou termos. Sua posição atraiu críticas porque o realismo era

considerado por muitos essencial para a teologia católica.

A principal contribuição de Abelardo para a teologia foi uma nova teoria sobre a

expiação. Em suas obras Teologia cristã e Exposição da epístola aos Romanos, ele

discordou tanto da antiga teoria do resgate quanto da teoria da compensação proposta

recentemente por Anselmo. Seu novo modelo de expiação, conhecido como “teoria da

influência ou do exemplo moral”, deu maior ênfase ao amor de Deus do que à sua honra ou

justiça. Inspirado pela parábola do filho pródigo, ele afirmou que a cruz é a prova da

misericórdia de Deus pelos seres humanos. A cruz afeta a humanidade e não a Deus. Ele

não precisa se reconciliar com os seres humanos, e sim vice-versa. Conhecendo esse amor e

libertados do medo, os seres humanos são transformados e inspirados com novas

motivações. Nessa teoria, não há lugar para uma mudança objetiva na alienação entre Deus

e a humanidade causada pelo pecado. Quem muda são as pessoas, ou seja, a verdadeira

expiação ocorre dentro dos seres humanos, e não na cruz. Daí o fato de os críticos a

denominarem “teoria subjetiva”. Apesar de se referir aos méritos obtidos por Cristo na

cruz, Abelardo deu pouca ênfase ao pecado original e à necessidade de reconciliação por

meio de um sacrifício cruento. Sua teoria seria retomada séculos depois pela teologia liberal

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do período moderno. Roger Olson entende que os dois modelos se complementam:

Anselmo (efeito legal da cruz) e Abelardo (efeito moral).

Textos:

Análises: Olson, 332-337; González, II:161-168; Lane, I:132-136; Hägglund, 142-143;

Tillich, 174-179; Berkhof, 157-159.

4. Tomás de Aquino

Foi na cidade de Paris, no século 13, que viveu o maior dos pensadores escolásticos,

Tomás de Aquino (1225-1274) – o “Doutor Angélico”. Seu ensino é hoje a norma da

teologia católica romana, conforme declarou o papa Leão XIII na encíclica Aeterni Patris

(1879). Os teólogos escolásticos da Idade Média eram também filósofos, pois

consideravam as duas disciplinas inseparáveis. Seu objetivo era fazer uma integração de

ambas, tendo a filosofia como serva da teologia, a rainha das ciências. Apesar de sua

reflexão complexa e altamente especulativa, o interesse maior de Aquino foi o mistério da

salvação.

Tomás de Aquino nasceu no castelo de sua família perto de Roccasecca, na Itália, a

meio caminho entre Roma e Nápoles. Seu pai, o conde Landulfo de Aquino, era um

membro abastado da pequena nobreza. O menino fez os primeiros estudos no mosteiro de

Monte Cassino, fundado por Bento de Núrsia. Na Universidade de Nápoles, entrou em

contato com a filosofia de Aristóteles e com a recente ordem dos dominicanos,

apaixonando-se por ambas. Ingressou nessa ordem em 1242, mas a família o seqüestrou e o

manteve confinado no castelo por dois anos. Após ser solto, ingressou na Universidade de

Colônia, na Alemanha, onde foi aluno do grande escolástico dominicano Alberto Magno

(1193-1280), que previu a sua futura grandeza. Deu continuidade aos seus estudos

teológicos e filosóficos na Universidade de Paris, cuja escola de teologia era dominada

pelos franciscanos, opostos a Aristóteles. Em 1256, começou a sua carreira como professor

de teologia na mesma cidade. Suas obras mais importantes foram as volumosas Suma

contra os gentios (apologia contra eruditos islâmicos) e Suma teológica (uma teologia

sistemática). No seu último ano de vida nada escreveu, possivelmente devido a experiências

místicas que teve. Foi canonizado em 1323 e em 1567, no Concílio de Trento, o papa Pio V

lhe conferiu o título de Doutor Universal da Igreja.

O pensamento de Aquino é enciclopédico, abrangendo uma enorme variedade de

temas. Seu estilo era tipicamente escolástico, iniciando com uma questão disputada,

examinando as objeções e expondo o seu ponto de vista. Em seu apoio, citava autoridades

reconhecidas como a Bíblia, os pais de igreja, concílios e credos. Seu objetivo foi

demonstrar a harmonia essencial entre as idéias filosóficas de Aristóteles e as verdades

cristãs, embora discordasse do filósofo grego em alguns pontos (por exemplo, a eternidade

do universo). Seu método teológico começou por estabelecer uma relação entre o

conhecimento natural e a revelação, mostrando não haver um conflito básico entre eles.

Todavia, ao contrário de Anselmo, não considerou a fé indispensável para o entendimento

de certas questões, como a existência de Deus, seus atributos, a imortalidade da alma e as

leis morais básicas.

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Aquino acreditava que a realidade é constituída de duas esferas distintas e

autônomas. De um lado, existe o reino da atividade sobrenatural e graciosa de Deus, ao

qual pertencem a revelação especial, a fé e a salvação (reino superior). De outro lado, há

um reino natural e um conhecimento natural, mesmo de certas coisas concernentes a Deus

(reino inferior). Nessa esfera, ou seja, a natureza, a razão tem o seu próprio âmbito de

atividade e competência. Essa foi uma inovação polêmica, pois os escolásticos anteriores e

os pais da igreja nunca haviam feito tal diferenciação. Tal é o fundamento da teologia

natural tomista. A razão em si mesma, até mesmo a de um não-cristão como Aristóteles,

pode ter um conhecimento genuíno, ainda que parcial, de certos aspectos de Deus, como

sua existência e atributos. Todavia, em outras áreas, como a Trindade, a encarnação e a

criação ex nihilo, ela precisa ser auxiliada e complementada pela revelação. Mesmo assim,

a crença nessas verdades da revelação não é irracional; elas simplesmente transcendem o

que a razão pode descobrir sozinha. A salvação e a “visão beatífica de Deus” também são

totalmente dependentes da ação graciosa divina.

Aquino encontrou na filosofia de Aristóteles o que havia de melhor no reino inferior

da razão. O exemplo mais acabado disso é o conhecimento natural de Deus: ele entendeu

que a existência de Deus podia ser demonstrada pela razão natural. Também alegou que

todo conhecimento natural começa com a experiência sensorial e por isso rejeitou o

argumento ontológico de Anselmo. Aquino tomou do aristotelismo cinco maneiras de

demonstrar racionalmente a existência de Deus, todas as quais se relacionam com os efeitos

naturais que Deus produz como sua causa necessária.

A primeira demonstração se baseia no movimento natural: tudo que é movido

precisa ter uma causa motriz e não pode haver uma cadeia infinita de regressão do

movimento. Portanto, há uma causa motriz que não é movida por outra – Deus (o “primeiro

motor imóvel” de Aristóteles). A segunda prova se baseia na causalidade até chegar à

“primeira causa eficiente”. A terceira demonstração, considerada a base da teologia natural

tomista, parte da distinção entre coisas necessárias e contingentes para concluir que Deus é

o único ser que tem sua própria necessidade e não a recebe de outrem. A quarta prova,

semelhante ao argumento de Anselmo no Monologium, considera as gradações que se

acham nas coisas e conclui que deve haver algo que seja a causa da existência e outros

atributos de todos os seres. A última prova, conhecida como argumento teleológico ou do

desígnio, afirma que existe um ser inteligente pelo qual todas as coisas naturais são

dirigidas para um propósito. Aquino entendeu que somente a existência de Deus podia

explicar esses fatos da experiência humana com o mundo natural.

Em seguida, Aquino também se propôs a demonstrar racionalmente a natureza e os

atributos desse Deus que é a primeira causa de tudo, o primeiro motor imóvel. Ele é pura

realidade sem potencialidade ou mudança (“ato puro”), sua essência e sua existência se

equivalem, ele é absolutamente simples (não composto), imutável, impassível, totalmente

diferente de qualquer ser finito e criado. Essa abordagem é o que por vezes se denomina

teísmo cristão clássico. A crítica que se faz a tal descrição é que esse Deus não parece

pessoal, relacional e dotado de sentimentos, mas estático e indiferente, ao contrário do Deus

retratado na Bíblia. Como disse Blaise Pascal: “O Deus dos filósofos não é o Deus de

Abraão, de Isaque e de Jacó”.

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Outra contribuição criativa de Tomás de Aquino diz respeito à natureza da

linguagem sobre Deus. Se ele é tão diferente dos seres humanos, como o discurso humano

pode descrevê-lo adequadamente? Sua resposta parte da relação entre causa e efeito por

meio da qual Deus é conhecido na teologia natural. A causa invisível e desconhecida pode

ser descrita pelo exame dos seus efeitos. A solução específica que Aquino oferece para o

problema é o conceito de “analogia”, um meio termo entre a linguagem “unívoca” (em que

um termo tem o mesmo sentido quando aplicado a diferentes realidades) e a linguagem

“equívoca” (em que o sentido é totalmente diferente). No primeiro caso, Deus seria

equiparado à criação; no segundo, não se poderia saber nada a respeito de Deus. Na

linguagem analógica, o termo descritivo é em parte semelhante e em parte diferente do que

ele descreve (ver Mc 10.18).

A soteriologia de Tomás de Aquino reúne vários temas importantes da teologia

cristã. A salvação, embora pertencente à esfera superior da graça sobrenatural de Deus, não

anula e sim eleva a natureza humana. Para Aquino, a queda destruiu a justiça original do ser

humano, o relacionamento com Deus, mas não a imagem de Deus, a razão, que permaneceu

essencialmente intacta. A graça salvífica, que atua mediante o batismo, a fé, os sacramentos

e as boas obras, restaura o relacionamento com Deus e finalmente leva o ser humano à

contemplação celestial de Deus. Essa transformação pela graça se assemelha ao antigo

conceito ortodoxo oriental da salvação como divinização.

A soteriologia de Aquino se insere no contexto mais amplo da providência de Deus

e da predestinação, doutrinas nas quais ele seguiu de perto Agostinho. Deus é a causa

suprema de tudo o que ocorre, exceto o mal, que é simplesmente a ausência do bem. Porém,

Deus nem sempre atua diretamente, e sim através de causas secundárias (naturais, na

natureza e na história; sobrenaturais, na redenção). Entre essas causas secundárias estão as

escolhas do livre-arbítrio humano, em última análise determinadas por Deus, porque ele,

sendo a primeira causa, desencadeia tanto as causas naturais como as voluntárias. Para

Aquino, como para Agostinho, o livre-arbítrio equivale a fazer o que se deseja (livre

agência), e não a capacidade de agir de modo diverso. A salvação é uma dádiva exclusiva

de Deus e não pode ser conquistada pelo mérito humano. Até mesmo a fé é uma dádiva

divina. Portanto, Aquino, como o bispo de Hipona, adotou uma postura monergista.

Todavia, no final da Idade Média a maioria dos católicos romanos adotou o sinergismo,

contra o qual Lutero se insurgiu.

Textos: Bettenson, 228-243.

Análises: Olson, 339-356; González, II:247-272; Lane, 151-158; Hägglund, 156-159;

Tillich, 186-201; McGrath, 80-81, 253-255, 272-273, 294-298, 338-339; Küng, 97-122;

Berkhof, 160-162.

5. Guilherme de Occam

Os últimos séculos da Idade Média foram palco de dramáticos eventos nas esferas

cultural, política e religiosa da Europa, os quais serviram de prelúdio para a Reforma

Protestante do século 16. Foi um período de grandes comoções, como guerras ferozes,

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epidemias devastadoras, conflitos entre nobres e camponeses e aumento do sentimento

nacionalista. Os séculos 14 e 15 também testemunharam uma série de crises na igreja,

envolvendo principalmente o papado. Por quase setenta anos (1309-1377), no período

conhecido como o Cativeiro Babilônico da Igreja, os papas residiram em Avinhão, no sul

da França, sendo controlados pelos reis franceses. Em seguida, durante quarenta anos,

ocorreu o chamado Grande Cisma, com a existência simultânea de dois e finalmente três

papas (Roma, Avinhão e Pisa). No âmbito intelectual, houve o Renascimento ou

Renascença, um movimento da elite cultural marcado pelo individualismo, ênfase na

liberdade e contestação das formas tradicionais de autoridade. Um aspecto fundamental

dessa nova mentalidade foi o humanismo, que traduzia um forte otimismo em relação à

criatividade humana e grande interesse pelas artes e ciências – as humanidades. Outro fator

foi a insatisfação crescente com o escolasticismo e com uma série de distorções na vida da

igreja.

Um teólogo que se destacou nesse período de transição foi o inglês Guilherme de

Occam ou Ockham (c. 1285-1349). Ele nasceu perto de Guildford, no condado de Surrey, e

estudou na Universidade de Oxford, onde ingressou na ordem franciscana e lecionou

teologia e filosofia até 1324. Seus problemas começaram quando escreveu um trabalho

acadêmico sobre os Quatro livros de sentenças (c. 1150), do teólogo italiano Pedro

Lombardo. Essa obra era uma compilação de citações da Bíblia e dos pais da igreja,

especialmente Agostinho, sobre uma grande variedade de temas e se tornou o principal

compêndio de teologia da Europa medieval. Muitos estudantes de teologia tinham de

escrever um comentário desse texto. Em 1324, o comentário de Occam foi condenado

como heterodoxo por um sínodo inglês. Ele teve de se defender diante da cúria papal em

Avinhão, ficando detido por dois anos até a sua condenação como herege em 1326. Uma

das razões da condenação foi seu apoio aos franciscanos radicais, críticos da opulência dos

papas e da igreja. Occam encontrou refúgio na corte do imperador Luís da Bavária, em

Munique, que estava envolvido numa disputa com o papa. Nessa cidade, onde passou o

restante da vida, escreveu a maior parte de suas grandes obras de lógica, teologia e ética.

Morreu vitimado pela peste, sem reconciliar-se com a igreja.

Occam é conhecido na história intelectual por ter elaborado uma teoria dos

universais conhecida como nominalismo moderado ou conceitualismo, em muitos aspectos

semelhante à teoria de Pedro Abelardo. Como já foi visto, os universais são qualidades

atribuídas a um conjunto de coisas – um gênero – tais como “brancura”, “beleza” ou

“bondade”. Os realistas, herdeiros da tradição platônica-agostiniana, declaravam que os

universais são reais, isto é, têm existência objetiva, e que sem isso não se poderia ter uma

visão racional e ordenada do universo, pois a ordem da realidade não passaria de algo

imposto pela mente humana às coisas, não sendo uma realidade inerente a elas e apenas

descoberta pelo intelecto. Eles argumentaram que esse entendimento tinha profunda ligação

com a fé cristã, citando como exemplos a natureza humana de Cristo, a substância divina

única da Trindade e especialmente a igreja como o corpo místico de Cristo. Daí a sua

reação tão forte contra outras posições.

Occam rejeitou todas as formas do realismo, afirmando que as proposições

universais não têm existência na realidade, sendo apenas símbolos ou convenções mentais.

Uma das razões dessa rejeição estava no princípio conhecido como “navalha de Occam”,

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segundo o qual se um fenômeno da natureza pode ser explicado por um único antecedente

causal, é inútil postular outras explicações (por exemplo, uma natural e outra espiritual).

Para ele, a realidade podia ser descrita adequadamente sem referência aos universais;

portanto, eles eram supérfluos. Além disso, ele os considerava contraditórios e ilógicos

(algo individual não pode existir em várias coisas simultaneamente e permanecer

individual). Para Occam, em seu pensamento mais maduro, os universais eram imagens

mentais com existência real, mas apenas na mente, como idéias. Não são coisas reais fora

da mente (realismo), nem meros termos arbitrários (nominalismo extremado). Ele

fundamentou o conhecimento na apreensão direta dos objetos individuais, pois somente o

indivíduo existe objetivamente. Essa foi uma idéia revolucionária que teria contribuído para

o início da ciência moderna.

Tais concepções também tiveram amplas conseqüências para a teologia. Em

primeiro lugar, a rejeição do realismo levou Occam a se afastar da teologia natural

escolástica, que tirava conclusões sobre Deus e as realidades espirituais segundo uma

ordem lógica inerente no universo e percebida pela mente. Para ele, só uma verdade sobre

Deus podia ser estabelecida pela razão – sua existência. Tudo o mais, inclusive o

monoteísmo, depende da fé na revelação especial, posição essa conhecida como

“fideísmo”. A razão não pode levar ao conhecimento das realidades invisíveis e espirituais,

não acessíveis à experiência sensorial.

Em segundo lugar, Occam fez uma distinção entre dois poderes de Deus – potentia

absoluta (o poder absoluto e ilimitado de Deus) e potentia ordinata (seu poder ordenado na

realidade, conforme ele atua no mundo). No primeiro caso, Deus tem o poder de desejar

uma coisa diferente do que faz; no segundo, ele tem o poder de desejar o que faz. Em outras

palavras, as ações de Deus no mundo decorrem exclusivamente da sua vontade irrestrita, e

não de sua natureza ou essência imutável (uma proposição universal com realidade

objetiva) ou das estruturas eternas da realidade que refletem essa natureza. Assim, Deus

não ordena as coisas porque são boas; elas são boas simplesmente porque Deus as ordena.

A moralidade e a própria salvação estão fundadas somente na vontade de Deus. É o que se

denomina “voluntarismo”. Essa posição foi objeto de muitas críticas e exerceu forte

influência sobre Lutero.

O aspecto mais radical e controvertido da teologia de Occam foi sua eclesiologia.

Ele negou a essência invisível e espiritual da igreja, que supostamente residia no clero, e

identificou a igreja, o corpo de Cristo, com o conjunto dos fiéis, a comunidade dos cristãos.

A partir daí, criticou a estrutura hierárquica da igreja, especialmente o papado, e defendeu

um modelo mais bíblico e participativo de liderança eclesiástica. Seu pensamento

influenciou os “conciliaristas”, como Marsílio de Pádua (1275-1342), segundo os quais a

igreja devia ser governada por concílios e não por um único indivíduo. Esse movimento foi

muito popular no final da Idade Média, tornando-se um dos fatores que prepararam o

terreno para a Reforma Protestante.

Textos:

Análises: Olson, 357-365; González, II:305-312; Lane, I:160-163; Hägglund, 169-172;

Tillich, 202-204; McGrath, 82-83.

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6. João Wycliffe

O pré-reformador João Wycliffe (c. 1330-1384) nasceu em Lutterworth, condado de

Yorkshire, na Inglaterra. Estudou na Universidade de Oxford e foi ordenado sacerdote.

Ainda jovem, começou a lecionar no Balliol College, da mesma universidade, onde

alcançou alta reputação como erudito e defensor de reformas na igreja. Como muitos de

seus colegas, era um funcionário da coroa inglesa, servindo como mediador entre esta e a

igreja em questões patrimoniais, tributárias e outras. Escreveu dois livros sobre a teoria

governamental: O senhorio divino e O senhorio civil. Defendeu a teoria de que o poder

civil tinha o direito de se apossar das propriedades do clero corrupto. Produziu várias obras

de teologia: O ofício do rei, A veracidade das Escrituras Sagradas, A igreja, O poder do

papa, A eucaristia e O ofício pastoral. Em 1377, dezoito “erros” seus foram condenados

pelo papa, a pedido de alguns professores de Oxford. Recebeu, todavia, a proteção da

rainha-mãe. No ano seguinte, começou a criticar o Grande Cisma, a existência de dois

papas simultâneos, e também diversas doutrinas católicas, como a transubstanciação. Teve

a proteção real até 1381, quando apoiou abertamente a revolta dos camponeses. Sofrendo

pressões da universidade e dos bispos, retornou à sua paróquia natal, onde passou seus

últimos anos escrevendo e organizando uma sociedade de pregadores leigos, os lolardos.

Trinta anos após sua morte, foi condenado como herege e excomungado (!) pelo Concílio

de Constança (1415), o mesmo que queimou na fogueira seu seguidor tcheco João Hus. Em

1428, seus ossos foram exumados e queimados, sendo as cinzas lançadas no rio Swift.

Ao contrário de Guilherme de Occam, Wycliffe era um ardoroso realista no que se

refere às proposições universais, na melhor tradição de Agostinho e Anselmo. Como tal,

criticou a transubstanciação, que havia se tornado um dogma semi-oficial da igreja no 4°

Concílio Lateranense (1215). Segundo essa crença, no momento da consagração a

substância dos elementos da Ceia se transforma no corpo e no sangue de Cristo, enquanto

que os “acidentes”, isto é, as qualidades exteriores do pão e do vinho, permanecem os

mesmos. Em sua obra A eucaristia, Wycliffe argumentou que essa doutrina desonra a Deus,

o autor de todas as substâncias, e viola as regras básicas da metafísica e da lógica – quando

uma substância é destruída, seus acidentes também o são. Segundo ele, por meio do

Espírito Santo as substâncias do pão e do vinho contêm a “presença real” de Jesus Cristo.

Como Cristo é duas substâncias, terrena e divina, também a eucaristia é o corpo do pão

natural e o corpo de Cristo. Divergindo de Agostinho, rejeitou o conceito ex opere operato,

insistindo que os sacramentos só podem transmitir graça se forem recebidos com fé. Suas

posições anteciparam o pensamento dos reformadores magisteriais, especialmente Calvino.

Os conceitos de Wycliffe sobre o ministério cristão foram particularmente

importantes em sua luta por reformas. Ele argumentou que, mais que orar e ministrar os

sacramentos, a responsabilidade principal do sacerdote era pregar o evangelho. Os

ministros deviam ser escolhidos pelos próprios membros de cada paróquia. Assim, a igreja

devia ser governada pelos fiéis através de seus representantes, e não pela hierarquia.

Censurou o poder, as riquezas, a corrupção e os abusos de autoridade e chegou a defender a

abolição do papado. Também rejeitou o sistema meritório penitencial elaborado

minuciosamente desde a época de Gregório Magno. Sem desprezar as autênticas obras de

amor como parte da vida cristã, atribuiu todo o mérito somente a Cristo e enfatizou a graça

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e a fé. Antecipando Lutero, condenou também as indulgências, documentos de absolvição

das penalidades temporais do pecado, como o purgatório. Afirmou ainda a crença na

predestinação.

A contribuição mais importante de Wycliffe no âmbito da teologia foi a sua defesa

da autoridade suprema das Escrituras como norma de fé, acima da tradição, dos decretos

papais e do magistério eclesiástico. Em sua obra A veracidade das Escrituras Sagradas

(1378), afirmou a infalibilidade da Palavra de Deus, que se interpreta a si mesma (analogia

da Escritura), bem como o papel do Espírito Santo em iluminar a mente dos leitores. No

aspecto prático, liderou a tradução da primeira Bíblia completa em inglês – a Bíblia de

Oxford (1384), e nos seus últimos anos em Lutterworth organizou um grupo de pregadores

leigos, mais tarde chamados lolardos, que ajudaram a preparar a reforma inglesa. Através

de João Hus, sua influência se estendeu a outras partes da Europa. Por todas essas razões,

Wycliffe foi cognominado “A estrela matutina da Reforma”.

Textos: Bettenson, 265-274.

Análises: Olson, 365-370; González, II:314-321; Lane, I:169-172; Hägglund, 172; Tillich,

206-211.

7. Erasmo de Roterdã

No final do século 15 e início do século 16 viveu aquele que é considerado “o

príncipe dos humanistas”. Seu trabalho como pensador, escritor e teólogo influenciou tanto

a Reforma Protestante como a Reforma Católica que a seguiu. Desidério Erasmo (c. 1466-

1536) nasceu em Roterdã, na Holanda, e ficou órfão na infância. Aos nove anos, foi

colocado numa escola dos Irmãos da Vida Comum, um movimento leigo que abraçava a

devotio moderna, com sua ênfase numa espiritualidade fervorosa e prática (oração,

meditação, estudo das Escrituras e imitação de Cristo). Essa influência o acompanharia por

toda a vida. Mais tarde, seu tutor o enviou contra sua vontade para um mosteiro

agostiniano. Foi ordenado em 1492, mas passou boa parte da vida como um erudito

independente, estudando, viajando e escrevendo. Como humanista que era, dedicou-se à

leitura dos antigos filósofos clássicos. Nutria grande admiração por Sócrates, enaltecendo-o

como modelo da sabedoria natural, assim como Jesus o era da sabedoria e bondade

sobrenaturais.

Seu grande sonho foi reformar a igreja, mas sem destruí-la. Tornou-se famoso ao

publicar seu primeiro livro, Adágios, uma coleção de pensamentos espirituosos que faziam

uma crítica sutil à sociedade e à igreja. Pouco depois, publicou seus Colóquios, uma série

de diálogos que ironizavam as superstições populares promovidas pela igreja, tais como

peregrinações e relíquias. Num dos diálogos, o papa Júlio II chega ao céu vestido de sua

armadura e é repelido por São Pedro.

Duas obras mais influentes foram Enchiridion (1503) e Elogio da loucura (1509). A

primeira, também conhecida como Manual do cristão militante, foi escrita para um militar

cristão cuja esposa havia pedido uma exposição simples da vida cristã. Contém os melhores

exemplos da “filosofia de Cristo” defendida por Erasmo, uma espiritualidade pacífica e

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prática centralizada no exemplo de Jesus, cuja difusão poderia contribuir para a reforma da

igreja. O cristão devia usar as armas da oração e do conhecimento, desprezar as atrações do

mundo e as superstições religiosas, e trilhar o caminho de Cristo, que é ao mesmo tempo

intelectual e místico. No Elogio da loucura, Erasmo criticou a espiritualidade puramente

exterior comum naquela época. Nesses dois livros, em lugar da ignorância e do fanatismo

ele propôs uma piedade interior e esclarecida calcada na moralidade elevada e no exemplo

de Cristo.

Uma contribuição muitíssimo relevante de Erasmo foi a publicação do texto crítico

do Novo Testamento grego (1514), acompanhado de uma tradução latina, que inspirou em

muitas pessoas, a começar dos reformadores protestantes, o desejo de ler, interpretar e

traduzir as Escrituras. Ulrico Zuínglio, o reformador de Zurique, tornou-se um pregador

bíblico após ler essa obra. Quando a reforma alemã eclodiu em 1517, Erasmo era o

estudioso mais influente de toda a Europa, cortejado por soberanos e universidades. Ele

apoiou Lutero secretamente, mas o considerou extremado por querer dividir a igreja. Sob

fortes pressões, finalmente escreveu uma crítica contra a teologia do reformador: De libero

arbitrio (Do livre arbítrio, 1524), na qual defendeu a antiga abordagem sinergista e a

liberdade da pessoa em aceitar ou rejeitar a salvação. Lutero respondeu com a obra De

servo arbitrio (Da escravidão do arbítrio), na qual reafirmou seu monergismo e acusou

Erasmo de cair no semipelagianismo.

Em 1533, residindo em Freiburg, na Alemanha, após passar vários anos em

Basiléia, Erasmo escreveu sua obra mais madura sobre a igreja, a verdadeira reforma e a

teologia em geral – Reparando a paz da igreja, que muito contribuiu para a Reforma

Católica. Viu o maior problema da igreja dividida no plano moral e conclamou as partes a

um diálogo cortês e racional. Seu humanismo cristão liberal influenciou o reformador

alemão Filipe Melancthon e a tradição anglicana.

Textos:

Análises: Olson, 370-377; González, III:21-227; Lane, I:186-189; McGrath, 83-84.

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PARTE III

PERÍODO DA REFORMA

Durante a Idade Média a sociedade européia esteve solidamente unificada em torno

da fé católica, um fenômeno conhecido como “cristandade”. Todavia, no final desse

período surgiu uma grande insatisfação com a situação reinante na igreja: a corrupção de

muitos membros do clero, a opulência da alta hierarquia, especialmente do papado, a

religiosidade supersticiosa e ignorante das massas, o relacionamento questionável com o

estado. Por muitos anos fez-se ouvir em toda parte um clamor por “reforma na cabeça e nos

membros”. Foi nesse contexto que eclodiu a Reforma Protestante. Certamente houve

muitos fatores culturais, políticos e sociais envolvidos nesse movimento revolucionário: o

crescente nacionalismo dos povos europeus, o ressentimento com as intromissões de Roma

e os privilégios da igreja, a mentalidade contestadora do humanismo renascentista, o

crescimento das cidades, o fortalecimento da burguesia, o surgimento do capitalismo.

Todavia, a motivação básica da Reforma foi religiosa e particularmente teológica ou

doutrinária.

O questionamento protestante do catolicismo medieval pode ser sintetizado em

alguns princípios básicos que todos os protestantes tinham em comum: as Escrituras como

suprema autoridade e norma de fé (sola Scriptura), a salvação pela graça mediante a fé

somente (sola gratia, sola fides) e a igualdade de todos os cristãos, com a negação da

distinção espiritual entre clero e leigos (o sacerdócio de todos os crentes). O principal ponto

de divergência entre os dois grupos ocorreu na área da soteriologia, o entendimento da

salvação, isto é, do relacionamento entre Deus e os seres humanos. O objetivo dos

reformadores foi levar a igreja de volta aos seus fundamentos bíblicos e neotestamentários,

livrando-a das tradições humanas, as crenças e práticas para as quais eles não encontravam

apoio nas Escrituras.

Os protestantes foram especialmente críticos da espiritualidade do final da Idade

Média, uma forma de sinergismo em que o conceito de mérito havia se tornado tão

importante quanto a graça. A pessoa seria salva à medida que conquistasse méritos

suficientes diante de Deus pela fé e por obras de caridade. Essas obras incluíam penitências,

participação nos sacramentos, orações, jejuns, esmolas, peregrinações, veneração de

relíquias, missas, indulgências e outras práticas. A base desse sistema era a idéia de que as

pessoas deviam somar os seus próprios esforços à graça de Deus a fim de alcançarem a

salvação. Esta era entendida como o resultado de um processo que durava a vida inteira; a

vida cristã era tida como uma peregrinação rumo à salvação. Tudo isso produzia na maior

parte das pessoas uma grande incerteza quanto à sua própria salvação. Nesse contexto, a

justificação era entendida no sentido moral, como algo exigido por Deus das pessoas, e não

como algo concedido gratuitamente a elas. Somente quando a graça fizesse sua obra de

transformar o pecador em um santo, Deus poderia justificá-lo ou declará-lo justo. Só então

ele estaria plenamente perdoado e preparado para o céu. Para os que não tivessem atingido

essa condição, a alternativa era o purgatório. A resposta evangélica a essa soteriologia foi a

mensagem bíblica da justificação pela graça mediante a fé.

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A Reforma teve início com o protesto do monge alemão Martinho Lutero em 1517.

O movimento se espalhou rapidamente por muitas regiões da Europa anglo-saxônia e do

leste europeu. Nos países latinos, ela teve menor aceitação; a única exceção foi a França.

Uma das conseqüências da Reforma foi o fim da cristandade européia, ocorrendo a segunda

grande cisão do cristianismo depois da ruptura católica-ortodoxa de 1054. Os próprios

protestantes não se mantiveram unidos, surgindo quatro grupos principais no século 16: os

luteranos, em partes da Alemanha e na Escandinávia; os reformados ou calvinistas, na

Suíça, França, Holanda, Escócia e outros países; os anabatistas, nos países saxônios; e os

anglicanos, na Inglaterra. Num certo sentido, a Reforma fracassou. A igreja romana não se

deixou reformar nos moldes protestantes, mas reagiu vigorosamente contra o novo

movimento (Contra-Reforma) e realizou sua própria reforma interna, corrigindo distorções

e solidificando sua própria teologia (Reforma Católica), principalmente por meio do

Concílio de Trento, aprofundando ainda mais a divisão que havia surgido.

Textos:

Análises: Olson, 379-384; González, III:13-27; George, 25-50; Costa, 71-133.

1. Martinho Lutero

O iniciador da Reforma, Martinho Lutero (1483-1546), nasceu em Eisleben, na

Saxônia, no leste da Alemanha. Seu pai, Hans, proprietário de uma mina de carvão, impôs

aos filhos uma disciplina rigorosa. Sua mãe, Margaretha, era muito religiosa e

supersticiosa. O menino recebeu a melhor educação que os pais podiam pagar, parte dela

sob a orientação dos Irmãos da Vida Comum. O pai queria que Lutero fosse advogado e por

isso ele ingressou na Universidade de Erfurt. Em muitos fins de semana, ia a pé até sua

cidade natal. Numa tarde de verão, quase foi atingido por um raio durante uma tempestade.

Tomado de pavor, invocou sua padroeira: “Santa Ana, proteja-me e me tornarei monge!”

Vendeu os livros de Direito e entrou para o mosteiro agostiniano de Erfurt (1505). Por

alguns anos, enfrentou crises de intensa ansiedade espiritual. Temia que Deus não o

aceitasse e por isso se desdobrava em penitências rigorosas na tentativa de conseguir

méritos diante dele. Buscava um Deus gracioso, mas só encontrava um Ser justiceiro e

irado. Seu superior e confessor, João Staupitz, procurou ajudá-lo e recomendou que ele

meditasse na cruz de Cristo.

Staupitz decidiu que Lutero retornasse à universidade para estudar filosofia, teologia

e Bíblia. Nesse período, ele recebeu forte influência do nominalismo e se tornou avesso à

tradição escolástica e sua teologia natural. Em 1511 foi enviado a Roma a serviço de sua

ordem e ficou decepcionado com as imoralidades, blasfêmias e apatia espiritual que

presenciou. No ano seguinte, obteve o doutorado em teologia na Universidade de

Wittenberg, fundada em 1502, onde começou a lecionar sobre os Salmos e as epístolas

(Romanos, Gálatas e Hebreus). Entre 1513 e 1518, como resultado do estudo da Bíblia,

teve uma série de experiências espirituais marcantes, em particular um novo entendimento

da justiça de Deus e da justificação pela graça mediante a fé. Comentando Romanos 1.18,

afirmou: “Comecei a compreender que a justiça de Deus é aquela mediante a qual o justo

vive por uma dádiva de Deus, ou seja, mediante a fé”. Isso se tornou para ele o âmago do

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evangelho. A conseqüência foi um sentimento de profundo alívio e alegria, bem como um

renovado apreço pelas Escrituras.

A crise ocorreu em outubro de 1517, quando o dominicano João Tetzel visitou uma

cidade próxima vendendo indulgências, documentos mediante os quais a igreja perdoava as

penalidades temporais do pecado, como o purgatório. Tetzel havia sido contratado pelo

novo arcebispo de Mainz ou Mogúncia, Alberto de Brandenburgo, que precisava de

recursos para enviar ao papa, envolvido na construção da catedral de São Pedro, e para

liquidar um empréstimo contraído junto a banqueiros judeus. As Noventa e Cinco Teses,

afixadas por Lutero em um local público, eram propostas para um debate a ser realizado na

universidade. Elas não condenavam somente as indulgências, mas muitas outras crenças e

práticas populares promovidas pela igreja. Em poucos meses, Lutero se tornou um herói

popular por ter desafiado o poderio de Roma, que drenava recursos da Alemanha.

Nos anos seguintes, Lutero debateu com vários representantes da igreja e em 1520

publicou três importantes tratados que tiveram enorme repercussão: A liberdade do cristão,

O cativeiro babilônico da igreja e Apelo à nobreza cristã da nação alemã. No mesmo ano,

foi excomungado pelo papa Leão X, sendo no ano seguinte intimado a comparecer diante

do imperador Carlos V e do Parlamento alemão na cidade de Worms. Após defender-se

corajosamente, foi condenado como herege e banido. Sob proteção do príncipe eleitor da

Saxônia, Frederico, o Sábio, foi levado secretamente para o castelo de Wartburg, onde

passou quase um ano e traduziu o Novo Testamento para a língua alemã. De regresso a

Wittenberg, organizou o seu movimento, criou uma nova liturgia (a Missa Alemã),

escreveu um catecismo, vários livros e muitas cartas. Em 1529, os luteranos ou evangélicos

passaram a ser conhecidos como “protestantes”.

Lutero não foi um teólogo sistemático e o seu pensamento, em especial seus

princípios teológicos mais importantes, é deduzido de seus escritos formais e informais. Ele

foi um pensador dialético, ou seja, apreciava a natureza paradoxal da verdade, com suas

tensões e polaridades. Uma das ênfases básicas da sua reflexão foi a “teologia da cruz”, que

ele contrastou com a “teologia da glória”. Lutero delineou essa crítica do escolasticismo no

Debate de Heidelberg, em 1518. A teologia da glória, isto é, a teologia natural, é o esforço

de explicar Deus pela razão humana destituída da fé e da graça. Ela conduz à

espiritualidade moralista da justiça segundo as obras, porque isso parece mais racional ao

intelecto humano pecaminoso do que o evangelho da justificação pela morte de Cristo

concedida pela graça mediante a fé. Essa teologia é centralizada no ser humano e

superestima sua capacidade natural. A teologia da cruz, por outro lado, afirma que Deus só

é verdadeiramente conhecido em Jesus Cristo e no seu sofrimento, o escândalo da cruz. Ela

revela a real condição da humanidade, desamparada, alienada de Deus e incapaz de

conhecê-lo sem a ajuda da auto-revelação do próprio Deus na cruz de Cristo. Ela conduz ao

discipulado marcado pelo sofrimento por Deus e pelo próximo.

Essa teologia da cruz permeia todo o pensamento teológico de Lutero, sendo a base

de sua rejeição do racionalismo teológico e da aceitação do paradoxo e do mistério na

teologia. Ela embasa sua ênfase na pecaminosidade e dependência humana e na graça

soberana de Deus. Ela também o leva a negar o livre-arbítrio, entendido como uma

manifestação da soberba humana que se contrapõe à cruz. Esta é o grande símbolo do

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desamparo humano e da intervenção divina, apontando para o paradoxo do poder e do

sofrimento de Deus no âmago do evangelho. Os estudiosos apontam para uma influência

nominalista no pensamento de Lutero, particularmente em sua ênfase na vontade

absolutamente livre e soberana de Deus e na importância da fé.

Outra ênfase teológica de Lutero é o conhecimento de Deus mediante sua auto-

revelação pela Palavra e pelo Espírito. Essa é a base de todo conhecimento genuíno de

Deus, e não a razão natural, obscurecida pelo pecado. Lutero despreza a teologia

escolástica, em especial o aristotelismo, por não levar suficientemente a sério o pecado e

exaltar demasiadamente a filosofia. Sem desprezar inteiramente a tradição da igreja, ele dá

precedência máxima à Escritura (sola Scriptura) e ao evangelho que ela reflete. Ele faz

uma distinção entre esses dois elementos: evangelho e Escritura. O evangelho ou a Palavra

de Deus é antes de tudo uma mensagem proclamada “a respeito de Cristo, Filho de Deus e

de Davi, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, cuja morte e ressurreição

suplantaram o pecado, a morte e o inferno para todos os homens que nele crêem”. Ele é

anterior ao Novo Testamento, na pregação dos apóstolos, mas agora só o conhecemos e

ouvimos por meio da Bíblia.

Lutero valorizava altamente a Escritura, mas entendia que nem tudo nela tem igual

valor. As partes mais importantes, as mais úteis para o culto e o ensino, são as que melhor

refletem as boas novas de Cristo, como o evangelho de João e sua primeira epístola, as

cartas de Paulo aos Romanos, Gálatas e Efésios, e a primeira epístola de Pedro. Já a

epístola de Tiago e o Apocalipse foram considerados de pouca utilidade. Assim, ele

estabeleceu um “cânon dentro do cânon” com base no princípio was Christum treibt, isto é,

“o que promove Cristo”. A autoridade religiosa final é a “Palavra externa” do evangelho

refletida nas Escrituras. Ele estabeleceu um forte vínculo entre o Espírito Santo, a Palavra

externa e a Bíblia. Eles formam uma unidade inseparável. O Espírito usa a Escritura para

chamar, convencer e instruir os pecadores. Ele não ensina nada além do que a Bíblia ensina.

A única comprovação da veracidade e autoridade das Escrituras é o testemunho do Espírito

Santo por meio delas.

Outro princípio básico da teologia de Lutero consiste no fato de que Deus é ao

mesmo tempo oculto e revelado no evangelho e nas Escrituras. Isso ocorre de duas

maneiras. De um lado, ele se manifesta de uma forma alheia a si mesmo, na humanidade de

Jesus Cristo e no sofrimento da cruz. Sua grandeza e poder são revelados por meio da

fraqueza, do sofrimento e do pecado assumido. Isso fala da condescendência de Deus e faz

parte do escândalo da cruz. Todavia, por trás desse Deus amoroso e pessoal do evangelho

existe um Deus oculto, obscuro e misterioso, com poder para determinar tudo. Lutero

relacionava com isso a dupla predestinação e a supremacia da vontade livre e soberana de

Deus em tudo o que ocorre. Muitos estudiosos vêem aqui outra manifestação do

nominalismo de Occam no pensamento do reformador.

A contribuição mais conhecida de Lutero à teologia é a doutrina da justificação pela

graça mediante a fé. A justificação é o ato pelo qual Deus declara que uma pessoa tem um

relacionamento correto com ele. Para Lutero, esse era o âmago da soteriologia, que por sua

vez é o âmago da teologia. É o artigo fundamental da fé, “pelo qual a igreja se firma ou

cai”. Na doutrina católica desde Agostinho, a justificação é o processo gradual pelo qual o

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indivíduo se torna justo interiormente ao receber justiça do próprio Deus mediante o

batismo, a fé, as obras de amor e a vida penitencial. Somente depois de profundamente

transformado é que Deus o justifica no sentido pleno (justiça infusa). Para Lutero, com base

na Escritura e em sua própria experiência pessoal, a justificação é um ato de Deus mediante

o qual ele declara e aceita como justo o pecador que crê no evangelho (justiça passiva ou

imputada). Isso tem como base uma troca realizada por Cristo na cruz, assumindo sobre si o

pecado humano e concedendo ao pecador sua justiça ou retidão. O cristão nunca deve

esquecer que sua retidão não é sua própria, mas é totalmente de Cristo. Ele é ao mesmo

tempo justo e pecador (simul justus et peccator). Por causa de Cristo, Deus vê o pecador

como justo, embora ele continue ainda pecador. A única condição de sua parte é a fé ou

confiança na promessa de Deus, que é um dom de Deus aos seus eleitos. Lutero não deu

muita atenção às boas obras e à santificação (justiça interna ou moral) e por isso foi

acusado de antinomismo.

Lutero também insistiu no fato de que todos os cristãos justificados são sacerdotes

de Deus, em contraste com a teologia católica que atribuía ao clero prerrogativas especiais

como mediadores entre os pecadores e Deus e ministradores da graça nos sacramentos.

Entendia que todos os fiéis podem comparecer diante de Deus para orar uns pelos outros e

ensinar uns aos outros. Ele valorizava os ministros ordenados em suas tarefas de interpretar

e ensinar a Palavra, mas acreditava que eles deviam ser escolhidos pelo povo de Deus e não

possuíam um status espiritual superior. Quanto aos sacramentos, reduziu-os a dois, batismo

e ceia do Senhor, definindo-os como atos simbólicos instituídos por Deus e acompanhados

de uma promessa. Eles não funcionam ex opere operato, ou seja, automaticamente, mas

pressupõem a fé. O batismo, celebrado e recebido com fé, justifica o pecador mediante a

Palavra de Deus misteriosamente ligada à água, conferindo o completo perdão dos pecados.

Trata-se de um conceito semelhante à “regeneração batismal” católica. Lutero justificou o

batismo infantil com base na tradição e no fato de que a criança tem fé, sendo fortemente

criticado pelos anabatistas.

Quanto à ceia do Senhor, o maior opositor de Lutero foi o reformador suíço Ulrico

Zuínglio. Em 1529, no Colóquio de Marburg, os dois líderes divergiram fortemente nessa

questão. Apelando a João 6.63, Zuínglio argumentou que a ceia é apenas uma

comemoração da morte de Cristo e que nela não há nenhuma “presença real” do corpo de

Cristo. Apoiando-se nas palavras de Cristo (“isto é o meu corpo”), Lutero insistiu que tanto

o alimento físico quanto o corpo humano glorificado de Cristo alimentam os fiéis na

refeição sacramental. Esses posicionamentos resultavam de duas cristologias distintas.

Zuínglio acreditava que o corpo humano glorificado de Cristo está localizado no céu e não

é onipresente, exceto “mediante o Espírito”. Lutero, com base na “comunicação dos

atributos” de Cirilo e Leão I, argumentou que a humanidade de Jesus Cristo é glorificada e

está em todos os lugares (ubiqüidade). João Calvino procurou encontrar um meio-termo

entre esses dois reformadores.

Textos: Bettenson, 277-320.

Análises: Olson, 385-406; González, III:29-70, 105-134; Lane, I:190-204; Hägglund, 179-

209; Noll, 157-181; Küng, 123-148; McGrath, 97-98, 101-103, 289-290, 517-523, 547-549;

Berkhof, 195-197, 212-213; George, 53-106; Tillich, 227-253.

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2. A teologia reformada

Logo após o início da reforma luterana, surgiu no país vizinho ao sul, a Suíça, uma

segunda manifestação do protestantismo. Ela ficou conhecida como reforma suíça ou

movimento reformado. Seus líderes iniciais foram Ulrico Zuínglio, em Zurique (Suíça

alemã), e João Calvino, em Genebra (Suíça francesa). Graças à habilidade desses líderes,

principalmente Calvino, a “segunda reforma” teve uma difusão na Europa bem maior do

que os outros movimentos surgidos no século 16 (luterano, anabatista e anglicano). Em

poucas décadas, surgiram igrejas reformadas no sul da Alemanha, França, Holanda,

Polônia, Hungria e nas Ilhas Britânicas, especialmente na Escócia. Esse movimento recebeu

a designação de “reformado” devido ao entendimento de que estava sendo mais profundo

em sua obra de reforma do que o movimento alemão ou luterano.

Ao contrário da relativa informalidade da teologia de Lutero, os reformadores

suíços se concentraram em organizar e sistematizar a nova teologia protestante. Ao lado de

convicções comuns com os luteranos, eles deram novas ênfases ou elaboraram doutrinas

peculiares e distintivas. Daí falar-se em uma teologia reformada ou tradição reformada,

posteriormente também conhecida como calvinista. Essa teologia é abrangente, envolvendo

questões doutrinárias, forma de governo eclesiástico, padrões para o culto e um modo

específico de encarar questões políticas, econômicas e sociais. As principais expressões da

teologia reformada são os escritos dos reformadores dessa tradição (Ulrico Zuínglio, João

Calvino, Martin Bucer, John Knox, Teodoro Beza e outros) e os muitos documentos

confessionais (catecismos e confissões de fé) elaborados pelas primeiras gerações de

reformados. Os exemplos mais significativos são os seguintes: Sessenta e sete artigos de

Zuínglio (1523), Primeira confissão helvética (1536), Confissão de Genebra (1536),

Catecismo de Genebra (1542), Confissão galicana (1559), Confissão escocesa (1560),

Confissão belga (1561), Catecismo de Heidelberg (1563) e Segunda confissão helvética

(1566). São especialmente importantes a confissão de fé e os catecismos produzidos pelos

puritanos, os calvinistas ingleses, na Assembléia de Westminster (1643-1648).

Algumas ênfases especiais da teologia reformada são a soberania de Deus, a eleição,

o conceito de livre-arbítrio, a soteriologia monergista, o conceito simbólico dos

sacramentos, a noção do pacto (das obras e da graça) e a importância da lei de Deus. Essa

teologia é abraçada particularmente pelas igrejas presbiterianas, e também por muitas

igrejas congregacionais e batistas. Outras ênfases da tradição reformada são o governo

representativo por meio dos presbíteros e dos concílios (presbitério, sínodo e assembléia

geral), duas classes de oficiais (presbíteros e diáconos) e o princípio regulador aplicado ao

culto. As principais áreas de divergência com Lutero foram o entendimento da lei de Deus e

a teologia sacramental.

Textos:

Análises: Olson, 411-411; McGrath, 98-100.

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3. Ulrico Zuínglio

O fundador da tradição reformada foi o ex-sacerdote Ulrico Zuínglio (1484-1531),

que nasceu em Glarus, no norte da Suíça, menos de dois meses depois de Lutero,

pertencendo assim à primeira geração de reformadores. Recebeu uma excelente educação

humanista, tendo feito estudos superiores em Viena e Basiléia, onde recebeu o grau de

mestre em teologia em 1506. Iniciou sua carreira sacerdotal em Glarus e na vizinha

Einsiedeln, um centro de peregrinações, destacando-se como pregador, escritor e patriota

(protestou contra a contratação de suíços como mercenários). Em 1516 conheceu Erasmo

pessoalmente e se tornou um grande simpatizante de sua filosofia de Cristo. Leu sua edição

bilíngüe do Novo Testamento e se tornou um expositor e pregador bíblico. No dia 1° de

janeiro de 1519, ao completar 35 anos, chegou a Zurique, tornando-se o “sacerdote do

povo” na catedral da cidade.

Em associação com as autoridades civis, implementou profundas reformas na vida

religiosa da Zurique a partir de 1523, com a realização do primeiro debate público, para o

qual escreveu os Sessenta e sete artigos. Dois anos depois a missa foi abolida, sendo

substituída pelo culto protestante, marcado por extrema sobriedade (“quatro paredes limpas

e um sermão”). Um a um foram eliminados todos os vestígios do catolicismo, tais como

imagens, culto a Maria e aos santos, indulgências, orações pelos mortos, etc. Foi muito

além de Lutero na eliminação de práticas católicas tradicionais. Todavia, alguns de seus

seguidores iniciais não o consideraram radical o suficiente e romperam com ele em 1525

(os anabatistas). As obras teológicas de Zuínglio mais conhecidas são: Da providência de

Deus, Da religião verdadeira e falsa, Explicação da religião de Zuínglio e Exposição breve

e clara da fé cristã. Essas obras exerceram profunda influência sobre outros teólogos

reformados, inclusive Calvino. Em 1531, Zurique entrou em guerra contra cinco cantões

católicos do sul da Suíça e vários ministros acompanharam as tropas. Zuínglio morreu na

Segunda Batalha de Kappel, em 11 de outubro de 1531.

Zuínglio tinha um conceito muito estrito acerca da inspiração e autoridade das

Escrituras. Ao contrário de Lutero, com o seu “cânon dentro do cânon”, ele identificou a

Bíblia inteira como a Palavra de Deus. Como o reformador alemão, viu uma íntima

conexão entre a Palavra e o Espírito Santo. Somente pelo Espírito de Deus a Bíblia é a

Palavra de Deus e ele nada fala fora da Bíblia. Ao mesmo tempo, em virtude de sua

formação humanista, Zuínglio teve uma atitude positiva em relação à filosofia clássica,

grega e latina, entendendo, à semelhança da antiga escola de Alexandria, que toda a

verdade é verdade de Deus. Em seu livro Da providência, ele reuniu a filosofia grega, a

teologia natural tomista, a lógica aristotélica, a teologia bíblica e o apelo à tradição cristã,

notadamente Agostinho.

Zuínglio deu à soberania de Deus a posição de tema central organizador da teologia

reformada, em contraste com Lutero e sua ênfase na justificação pela graça mediante a fé.

Para ele, o governo providencial de Deus é absoluto, eterno e imutável, é a causa de tudo o

que ocorre e elimina a possibilidade de qualquer coisa ser contingente ou acidental. Em

certo sentido, até o mal foi preordenado por Deus e tem um lugar nos seus desígnios para o

mundo. Uma conseqüência da soberania de Deus é a predestinação, tanto para a salvação

(eleição) como para a condenação, que ele encontrava nas Escrituras. Ela é a base da

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presciência: Deus conhece porque predetermina. Deus não é maculado pelos pecados que

os réprobos cometem.

Como Lutero, ele insistiu na salvação pela graça mediante a fé e afirmou que a fé é

uma dádiva de Deus aos eleitos. Todavia, esses reformadores divergiram em dois aspectos

de sua soteriologia. Em primeiro lugar, Lutero teve uma atitude negativa em relação à lei de

Deus (como os Dez Mandamentos) e a contrastou com o evangelho, ao passo que, para

Zuínglio, lei e evangelho são inseparáveis. A lei é expressão da vontade de Deus para o

viver justo e santo, um meio pelo qual o cristão agrada a Deus e lhe é grato pela salvação.

Assim sendo, a teologia reformada deu à santificação e ao discipulado cristão uma ênfase

que faltou em Lutero.

Outra diferença entre os dois reformadores dizia respeito aos sacramentos. Para

Zuínglio, as “ordenanças” do batismo e da ceia eram cerimônias simbólicas e não meios

literais de graça. Apelando a João 6.63 (“o espírito é o que vivifica, a carne para nada

aproveita”), ele argumentou que substâncias materiais não podem transmitir bênçãos

espirituais. Somente o Espírito alimenta e fortalece a alma, mediante a fé. Os sacramentos

são acima de tudo um testemunho que o crente dá à igreja sobre sua fé. Eles são sinais de

realidades espirituais; proclamam e comemoram o ato redentor de Cristo, mas não

transmitem graça. São necessários por seu valor didático e incentivador, mas a fé, a graça

redentora e a presença do Espírito Santo não dependem de cerimônias.

Como a circuncisão no contexto da antiga aliança, o batismo é a cerimônia de

iniciação na nova aliança. Os filhos de pais crentes já estão na aliança. O batismo é

simplesmente o sinal e o selo da eleição e da inclusão no povo de Deus. Ele não salva, não

fortalece a fé e nem outorga graça. Em Uma exposição da fé de Zuínglio, que enviou ao

imperador Carlos V antes da Dieta de Augsburgo (1530), o reformador afirmou que o

batismo pressupõe a fé, do batizando ou dos pais que o apresentam. Os filhos de crentes são

batizados porque já pertencem à igreja. A salvação das crianças que morrem antes de

atingir a idade da razão depende de serem eleitas, e não do batismo. Presume-se que todas

as crianças batizadas são salvas, embora precisem confirmar sua eleição por meio da

pública profissão de sua fé.

Zuínglio também divergiu de Lutero no tocante à ceia do Senhor. Argumentou que

o corpo glorificado de Cristo está localizado no céu e não é onipresente. Portanto, não

existe uma presença real de Cristo nos elementos. Lutero via nisso um indício de

nestorianismo, enquanto que, para Zuínglio, a posição luterana acerca da onipresença

corpórea de Cristo apontava para a antiga heresia do eutiquianismo. A ceia do Senhor é

uma refeição memorial na qual a igreja recorda e proclama a morte de Cristo. Nela os

cristãos se alimentam de Cristo, mas apenas espiritualmente. Ela também serve de

testemunho da fé diante da igreja. O conceito zuingliano sobre a ceia foi modificado por

João Calvino, mas veio a ser adotado pelos anabatistas, batistas e outros grupos. Calvino

recebeu a influência de Zuínglio através do sucessor deste, João Henrique Bullinger (1504-

1575).

Textos:

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70

Análises: Olson, 411-418; González, III:71-86; Lane, II:7-11; Hägglund, 219-221;

McGrath, 104; George, 109-160; Tillich, 254-259.

4. João Calvino

Se Zuínglio foi o fundador da tradição reformada, João Calvino (1509-1564) foi o

seu grande consolidador e divulgador. Ele nasceu na pequena cidade de Noyon, na Picardia,

nordeste da França. Quando ainda pequeno, ficou órfão da mãe, Jeanne. Seu pai, Gérard,

era secretário do bispo e advogado dos clérigos locais. Após os primeiros estudos em sua

cidade, aos catorze anos Calvino seguiu para Paris, onde estudou teologia e humanidades,

ou seja, latim e os clássicos (1523-1528). A seguir, por ordem do pai, foi estudar direito em

Orléans e Bourges. Com a morte do pai, em 1531, retornou a Paris, dando continuidade aos

estudos humanísticos. Publicou sua primeira obra, um comentário do tratado Sobre a

clemência, do antigo filósofo romano Sêneca. Teve uma conversão repentina,

provavelmente em 1533. No dia 1° de novembro desse ano, seu amigo Nicolas Cop fez um

discurso de posse na Universidade de Paris repleto de idéias protestantes. Calvino foi

considerado o co-autor do discurso e os dois amigos tiveram de fugir da cidade.

Calvino seguiu para Angoulême, onde começou a escrever sua obra magna,

Instituição da Religião Cristã ou Institutas, que foi publicada em Basiléia em 1536. Após

voltar por breve tempo ao seu país, decidiu fixar-se em Estrasburgo, onde trabalhava o

reformador Martin Bucer (1491-1551). Impedido de tomar o caminho mais curto, em

virtude de manobras militares, fez um longo desvio que o fez passar por Genebra. Essa

cidade havia abraçado oficialmente a Reforma há apenas dois meses (maio de 1536), sob a

liderança de Guilherme Farel. Este convenceu o jovem estudioso a permanecer na cidade e

ajudá-lo. Dois anos mais tarde, em virtude de divergências com as autoridades, os dois

pastores foram expulsos. Calvino só então seguiu para Estrasburgo, onde passou três anos

felizes e produtivos (1538-1541). Finalmente, foi convidado insistentemente a voltar para

Genebra, ali permanecendo por mais 23 anos, até o final da vida. Em 1559, publicou a

última edição das Institutas e fundou a Academia de Genebra, embrião da atual

universidade.

Como o principal ministro da Igreja Reformada de Genebra, Calvino desdobrou-se

nas tarefas de pregação, ensino e administração. Acolheu centenas de refugiados

protestantes que fugiam da perseguição em seus países, como o grupo de britânicos que

incluía João Knox. Manteve volumosa correspondência com governantes, líderes da

Reforma, pastores e crentes comuns, contribuindo para o fortalecimento e a ampla difusão

da fé reformada. Dedicou-se de maneira especial à leitura e ao estudo, esforço esse que

resultou em uma prodigiosa obra literária. Além das várias edições das Institutas e de

numerosas cartas e sermões, escreveu comentários de quase todos os livros da Bíblia, bem

como tratados apologéticos e doutrinários. Produziu várias obras litúrgicas e catequéticas

para a igreja de Genebra: Confissão de Genebra, Instrução na fé, Ordenanças eclesiásticas,

Forma de orações e Catecismo de Genebra. Alguns de seus tratados são: Psicopaniquia,

Pequeno tratado sobre a Ceia do Senhor, Necessidade de reforma da igreja, Antídoto para

o Concílio de Trento e Sobre a predestinação eterna de Deus.

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A maior expressão da teologia de Calvino é sua obra Institutas, na qual se manifesta

seu gênio sistematizador. O conteúdo dessa obra demonstra o profundo conhecimento

bíblico de Calvino, mas também as influências que recebeu de Lutero, Zuínglio e Bucer,

entre outros. Ele teve um débito especialmente grande com Agostinho, em particular no

âmbito da doutrina de Deus e da soteriologia. O pensamento teológico de Calvino obedece

a alguns princípios gerais: (a) conteúdo bíblico – apesar de sua formação humanística, ele

rejeitou a teologia natural e optou pelas Escrituras como o caminho mais seguro para o

conhecimento de Deus; antes de ser filosófica ou especulativa, sua reflexão teológica é

ancorada na Palavra de Deus; (b) abrangência – à luz da Bíblia, o reformador procurou não

só abordar todos os temas da teologia, mas um vasto conjunto de questões éticas, políticas,

econômicas e sociais; (c) respeito pela herança cristã – Calvino sabia que a teologia cristã

não começou com ele e por isso se dispôs a aceitar todas as coisas boas e proveitosas que

foram produzidas antes do seu tempo; valorizou a tradição dogmática e exegética da igreja

antiga, expressa nos credos do 4° e do 5° séculos e no pensamento dos pais da igreja; (d)

teocentrismo – a teologia calvinista gira em torno do Deus trino em sua soberania, graça e

glória.

O primeiro dos quatro livros das Institutas trata da doutrina de Deus, incluindo os

seguintes tópicos: o duplo conhecimento de Deus, as Escrituras, a Trindade, a criação e a

providência. A verdadeira sabedoria reside no conhecimento de Deus e de nós mesmos, daí

a importância da revelação. Não se pode conhecer a Deus em sua essência, mas somente na

medida em que ele se dá a conhecer. Há um duplo conhecimento de Deus: como criador e

como redentor. Todo ser humano é essencialmente religioso, tendo em si a semente da

religião (semen religionis). Deus se revela não só por meio desse senso inato, mas ainda por

meio da criação. Esse conhecimento natural requer uma resposta humana, seja de piedade

ou de idolatria. Todavia, o pecado torna a revelação natural insuficiente para o correto

conhecimento de Deus. O ser humano está perdido como em um labirinto; ele ainda possui

a imagem de Deus, mas ela foi totalmente desfigurada.

O genuíno conhecimento de Deus só é possível porque Deus houve por bem se

revelar. Calvino usou o conceito de “acomodação” ou adaptação. Na encarnação, nas

Escrituras, nos sacramentos e na pregação, Deus desce ao nível humano e se adapta à

capacidade humana. Nas Escrituras, ele balbucia aos seres humanos como uma ama fala a

um bebê. Calvino argumenta que a verdadeira teologia é uma reflexão reverente sobre a

revelação escrita. Por isso, ela não deve perder-se em “especulações vãs”, mas ater-se às

Escrituras. Para ele, a Bíblia é a Palavra de Deus inspirada, revelada em linguagem humana

e confirmada ao crente pelo testemunho interno do Espírito Santo. O reformador tratava o

texto bíblico de modo reverente, mas também crítico (por exemplo, ao comparar Atos 7.14

e Gn 46.26). Ele afirmou a coesão entre a Palavra e o Espírito contra os católicos, que

subordinavam as Escrituras à igreja, e contra os fanáticos ou espiritualistas, que se

concentravam no Espírito em detrimento da palavra escrita.

Calvino deu mais atenção à doutrina da Trindade do que Lutero ou Zuínglio. Ele

sustentou a doutrina da igreja antiga de que Deus é uma única essência que subsiste em três

pessoas distintas. Como no caso de Atanásio, no 4° século, a Trindade é fundamental por

ser um testemunho da divindade de Jesus Cristo e, assim, da certeza da salvação realizada

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por ele. Somente alguém que é verdadeiramente Deus poderia redimir os que estavam

totalmente perdidos. A fé na Trindade é confessada na liturgia do batismo e na doxologia,

não para definir plenamente o ser de Deus, mas somente para permanecer em silêncio

diante do mistério da sua presença (Agostinho). Ainda no Livro I das Institutas, Calvino

descreve a atividade de Deus em relação ao mundo na criação e na providência. O mundo

criado é o “deslumbrante teatro” da glória de Deus. Depois que as pessoas são iluminadas

pelo Espírito Santo e têm o auxílio dos “óculos” das Escrituras, a criação pode fornecer um

conhecimento de Deus mais lúcido e edificante. Ele reafirmou o antigo ensino cristão de

que Deus criou o mundo a partir do nada (ex nihilo).

Em sua doutrina da providência, Calvino criticou duas concepções errôneas: o

fatalismo e o deísmo. A doutrina estóica do destino pressupõe que todos os eventos são

governados pela necessidade da natureza. O reformador ponderou que, na concepção cristã,

o “regente e governador de todas as coisas” não é uma força impessoal, mas o Criador

pessoal do universo, que em sua sabedoria decretou desde a eternidade o que iria fazer e

agora em seu poder realiza o que decretou. Ele também combate a idéia de que Deus criou

o mundo no princípio, mas depois o deixou entregue a si mesmo. Como mostram as

Escrituras, Deus está contínua e eficazmente envolvido no governo da sua criação. Assim, a

providência é uma espécie de continuação do processo criador, tanto nos grandes como nos

pequenos eventos. Essa ênfase na atividade imediata e direta de Deus no mundo leva

Calvino a rejeitar a teoria traducianista da origem da alma, a idéia de que a alma é

transmitida pelo processo da procriação humana (Lutero). Ele cria que, toda vez que uma

criança é gerada, Deus cria uma nova alma ex nihilo.

Apesar de sua interação direta com o mundo, Deus também pode usar causas

secundárias para realizar sua vontade. Ele pode até mesmo usar instrumentos maus (como

Satanás e suas hostes), transformando o mal em bem. Se Deus decreta cada evento, onde

fica a responsabilidade humana? Calvino responde que a providência de Deus não atua de

modo a negar ou tornar desnecessário o esforço humano. As próprias ações humanas são

um dos meios pelos quais Deus realiza seus propósitos. O governo divino de todos os

eventos não torna Deus o autor do pecado? Assim como Lutero, Calvino distingue entre a

vontade revelada e a vontade oculta de Deus. Ao enviar Cristo para a cruz, a Bíblia diz que

Herodes e Pilatos estavam cumprindo o que Deus havia determinado (Atos 4.27-28). Ao

mesmo tempo, eles também estavam violando a vontade expressa de Deus revelada em sua

lei. Vez após vez Calvino apelou ao mistério e incompreensibilidade das ações de Deus. A

fé verdadeira percebe que, por trás dos sofrimentos, que em si mesmos são maus, existe um

Pai de justiça, sabedoria e amor que prometeu nunca abandonar os seus. Nessas questões,

não se pode submeter Deus aos padrões humanos de julgamento.

No Livro II das Institutas, Calvino tratou de Deus, o Redentor, abordando os

seguintes temas: a queda e a corrupção humana, a lei, os dois testamentos e a pessoa e obra

do Mediador. O reformador geralmente é tido como o autor de um conceito pessimista do

ser humano. Todavia, ele mostrou profunda apreciação pelas realizações humanas na

ciência, na literatura, na arte e em outras áreas, atribuindo-as à graça comum de Deus. A

imagem de Deus no ser humano está seriamente deformada, mas não inteiramente apagada.

No entanto, as muitas virtudes e dons da natureza humana nada valem para alcançar a

justificação. Para se entender plenamente a natureza humana, é preciso olhar para Jesus

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Cristo, o verdadeiro ser humano. Calvino define o pecado original como “uma depravação

e corrupção hereditária” da natureza humana, difundida em todas as partes da alma, que

torna os seres humanos sujeitos à ira de Deus e produz neles as “obras da carne”. Vale

destacar dois aspectos: (a) não podemos simplesmente culpar Adão por nossa condição

pecaminosa; o pecado de Adão é também o nosso pecado; (b) o pecado original não se

limita a uma dimensão da pessoa humana, mas permeia toda a vida e a personalidade.

Pecado não é somente o ato, mas a inclinação da própria natureza humana em sua condição

decaída. A essência do pecado de Adão, que se repete em diferentes graus nos seus

descendentes, é orgulho, desobediência, incredulidade e ingratidão. Somente a consciência

de sua pecaminosidade pode preparar as pessoas para ouvir as boas novas da libertação do

pecado através de Jesus Cristo.

A teologia de Calvino é fortemente cristocêntrica. A revelação de Deus em Cristo é

o supremo exemplo de sua acomodação à capacidade humana. Precisamos de um Mediador

tanto por sermos pecadores quanto por sermos criaturas. Cristo como Mediador é

verdadeiro Deus e verdadeiro homem (1Tm 3.16). Ele é o Verbo eterno de Deus gerado do

Pai antes de todas as eras, que, em sua encarnação, ocultou a sua divindade sob o “véu” da

sua carne. Todavia, mais importante que conhecer a essência de Cristo é conhecer com que

propósito ele foi enviado pelo Pai. Calvino explicou a obra de Cristo em conexão com o seu

tríplice ofício de Profeta, Sacerdote e Rei, personagens que eram ungidos no Antigo

Testamento, prefigurando o Messias. Como Profeta, ele foi ungido pelo Espírito para ser

arauto e testemunha da graça de Deus, fazendo-o através do seu ministério de ensino e

pregação. Na qualidade de Rei, Cristo atua como o vice-regente do Pai no governo do

mundo; um dia sua vitória e senhorio se manifestarão plenamente. Em seu ofício

sacerdotal, ele foi um Mediador puro e imaculado que aplacou a ira de Deus e fez perfeita

satisfação pelos pecados humanos. Não somente a morte de Cristo tem efeito redentor, mas

toda a sua vida, ensinos, milagres e sua contínua intercessão nos céus, à destra do Pai. A

obra expiatória de Cristo tem também um aspecto subjetivo, pelo qual os crentes são

chamados a uma vida de obediência.

O III Livro tem como título “A maneira como recebemos a graça de Cristo, seus

benefícios e efeitos” e é um tratado sobre a vida cristã. Inclui temas como a obra do

Espírito Santo, fé e regeneração, arrependimento, negação de si mesmo, justificação,

santificação, oração, eleição e ressurreição. Toda a obra de Calvino pode ser interpretada

como um esforço de formular uma espiritualidade autêntica, isto é, uma vida no Espírito,

baseada na Palavra de Deus revelada, vivida no contexto da igreja e direcionada para o

louvor e a glória de Deus. Dois temas merecem destaque especial: seus conceitos sobre fé e

eleição. Calvino começa por rejeitar certas noções equivocadas: “fé histórica” (mero

assentimento intelectual), “fé implícita” (submissão ao juízo coletivo da igreja) e “fé

informe” (estágio preliminar da fé). Ele define a fé como “um conhecimento firme e certo

da benevolência de Deus para conosco, fundada na verdade da promessa dada

gratuitamente em Cristo, revelada a nossas mentes e selada em nossos corações pelo

Espírito Santo” (Institutas 3.2.7).

Antes de ser uma capacidade inata do ser humano, ela é um dom sobrenatural do

Espírito Santo. É também uma resposta humana genuína pela qual os eleitos ingressam na

sua nova vida em Cristo. Entre os efeitos da fé estão a regeneração, o arrependimento e o

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perdão dos pecados. O arrependimento é “a verdadeira conversão de nossa vida a Deus,

procedente de um sincero e real temor de Deus, que consiste da mortificação de nossa carne

e do velho homem e da vivificação do espírito” (Inst. 3.3.5). É um processo contínuo que

deve estender-se por toda a vida. Embora possa ser assaltada por dúvidas, a fé verdadeira

por fim triunfará sobre todas as dificuldades. Os descrentes podem, quando muito, ter uma

“fé temporária”. Já os crentes verdadeiros, ainda que cometam pecados, mesmo pecados

graves, são sustentados pelo Espírito e finalmente não irão perder-se. O mais longo capítulo

das Institutas é dedicado à oração, que Calvino chamou “o principal exercício da fé e o

meio pelo qual recebemos diariamente os benefícios de Deus”.

Calvino usou a palavra “predestinação” pela primeira vez na edição de 1539 das

Institutas. A sua doutrina nessa área não tem nada de original: nos pontos essenciais ele não

difere de Lutero, Zuínglio ou Bucer, todos os quais recorreram a Agostinho. A inovação de

Calvino consistiu no lugar em que colocou a doutrina em seu sistema teológico, não em

conexão com a doutrina da providência (Livro I), mas no final do Livro III, que trata da

aplicação da obra da redenção. Calvino não começou com a predestinação e depois foi para

a expiação, regeneração, justificação e outras doutrinas. Ele a introduziu como um

problema resultante da pregação do evangelho. Por que, quando o evangelho é proclamado,

alguns respondem e outros não? Nessa diversidade, ele afirmou, torna-se manifesta a

maravilhosa profundidade do juízo de Deus. Trata-se, pois, de uma preocupação pastoral.

A doutrina de Calvino sobre a predestinação pode ser resumida em três termos: (a)

absoluta: não é condicionada por quaisquer circunstâncias finitas, mas repousa

exclusivamente na vontade imutável de Deus; (b) particular: aplica-se a indivíduos e não a

grupos de pessoas; Cristo não morreu por todos indiscriminadamente, mas somente pelos

eleitos; (c) dupla: Deus em sua misericórdia ordenou alguns indivíduos para a vida eterna e

em sua justiça ordenou outros para a condenação eterna. Calvino cria que essa doutrina era

claramente encontrada nas Escrituras e não queria dizer nada sobre a predestinação que não

pudesse ser tomado da Bíblia. Ele também não permitiu que a doutrina fosse usada como

desculpa para não proclamar o evangelho a todos.

No Livro IV das Institutas, intitulado “Os meios externos pelos quais Deus nos

convida para a sociedade de Cristo”, Calvino falou sobre a igreja verdadeira, seus oficiais,

os sacramentos e o governo civil. Ele também abordou essas questões nos seus comentários

das epístolas pastorais. Mais que os outros reformadores, ele se preocupou com a relação

entre a igreja invisível e a igreja como uma instituição que pode ser reconhecida através de

certas marcas distintivas. Tais marcas são, acima de tudo, a correta pregação da Palavra e a

fiel ministração dos sacramentos. Embora não tenha incluído a disciplina eclesiástica entre

as marcas da igreja, ele a valorizava grandemente em virtude de sua ênfase na santificação

como o alvo da vida cristã. Em contraste com a ênfase luterana unilateral na justificação,

Calvino deu precedência à santificação. O contexto da santificação é a igreja visível, na

qual os eleitos participam dos benefícios de Cristo não como indivíduos isolados, mas

como membros de um corpo. Assim, a igreja visível torna-se uma “comunidade santa”.

A eclesiologia de Calvino tem dois pólos em contínua tensão: a eleição divina

(igreja invisível) e a congregação local (igreja visível). Seguindo Agostinho, ele sustentou

que a igreja visível é um corpo misto composto de trigo e joio; já a igreja invisível compõe-

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se de todos os eleitos (inclusive anjos, fiéis do Velho Testamento e eleitos que se

encontram fora da igreja verdadeira). A igreja é a mãe de todos os crentes porque os leva ao

novo nascimento através da Palavra de Deus, bem como os educa e alimenta durante toda a

sua vida. Esse caráter maternal da igreja é visto de modo especial na ministração dos

sacramentos. O batismo é o ingresso do crente na igreja e o símbolo de sua união com

Cristo. Ele visa confirmar a fé dos eleitos, mas deve ser aplicado a todos os que estão na

igreja visível. Quanto à Santa Ceia, Calvino adotou uma posição intermediária entre Lutero

e Zuínglio. Embora Cristo esteja nos céus à destra do Pai, a ceia não é mero símbolo, mas

um meio de “verdadeira participação” em Cristo. A igreja é também uma escola que instrui

seus alunos no caminho da santidade. O reformador encontrou nas Escrituras o quádruplo

ofício de pastor, mestre, presbítero e diácono, que é a base da forma de governo

incorporada nas Ordenanças Eclesiásticas. Dentre eles, o de pastor é o mais honroso e o

mais necessário para o bem-estar da igreja.

Calvino rejeitou o conceito anabatista de que a igreja devia isolar-se da sociedade e

da cultura. A relação entre a igreja e o mundo inclui tanto tensão quanto interação. O seu

entendimento do governo de Deus e da soberania de Cristo sobre toda a criação, e não

somente sobre a igreja, levou-o a defender a participação na sociedade. O governo de Cristo

deve manifestar-se idealmente através de governantes piedosos. Os magistrados deviam

manter a ordem cívica e a uniformidade religiosa. Todavia, igreja e estado têm esferas de

atuação separadas e autônomas. Os cristãos devem obedecer até mesmos os governantes

que oprimem a igreja, orando por seu bem-estar, porque foram instituídos por Deus.

Textos: Costa, Calvino de A a Z.

Análises: Olson, 418-423; González, III:135-180; Lane, II:14-21; Hägglund, 223-228;

McGrath, 103-104, 255-258, 523-524, 532-533, 549-552; George, 163-247; Tillich, 259-

271.

5. A tradição anabatista

Os estudiosos classificam os movimentos de reforma protestante do século 16 em

duas categorias: Reforma Magisterial e Reforma Radical. Os reformadores alemães, suíços

e ingleses são denominados magisteriais porque trabalharam em estreita colaboração com

os magistrados, ou seja, as autoridades civis. Ao contrário desses reformadores (Lutero,

Zuínglio, Calvino, Thomas Cranmer), a Reforma radical incluiu os protestantes do século

16 que defenderam a separação entre a igreja e o estado, rejeitaram a coerção nas questões

religiosas, repudiaram o batismo infantil em favor do batismo de crentes e enfatizaram a

experiência da conversão mais do que a justificação. Eles tendiam a se afastar da sociedade

e rejeitaram o treinamento teológico formal e o ministério profissional. Enfatizavam a vida

cristã prática mais do que credos e confissões de fé. Seu ideal era restaurar a igreja do Novo

Testamento, ou seja, voltar às raízes, algo que, no seu entender, a Reforma magisterial

havia deixado de fazer.

A Reforma radical inclui três grupos distintos: (a) os espirituais ou espiritualistas,

como Caspar Schwenkfeld (1489-1561), cuja religiosidade mística dava ênfase à “luz

interior” do Espírito Santo, movimento esse que influenciou os quacres ingleses, liderados

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por George Fox (1624-1691); (b) os racionalistas antitrinitários, como Miguel Serveto

(1511-1553) e Fausto Socino (1539-1604), que mais tarde deram origem aos unitários

ingleses e norte-americanos; (c) e principalmente os anabatistas, o grupo maior e mais

influente. Estes surgiram em Zurique, em 1525, com o nome de “irmãos suíços”. Depois,

espalharam-se por boa parte da Europa, divididos em vários segmentos: menonitas,

hutteritas, amish, Igrejas dos Irmãos.

O movimento teve início entre ex-simpatizantes de Ulrico Zuínglio, sendo seus

primeiros líderes Jorge Blaurock, Félix Manz e Conrado Grebel. Após cuidadoso estudo do

Novo Testamento e oração, eles concluíram que só o batismo de crentes era genuíno. No

dia 25 de janeiro de 1525, batizaram uns aos outros por efusão, a começar de Blaurock, um

ex-sacerdote. A seguir, percorreram o norte da Suíça e o sul da Alemanha pregando a

necessidade de conversão antes do batismo e “rebatizando” centenas de católicos e

protestantes. Em Waldshut, toda a igreja protestante de Baltasar Hubmaier foi rebatizada.

Em Zurique, depois que os anabatistas fizeram muitos protestos, inclusive interrompendo

cultos e celebrações da ceia, as autoridades civis, apoiadas por Zuínglio, promulgaram leis

cada vez mais rigorosas contra eles. Félix Manz foi o primeiro mártir anabatista ao ser

executado por afogamento em janeiro de 1527. Nos anos seguintes, milhares de anabatistas

foram caçados em diversas regiões da Europa e muitos foram executados. Jorge Blaurock

foi queimado na fogueira em 1529. Além de hereges, as autoridades civis e religiosas os

consideravam rebeldes perigosos. Eles também foram apelidados “fanáticos”, “entusiastas”

e outros termos. Lutero se referia a eles como “Schwärmer” (enxame de abelhas).

Um importante líder do movimento em Estrasburgo foi Miguel Sattler (c.1490-

1527). Ele presidiu a conferência de Schleitheim, em 1527, na qual foi aprovada a

Confissão de Schleitheim, contendo os princípios anabatistas básicos: restauração do

cristianismo primitivo, igreja como congregações voluntárias separadas do estado, batismo

de crentes, afastamento do mundo, igualdade e fraternidade, pacifismo, proibição do porte

de armas, cargos públicos e juramentos. Os anabatistas receberam uma reputação negativa

devido a um caso de extremo fanatismo na cidade de Münster, na Alemanha (1532-1535).

Todavia, na Holanda o movimento teve um líder equilibrado e capaz na pessoa de Menno

Simons. Entre outras razões, a tradição anabatista é importante pela grande influência que

exerceu sobre o movimento evangélico posterior. Os dois pensadores anabatistas mais

influentes do século 16 foram Baltasar Hubmaier e Menno Simons.

Textos:

Análises: Olson, 425-429; González, III:87-104; Lane, II:30-32; McGrath, 100-101, 552-

554.

6. Baltasar Hubmaier e Menno Simons

Baltasar Hubmaier (1481-1528) foi um renomado estudioso católico antes de

abraçar o protestantismo. Em 1515, tornou-se vice-reitor da Universidade de Ingolstadt, na

Alemanha, e no ano seguinte assumiu as funções sacerdotais na catedral de Regensburg, na

Baviera. Aderiu à fé protestante em 1522, aceitando o pastorado de uma pequena igreja

reformada em Waldshut, perto de Zurique, e apoiando o trabalho de Ulrico Zuínglio. No

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início de 1525, começou a externar sua oposição ao batismo infantil. Na Páscoa daquele

ano, sua igreja tornou-se a primeira congregação anabatista. Escreveu o primeiro tratado do

novo movimento, O batismo cristão dos crentes, em resposta a críticas de Zuínglio. Após

um debate público com o reformador de Zurique, este mandou prendê-lo. Sob tortura,

assinou uma retratação e foi para a cidade de Nikolsburg, na Morávia, onde havia certa

liberdade religiosa. Batizou ali mais de seis mil pessoas. Foi preso pela polícia imperial e

condenado à morte em Viena, sendo executado em 1528. Três dias depois, sua esposa foi

condenada ao afogamento no rio Danúbio.

Hubmaier acreditava que Lutero e Zuínglio não tinham se libertado do

constantinismo (ligação entre a igreja e o estado) e do agostinismo (doutrinas da salvação e

dos sacramentos). Para ele, as comunidades protestantes eram igrejas estatais, coextensivas

com a sociedade, nas quais era impossível distinguir os crentes genuínos dos falsos porque

todos tinham sido batizados na infância. Criticou a coerção do pensamento e a perseguição

dos dissidentes. Como Erasmo, afirmou o livre-arbítrio e o sinergismo entre a ação humana

e a graça de Deus na salvação. Quanto à ceia do Senhor, concordou plenamente com

Zuínglio e se opôs a Lutero. No centro da sua teologia está a conversão individual, baseada

na fé como uma livre decisão de crer no evangelho. Somente os convertidos devem ser

membros de igrejas locais. O batismo é somente um testemunho público da conversão;

portanto, o batismo infantil é ilegítimo.

Em Um catecismo cristão (1528), Hubmaier falou de três tipos de batismo: no

Espírito (conversão e regeneração com base no arrependimento e na fé), na água

(testemunho externo e público do batismo interno no Espírito) e no sangue (mortificação da

carne ou santificação). Ao defender o livre-arbítrio, atribuiu-o à atuação de Cristo e do

Espírito Santo, e não a uma capacidade natural que sobreviveu à queda, a posição de

Erasmo. Ensinou o que a teologia chama de “graça preveniente”: a graça resistível de Deus

que chama, convence e capacita. Opôs-se à predestinação incondicional (o monergismo de

Agostinho e dos reformadores magisteriais). A eleição se baseia inteiramente na presciência

de Deus. Hubmaier foi o primeiro a defender o chamado “sinergismo evangélico”, ou seja,

a idéia de que o livre-arbítrio, destruído pela queda, é restaurado por Cristo e pelo Espírito

Santo que opera por meio da Palavra. Essa posição foi desenvolvida pelos seguidores de

Jacó Armínio no início do século 17.

O líder mais notável dos anabatistas foi Menno Simons (1496-1561), nascido em

Witmarsum, nos Países Baixos. Ele foi ordenado sacerdote em 1524, tornando-se pároco

em sua cidade natal, onde teve uma vida irregular. A partir de 1530, passou a ler as obras

de Lutero e Zuínglio e entrou em contato com anabatistas. Em 1535, seu irmão Pedro

tornou-se anabatista e foi executado. Esse evento o levou a uma profunda experiência de

conversão. Apesar de uma ordem de prisão emitida pelo imperador Carlos V, viajou por

muitos anos no norte da Europa, pregando, criando igrejas anabatistas e escrevendo

numerosos livros, panfletos, sermões, hinos e cartas. Não era erudito como Hubmaier, mas

conhecia a fundo as Escrituras. Um dos seus tratados mais influentes foi O fundamento da

doutrina cristã, escrito em 1540 e revisto em 1558, que continha uma síntese das principais

crenças anabatistas.

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Sua teologia, como a de Hubmaier, se concentrava na experiência da salvação.

Reconhecia as realizações dos reformadores magisteriais, mas entendia que seu trabalho

tinha ficado incompleto, por manterem tradições supostamente antibíblicas como o batismo

infantil. Segundo ele, as crianças nascem sem culpa e não precisam de conversão e batismo

até atingir a idade do discernimento moral. Graças à obra expiatória de Cristo, Deus afasta

temporariamente a culpa do pecado original até o momento em que as pessoas pecam de

modo deliberado. Em sua opinião, os reformadores principais deram destaque à fé em

prejuízo do arrependimento. Por sua vez, Menno deu pouca ênfase ao conceito forense da

justificação (justiça imputada ou atribuída), concentrando-se no seu aspecto moral – o

pecador regenerado realmente começa a se tornar justo interiormente, a mesma ênfase da

teologia católica.

Menno foi o principal responsável pela adoção do pacifismo pelos anabatistas. Ao

contrário dos que o precederam, ele defendeu a completa não-resistência por parte dos

cristãos, conforme o ensino de Cristo, sem deixar de reconhecer o direito do estado de

empregar a força para proteger os inocentes e castigar os malfeitores. Outro elemento

controvertido do pensamento desse líder, expresso em seu tratado A encarnação de nosso

Senhor (1554), foi a sua opinião de que o homem Jesus Cristo teve sua origem integral no

céu e não recebeu nada de essencial de Maria, a não ser o ingresso na vida terrestre a partir

da existência celeste. Ao que parece, essa idéia derivou do desejo de resguardar a

impecabilidade de Jesus e não se incorporou às crenças anabatistas.

Textos:

Análises: Olson, 429-439; González, III:87-104; Lane, II:32-35; George, 251-303.

7. A tradição anglicana

A Reforma inglesa foi muito diferente do que ocorreu em outros países, porque teve

a participação direta de vários soberanos. Ela foi iniciada por Henrique VIIII (1491-1547),

que queria divorciar-se da esposa, Catarina de Aragão, porque ele não lhe deu um filho

varão para sucedê-lo no trono. Como o papa negou-se a anular o seu casamento, em 1533 o

rei rompeu as ligações da igreja inglesa com Roma e nomeou primaz da Inglaterra o

teólogo Thomas Cranmer, da Universidade de Cambridge. Como arcebispo de Cantuária,

Cranmer legitimou o divórcio e novo casamento de Henrique, que em 1534 declarou-se

“chefe supremo” da igreja católica inglesa. Essa igreja permaneceu plenamente católica,

embora independente do papa.

Henrique foi sucedido por seu filho Eduardo VI, de apenas nove anos e saúde frágil,

que reinou de 1547 a 1553. Os tutores do jovem rei, tendo à frente o arcebispo Cranmer,

implantaram a Reforma na Inglaterra, contando para isso com o apoio de vários teólogos

vindos do continente, como Martin Bucer. O próprio Cranmer residiu por algum tempo em

Nuremberg, Alemanha, e se casou com a sobrinha do reformador luterano local, André

Osiander. Cranmer elaborou em 1549 um manual de culto para a igreja e o revisou em 1552

(Livro de oração comum). Eduardo foi sucedido por sua meia-irmã Maria, uma católica

fervorosa, que ficou conhecida como “a Sanguinária”. Ela restaurou o catolicismo e

mandou executar mais de 300 líderes protestantes, entre eles o próprio arcebispo Cranmer

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(21-03-1556). Muitos adeptos da Reforma fugiram para o continente, buscando refúgio em

cidades como Genebra, Frankfurt e Estrasburgo. Com a morte de Maria, subiu ao trono sua

meia-irmã Elizabete, que reinou por 45 anos (1558-1603). Sob sua influência, a Igreja

Anglicana adquiriu sua forma definitiva, reunindo elementos católicos (governo, liturgia) e

protestantes (teologia). A forma de governo adotada foi a episcopal. Além do Livro de

oração comum, os ministros deviam aceitar uma declaração doutrinária, os Trinta e nove

artigos de religião (1563). A teologia seria moderadamente reformada.

No reino vizinho, a Escócia, os acontecimentos evoluíram de forma diferente. Sob a

liderança do reformador João Knox (1514-1572), que havia ido para Genebra como exilado

e retornou em 1559, o Parlamento criou uma igreja nacional presbiteriana, de orientação

reformada e calvinista (1560). Na Igreja da Inglaterra, surgiram dois partidos: a Igreja Alta

– ritualista, defensora da sucessão apostólica, da hierarquia e de uma liturgia formal, e a

Igreja Baixa – evangélica, partidária de uma reforma calvinista na igreja. Esses defensores

da purificação da igreja inglesa em seu culto, teologia e forma de governo ficaram

conhecidos como “puritanos”. Eles reivindicaram a abolição do Livro de oração, dos

bispos, do sacerdócio, das vestes litúrgicas e de outros vestígios da tradição católica. A

distinção entre Igreja Alta e Igreja Baixa se mantém até hoje na tradição anglicana

(ritualistas e evangélicos). O principal teólogo anglicano no reinado de Elizabete foi

Richard Hooker, da ala tradicionalista.

Textos: Bettenson, 392-406;

Análises: Olson, 441-445; González, III:181-198; Hägglund, 251-257.

8. Thomas Cranmer e Richard Hooker

A Reforma inglesa é muito importante porque a Inglaterra veio a ter enorme

influência na história posterior do protestantismo internacional. Essa reforma foi precedida

e preparada por uma série de personagens e eventos: a obra do pré-reformador João

Wycliffe e seus seguidores, a infiltração de idéias luteranas a partir de 1520, o Novo

Testamento do mártir William Tyndale (1525) e a atuação dos “refugiados marianos”.

Todavia, o verdadeiro fundador do protestantismo inglês foi o arcebispo Thomas Cranmer

(1481-1556). Ele prefaciou e mandou distribuir em todas as igrejas a primeira Bíblia

inglesa impressa (Grande Bíblia ou Bíblia de Cranmer). Foi o autor dos dois documentos

básicos do anglicanismo – o Livro de oração comum (1552) e os Quarenta e dois artigos

(1553), base para os Trinta e nove artigos posteriores. As principais influências teológicas

que recebeu foram luteranas e reformadas. Foi especialmente importante a sua amizade

com Martin Bucer, o reformador de Estrasburgo, conhecido por suas posições moderadas e

conciliadoras.

De modo tipicamente anglicano, Cranmer procurou manter o equilíbrio entre a

autoridade suprema da Escritura e o respeito pela tradição cristã antiga (pais da igreja e

credos históricos), especialmente nas questões de liturgia e estrutura eclesiástica. Ele

defendeu o princípio da salvação pela graça mediante a fé, como se observa em seu sermão

“Homilia sobre a salvação” (1547). Ao mesmo tempo, enfatizou a santificação pela prática

de boas obras e, ao contrário de Lutero, valorizou a epístola de Tiago. Deu menor ênfase ao

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sacerdócio de todos os crentes. No tratado Defesa da doutrina verdadeira e católica dos

sacramentos, condenou a concepção romana do sacerdócio. Embora a palavra “sacerdote”

(priest) tenha sido mantida, sua função foi considerada profética e pastoral (pregar, ensinar,

dar assistência espiritual e ministrar os sacramentos), ao invés de especificamente

sacerdotal. Porém, na prática toda a ênfase recaiu no sacerdócio ordenado e na estrutura

hierárquica da igreja estatal, e não no sacerdócio dos fiéis. Seus conceitos sobre os

sacramentos eram semelhantes aos de Calvino e Bucer, dando destaque à importância da fé.

O verdadeiro formulador teológico do anglicanismo elizabetano foi Richard Hooker

(1554-1600). Ele recebeu uma educação reformada, mas se converteu ao anglicanismo na

Universidade de Oxford. Em 1584, a rainha o nomeou mestre do Templo de Londres, tendo

como colega o puritano Walter Travers (1548-1635), com o qual se revezava no púlpito.

Desenvolveu as idéias de Cranmer favoráveis à linha tradicionalista, com sua liturgia

elaborada e governo hierárquico, no que teve o pleno apoio de Elizabete. Sua influência se

fez sentir através de seus sermões e da importante obra em vários volumes As leis do

governo eclesiástico. Sustentou a suprema suficiência e autoridade das Escrituras (art. 6°

dos Trinta e nove artigos), mas reconheceu outras autoridades subsidiárias, como a

tradição, as leis nacionais e a consciência individual. Fez uso da teologia natural tomista, na

qual a graça não conflita com a natureza. O ser humano possui a luz da razão e liberdade

moral (livre-arbítrio). A mente humana natural, mesmo sem o auxílio da revelação especial,

pode discernir algo de Deus e cooperar com a graça.

Hooker aceitou a antiga idéia católica e ortodoxa da salvação como deificação,

acreditando que os sacramentos unem a pessoa a Deus e a tornam verdadeiramente santa e

imortal. Ele apenas acrescentou que esse processo pressupõe a fé e só se completa no céu.

Embora aceitasse o sacerdócio de todos os crentes, defendeu o clericalismo da tradição

anglicana, aproximando-se do sacerdotalismo católico. Defendeu e fortaleceu o ofício de

bispo e estreitou os laços entre a igreja e o estado. Era um ardoroso defensor da via media

entre o catolicismo e o protestantismo, e tinha uma atitude aberta e tolerante em relação aos

católicos. Seu pensamento não se baseava em dualismos radicais (certo x errado), mas em

gradações.

Quanto aos documentos teológicos básicos da tradição anglicana, o Livro de oração

comum, que já sofreu muitas revisões, teve o propósito básico de simplificar e uniformizar

a liturgia anglicana. Ele define os textos dos sermões para todos os domingos, bem como as

leituras, litanias, modelos para cultos especiais e celebração dos sacramentos. Os Trinta e

nove artigos, de teor claramente protestante, são a confissão doutrinária oficial do

anglicanismo. Afirmam a Trindade, as duas naturezas de Cristo, a autoridade suprema das

Escrituras, a autoridade especial dos credos antigos, a salvação pela graça por meio da fé e

a eleição. Evitam a dupla predestinação e admitem a possibilidade de basear a eleição na

presciência. Por ser herdeira direta de movimentos anteriores, a Reforma inglesa não trouxe

grandes inovações no campo da teologia histórica.

Textos:

Análises: Olson, 447-456; González, III:181-198; Lane, II:35-48; Hägglund, 251-257.

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9. A Reforma Católica

A reação da Igreja Católica Romana diante da Reforma Protestante teve dois

aspectos. Em primeiro lugar, houve um esforço no sentido de deter o avanço protestante e

recuperar as regiões conquistadas pelo novo movimento. Esse fenômeno recebeu o nome de

Contra-Reforma. Um de seus instrumentos foi a Inquisição, que se voltou com intensidade

crescente contra os “hereges”. Foi o que aconteceu, por exemplo, na Espanha. Outro

recurso importante foi uma nova ordem religiosa, a Sociedade de Jesus (jesuítas). Fundada

por Inácio de Loiola, a ordem foi aprovada pelo papa em 1540, tendo como um dos seus

principais objetivos a luta contra o protestantismo. A Contra-Reforma também usou o

poderio militar de várias nações aliadas de Roma, que promoveram guerras contra os

dissidentes. Dois exemplos são as guerras religiosas da França (1562-1598), cujo episódio

mais brutal foi o massacre da noite de São Bartolomeu, e a devastadora Guerra dos Trinta

Anos (1618-1648). Ao mesmo tempo, a igreja procurou corrigir abusos, aperfeiçoar a sua

estrutura e definir com maior precisão as suas doutrinas. A isso se denominou a Reforma

Católica. Sua principal expressão foi o Concílio de Trento, que se reuniu em três séries de

sessões entre 1545 e 1563.

Nas décadas de 1520 e 1530, vários líderes católicos pediram a convocação de um

concílio para reagir ao movimento protestante e reformar a igreja. Os principais foram,

além de Erasmo de Roterdã, os cardeais Gasparo Contarini (1483-1542) e Jacopo Sadoleto

(1447-1547). O papa Paulo III convocou o XIX Concílio Ecumênico, que se reuniu na

pequena cidade de Trento, na fronteira entre os estados papais e o Sacro Império Romano.

O imperador esperava que o concílio reconciliasse os dois grupos rivais, ao passo que o

papa estava mais interessado em que ele definisse as diferenças entre ambos. Desde a

perspectiva católica, o Concílio de Trento foi muito bem sucedido. Ele fortaleceu o

catolicismo e estimulou a sua revitalização. Livrou a igreja da corrupção e criou um corpo

de decretos e um credo que uniformizaram o dogma católico e condenaram as posições

protestantes.

Assim como a Reforma inglesa, a Reforma Católica pouco contribuiu para a história

da teologia. Trento definiu de modo normativo o que os católicos deviam crer. Rejeitar suas

decisões é heresia e pode dar margem à excomunhão. O concílio declarou que a doutrina e

a prática cristãs têm duas fontes de autoridade: as Escrituras e a tradição oral da igreja,

afirmada como recebida de Cristo ou inspirada pelo Espírito Santo. Também definiu a

Vulgata Latina como a edição autêntica da Bíblia (incluindo os livros “apócrifos” ou

deuterocanônicos) e declarou que Roma é a intérprete final das Escrituras. O decreto sobre

a justificação rejeitou a idéia de que as pessoas salvas são somente declaradas justas (justiça

forense). Justificação e santificação são dois aspectos inseparáveis da salvação. Ao final

desse decreto, o concílio aprovou 33 cânones com anátemas contra as posições contrárias.

Trento negou a salvação pela graça mediante a fé somente e transformou a justificação em

um processo que envolve a cooperação da vontade humana (sinergismo) e boas obras

meritórias. Igualmente rejeitou o sacerdócio de todos os crentes, reafirmando a hierarquia

tradicional da igreja. Também reafirmou os antigos ensinos acerca do purgatório, da

transubstanciação e das indulgências. Essas decisões aprofundaram ainda mais o fosso entre

católicos e protestantes. Estes, por sua vez, também declararam formalmente a sua fé

através de um grande número de documentos confessionais.

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Textos: Bettenson, 359-372.

Análises: Olson, 445-447, 456-461; González, III:199-250; Lane, II:64-77; Hägglund, 245-

249; Tillich, 212-219; Noll, 206-230; McGrath, 101; 116-117, 524-528.

PARTE 4

PERÍODO MODERNO

1. O escolasticismo protestante

No século 16, os três ramos da Reforma magisterial (luteranos, reformados e

anglicanos) permaneceram relativamente estáveis. Porém, no século seguinte eles sofreram

rupturas e geraram novos movimentos. O luteranismo viu surgir o piestismo, com sua forte

ênfase na experiência e na emoção religiosa; o anglicanismo, dividido entre ritualistas e

puritanos, deu origem aos congregacionais, aos batistas e mais tarde aos metodistas. Os

reformados enfrentaram uma séria controvérsia no início do século 17, na Holanda, onde se

defrontaram calvinistas ortodoxos e seguidores do pastor e teólogo Jacó Armínio, os quais

rejeitaram a doutrina calvinista clássica em favor da posição de Erasmo de Roterdã e dos

anabatistas, favorável ao sinergismo e ao livre-arbítrio. Essa tentativa de reforma da

teologia reformada acabou gerando uma nova teologia protestante – o arminianismo.

O contexto teológico dessa controvérsia foi o chamado escolasticismo ou ortodoxia

protestante. Os primeiros reformadores reagiram contra a teologia escolástica, com sua

ênfase na razão. Todavia, seus seguidores imediatos utilizaram a filosofia e a lógica para

articular sistemas altamente complexos de teologia. Seu objetivo era definir mais

precisamente a herança doutrinária dos diferentes grupos, muitas vezes no contexto de

intensas controvérsias – a luta contra heresias e contra as críticas dos adversários católicos e

protestantes. Tratava-se de uma teologia acadêmica caracterizada pela detalhada

classificação dos temas, definições precisas, deduções lógicas e especulação metafísica,

bem como pela tentativa de eliminar o elemento de mistério, incerteza e ambigüidade.

Muitos pensadores, mesmo sem perceber, imitaram o estilo de Tomás de Aquino. O

escolasticismo protestante ou ortodoxia protestante manifestou-se tanto entre os luteranos

quanto entre os reformados. Resultou no surgimento das primeiras teologias sistemáticas e

de documentos confessionais bastante longos e elaborados.

Um exemplo clássico dessa preocupação entre os calvinistas foi Teodoro Beza

(1519-1605), sucessor de João Calvino, diretor e professor da Academia de Genebra,

teólogo muito influente no movimento reformado. A partir de uma reflexão sobre os

decretos de Deus, Beza formulou uma posição teológica denominada supralapsarismo (de

supra = antes e lapsus = queda). Calvino havia ensinado a doutrina da predestinação, mas a

situou dentro da soteriologia, como parte da atividade graciosa de Deus, admitindo que se

tratava de uma área difícil, delicada e misteriosa. Beza deu maior ênfase a essa doutrina e a

situou dentro da doutrina de Deus, aproximando-se mais de Zuínglio do que de Calvino.

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Visando proteger a doutrina da predestinação de qualquer possibilidade de sinergismo, ele e

outros calvinistas ortodoxos desenvolveram o supralapsarismo ao refletir sobre a ordem

lógica, não cronológica, dos decretos de Deus. Nessa corrente, a ordem dos decretos ficou

sendo a seguinte: 1. decreto de predestinar alguns para a salvação e outros para a perdição;

2. decreto de criar o mundo e a humanidade; 3. decreto de permitir a queda; 4. decreto de

prover os meios de salvação (Cristo e o evangelho); 5. decreto de aplicar a salvação aos

eleitos.

Como se pode ver, o decreto de predestinação é o mais fundamental, antecedendo

todos os demais, em especial o de permitir a queda. Daí, supralapsarismo, isto é, antes da

queda. Outros teólogos ortodoxos elaboraram uma posição um pouco diferente – o

infralapsarismo, ou seja, o decreto de predestinação é posterior à queda, da seguinte

maneira: 1. decreto de criar o mundo e os seres humanos; 2. decreto de permitir a queda; 3.

decreto de predestinação para a salvação ou a perdição, sendo o quarto e o quinto

semelhantes à outra posição. Assim sendo, no supralapsarismo o propósito de Deus é

glorificar a si mesmo pela predestinação; no infralapsarismo, seu propósito é glorificar-se

pela criação. No primeiro caso, o decreto se aplica aos homens como criaturas; no segundo,

se aplica a eles como pecadores.

Na segunda metade do século 16, os partidários dessas duas correntes gradualmente

formularam um sistema de teologia calvinista que posteriormente recebeu a designação de

“os cinco pontos do calvinismo”: (a) depravação total: os seres humanos estão mortos

espiritualmente até que Deus os regenere e lhes conceda graciosamente a dádiva da

salvação; (b) eleição incondicional: Deus escolhe alguns seres humanos para a salvação,

independentemente de qualquer coisa que eles possam fazer; (c) expiação limitada: Cristo

morreu somente para salvar os eleitos; sua morte expiatória não foi em benefício de todos;

(d) graça irresistível: não é possível resistir à graça de Deus; os eleitos serão

necessariamente salvos; (e) perseverança dos santos: os eleitos irão perseverar

inevitavelmente para a salvação (eterna segurança). As iniciais dessas expressões em inglês

formam a palavra tulip (“tulipa”), nome pelo qual elas também ficaram conhecidas

historicamente.

Outros destacados teólogos reformados desse período foram os holandeses Johannes

Cocceius (1603-1669) e Gisbertus Voetius (1588-1676), o francês Moise Amiraut (1596-

1664) e especialmente o suíço François Turretin (1623-1687). Este último escreveu uma

teologia sistemática muito influente, Institutio Theologiae Elencticae (1679-1685), que

seria utilizada por muitos anos no Seminário de Princeton, nos Estados Unidos, servindo de

base para a chamada Teologia de Princeton.

A mesma preocupação com uma ortodoxia rigorosa surgida entre os reformados a

partir do final do século 16 também ocorreu entre os luteranos. Poucas décadas após a

morte de Martinho Lutero, os principais teólogos do movimento começaram a sistematizar

racionalmente a doutrina, elaborando formulações extremamente detalhadas, muitas vezes

mediante o uso da teologia natural e da lógica aristotélica. Esse esforço se concentrou nas

principais universidades luteranas, nas quais a teologia era encarada como um conjunto de

verdades formalmente declaradas para serem transmitidas a cada nova geração. Além de

suas tendências escolásticas e racionalistas, essa ortodoxia tinha uma forte preocupação

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polêmica que se manifestava na pregação e no ensino. Foi esse o treinamento teológico

recebido pela maior parte dos pastores luteranos do período.

Como no caso dos reformados, a ortodoxia luterana teve aspectos positivos e alguns

de seus representantes foram indivíduos de grande piedade e fervor cristão. Todavia, de um

modo geral o intelectualismo e o formalismo que ela estimulou foram prejudiciais para a fé,

produzindo frieza espiritual, moral e teológica. O cristianismo verdadeiro era equiparado à

correção doutrinária e sacramental. A ênfase principal não era colocada na espiritualidade

interior, mas em elementos externos como a liturgia, os sacramentos e as confissões

luteranas. Um exemplo disso foi o aumento da crença na regeneração batismal, ou seja, a

idéia de que o batismo produz automaticamente a salvação. Além disso, a ênfase de Lutero

na justificação forense ou externa levava muitas pessoas a desprezar a importância da

santidade pessoal. Tudo isso produziu aquilo que os pietistas iriam denominar uma

“ortodoxia morta”.

Textos:

Análises: Olson, 466-471, 487-489; González, III:251-302; Hägglund, 229-230, 259-279;

McGrath, 112-116, 533-535; Costa, 233-254; Tillich I, 272-278; Tillich II, 43-48.

2. O arminianismo

No início do século 17, surgiu na Holanda uma forte reação contra o conceito

calvinista clássico sobre a predestinação, que teve como líder inicial o pastor e teólogo Jacó

Armínio (1560-1609). Na época em que ele nasceu, os holandeses lutavam contra o

domínio da Espanha católica. Revolucionários dos Países Baixos criaram uma aliança

conhecida como Províncias Unidas, das quais a maior e mais forte era justamente a

Holanda. Ao mesmo tempo em que se libertaram do jugo espanhol, os holandeses criaram

sua igreja nacional protestante. A igreja reformada de Amsterdã, fundada em 1566, aceitava

os princípios protestantes básicos, sem ser rigorosamente luterana ou calvinista.

Armínio, natural de Oudewater, recebeu uma formação moderadamente calvinista.

Aos quinze anos, foi estudar em Marburg, na Alemanha. Na sua ausência, sua família foi

totalmente dizimada por soldados leais à Espanha. O jovem ficou sob os cuidados de um

respeitado pastor de Amsterdã. Sendo um promissor candidato ao ministério, tornou-se um

dos primeiros alunos da Universidade de Leyden. Em seguida, a igreja de Amsterdã o

enviou para a Academia de Genebra, onde ele estudou com Teodoro Beza. Em 1588, aos 28

anos, iniciou seu pastorado na igreja reformada de Amsterdã, vindo a ser um conceituado

pastor e pregador. Casou-se com a filha de um ilustre cidadão local. Foi então que começou

a criticar abertamente o supralapsarismo, comum entre os pastores holandeses por

influência de Beza e da Academia de Genebra. A controvérsia se agravou na década de

1590. Em uma série de sermões sobre a epístola aos Romanos, Armínio também começou a

negar a eleição incondicional, a expiação limitada e graça irresistível, bem como a doutrina

da predestinação como um todo. Os calvinistas ortodoxos o acusaram de heresia, mas ele,

apelando à tradição holandesa de independência teológica e tolerância da diversidade, foi

inocentado. Em 1603, foi nomeado para a cátedra de teologia da Universidade de Leyden,

tendo como colega o supralapsariano estrito Francisco Gomaro. Este promoveu uma intensa

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campanha contra Armínio, chegando a acusá-lo de ser simpatizante dos jesuítas e do

socinianismo, um movimento racionalista. A controvérsia causou uma guerra civil entre as

províncias, de 1604 até 1609, quando Armínio morreu vitimado pela tuberculose.

No ano seguinte, 46 pastores e leigos redigiram um documento – a “Remonstrância”

– resumindo em cinco pontos a rejeição do calvinismo clássico: o decreto eterno de

salvação refere-se àqueles que irão crer e perseverar na fé; Cristo morreu por todos os

homens, embora somente os crentes sejam beneficiados por sua morte; o homem não pode

fazer nada realmente bom até que tenha nascido de novo por meio do Espírito Santo; a

graça não é resistível; os fiéis são assistidos pela graça nas tentações e são impedidos de

cair se desejarem o auxílio de Cristo e “não forem inativos”. Os remonstrantes incluíam

alguns líderes políticos que haviam participado da luta contra a Espanha. Renovaram-se os

tumultos. O principal líder dos Países Baixos, príncipe Maurício de Nassau, apoiou os

calvinistas. Para tratar da questão, foi convocado um sínodo nacional de teólogos e

pastores. O Sínodo de Dort ou Dordrecht, de novembro de 1618 a janeiro de 1619, reuniu

mais de cem delegados, inclusive da Inglaterra, Escócia, França e Suíça. Os remonstrantes

foram condenados por heresia. Cerca de 200 foram depostos do ministério e uns 80 foram

exilados ou presos, entre eles o presbítero, estadista e filósofo Hugo Grotius (1583-1645).

Um líder político foi executado. Em resposta aos cinco pontos dos remonstrantes, os

cânones do Sínodo de Dort afirmaram um conjunto de doutrinas ortodoxas que foram

sintetizadas nos mencionados cinco pontos do calvinismo. O sínodo não se pronunciou

sobre o supra e o infralapsarismo. Após a morte do príncipe Maurício em 1625, o

arminianismo ressurgiu na Holanda, sendo organizada em 1634 a Fraternidade

Remonstrante, depois Igreja Reformada Remonstrante.

A teologia de Armínio está contida em um grande número de tratados. Suas

principais obras sobre a controvérsia arminiana, escritas entre 1602 e 1608, são Exame do

panfleto do Dr. Perkins sobre a predestinação, Declaração de sentimentos, Carta

endereçada a Hipólito A. Collibus e Artigos que devem ser diligentemente examinados e

ponderados. Armínio fez questão de afirmar que sustentava os princípios protestantes

básicos, inclusive a salvação pela graça mediante a fé, dando-lhe, todavia, sua própria

interpretação. Como foi visto, inicialmente ele rejeitou fortemente o supralapsarismo,

considerando-o uma doutrina perniciosa. Rejeitou também o infralapsarismo e o

monergismo como um todo, alegando que torna Deus o autor do pecado, é contrário à

natureza amorosa de Deus e à liberdade humana, e conflita com o desejo de Deus de salvar

a todos, entre outros argumentos. Propôs um conjunto alternativo de quatro decretos de

Deus referentes à salvação: 1. decreto de nomear Jesus Cristo como mediador e salvador; 2.

decreto de receber aqueles que se arrependessem e cressem, salvando em Cristo os

penitentes e crentes que perseverassem até o fim e sujeitando à condenação os impenitentes

e incrédulos; 3. decreto de administrar de modo suficiente e eficaz os meios necessários ao

arrependimento e à fé; 4. decreto de salvação ou perdição das pessoas, fundamentado na

presciência divina.

Armínio começou fazendo uma distinção entre a providência de Deus e a

predestinação. Elas incluem diferentes decretos. Na sua providência, Deus decreta permitir

a queda. Ele não poderia evitá-la depois de criar os seres humanos dotados com o livre-

arbítrio. Ou seja, Adão não caiu por decreto de Deus, mas por simples permissão dele. A

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predestinação se refere aos seres humanos como caídos e carentes de redenção. Depois que

eles caíram, ou em virtude de saber que cairiam, Deus decretou providenciar um salvador e

salvar por meio dele todos os que se arrependessem e cressem, deixando na perdição os

demais. Quanto à predestinação da humanidade caída, trata-se de algo que se aplica a

grupos, não a indivíduos. Os objetos da eleição e da condenação são conjuntos indefinidos

de pessoas – os crentes e os incrédulos. Em Romanos 9, Esaú e Jacó representam esses dois

grupos, os que buscam a justificação pelas obras ou pela fé. Já a predestinação de

indivíduos é condicional e se baseia somente na presciência de Deus acerca do que eles

farão livremente com a liberdade que Deus lhes dá.

Ao tentar esclarecer como a salvação pode ser unicamente pela graça e não por

obras, Armínio propôs o conceito de “graça preveniente”. Essa graça é oferecida a todas as

pessoas e é absolutamente necessária para que os pecadores – mortos em pecado e escravos

na vontade – creiam e sejam salvos. Ela é necessária, mas não suficiente, e pode ser

resistida. Se a pessoa não resistir à graça preveniente e permitir que opere em sua vida pela

fé, ela se tornará em graça justificadora. Aqui está o sinergismo de Armínio. A vontade

humana, libertada pela graça preveniente (a operação do Espírito Santo), precisa cooperar

reconhecendo a necessidade de salvação e permitindo que Deus conceda a fé. Esse conceito

da graça preveniente é o que distingue o arminianismo do pelagianismo ou do

semipelagianismo, ao atribuir a Deus a iniciativa da salvação e reconhecer a incapacidade

do ser humano de contribuir para a própria salvação sem a graça auxiliadora de Cristo.

Armínio não negou explicitamente a depravação total e a perseverança dos santos,

embora arminianos posteriores o tenham feito. O maior impacto do arminianismo ocorreu

na Inglaterra e nos Estados Unidos, entre os anglicanos, batistas gerais e metodistas. Os

herdeiros de Armínio se dividiram em dois grupos – arminianos da mente: deístas,

defensores da teologia natural, liberais dos séculos 18 e 19, e arminianos do coração:

pietistas, metodistas, pentecostais e outros. O teólogo holandês se propôs a reformar a

teologia reformada, mas criou um paradigma protestante inteiramente novo, embora já

presente parcialmente na teologia anabatista – o sinergismo evangélico.

Textos: Bettenson, 372-374.

Análises: Olson, 465-466, 471-483; González, III:269-302; Lane, II:23-28; Hägglund, 229-

230; McGrath, 535-536; Berkhof, 136-138, 169-171, 198-199.

3. O pietismo

Assim como o arminianismo foi uma reação contra a ortodoxia reformada ou

calvinista, o pietismo reagiu contra a excessiva preocupação luterana com a ortodoxia.

Naturalmente, foram duas reações bastante diferentes, o arminianismo na área da teologia

em si e o pietismo no âmbito da espiritualidade. Infelizmente, o termo “pietismo” tem hoje,

com freqüência, um sentido negativo, significando uma espiritualidade individualista,

subjetiva, emocional e alienada do mundo, muitas vezes associada a um sentimento de

superioridade religiosa. O pietismo pode levar a essas atitudes, mas o movimento original

não teve esses fatores como suas características principais. Na verdade, ele foi um vigoroso

movimento de renovação e revitalização do luteranismo nos séculos 16 e 17, tendo como

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objetivo completar a Reforma, ou seja, suprir alguns elementos que supostamente faltaram

na obra de Lutero. A reforma doutrinária do pioneiro precisava ser complementada por uma

reforma igualmente necessária na vida cristã pessoal. Ao contrário da ênfase nas crenças ou

doutrinas corretas (ortodoxia), os pietistas valorizaram os sentimentos corretos (ortopatia) e

o viver correto (ortopraxia). Sua marca característica foi a preocupação com a experiência

religiosa pessoal, particularmente o arrependimento e a santificação.

O precursor do movimento pietista foi o pastor luterano Johann Arndt (1555-1621),

autor da influente obra devocional O cristianismo verdadeiro (1610). Considerado a Bíblia

do pietismo, esse livro foi a obra mais lida e influente da Alemanha depois da própria

Bíblia. Ao invés da justificação pela fé, deu ênfase ao novo nascimento e à união com

Cristo mediante o arrependimento e a fé genuínos, que envolvem o “coração”. O verdadeiro

cristianismo não consiste em fórmulas doutrinárias, sacramentos e liturgia, mas em

mudanças visíveis nas atitudes, afeições e modo de vida do cristão. As transformações na

área afetiva irão influenciar o plano intelectual. Em outras palavras, a ortodoxia no ensino e

na doutrina seria assegurada pelo arrependimento genuíno e pelo viver santo, e não pelas

elaborações sistemáticas e discussões polêmicas.

O patriarca ou fundador do pietismo propriamente dito foi Philipp Jakob Spener

(1635-1705). Nascido na Alsácia, ele teve como madrinha uma condessa rica e

profundamente piedosa em cujo castelo leu O cristianismo verdadeiro e foi educado na

nova forma de espiritualidade. Ajudado por sua mentora, estudou teologia em Estrasburgo e

Basiléia. Passou algum tempo em Genebra, onde recebeu a influência do pregador

reformado Jean de Labadie (1610-1674), outro simpatizante do cristianismo experimental.

Ao iniciar o seu pastorado em Frankfurt, Spener estava firmemente decidido a implementar

essa nova visão da vida cristã. Como o principal ministro da cidade, ele implantou um

programa de reformas que incluiu a criação de collegia pietatis (grupos de devoção),

também denominados “conventículos de Frankfurt”. Tratava-se de pequenos grupos que se

reuniam nas casas e nas igrejas para orar, estudar a Bíblia, debater sermões e cultivar a vida

cristã. Essa iniciativa mostrou-se controvertida e atraiu muitas críticas, principalmente por

causa do espaço dado aos leigos. Seu objetivo era infundir o “cristianismo do coração”,

uma vida de forte devoção a Cristo e santidade pessoal.

O nome “pietismo” derivou de uma pequena obra de Spener, Pia desideria ou

“desejos piedosos” (1675), que continha tanto uma forte crítica da situação da igreja estatal

luterana quanto um programa de reformas. Nesse texto clássico do pietismo, Spener

censurou as falhas morais e espirituais dos líderes civis e eclesiásticos, a crença na eficácia

automática do batismo e o cristianismo formal e nominal. Sem rejeitar o luteranismo e a

prática do batismo infantil, apresentou uma série de “propostas para corrigir as condições

da igreja” com seis etapas, incluindo a difusão dos collegia pietatis, maior disciplina

espiritual, espírito pacífico nas controvérsias e ênfase à espiritualidade na formação dos

pastores. No final do livro, o autor revelou o propósito fundamental do pietismo – a

doutrina do “homem interior” ou do “novo homem” já presente na obra de Arndt. Por causa

das controvérsias, Spener foi expulso da Frankfurt. Após cinco anos como capelão na corte

do príncipe da Saxônia, em Dresden, mudou-se em 1691 para Berlim, onde pastoreou uma

igreja influente e trabalhou pela difusão do movimento pietista na Alemanha. Quando

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morreu, em 1705, o pietismo era um movimento influente nas igrejas luteranas de toda a

Alemanha.

O continuador da obra de Spener e grande organizador do pietismo foi August

Hermann Francke (1663-1727), que nasceu em Lübeck numa família culta e fortemente

influenciada por esse movimento. Em 1684, foi estudar na Universidade de Leipzig, a

cidadela da ortodoxia luterana, tornando-se o líder do movimento pietista local, o collegium

philobiblicum (grupo dos amantes da Bíblia). Três anos depois, experimentou uma

conversão radical marcada por conflitos e fortes emoções. Fez dessa experiência – centrada

na “luta do arrependimento” – a norma para toda iniciação cristã genuína. Atraído para o

círculo de Spener, dedicou-se ao programa de reforma da igreja luterana, dando-lhe

continuidade após a formatura e início da carreira pastoral. Tornou-se o centro de uma

grande controvérsia e foi acusado de heresia pelos colegas. Em 1690, ajudou a fundar a

Universidade de Halle, influenciada por Spener. Fundou várias instituições caritativas, que

incluíam escolas, orfanato, editora e centro de missões. Com o apoio do rei da Dinamarca,

enviou à Índia os primeiros missionários estrangeiros protestantes. Tornou-se o educador

mais requisitado da Alemanha, bem como o líder de um esforço beneficente que granjeou

enorme simpatia, ilustrando a ênfase social do pietismo.

Outro personagem singular da história inicial desse movimento foi o conde

Nikolaus Ludwig von Zinzendorf (1700-1760). Nascido em Dresden, onde era forte a

influência de Spener, destacou-se desde a infância por sua profunda espiritualidade. Criado

pela avó pietista, aos seis anos escrevia poesias de amor a Cristo. Aos dez anos, iniciou os

estudos em Halle sob a rigorosa orientação de Francke. Em 1716, foi estudar Direito na

Universidade de Wittenberg, onde ajudou a criar o grupo pietista “Ordem do grão de

mostarda”. Mais tarde, trabalhou para o governo e comprou uma propriedade em

Berthelsdorf, à qual deu o nome de Herrnhut (“vigília do Senhor”). Em 1727, acolheu

nesse local um grupo de refugiados religiosos vindos da vizinha Morávia. Eram membros

da Unitas Fratrum ou União dos Irmãos e herdeiros espirituais do pré-reformador João

Hus, morto na fogueira em 1415. Zinzendorf tornou-se o líder espiritual dos morávios e o

primeiro bispo da igreja morávia restaurada. Ao mesmo tempo, era um ministro da igreja

estatal luterana, tendo sido ordenado após estudar teologia por si mesmo.

Sob a liderança do conde, os morávios abraçaram integralmente a visão pietista. Ao

mesmo tempo em que criticava a ortodoxia luterana e a teologia formal, Zinzendorf deu

forte destaque à experiência cristã e aos sentimentos piedosos. Ele e seus correligionários

fundaram comunidades em toda a Europa e na América do Norte. Entre suas práticas

peculiares houve algumas que se incorporaram ao evangelicalismo posterior: cultos para o

cântico de hinos, cultos de vigília na passagem do ano e cultos no alvorecer do domingo de

Páscoa. Observavam ainda a “festa de amor” e a cerimônia de lava-pés como os

anabatistas. Realizaram impressionante esforço evangelístico, enviando grande número de

missionários auto-sustentados a muitas regiões difíceis e inóspitas do mundo.

Uma característica marcante de Zinzendorf e dos morávios foi o fato de

concentrarem seu culto e sua vida devocional nos sofrimentos de Jesus. Isso relativizava a

importância da liturgia formal, da teologia dogmática e do legalismo. Eles não apoiavam

explosões emocionais e não negavam a importância da sã doutrina. Todavia, o mais

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importante era o relacionamento pessoal com Cristo. A igreja morávia nunca se tornou

numerosa em termos mundiais. Seu ramo norte-americano surgiu na década de 1740 após

uma visita de Zinzendorf à Pensilvânia. As ênfases e práticas pietistas dos morávios

influenciaram fortemente o protestantismo nos Estados Unidos e em outros países.

Enquanto que a teologia protestante clássica dava ênfase ao aspecto objetivo da

salvação, o pietismo se concentrou no seu elemento subjetivo e pessoal. Algumas marcas

distintivas do pietismo são as seguintes. (a) Ênfase na interioridade e experiência, que

começa com a conversão e se expressa numa vida de devoção, discipulado e santificação.

Os primeiros líderes procuravam associar o sacramentalismo luterano e a ênfase na

conversão. O enfoque principal estava na regeneração e na conseqüente santificação, e não

na justificação. (b) Índole tolerante e pacífica, que se resumia no ditado popular “Nas coisas

essenciais, unidade; nas não-essenciais, liberdade; em todas as coisas, caridade (amor)”.

Eram contrários à coerção religiosa e às lutas doutrinárias, entendendo que o mais

importante é a experiência com Deus. (c) Cristianismo visível: o cristianismo autêntico se

revela nas atitudes e na conduta dos cristãos. Francke apontou como sinais desse novo

padrão da vida os seguintes: provações, carregar a cruz, obediência à lei de Deus, confiança

e alegria. Por sua vez, isso seria alimentado por cinco práticas: exame de consciência,

arrependimento diário, oração, ouvir a Palavra e participar dos sacramentos. Todavia, não

defenderam o perfeccionismo, tendo havido um famoso debate entre Zinzendorf e Wesley

sobre esse assunto, no qual o primeiro rejeitou a doutrina da “plena santificação”. (d)

Cristianismo ativo: transformação da vida pessoal, da igreja, da sociedade e do mundo;

ênfase em missões e na unidade cristã.

O pietismo deu origem a algumas pequenas denominações autônomas, mas sua

maior influência se deu através da penetração silenciosa nas principais igrejas protestantes,

em especial na América do Norte. Os grupos mais afetados foram os luteranos, os

metodistas e os batistas, bem como muitas igrejas resultantes das missões norte-americanas

ao redor do mundo no século 19. As igrejas de santidade e o pentecostalismo também

podem ser vistos como manifestações radicais do pietismo cristão. A mentalidade pietista

afetou profundamente o evangelicalismo moderno, em áreas como o culto, a música, a vida

devocional e a literatura. Alguns aspectos preocupantes desse legado são as tendências para

o individualismo, o emocionalismo e o antiintelectualismo, bem como o risco de dar

primazia à experiência, o que pode ocorrer em prejuízo do princípio da sola Scriptura e da

boa teologia.

Textos:

Análises: Olson, 485-504; González, III:303-322; Lane, I:204-206; Hägglund, 281-289;

McGrath, 118-119; Costa, 255-278; Tillich I, 279-282; Tillich II, 48-50.

4. O puritanismo

Os puritanos foram os calvinistas da Inglaterra e posteriormente das colônias

inglesas da América do Norte, nos séculos 16 e 17. Eram herdeiros de uma tradição que

remontava ao pré-reformador João Wycliff e seus seguidores, os lolardos, no final do

século 14, com seu profundo apreço pelas Escrituras e crítica dos dogmas católicos para os

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quais não achavam sustentação bíblica. Também eram herdeiros de homens como William

Tyndale, cuja tradução do Novo Testamento ocasionou seu martírio em Bruxelas em 1536.

Os primórdios do puritanismo como movimento específico surgiram nos primeiros estágios

da reforma inglesa, no reinado de Eduardo VI (1547-1553), quando a tradição reformada

começou a exercer maior influência na Inglaterra. Nessa época, os reformadores

continentais Martin Bucer e Jan Laski residiram no país. No reinado de Maria I (1553-

1558), muitos líderes com inclinações reformadas foram executados, a começar do próprio

arcebispo Thomas Cranmer, e outros fugiram para o continente, refugiando-se em cidades

reformadas como Genebra e Estrasburgo. Ao retornarem à Grã-Bretanha, estavam

fortemente imbuídos do propósito de reformar a igreja escocesa e a igreja inglesa em

moldes calvinistas. Como já foi visto, eles alcançaram esse objetivo na Escócia, sob a

liderança de John Knox, mas não na Inglaterra.

Os puritanos ficaram conhecidos por esse nome no início do reinado de Elizabete I

(1558-1603). Esse movimento composto de alguns milhares de pastores e leigos ingleses,

com forte orientação calvinista, procurou reformar a igreja anglicana elizabetana em seu

culto, teologia e forma de governo. De tanto falarem na purificação da igreja, foram

chamados “puritanos”. Para eles, uma igreja mais pura significava uma igreja mais bíblica,

ou seja, isenta de todos os resquícios do “papismo”, tais como bispos, cerimônias

elaboradas, vestes litúrgicas, incenso, altares, genuflexões e outras práticas. Com o passar

do tempo, o puritanismo passou a ser um sistema de vida abrangente, tendo suas próprias

perspectivas sobre o culto, a espiritualidade, a teologia, a pregação, a vida social e a

organização política. Infelizmente, os puritanos não chegaram a um consenso quanto ao

melhor sistema de governo eclesiástico. Muitos eram presbiterianos, outros

congregacionais e uns poucos episcopais.

Por causa das suas posições, os puritanos foram duramente reprimidos nos reinados

de Elizabete, Tiago I e Carlos I. Alguns permaneceram na Igreja da Inglaterra e outros se

retiraram para formar igrejas independentes. Um pequeno grupo deixou o país, indo

inicialmente para a Holanda e depois para a Nova Inglaterra. Foram os “peregrinos” do

navio Mayflower, que fundaram a colônia de Plymouth em 1620. Nos anos seguintes,

milhares deles foram para o Novo Mundo. O ponto alto do puritanismo inglês ocorreu na

década de 1640, quando, no contexto de uma guerra civil, o parlamento controlado pelos

puritanos convocou a célebre Assembléia de Westminster (1643-1648), que teve como

objetivo fazer a tão sonhada reforma na Igreja da Inglaterra. Essa assembléia elaborou

alguns dos documentos mais importantes da tradição reformada: a Confissão de Fé, o

Catecismo Maior e o Breve Catecismo de Westminster. Algumas ênfases significativas

desses textos são a inspiração e inerrância das Escrituras, a soberania absoluta de Deus, os

decretos divinos, a pecaminosidade dos seres humanos, sua total dependência da graça

divina e a teologia do pacto. Os puritanos ingleses estabeleceram por breve tempo uma

república sob a liderança de Oliver Cromwell. Em 1660 foi restaurada a monarquia e mais

tarde foi concedida liberdade religiosa aos dissidentes.

Alguns dos teólogos puritanos mais representativos foram William Perkins (1558-

1602), William Ames (1576-1633), Richard Sibbes (1577-1635), Thomas Goodwin (1600-

1680), John Owen (1616-1683) e Richard Baxter (1615-1691). Na Nova Inglaterra viveu

aquele que é considerado o último e o maior dos pensadores puritanos, Jonathan Edwards

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(1703-1758). Apesar da caricatura do puritanismo produzida pelas escolas e pelos meios de

comunicação, uma imagem de rigidez moral e intolerância religiosa, esses movimento

produziu marcas salutares e duradouras nas igrejas e na sociedade dos Estados Unidos.

Três noções essenciais do puritanismo foram o ideal da igreja pura, os pactos de

Deus e a sociedade cristianizada. Em primeiro lugar, a igreja devia ser composta de

verdadeiros santos – o corpo de Cristo na terra –, com crenças corretas, vidas puras e

líderes íntegros. Ao contrário do que acontecia na Igreja da Inglaterra, os cristãos

meramente nominais não deviam ser membros plenos. Para que isso acontecesse, o

indivíduo precisava, além de confessar a fé calvinista ortodoxa, apresentar relatos

detalhados da sua conversão (contrição, fé, confiança, certeza do perdão) e demonstrar os

sinais da graça (dedicação à igreja, participação na sociedade, vida familiar sólida, interesse

em ouvir e estudar as Escrituras). Em muitas igrejas, somente essas pessoas podiam

participar da ceia do Senhor e apresentar seus filhos para o batismo. Com isso, os puritanos

foram acusados pelos adversários de serem donatistas, cismáticos, heréticos e fanáticos. Na

Nova Inglaterra surgiu um problema prático: o que fazer com os filhos dos membros,

batizados na infância e criados na igreja, mas que nunca tiveram uma experiência de

conversão? Seus filhos deviam ser batizados? A solução encontrada foi o chamado half-

way covenant (pacto do meio-termo), ou seja, os filhos dos freqüentadores não-convertidos

podiam ser batizados. Essa prática representou um desvio do ideal puritano da igreja pura.

Outra convicção puritana importante, denominada teologia federal, era o pacto de

Deus com os eleitos (de foedus = pacto, aliança). Esse elemento já existia no calvinismo

anterior, mas os puritanos o colocaram no centro da sua teologia como uma resposta à

aparente passividade humana no conceito monergista da salvação. Como a crença na

predestinação podia ser conciliada com a insistência na piedade? Como os crentes podiam

ter a certeza de serem eleitos? A resposta para esses problemas foi a ênfase no pacto.

Segundo os puritanos, Deus tomou a iniciativa de firmar pactos com os seres humanos e se

obrigou a cumpri-los. A primeira aliança com Adão e Eva foi o “pacto das obras”, que

prometia a bênção de Deus em troca da obediência. A transgressão desse pacto produziu a

condenação e corrupção de toda a posteridade dos primeiros pais (“na queda de Adão,

todos nós pecamos”), porque os pactos de Deus são também coletivos, aplicando-se a

grupos.

Fracassado o pacto das obras, Deus firmou um segundo contrato com os seres

humanos – o “pacto da graça”, no qual as promessas divinas de redenção e renovação são

dadas àqueles que as aceitam em fé e obediência. Esse pacto é tanto condicional quanto

absoluto. É condicional no sentido de que os seres humanos, como indivíduos e como

grupos (Israel e a igreja) devem participar dele de modo livre e voluntário. Se aceitarem as

condições do pacto, os sinais da graça aparecerão em suas vidas. Os eleitos são aqueles que

realmente se convertem e demonstram esses sinais em sua vida diária. Pelo pacto da graça,

Deus se compromete a lhes dar a salvação. Isso retira o elemento de incerteza quanto à

eleição. Paradoxalmente, o pacto da graça é também absoluto, pois por trás do aspecto

condicional está o mistério dos decretos eternos da predestinação. Deus estabeleceu com os

seres humanos um pacto condicional que requer participação espontânea, mas somente os

seus eleitos conseguem cumpri-lo. Estes são visivelmente convertidos e demonstram os

sinais da graça, o que os torna certos da sua eleição.

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Um terceiro conceito fundamental do puritanismo foi o ideal da sociedade

cristianizada. Os puritanos da Nova Inglaterra acreditavam que uma das promessas de Deus

no pacto é abençoar não somente indivíduos, famílias e igrejas, mas também a sociedade

que lhe for fiel. Eles criam que as bênçãos prometidas a Israel se aplicavam a eles como o

povo de Deus na nova aliança (a segunda fase do pacto da graça). Para tanto era preciso

conformar as estruturas sociais com a lei de Deus (teonomia). Essa visão otimista e

esperançosa dos Estados Unidos como uma nova terra prometida, bem como a crença em

uma missão nacional dada por Deus (“destino manifesto”), impregnou profundamente a

cultura e a mentalidade norte-americanas. A visão puritana de uma ordem social

cristianizada sempre acreditou na implantação do reino de Deus na terra antes do retorno

visível de Cristo (pós-milenismo).

Textos: Bettenson, 339-343;

Análises: Olson, 505-516; González, III:269-302; Lane, II:48-59; McGrath, 117-118.

5. Jonathan Edwards

O pastor congregacional norte-americano Jonathan Edwards (1703-1758) é

considerado o último e o maior dos puritanos, tendo se destacado como pensador, teólogo e

pregador. Na sua época, o puritanismo estava em declínio e ele procurou resgatar o que

havia de melhor nessa tradição, reinterpretando-a em alguns pontos. Edwards nasceu em

East Windsor, Connecticut, sendo o seu pai um ministro congregacional. Seu avô materno,

Solomon Stoddard, era um influente líder puritano. Criado num ambiente cristão fervoroso,

o jovem se graduou no Colégio de Yale em 1724, tornando-se pastor assistente e mais tarde

sucessor do avô na igreja de Northampton, em Massachusetts. Em 1734, enquanto pregava

uma série de sermões sobre a justificação pela fé, sua igreja experimentou um grande

avivamento. Nos anos seguintes, esse fenômeno se estendeu a outras partes da Nova

Inglaterra, chegando ao auge em 1740, no que ficou conhecido como o Primeiro Grande

Despertamento, do qual o pregador mais notável foi o calvinista inglês George Whitefield.

Além de ser pregador avivalista, Edwards foi um observador e estudioso dos

fenômenos da experiência religiosa, sendo considerado um dos fundadores da psicologia da

religião. Ele escreveu uma série de obras valiosas sobre esse tema, tais como Fiel narrativa

da surpreendente obra de Deus (1737), Marcas distintivas de uma obra do Espírito de

Deus (1741), Alguns pensamentos acerca do presente reavivamento da religião na Nova

Inglaterra (1742) e em especial o notável Tratado sobre as afeições religiosas (1746).

Nessas obras, procurou estabelecer critérios que permitem avaliar a autenticidade de um

avivamento. Também escreveu mais de 600 sermões, dos quais o mais conhecido é

“Pecadores nas mãos de um Deus irado”, que, no entanto, não é típico do seu pensamento

mais essencial. Mais significativa é a série de sermões sobre 1Coríntios 13 intitulada “A

caridade e seus frutos” (1738). Edwards pregava com clareza, apelando tanto à mente

quanto ao coração, mas sem excessos emocionais. Escreveu sobre uma grande variedade de

assuntos, inclusive filosofia, ciência e ética, e foi um dos primeiros pensadores norte-

americanos a refletirem sobre a filosofia iluminista de John Locke e a cosmologia de Isaac

Newton.

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Em 1750, Edwards foi demitido da sua igreja por causa dos seus sermões em defesa

dos índios e por proibir a ceia do Senhor aos participantes não-convertidos. Seguiu então

para a aldeia fronteiriça de Stockbridge, onde foi pastor dos colonos e missionário junto aos

indígenas. Em 1757, aceitou com relutância um convite para presidir o Colégio de Nova

Jersey (futura Universidade de Princeton). Alguns meses depois, contraiu varíola ao ser-lhe

aplicada uma vacina contaminada, vindo a falecer. O período passado em Stockbridge foi o

mais produtivo em sua reflexão teológica, levando-o a escrever grandes obras como O fim

para o qual Deus criou o mundo e A natureza da verdadeira virtude (1753-1754), A

liberdade da vontade (1754) e O pecado original (1758). Edwards defendeu fortemente a

teologia calvinista contra o arminianismo e o racionalismo, mas criou uma forma

distintamente norte-americana de teologia reformada. Ele procurou fazer uma profunda

integração entre uma fé cristã fervorosa e uma vida intelectual vigorosa e disciplinada.

A teologia de Jonathan Edwards é uma mescla de calvinismo e pietismo e foi

elaborada em um contexto de controvérsias. Seus escritos possuem várias ênfases especiais,

entre as quais se destacam a glória e a liberdade de Deus, a depravação e dependência dos

seres humanos, e a importância do coração ou das afeições. Edwards deu um destaque

incomum à majestade, soberania, glória e poder divinos. Deus é a realidade que a tudo

determina, para sua própria honra e glória. Essa idéia não é nova, mas recebeu uma ênfase

extraordinária no seu pensamento. Ele entendia que essa era a única doutrina de Deus

realmente bíblica. Deus não só sustenta, mas é a causa de tudo diretamente. A contingência,

a plena liberdade e mesmo a causação secundária depreciam a soberania de Deus. Seu

pensamento distingue-se não somente do arminianismo, com sua doutrina da auto-limitação

de Deus e do livre-arbítrio, mas também do monergismo anterior e até da teologia do pacto

em seu aspecto condicional.

Edwards insistiu na doutrina da depravação total, da eleição incondicional e da

graça irresistível. O ser humano é inteiramente corrupto e totalmente dependente de Deus

para sua salvação. Há uma forte identidade entre Adão e cada um de seus descendentes. O

livre-arbítrio significa livre agência, ou seja, a capacidade de fazer o que se deseja, de agir

de acordo com a própria natureza. Além de o pecado restringir a vontade dos pecadores,

sua própria condição de criatura torna o livre-arbítrio impossível. Todos os seres humanos

são pecadores porque Deus incluiu todos em Adão; os eleitos são redimidos porque Deus

os incluiu em Cristo. Em outro conceito fundamental, Edwards afirmou que a essência da

personalidade, da qual provêm a identidade e as ações humanas, consiste naquilo que ele

denominou “afeições”. Em vez das alternativas mais conhecidas, ou seja, a mente, a

vontade e o coração – valorizadas pelos racionalistas e pelos avivalistas – o que governa as

crenças e escolhas de cada um são fortes motivações interiores, as inclinações dominantes

da alma. Essas afeições religiosas podem ser genuínas ou falsas. Os afetos genuínos são os

que glorificam a Deus, sendo o maior deles a benevolência para com os seres, a afeição

básica do próprio Deus.

Os discípulos e sucessores de Edwards criaram uma escola de pensamento

conhecida como Teologia da Nova Inglaterra, depois Teologia de New Haven. Os

principais foram Jonathan Edwards Jr., Samuel Hopkins, Joseph Bellamy, Timothy Dwight

e Nathaniel William Taylor. Sua reflexão procurou atenuar ou modificar certos aspectos do

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pensamento calvinista considerados excessivamente rígidos, especialmente quanto ao

pecado original, à liberdade humana e à expiação. No clima cultural do século 18, o século

da independência dos Estados Unidos, com o seu otimismo e sua ênfase na liberdade e nas

possibilidades do ser humano, a antropologia e a soteriologia calvinistas tiveram

dificuldade em ser mantidas.

Textos:

Análises: Olson, 516-522; González, III:320-321; Lane, II:28-30.

6. João Wesley e o metodismo

Depois do puritanismo, o metodismo foi outro movimento que procurou renovar a

tradição anglicana, cada vez mais formal e racionalista. Seu principal fundador foi John

Wesley (1703-1791), um dos dezesseis filhos do ministro anglicano da cidade de Epworth.

Quando pequeno, John quase morreu em um incêndio da casa pastoral, fato que o levou a

se descrever em seu diário como um “tição arrancado das chamas”. Tinha a convicção de

ter sido chamado por Deus para reavivar o verdadeiro cristianismo na Inglaterra. Com

vistas ao ministério na igreja anglicana, estudou na Universidade de Oxford, onde fundou

com o irmão Charles Wesley (1707-1788) e o amigo George Whitefield (1714-1770) o

“Clube Santo”, uma espécie de célula pietista. Como eles buscavam um método de

espiritualidade, os críticos os chamaram de “metodistas”. Após a ordenação, Wesley foi

para a Geórgia, na América do Norte, como missionário aos colonos ingleses. Na viagem o

navio quase naufragou numa tempestade e ele ficou profundamente abalado com seu medo

da morte e a serenidade de um grupo de morávios pietistas. Seu breve pastorado fracassou e

ele voltou humilhado para a Inglaterra.

No dia 24 de maio de 1738, Wesley participava de uma reunião na rua Aldersgate,

em Londres. Durante a leitura pública do prefácio do comentário de Lutero sobre a epístola

aos Romanos, sentiu o coração “estranhamente aquecido”. Teve profunda consciência do

que Cristo havia feito por ele e alcançou a certeza da salvação. A partir daí, começou uma

longa série de campanhas evangelísticas com seus dois companheiros. Viajou milhares de

quilômetros a cavalo, pregando às multidões ao ar livre e em salões alugados, o que marcou

o início do avivamento evangélico inglês. Pregou mais de vinte mil sermões, muitos dos

quais foram publicados. Seu irmão escreveu centenas de hinos. Wesley pregava a

conversão e a santidade ao povo que se sentia excluído da igreja estatal. Para os novos

convertidos, fundou sociedades metodistas semelhantes aos collegia pietatis dos pietistas

alemães. Antes da sua morte, embora essa não fosse a sua intenção inicial, o metodismo já

havia se tornado uma denominação plenamente estabelecida nos Estados Unidos (1784) e

na Inglaterra (1787).

A teologia de Wesley está exposta em seus sermões, diário, notas e comentários,

bem como no Livro de disciplina metodista e em diversos tratados. Foi influenciado por

autores tão diversos como Richard Hooker, Jacó Armínio, conde Zinzendorf e os puritanos

Richard Baxter e William Perkins. Wesley abraçou a teologia arminiana, o que causou a

separação entre ele e o colega George Whitefield, um calvinista convicto. Este foi o

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principal pregador do Grande Despertamento nas colônias norte-americanas (1740) e se

tornou grande amigo de Jonathan Edwards. Ao contrário de Edwards, que deu ênfase

suprema à glória de Deus, Wesley colocou o amor de Deus no centro da sua teologia. Sua

maior contribuição à história da teologia está na reinterpretação de dois princípios clássicos

da Reforma protestante: sola Scriptura e a justificação pela graça mediante a fé. Além de

sustentar a autoridade suprema das Escrituras, sob a influência de Hooker e dos pietistas

Wesley propôs outras três ferramentas essenciais para a teologia – a razão, a tradição e a

experiência – conjunto esse que constitui o quadrilátero wesleyano. Ele as considerou

recursos úteis para que a interpretação da Bíblia seja fiel à história da igreja, inteligível e

prática.

A segunda contribuição especial de Wesley foi a crença no perfeccionismo cristão

ou inteira santificação. Em sua teologia, ele deu maior ênfase à regeneração (conversão) e à

santificação do que à justificação, isto é, ao lado experimental da vida cristã. Defendeu o

batismo infantil, porém como um meio de graça preveniente ou como uma cerimônia

comemorativa. Seu ensino mais controvertido foi na área da santificação. No tratado

Explicação clara da perfeição cristã (1767), ele definiu a “perfeição no amor” como algo

que ocorre de modo instantâneo, como resultado de um esforço progressivo e “por um ato

simples de fé”, pouco ou bastante tempo após a conversão. Atribuiu toda a experiência

cristã à graça e declarou que o único instrumento pelo qual ela produz a virtude na vida

humana é a fé, e não as obras nem os esforços humanos. Ao mesmo tempo, afirmou que a

graça pode ser resistida e que a fé é simplesmente a decisão livre, capacitada pela graça

preveniente, de não resistir, mas confiar inteiramente no favor de Deus. Quanto ao

sacerdócio dos crentes, Wesley o limitou ao manter o governo episcopal, no qual os bispos

nomeiam, transferem ou suspendem os pastores e exercem autoridade sobre as igrejas

locais. O metodismo exerceu uma influência profunda e duradoura na teologia norte-

americana e nas igrejas evangélicas ao redor do mundo.

Textos:

Análises: Olson, 522-529; González, III:310-319; Lane, II:59-64; Hägglund, 297-298;

Noll, 231-256; Berkhof, 140-141.

7. O deísmo

No contexto do iluminismo da pós-Reforma, surgiu uma expressão inteiramente

nova da teologia cristã, diferente de tudo o que havia existido até então. Trata-se do deísmo

ou da religião natural, que afirmou a autoridade suprema da razão em todas as questões

religiosas. Os deístas defenderam o ideal de uma religião universal e racional que superasse

as lutas sectárias e o dogmatismo, introduzindo uma nova era de paz, esclarecimento e

tolerância. Eles podem ser definidos como os pensadores religiosos europeus e norte-

americanos dos séculos 17 e 18 que colocaram a razão humana acima da fé e da revelação

especial. Para eles, nada devia ser aceito como verdadeiro exceto quando fundamentado na

natureza das coisas e condizente com a razão. Entendiam que o cristianismo era a expressão

mais sublime da religião racional e natural, mas abandonaram ou reinterpretaram de modo

radical boa parte da teologia cristã tradicional. Seu conceito de autoridade em matéria

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religiosa não mais se baseava na Palavra inspirada e no testemunho do Espírito, mas no

primado da razão.

Dois fatores precipitaram essa mudança dramática. Primeiro, a grande desilusão

com a religião organizada e o dogmatismo em virtude dos conflitos e da intolerância

religiosa nos séculos 16 e 17, tais como as guerras religiosas na França e a Guerra dos

Trinta Anos no Sacro Império. Em segundo lugar, a influência do iluminismo (em inglês,

enlightenment), uma nova tendência da cultura européia a partir de mais ou menos 1650.

Essa nova atitude intelectual tinha três idéias características: o poder da razão para

descobrir a verdade sobre a humanidade e o mundo, ceticismo quanto às antigas instituições

e tradições, ascendência da mentalidade científica em contraste com a abordagem medieval.

Os forjadores iniciais do iluminismo foram o filósofo francês René Descartes (1596-1650)

e o matemático inglês Isaac Newton (1642-1717), os quais, apesar de se considerarem

cristãos, lançaram os alicerces do novo modo de pensar, um novo conceito sobre o mundo

natural. Agora, os lemas a serem seguidos eram “creio somente no que posso entender” e “a

fé segue a compreensão”.

Os deístas procuraram adaptar o cristianismo à mentalidade iluminista, daí o deísmo

ser considerado a religião do iluminismo. Seu objetivo era reconstruir o pensamento cristão,

sob pena de que se tornasse irrelevante no novo mundo científico. Seus expoentes iniciais

eram todos ingleses. Lorde Herbert de Cherbury (1583-1648) é considerado o primeiro

precursor do deísmo. Era membro de uma família rica e poderosa e teve uma vida um tanto

libertina. Escreveu uma pequena obra em latim, De veritate ou Sobre a verdade, publicada

em Paris em 1624, que foi a primeira apresentação da religião natural. Atacou a fé cega em

revelações, as lutas sectárias e o irracionalismo religioso. Propôs cinco “noções comuns da

religião” que são universais, racionais e naturais: há um Deus supremo; esse Deus deve ser

adorado; a essência da prática religiosa é a conexão entre virtude e piedade; os vícios e

crimes humanos são óbvios e devem ser expiados pelo arrependimento; após esta vida

haverá recompensas e castigos. Segundo Lorde Herbert, essas noções abrangiam todos os

lugares e todas as pessoas. Ele se considerava cristão, embora fosse cético quanto a certas

doutrinas, como a da Trindade. Seu livro foi amplamente livro no século 17 e lançou as

bases do deísmo.

Outro ilustre precursor do deísmo foi John Locke (1623-1704), o intelectual mais

influente da Inglaterra em seu tempo, que era constantemente consultado sobre questões

filosóficas, políticas e religiosas. Seu Ensaio sobre o entendimento humano revolucionou a

filosofia do iluminismo ao inaugurar a escola empírica, que ajudou a moldar a ciência

moderna. Locke tinha grande interesse por questões religiosas. Seu tratado mais importante

nessa área foi A racionalidade do cristianismo (1695), no qual procurou justificar as

crenças cristãs básicas por meio da razão. Deu pouca importância às doutrinas clássicas,

como a Trindade e a divindade de Cristo, procurando demonstrar que a essência da

revelação e da fé cristã é plenamente consistente com a razão. Tratou a religião

inteiramente como uma questão de crença intelectual. A revelação deve ser avaliada pela

razão humana natural; o que não for consistente com esta deve ser rejeitado. Todavia,

Locke evitou qualquer rejeição explícita de doutrinas cristãs essenciais. Para ele, o

cristianismo autêntico se reduzia à crença em Jesus como o Messias, ao arrependimento e a

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uma vida virtuosa. Esse divórcio entre a religião revelada e a que pode ser derivada

somente da razão abriu as portas para o deísmo.

O primeiro deísta propriamente dito foi John Toland (1670-1722), um admirador

confesso de Locke. Publicou o controvertido livro Cristianismo não misterioso (1696), no

qual sustentou que somente pode ser considerado cristianismo autêntico o que é condizente

com a religião natural, puramente racional e acessível a todos. Toda alegada revelação que

seja ininteligível e impossível, isto é, misteriosa, não pertence ao âmbito da verdadeira

religião, pois exige o sacrifício do intelecto, a imagem de Deus no ser humano. Assim

sendo, a razão julga a veracidade da revelação. Dando um passo além, Toland afirmou que,

ao contrário das religiões históricas, a religião verdadeira é eterna e imutável. Desse modo,

a religião natural da razão é o padrão de julgamento de toda religião positiva, inclusive o

cristianismo. Este fica simplesmente reduzido a uma religião natural, àquilo que a razão

natural pode conhecer. O livro de Toland abriu para muitas pessoas cultas a possibilidade

de serem religiosas e, ao mesmo tempo, rejeitar a religião revelada e o cristianismo oficial.

Outro importante pioneiro do deísmo foi Matthew Tindal (1657-1733). Seu livro O

cristianismo é tão antigo quanto a criação, ou o evangelho é uma reedição da religião da

natureza (1730) se tornou a “bíblia dos deístas”. Tindal foi professor do conceituado All

Souls College, da Universidade de Oxford. Levando as idéias de seus precursores à sua

conclusão lógica, deu a entender que o cristianismo verdadeiro não passa de um sistema

ético racional. Segundo ele, a religião consiste basicamente em cumprir os deveres morais,

não havendo necessidade de revelação especial, graça ou Salvador. Basta a crença em um

Ser Supremo vagamente pessoal como base para a moralidade objetiva e universal. A obra

de Tindal influenciou fortemente os principais criadores da república americana, como

Benjamin Franklin e Thomas Jefferson. Este último, à semelhança do herege Márcion na

antiguidade, criou sua própria Bíblia, que consistia no Novo Testamento isento de todos os

relatos e doutrinas considerados contrários à razão.

Em síntese, o deísmo defendeu três idéias básicas. Primeiro, o cristianismo

autêntico deve refletir plenamente a religião e a moralidade naturais, que são racionais e

acessíveis a todas as pessoas. Segundo, a religião verdadeira trata basicamente da

moralidade social e pessoal. As crenças religiosas, tais como a existência de Deus, a

imortalidade da alma e as recompensas e castigos futuros, servem apenas como suportes

práticos para a ética. Terceiro, as pessoas esclarecidas devem encarar com ceticismo as

alegações de revelações e milagres sobrenaturais. A cosmovisão deísta foi moldada em

grande parte pela física newtoniana com seu universo governado por leis naturais rígidas,

dando pouco espaço à intervenção divina. Alguns deístas foram abertamente anticristãos,

como Thomas Paine, autor de A idade da razão (1794), mas a maior parte deles não chegou

a esse extremo.

Os deístas acabaram organizando a sua própria denominação religiosa. Em 1774

surgiu em Londres a Capela de Essex, a primeira congregação unitária, ou seja, não-

trinitária. Em 1785, a King’s Chapel, em Boston, antes anglicana, tornou-se a primeira

igreja unitária dos Estados Unidos. Esse fenômeno se repetiu na década de 1790 com

muitas igrejas congregacionais da Inglaterra e da Nova Inglaterra. Finalmente, em 1825 foi

organizada uma nova denominação, a Associação Unitária Americana, tendo como

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seminário oficial a Escola de Teologia de Harvard. Todavia, a maior parte dos deístas não

se filiou a essas igrejas. O deísmo se infiltrou silenciosamente na vida política e religiosa

dos Estados Unidos. Seu Deus se tornou o Deus da religião civil americana, como no lema

nacional “Em Deus confiamos”. Foi também o precursor da teologia liberal dos séculos 19

e 20.

Textos: Bettenson, 407-412.

Análises: Olson, 531-546; González, III:323-351; Hägglund, 291-305; Costa, 279-282;

McGrath, 125-132, 220-225, 337-338; Tillich, 282-288; Tillich II, 56-95.

8. A teologia liberal protestante

Por cerca de dois séculos, os pensadores protestantes sustentaram uma cosmovisão

cristã básica apoiada nas Escrituras e nos grandes credos cristãos históricos. Com o advento

da modernidade, a razão e a ciência foram colocadas em pé de igualdade ou mesmo acima

das Escrituras e da tradição. Surgiram duas opções para os pensadores influenciados pela

nova mentalidade que queriam continuar cristãos: criar formas próprias de cristianismo

(unitários) ou permanecer nas igrejas históricas e reinterpretar as doutrinas protestantes

clássicas (liberais). A tarefa dos pensadores liberais protestantes foi descobrir a verdadeira

essência do cristianismo e reconstruir a teologia em torno dessa essência. O termo “liberal”

expressava a ênfase no direito do indivíduo de definir os termos da sua própria fé sem ser

constrangido por nenhuma autoridade externa.

O objetivo dessa nova teologia não era simplesmente negar certas crenças, mas

transformar o pensamento cristão à luz da filosofia, da ciência e da erudição bíblica

modernas. Para esses teólogos, a própria sobrevivência do cristianismo como religião

atraente para as novas gerações estava em jogo. Alguns pensadores radicais descartaram

totalmente a crença no sobrenatural e nos dogmas clássicos, mas a maior parte preferiu

simplesmente dar-lhes pouca ênfase ou reinterpretá-los. A modernidade com a qual

interagiam foi um conjunto de perspectivas e atitudes que perdurou de meados do século 17

até meados do século 20. Correspondeu basicamente ao iluminismo e seus efeitos culturais

posteriores. Seus temas básicos eram a supremacia da razão, a uniformidade da natureza e o

progresso inevitável da humanidade. A partir dessa ênfase antropocêntrica, o principal

papel da religião seria a educação moral dos seres humanos.

O maior pensador iluminista, e também o crítico mais contundente do iluminismo,

foi o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804). Ele expressou muitos temas essenciais

desse movimento, mas ao mesmo tempo restringiu a razão a uma esfera mais limitada do

que os seus antecessores aceitariam. Em sua principal obra sobre a temática religiosa, A

religião dentro dos limites da razão pura, ele restringiu o cristianismo ao âmbito da ética,

depreciando tanto a religião revelada quanto a religião natural. Para Kant, a religiosidade

autêntica era viver de acordo com os deveres racionalmente discerníveis; seu principal

propósito era fornecer às pessoas fundamentos e instruções morais. Essa religião não-

especulativa e não-sobrenatural não poderia entrar em conflito com a ciência. Mesmo

assim, ele manteve a crença em Deus, na imortalidade da alma e nas retribuições morais

após a morte.

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Reagindo contra Kant, Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), outro grande filósofo

alemão, procurou reintroduzir um forte conceito de Deus que não contrastasse com a

mentalidade científica moderna. Em Preleções sobre a filosofia da religião, ele explicou

Deus como um Espírito (Geist) mundial imanente que está por trás da natureza, da história

e da cultura, e com elas evolui. Deus e o mundo pertencem um ao outro e crescem juntos. A

humanidade e a cultura humana são Deus chegando à autoconsciência. A nova teologia

filosófica da modernidade, plenamente compatível com a ciência, herdou de Kant a ênfase

no dever ético e de Hegel o conceito de Deus como força espiritual impessoal e universal

que marcha com a história.

Até o início do século 19, os teólogos protestantes europeus em geral se opunham à

modernidade sempre que ela entrava em conflito com a ortodoxia. Esse cenário mudou com

Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834), considerado o pai da teologia liberal

moderna. Ele foi o primeiro teólogo protestante a propor mudanças radicais na ortodoxia

para se harmonizar com o espírito da modernidade. Seu pai era um pietista fervoroso e o

jovem recebeu sua formação acadêmica nessa tradição. Ao estudar na Universidade de

Halle, recebeu a influência do pensamento iluminista e da filosofia de Kant, passando a ter

dúvidas quanto a algumas doutrinas cristãs. Tornando-se ministro da igreja reformada,

atuou como capelão hospitalar em Berlim e catedrático de teologia na universidade onde

havia estudado. Em 1806 voltou para Berlim, onde pastoreou uma igreja influente e ajudou

a fundar a Universidade de Berlim. Tornou-se deão da faculdade de teologia e adquiriu

renome como herói nacional e grande intelectual.

A principal tendência cultural do fim do século 18 era o romantismo, uma reação à

ênfase racionalista do iluminismo. Os românticos celebravam os “sentimentos”, ou seja, os

anseios humanos profundos e a apreciação da beleza da natureza, dando origem a um

florescimento das artes (por exemplo, Goethe na literatura e Beethoven na música). Na

tentativa de influenciar seus contemporâneos românticos, céticos quanto ao cristianismo

tradicional, Schleiermacher escreveu uma obra que se tornou clássica – Sobre a religião:

discursos aos seus menosprezadores cultos (1799). Insistiu que a essência da religião não

está em argumentos racionais, dogmas revelados ou rituais eclesiásticos, mas num profundo

sentimento (Gefühl) de total dependência de uma realidade infinita. O cristianismo tem uma

forma peculiar e mais sublime dessa consciência universal, intrínseca à natureza humana. O

importante é descobrir e alimentar essa religiosidade latente que existe dentro de cada um.

A partir desse fundamento, Schleiemacher elaborou um sistema de doutrina cristã

para os tempos modernos em sua obra mais importante, A fé cristã (1821, revista em 1830).

Esse livro foi considerado o texto mais significativo e sistemático de teologia protestante

desde as Institutas de João Calvino. O objetivo do teólogo alemão foi apresentar uma

alternativa à religiosidade vaga de Kant e Hegel, levando em conta os avanços do

pensamento moderno. Nessa obra, ele se referiu ao Gefühl como “ter consciência de Deus”.

A teologia cristã seria uma tentativa de colocar em palavras o sentimento religioso. A

essência do cristianismo foi definida como a plena consciência da dependência de Deus e

de Jesus Cristo como o vínculo com ele. As Escrituras e as doutrinas cristãs deviam ser

avaliadas por esse critério básico. Apelando à tradição pietista, Schleiermacher considerou

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a experiência religiosa a autoridade suprema em matéria de fé. A Bíblia é o registro das

experiências religiosas do antigo povo de Deus. Não é divinamente inspirada nem infalível.

A doutrina de Deus foi reconstruída da mesma maneira. Falar em Deus é sempre

falar da experiência humana de Deus. A doutrina da Trindade e a crença em milagres foram

consideradas de pouca utilidade. O liberalismo de Schleiermacher aparece mais claramente

em sua cristologia. Para ele, Jesus Cristo tinha a mesma natureza que o restante da

humanidade. A única diferença é que desde o início ele teve plena consciência de Deus. Ele

foi o Salvador no sentido de que transmitiu essa consciência aos outros por meio de sua

comunidade, a igreja. Seu conceito de expiação se aproximou da teoria de Abelardo, a

influência moral. Jesus é somente um “ser humano exaltado”, à semelhança da antiga

posição adocionista. Como era inevitável, a teologia liberal de Schleiermacher sofreu

críticas à esquerda (demasiadamente cristão) e à direita (subjetivismo total).

Um nome mais estreitamente ligado à teologia liberal protestante é Albrecht Ritschl

(1822-1889), que foi por muitos anos professor de teologia sistemática na Universidade de

Göttingen, na Alemanha. Toda uma geração de teólogos foi treinada na sua teologia.

Ritschl buscou separar a teologia da ciência mediante duas estratégias: primeiro,

argumentando que as proposições de ambas são totalmente diferentes (a ciência trata de

fatos e a religião, de valores); segundo, afirmando que a essência do cristianismo é

inteiramente compatível com a cosmovisão moderna. Assim, rejeitando as especulações

metafísicas de Hegel e Schleiermacher e apelando ao pensamento de Kant, ele limitou a

religião e a teologia à esfera dos valores. A essência do cristianismo está no ideal de Jesus

quanto ao “reino de Deus”. Esse reino, que é o interesse central da teologia, consiste na

unidade ideal da humanidade, fundamentada no amor. O cristianismo não é uma religião

referente a outro mundo, mas à transformação deste mundo mediante a ação ética inspirada

no amor. Ser cristão é procurar estabelecer o reino de Deus na terra de modo relevante,

racional e prático. Como Kant, Ritschl reduziu o cristianismo à moralidade. Ele também

reinterpretou a divindade de Jesus. Ela somente significa que Jesus cumpriu plenamente a

sua vocação de corporificar o reino de Deus entre os seres humanos. Ele não preexistiu à

sua vida humana a não ser na mente de Deus.

Se por um lado a teologia liberal tornou a religião imune às novas descobertas da

ciência, por outro lado resultou na subjetivação quase completa da fé cristã, reduzida à

experiência espiritual (Schleiermacher) e moral (Ritschl). Três temas principais

condicionaram essa teologia: primeiro, a imanência divina, ou seja, a continuidade entre

Deus e a natureza numa espécie de panteísmo ou de panenteísmo (mutualidade entre Deus e

o mundo); segundo, por influência de Kant, a moralização do dogma, isto é, a tendência de

reinterpretar todas as doutrinas cristãs em termos éticos e morais; terceiro, a crença na

salvação universal da humanidade (universalismo).

Um dos maiores divulgadores do liberalismo protestante foi Adolf Harnack (1851-

1930), professor de história da igreja e teologia histórica na Universidade de Berlim e um

intelectual de grande prestígio na Alemanha, inclusive na esfera política. Foi o sucessor de

Schleiermacher e Ritschl como líder do liberalismo teológico clássico. Escreveu a

volumosa História do dogma, na qual tentou demonstrar a helenização do pensamento

cristão antigo e apelou à redescoberta do evangelho simples de Jesus Cristo. Em sua obra O

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que é o cristianismo?, sintetizou a essência da fé cristã em três grandes idéias apresentadas

por Jesus: a vinda do reino de Deus (o governo de Deus no coração das pessoas); Deus

como Pai e o valor infinito do ser humano (“a paternidade de Deus e a fraternidade dos

homens”); e a justiça centralizada no amor.

O pensamento de Harnack contribuiu nos Estados Unidos para o surgimento do

“evangelho social”, cujo principal articulador foi o pastor e teólogo batista de origem alemã

Walter Rauschenbusch (1861-1918). Seguindo os passos do pai, ele lecionou teologia e

história da igreja por muitos anos no Seminário Teológico de Rochester, no Estado de Nova

York. Ao formular o evangelho social, foi influenciado por Ritschl e pelo ensino de

Harnack sobre o “evangelho simples” de Jesus acerca do reino de Deus. Sua obra

derradeira e mais importante foi Uma teologia para o evangelho social (1917), na qual

reorientou totalmente a teologia para a ética social. Deu destaque especial à “salvação dos

seres superpessoais”, ou seja, as grandes estruturas da vida social (estado, corporações). A

obra que mais ajudou a popularizar os ideais do evangelho social foi a novela Em seus

passos que faria Jesus, de Charles Sheldon. A teologia liberal chegou ao seu apogeu na

década de 1920. Sua visão otimista acerca da humanidade foi contestada tanto pelos novos

acontecimentos (I Guerra Mundial, crise econômica) quanto por outras correntes teológicas

(fundamentalismo, neo-ortodoxia). Deixou um legado duradouro, que se manifesta no

desinteresse pela doutrina e piedade tradicionais e ênfase na formação moral e no ativismo

social.

Textos: Scheiermacher, Sobre a religião.

Análises: Olson, 547-568; González, III:353-394; Lane, II:78-90; Hägglund, 307-327;

Küng, 149-176; McGrath, 133-135, 138-141, 422-423; Costa, 283-315; Tillich II, 113-151,

225-228.

9. O fundamentalismo

A crescente influência da teologia liberal nas igrejas, seminários e ambiente cultural

dos Estados Unidos provocou uma forte reação conservadora no início do século 20,

denominada fundamentalismo. O termo provém do esforço dos protestantes conservadores

no sentido de defender os “fundamentos” da fé cristã e bíblica que eles consideravam

ameaçados pelo liberalismo ou modernismo teológico. Esse movimento pode ser definido

como uma forma específica de ortodoxia protestante norte-americana que reagiu contra a

teologia liberal do século 19 e início do século 20. Em oposição ao relativismo da teologia

liberal, os fundamentalistas adotaram uma postura de afirmação intransigente de doutrinas

consideradas essenciais, a começar da inspiração verbal e da inerrância das Escrituras. O

que distinguiu o fundamentalismo de outros grupos conservadores foi sua atitude de

militância agressiva, intolerância diante de posições divergentes e, em situações mais

extremas, radicalismo separatista. Essas características contribuíram para a imagem

negativa do movimento e de seu nome na mídia e na cultura popular. O fundamentalismo

foi mais ativo no período de 1910 a 1960 e experimentou diferentes fases e tendências.

Os antecedentes históricos do fundamentalismo remontam à ortodoxia protestante

do período posterior à Reforma, com sua metodologia escolástica, definição minuciosa das

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doutrinas confessionais e ênfase na inspiração e infalibilidade das Escrituras. Um dos

principais expoentes do escolasticismo reformado foi o teólogo ítalo-suíço François

Turretin (1623-1687), autor de uma teologia sistemática altamente complexa em três

volumes, Institutio theologiae elencticae. Em sua defesa da autoridade bíblica, esse

estudioso chegou a afirmar que até os pontos vocálicos do texto hebraico do Antigo

Testamento eram divinamente inspirados. Em 1812, quando foi fundado o primeiro

seminário presbiteriano dos Estados Unidos, em Princeton, Nova Jersey, a obra de Turretin

se tornou o principal livro-texto utilizado na formação teológica e pastoral dos futuros

ministros. Durante mais de um século (1812-1921), quatro teólogos e professores

calvinistas – Archibald Alexander, Charles Hodge, Archibald Alexander Hodge e Benjamin

Breckinridge Warfield – ensinaram o que ficou conhecido como Teologia de Princeton,

uma versão da ortodoxia protestante adaptada ao contexto norte-americano. Essa teologia

lançou os alicerces doutrinários do futuro fundamentalismo.

O maior desses precursores foi Charles Hodge (1797-1878), procedente de uma

família presbiteriana conservadora da Nova Inglaterra. Ele freqüentou o Seminário de

Princeton, onde se dedicou ao estudo da obra de Turretin. Após a formatura e ordenação,

aprofundou os estudos em várias universidades européias, nas quais teve contato com a

teologia liberal, que considerou inadequada em contraste com sua própria herança

calvinista. Buscando um fundamento filosófico para sua teologia, descobriu o realismo

escocês do senso comum, de Thomas Reid (1710-1796), segundo o qual os seres humanos

são dotados de faculdades que proporcionam observações e idéias confiáveis acerca do

mundo. Basta reunir e classificar as evidências, generalizando cuidadosamente tais fatos.

Com Hodge, esse se tornou o embasamento filosófico da teologia de Princeton. Em sua

volumosa Teologia sistemática (1871-1873), ele tratou a teologia como uma ciência

racional cujo método consiste em coletar e organizar os dados da revelação bíblica, assim

como a ciência o faz com os dados da natureza. A partir daí, Hodge elaborou um sistema

altamente coerente de teologia reformada conservadora. Esse sistema se apoiava

inteiramente nas Escrituras, que Hodge considerou verbalmente inspiradas, infalíveis e

normativas, contendo proposições, ou seja, declarações da verdade, que deviam ser

organizadas por seres humanos racionais, orientados pelo Espírito Santo.

A crítica de Hodge à teologia liberal se concentrou em Schleiermacher, cujas

preleções havia assistido em Berlim. Considerou sua influência perniciosa e debilitante por

causa de seu subjetivismo e por reduzir o cristianismo a uma intuição mística. O sistema

doutrinário de Hodge foi uma expressão da ortodoxia protestante clássica como algo a ser

defendido e transmitido fielmente, sem inovações. Deu ênfase à majestade e soberania de

Deus, mas no tocante à eleição optou pelo infralapsarismo. Condenou o arminianismo

como uma concessão ao humanismo e um atalho para o liberalismo. Suas posições foram

mantidas e reforçadas por seu discípulo Benjamin Warfield, que o sucedeu como professor

de teologia didática e polêmica em Princeton (1887-1921). Nessa época, a Igreja

Presbiteriana do Norte experimentou uma longa controvérsia sobre a natureza das

Escrituras e a “alta crítica”, ou seja, os novos métodos literários e históricos de investigação

da Bíblia que questionavam conceitos tradicionais de autoria, data e composição dos livros

bíblicos. Em artigos e livros Warfield defendeu o alto conceito das Escrituras adotado pela

teologia de Princeton, insistindo que a alternativa seria o desvio para o liberalismo e o

relativismo. Curiosamente, esses dois teólogos não encararam a teoria darwinista da

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evolução como uma ameaça para a ortodoxia, considerando-a um recurso que Deus poderia

ter usado na criação.

Esses teólogos calvinistas prepararam o terreno para o fundamentalismo de três

maneiras principais: identificando o cristianismo com a doutrina correta; dando ênfase à

revelação como verdade objetiva e proposicional comunicada por uma Bíblia inspirada e

inerrante; oferecendo respostas polêmicas à teologia liberal e aos métodos da alta crítica.

Considera-se que movimento propriamente dito teve início em 1910, quando dois homens

de negócios patrocinaram a publicação e ampla distribuição de doze brochuras com ensaios

escritos por destacados estudiosos protestantes conservadores, sob o título Os fundamentos.

Essa série foi uma resposta conservadora à teologia liberal e ao popular e influente

evangelho social. Ao longo daquela década vários grupos começaram a elaborar listas de

doutrinas consideradas fundamentais, tais como a inerrância da Bíblia, a Trindade, o

nascimento virginal de Cristo, a queda da humanidade, a expiação vicária, ressurreição e

ascensão de Cristo e até mesmo a crença pré-milenista quanto ao retorno de Cristo. Entre as

primeiras organizações do movimento estavam a Associação Cristã Mundial dos

Fundamentos, criada em 1919 pelo pastor W. B. Riley (1861-1947) e a Associação dos

Fundamentalistas, fundada no ano seguinte pelo batista Curtis Lee Laws, diretor de uma

revista conservadora.

O teólogo mais erudito do movimento foi J. Gresham Machen (1881-1937), um ex-

aluno de Warfield no Seminário de Princeton, no qual lecionou Novo Testamento de 1906 a

1929. Antes disso, estudou teologia em algumas universidades alemãs, onde conheceu de

perto o liberalismo. Em virtude de sua posição e qualificações, Machen se envolveu em

várias disputas na defesa da fé reformada histórica. Escreveu um livro influente,

Cristianismo e liberalismo (1923), no qual argumentou que a teologia liberal representava

uma religião diferente do cristianismo. Todavia, ele não se sentia inteiramente à vontade

entre os líderes fundamentalistas, por não concordar com suas posições pré-milenistas e

antievolucionistas. Em 1926, após um processo em que não teve oportunidade de defesa,

ele foi forçado a sair da sua denominação. Com outros colegas, fundou a Igreja

Presbiteriana Ortodoxa e o Seminário Teológico Westminster, em Filadélfia.

Inicialmente o fundamentalismo foi uma força cultural e política respeitável, com

grande potencial para influenciar positivamente o cenário teológico e religioso norte-

americano. Todavia, em 1925 um episódio trouxe descrédito e humilhação ao movimento –

o caso Scopes ou “julgamento do macaco”. John Scopes, um professor de biologia, foi

preso sob a alegação de ensinar o evolucionismo, o que era contrário às leis do seu estado,

o Tennessee. A União Americana de Direitos Civis contratou para defendê-lo um famoso

advogado criminalista de Chicago, o agnóstico Clarence Darrow. Atuou como promotor de

acusação o político populista de Nebraska e ex-candidato à presidência William Jennings

Bryan, de 65 anos, um líder emergente do fundamentalismo. Embora Scopes tenha sido

condenado, a atuação decepcionante de Bryan aliada à cobertura sensacionalista da

imprensa deu aos fundamentalistas uma imagem de tolos obscurantistas em total

descompasso com a era moderna. Cinco dias após o julgamento, Bryan morreu em desonra

e mais tarde as leis antievolucionistas foram revogadas.

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Nos anos seguintes, agravou-se a polarização entre fundamentalistas moderados e

radicais. Neste último grupo, líderes como John R. Rice, Bob Jones e Carl McIntire

insistiram na prática da “separação bíblica”, recusando-se a conviver com cristãos

conservadores que cooperassem com não-fundamentalistas. O rompimento definitivo entre

os dois grupos ocorreu em 1941, quando McIntire criou o Concílio Americano de Igrejas

Cristãs e no ano seguinte os moderados fundaram a Associação Nacional de Evangélicos,

sob a liderança de um pastor congregacional de Boston, Harold John Ockenga (1905-1985).

Essa associação passou a incluir um grande segmento do protestantismo conservador norte-

americano, composto de reformados, batistas e pentecostais. Um dos seus líderes mais

conhecidos foi o evangelista Billy Graham (1918-). Nas décadas subseqüentes, a ala

ultraconservadora, a única que continuou a denominar-se fundamentalista, acabou isolando-

se e ficando na defensiva à medida que promovia campanhas contra o evolucionismo, o

comunismo, o ecumenismo e a favor do dispensacionalismo.

Do ponto de vista teológico, as características marcantes do fundamentalismo são as

seguintes: (a) ênfase na inspiração verbal e na inerrância das Escrituras, aliada a uma

hermenêutica fortemente literal; (b) oposição militante e intensa à teologia liberal em todas

as suas formas; (c) identificação do cristianismo autêntico com um sistema ortodoxo de

doutrinas. O legado do movimento se traduz em um grande número de igrejas e ministérios,

bem como editoras, livrarias, colégios e institutos bíblicos, tanto nos Estados Unidos

quanto em outros países. Todavia, a maior parte dos evangélicos preferem ser conhecidos

como conservadores, não fundamentalistas, revelando maior afinidade com o início do

fundamentalismo e com personagens como Gresham Machen.

Textos:

Análises: Olson, 569-584; Lane, II:96-101.

10. A neo-ortodoxia

Uma importante corrente teológica do século 20 é a neo-ortodoxia, também

denominada teologia dialética, nova teologia da Reforma e teologia da Palavra de Deus,

que foi uma reação tanto contra o liberalismo (acomodação ao espírito moderno), quanto

contra o fundamentalismo (biblicismo, literalismo), atraindo as críticas de ambos. Buscou

resgatar os grandes temas protestantes e reformados da depravação humana, supremacia da

graça, salvação mediante a fé, bem como a transcendência e soberania de Deus. Seus

principais expoentes foram Karl Barth, Emil Brunner e os irmãos Reinhold e H. Richard

Niebuhr. Sua essência está no conceito de revelação, centrado na Palavra de Deus, que não

é o mesmo que a Bíblia. Rejeitou a teologia natural assim como a abordagem racional ou

experimental do conhecimento de Deus. Forçou os liberais a levarem mais a sério o pecado

e o mal, bem como a transcendência de Deus. Ao mesmo tempo, desafiou os conservadores

a evitarem o proposicionalismo extremo, o literalismo bíblico e a rejeição estreita da

modernidade.

Ao contrário das outras opções teológicas então existentes, a neo-ortodoxia buscou

fazer uma reflexão livre de qualquer influência filosófica dominante. Todavia, foi

fortemente influenciada pelo filósofo e crítico cultural dinamarquês Søren Kierkegaard

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(1813-1855). Possuidor de um temperamento melancólico e retraído, ele era bem conhecido

em seu país, mas sua influência no exterior só se fez sentir muito tempo após sua morte.

Suas obras principais foram Temor e tremor, Fragmentos filosóficos, Notas conclusivas

não-científicas dos fragmentos filosóficos e Um ou outro. Criou a corrente denominada

existencialismo, que se tornou popular na Europa após a I Guerra Mundial. Ao lado do

existencialismo cristão, houve também um existencialismo secular e ateu representado por

pensadores como Jean Paul Sartre e Martin Heidegger.

Kierkegaard foi um grande crítico da filosofia religiosa e cultural de Hegel, que

ressaltava a imanência de Deus na história humana. Um tema que permeia todos os seus

escritos é a negação da crença na continuidade perfeita entre o divino e o humano. Em sua

última obra, Ataque contra a cristandade (1855), acusou a igreja estatal dinamarquesa

(luterana) de ter se rendido ao espírito da modernidade, subvertendo o cristianismo

autêntico. Para ele, o cristianismo verdadeiro devia ser um grande risco a assumir e nunca

seria considerado respeitável pela elite cultural. Ao contrário do conhecimento filosófico,

racional e objetivo proposto por Hegel, Kierkegaard defendeu a necessidade da fé. Por

causa da “diferença qualitativa infinita” entre Deus e os seres humanos, o conhecimento de

Deus só é possível quando a pessoa, em sua interioridade apaixonada, dá um “salto de fé”,

assumindo os riscos associados a isto. Conhecer a Deus implica em fé, e fé implica em

risco, porque “verdade é subjetividade” e não algo racional, objetivo. Essa tensão entre o

objetivo e o subjetivo gera o paradoxo.

Barth admitiu explicitamente a sua dívida para com Kierkegaard. Influenciados por

este, os neo-ortodoxos iriam afirmar que o reino de Deus é escatológico e não histórico-

cultural; que ele não é uma possibilidade humana, mas um ideal divino; que há necessidade

de fé para o cristianismo autêntico; que o cristianismo é o relacionamento entre o Deus

santo e transcendente e o ser humano finito e pecador; que há mistérios que a razão não

pode imaginar nem compreender; que existem paradoxos nas verdades básicas da Palavra

de Deus. Somente a filosofia antifilosófica de Kierkegaard poderia ser parceira dos neo-

ortodoxos.

Karl Barth (1886-1968), o proponente da neo-ortodoxia, é considerado o teólogo

mais destacado e influente do século 20. Alguns chegam a compará-lo ao reformador

Martinho Lutero. Ele nasceu em Basiléia, na Suíça, onde seu pai era professor em um

seminário reformado, mas cresceu em Berna, ali recebendo uma educação reformada

ortodoxa. Decidido a ser pastor e teólogo, estudou com grandes pensadores liberais

protestantes, entre os quais Adolf Harnack. Foi ministro da igreja reformada em Genebra e

na pequena Safenwil, na fronteira com a Alemanha. Desiludido com a teologia liberal,

escreveu o célebre comentário da epístola aos Romanos (1919) no qual apresentou os

contornos da teologia dialética ou teologia da Palavra de Deus. Após a I Guerra Mundial,

lecionou teologia nas universidades de Göttingen, Münster e Bonn, na Alemanha. Em

Bonn, começou a escrever sua obra magna, Dogmática Eclesiástica, um sistema completo

de teologia que continuou elaborando ao longo da vida e deixou inacabado, com treze

volumes. Recusando-se a apoiar Hitler e o regime nazista, foi expulso da Alemanha, indo

lecionar na Universidade de Basiléia, sua cidade natal, onde passou o restante da vida.

Colaborou com a igreja confessional alemã, opositora do regime, e foi o principal autor da

Declaração de Barmen (1934). Seu ex-aluno Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) destacou-se

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como teólogo e participou de uma conspiração contra o ditador nazista, sendo executado.

Nas décadas de 1940 e 1950, centenas de pessoas estudaram em Basiléia sob a orientação

de Barth.

O principal tema da teologia de Barth é o seu conceito da revelação divina. Em

contraste com a revelação geral de Deus na experiência humana e na história (liberalismo)

ou no conteúdo proposicional da Bíblia (conservadores), ele insistiu que Deus só se revela

diretamente, pessoalmente. A Palavra de Deus não é alguma coisa distinta de Deus, mas o

próprio Deus se comunicando, e isso só pode acontecer em Jesus Cristo. Este é a verdadeira

Palavra de Deus, a revelação de Deus, como Filho pré-existente e personagem histórico. É

o que se denomina o “escândalo da particularidade”, ou seja, a revelação não é um

princípio universal e genérico, mas uma pessoa específica, Jesus Cristo. Para Barth, a

Bíblia não equivale à Palavra de Deus, mas é uma de suas manifestações secundárias. Ela é

o testemunho da Palavra de Deus na pessoa de Jesus Cristo e se torna a Palavra de Deus

quando este decide usá-la para confrontar uma pessoa com o evangelho. A Bíblia é

totalmente humana e pode conter erros, porque Deus sempre usou testemunhas falíveis. Ao

mesmo tempo, Barth reverenciava profundamente a Bíblia por causa do seu testemunho de

Cristo. Sem ela, nada saberíamos a respeito de Deus e de sua salvação. Ela é o único livro

que Deus usa como instrumento da sua Palavra para desafiar os seres humanos a uma

decisão a respeito de Jesus. Além de Deus revelar-se em Jesus Cristo e na Escritura, ele

também o faz através da proclamação da igreja. A pregação e o ensino da igreja podem ser

usados por Deus como um meio de revelação, como manifestação da sua Palavra, pois

Deus só se revela em atos de auto-revelação.

Outro elemento importante do pensamento de Barth é a sua doutrina de Deus, na

qual ele buscou um equilíbrio entre a transcendência e a imanência de Deus. O ser divino é

misterioso, mas, por causa da sua auto-revelação, é possível ter um conhecimento válido

dele. A doutrina barthiana de Deus é dialética, paradoxal. Deus é “aquele que ama com

liberdade”, ou seja, é plenamente amoroso e plenamente livre. Como ser livre, ele é eterno,

imutável, soberano, auto-suficente. Como ser amoroso, dotado de misericórdia e graça, ele

está genuinamente envolvido com o mundo e é afetado por ele. Ele não é prisioneiro do

mundo (Hegel) nem independente do mundo (teísmo cristão clássico), mas em Jesus Cristo

envolveu-se genuinamente com sua criação.

Outra contribuição importante da teologia neo-ortodoxa está na sua soteriologia.

Como herdeiro da tradição reformada, Barth insistiu na realidade do juízo e da ira de Deus

e defendeu a soberania de Deus na eleição. Todavia, reinterpretando essa tradição, entendeu

que o propósito de Deus na eleição é apenas o amor, e que, embora tenha permitido o mal

desde o início dos tempos, Deus o nega em Jesus Cristo, sua cruz e sua ressurreição. Deus

não diz “não” à humanidade, e sim a si mesmo em Jesus Cristo. A dupla predestinação se

refere a Cristo, “o único homem eleito e também réprobo”. Na eleição de Jesus Cristo,

Deus confere aos seres humanos eleição, salvação e vida, e a si mesmo reprovação,

perdição e morte. Esse ensino parece apontar para o universalismo, isto é, a salvação

universal.

Outro destacado teólogo neo-ortodoxo foi Emil Brunner (1889-1966), que lecionou

em Zurique na época em que Barth ensinava em Basiléia. Os dois pensadores tiveram um

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desentendimento famoso porque Brunner defendeu em parte a revelação geral e a teologia

natural, que Barth condenava. Além disso, Brunner considerou universalista a doutrina de

Barth sobre a eleição. Algumas obras significativas suas são A verdade como um encontro

(1938, 1954), Revelação e razão (1941) e a Dogmática (1946-1960). Ele deu maior ênfase

do que Barth ao aspecto experimental do cristianismo, ou seja, o encontro divino-humano e

o momento de decisão a respeito de Cristo como Senhor. Nos Estados Unidos, o teólogo

neo-ortodoxo mais destacado foi Reinhold Niebuhr (1893-1971), professor do Seminário

Teológico Union, em Nova York. Sua principal obra foi A natureza e o destino do homem

(1941-1943). Além de teólogo sistemático, dedicou-se à ética social cristã, tendo

contribuído para o surgimento de uma corrente denominada “realismo cristão”. Opondo-se

ao otimismo ingênuo do evangelho social, argumentou que, considerando a realidade

trágica do pecado, os cristãos devem se contentar com a justiça em vez de insistir numa

sociedade de perfeito amor, o reino de Deus na terra.

Além da oposição à teologia liberal e ao fundamentalismo, e da busca de uma

teologia moderna, porém consistente com o evangelho e com os grandes temas da Reforma,

três elementos são comuns aos neo-ortodoxos: (a) pensamento fortemente cristocêntrico;

(b) rejeição da teologia natural e ênfase na Palavra de Deus; (c) insistência na diferença

qualitativa infinita entre o tempo e a eternidade. Alguns neo-ortodoxos mais recentes são os

evangélicos progressistas norte-americanos Bernard Ramm (1916-1992) e Donald Bloesch

(1928-) e o católico alemão Hans Küng (1928-).

Textos:

Análises: Olson, 585-605; González, III:439-447; Lane, II:109-133; Hägglund, 343-349;

Mondin, 35-99, 137-171; Küng, 177-202; McGrath, 144-145, 260-264, 346-347, 388-390,

459-460, 536-537, 609-612; Tillich II, 174-190, 242-244.

11. Teologia evangélica

Na segunda metade do século 20 houve alguns desdobramentos significativos na

teologia evangélica. Existe uma questão terminológica a ser aclarada quanto ao termo

“evangélico”, pois ele tem sido usado em vários sentidos: para os luteranos e reformados

históricos, é sinônimo de protestante; outros grupos tradicionais o relacionam com o

evangelho, a mensagem cristã; também é usado pela ala protestante da igreja anglicana, os

herdeiros do avivamento “evangélico” dos séculos 18 e 19. No século 20, o termo foi

adotado pelos fundamentalistas originais e depois pelos protestantes conservadores que

romperam com os fundamentalistas radicais. Os novos evangélicos ou “evangelicais”,

caracterizados pela rejeição do espírito faccioso do fundamentalismo, tentaram criar uma

coalizão mais ampla do protestantismo conservador, adotando um conceito menos rígido de

inerrância bíblica e uma hermenêutica menos literalista, especialmente quanto à doutrina da

criação e à escatologia. Também demonstraram abertura para o diálogo e mesmo

cooperação com pentecostais e católicos romanos, como foi o caso do evangelista Billy

Graham.

Nos anos 50 e 60 o evangelicalismo pós-fundamentalista passou a articular uma

teologia distinta, combinando a ortodoxia e o pietismo protestantes. Essa coalizão tinha em

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comum a cosmovisão cristã histórica básica; todavia, sofreu uma crescente polarização nas

décadas seguintes. Nos Estados Unidos, surgiram dois paradigmas diferentes dentro do

movimento. Um deles é o paradigma “pietista-pentecostal”, que tem como patronos Phillip

Spener, August Francke, o conde Zinzendorf, João Wesley e o avivalista Charles G.

Finney. Esse modelo dá ênfase ao aspecto experimental do cristianismo, isto é, a

evangelização, a conversão, a regeneração, a espiritualidade, a santificação e o sinergismo

arminiano. Alguns teólogos evangélicos destacados do século 20 são o batista Carl F.

Henry (1913-2003), que foi ligado a Billy Graham, e Donald Bloesch (1928-), ex-professor

da Faculdade de Teologia da Universidade de Dubuque, em Iowa, partidário do

“evangelicalismo progressivo”.

O outro paradigma é o “puritano-princetoniano” ou reformado, com sua ênfase em

fundamentos doutrinários sólidos e em documentos confessionais como a Confissão de Fé

de Westminster. Critica o avivalismo porque é demasiadamente experimental, pouco

centrado no conteúdo doutrinário do cristianismo e pode conduzir ao pragmatismo, ao

relativismo e ao liberalismo. Além dos pioneiros da tradição reformada, seus principais

teólogos antigos foram os grandes puritanos (como John Owen), Jonathan Edwards,

Charles Hodge e Abraham Kuyper. Alguns nomes mais recentes são D.M. Lloyd-Jones,

Francis Schaeefer, J. I. Packer, R. C. Sproul, Michael Horton, James Montgomery Boice e

outros. Seus temas principais são as chamadas “doutrinas da graça”: a soberania do Deus

trino, a incapacidade humana, a graça e a eleição, o valor das Escrituras e da pregação, o

culto bíblico e o viver ético.

Textos:

Análises: Olson, 607-613; Lane, II:90-108; McGrath, 159-162.

12. Teologia católica

Após o Concílio de Trento, durante vários séculos a teologia católica romana foi

marcada por forte conservadorismo. Em 1870, no pontificado de Pio IX, o Concílio

Vaticano I promulgou o dogma da infalibilidade papal. Anteriormente, esse papa havia

declarado o dogma da “imaculada concepção” de Maria e o Sílabo de Erros, no qual

condenou muitos elementos do mundo moderno, inclusive o protestantismo. Todavia, o

Concílio Vaticano II (1962-1965), convocado pelo idoso papa João XXIII, revolucionou

em vários aspectos a vida da Igreja Católica, aprovando a missa no vernáculo, crescente

participação de leigos, ênfase no estudo e ensino da Bíblia, maior liberdade acadêmica e

abertura ecumênica para outros grupos cristãos.

O austríaco Karl Rahner (1904-1984) foi o mais influente teólogo católico romano

do século 20 e talvez da era moderna. Suas publicações incluem Investigações teológicas,

suas obras completas em vinte volumes, e Alicerces da fé cristã (1978), um resumo

sistemático dos seus ensinos ao longo da vida. Sua teologia é filosófica e altamente

abstrata, tendo como objetivo demonstrar a viabilidade intelectual da revelação e do

testemunho cristão no mundo moderno. Para isso, elaborou uma antropologia teológica

visando substituir a tradicional teologia natural tomista. Tentou demonstrar que os seres

humanos são, por natureza, “receptivos a Deus” e somente se realizam de modo supremo

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no relacionamento com Deus por meio de Jesus Cristo. Um conceito controvertido dessa

teologia é o chamado “existencial sobrenatural”: todo ser humano tem em si um elemento

de graça; quem seguir essa graça interior e sobre ela edificar encontrará salvação plena,

mesmo sem ter ouvido a mensagem explícita do evangelho. Tais indivíduos são “cristãos

anônimos”. Rahner praticamente sustentou a salvação universal, sendo raros os casos, no

seu entender, em que uma pessoa é condenada à perdição eterna.

Quanto à Trindade, ele criticou a distinção entre Trindade imanente (Deus na

eternidade) e Trindade econômica (sua atividade na história). Para ele, a Trindade é a

receptividade de Deus à humanidade, assim como esta é por natureza receptiva a Deus. De

um modo geral, a teologia de Rahner se manteve dentro dos limites da tradição católica,

mas ao mesmo tempo lhe deu maior flexibilidade e um novo universo de reflexão, mais

aberto ao pensamento moderno e à análise crítica da própria tradição católica. No

pontificado teologicamente conservador de João Paulo II (1978-2005), a igreja tomou

medidas restritivas contra alguns teólogos mais ousados, como Hans Küng e Leonardo

Boff. Outros teólogos católicos influentes do século 20 foram os franceses Pierre Teilhard

de Chardin (1881-1955), defensor do evolucionismo cristocêntrico, e Yves Congar (1904-

1995), proponente da teologia eclesiológica ecumênica; o suíço Urs von Balthasar (1905-

1988), com sua reflexão sobre a estética teológica, e o belga Edward Schillebeeckx (1914-),

que deu ênfase à teologia sacramental.

Textos:

Análises: Olson, 613-616; González, III:467-475; Lane, II:161-186; McGrath, 145-147,

342-344, 390-392, Mondin, 511-543; Tillich,

13. Teologias contemporâneas

Após a II Guerra Mundial, surgiu enorme diversidade no campo teológico. Devido

aos acontecimentos mundiais e às vozes discordantes conservadoras e neo-ortodoxas, o

sonho ecumênico dos teólogos liberais não se realizou. A diversidade pode ser saudável,

contanto que haja um forte elemento comum ou base unificadora – uma metanarrativa ou

história abrangente. Roger Olson observa: “Uma teologia que alega ser cristã deve ter

alguma coisa em comum com o evangelho de Jesus Cristo, com o testemunho apostólico

dele no NT e com a Grande Tradição da igreja cristã na história” (p. 609). Algumas das

principais opções na teologia contemporânea são a teologia do processo, a teologia da

libertação e a teologia da esperança.

À semelhança de tantos casos anteriores, a teologia do processo é um exemplo

hodierno de uma forte conexão entre teologia e filosofia. Trata-se de uma expressão da

teologia liberal que busca reconstruir a doutrina de Deus e toda a teologia cristã para

adaptá-la ao pensamento moderno sobre a natureza do mundo. Segundo os pensadores do

processo, a teologia cristã deve ser harmonizada com as pressuposições básicas de cada

nova realidade cultural. Para eles, não é mais aceitável a antiga tradição teológica cristã

influenciada pelo pensamento helenístico, com sua idéia de que a perfeição do ser é

estática. No mundo moderno, a mudança não é mais considerada uma evidência de

imperfeição. Existir e relacionar-se implica em mudar.

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A teologia do processo vai buscar sua fundamentação teórica na filosofia do

pensador inglês Alfred North Whitehead (1861-1947). Inicialmente um matemático, ele

passou para a filosofia especulativa ao tornar-se professor da Universidade de Harvard em

1924, vindo a criar o sistema metafísico mais notável do século 20. Ele concebeu toda a

realidade não em termos de objetos, mas de eventos interligados que denominou

“acontecimentos reais” ou “entidades reais”. Ser real é “acontecer” em relação a outros

acontecimentos. Nessa filosofia, Deus é o grande organizador cósmico. Ele não é

onipotente nem eterno, mas contém o mundo e está contido nele. Deus se desenvolve com o

mundo e sob a influência dele.

Cada elemento básico que compõe a realidade tem dois aspectos ou pólos –

“primordial” e “conseqüente”. No pólo primordial ou potencial – o caráter básico de Deus

que contém ideais ainda não realizados – Deus não muda. O pólo conseqüente de Deus é

sua realidade vivida, sua experiência real e está em constante mudança à medida que Deus

vivencia o mundo. Deus e o mundo se afetam mutuamente. Deus procura persuadir as

entidades reais a alcançarem seu alvo ideal subjetivo, mas elas têm livre-arbítrio e podem

resistir ao ideal de Deus, fazendo-o sofrer. Deus se enriquece ou se empobrece conforme as

respostas do mundo à sua persuasão.

Os teólogos do processo tentaram relacionar a teologia cristã com a filosofia de

Whitehead. Seu principal centro de estudos é a Escola de Teologia de Claremont, na

Califórnia, mas essa corrente de pensamento foi adotada nos principais seminários e

faculdades de teologia dos Estados Unidos. Seu principal expoente dos anos 60 até os anos

90 foi John Cobb Jr. (1925-), que publicou vários livros enfatizando a interdependência de

Deus com o mundo. A teologia do processo dá ênfase à imanência de Deus e à sua natureza

pessoal, o que inclui seu amor, vulnerabilidade e mesmo sofrimento. Rejeita o monergismo

ou qualquer coerção da parte de Deus. Este apenas convida as entidades reais à integridade

e harmonia do seu reino, mas cabe às criaturas livres decidir como vão reagir. Deus não

realiza intervenções sobrenaturais e não conhece o futuro plenamente, pois isso depende

das decisões livres dos indivíduos.

O maior atrativo dessa teologia está em sua aparente solução para o problema do

mal e do sofrimento dos inocentes suscitado pelas atrocidades da II Guerra Mundial. Deus

não impediu essas tragédias simplesmente porque não podia fazê-lo. Ele é apenas um

“companheiro compreensivo no sofrimento”, mas não pode direcionar as ações das

entidades reais. Essa teologia parece muito distante do que a fé cristã histórica ensina sobre

a atividade de Deus no mundo. Nesse sistema, não há esperança ou garantia de que Deus

terá a vitória no futuro. Alguns evangélicos progressistas têm sido influenciados pela

teologia do processo e elaborado uma abordagem conhecida como “teísmo aberto” ou

“teísmo do livre-arbítrio”, segundo o qual, por causa da genuína liberdade concedida aos

seres humanos, Deus não exerce controle meticuloso sobre o universo, não predetermina o

futuro, nem o conhece plenamente. Seus principais proponentes são John Sanders e Clark

Pinnock.

A partir dos anos 70, foi articulada na América Latina e na América do Norte uma

teologia fortemente contextual que focalizou a problemática da opressão social, racial,

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política e econômica. O movimento, conhecido como teologia da libertação, surgiu

inicialmente na América Latina, onde teólogos católicos e protestantes começaram a refletir

sobre a situação de miséria e injustiças desse continente. Logo essa teologia passou a ser

aplicada a outros contextos, como foi o caso da teologia negra e da teologia feminista,

ambas nos Estados Unidos. A teologia da libertação latino-americana foi importante por ser

o primeiro caso de uma teologia influente surgida fora do eixo Europa-América do Norte.

Também ocorreram manifestações dessa teologia na África e na Ásia.

As diferentes formas de teologia da libertação apresentam certas ênfases comuns.

Em primeiro lugar, incluem uma crítica das injustiças sociais, quer na forma de pobreza

estrutural, racismo ou patriarcalismo. Argumentam que a teologia não pode ser genérica

nem social e politicamente neutra, mas contextualizada e comprometida com a justiça em

cada situação específica. Ela deve ser uma reflexão concreta aliada a uma “práxis” ou

atividade libertadora. Em segundo lugar, elas insistem que Deus tem preferência pelos

oprimidos e que estes têm uma compreensão especial da vontade de Deus. Como no

evangelho social, a salvação é vista antes de tudo em termos históricos e sociais, não

individuais. Finalmente, a missão da igreja consiste em participar ativamente da libertação

dos oprimidos, identificando-se com eles. Na América Latina, essa teologia foi abraçada e

endossada por boa parte do episcopado católico. Em El Salvador, o bispo Oscar Romero foi

assassinado por se opor ao regime em defesa dos pobres.

O pai da teologia da libertação latino-americana é Gustavo Gutiérrez (1928-), um

sacerdote e teólogo católico peruano, autor do livro Uma teologia da libertação (1971).

Através da “teoria da dependência”, influenciada pela análise marxista, ele atribuiu a

origem da injustiça política e econômica na América Latina à interferência das nações do

hemisfério norte, que teriam deliberadamente mantido as nações do hemisfério sul em uma

situação de desvantagem. Para ele e seus simpatizantes, a salvação está na derrota das

forças que mantêm na pobreza as maiorias latino-americanas e no estabelecimento de

sistemas político-econômicos de caráter socialista. Um precursor da teologia da libertação

foi o missionário presbiteriano norte-americano M. Richard Shaull (1920-2002), que

trabalhou na Colômbia e no Brasil em meados do século 20. Outros nomes conhecidos são

Juan Luís Segundo, Jon Sobrino, José Miguez Bonino e os brasileiros Rubem Alves, Hugo

Assmann e Leonardo Boff.

O principal nome da teologia afro-americana é James Cone (1938-), que no fim dos

anos 60 e início dos anos 70 participou de movimentos Black Power (Poder Negro). Em

dois livros inovadores e influentes – A teologia negra e o poder negro (1969) e Uma

teologia negra da libertação (1970) –, ele procurou justificar o ativismo radical sob o

argumento de que Deus é negro e que o poder negro é “a principal mensagem de Cristo à

América no século 20”. Nos anos 70, Cone foi professor de teologia sistemática no

Seminário Teológico Union, em Nova York.

No que diz respeito à teologia feminista, a personagem mais destacada é a teóloga

católica Rosemary Ruether (1936-), que lecionou em um seminário metodista dos Estados

Unidos. Em seu livro Sexismo e linguagem sobre Deus (1983), ela identificou como mal

básico o patriarcalismo, que denota tanto o domínio dos homens quanto a estrutura social

hierárquica na qual tudo é controlado por figuras paternas (na família, na igreja, etc.). O

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próprio entendimento de Deus como Pai e como figura masculina foi severamente

questionada nessa teologia, que propôs uma mudança da terminologia bíblica nessa área. O

efeito mais perceptível da teologia feminista ocorreu na área da “linguagem inclusiva”.

Algumas expressões do pensamento feminista adquiriram uma conotação extremamente

radical, anticristã e pagã.

Dentre as muitas expressões da teologia do século 20, outra que alcançou destaque

foi a chamada teologia escatológica ou teologia da esperança, associada aos pensadores

alemães Jürgen Moltmann e Wolfhart Pannenberg. Entre o fim dos anos 60 e o início dos

anos 90, eles foram tidos como os mais influentes teólogos protestantes contemporâneos de

renome mundial. A despeito de suas diferenças, procuraram resgatar a abordagem realista

da escatologia bíblica, distinguindo-a tanto do dispensacionalismo fundamentalista (pré-

milenismo) quanto da interpretação sociológica liberal (o reino de Deus na terra). Ambos se

converteram ao cristianismo após a derrota da Alemanha na II Guerra Mundial e durante

algum tempo lecionaram juntos em um seminário da igreja estatal. Também lecionaram em

seminários e universidades nos Estados Unidos quando estavam licenciados de suas

cátedras, adquirindo sólida reputação como os principais teólogos protestantes moderados.

Jürgen Moltmann (1926-) tornou-se cristão em um campo de prisioneiros de guerra

na Inglaterra e filiou-se à igreja reformada, tendo lecionado por muitos anos na conceituada

Universidade de Tübingen. Adquiriu notoriedade com a publicação do livro Teologia da

esperança (1964), no qual acentuou a revelação como promessa e a salvação como a obra

histórica de Deus pertencente ao futuro. Deu grande ênfase ao reino de Deus, insistindo que

somente Deus pode concretizá-lo. A ressurreição de Cristo é a antecipação concreta

(prolepse) do reino, quando todas as promessas dos novos céus e terra serão cumpridas. Seu

ensino peculiar foi a identificação de Deus como o poder e o impulso do futuro que irrompe

na história, embora também afirme que Deus é trino, uno e pessoal, conforme se pode

verificar em suas obras O Deus crucificado (1974) e A Trindade e o reino (1981).

Wolfhart Pannenberg (1928-) converteu-se ao cristianismo quando era estudante

universitário em Berlim. Tornou-se luterano e fez carreira na Universidade de Munique. A

obra que lhe deu fama foi Jesus: Deus e homem (1964), na qual afirmou o caráter

verificável da ressurreição corpórea de Cristo como evento histórico. À semelhança de

Moltmann, interpretou a ressurreição de Cristo como evento escatológico e antecipatório do

futuro reino de Deus. Em outros livros, como A teologia e o reino de Deus (1969) e A idéia

de Deus e da liberdade humana (1973), expressou conceitos bastante radicais, como a

aparente não-existência atual de Deus para o mundo. Deus existe no futuro, quando

finalmente revelará sua divindade e sua majestade. Deus se realiza com e pela história

mundial, sem se tornar dependente dela. Porém, em nossa experiência humana finita Deus

parece ainda não existir, porque sua majestade é escatológica. Como Barth, os dois teólogos

escatológicos afirmaram que Deus não precisa do mundo para ser o que é, mas decide se

relacionar com o mundo para percorrer a história junto com ele.

Como a teologia do processo, a teologia escatológica também parece oferecer uma

solução para o problema do sofrimento: os males acontecem porque o mundo ainda não é o

reino de Deus. Como Deus dotou o mundo de liberdade, precisa atuar nele sem dominá-lo.

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Ele sofre com a história humana, envia do futuro Jesus Cristo e o Espírito Santo

para demonstrar seu amor e no fim virá ao mundo e anulará todo o pecado e mal.

Textos: Moltmann, Deus na criação; O caminho de Jesus Cristo; O Espírito da vida.

Análises: Olson, 616-627; González, III:456, 459-462, 475-478; Lane, II:141-156, 199-

208; Mondin, 283-302; McGrath, 148-150, 153-157, 339-342, 460-462, 635-636; Tillich,

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Nova, 1988-1990.

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2004.

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Tillich, Paul. História do pensamento cristão. 3ª ed. São Paulo: ASTE, 2004.


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