UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOLOGIA E LÍNGUA
PORTUGUESA
SIMONE STRELCIUNAS GOH
Oralidade em Itinerários – cartas de Mário de Andrade e Manuel
Bandeira para Alphonsus de Guimaraens Filho
VERSÃO CORRIGIDA
São Paulo
2013
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOLOGIA E
LÍNGUA PORTUGUESA
Oralidade em Itinerários – cartas de Mário de Andrade e Manuel
Bandeira para Alphonsus de Guimaraens Filho
Simone Strelciunas Goh
Orientador: Prof.Dr. Hudinilson Urbano
De acordo:_________________________
VERSÃO CORRIGIDA
São Paulo
2013
Tese apresentada ao programa de pós-graduação em Filologia e Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Letras.
GOH, Simone Strelciunas
Oralidade em Itinerários – cartas de Mário de Andrade e Manuel Bandeira para Alphonsus de
Guimaraens Filho .
Aprovada em : __________________________________________________
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Hudinilson Urbano - orientador
Universidade de São Paulo
Prof. Dr. Luiz Antonio da Silva
Universidade de São Paulo
Profa. Dra. Zilda G.O. Aquino
Universidade de São Paulo
Profa. Dra. Maria Sílvia Cintra Martins
Universidade Federal de São Carlos
__________________________________________________________________
Prof. Dr. Ricardo Madeira
Faculdades Metropolitanas Unidas
Tese apresentada ao programa de pós-graduação
em Filologia e Língua Portuguesa do Departamento
de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo para obtenção do título
de Doutor em Letras
AGRADECIMENTOS
A Deus, como um força maior que mora em nossos corações.
Ao meu esposo por dar parte de sua vida para minha vida.
Aos meus filhos, estímulos para minha perseverança.
A minha mãe, pela vida...
Ao prof. Dr. Hudinilson Urbano, por compartilhar sua imensa
sabedoria e momentos de aprendizagem.
Ao prof. Dr. Luiz Antonio pelas sugestões e críticas no Exame de
Qualificação.
À profa. Dra. Zilda Aquino por ser minha professora desde sempre.
A todos vocês, meus sinceros agradecimentos.
RESUMO
O objetivo deste trabalho é estudar o gênero ‘cartas’, na sua especificidade,
‘cartas entre escritores’ apresentado em um corpus único e cronológico e demonstrar
que ele registra marcas de oralidade, especificamente marcadores de atenuação,
criando um discurso epistolográfico cortês de Mário de Andrade e Manuel Bandeira com
seu interlocutor Alphonsus de Guimaraens Filho.
Elegemos como corpus seis cartas de Mário de Andrade e dezenove de Manuel
Bandeira enviadas a Alphonsus de Guimaraens Filho no período de 1940 a 1944 e
editadas no livro Itinerários .
Faz-se um estudo descritivo e histórico do gênero cartas, verificando que a
forma/composição do gênero não sofreu alterações desde os primórdios do ano 200 dC
até os nossos dias.
Posicionamos as cartas entre os polos da escrituralidade/oralidade, constatando
a condição híbrida do gênero e dos textos sob análise. As cartas foram produzidas de
forma gráfica, no entanto, apresentam marcas de oralidade.
Verificamos que a história epistolográfica entre os escritores foi duradoura e
atingiu seu objetivo, colaborando para o aprimoramento estético de Alphonsus de
Guimaraens Filho.
Acrescenta-se que tal êxito se deu pela presença da cortesia verbal nas cartas,
especialmente, por meio dos marcadores de atenuação. Tais marcas modalizaram o
enunciado, diminuindo a força dos atos ameaçadores de face.
Na conclusão, destaca-se a valiosa contribuição das cartas de Mário de Andrade
e Manuel Bandeira em relação às conquistas literárias de Alphonsus de Guimaraens
Filho.
A tese contribui para os estudos linguísticos, uma vez que comprovamos que
mesmo sendo escritores renomados, Mário de Andrade e Manuel Bandeira mostraram-
se respeitosos e corteses para com o jovem escritor Alphonsus de Guimaraens Filho,
conseguindo manter a interação mesmo à distância.
Palavras-chave: oralidade; gêneros discursivos; cartas; cortesia, preservação de face
ABSTRACT
The objective of this paper is to study the genre 'letters' in their specificity 'letters
between writers' presented in a unified, chronological corpus and demonstrate that it
registers brands of orality, particularly attenuation markers, creating a courteous
epistolographic speech of Mario de Andrade and Manuel Bandeira and his interlocutor
Alphonsus Guimaraens Filho.
We elected as a corpus 6 letters from Mário de Andrade and Manuel Bandeira
and 19 sent to Alphonsus Guimaraens Filho during the period of 1940 to 1944 and
edited in the book Itinerários.
A descriptive and historical study of the genre letters is made, verifying that the
form/composition of the genre did not suffered any modifications since the beginning of
the year 200 AD to the present day.
We positioned the letters between the scripturality/orality poles, evidencing the
hybrid condition of the genre and the texts under analysis. The letters were produced
graphically and conceptually written, however, they present orality marks.
We verified that the epistolographic history between the authors was long lasting
and it reached its goal, contributing to the aesthetic enhancement of Alphonsus
Guimaraens Filho.
It can be added that such success is given by the presence of verbal courtesy in
the letters especially through the markers of attenuation. Such marks modalized the
statement, decreasing the strength of face threatening acts.
In conclusion, it is highlighted the valuable input of Mário de Andrade and Manuel
Bandeira’s letters regarding the literaly achievements.
The thesis contributes to linguistic studies, once proven that despite being
renowned writers, Mário de Andrade and Manuel Bandeira proved to be respectful and
courteous towards the young writer Alphonsus Guimaraens Son, succeeding at keeping
the same distance interaction.
Key-words: orality; discursive genres; letters; courtesy; salvation of face
LISTA DE FIGURAS
Figura 01 – Descrição do corpus............................................................... 25
Figura 02 – Plano geral da tese ................................................................ 28
Figura 03 – Gêneros segundo Aristóteles ............................................... 32
Figura 04 – Fluxo de informações ............................................................ 41
Figura 05 - Quadro comparativo carta empresarial/
comercial vc. carta pessoal ......................................................................
65
Figura 06 – A perspectiva do “meio” e da “concepção” ........................... 91
Figura 07 – Continuum .e possíveis transposições de “meios”................ 94
Figura 08 – Formulação do discurso ....................................................... 97
Figura 09 – Condições de comunicação da oralidade e escrituralidade
extremas ..................................................................................................
99
Figura 10 – Parâmetros e condições comunicativas –
espaço multidimensional .........................................................................
101
Figura 11 – Densidade informativa do meio sonoro ............................... 104
Figura 12 – Quadro sobre cortesia Silva/Urbano .................................... 121
Figura 13 – Estrutura da carta ciceroniana ............................................ 143
Figura 14 – Cartas do corpus/número de linhas .................................... 145
Figura 15 - Quadro comparativo carta pessoal vs.
carta entre escritores ..............................................................................
151
Figura 16 – Temática das cartas.... ......................................................... 158
Figura 17 - Formulação do discurso no corpus...................................... 162
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS .................................................................. 07
INTRODUÇÃO ......................................................................... 11
CORPUS.................................................................................... 25
PARTE I – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Capítulo 1- Gêneros discursivos.......................................... 30
1.1 Gêneros discursivos – discutindo conceitos................. 31
1.2 Historiografia do gênero cartas ...................................... 53
1.3 Discutindo o gênero carta entre escritores ................... 63
1.4 Fechando as ideias .........................................................
67
Capítulo 2- A língua dos escritores modernistas............ 69
2.1 Discutindo a linguagem de Mário de Andrade ............ 70
2.2 Discutindo a linguagem de Manuel Bandeira................ 81
2.3 Fechando as ideias ........................................................ 85
Capítulo 3- Oralidade ............................................................. 87
3.1 Discutindo o continuum entre a fala e a escrita.......... 87
3.2 Língua falada e língua escrita ..................................... 104
3.2.1 Eixo fonético .................................................................. 105
3.2.2 Eixo morfossintático ...................................................... 107
3.2.3 Eixo sintático.................................................................. 108
3.3 Marcadores conversacionais e de atenuação ........... 109
3.3.1 Marcadores de atenuação........................................... 111
3.3.1.1 Marcadores de opinião.............................................. 111
3.3.1.2 Hedges....................................................................... 113
3.3.1.3 Marcadores de rejeição............................................. 114
3.3.1.4 Marcadores metadiscursivos.................................... 115
Capítulo 4- Estratégias de cortesia e preservação de
face..................................................................... 116
4.1 Discutindo a cortesia....................................................... 117
4.2 Discutindo a preservação de face ................................ 124
PARTE II - A REPRESENTAÇÃO DA ORALIDADE E OS
ASPECTOS DE CORTESIA E PRESERVAÇÃO DE FACE
Capítulo 5- Gêneros discursivos: discutindo Itinerários. 137
5.1 Itinerários x historiografia do gênero cartas.................... 137
5.2 Discutindo o gênero cartas entre escritores............. ...... 148
5.3 Fechando as ideias.......................................................... 154
Capítulo 6- Oralidade em Itinerários................................... 156
6.1 Discutindo o continuum em Itinerários............................ 156
6.2 Língua falada na língua escrita de Itinerários ............... 172
6.2.1 Eixo fonético................................................................... 174
6.2.2 Eixo morfossintático....................................................... 178
6.2.3 Eixo sintático ................................................................. 186
6.3 Marcadores de atenuação em Itinerários........................ 193
6.3.1 Hedges........................................................................... 197
6.3.2 Marcadores de rejeição............................................ .... 199
6.4 Fechando as ideias........................................................ 201
Capítulo 7- Cortesia e preservação de face em Itinerários.. 202
7.1 Cortesia em Itinerários ..................................................... 202
7.2 Preservação de face em Itinerários ............................... 208
7.3 Fechando as ideias ......................................................... 219
CONCLUSÃO ......................................................................... 221
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................... 230
REFERÊNCIAS EPISTOLOGRÁFICAS................................ 237
ANEXO 1 ................................................................................. 241
ANEXO 2 ................................................................................. 258
11
INTRODUÇÃO
Durante o mestrado pudemos aprofundar nossos conhecimentos sobre as
cartas entre escritores, especificamente as escritas por Monteiro Lobato a Godofredo
Rangel, editadas sob o título A barca de Gleyre (Monteiro Lobato, 1948), corpus de
nossa pesquisa e dissertação de mestrado: Metalinguagem e Oralidade em Monteiro
Lobato.
O estudo em questão apontou que a língua de Lobato nas missivas, embora
apresente um continuum entre escrituralidade e oralidade, aproxima-se muito mais
do primeiro polo, pois mesmo as repetições e as gírias empregadas são planejadas
e denotam uma preocupação com o texto elaborado, distanciando-se dos aspectos
da oralidade.
O gênero carta não ficou isolado ou esquecido. Durante as aulas ministradas
no curso de Letras tivemos a oportunidade de trabalhar com o estudo dos gêneros
discursivos e aplicá-los com o objetivo de promover o desenvolvimento das
competências leitora e escrita, especialmente por meio das sequências didáticas. A
maioria dos trabalhos apresentados pelos alunos se direcionou para os seguintes
gêneros: crônicas, contos, histórias em quadrinhos e gêneros jornalísticos.
Dessa forma, percebemos o desconhecimento dos alunos em relação ao
gênero carta, até por que, para muitos, ele foi substituído por mensagens
eletrônicas. No entanto, ao apresentar em sala de aula fragmentos de nossa
dissertação de mestrado, enfatizando as cartas de Monteiro Lobato, os alunos
mostraram grande interesse em conhecer mais sobre o gênero epistolográfico.
Tal fato levou-nos a novas pesquisas, momento em que nos deparamos com a
correspondência de Mário de Andrade e Manuel Bandeira enviadas ao escritor
12
Alphonsus de Guimaraens Filho, publicadas no livro Itinerários. (GUIMARAENS
FILHO, 1974)
Manuel Bandeira instaura mais que uma amizade com Alphonsus de
Guimaraens Filho por intermédio das cartas: ele se torna padrinho de casamento do
jovem escritor e íntimo da família. O escritor modernista faleceu em 13 de outubro de
1968, correspondendo-se com o escritor mineiro até 1967.
Por outro lado, Mário de Andrade coloca-se no papel de professor. O escritor
fica extremamente doente em 1944; sua última carta é datada desse ano, vindo a
falecer em 25 de fevereiro de 1945. Os escritores em questão se mantiveram fiéis à
correspondência com Alphonsus de Guimaraens Filho até o fim da vida.
O título Itinerários nos chama atenção e estabelece de alguma forma uma
relação semântica e temática com A barca de Gleyre (MONTEIRO LOBATO, 1948).
Monteiro Lobato discutiu, em suas cartas, questões metalinguísticas sobre
língua e estilo com Godofredo Rangel, seu amigo e escritor, como o fizeram Mário
de Andrade e Manuel Bandeira com Alphonsus de Guimaraens Filho, porém, na
época, esse interlocutor1 ainda era muito jovem e inexperiente como escritor.
A seguir, apresentamos dois excertos das missivas de Mário de Andrade e
Manuel Bandeira e um trecho da carta de Monteiro Lobato editada em A barca de
Gleyre com o intuito de demonstrarmos uma relação temática entre esse trabalho e
a dissertação de mestrado.
1 Utilizaremos para identificar Mário de Andrade e Manuel Bandeira os termos: remetentes, locutores, enunciadores, interlocutores; e Alphonsus de Guimaraens Filho: destinatário, interlocutor, enunciatário. Não faremos uso de emissor e receptor, observando as considerações de Blikstein (1999, p.28), que entende que tais termos podem causar confusão com próprio veículo de comunicação, por exemplo: canal emissor ou aparelho receptor.
13
a) E é neste ponto que talvez V. deva estudar um bocado friamente o seu caso. Você já se
propôs esta pergunta: Até que ponto V. não estará imitando você? Sua poesia não tem
cacoetes externos, amaneirados, formais ou de sintaxe como por ex. a minha tem. Mas não
existem apenas receitas formais, objetivas, externas em arte, existem cacoetes, maneiras,
receitas intelectuais e sentimentais. Por vezes, quando leio assim em seguida três ou quatro
poemas de V., tenho uma sensação vaga do “fácil”. De um “fácil" seu exclusivo de V., de
um fácil que se insinuou dentro do difícil da caracterização livre da personalidade.
(MA-8-1943, linhas 41-47, p.255)
b) Se o soneto fosse meu, eu diria no 4.°verso do 2° quarteto “Dizendo a minha mãe porque
parti.” Acho “mamãe” a palavra mais do fundo da ternura mais íntima que trazemos em nós.
Pode e deve ser empregado em ocasiões muito raras — quando nos sentimos de novo
criancinhas — nos momentos em que feridos pelos outros voltamos para as nossas
mamães. Não é o caso do soneto, em que o poeta está numa atitude viril. Creio que aqui
“minha mãe” ficará melhor.
No outro Soneto, estou de acordo com o Mário acerca da frase “que os bons e os santos
gera”. Acho a rima indiscreta e “santos gera” muito desagradável como som. Me parece
possível consertar abandonando a idéia e buscando outra.
Creio, meu caro Alphonsus, que, sem abandonar outras esferas da poesia, você pode dar
no gênero coloquial coisas definitivas, como já são “Momento" e “Poema íntimo", que reputo
de primeira ordem.
Grande abraço do
Manuel.
(MB-3-1940, linhas 7-20, p.260)
c) Godofredo
[...]
Um homem mal vestido é um escritor sem estilo, espécie de Silvio Romero. Tanta idéia tem
ele, tanto valor, mas aquele indecoroso desalinhavo na maneira de expressar-se faz que
todos o evitem.”
Taubaté, 1907.
(MONTEIRO LOBATO, 1948, p. 200)
As três cartas contemplam o mesmo tema: o ser escritor. Verificamos que em
(a), Mário de Andrade é direto em suas observações, criticando a postura clássica
de Alphonsus de Guimaraens Filho. Manuel Bandeira, em (b), critica determinada
14
escolha lexical de Alphonsus de Guimaraens Filho, mas finaliza a carta elogiando o
escritor. Por último, temos Monteiro Lobato em (c) que escolhe Silvio Romero para
protagonizar a metáfora de escritor sem estilo.
Percebemos que há uma aproximação entre os títulos, pois Itinerários nos
remete à ideia de deslocamento, chegada em algum lugar, enquanto barca é o
veículo que pode nos conduzir a determinado lugar, conceito esse explícito nas
palavras de Monteiro Lobato, conforme excerto grifado:
Mas falemos em coisas profanas. Li o teu ultimo artigo... Nunca viste reprodução dum
quadro de Gleyre, Ilusões Perdidas ? Pois o teu artigo me deu a impressão do quadro de
Gleyre posto em palavras. Num cais melancolico barcos saem; e um barco chega, trazendo
à proa um velho com o braço pendido largamente sobre uma lira – uma figura que a gente
vê e nunca mais esquece [...] O teu artigo me evocou a barca do velho. Em que estado
voltaremos, Rangel, desta nossa aventura de arte pelos mares da vida em fora ? Como o
velho de Gleyre ? Cansados, rotos ? As ilusões daquele homem eram as velas da barca – e
não ficou nenhuma. Nossos dois barquinhos estão hoje cheios de velas novas e arrogantes,
atadas ao mastro da nossa petulancia. São as nossas ilusões. Que lhes acontecerá ?”
(sublinhado nosso) (MONTEIRO LOBATO,1948, p. 14)
A história epistolográfica entre os escritores se inicia no ano de 1940, época
em que Mário de Andrade tinha 47 anos e Manuel Bandeira 56, ambos já tendo
conquistado o status de grandes escritores brasileiros. Alphonsus de Guimaraens
Filho, com 22 anos, vê os escritores modernistas como mentores que o aprimorarão
esteticamente.
Baseados na leitura dos poemas do escritor mineiro, Mário de Andrade e
Manuel Bandeira elaboram sua crítica. Dessa forma, pautados em Magalhães (1996,
p.17), entendemos as cartas de Itinerários como um gênero que promoveu a
interação (embora não face a face) de Mário de Andrade, Manuel Bandeira e
15
Alphonsus de Guimaraens Filho, na medida em que foi um produto da interpretação
da linguagem desses interlocutores, dotada de valores sociais estabelecidos.
Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Alphonsus de Guimaraes Filho são
sujeitos com identidades sociais próprias e essas particularidades definirão suas
características discursivas, especificamente as de Mário de Andrade e Manuel
Bandeira, nesta tese estudadas.
Perguntamo-nos então, se a diferença de status cultural entre os interlocutores
não faria com que Mário de Andrade e Manuel Bandeira adotassem uma postura de
superioridade em relação ao jovem escritor, fazendo com que ele se sentisse um
poeta inferior.
Após a leitura do corpus, percebemos uma preocupação por parte de Mário de
Andrade e Manuel Bandeira em construir uma crítica modalizada, que fizesse com
que Alphonsus de Guimaraens Filho refletisse sobre sua estética, porém, não se
sentisse inferiorizado, como notamos no seguinte trecho:
Com o caso do canavial já não
concordo com você. Si trigo é mais universal (não há dúvida), o é numa universalidade
perigosa, Bíblia-via-Europa. “Canavial” é exótico em Rilke? Não há dúvida e é isso que me
interessa prá humanidade de você, prá não estereotipação de você: é que se você tivesse
falado sem vir através de canaviais, ou de cafezais, ou de terras de ferro, isso seria sua
humanidade, sua Minas, seu Brasil, sua América. “Trigo” é, no caso, um remígio do condor.
Se observe bem e você verá que é.
E se não achar mesmo, é porque não é !!! E neste caso não se amole comigo e nem que o
universo inteiro lhe atire pedras: continue falando em trigo, trigais, sinceramente.
(MA-1-1940, linhas 44-52, p.242)
O que se instaura em Itinerários é uma relação de professor-aluno entre Mário
de Andrade e Manuel Bandeira, como professores e Alphonsus de Guimaraens
16
Filho, como aluno. No entanto, os estudos de Laboissiére e Cunha (1996) indicam
que tal situação é mais complexa do que a relação estabelecida entre os escritores:
Em dados coletados e analisados em pesquisa recente, tendo como
objeto de estudo o discurso do professor em classes de língua
estrangeira, pude constatar que o professor amplia seu papel social
ocupando-se de outros de natureza mais ampla e complexa, tais
como: esclarecedor de dúvidas sobre o mundo (em aspectros como
política, eleições, problemas específicos da realidade do país etc.)
amigo ou conselheiro, podendo atingir até mesmo o contexto familiar
[...] (p.233)
Verificaremos se as cartas aqui estudadas apresentam tal nível de
complexidade.
O gênero carta, como gênero sócio cultural, desde os primórdios, retrata a
própria história do homem, como demonstraremos em capítulo específico. Grandes
tratados, proclamação de leis, textos jurídicos foram elaborados em forma de carta.
Nosso corpus também conta uma parte da história de Mário de Andrade e
Manuel Bandeira, relata a relação dos escritores com o mundo literário, suas
preocupações e as atividades que desenvolviam: elaboração de artigos, seus textos
literários, cursos e principalmente a exposição de suas ideias sobre estética por
meio das críticas dirigidas a Alphonsus de Guimaraens Filho.
As cartas, em termos de uso da língua, são documentos que também retratam
posturas linguísticas, sobretudo de Mário de Andrade, quanto à integração de
marcas de oralidade, o que nos motivaram a tese por esse viés.
Feitas essas considerações, cabe apresentarmos o objetivo geral dos nossos
estudos.
17
Nossa pesquisa não objetivará discutir questões metalinguísticas como o
fizemos em relação à A barca de Gleyre, mas se voltará para a observação e
análise, além das questões temáticas já aludidas, também das marcas de oralidade,
em especial dos marcadores de atenuação. Elas nos permitirão posicionar o gênero
na já conhecida teoria do continuum entre os polos da oralidade/escrituralidade,
segundo a teoria do “meio” e da “concepção” de Koch e Oesterreicher (1980, 2007)
com releitura de Urbano (2011) e Marcuschi (2001), como se desenvolverá adiante.
Dentro desse enfoque teórico, serão contrastadas as cartas de Mário de Andrade
com as de Manuel Bandeira. Paralelamente, observaremos as estratégias de
cortesia e aspectos vinculados.
O levantamento dessas marcas será, então, pertinente para compreendermos
se tais estratégias de cortesia amenizaram as críticas feitas por Mário de Andrade e
Manuel Bandeira aos poemas de Alphonsus de Guimaraens Filho.
Especificamente pretende-se:
compreender o continuum estabelecido entre os polos da oralidade e
escrituralidade, considerada a premissa de que cartas correspondem a
verdadeiras conversas em forma de monólogos;
descrever e analisar os marcadores conversacionais, recursos próprios
da língua oral e, em particular, os marcadores de atenuação;
observar a presença dos ataques de face dos locutores;
compreender a cortesia verbal e verificar como ela se instaura nas
cartas, amenizando os ataques de face.
Mário de Andrade e Manuel Bandeira utilizaram as cartas como espaço para
discussão e aprimoramento do estilo poético de Alphonsus de Guimaraens Filho. Os
18
missivistas já anteviam que, não obrigatoriamente, o interlocutor poderia aceitar suas
opiniões, ou seja, ele poderia distanciar-se, quebrando a comunicação.
Muitos são os estudos relativos aos variados aspectos da oralidade em textos
escritos e falados (podemos citar os estudos realizados pelos Projetos Paralelos do
Projeto NURC, da Universidade de São Paulo), como também as pesquisas sobre
gêneros discursivos, particularmente as cartas.
O corpus Itinerários nos chama atenção por se posicionar dentro do continuum
entre oralidade e escrituralidade de forma atípica.
A respeito da língua falada e do gênero carta, Urbano, em seu livro A
Oralidade na Literatura nos diz que:
Costuma-se vincular a língua escrita ao estilo refletido e a língua
falada a um estilo, de regra, irrefletido, denominado coloquial por
Carvalho. A língua escrita passa então por sinônima de dialeto culto
e registro formal. Evidentemente, diários ou cartas familiares não se
enquadram no caso. Podem ser menos espontâneos e informais do
que uma conversa ao vivo, mas estão longe de ser linguagem
refletida culta, completamente formal, selecionada. (URBANO, 2000,
p.65)
É notório que o estudioso se refere às cartas familiares que se aproximam
muito mais do polo da oralidade em virtude da intimidade e informalidade entre os
interlocutores. No entanto, o gênero é retomado pelo pesquisador em sua análise
sobre os aspectos de cortesia verbal no narrador de Memórias Póstumas de Brás
Cubas :
[...] cuidamos de analisar a obra Memórias Póstumas de Brás Cubas,
de Machado de Assis, que, como se sabe, é ‘obra de finado’,
autobiográfica, em primeira pessoa, lembrando gênero epistolar
19
familiar, vasado em informalidade e intimidade.(URBANO, 2008,
p.241)
Embora, a priori, Urbano (2008) relacione o texto machadiano ao gênero
epistolar, que na instância familiar é íntimo e informal, por se tratar de um romance,
o discurso do narrador apresentará uma linguagem refletida.
Nesse sentido, observa-se que, se Memórias Póstumas de Brás Cubas lembra
o gênero epistolar, essa linguagem epistolográfica de seu narrador se distancia do
polo da oralidade. Assim, como poderemos situar as cartas de Mário de Andrade e
Manuel Bandeira dentro desse continuum?
As cartas intencionam uma interação, de maneira que nos parece adequado
analisar as estratégias de cortesia e o trabalho de preservação de face de Mário de
Andrade e Manuel Bandeira. Tal estudo poderá nos revelar se tais estratégias foram
necessárias para o êxito da interação pretendida pelos enunciadores. Citamos aqui
Silva (2011):
[...] os interactantes adotam uma diversidade de atitudes que
apontam para diferentes perspectivas com as quais o locutor e
interlocutor podem coincidir, aproximar-se ou distanciar-se. O êxito
da comunicação depende da seleção de formas linguísticas
adequadas ao intento ou à situação do interlocutor. (p.157)
Críticas são apresentadas, nem sempre de teor positivo, porém, a cortesia se
faz presente para atenuar essa carga, como se nota no trecho grifado:
As suas poesias mandadas já divergem bastante do tom do seu livro. Achei excelente o
soneto Momento, embora você pedindo atenção especial para o outro soneto Tarde pareça
dar preferência a este. Não descubro a razão da preferência. O outro me parece
francamente milhor, mais integralmente soneto, sem enumerações, ou milhor enchimentos
gratuitos: (poéticos não há dúvida, mas gratuitos: a segunda quadra), mais unido e íntimo
na inspiração, menos temático. Além disso o soneto Tarde tem um defeito de técnica, que
20
não sei si defeito mesmo ou ocasional, que não estou disposto a perdoar. Me refiro à
estranheza desagradável da palavra ‘gera’ no mau verso ‘Sonho de paz que os bons e os
santos gera’, Não sei si o 1º. Terceto foi escrito, depois de escrito o segundo. Não há defeito
nem desfavor em fazer isso numa forma tão exigente e estreita como a do soneto.
(MA-2-1940, linhas 17-26, p.244)
Mário de Andrade, primeiramente, tece elogios a Alphonsus de Guimaraens, o
que denota preservação das faces tanto do locutor quanto do interlocutor, como
detalharemos em nossos estudos.
Percebe-se também, nesse trecho, que Mário de Andrade procura modalizar
suas críticas em relação às escolhas lexicais de Alphonsus de Guimaraens Filho,
classificando a escolha da palavra ‘gera’ como ‘uma estranheza desagradável’.
Salienta-se, aqui, a preocupação de Mário de Andrade com uma adjetivação que
não cause desconstrução ao fazer poético do escritor menos experiente e com
menor status cultural.
Villaça e Bentes (2008, p.20) confirmam que a cortesia está relacionada a uma
forma refinada de fala, associada a rituais em que a demonstração da existência de
uma hierarquia social é fundamental e que propicia uma imagem de refinamento do
locutor, conferindo-lhe uma determinada posição de superioridade sociocultural.
Para manter a interação e conseguir a aceitabilidade da mensagem
epistolográfica, o escritor procurará tratar seu interlocutor de maneira cortês, visando
a preservar tanto a sua face quanto a dele. De maneira que é relevante que esta
tese, Oralidade em Itinerários – cartas de Mário de Andrade e Manuel Bandeira para
Alphonsus de Guimaraens Filho, analise as estratégias de cortesia e o trabalho de
face.
21
Quanto ao aspecto estrutural da tese, na PARTE I do trabalho, são
apresentadas teorias que constituem o suporte teórico.
A primeira parte do trabalho constará do levantamento teórico, contemplado
por alguns exemplos do nosso próprio corpus, com o intuito de já iniciar pequenas
reflexões sobre os tópicos. Tomamos por sistemática grifarmos os trechos dos
excertos das cartas para melhor visualização.
Ressaltamos também que os textos, cujos originais estão em inglês ou
espanhol, serão por nós traduzidos.
Cotejaremos conceitos sobre gêneros discursivos com uma breve discussão
sobre o gênero carta. Para isso, utilizaremos as premissas bakhtinianas (Bakhtin,
2006), Koch (2009), Marcuschi (2008 e 2011) e Bazerman (2006), cuja visão social
do gênero traz um aspecto inovador para a análise de nosso corpus.
A apresentação da historiografia das cartas colabora para entendermos a
estabilidade da forma e a importância de tal gênero para a constituição da história
dos textos escritos, especialmente as leis, como veremos em respectivo capítulo.
Também serão apresentadas as ideias de Leite (2009) que aborda a questão
das cartas pessoais no capítulo “1.3. Discutindo o gênero carta entre escritores”.
Elaboramos um quadro comparativo, baseado nas concepções de Leite (op.cit.),
contrapondo as cartas pessoais às cartas entre escritores.
É de conhecimento dos estudiosos da língua portuguesa e da literatura
brasileira que Mário de Andrade tinha uma preocupação em aproximar a chamada
norma culta da variedade popular. A observação de Itinerários confirma tal posição
andradina, pois a linguagem das cartas de Mário de Andrade lembra ortografia
prosódica e sintaxe que se aproximam da fala popular. Contudo, como já
22
salientamos, tal uso será por nós analisado como marcas de oralidade em um texto
escrito.
Dessa forma, torna-se relevante entendermos os pensamentos linguísticos não
só de Mário de Andrade como também de Manuel Bandeira.
Um capítulo específico discorrerá sobre língua falada e língua escrita,
principalmente sob a ótica de Urbano (2000, 2006 e 2011). Para justificar nossa
análise sobre oralidade, dedicamos também um breve capítulo sobre a linguagem
dos escritores modernistas, com enfoque em Mário de Andrade.
Para nortear nossos objetivos em termos de exames de estratégias
atenuadoras, basear-nos-emos principalmente em Rosa (1992) para construção do
capítulo que tratará dos marcadores conversacionais e de atenuação.
Teorias sobre cortesia e preservação de face complementarão nosso
arcabouço teórico; apoiar-nos-emos em Brown e Levinson (1978), Goffman (1980),
Kerbrat-Orecchioni (2004) e Silva (2008).
Na PARTE II, após apresentarmos um breve histórico sobre a vida
epistolográfica de Mário de Andrade e Manuel Bandeira, analisaremos o gênero
carta, na sua especificidade, cartas entre escritores.
Na sequência, submeteremos nosso corpus à análise do continuum
estabelecido entre oralidade e escrituralidade.
A caracterização das missivas como gênero híbrido entre oralidade e
escrituralidade será observada quando da análise dos aspectos da língua falada e,
consequentemente, dos marcadores de atenuação em capítulos sequenciais e
específicos.
23
Discutiremos e analisaremos os aspectos de cortesia e o trabalho de face
constantes das cartas de Mário de Andrade e Manuel Bandeira, que poderão
legitimar nossa tese: os marcadores conversacionais e, em especial, os de
atenuação são responsáveis por posicionar as cartas no continuum estabelecido
entre o polo da oralidade e da escrituralidade, servindo ainda a presença recorrente
de tais marcas também como estratégia de cortesia verbal, prolongando a troca de
cartas até o final da vida de Mário de Andrade e Manuel Bandeira.
Efetua-se, dessa maneira, uma análise das cartas do ponto de vista estrutural,
forma e conteúdo, visando a demonstrar que tal gênero, em sua especificidade,
cartas entre escritores, apresenta marcas de oralidade, embora seja produzido
graficamente.
Não haveria um arcabouço melhor, principalmente as cartas de Mário de
Andrade que trazem uma quantidade expressiva de marcas de oralidade, auxiliando
na construção de um discurso cortês em meio a críticas tão contundentes.
A elucidação dessa questão foi o caminho que procuramos trilhar. Buscamos,
primeiramente, entender o gênero carta, que estruturalmente não sofreu alterações
com o passar do tempo, no sentido de ser produzido de forma gráfica.
O levantamento e estudo dos marcadores, especificamente os de atenuação,
permitiu-nos contemplar a outra face da teoria de Koch e Oesterreicher (1985), a
questão da concepção, as cartas se posicionam dentro do continuum estabelecido
entre oralidade e escrituralidade. As diferenças entre Mário de Andrade e Manuel
Bandeira serão apresentadas no decorrrer da análise.
24
Pelo fato de as cartas se estabelecerem dentro desse continuum, podemos
afirmar que apresentam maior grau de interação do que a interação envolvendo
situações prototipicamente escritas.
25
CORPUS
O corpus de pesquisa, constituído para a realização deste trabalho, será
composto por 25 cartas pertencentes a Itinerários, livro editado por Alphonsus de
Guimaraens Filho, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1974. A obra contém 151
páginas, apresenta-se dividida da seguinte forma:
1) introdução, sob o título - Estas cartas - de autoria de Alphonsus Guimaraens
Filho em que o escritor esclarece como conheceu Mário de Andrade e Manuel
Bandeira;.
2) 15 cartas de Mário de Andrade, durante o período de 1940 a 1944;
3) artigo de Mário de Andrade sobre Alphonsus de Guimaraes (1919, 2 páginas);
4) 69 cartas de Manuel Bandeira, durante o período de 1940 a 1967;
5) texto de Manuel Bandeira sobre Alphonsus de Guimaraens(1964, 4 páginas).
De forma geral, propomos a seguinte organização de nosso corpus, conforme
quadro:
Cartas Mário de Andrade Cartas Manuel Bandeira
referência pág. do ANEXO referência pág. do ANEXO
MA-1-1940 241 MB-1-1940 258
MA-2-1940 244 MB-2-1940 259
MA-3-1941 247 MB-3-1940 260
MA-4-1941 249 MB-4-1940 261
MA-5-1941 252 MB-5-1941 262
MA-8-1943 254 MB-6-1941 263
MB-7-1941 264
MB-8-1941 265
MB-9-1941 266
26
MB-10-1942 268
MB-11-1942 269
MB-12-1942 270
MB-13-1942 271
MB-14-1942 272
MB-15-1943 273
MB-16-1944 276
MB-17-1944 277
MB-18-1944 278
MB-19-1944 279
As cartas foram separadas por escritores, identificadas com as iniciais (MA-
Mário de Andrade e MB-Manuel Bandeira), enumeradas em sequência e seguidas
do ano de envio, ou seja: Cartas de Mário de Andrade (MA-1-1940) e Cartas de
Manuel Bandeira (MB-1-1940).
Na sequência, enumeramos as linhas das cartas constantes dos ANEXOS e,
para efeito de clareza e citação dos trechos no desenvolvimento do trabalho,
utilizaremos a seguinte identificação: MA-1-1940, linhas 1-4, ou seja, carta escrita
por Mário de Andrade em 1940, trecho constante das linhas 1 a 4.
O processo de escolha e seleção do corpus, apresentado no quadro anterior
(figura 01) páginas 25-26, ocorreu da seguinte maneira: após fichamento e resumo
das teorias, Itinerários foi investigado e , a princípio, elegemos todas as cartas como
objeto de estudo, fazendo inclusive levantamentos quantitativos sobre as marcas de
oralidade etc.
No entanto, após reflexões e várias leituras da obra, constatamos que, para
efeito de comparação entre os escritores, deveríamos analisar as cartas dentro de
um mesmo período. Como Mário de Andrade falece em 1945, primeiramente
Figura 01 – Descrição do corpus
27
delimitamos esse ano, independente das cartas de Manuel Bandeira se estenderem
até 1967.
Após outra análise, verificamos ainda a necessidade de esse corpus
demonstrar homogeneidade em relação à quantidade de informações. Dessa forma,
como as cartas de Mário de Andrade são mais extensas que as de Manuel Bandeira,
como demonstraremos na figura 14, página 145, decidimos fixar as cartas pelo
número aproximado de linhas apresentado para cada escritor, sendo 431 linhas –
Mário de Andrade e 398 linhas – Manuel Bandeira.
Examinaremos seis cartas de Mário de Andrade, datadas de 1940 a 1943 e 19
cartas de Manuel Bandeira datadas de 1940 a 1944, perfazendo um total de 15
páginas para cada escritor.
Fez-se necessário o recuo nas primeiras linhas em determinados trechos
tomados como exemplos, para que pudéssemos ser fiéis à enumeração das linhas
das cartas constantes nos ANEXOS.
Finalmente, ressaltamos que serão sublinhados os trechos das cartas que
forem tópico de análise e ou comentário.
28
O plano geral da tese visa a demonstrar o desenvolvimento que parte da
premissa de que a maioria dos textos em circulação na sociedade, especificamente
as cartas entre escritores, são híbridos em relação aos aspectos de oralidade e
escrituralidade, estabelecendo assim o chamado continuum.
As cartas, objeto deste trabalho, são produzidas graficamente, mas, por causa
de vários fatores, inclusive pela intenção de terem suas ideias aceitas, Mário de
Andrade e Manuel Bandeira utilizam de estratégias discursivas, dentre elas os
marcadores de atenuação, marcas típicas do texto falado.
Objetivamos comprovar que tais estratégias contribuíram para amenizar os
ataques de face, especificamente os produzidos por Mário de Andrade ,
incorporando às cartas um tom de cortesia.
As cartas são produzidas graficamente
Língua escrita
As cartas apresentam marcas de oralidade
concepção
Marcas de oralidade/marcadores de
atenuação
Preservação de face
Gênero/continuum
Língua falada
Cortesia
Figura 02 – Plano geral da tese
29
PARTE I
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
30
Capítulo 1 - Gêneros discursivos
Para a discussão do gênero discursivo, partiremos de Bakhtin (2006),
acrescentando ainda as ideias de Koch (2009), Silva (1999), e Maingueneau (2011).
Cotejaremos também o trabalho de Bazerman (2006) que reflete em seu texto
sobre o processo de tipificação dos gêneros. Como o teórico analisa gêneros dos
universos acadêmico e administrativo, pretendemos ampliar as discussões e
repensar o processo de tipificação quando relacionado ao gênero carta entre
escritores.
Entendemos que estudar a questão do gênero, iniciando com Bakhtin, é
premissa, no entanto, ao trazermos Bazerman para nossas discussões,
construiremos uma análise diferenciada, sobretudo em se tratando de cartas.
Bazerman aborda o chamado processo de tipificação, ou seja, determinadas
atividades levam à produção de determinados gêneros, que, por conseguinte,
proporcionarão outras atividades. Contudo, o teórico faz sua análise dentro do
universo das atividades administrativas e técnicas, incorrendo gêneros similares a
essas atividades: relatórios, por exemplo. Em razão de percebermos tal processo no
desenvolvimento das cartas constantes do corpus, procuraremos contemplar a teoria
em questão.
Traremos ainda Marcuschi (2008) que reserva um capítulo de seu livro:
Produção textual, análise de gêneros e compreensão para um estudo histórico sobre
o tema. Já no artigo: Gêneros textuais: configuração, dinamicidade e circulação
(MARCUSCHI, 2011) discorre sobre o gênero a partir de premissas Bakhtinianas.
31
1.1 Gêneros discursivos – discutindo conceitos
De onde vêm os gêneros? Pois bem, simplesmente de outros
gêneros. Um novo gênero é sempre a transformação de um ou de
vários gêneros antigos [...] Um “texto” de hoje (também isso é um
gênero num de seus sentidos) deve tanto à “poesia” quanto ao
“romance” do século XIX [...] nunca houve literatura sem gêneros.
(TODOROV, 1980, p.46)
Todorov faz um estudo sobre a origem dos gêneros literários, mas o trecho
acima tem relação com os gêneros discursivos também não literários. Constatamos
que hoje todos os gêneros virtuais são transformações de gêneros físicos; um e-mail
nada mais é que uma carta, um bilhete, uma notificação. Da mesma forma que
afirma Todorov (1980, p.46): “Nunca houve literatura sem gêneros”, afirmamos que
nunca houve sociedade sem gêneros.
Desde Platão e Aristóteles, a questão do gênero sempre foi muito discutida. A
noção tradicional de gênero foi, primeiramente, elaborada no âmbito de uma poética.
Naquela época, já se fazia complexa a distinção entre prosa e poesia, pois a
primeira pode implicar tanto textos literários como não literários.
Marcuschi (2011, p.17) cita que, na época de Aristóteles, os gêneros se
classificavam em apenas três categorias literárias sólidas.
Com Aristóteles, surge um princípio de sistematização sobre os gêneros. Em
sua Retórica, o filósofo diz que há três elementos que compõem o discurso: aquele
que fala, aquilo sobre o que se fala e aquele a quem se fala (MARCUSCHI, 2008,
p.147). Ainda, complementa o filósofo, há no discurso três tipos de ouvinte: o
espectador que olha o presente, a assembleia que olha o futuro, o juiz que julga
32
sobre coisas passadas. Percebemos que Aristóteles vê nos gêneros um produto de
interação social.
A partir da necessidade de relacionar gênero à sociedade, Aristóteles associa
três gêneros do discurso retórico: discurso deliberativo, cuja função era o
aconselhamento ou desaconselhamento, o que era feito por meio de um caráter
exortativo; o discurso judiciário, que tinha função de acusar ou defender, remetendo-
se ao passado; e o discurso demonstrativo ou epidítico, aquele que apresentava
elogios ou censura, reportando-se sempre ao presente.
Marcuschi (2008, p.148) mostra o quadro de Reboul (1998), que sintetiza tais
ideias.
Os três gêneros do discurso, segundo Aristóteles :
Gênero Auditório Tempo Ato Valores Argumento
Tipo
Judiciário Juízes Passado
(fatos a julgar)
Acusar;defender Justo;injusto Entimema
(dedutivo)
Deliberativo Assembleia Futuro Aconselhar
Desaconselhar
Útil;nocivo Exemplo
(indutivo)
Epidítico Espectador Presente Louvar;censurar Nobre; vil Amplificação
Durante a Idade Média, a visão aristotélica ganhou adeptos, o que facultou
também o desenvolvimento da retórica.
A expressão ‘gênero’ esteve, na tradição ocidental, especialmente
ligada aos gêneros literários, cuja análise se inicia em Platão para se
firmar com Aristóteles, passando por Horácio e Quintiliano, pela
Idade Média, o Renascimento e a Modernidade, até os primórdios do
século XX. (MARCUSCHI, 2008, p.147)
Figura 03 – Gêneros segundo Aristóteles
33
Contudo, o que hoje temos é uma nova visão do mesmo tema; fomos além da
epopeia, tragédia e comédia, estruturas propostas por Aristóteles. Os estudos sobre
gêneros estão cada vez mais multidisciplinares, o que engloba não apenas a análise
do texto, discurso e a descrição da língua, mas uma visão social, que procura
responder a questionamentos de ordem sociocultural no uso da língua.
Aproximamo-nos das discussões sobre o gênero nas teorias modernas e
encontramos primeiramente aporte em Bakhtin (2006, p.283), que não só ampliou a
dimensão dos gêneros, como atribuiu a eles também a função social.
Em Estética da criação verbal, Bakhtin (2006, p.261) inicia o capítulo sobre
gêneros do discurso, relacionando os campos da atividade humana ao uso da
linguagem.
Para o teórico, a concretização da língua se dá por meio de enunciados
produzidos por integrantes de grupos das diversas atividades humanas. Tais
enunciados denotam condições específicas, refletindo a finalidade dessas
atividades, não apenas por meio de seu conteúdo ou estilo, mas, sobretudo, pela
sua construção composicional. Dessa forma, afirma Bakhtin:
Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada
campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente
estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso.
(p.262)
De acordo com Bakhtin, a diversidade dos gêneros se dá em decorrência da
diversidade das atividades e à medida que determinado campo humano se
complexifica, o repertório de gêneros do discurso ali produzido também evoluirá, ou
34
seja, o desenvolvimento das atividades humanas é o responsável pela infinita
variedade de gêneros.
Confirma Koch (2009) que a visão de gênero bakhtiniana não é estática:
[...] Pelo contrário, como qualquer outro produto social, ele (Bakhtin)
reconhece que os gêneros estão sujeitos a mudanças, decorrentes
não só das transformações sociais, como devidas ao surgimento de
novos procedimentos de organização e acabamento da arquitetura
verbal, em função de novas práticas sociais que os determinam.
(p.161)
Muitos gêneros contemporâneos são recriações de outros de séculos
passados. A comédia stand-up, modelo atual de humor, tem relação com as
comédias e tragédias da antiguidade, de maneira que um gênero abarca outros
gêneros.
Sobre a relativa estabilidade do gênero, Silva (1999, p.92) afirma que tal
característica “reflete os modos de sistematização e/ou normatização historicamente
construídos pelos sujeitos em seus processos interacionais”. De maneira que, para
os sujeitos estabelecerem interação com seus interlocutores precisarão atualizar
normas linguístico-discursivas e temáticas que regem as práticas sócio-culturais.
Inferimos que o caráter de estabilidade do gênero está relacionado com a
construção composicional, enquanto o estilo e o conteúdo temático denotam a
relatividade.
É muito clara a posição de Bakhtin (2006) em relação à extrema
heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e escritos). Assim, o teórico
apresenta a distinção entre gêneros de discurso primários (simples), como a
35
comunicação verbal espontânea; e gêneros de discurso secundários (complexos),
por exemplo, o romance, o teatro, artigos científicos.
O gênero é um instrumento semiótico complexo2, uma forma de linguagem
prescritiva, que nos permite a produção e a compreensão de textos ao mesmo
tempo.
[...] os gêneros do discurso que organizam o nosso discurso quase
da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintáticas).
Nós aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de gênero e,
quando ouvimos o discurso alheio, já adivinhamos o seu gênero
pelas primeiras palavras [...].(BAKHTIN, 2006, p.283)
Bakhtin se refere à denominada competência metagenérica, os seres humanos
conseguem perceber os gêneros em circulação dentro de seus grupos sociais.
Confirma-se, então, que é a diversidade das atividades sociais que agrupará os
gêneros. Não é possível transitar pelo mundo social sem repertórios de respostas
sociais para as diversas situações; utilizamos os gêneros como uma embalagem
para a nossa fala, produzindo uma interação reconhecível às exigências da situação.
Marcuschi (2011, p.31) reitera as ideias de Bakhtin, atribuindo ao gênero a
organização de nossa fala e escrita e complementa que “os gêneros são um tipo de
gramática social, isto é, uma gramática da enunciação.” De forma que os gêneros
são infinitos, tais como as situações comunicativas. Essa profusão de gêneros se dá
porque cada um se remete a um tipo de situação, à posição social dos interlocutores
e à de suas relações pessoais. Temos os chamados gêneros mais livres e criativos
de comunicação discursiva oral, segundo Bakhtin (2006, p.284): “os gêneros das
2 Dolz e Schneuwly (1998, p. 65) afirmam que “o gênero é um instrumento semiótico constituído por signos organizados de maneira regular, instrumento complexo que compreende níveis diferentes, o que faz dele um mega-instrumento”.
36
conversas de salão, sociais, estéticos e similares, os gêneros das conversas à
mesa, das conversas íntimo-amistosas, íntimo-familiares”.
Tais gêneros apresentam reformulação livre e criadora. Contudo, há também
os gêneros padronizados, gêneros de tons elevados, oficiais, que apresentam um
alto grau de estabilização.
A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas
porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade
humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o
repertório do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se
desenvolve e se complexifica um determinado campo.(ibid., p.262)
Os gêneros do discurso que Bakhtin reconhece primeiramente como orais e
escritos, são exemplificados:
[...] relato do dia a dia, a carta (em todas as suas diversas formas), o
comando militar lacônico padronizado, a ordem desdobrada e
detalhada, o repertório bastante vário (padronizado na maioria dos
casos) dos documentos oficiais e o diversificado universo das
manifestações publicísticas (no amplo sentido do termo: sociais,
políticas)[...]. (ibid., p.262)
Nota-se que, ao exemplificar os gêneros, Bakhtin não utiliza uma projeção do
polo da oralidade ao polo da escrituralidade, categorizando-os apenas em primários
e secundários, ou simples e complexos respectivamente. Os secundários, como um
romance, um drama, pesquisa científica nascem em condições de um convívio social
mais complexo, desenvolvido e organizado, o que o teórico afirma ser de domínio
predominantemente escrito, enquanto os gêneros primários se formam em
condições de comunicação discursiva imediata.
37
Bakhtin não cita o termo ‘híbrido’, no entanto, relacionaremos tal ideia à
questão do continuum defendida por Koch e Oesterreicher (1985 e 2007),
corroborada por Urbano (2006 e 2011) que será cotejada no capítulo “3.1 Discutindo
o continuum entre fala e escrita”, página 87.
O fato de um gênero primário vir a integrar um gênero complexo e assim
perder o vínculo com a realidade fará com que ele se torne um enunciado
secundário.
Esses gêneros primários, que integram os complexos, aí se
transformam e adquirem um caráter especial: perdem o vínculo com
a realidade concreta e os enunciados reais alheios: por exemplo, a
réplica do diálogo cotidiano ou da carta no romance, ao manterem a
sua forma e o significado cotidiano apenas no plano do conteúdo
romanesco, integram a realidade concreta apenas através do
conjunto do romance [...]. No seu conjunto o romance é um
enunciado, como a réplica do diálogo cotidiano ou uma carta privada
(ele tem a mesma natureza dessas duas), mas à diferença deles é
um enunciado secundário (complexo). (BAKHTIN, 2006, p.263-264)
Tal é a importância dos gêneros, que, se não existissem, se não os
dominássemos e tivéssemos que criá-los a cada momento de nossa fala, se
tivéssemos que construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal
seria quase impossível. Koch (2009) reitera e corrobora essa ideia:
[...] nas variadas situações de interação verbal, a competência
sociocomunicativa dos interlocutores permite-lhes discernir o que é
adequado ou inadequado no interior das práticas sociais em que se
acham engajados. Tal competência possibilita-lhes optar entre os
diversos gêneros. (p.160)
38
O que determina a escolha do gênero é a definição dos parâmetros da
situação que guiam a ação, existindo uma relação entre o meio e o fim.
Quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os
empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a
nossa individualidade (onde isso é possível e necessário), refletimos
de modo mais flexível e sutil a situação singular da comunicação; em
suma, realizamos de modo mais acabado o nosso projeto livre de
discurso. (BAKHTIN, 2006, p.285)
Para Bakhtin (1997, p.43), “cada época e cada grupo social tem seu repertório
de formas do discurso na comunicação socioideológica”, de maneira que cada
grupo social historicamente situado interage por meio de determinadas práticas
sociais que se denominam por meio da interação.
Os gêneros são responsáveis pela interação social, que é denominada de
enunciação, representando temas, estilos e determinadas composições, seguindo a
esfera e seu determinado curso histórico. Dessa maneira, o estudo sobre gêneros
deve se apoiar nos estudos das diferentes formas de interação.
A consideração de enunciados em gêneros ocorre na relativa estabilização das
interações em determinadas esferas sociais de comunicação, que, por sua vez, são
constituídas por um sistema de normas sociais. Tais normas legitimam sócio-
historicamente os enunciados, constituindo formas relativamente padronizadas de
situações de interação e acarretando a produção e circulação de gêneros.
Porém, reconhecer os gêneros apenas por meio de formas padronizadas pode
facultar uma interpretação superficial, pois um gênero pode manter sua forma e
assumir outra função.
39
Com vistas nesse dilema, Marcuschi afirma na apresentação do livro de
Bazerman (2006):
[...] Somos seres sobretudo sociais e nesta condição agimos
discursivamente na sociedade. É assim que o engajamento pessoal
na sociedade se dá pelos gêneros e, em cada caso, fazemos aquilo
que é possível nos limites do enquadre tipicamente genérico. (p.13)
Marcuschi faz tais considerações no texto em questão ao sintetizar a
abordagem sobre gêneros construída pelo linguista norte-americano e confirma que
tais posições apontam para novas perspectivas sobre o tema.
Partindo dessa perspectiva, Marcuschi (2008) afirma que a estabilidade é uma
característica importante para o gênero, “pois há aí ações de ordem comunicativa
com estratégias convencionais para atingir determinados objetivos.” (p.150). Ou
seja, há um diálogo entre o aspecto de tipificação apresentado por Bazerman e a
abordagem comunicativa de Marcuschi.
Marcuschi (2011, p.18) argumenta ainda que o conceito de Bakhtin sobre
gêneros como “enunciados relativamente estáveis” aparentemente enfoca mais o
‘relativamente’ do que o ‘estável’. Mas, é o aspecto de estabilidade que torna
consistente a forma do gênero, enquanto que a noção de relatividade supre o
aspecto enunciativo e o enquadre histórico-social da língua.
A fim de situarmos a posição sócio-discursiva aqui apresentada, primeiramente
se faz necessário esclarecer os conceitos relacionados ao mundo social. Fatos
sociais são situações, aspectos verdadeiros para as pessoas, o que elas julgam ser
verdade ou real. Porém, determinados julgamentos têm caráter individual, subjetivo,
mesmo que a ciência os comprove, as pessoas se julgam no direito de discordar.
40
Por outro lado, há fatos que são legitimados pelos contextos em que estão
inseridos, por exemplo, o mérito de um prefeito está convencionado a seus atos.
Partilhamos também com Bazerman a ideia de que o estudo sobre os gêneros
deve se basear nas circunstâncias em que as pessoas produzem e usem tais textos
norteadas por motivos e ações associadas com a escrita e leitura desses textos. Isto
é, “as pessoas criam novas realidades de significação, relações e conhecimento,
fazendo uso de textos.” (BAZERMAN, 2006, p.19)
Os fatos sociais podem afetar o enunciado produzido pelas pessoas, seja ele
escrito ou falado. Se uma pessoa constituir um fato social com base em uma
situação, seu enunciado terá para ela uma força maior, assim, as palavras
objetivarão intensificar a sua verdade.
Marcuschi (2008) confirma o conceito de fato social de Bazerman:
Um fato social é aquilo em que as pessoas acreditam e passam a
tomar como se fosse verdade, agindo de acordo com essa crença.
Muitos fatos sociais são realidades constituídas tão somente pelo
discurso situado. Daí a importância de se trabalhar esse aspecto
central. (p.150)
As referências intertextuais poderão criar “uma compreensão compartilhada
sobre o que foi dito anteriormente e a situação atual” (BAZERMAN, 2006, p.25),
legitimando a afirmação de quem fala ou escreve. No entanto, para que se
constituam como fato social, as palavras devem se realizar a partir de determinadas
condições.
Contudo, para que tais atos se realizem, as palavras devem ser ditas pela
pessoa certa, em uma situação certa e os interlocutores devem apresentar
41
determinadas características: conhecimento do assunto, compartilhamento do
contexto e situação.
À medida que estabelecemos padrões discursivos, também estabelecemos
formas ou tipos para determinadas situações.
Ao processo de se produzir um gênero esperado para a compreensão de
determinada situação Bazerman (2006) denomina de tipificação. Para elucidar tais
ideias, construímos o seguinte fluxo de informações:
No fluxo, as setas em espiral denotam o processo de tipificação, de forma que
o gênero A é a escolha padrão para a situação A.
[...] Se começarmos a seguir padrões comunicativos com as quais as
outras pessoas estão familiarizadas, elas podem reconhecer mais
facilmente o que estamos dizendo e o que pretendemos realizar.
Assim, podemos antecipar melhor quais serão as reações das
pessoas se seguimos essas formas padronizadas e
reconhecíveis.(op.cit., 2006, p.29)
Em algumas situações, especificamente as de caráter profissional, o gênero
em formato padrão, ou seja aquele gênero que serviu de base para a formação de
outros, não apenas auxilia o locutor a direcionar as informações, como o interlocutor
Gênero A
Situação A
Figura 04 – Fluxo de informações
42
a encontrá-las e interpretá-las. Isso, desde que não concebamos os gêneros como
modelos estanques, ou com estruturas rígidas.
Entretanto, ainda há espaço para construções individuais, por exemplo, um
modelo de currículo acadêmico é eleito como padrão, mesmo assim alguém o altera,
acrescenta ou retira determinados tópicos e isso é bem aceito, tão logo o padrão
antigo poderá também ser substituído.
Identificarmos os gêneros apenas por suas características formais é útil,
porém, essa é uma visão um tanto restrita, pois a sociedade é mutável. O
conhecimento comum se altera com o tempo, de tal forma que os gêneros também
obedecerão a tal percurso de mudança, isto é um fenômeno que presenciamos
atualmente em relação aos e-mails. Podemos denominar o e-mail um gênero
quando ele se apresenta com formas e funções tão diversas: bilhete, carta pessoal,
carta comercial, memorando, relatório etc.
Os gêneros não são apenas um conjunto de traços textuais, e sim o produto
dos usos dos indivíduos na construção dos sentidos da comunicação. Para
Maingueneau (2011, p.59) a denominação de gêneros apoia-se em critérios muito
heterogêneos, o que ele denomina de categorias. Essas categorias relacionam-se às
necessidades sociais e às formas diferentes de apreender o discurso.
Não nos distanciando das ideias de Bazerman, que enfocam a relação entre
gênero como um produto do fato social, mas sim corroborando com tal princípio,
nomeamos as tipologias de Maingueneau, que são assim concebidas exatamente
pela relação ora proposta.
Maingueneau (op.cit., p.60) elenca, primeiramente, a tipologia
comunicacional, que trata do gênero no nível dos discursos polêmico, didático ou
43
prescritivo, que se classifica por meio das funções da linguagem ou pelas funções
sociais.3 Como exemplo, citamos nosso corpus em que a função metalinguística é
predominante, ou seja, o tema recorrente nas cartas entre escritores é o fazer
poético.
O autor faz uma distinção ao apresentar as tipologias de situações de
comunicação ao que ele nomeia de gêneros do discurso, ou seja, apenas
dispositivos de comunicação que só podem aparecer quando certas condições
sócio-históricas estão presentes. Para Maingueneau, existem os gêneros do
discurso, conceito semelhante ao contemplado por Bakhtin e Bazerman, mas
também os chamados tipos de discurso, que se configuram de acordo com os
diversos setores sociais: produção de mercadorias, administração, lazer. De forma,
que um talk show se constitui em um gênero do discurso localizado no interior do
tipo de discurso televisivo. As cartas, objeto de nosso estudo, são gênero do
discurso no interior do tipo discursivo teórico-literário.
Maingueneau (2011) vai além, ao completar que ainda também podemos dividir
os gêneros do discurso tomando por variante um lugar institucional: o hospital, a
escola etc. (op.cit., p.62)
Nota-se que, ao especificar os gêneros por meio dessas tipologias,
Maingueneau reitera o processo de tipificação de Bazerman, assim entendemos que
produzimos determinados gêneros de acordo com as situações que vivenciamos,
3 Para Maigueneau (2011) os discursos são classificados de acordo com a função da linguagem predominante: referencial, emotiva,conativa, fática, metalinguística ou poética, na linha de R.Yakobson. Porém, antropólogos e sociólogos propõem as chamadas funções sociais: função lúdica, função de contato, função religiosa, sendo que uma função pode ser comum a vários gêneros.
44
sendo que tais fatos sociais são vividos em determinados setores e produzidos em
determinado lugar instituicional.
Graças a essa perspectiva, os gêneros podem ser identificados como
fenômenos de reconhecimento psicossocial; assim tal gênero só passa a existir
mediante o reconhecimento das pessoas. Ou seja, os gêneros são aquilo que
acreditamos que eles sejam, fatos sociais sobre determinados tipos de fala que as
pessoas realizam de maneira própria.
Percebemos que os gêneros nascem a partir dos processos sociais, quando as
pessoas tentam se compreender, coordenar atividades e compartilhar os sentidos do
mundo.
Por outro lado, as atividades sociais se concretizam por meio dos gêneros, ou
conjunto de gêneros que as configuram. Gêneros e situações se realizam
mutuamente.
Um conjunto de gêneros contém os tipos que uma pessoa produz em
determinada situação, ou seja, seu sistema de gêneros.
Cabe enfatizar que o conjunto de gêneros se remete à produção individual, já o
sistema de gêneros está relacionado a um fazer coletivo, desde que isso esteja
inserido num sistema de atividades comum a determinado grupo. Dessa forma,
como diz Bazerman (2006):
Levar em consideração o sistema de atividades junto com o sistema
de gêneros é focalizar o que as pessoas fazem e como os textos
ajudam as pessoas a fazê-lo, em vez de focalizar os textos como fins
em si mesmo. (p.34).
45
Percebe-se que o gênero deixa de ser um fim em si mesmo e se transforma em
um processo social de construção de sentidos. Corrobora essa ideia Koch (2009,
p.31), para quem a atividade linguística reside no compartilhar de conhecimentos e
atenção.
Um dos dilemas apresentado por Bazerman (ibid., p.36) é identificar atos de
fala em textos escritos. Para o teórico, apenas enunciados curtos, e em sua maioria,
falados são assim classificados, pois a brevidade do enunciado simplifica a tarefa de
identificar atos proposicionais e ilocutórios diferentes.
Os textos escritos são tipicamente mais extensos e suas sentenças também
são mais tipicamente longas, de forma que, cada sentença pode apresentar vários
atos, o que pode comprometer os sentidos do texto. Geralmente, consideramos o
texto, globalmente, como tendo uma ou algumas ações dominantes que indicam sua
intenção e propósito, que recebemos como efeito perlocucionário ou como fato de
realização do texto.
No que diz respeito à recepção do texto escrito, é fato que há pouca
possibilidade de ela ser imediata, o que a torna complexa e muito mais ponderada
em relação ao enunciado oral, de maneira que o leitor terá possibilidades de fazer
inferências sobre o texto. Bazerman acrescenta que:
Como a resposta do leitor está quase sempre separada no tempo e
no espaço do momento da escrita e, frequentemente, é protegida
pela privacidade da leitura silenciosa, o escritor provavelmente conta
com poucas evidências sobre a recepção do leitor. Mas ainda
mesmo tendo conhecimento dessa recepção, o escritor tem poucas
oportunidades de corrigir, reparar ou reelaborar o texto para
solucionar mal-entendidos ou diferenças entre a intenção
ilocucionária e o efeito perlocucionário. (ibid., p.34)
46
Para sair do dilema apresentado, identificar atos de fala em textos escritos,
Bazerman sugere ampliar a perspectiva de estudos dos textos escritos, examinando-
os de forma regulada, entrevistando e observando escritores e leitores.
Sob essa perspectiva, defendemos que Mário de Andrade e Manuel Bandeira
tinham a preocupação de produzir textos epistolográficos, especificamente, as
cartas objeto deste trabalho, diminuindo ao máximo as barreiras entre a intenção
ilocucionária e o efeito perlocucionário.
Mário de Andrade e Manuel Bandeira intencionavam que as palavras contidas
em suas cartas pudessem contribuir para o aprimoramento estético de Alphonsus de
Guimaraens Filho. Inferimos que, para atingirem tal objetivo, os escritores fizeram
uso de um discurso cortês, atenuando determinadas críticas sobre as composições
poéticas do jovem escritor Alphonsus de Guimaraens Filho, conforme as cartas
apresentadas no anexo deste trabalho. Assim, estudaremos, no capítulo 7, na
análise, respectivamente as estratégias discursivas relacionadas à questão da
cortesia e ao trabalho de face.
Como falantes nativos, nosso conhecimento de mundo juntamente com a
capacidade de reconhecermos os gêneros nos permitem assumir determinadas
verdades sobre o que queremos investigar no texto, ou seja, assumimos
determinados conhecimentos compartilhados, pois podemos pressupor que todos
entendem tal texto da mesma forma que nós o entendemos. Porém, não alcançamos
a compreensão mútua dos textos de maneira tão fácil, porque nem sempre
compreendemos os gêneros e as atividades a eles relacionadas, quanto mais em se
tratando de sistema de gêneros. Ou seja, podemos produzir um gênero padrão para
determinada situação social ou não, dependendo de nossa competência.
47
A essência do entendimento dos gêneros reside em incorporarmos a
compreensão das práticas, como elas surgem e são aprendidas pelas pessoas. No
que diz respeito à competência metagenérica4, a maioria dos gêneros comporta
características facilmente reconhecíveis, as quais nos remeterão ao respectivo
gênero. Como exemplo, temos o gênero notícia, que apresenta sua manchete em
letras grandes e em negrito, o lead que resume: quem, o que, quando, onde e
como do fato.
Acrescentamos ainda a carta, que tipicamente apresenta um padrão, com
envelope identificado – remetente e destinatário, iniciando com local e data, seguida
de saudação e recorrentemente após o corpo teremos as despedidas e a
identificação do remetente.
Reconhecemos e classificamos os gêneros por meio de uma coleção de
características singulares. No entanto, essa zona de conforto cognitivo nos leva a
compreender de maneira limitada os aspectos do gênero. Tomemos como exemplo
a saudação de qualquer carta, que segundo o padrão serve apenas como vocativo
do texto epistolográfico.
Ignoramos que as pessoas têm diferentes visões em relação ao gênero e às
atividades. No caso do nosso corpus, há marcas nos enunciados que mostram que
Alphonsus de Guimaraens Filho enviava seus poemas ora para Mário de Andrade,
ora para Manuel Bandeira.
4 Entende-se por competência metagenérica ou ‘conhecimento sobre gêneros’ (genre
knowledge) o repertório individual que possuímos sobre respostas apropriadas a situações retóricas recorrentes (BERKENKOTTER; HUCKIN, 1995, p. ix) em nosso cotidiano, ou seja, toda vez que interagimos, acionamos determinados conhecimentos pertinentes àquela situação.
48
Mário de Andrade e Manuel Bandeira trocavam os textos entre si e, depois,
enviavam suas críticas por meio das cartas para Alphonsus.
Ressaltamos que os missivistas trocavam opiniões sobre o estilo de Alphonsus
de Guimaraens Filho e procuravam assim tecer considerações estilísticas não
conflitantes e contribuir de maneira assertiva para o percurso poético de Alphonsus,
como se nota nos trechos das missivas de Mário de Andrade e Manuel Bandeira
respectivamente:
Ladeira de Santa Teresa, 106
Rio, 11-VII-40
Alphonsus
Sua carta me deu uma boa alegria, palavra. Andava meio inquieto, com medo que você não
aceitasse com leal humanidade as minhas restrições a Lume de Estrelas, preferindo a isso
o prazer epidérmico (mas tão incontestavelmente gostoso!...) dos elogios. Antes mesmo de
escrever a crítica, com medo de estar totalmente errado, confessei minhas dúvidas sobre
certos aspetos do seu livro a Manuel Bandeira. Não queria estar sozinho e me arrimava à
opinião dele que, como a minha, só podia nascer de simpatia. E foi só diante da
concordância dele, em linhas gerais, que me senti animado a escrever.
(MA-1-1940, linhas 1-11, p.241)
Rio, 7 de outubro de 1940
Meu caro poeta Alphonsus,
Muito obrigado pela sua carta de 27 do mês passado.
Fiquei desapontado com a notícia que me dá de não terem chegado a Belo Horizonte as
minhas “Poesias Completas”. Vai por uns quinze dias que remeti a seu irmão João
Alphonsus dois pacotes de exemplares do meu livro, entre eles um para você. Mandei-os
sob registro para a Rua Rio Grande do Sul 1.040.
Diga-me se não chegaram.
O Mário de Andrade falou-me outro dia de você: de dois sonetos, um dos quais o deixou
todo eufórico. Ainda não o li.
Receba um grande abraço do amigo e admirador
Manuel Bandeira
(MB-2-1940, linhas 1-12, p.259)
49
Cabe, aqui, ressaltar um aspecto sobre a complexidade do reconhecimento dos
gêneros: não podemos nos imbuir da ideia de que o gênero é reconhecido como tal
apenas por meio de sua forma ou estrutura. Nesse sentido, Bazerman (2006)
esclarece:
É claro que todo exemplar de um gênero pode variar em
particularidades de conteúdo, situação e intenção do escritor, que
podem levar às diferenças na forma. Ainda assim, nós
continuaremos a usar nosso conhecimento de gêneros para
compreendê-lo.(p.40)
De maneira que, se uma carta deixar de apresentar a saudação padrão
continuará sendo uma carta. Tal aspecto será por nós abordado quando de nossa
análise, pois não trataremos de cartas pessoais, mas sim de cartas pessoais entre
escritores, as quais apresentam diversas formas de saudação e conteúdo temático
que trata, sobretudo, de estilo poético em uma situação de produção singular.
Entender os gêneros apenas por meio de sua forma padrão é não perceber
que esses elementos característicos são flexíveis em qualquer situação, isto é, nem
sempre é necessário um vocativo para iniciar uma carta, além do que a
compreensão do gênero também pode ser alterada com o passar do tempo.
Para analisarmos o conjunto de gêneros constantes em nosso corpus,
tomaremos por base as orientações metodológicas de Bazerman (op.cit., p.45), com
adaptações para o nosso estudo, a saber:
1) eleger um corpus que contemple um gênero, conjunto ou sistema de gêneros;
2) estabelecer a forma padrão do gênero, por meio de ferramentas analíticas;
3) identificar padrões estáveis no gênero;
4) identificar diferenças no gênero.
50
Em relação ao passo 1, observaremos as cartas enviadas por Mário de
Andrade e Manuel Bandeira a Alphonsus de Guimaraens Filho, editadas em
Itinerários (GUIMARAENS FILHO, 1974), reduzindo, porém, o corpus para efeito da
análise como já explicamos na introdução do trabalho.
Posicionaremos as cartas entre os polos da oralidade e escrituralidade e
analisaremos as estratégias de cortesia e preservação de face o que nos
possibilitará identificar os padrões e diferenças do gênero carta entre escritores,
como também elucidar as tipificações dentro desse gênero, abordando assim os
passos 2, 3 e 4.
Quando Bazerman esclarece as tipificações do gênero, ele nos apresenta a
ideia de recorrência entre situações sociais e produção de gêneros. Acima de tudo,
como agentes sociais, pertencentes a qualquer área, caracterizamos as espécies de
textos com que trabalhamos. Já no papel de leitores, de acordo com o teórico e
pesquisador:
[...] usamos o gênero para demarcar o tipo de mundo em que
entramos em cada texto; para identificar os tipos de atividades
simbólicas, emocionais, intelectuais, críticas e outras atividades
mentais evocadas; para reconhecer os tipos de jogos em ação aos
quais precisamos ficar atentos. (op.cit., p.47)
No papel de pedagogos, os gêneros são utilizados para organização de nossas
aulas, como escritores, o conhecimento de gêneros nos permite focalizar em nossos
objetivos, ou seja, localizar recursos típicos e apropriados ao gênero, reconhecer
determinado estilo de época ou individual, perceber semelhanças e rupturas nas
produções literárias.
Como escritores, apropriamo-nos do senso de gênero para atingirmos o leitor
por meio de estratégias e recursos típicos do gênero que estamos produzindo. Já,
51
como leitores, muitas vezes, sentimos vontade de nos rebelar contra formas
conservadoras de determinados gêneros, ou até mesmo contra inovações e
aspectos criativos que a eles são incorporados. E, finalmente, como críticos e
professores, necessitamos destacar como os textos realizam mais do que as
tipicidades que o gênero pode sugerir.
Cabe enfatizar que toda e qualquer identificação individual do gênero,
aparentemente, o leva a uma visão reducionista, uma vez que temos de priorizar sua
função primeiramente. Ao criarmos um texto dentro de um gênero identificável,
temos a percepção de que nossa realização sofreu um empobrecimento, o gênero
não comportou todas as nossas ideias e intenções.
Podemos remeter tal ideia à concepção do movimento modernista no Brasil
que refutou a forma em favor do conteúdo, surgindo daí poemas em prosa, poemas
semelhantes à notícia de jornal etc. Todos os escritores adeptos do Movimento
Modernista, iniciado com a Semana de 22, tinham ciência de que gêneros-padrão
não comportavam mais todas as suas inquietações poético-literárias e romperam
com os gêneros tradicionais.
Hoje, tentativas de uniformizar ainda mais os gêneros são vistas como restrição
à criatividade e à expressão individual, até por que a competência metagenérica
serve apenas de base, como um guia para a interpretação do texto inserido no
gênero. Assim, pode-se inferir que não há um conhecimento completamente correto,
histórico e culturalmente estável sobre o gênero.
Segundo Bazerman (2006):
Os gêneros são o que as pessoas reconhecem como gêneros em
qualquer momento do tempo. Podem reconhecer os gêneros por
nomeação, institucionalização e regularização explícitas, através de
52
várias formas de sanção social e de recompensa. Ou ainda, as
pessoas podem reconhecer gêneros através da organização implícita
de práticas dentro de formas padronizadas de interação letrada.
(p.49)
Como produzimos determinados gêneros em virtude de vivenciarmos certas
situações típicas, entendemos que eles são rotinas sociais cotidianas dotados de
estabilidade. Contudo, como a sociedade é dinâmica, muitas situações novas são
vivenciadas e os gêneros se transformam em outros gêneros, com funções
específicas para suportar tais situações representadas.
Marcuschi (2001) vem confirmar tal reflexão, quando diz que:
Na realidade, o estudo sobre gêneros textuais é uma fértil área
interdisciplinar, com atenção especial para o funcionamento da
língua e para as atividades culturais e sociais. Desde que não
concebamos os gêneros como modelos estanques nem como
estratégias rígidas, mas como formas culturais e cognitivas de ação
social corporificadas de modo particular na linguagem, temos de ver
os gêneros como entidades dinâmicas. (p.18)
Não nos fixamos em discutir a forma ou estrutura do gênero de maneira
aprofundada, pois, conforme o pesquisador, teorias que compreendem tal enfoque
encontram-se em crise. O que hoje se faz pertinente é uma abordagem mais
dinâmica do gênero, com enfoques: social, interativo, cognitivo e é essa nossa
proposta ao estudarmos as cartas de nosso corpus, à luz da teoria da cortesia
verbal, o que se dará em capítulo futuro. Isso, pois, entendemos que os gêneros são
formas de ação que utilizam determinadas ferramentas linguísticas para suprir sua
função comunicativa.
53
Nossas ações linguísticas ocorrem assim, por meio de enunciados situados
sócio-historicamente e por uma linguagem viva e concreta, o que nos remete ao
discurso. O enunciado ou discurso não pode ser produzido isoladamente, nem em
se tratando de escrita, pois diz respeito ao uso coletivo da língua, que é legitimada
por determinada ação social.
Se as marcas dessa institucionalização são mais fortes, entendemos que a
autoria do gênero é menor. Dessa maneira, os documentos legais, formulários
institucionais, possuem pouca autoria. Tais gêneros são frutos de ações coletivas e
assim apresentam menor possibilidade de mudança. Em obras literárias, científicas
há uma maior flexibilidade, ou seja, maior autoria, maiores mudanças, dizemos,
então, que o caráter de genericidade é maior em determinados gêneros que em
outros.
Reconhecer gêneros implica reconhecer atividades sociais por nomeação,
institucionalização ou regularização explícitas, de maneira que reconhecemos o
gênero ‘cartas entre escritores’ pelo estabelecimento da relação fraterna,
compartilhamento do mesmo universo profissional e intenção de ensinar técnicas
estilísticas, atividades essas exercidas por Mário de Andrade e Manuel Bandeira.
1.2 Historiografia do gênero carta
De acordo com White (1982, p.27), no início da história da humanidade não
havia a diversidade de gêneros que temos hoje. Os primeiros gêneros escritos
surgiram da performance pública falada , tal como o épico e daí advêm o drama, o
discurso, o conto popular, a adivinha, a piada. Um tanto quanto mais exclusivas
54
temos as transcrições de discussões orais sobre ideologias e crenças, semelhantes
ao Talmude e aos diálogos platônicos.
Comandos orais também passaram a ser gêneros escritos como: ordens, leis,
códigos. Porém, era difícil saber se um conjunto particular de comandos advinha de
uma autoridade legítima, que particularmente se situava à distância. Por esse fato,
no Oriente Próximo e na Grécia, os primeiros comandos escritos surgiram em forma
de cartas, que observavam determinados procedimentos na entrega e
representavam, assim, as relações sociais realizadas à distância.
Esses fatos sobre a história epistolográfica também foram estudados por Tin
(2005), que elegeu algumas referências epistolares da antiguidade para sua análise.
Os diversos tratados de epistolografia já afirmavam que a carta tornava
presente os ausentes. O tratado de Demétrio foi redigido, provavelmente, entre os
séculos I a.C. e I d.C., a primeira obra sobre regras da epistolografia. Demétrio,
baseado nos preceitos de Artemón, que por sua vez teria compilado as cartas de
Aristóteles, afirma que as cartas deveriam ser escritas semelhantes às duas partes
de um diálogo, porém mais elaborada:
Enquanto o diálogo imita alguém que improvisa, a carta de outra
forma, é escrita e enviada a alguém, como se fosse um presente.
Deve-se adotar na carta um estilo simples, pedestre, de maneira que
mais se aproxime de uma conversa entre amigos do que da
demonstração pública de um orador. (TIN, 2005, p.19)
Demétrio ainda critica as frases soltas, por dificultar a almejada clareza.
Comparando as cartas ao diálogo, ressalta a importância da descrição detalhada,
pois, segundo ele, cada pessoa escreve a carta de acordo com seu estado de
espírito.
55
O tratadista ainda considera a carta como a forma literária em que o escritor
mais se revela. Em relação à extensão, ele afirma que as cartas extensas são
tratados em forma epistolar. As cartas devem ser livres, denotar a expressão breve
de um sentimento amistoso. Para Demétrio, as únicas filosofias que devemos
encontrar em uma carta são as expressões de amizade e os numerosos provérbios.
Marco Túlio Cícero não elaborou um tratado de epistolografia, porém, suas
próprias cartas trazem conceitos sobre a arte epistolográfica.
Cícero entende as cartas da mesma forma que Demétrio, ou seja, semelhante
a uma conversação que manifesta o caráter de quem as escreve. Para Cícero, as
cartas se dividem em: litterae publicae e litterae privatae, com estilos diferentes em
cada uma delas (TIN, 2005, p.21). O tratadista acrescenta ainda mais um tipo:
epistulae ad familiares, cartas simples, que comunicam o temperamento do
enunciador. Cícero, em relação a Demétrio, avança ao pontuar que as cartas devem
se adaptar às circunstâncias e ao temperamento de seus destinatários.
Tal posição de Cícero representa uma cortesia habitual, inclusive nomeada de
forma ciceroniana da carta. Assim, deve-se responder às cartas em ordem de
chegada, sempre com a mesma motivação, pois essas não devem apenas informar,
mas também persuadir.
A estrutura da carta ciceroniana apresenta três partes: abertura, setor central e
conclusão (ibid., p.22). Na abertura se faz a saudação inicial, integrada por meio de
três elementos: intitulatio, inscriptio e salutatio, a pesquisadora aponta para um
certo grau de formalismo.
56
A abertura da carta ciceroniana representa a identificação do remetente e sua
aproximação com o destinatário. O setor central da carta não é definido claramente,
no entanto, sua função é apresentar a mensagem, comunicando determinada
informação ao destinatário. A conclusão é o epílogo da carta e deve reiterar a
motivação principal da carta, concentrar o elemento prescritivo e assegurar um
futuro contato com o destinatário.
Sêneca também não teorizou sobre cartas, porém, nas suas Epistulae morales
ad Lucilium podem ser encontrados alguns apontamentos normativos sobre elas,
cujas ideias são semelhantes as de Cícero: as cartas devem adotar um tom
coloquial, contudo, não entendido como despojamento completo, mas sim como
expressão decorosa, adaptando-se ao temperamento do destinatário.
Filóstrato de Lemmos, nascido em torno do ano 190 d.C., escreveu seu tratado
e o dirigiu a Aspasius de Ravena, que não sabia empregar adequadamente um estilo
para a escrita das cartas. Filóstrato apresenta alguns modelos de uso do estilo
epistolar:
[...] os filósofos, Apolônio de Tiana e Dio, entre os comandantes
militares, Brutus, ou a pessoa que Brutus empregou para escrever
suas cartas; entre os imperadores, o ‘divino’ Marcos, quando ele
próprio as escrevia. Entre os retóricos, Herodes, o Ateniense,
embora muitas vezes, com o seu aticismo5 e a sua loquacidade, se
afaste, segundo Filóstroto, do estilo epistolar apropriado.(TIN, 2005,
p.26)
Percebemos que, pela metodologia utilizada, o tratado de Filóstroto é muito
mais profundo que os demais aqui elencados.
5 1.Elegância e sobriedade de linguagem; finura de estilo. 2. Feição característica do ático,
que ocorre em outra língua ou dialeto. (MICHAELIS, 2005, p.305)
57
Para Filóstrasto, o estilo epistolar deve ser mais ático do que o discurso diário,
ou seja, deve ser mais sóbrio e elegante do que uma conversação. As missivas
devem estar de acordo com o uso comum, porém, devem ter um estilo gracioso.
Filóstrato ainda acrescenta que as cartas não devem ser pretensiosas e que a
clareza é um boa guia para todo discurso.
Gregório Nazianzeno se dirige a Nicóbulo, um dos padres da Igreja, na Epístola
51 datada de 384-389, para responder pedido sobre o tema epistolar.
O epistológrafo acentua que não se deve escrever nem cartas breves, nem
longas, mas sim, de acordo com o que é apropriado em relação ao assunto a se
tratar.
Concisão, clareza e graça são as três qualidades que uma carta deve
apresentar, na visão de Gregório. A concisão está relacionada à extensão da carta,
ou seja, escrever o quanto ao assunto baste. No tocante à clareza, a carta,
sobretudo, deve ser persuasiva, o destinatário tem que entendê-la imediatamente.
Quanto à graça, Gregório comenta sobre o uso de ditos sentenciosos, provérbios:
Não usá-los de todo é rústico, usá-los demais é saciar o leitor. Para
Gregório, eles devem ser usados do mesmo modo que os fios de
púrpura nos mantos, ou seja , com parcimônia: podem ser usados
tropos, mas poucos, e desde que não sejam de mau gosto. (ibid.,
p.28)
Caio Júlio Victor dedica em seu Ars rhetorica um capítulo à escrita de cartas,
primeiro escrito em latim e de forma sistemática. Para Caio Júlio Victor, há muitas
diretrizes que se aplicam tanto ao discurso oral como também nas cartas. Dividindo
as cartas em dois grupos: cartas de negócio (negotialies) e as familiares (familiares),
Caio constrói sua análise. As cartas de negócios se caracterizam pelas sentenças
58
severas, clareza de estilo e concisão, aplicando-se a elas algumas regras de
oratória. Já as cartas familiares devem ser breves e podem, inclusive, admitir cortes,
desde que não atrapalhem sua clareza, especifica Caio Júlio Victor:
Isso porque a clareza deve irradiar da carta, a não ser que se
objetivasse o segredo, como alguns homens que costumam criar
entre si um código obscuro, por exemplo César, Augusto ou Cícero.
Mas, quando não há necessidade de esconder algo, diz Victor, deve-
se evitar muito mais a obscuridade nas cartas que nos discursos e na
conversação. (ibid., p.29)
Caio Júlio Victor antecipa alguns fundamentos sobre língua falada e língua
escrita, especificamente questões sobre distanciamento e imediatez, ao salientar
que não se pode esclarecer ao remetente os pontos obscuros, como quando se fala
com as pessoas que estão presentes.
Há em Victor também outra preocupação em relação ao destinatário, conforme
trecho de sua Epístola 51:
Uma carta escrita a um superior não deve ser jocosa;a um igual, não
deve ser descortês, a um inferior, não deve ser soberba. A carta a
um culto não deve ser descuidadamente escrita, nem a carta a um
inculto deve ser indiferentemente composta, nem deve ser escrita
negligentemente a um amigo íntimo, nem menos cordial a um não
amigo. Seja profuso em congratular alguém em seu sucesso de tal
modo a aumentar a sua alegria, mas console alguém que está
sofrendo com poucas palavras, pois uma ferida sangra quando
tocada por uma mão pesada. Quando escrever alegre as suas cartas
pessoais, conte com a possibilidade de que elas possam ser relidas
em tempos mais tristes. Nunca dispute, menos ainda numa carta.
(TIN, 2005, p.30)
Percebe-se que o tom do texto de Victor é doutrinário, os verbos no imperativo:
seja, console, conte nos remetem a textos religiosos, isso não quer dizer que suas
59
diretrizes são inferiores ou superiores às que aqui apresentamos, embora devamos
considerar que tal texto tem um impacto maior.
Cabe ressaltar que o texto em questão não é um tratado sobre cartas, mas
apenas um dos capítulos de um tratado sobre retórica. Questões sobre formalidade
e informalidade ainda são cotejadas por Victor e segundo suas próprias palavras:
“As aberturas e conclusões das cartas devem conformar-se com o grau de amizade
ou de dignidade do destinatário, e devem ser escritas de acordo com o costume.”
(TIN, 2005, p.30)
Acrescenta Victor que seria agradável escrever como se estivessémos
conversando, inserindo, inclusive, expressões como: “você também?” , “vejo você
sorrir” (ibid., p.30).
Notamos que Victor considera a possibilidade de inserção de frases curtas,
breves indagações para com o destinatário como estratégias discursivas que podem
proporcionar às cartas uma proximidade com a conversação.
Nesse período, as cartas passaram a ser utilizadas também para expressar
preocupações pessoais, enviar mensagens particulares. Tais mudanças nas
relações estabelecidas direcionaram as missivas para o campo pessoal.
As concepções epistolares da Antiguidade vigoraram até a Idade Média,
quando, em razão de negócios públicos, civis ou religiosos passa-se a exigir um
estilo epistolográfico mais rígido.
Bazerman (2006) também faz um estudo exaustivo sobre a história
epistolográfica. Para o pesquisador, as cartas eram utilizadas amplamente no mundo
clássico e sempre forneceram “um espaço transacional aberto, que pode ser
especificado, definido e regularizado de muitas maneiras diferentes” (ibid., p.87).
60
As cartas sobre temas técnicos e profissionais, bem como cartas-ensaio
chegaram a ser tratadas como documentos eruditos nas escolas da Antiguidade
Clássica.
Enquanto Tin (2005) analisa os Tratados Epistolares da Antiguidade de forma
específica, Bazerman (2006, p.83-99) constrói uma visão geral em relação às
missivas.
Nas cartas, as situações são apresentadas ao leitor e ao escritor por meio de
sua forma: local, data, saudações, corpo e assinatura. Tal padrão permite que as
pessoas reconheçam, nas cartas, facilmente a variedade das transações e o
estabelecimento de laços sociais que podem ocorrer, exemplo que se reporta ao
nosso corpus.
As denominadas cartas de petição datam da Idade Média; eram instrumentos
em que os indivíduos manifestavam seus interesses pessoais para as autoridades,
constituindo-se como um instrumento regular para a expressão de
descontentamento.
Bazerman cita a Carta Magna (1215), que mesmo sendo um documento legal,
seguiu o padrão e os princípios das cartas tradicionais. Semelhante a ela, na Carta
Patente , datada de 1495, o Rei Henrique VII concede licença a John Cabot para
explorar e colonizar novas terras. O teórico ressalta que até hoje na Inglaterra e nos
Estados Unidos há documentos legais que contêm formas residuais de epístolas.
A partir do século XIV, as inquietações tomavam conta da humanidade e as
cartas foram utilizadas para expressar tais sentimento:
À proporção que aumentavam os descontentamentos, as cartas
foram usadas regularmente para disseminar atitude e postura
rebeldes, para compartilhar informações sobre as injúrias e para
61
organizar atos de rebelião. Foi esse o caso das rebeliões
camponesas na Inglaterra, em 1381 (Justice, 1994). (BAZERMAN,
2006, p.91)
As cartas fomentaram o aparecimento de importantes gêneros relacionados ao
direito e à vida financeira, como é o caso das letras de câmbio, surgidas em meados
do século XIII que, a princípio, obedeciam ao formato de uma correspondência
comercial.
Na Inglaterra, o que se reconheceu primeiramente como dinheiro de papel,
aparece em forma de uma ordem para o Caixa da Receita do Ministério da Fazenda
(1665), o que se configurou em uma carta de crédito, nome que estabelece estreita
relação com a correspondência.
As primeiras cédulas emitidas nas colônias americanas datam de 1709 e
apresentaram forma típica das cartas: data na parte superior e assinatura na parte
inferior.
A chegada da imprensa6 colaborou para a distribuição de textos para a
sociedade, porém, as cartas serviram de forma transitória para o surgimento de
gêneros multiplicados por essa nova tecnologia, como o jornal, a revista científica e
o romance. São notórias, ainda hoje, as marcas das cartas no campo jornalístico,
por exemplo, um jornalista que faz uma matéria em um país distante é chamado de
correspondente jornalístico.
O periódico Philosophical Transactions, de meados do século XVII, surgiu da
troca de correspondências entre filósofos da época, dentre os quais Henry
Oldenbury. O alemão vai para a Inglaterra e, no final de 1650, passa a se
62
corresponder com os filósofos naturais: Massah ben Insrael, John Milton, Robert
Boyle e John Hartlib . Como resultado dessa troca de missivas, surge em 1665 o
novo periódico Philosophical Transactions of Royal Society, contendo, em forma de
resumo, muitas dessas cartas.
Bazerman nos informa ainda que o famoso7 artigo de Newton, 1672, A new
theory of light in colours, surgiu sob forma de carta lida em reunião da Royal Society.
Com o tempo, as cartas do Philosophical Transactions of Royal Society
passaram a se dirigir a leitores e não mais ao seu destinatário nominal, isto é, os
textos sofreram um processo de reorientação. Levando-se em consideração os reais
destinatários, os escritores precisaram diminuir as tensões discursivas, incluindo, em
seus textos de orientação científica, determinadas características das missivas
pessoais, como : etiqueta, polidez e boa vontade.
Em relação ao mundo literário, destacam-se as origens do romance,
especificamente do romance epistolar, que se desenvolveu da tradição de troca de
cartas. A tradição de cartas literárias remonta da época de Plínio e Cícero, passando
por Petrarca no século XIV. No século XVI, há registros e publicações de manuais
de cartas e coleções de cartas de amor.
No tocante à literatura brasileira, Urbano (2008) destaca que o romance
Memórias Póstumas de Brás Cubas é um texto biográfico, que lembra inclusive o
gênero epistolar, caracterizado como “vazado de informalidade e intimidade”. (p.241)
6 Em 1455, o alemão Johannes Gutemberg imprimiu 200 Bíblias tipograficamente (LEVY, 1993) 7 Em 1672, o físico inglês Isaac Newton apresentou uma teoria conhecida como modelo
corpuscular da luz. Nesta teoria a luz era considerada como um feixe de partículas emitidas
por uma fonte de luz que atingia o olho estimulando a visão.
http://educar.sc.usp.br/otica/luz.htm, acesso em 06 de março de 2012
63
No início do século XX, época em que o contato telefônico era difícil, as cartas
se configuraram na forma mais típica de comunicação. E em Itinerários, elas levaram
informações pessoais, conselhos estilísticos e até lamentações dos modernistas
para Alphonsus de Guimaraens Filho. Verificaremos, posteriormente, por meio de
exemplos pontuais, que a amizade epistolográfica se configurou numa relação
familiar, sobretudo entre Manuel Bandeira e o jovem poeta mineiro.
1.3 Discutindo o gênero carta entre escritores
Para Leite (2009, p.116), pautada nas mesmas obras de Bakhtin que vimos
utilizando, Estética da criação verbal e Marxismo e filosofia da linguagem, outras
edições, a língua é vista como atividade que se realiza a partir das atividades
sociais, ou seja, a substância da língua é a interação social, de forma que a autora
expõe dois pontos, a saber:
primeiro, que tudo o que se produz por meio da linguagem verbal
constrói seu sentido na e para a interação (enunciação) que origina o
enunciado; segundo; que a interpretação da materialidade linguística,
o enunciado, só deve ser feita a partir do marco zero de sua
construção, a interação, ou seja, todas as condições de realização do
discurso (sujeito, tempo e espaço), que, aliadas trabalham para sua
composição.
A concretude desta realização (língua + sociedade) resulta nos gêneros do
discurso. De forma que, novos gêneros do discurso surgem a partir de novas
atividades sociais, como é o caso dos e-mails e outras formas de comunicação
digital, como já abordamos neste trabalho.
64
A fim de posicionar o gênero carta pessoal no cenário da classificação, Leite
(2009) diz:
Assim, os gêneros diretamente ligados à realidade empírica, à
própria vida do homem, são considerados primários. Os que são
mais distantes da realidade, do cotidiano, são considerados gêneros
secundários pela natureza da sua construção linguística, mais
elaborada, mais planejada, mais burilada, para intencionalmente,
construir efeitos de sentido, ou por sua complexidade temática.
(p.117)
A carta é um gênero do discurso em sua acepção mais ampla, por ser um tipo
relativamente estável no que diz respeito a seu conteúdo, estilo e composição. A
carta é o resultado da atividade de comunicação escrita por alguém sob certas
condições.
Em seu trabalho, a pesquisadora analisa a carta pessoal, considerando-a uma
das variadas formas do gênero epistolográfico e objetiva apresentar propostas para
o desenvolvimento e discussão desse gênero dentro da sala de aula. Para tanto,
propõe um modelo de análise para o gênero carta pessoal:
A carta pessoal é:
a) a realização concreta (um enunciado) que obedece às injunções
do gênero discursivo carta;
b) organizada a partir dos modos do discurso narrativo, descritivo e
dissertativo/argumentativo;
c) híbrida quanto à modalidade da língua, já que apesar de escrita,
apresenta marcas de oralidade;
d) híbrida quanto ao registro ou nível de linguagem, pois tanto
apresenta marcas de informalidade quando de formalidade, e se
realiza por meio de uma linguagem comum;
e) indefinida quanto à norma linguística, pois é um gênero que
‘aceita’ qualquer norma, a depender das possibilidades do usuário.
(p.118)
65
A partir desse modelo, a pesquisadora elabora um quadro comparativo
confrontando a carta empresarial/comercial e a carta pessoal, objeto de sua
pesquisa, como transcrito a seguir:
Variedades
de carta
Motivação
CARACTERÍSTICAS DO GÊNERO CARTA
Conteúdo
Estilo verbal
Composição
Empresarial/
Comercial
Necessidade de transmitir, por escrito, uma mensagem a um sujeito, com quem se mantém relações de formalidade.
Temas Institucionais, públicos.
Frases sintaticamente completas, seleção lexical cuidadosa, relativa ao campo de atuação da empresa. Realizada por meio da norma culta.
Obediência aos princípios da linguagem culta escrita, texto sem marcas de oralidade, estrutura padrão: data, vocativo, núcleo, despedida, assinatura.
Pessoal
Necessidade de transmitir, por escrito, uma mensagem a um sujeito, com quem se mantém , em geral, relações de informalidade.
Temas pessoais, privados.
Menor rigor na organização sintática das frases, possibilidade de ocorrência de frases sem completude sintática, seleção lexical variada, com gírias e expressões populares. Realizada em norma culta ou popular.
Menor obediência aos princípios da linguagem escrita, texto com marcas de oralidade, tanto nas recortadas sobre a modalidade culta, quanto nas recortadas sobre a modalidade popular, estrutura padrão: data, vocativo, núcleo, despedida, assinatura.
Nos tópicos: motivação, conteúdo, estilo e composição (linguagem), há
diferenças entre as cartas. No entanto, em se tratando da estrutura padrão, tanto a
carta comercial quanto à carta pessoal obedecem a uma estrutura padrão: data,
vocativo, núcleo, despedida e assinatura.
Figura 05 – Quadro comparativo carta empresarial/comercial vc. carta
pessoal
66
Na parte II deste trabalho, o quadro acima será reelaborado e algumas
posturas de Leite serão retomadas.
Percebemos que o gênero carta não se define só pela forma/estrutura padrão,
mas, principalmente, por seus aspectos sócio-comunicativos e sociais, como todos
os demais gêneros. A ideia da relação entre gêneros do discurso e sociedade parte
de Bakhtin (2006):
A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas
porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade
humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o
repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à
medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo
[...] (p.262)
Percebemos que as cartas se configuram como um gênero e se estabilizam
nas diferentes interações construídas nessa esfera: cartas pessoais, cartas de
agradecimento, cartas ao editor, carta de aconselhamento e sofrem determinadas
regularizações, pois “cada enunciado particular é individual, mas cada campo de
utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os
quais denominamos gêneros do discurso”. (ibid., p.262)
Em seu estudo sobre o português popular escrito, Pinto (1990) divide os textos
em dois grupos: o primeiro pertencente às mensagens rurais, próprias das tabuletas,
placas, geralmente escritas por um público de baixa consciência linguística; e o
segundo, constituído pelas cartas, (ressaltamos as cartas pessoais) que denotam
certo convencionalismo, que, segundo a pesquisadora, é característica inerente do
gênero epistolar. Geralmente, o produtor desse texto tem algum conhecimento
linguístico, mas não suficiente. As cartas pessoais apresentam uma característica
típica :
67
Outro aspecto decorre das relações de afetividade mantidas através
da correspondência: sendo o destinatário e o destinador amigos ou
parentes, o discurso recobre um espaço compartilhado de interesses
e emoções, que não excluem o respeito (aliás muito marcado nas
cartas), mas dispensa qualquer aparato gráfico, além dos
convencionais, ou as figurações de estilo armadas para impressionar
e seduzir. (PINTO, 1990, p.13)
As cartas são testemunhos das mais diversas relações sociais e traduzem os
momentos vividos tanto pelos interlocutores em suas particularidades quanto pela
sociedade.
O estudo de Itinerários se faz válido pelas palavras de Andrade (2008, p.113)
para quem “o gênero epistolar é propício para o estudo das relações sociais entre os
enunciadores”. A pesquisadora entende que a narrativa confessional das cartas,
uma prática discursiva singular, “faz com que o outro se torne presente na distância”.
As cartas cumprem, assim, seu objetivo comunicativo-interacional,
estabelecendo uma relação entre pessoas ausentes.
1.4 Fechando as ideias
Os primeiros comandos escritos no Oriente Próximo e na Grécia surgiram em
forma de cartas. Tin (2005) afirma que vários Tratados da Antiguidade discutiram o
gênero carta, procurando encontrar uma forma padrão para elas, a fim de que
cumprissem seus objetivos sociais.
De acordo com Bakhtin a diversidade do gênero se dá em decorrência da
grande variedade de atividades sociais. O gênero do discurso, assim, apresenta-se
como a realização da língua + realidade social.
68
O domínio dos gêneros nos permite descobrir a nossa individualidade e refletir
sobre as singularidades das situações comunicacionais.
Segundo Bazerman, podemos estabelecer padrões discursivos perante uma
dada situação. Esse processo, denominado tipificação pelo autor, implica a produção
de um gênero esperado para determinada situação.
Os estudos de Leite são pertinentes e de utilidade para o alicerce desta tese. A
pesquisadora confirma que a carta pessoal é uma realização concreta, a partir da
narração, descrição e dissertação. Em relação à língua, tal gênero se mostra híbrido,
variando da formalidade à informalidade. Tais afirmações corroboram as ideias de
Bakhtin: estabilidade dos gêneros em relação à composição e relatividade no que diz
respeito ao conteúdo e contrução composicional.
69
Capítulo 2 - A língua dos escritores modernistas
Faz-se necessário, para cumprirmos os objetivos de nossa tese apresentarmos
um panorama sobre as posturas, os pensamentos linguísticos de Manuel Bandeira
e de Mário de Andrade e a própria história epistolográfica vivida pelos dois
escritores.
Cabe também aqui uma breve explanação sobre Alphonsus de Guimaraens
Filho, também considerado um escritor modernista. Seu primeiro livro Lume de
estrelas, citado inclusive em Itinerários (MA-1-1940, linha 6; MA-8-1943, linha 35;
MB-1-1940, linhas 3 e 5; MB-7, linhas 5 e 9) mostra, na linguagem, um certo
rebuscamento combatido pelos modernistas. Em relação à forma, o escritor produz
sonetos, contudo, não obedece à métrica convencional, o que, ironicamente,
também será combatido por Mário de Andrade e Manuel Bandeira nas cartas.
Segundo Junqueira (2009a, p.81-82), no periódico da Academia Mineira de
Letras, Alphonsus de Guimaraens Filho foi um poeta eloquente, alcançando seu
estado máximo em Espírito e vida:
Senhor, na minha fraqueza.
não sei Te ver... Entretanto
como o pão de Tua mesa.
Não sei Te ver quando estou
preso ao mundo, e tenho o espanto,
e tenho as trevas do mundo.
Bebi Teu sangue e desejo
mais luz... Se me deste a vida,
se me deste a claridade,
a claridade surpresa,
encharcada de pureza,
quero mais luz e mais vida
como quem busca no mundo
mais infância e mais infância. (p.81-82)
70
Não encontramos registros de textos não-literários de Alphonsus de
Guimaraens Filho, temos apenas as palavras de Junqueira (2009a, p.82) sobre o
escritor: “Não fora ele o poeta moderno que é. Moderno no sentido em que o foi
Manuel Bandeira, ou seja, para além do que há de datado no Modernismo.”
2.1 Discutindo a linguagem de Mário de Andrade
Mário Raul de Moraes Andrade nasceu em nove de outubro de 1893 na cidade
de São Paulo. Formou-se bacharel em Ciências e Letras no ano de 1909. Em 1917,
diploma-se em piano pelo Conservatório. Publica, nesse mesmo ano, Há uma gota
de sangue em cada poema, sob o pseudônimo de Mário Sobral. Conhece o grupo de
modernistas na Exposição de Anita Malfatti . Escreve contos e poemas, colabora em
jornais e revistas e viaja por Minas Gerais. No ano de 1920, início de uma década
fundamental para o Modernismo brasileiro, Mário de Andrade passa a fazer parte do
grupo modernista de São Paulo.
Mais de uma dezena de volumes de cartas de Mário de Andrade já foram
publicadas. Mário de Andrade pensava alto com os amigos, colocava no papel
informações sobre seus projetos criativos, compartilhava esperanças, alegrias e
angústias com seus interlocutores, orientava e aconselhava os jovens, como o fez
com Alphonsus de Guimaraens Filho, nas cartas objeto deste trabalho e como
também procedeu com Guilherme de Figueiredo em A lição do guru
(FIGUEIREDO,1989):
S.Paulo, 8-VI-42
Guilherme meu velho
71
São precisamente 18 horas e vinte minutos. Acabo de ler a sua
história da música. Alem de certa é uma delícia no gênero. Desde
que você entra na música que você conhece o livro está cheio de
achados, piadas críticas, uma graça natural, uma expontaneidade e
uma bonomia que a gente lê como um romance. Há páginas
positivamente notáveis como espírito e ficou muito bem.
Está claro que não entro no mérito das opiniões críticas de
você, são de você e o livro é de você. Talvez apenas eu pedisse pra
você raciocinar um bocado mais na esculhambação que você passa
em Vila Lobos. Não sugiro que você tire nada do que escreveu, mas
não me parece que você equilibrasse bem a sua admiração pelo
músico com a sua repulsa justa pelo homem [...] (ANDRADE, 1989,
p.51)
Nota-se, no trecho da carta, a preocupação que Mário de Andrade tem em
primeiramente, elogiar o interlocutor, sem, no entanto, deixar de tecer sua crítica,
claramente modalizada pelo marcador talvez e pelo uso do verbo pedir no
subjuntivo, estilo este também empregado nas cartas em Itinerários como
discorreremos no capítulo 6 deste trabalho.
Epistológrafo de primeira, mas receoso de ter suas missivas adulteradas, Mário
de Andrade proibira os destinatários de publicá-las, liberando-as apenas após 50
anos de sua morte. Contudo, Manuel Bandeira, seu maior amigo e interlocutor
máximo de suas missivas resolveu publicar em 1958, 13 anos após sua morte, uma
coletânea das cartas que recebera de Mário de Andrade.
A troca de correspondências entre os amigos, Mário de Andrade e Manuel
Bandeira, teve início em 1922 e se prolongou até 1945, ano da morte de Mário de
Andrade. No prefácio desta edição, escreveu Manuel Bandeira:
[...] Mário escreveu milhares de cartas. Nunca deixou cartas sem
resposta. Creio, no entanto, que as da nossa correspondência têm
importância especial, porque comigo ele se abria em toda confiança,
72
de sorte que estas cartas valem por um retrato de corpo inteiro,
absolutamente fiel. (ANDRADE,1958, p.5)
Essas cartas foram reeditadas, mais tarde por Moraes (2001), sob o título
Correspondência de Mário de Andrade e Manuel Bandeira.
Sobre a importância da correspondência de Mário de Andrade, escreve
também Marta Rossetti Batista, editora responsável pela publicação das cartas de
Mário de Andrade enviadas à pintora Anita Malfatti:
Parece-nos fora de dúvida que, pelo menos em certas etapas de sua
vida, Mário de Andrade, sempre tão consciente da função que
exercia em seu tempo, pensou na possibilidade de estar
desenvolvendo uma correspondência-documento, um diário-artístico
enviado aos amigos, que poderia ser divulgado mais tarde. Por volta
de 1925, por exemplo, queixando-se da impossibilidade de se
dedicar com vagar a essa atividade, escrevia a Drummond: “Se eu
tivesse tempo pra escrever cartas como se faz na França, cartas pra
despois da morte os amigos publicarem, havia de mandar uma pra
você sobre o que sou, o que faço e o que penso agora.” (ANDRADE,
1989, p.5-6)
Embora não seja nosso foco, um dos aspectos peculiares a Mário de
Andrade, que encontramos em suas cartas e que também está presente em seus
textos literários, é a questão ortográfica. O modernista grafava as palavras de acordo
com uma norma própria que, nem sempre, apresentava lógica. Sobre tal aspecto,
encontramos algumas considerações no texto de Manuel Bandeira:
Sempre fui partidário do abrasileiramento do nosso português
literário, de sorte que aceitava em princípio a iniciativa de Mário. Mas
discordava dele profundamente na sua sistematização, que me
parecia indiscretamente pessoal, resultando numa construção
cerebrina, que não era língua de ninguém.[...] Mário que se prezava
73
de psicólogo, escrevia-me para justificar-se de seus exageros, que
era preciso forçar a nota:”exigir muito dos homens pra que eles
cedam um poucadinho.” [...] Mário grafava quase sempre porêm,
mas não acentuava ninguém, também, Belém. Podia-se imaginar
que acentuava porêm para distingui-lo de porem verbo, que ele não
acentuava. Mas então porque escrevia o infinitivo pôr sem o acento
que o distinguisse da preposição? (ANDRADE, 1989, p.6)
Em respeito a Mário de Andrade, mantivemos a ortografia original nas cartas
em Itinerários, bem como todas as outras citadas neste trabalho, de forma que se
fez importante trazer aqui o breve parecer de Manuel Bandeira.
Conforme o próprio Manuel Bandeira relata, no prefácio das cartas de Mário de
Andrade (ANDRADE, 1958), Mário se mostra realmente inteiro ao escrever para o
amigo e, diferentemente da preocupação de nortear as ideias sobre o fazer poético
que tinha com os jovens, com os quais também trocava correspondências, em
Manuel encontrava o grande confidente, como notamos na carta a seguir:
São Paulo, 26-I-35.
Manú
Recebi sua carta já me mandava de Araraquara, donde cheguei dia
21. [...] É engraçado, mas eu trago, não propriamente da minha
geração, mas das pelo menos duas que antecederam a minha, um
desejinho secreto de flar bem o português e escrevê-lo sem erro..
Aliás, mesmo dentro do meu desmanchado falar de desde os tempos
mais antigos em que me botei trabalhando e baendo “língua
brasileira”, se percebe isso por muitos cacoetes. Você deve ter
reparado.[...] Arre também! Não vá pra Cabuquira “consertar” o
fígado que você se estraga completamente, que coragem! Isso acho
que é demais. Apesar das suas razões que conheço hoje, concertar
com c, pra qualquer sentido da palavra está consagrado
definitivamente. Vamos: me retruque que o “hontem”, o “geito”, e o
“pêcego” também estavam concertados definitivamente entre
escritores e que então eu não devia consertá-los. Você está certo,
74
mas a minha resposta é o “brinque-se”! Por enquanto. Por quê si vier
uma nova reforma ortográfica mandando distinguir definitivamente
consertar e concertar, assim farei em nome da minha
desindividualização teórica. Viva a humanidade! (ANDRADE, 1958,
p.349-350)
Percebemos o teor de informalidade empregado por Mário de Andrade por
meio da expressão: Arre também!, simulando um desabafo. Outro aspecto a
ressaltar é o uso do imperativo negativo em: “ Não vá”, tal construção dá o tom de
confidência e intimidade, de tal forma que não há preocupação em modalizar o
discurso, denotando cortesia. Mário de Andrade se mostra cortês para com Manuel
Bandeira, mas nem sempre isso se revela por meio da cortesia verbal.
Segundo Moraes (2001), as cartas trocadas entre os dois apresentam os
bastidores da vida de Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Os autores enviam
textos para serem apreciados e/ou criticados pelo outro; conversam sobre o fazer
poético, sobre futebol, sobre mulheres e sobre a língua brasileira tão buscada por
Mário de Andrade. Dentro desse contexto, percebe-se a influência de um escritor
sobre o outro e o aprofundamento dessa amizade epistolar.
Estudar as cartas de Mário de Andrade implica entender as ideias do escritor
sobre a língua portuguesa, já que ele tinha em mente a estreita vinculação que a
escrita deveria manter com a fala. Por isso Mário adotava, em todos os seus textos
escritos, uma postura gramatical diferenciada.
Segundo Rodrigues (1994), na grande quantidade de documentos
pubilicados, Mário de Andrade defendeu e discutiu os problemas referentes à
variedade brasileira da língua portuguesa, preocupação dos intelectuais de sua
época.
75
Nos primeiros momentos de sua trajetória de intelectual, Mário de
Andrade não titubeia em chamar a língua viva falada do Brasil de
“brasileiro”, “língua brasileira” ou “linguagem brasileira”. E não
poderia ser de outra maneira: engajado na luta pela caracterização
da cultura brasileira no seu tempo, o emprego do rótulo “língua
brasileira” é uma das estratégias para consolidação de seus objetivos
nacionalistas. (ibid., p.63)
O Brasil deveria assumir, segundo Mário, sua unidade linguística sem opor-se
a outra língua, delineando assim a chamada língua geral do Brasil. Essa
representaria a fusão da variedade à língua, ou seja, o léxico, sintaxe e ritmo fixados
e consagrados pelo uso comum.
Para Mário de Andrade, língua brasileira é o mesmo que fala brasileira,
contudo, no futuro, isso comprovaria a existência de uma variedade da língua
portuguesa, entendida por muitos como língua nacional, devidamente reconhecida
para fins literários:
Mário de Andrade pensava em sistematizar a língua portuguesa frente aos
ideais modernistas, não definindo rigorosamente seus traços, mas apenas
apresentando implicações linguísticas e estéticas de forma geral e, em virtude disso,
nomeou seu estudo de Gramatiquinha.
Eu enunciara um livro futuro, a GRAMATIQUINHA DA FALA
BRASILEIRA. Este livro do qual eu nunca escrevi nenhuma página,
eu nunca jamais tive intenção de escrever. (MÁRIO DE ANDRADE in
PINTO, 1981, p.128)
Variedade da língua portuguesa = fala
Língua literária = legitimação da fala
76
O levantamento e a pesquisa para esse estudo levaria em conta a linguagem
de todos os brasileiros.
Deve estender-se a todas as classes, até mesmo aos cultos, mas
sempre na linguagem desleixadamente espontânea e natural. As
observações só não devem se estender aos indivíduos que timbram
em falar certo. Ou milhor: tem muita importância em verificar e
apontar as regras e casos em que mesmo estas pessoas
‘culteranistas’, por desatenção momentânea pecam contra o
português de Portugal ou das gramáticas.( MÁRIO DE ANDRADE in
PINTO, 1990, p.64)
Por acreditar que tinha pouco conhecimento acadêmico sobre a língua
portuguesa, desde o início do projeto, Mário sentiu-se reticente em relação à sua
publicação.
Pinto fez um levantamento dos documentos de Mário de Andrade em que o
escritor apresentou as ideias da Gramatiquinha e editou, em 1990, a Gramatiquinha
de Mário de Andrade – Texto e Contexto.
Apresentamos, a seguir, uma resenha sobre a obra, reservando-nos a
exemplificar apenas os casos que nos servirão de base para argumentação em
nossa análise.
A Gramatiquinha está dividida em:
I- Informação – informações sobre os documentos coletados.
Em sua maioria, trata-se de documentos originais de Mário de Andrade:
anotações fortuitas e aleatórias, sem qualquer unidade. Material esse pertencente ao
Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo.
II- O pretexto
a) Motivação
77
O que levou Mário de Andrade a pensar no projeto foi a necessidade de
sistematizar determinadas tendências linguísticas em defesa dos ideais
modernistas.
b) A concepção
Para Mário de Andrade, existia uma língua nacional, sinônimo de língua falada
que deveria ser legitimada como tal. À concretização dessa língua em conjunto
com as marcas da fala no texto escrito Mário denominava de língua literária.
c) A preparação
As bases teóricas utilizadas por Mário de Andrade para composição de seus
estudos:
Através do dicionário e da gramática de Mário Barreto (1927)
Estudos da língua portuguesa, II, de Júlio Moreira (1913)
Aérides, de Alberto de Faria (1920)
Manuel Bandeira solicitou a Sousa da Silveira uma lista de obras fundamentais
para aprimoramento de Mário de Andrade, dentre os títulos citamos:
O dialeto Caipira, de Amadeu Amaral
O linguajar carioca, de Antenor Nascentes
III- Texto informativo – descrição da Gramatiquinha:
a) Fonologia
Este tópico tem por objetivo, na visão de Mário de Andrade, “dar uma descrição
e exemplificação geral, o mais completa possível da pronúncia da região”. (PINTO,
1990, p.111).
Dentre os vários casos descritos, ressaltamos o uso de “variações de ‘para’
(pra, prá, prô etc) são gerais ou não na região”. (ibid., p.112)
78
Mário insere, nesta primeira parte, um capítulo denominado Ortografia.
Segundo Pinto, devido à escassez de registros, foi impossível fazer um estudo
sobre a prática ortográfica tão peculiar do escritor, que continua sendo motivo de
crítica desfavorável, conforme nota de carta de Guimarães Rosa de 03 de novembro
de 1964:
Mesmo entre os pósteros houve quem criticasse grafias como milhor,
que, no entanto, é histórica: “Mário de Andrade foi capaz de perpetrar
‘milhor’ (por melhor) - que eu só seria capaz de usar com a referência
a ‘milho’.(ibid., p.140)
Pinto apresenta uma carta de Mário de Andrade dirigida a Carlos Drummond
de Andrade como depoimento e documentação dessa prática ortográfica, da qual
extraímos um excerto:
[...] O outro problema ainda da sua carta é também um sofrimento
danado pra gente: a questão da ortografia. Resolver tudo duma vez é
impossível.[...]
Si toda a vida a gente visse Physika olhava prá palavra sem achar
antipática a forma dela. O costume aplaina tudo a esse
respeito.(ibid., p.120)
Embora o uso dos ‘pras’ fosse recorrente na ortografia de Mário de Andrade,
ele não reserva um estudo específico sobre o tópico; o que temos é uma distinção
do escritor em carta enviada a Pedro Nava em 1925:
Você está acentuando todos os pras. Isso traz confusão Nava.
Acentue só quando tiver contração com o artigo. Vou prá escola. Me
dê pra mim. Não acha essa diferenciação razoável? (ibid., p.124)
79
Também formas como si (conjunção), sinão, siquer, quasi, milhor, milhorar não
foram objeto de estudo do escritor, tendo sido apenas documentadas em notas de
leitura. Tais usos não comprometia o que era essencial para Mário: rápido
entendimento, tendo ainda a vantagem de corresponderem à pronúncia brasileira.
b) Lexeologia
Mário de Andrade se apoiou na concepção de Said Ali e conceituou lexeologia
como o “estudo dos vocábulos, divididos em ‘grupos ou categorias’, o que
entendemos como Morfologia, registrando-se ‘os fatos comuns e constantes e os
fatos variáveis’. (ibid., p.147)
Neste plano, o que se ressalta é a diferenciação entre palavra e partícula. Para
o escritor partículas são elementos constitutivos, tanto de palavras quanto de frases,
são elos, como: preposição, conjunções, artigos e adjetivos determinativos;
enquanto as palavras são entidades ou personalidades do discurso.
c) Sintaxe
Este tópico não é exceção aos outros, pois Mário de Andrade também não
registra suas construções sintáticas peculiares: construção de certas locuções e a
colocação da preposição no final da frase.
Para nosso propósito de análise, destacamos o tópico de título Psicologia do
pronome.
Em relação à colocação dos pronomes átonos, Mário de Andrade se baseia na
Gramática secundária da língua portuguesa de Said Ali, ao grifar nela o trecho:
A pronúncia brasileira diversifica da lusitana daí resulta que a
colocação pronominal em nosso falar espontâneo não coincide
perfeitamente com o do falar dos portugueses. (PINTO, 1990,
p.206)
80
O autor reitera ainda essa posição em nota na mesma gramática:
Como norma única de colocação se poderia pelo estudo da nossa
fala aconselhar assim. Na fala brasileira, salvo casos especiais de
eufonia (a possuí-lo pra não fala ‘a o possuir) o pronome se antepõe
sempre ao verbo menos nas frases mais ou menos imperativo
psicologicamente. Ninguém não erra na colocação dos pronomes a
não ser que por pretensão esteja procurando falar difícil.[...]. (ibid.,
p.207)
d) Estilística
Mário visava a uma “limitação de conceitos estéticos”, partindo do
“experimentalismo crítico”. Não são encontradas notas ou estudos específicos sobre
a questão do estilo. O importante para Mário de Andrade em relação ao estilo seria
que: “ tanto a palavra, tomada isoladamente, como o seu arranjo, na frase, tudo deve
resultar da aliança com o popular, cujo produto seria – se fosse – um estilo ‘natural’.
(PINTO, 1990, p.261)
De forma geral, o objetivo da Gramatiquinha era desenvolver um estudo sobre
a fala brasileira, configurando-a como uma língua universal, legitimada.
A pesquisadora (PINTO, 1990, p.54) acrescenta que a proposta da
Gramatiquinha seria uma forma de Mário de Andrade legitimar seus erros
individuais, transformando-os em acertos. Cabe esclarecer que erro para Mário
seria: “o atentado contra a tradição coletiva e o acerto é o que está coerente com
esse uso, embora contrariando a gramática portuguesa”.
81
2.2 Discutindo a linguagem de Manuel Bandeira
Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho, nascido no Recife em dezenove de
abril de 1886, muda-se para o Rio de Janeiro em 1896 com sua família. No ano de
1903, vai para São Paulo e se matricula na Escola Politécnica, mas no ano seguinte,
em razão de sua tuberculose, abandona os estudos. Publica seu primeiro livro A
cinza das horas em 1917. É também autor da geração dos anos 1920. Numa reunião
na casa de Ronald de Carvalho, em Copacabana, no ano de 1921, Manuel Bandeira
é apresentado a Mário de Andrade.
Não tão polêmico quanto Mário de Andrade, Manuel Bandeira também afirmou
suas posições sobre a aproximação da língua falada à língua escrita, mais
especificamente nos textos literários.
Encontramos alguns posicionamentos linguísticos de Manuel Bandeira em
Crônicas de Província do Brasil in Poesia e Prosa (BANDEIRA, 1958), em sub-
tópico intitulado Fala Brasileira. O texto expressa a visão de Manuel Bandeira sobre
a língua portuguesa e a necessidade dos textos literários reproduzirem a variedade
brasileira, a que ele também denomina de fala brasileira. O poeta legitima sua
opinião corroborando as ideias de Mário de Andrade:
Foi preciso que aparecesse um homem corajoso, apaixonado,
sacrificado e da fôrça de Mário de Andrade para acabar com as
meias medidas e empreender em literatura a adoção integral da boa
fala brasileira. Não cabe aqui discutir os erros, os excessos, as
afetações da solução pessoal a que êle chegou. Nada disso tira o
valor enorme da sua iniciativa, a segunda, e muito mais completa e
eficiente que a primeira de Alencar.
Aqueles mesmos excessos, aquelas mesmas afetações contribuíram
para ferir as atenções, para promover reações e discussões, para
focalizar o problema em suma. (BANDEIRA, 1958, p.134)
82
Notamos, nos trechos sublinhados anteriormente, que o poeta afirma que
Mário de Andrade se excedeu em alguns aspectos ao tentar a aproximação língua
falada/língua escrita. Manuel Bandeira não vê tal fato como uma língua nova, mas
sim uma variedade, que se aproxima da linguagem falada e torna os textos literários
menos artificiais:
Não me consta que jamais Mário de Andrade tenha pretendido criar
língua nova. Nem ninguém pensa que o português falado pelos
brasileiros seja língua nova.
Nos seus livros já publicados o poeta paulista anuncia a publicação
próxima de uma Gramatiquinha da Fala Brasileira. Notem bem : não
diz língua brasileira, e sim fala brasileira [...] O que intenta aquela
corrente a que aludiu o Prof. Sousa da Silveira é criar na linguagem
escrita uma tradição mais próxima da linguagem falada natural,
correta mas sem afetação literária, da sociedade brasileira culta.
Entre esta linguagem e a tradição literária existe um abismo como
não o há em país algum, inclusive o próprio Portugal. É que a lingua-
gem literária entre nós divorciou-se da vida. Falamos com singeleza
e escrevemos com afetação. (ibid., p.135-136)
Manuel Bandeira encerra suas reflexões nessas crônicas, apontando para uma
perspectiva positiva em relação ao uso da língua falada nos textos literários: “o meu
sentimento é que as formas brasileiras da linguagem falada serão chamadas a
substituir as que o Prof. Nascentes qualificou de lusitanizantes, com grande
escândalo do Prof. Sousa da Silveira. (BANDEIRA, 1958, p.136)
São notórias nos poemas de Manuel Bandeira as marcas de oralidade, isso em
decorrência dos novos ares do período em que viveu o poeta, conforme afirma
(PINTO, 1988, p.16): “Em suma, a tentativa de aproximar o texto literário dos
83
diferentes registros da fala constitui uma das características mais notórias da língua
literária do século XX”.
Em Evocação do Recife, o poeta afirma a existência de uma variedade
linguística a que ele denomina de “língua do povo” e de forma subliminar indica a
existência de uma elite que insiste em copiar a sintaxe portuguesa.
Manuel Bandeira não apenas argumentou a favor da língua do povo, como
também, entendendo que a língua falada era uma modalidade linguística intrínseca a
ela, inseriu em seus poemas marcas próprias dessa língua falada, como mostram os
estudos de Negreiros (2009):
BERIMBAU
A mameluca é uma
maluca
[...]
O ritmo dissoluto
Em “Berimbau”, o emprego de maluca, vocábulo muito usado na
língua falada e que se refere àquela que sofre distúrbios mentais, é
uma marca da oralidade presente no texto poético de Bandeira.
LOUVAÇÃO DE ADALARDO
O que
dá duro
e se
esfalfa
No
batente
[...]
As expressões de uso informal “dá duro” e “batente” são empregadas
em “Louvação de Adalardo”. A primeira se refere ao esforço
84
exagerado de alguém no trabalho diário, enquanto batente se refere,
nesse poema, à própria ocupação diária. (p.114)
Também notamos “Em Vou-me embora pra pasárgada” que o poeta obedece
à regra da colocação pronominal culta ou, como ele mesmo dizia, regra lusitana,
mas, na mesma frase, faz uso de um ‘pra’ sincopado, típica marca da língua oral;
isso denota que o poeta se faz comedido no uso da chamada variedade brasileira.
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
(BANDEIRA, 2007, p.30)
Corroborando os pensamentos linguísticos de Manuel Bandeira, citamos a
seguir Libertinagem, obra publicada em 1930, contendo 38 poemas escritos entre
1924 e 1930; na maioria deles, verificamos a intenção do poeta de romper com as
formas tradicionais, acadêmicas e passadistas. Nessa obra, Manuel Bandeira
praticou mais livremente a própria liberdade formal, valendo-se de versos e
estrofação irregulares e abandonando a rima, além de empregar o coloquial, numa
atitude inequivocamente antiformalista. Notamos isso em Poética:
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
85
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
(BANDEIRA, 2008)
2.3 Fechando ideias
Apresentamos, neste capítulo, considerações sobre as posturas linguísticas
de Mário de Andrade e Manuel Bandeira e algumas informações sobre Alphonsus de
Guimaraens Filho.
Verificamos que Mário de Andrade e Manuel Baneira defendiam uma língua
literária mais próxima da variedade brasileira, ou seja, com marcas de oralidade.
86
Mário de Andrade foi além dessa ideia e levou tal uso para todos os seus
textos, não apenas o literário, tentando inclusive organizar essa língua no que ele
nomeou de Gramatiquinha, projeto que foi abandonado.
Alphonsus de Guimaraes Filho, como poeta, adota escolhas lexicais
rebuscadas e forma poética não convencional, produzindo assim um poema
inovador.
A troca de cartas contribuiu para o desenvolvimento poético de Alphonsus de
Guimaraes Filho, contudo, vale ressaltar, que tal atividade serviu também para que
Mário de Andrade e Manuel Bandeira revelassem seus próprios posicionamentos
estéticos e afinassem sua crítica em relação ao processo de construção poética do
jovem escritor mineiro.
87
Capítulo 3 - Oralidade
A língua é composta pelas variedades diatópicas, diafásicas e diastráticas que
são intrínsecas a sua arquitetura. São essas variedades que compõem o chamado
diassistema. No entanto, esse modelo tridimensional só se completa com a inclusão
do parâmetro específico oral/escrito.
Coseriu no artigo de Koch e Oesterreicher (1985, p.2) justifica a importância
dos estudos sobre as modalidades oral e escrita, bem como o continuum
estabelecido graças a elas.
Este capítulo baseia-se, principalmente, na visão de Urbano (2000, 2006 e
2011) e Marcuschi (2001) sobre oralidade o continuum fala/escrita, estudos
parcialmente pautados em Koch e Oesterreicher (1985) e Koch e Oesterreicher
(2007).
3.1 Discutindo o continuum entre a fala e a escrita
Introduzindo os presentes comentários sobre “fala” e “escrita”, veremos que no
transcorrer do desenvolvimento do assunto, esses termos percorrerão uma trajetória
bastante sinuosa quanto às suas noções e uso.
Koch e Oesterreicher publicaram em 1985 um artigo, que, só agora (2013)
recebeu a tradução em português sob o título de Linguagem da imediatez –
Linguagem da distância: oralidade e escrituralidade entre a Teoria da Linguagem e a
História da Língua, em que lançaram as bases da perspectiva do “meio” e da
“concepção” para a compreensão e distinção da linguagem falada e linguagem
escrita, a qual, por sua vez, deu origem à, hoje conhecida, teoria do continuum.
88
Em 1990, os mesmos teóricos desenvolveram a teoria em extensa e completa
obra traduzida para o espanhol em 2007, sob o título Lengua hablada en la
Romania: español, francés, italiano.
Em 2001, Marcuschi, que já tinha abordado a questão e divulgado a teoria,
enriqueceu sua visão, na publicação da sua obra Da fala para a escrita: atividades
de retextualização.
Em 2006, antes da versão espanhola acima referida, Urbano publicou o artigo
“Usos da linguagem verbal”, para o qual fez uma leitura dos artigos de Oesterreicher,
“Lo hablado em lo escrito” (1996), e “Pragmática del discurso oral” (1997), grosso
modo, interpretando e reinterpretando a referida teoria, desenvolvida nos citados
artigos.
Em 2011, Urbano publicou a Frase na boca do povo, onde mais uma vez,
dedica um capítulo (Língua falada/língua escrita) ao aproveitamento da teoria,
embora com outros propósitos.
Todos esses textos, segundo Urbano, estão a merecer uma compilação,
leitura, releitura e consolidação sistematizada no seu conjunto. Entretanto, todos
eles fundamentam, direta e indiretamente, o desenvolvimento e as presentes
discussões a seguir.
Koch e Oesterreicher (2007) justificam as discussões sobre língua falada em
um momento em que questões sobre oralidade e escrituralidade estão em ebulição.
Embora nos últimos anos os estudos sobre o tema tenham se desenvolvido, as
discussões proporcionadas pela obra ainda estão em evidência, o que ocorre graças
a uma distinção sistemática entre oralidade e escrituralidade, sob os critérios do
meio e concepção relacionados ao objeto.
89
Primeiramente, em relação à oralidade, com os fenômenos universais e
idiomáticos que pertencem a diferentes níveis de categorização em direção às
investigações de linha cognitivista de análise do discurso como também aquelas
relacionadas à teoria da literatura.
Koch e Oesterreicher (2007) fazem um levantamento dos fenômenos
linguísticos, relacionando-os a uma concepção global de escrituralidade e oralidade.
Para isso, consideram alguns questionamentos:
a- Tais fenômenos caracterizam a língua falada em todas as comunidades
humanas?
b- Trata-se de elementos específicos da variedade falada de uma determinada
língua em particular ?
c- Que posição ocupa a língua falada em relação a outras variedades (dialeto,
língua regional, popular, coloquial) ?
d- A língua falada pode ser também escrita ? (p.17)
Nossa pesquisa, a princípio, se ocupa do tópico d, os limites imprecisos entre a
língua falada e a língua escrita dentro do universo epistolográfico de Mário de
Andrade e Manuel Bandeira. Assim, as teorias aqui apresentadas nos servirão de
fundamentação teórica para a análise que se dará na parte II.
Para Koch e Oesterreicher (2007, p.20), os termos falado/oral e
escrito/escritural representam a primeira instância da realização material das
expressões linguísticas que podem se manifestar tanto de forma sonora como
gráfica. Contudo, por mais que essas diferenças sejam justificadas e evidentes, não
dão conta da complexa relação entre oralidade e escrituralidade.
Urbano (2006, p.19) traz à baila discussões sobre a temática
oralidade/escrituralidade quando da introdução de seu trabalho:
90
“[...] são muitos os estudiosos que contestam a simples discussão
sobre as diferenças entre língua falada e língua escrita e sobre as
chamadas “marcas ou signos de oralidade bem como marcas de
oralidade e escrituralidade” e suas denominações paralelas “marcas
ou signos de escrita”, alegando que eles “não são característicos”
das modalidades, mas “sim produtos das condições de produção de
um determinado texto”.
Ao lado da noção de oralidade como um dos polos do discurso em oposição ao
polo da escrituralidade, registram-se outras noções de oralidade de interesse para o
presente trabalho, detalhadas em três níveis:
a) a oralidade primária ou oralidade 1- trata-se do nível de oralidade das
comunidades ágrafas, o que o pesquisador denomina de oralidade pura;
b) oralidade secundária ou oralidade 2 – relaciona-se à oralidade das pessoas
com baixo nível de letramento . De acordo com Urbano (2006, p.32): “Trata-se
de um letramento, parcial e natural, fora de sala de aula ou fora das condições
e convenções ideais de letramento”;
c) oralidade letrada ou oralidade 3 – relacionada às pessoas letradas.
Em relação ao tópico (c), complementa Urbano:
As pessoas (oralidade 3), além de terem condições de um
desempenho oral e escrito, mesmo no oral, podem – e devem –
interagir tanto por meio de uma linguagem culta, quanto popular (nos
dois sentidos referidos atrás), adequando-se às situações
comunicativas. Dificilmente, baixam ao nível da vulgaridade, porém.
(URBANO,2006, p.32-33)
Para Koch e Oesterreicher (2007, p.20), há expressões realizadas de forma
sonora, cuja configuração apenas corresponde com nossa “intuição” de “oralidade”
(orações de pêsames, explicações durante visitas monitoradas).
91
Por outro lado, também existem expressões realizadas graficamente que
dificilmente coincidem com a ideia de “escrituralidade”, como é o caso da carta
privada. Tal exemplo corroborará com nossas afirmações, uma vez que as cartas
entre escritores, objeto de estudo deste trabalho, representam uma variação da carta
privada, cujas análises apontarão para seu lugar neste continuum entre oralidade e
escrituralidade.
Os autores reportam-se a Ludwig Söll, que, em 1974, já discutia o problema,
apresentando o “meio” de realização , que pode ser fônico ou gráfico, e a
“concepção” da língua que pode ser falada ou escrita (KOCH E OESTERREICHER,
2007, p.21), independentemente do código, nos termos do quadro: meio e
concepção, a seguir:
Meio Concepção
Código gráfico Falada Escrita
Código sonoro Falada Escrita
Urbano (2006) concorda com tais ideias e avalia positivamente sua aplicação e
eficácia:
Koch e Oesterreicher, centrando-se no enfoque da “oralidade” para
construir sua teoria, parecem ter colocado mais clareza ao método,
com suas perspectivas de “meio” e “concepção”, abrindo caminho
para uma série de novas reflexões e posturas, sobretudo de
embasamento para possíveis novas linhas de pesquisa. (p.22)
E ainda sobre a terminologia utilizada , o pesquisador complementa:
Figura 06 – A perspectiva do “meio” e da “concepção”
92
Sua teoria [...] não utiliza, em princípio, as denominações “língua
falada” e “língua escrita”, mas sim apenas os conceitos “fônico” e
“gráfico” para o meio e “imediatez e distância comunicativas” para a
concepção, rotulados por alguns, respectivamente, de “oralidade” e
“escrituralidade” [...] (URBANO, 2006, p.22)
Embora os meios sonoro/gráfico representem uma dicotomia restrita, a relação
entre o falado e o escrito pode ser entendida dentro de um continuum entre as
manifestações extremas de sua concepção.
Ao estabelecer a perspectiva de meio e concepção, para a distinção das
modalidades falada e escrita, Koch e Oesterreicher (2007) inovam em relação a
outros estudos. Com o objetivo de esclarecer tal postura teórica, Urbano (op.cit.,
p.27) faz uma abordagem conceitual, primeiramente em relação ao meio.
Para o teórico, a comunicação verbal é “produzida e transmitida ‘sonoramente’
pela boca e recebida pelo ouvido, e produzida e transmitida ‘graficamente’ pelas
mãos, que se utilizam do suporte físico papel ou similar”, sendo recebida
visualmente.
Em relação à concepção, Urbano (2006) afirma que :
Nessa dimensão concepcional, as manifestações verbais, quer
fônicas, quer gráficas, são determinadas por condições e cumprem
procedimentos, usos e finalidades que revelam características e
propriedades mais ou menos estáveis. (p.29)
A concepção é vista como segunda perspectiva, intrínseca ao enunciado e se
realiza por meio de situações comunicativas, ou contextos situacionais e
extralinguísticos. Em trabalho posterior, Urbano (2011, p.44) lembra que tal
concepção é mostrada por Koch e Oesterreicher por intermédio de um gráfico
estabelecendo os polos de imediatez e distância comunicativas e entre eles, o
93
continuum representado pelos textos com maior ou menor grau de oralidade e/ou
escrituralidade . Temos assim textos:
a) produzidos oralmente: conversação casual entre amigos,
conversação mais ou menos formal, conversação telefônica,
consulta médica, mesa redonda, apresentação pessoal,
entrevista pública, sermão, conferência universitária sem ou com
manuscrito, ato jurídico no tribunal e inúmeras outras situações;
b) produzidos graficamente: bilhete para colega em sala de aula,
conversação eletrônica, carta familiar privada informal,
correspondência formal, entrevista publicada, manuscrito prévio
de conferência, artigo de fundo, artigo científico, peças
processuais, leis e inúmeras outras situações. (URBANO, 2011,
p.45)
Há afinidades e relações de preferência que se dão, respectivamente, entre a
concepção falada e o meio sonoro (conversa privada), assim como entre a
concepção escrita e meio gráfico (artigo de uma revista). No entanto, existem
combinações concepção escrita + meio sonoro (sermão religioso) e concepção
falada + meio escrito (carta particular). Exatamente nessa afirmação que se justifica
o tema de nossa pesquisa, pois as cartas entre escritores são produzidas em um
meio gráfico, porém, semelham-se, por meio de estratégias, a uma conversa ora
informal, ora formal. Verificaremos o quão frequente tal fato evidencia-se nas cartas
dos dois escritores Mário de Andrade e Manuel Bandeira.
O princípio vigente em todas as formas de expressão, independentes de sua
concepção, é a possibilidade da transferência do meio típico de sua realização para
outro meio. Um artigo de uma revista (escrito + gráfico) pode ser lido em voz alta e
uma conversa privada pode ser fixada por meio da escrita. Também uma carta
privada (falado + gráfico) pode ser lida em voz alta, como uma conferência
(escrito+sonoro) pode ser registrada graficamente.
94
Nas palavras de Koch e Oesterreicher (2007), temos:
De fato, o princípio predominante é que todas as formas de
expressão, independentes de sua concepção, podem ser transferidas
da sua realização medial típica para outro meio. Desse modo, um
artigo de um periódico (escrito+gráfico) pode ser também lido em voz
alta, da mesma forma uma conversa confidencial (falado+fônico)
pode ser transcrita. Podemos também entender que uma carta
privada (falado+gráfico) pode ser lida em alta voz, ou mesmo um
discurso para festas (escrito+fônico) pode ser registrado
graficamente. (p.22)
Na tentativa de esclarecer o processo de estabelecimento do continuum,
elaboramos o quadro a seguir:
A mudança para outro meio de realização poderá determinar nova classificação
para o gênero. A combinação entre concepção e meio parte da perspectiva cultural e
histórico-linguística do enunciador.
Neste ponto, retomamos Urbano (2011), que fixa objetivamente suas
interpretações e compreensão sobre a produção textual dentro da teoria do meio e
da concepção. Assim, enfoca as situações teoricamente polarizadas da língua falada
e escrita prototípicas:
Gênero Concepção Meio eventual de realização
Outro meio eventual (transposto) realização
Artigo Escrita Gráfico Sonoro
Conversa Falada Sonoro Gráfico
Carta pessoal Falada Gráfico Sonoro
Sermão religioso Escrita Sonoro Gráfico
Figura 07 – Continuum e possíveis transposições de “meios”
95
A língua falada prototípica, a língua falada propriamente dita, é
uma atividade social verbal de produção de texto, em interação face
a face (concreta ou virtualmente apenas pela voz; graças a um meio
mediato, como gravação, telefone, rádio etc.). É realizada e
transmitida oralmente e captada acusticamente graças a um sistema
de sons articuláveis, no tempo e espaço reais, em contextos naturais
de produção, incluídos outros elementos de natureza corporal, que
prenchem, em teoria, todas as condições linguístico-textual-
discursivas concebidas para um texto falado.
Em outras palavras, possui, do ponto de vista do meio, caráter
fônico, e do ponto de vista concepcional, as condições de produção,
que vão determinar as estratégias de estruturação e imprimir as
marcas de verbalização ideiais de um texto essencialmente falado.
(URBANO, 2011, p.48)
A língua escrita prototípica, a língua escrita propriamente dita, é
uma atividade social verbal de produção de texto, em interação
abstrata não face a face. É executada graficamente pela mão e
captada pelos olhos, graças, basicamente, a um sistema de letras
articuláveis, chamado alfabeto, complementado por sinais de
pontuação, de acentuação, numéricos etc., que preenchem, em
teoria, “todas as condições linguístico-textual-discursivas” concebidas
para um texto escrito. Em outras palavras, possui, do ponto de vista
medial, caráter gráfico e, do ponto de vista concepcional, as
condições de produção, que vão determinar as “estratégias de
estruturação” e imprimir as “marcas de verbalização” ideais de um
texto essencialmente escrito. (op.cit.p.48-49)
Já no campo do continuum, isto é, fora dos extremos prototípicos da língua
falada e da língua escrita, não há como atribuir aprioristicamente classificações e
denominações fixas, podendo-se falar de modo genérico em textos “híbridos”, ora
mais próximos da imediatez ou oralidade ora mais próximos da distância ou
escrituralidade. Trata-se, nesse sentido, da mistura de elementos diversos que
compõem um texto, ou seja, de verdadeiro amálgama textual.
96
Na língua falada prototípica, realidade excepcional, o texto (ficando com as
denominações da própria teoria) seria duplamente falado: falado, porque
medialmente sonoro, e falado, porque concepcionalmente falado. Por outro lado,
paralelamente, na língua escrita prototípica, realidade excepcional, o texto seria
duplamente escrito: escrito, porque medialmente gráfico, e escrito, porque
concepcionalmente escrito.
E o texto híbrido, realidade ordinária e normal, independentemente do meio
(sonoro ou gráfico), é o texto misto, excepcionalmente falando.
Neste trabalho, verificaremos se as cartas entre escritores, contidas em
Itinerários, mesmo realizadas de forma gráfica, tentam reproduzir, ainda que
parcialmente, um discurso falado caracterizado por marcas da língua falada e,
especificamente, pelos marcadores de atenuação, isto é, se produzem, em
proporções e por razões e/ou motivações diferentes, textos híbridos.
Embora Mário de Andrade e Manuel Bandeira não estabeleçam uma interação
em tempo real com Alphonsus de Guimaraens Filho, assumem seus papéis
comunicativos, produzindo mensagens, que se referem a objetos e circunstâncias de
uma realidade extralinguística comum aos escritores, o que será detalhado adiante.
Há necessidade de um conjunto de conceitos que possibilite determinar com
maior exatidão o status teórico de cada um dos fenômenos conceituais de oralidade,
determinando suas especificidades.
Koch e Oesterreicher (2007, p.23) lembram com Coseriu (1981) que a
linguagem é uma atividade humana universal que se realiza individualmente, mas
sempre seguindo técnicas historicamente determinadas. Nessa linha de
considerações, distinguem três níveis de linguagem: universal, histórico e individual,
97
que, de alguma forma, subsidiam indiretamente o suporte teórico da análise dos
textos, objeto da tese.
Os aspectos universais da oralidade e da escrituralidade, conceitualmente, não
podem ser entendidos de forma adequada apenas a partir de uma perspectiva
puramente linguística, pois estão relacionados intimamente com as circunstâncias
comunicativamente relevantes, ou seja, extralinguísticas (contexto).
Os participantes de um ato interativo estabelecem um contato entre si, durante
o qual, de maneira alternativa, assumem papéis comunicativos de locutor e
interlocutor, produzindo uma mensagem, um discurso, que se refere a objetos e
circunstâncias de uma realidade extralinguística.
O objeto do discurso das cartas entre escritores, em sua grande parte, são os
poemas de Alphonsus de Guimaraens Filho, cuja forma e escolhas lexicais são
criticadas principalmente por Mário de Andrade, estabelecendo assim o contexto
epistolográfico.
A produção do discurso pressupõe um difícil trabalho de formulação que se
encontra em uma zona de tensão entre a linearidade dos signos linguísticos, as
normas da linguística e a completa realidade extralinguística multidimensional. O
gráfico a seguir intenciona reproduzir esse trabalho de formulação do locutor e
interlocutor:
Locutor Interlocutor
Linearidade dos signos linguísticos
Normas da língua
Realidade extralinguística
Formulação do discurso
Figura 08 – Formulação do discurso
98
Locutor e interlocutor estão envolvidos nos campos dêiticos pessoais, espaciais
e temporais em determinados contextos e em determinadas condições emocionais e
sociais.
Cabe ressaltar que, em todas as instâncias de comunicação, interagem muitas
variáveis, que fornecem uma escala de condições de comunicação baseada na
concepção do continuum entre oralidade e escrituralidade. A partir dessa ideia, cabe
afirmar que o continuum se estabelece graças às condições de comunicação e suas
múltiplas variáveis e parâmetros.
Koch e Oesterreicher (1985) afirmam que a caracterização das realizações
linguísticas é a base da concepção do continuum falado-escrito e que:
[...] é possível verificar que seu posicionamento no contínuo
concepcional resulta da cooperação de diversos parâmetros
comunicativos: relação social, número e situação espaço-temporal
dos parceiros de comunicação; troca entre os locutores; fixação ao
tema; grau de privacidade do ato comunicativo;espontaneidade e
cooperação; o papel dos contextos linguísticos, situacionais e
socioculturais (conhecimento compartilhado, valores e normas
sociais etc.) (p.158)
Os autores (op.cit. p.159) citam as condições de comunicação em que se
apresenta a chamada oralidade extrema em oposição a escrituralidade, sintetizadas
no quadro a seguir :
99
Koch e Oesterreicher (1985) reiteram que as condições de comunicação não
devem ser vistas de forma linear, mas sim dentro de um processo de combinação de
muitas variáveis.
Partindo desse princípio de combinação e imaginando um espaço composto
por diversas dimensões entre os dois polos, Koch e Oesterreicher (2007) ,
apresentam 10 parâmetros ou condições comunicativas, a saber8:
A) grau de privacidade – o número de interlocutores, a existência de
um público e o nível de importância do texto, exemplos:
discursos, debates;
B) grau de familiaridade entre os interlocutores – depende do nível
de conhecimento entre os interlocutores e o conhecimento prévio
dos mesmos;
C) grau de envolvimento emocional – estabelecido pelo interlocutor
(afetividade) e ou pelo objeto da comunicação (expressividade);
D) grau de ancoragem (anclaje) dos atos comunicativos na situação
e na ação;
8 Identificaremos os parâmetros com letras maiúsculas para que, quando da análise , na PARTE II, não os confundamos com os trechos das cartas exemplificados.
Oralidade Escrituralidade
Dialogicidade – distribuição de papéis
entre os parceiros
Monologicidade
Cooperação – locutor e interlocutor
negociam progressão do conteúdo
Desconecção entre produção e recepção –
produtor deve se preocupar com o interesse do
interlocutor.
Comunicação face a face Distanciamento espacial-físico.
Espontaneidade – planejamento ocorre
durante o próprio ato da expressão
linguística
Artificialidade - Linguagem mediada,
planejamento prévio,dissociação entre
produção e recepção
Expressividade e participação afetiva Expressividade e participação afetiva restritas
Figura 09 – Condições de comunicação da oralidade e escrituralidade extremas
100
E) campo referencial – a relação que se estabelece entre o
distanciamento dos objetos e pessoas referidos com a origem do
falante;
F) imediatez física dos interlocutores – comunicação face a face em
relação à distância física no sentido espacial e temporal;
G) grau de cooperação – mede as possibilidades de intervenção dos
interlocutores no momento da produção do discurso;
H) grau de dialogicidade – possibilidades e frequência;
I) grau de espontaneidade da comunicação;
J) grau de fixação temática. (p.26-27)
Ao conjunto de parâmetros, Urbano (2006) cita, logo no começo do seu artigo
(p.19), Medeiros (2003, p.188) para quem as condições determinam o grau de
formalidade ou informalidade do texto.
Koch e Oesterreicher buscam um conjunto de conceitos que permite
determinar, com maior exatidão, o status teórico de cada um dos fenômenos
conceituais de oralidade, indicando especificidades.
Com exceção do parâmetro proximidade física (letra F), todos os demais
apresentam natureza gradual. Assim, para cada forma de comunicação, ou para
cada gênero, existem condições de combinações concretas de comunicação. Em
relação à carta pessoal, os autores destacam as seguintes características
prototípicas:
a) privacidade, b) familiaridade entre os interlocutores, c) relação
emocional relativamente forte, d) ausência de contextualização com
a situação, quiçá um contexto limitado a uma situação específica, e)
impossibilidade, em princípio, de dêixis centrada na origem do
falante, exceto com respeito ao ego, f) distância física, g)
impossibilidade de cooperação durante a produção, h) dialogicidade
estritamente regulada (pela troca de correspondência), i)
espontaneidade relativa, j) desenvolvimento temático livre. (KOCH;
OESTERREICHER, 2007, p.27)
101
Esses pontos serão discutidos quando de nossa análise voltada
especificamente para as cartas entre escritores.
Contudo, em relação ainda a tais parâmetros, reafirmamos com Koch e
Oesterreicher que as formas de comunicação ou gêneros são determinadas pelas
combinações dos parâmetros e condições comunicativas como as que
apresentamos anteriormente de “A – J”, estabelecendo dessa forma um continuum
entre os polos da oralidade e da escrituralidade, ou o do falado e escrito, como
explicitamos no diagrama por nós elaborado:
imediatez comunicativa distância comunicativa
condições comunicativas
Na sequência, a fim de melhor fixação de noções básicas, retomamos o artigo
inicial de Koch e Oesterreicher (1985) em que apresentam o conceito de linguagem
da imediatez ou oralidade, como sendo:
[...] a “combinação dos fatores “diálogo”, “troca livre entre os
participantes”, “familiaridade com o parceiro”, “interação face-to-
face”, “desenvolvimento livre dos temas”, “caráter privado de
familiaridade”, “espontaneidade”, “caráter participativo mais intenso”,
“entrelaçamento com a situação”, etc. caracteriza o polo “oral”.
(p.160)
falado/oralidade escrito/escrituralidade
continuum
Espaço multidimensional
Figura 10 – Parâmetros e condições comunicativas – espaço multidimensional
102
E a noção de distância comunicativa ou escrituralidade como a combinação de
fatores opostos a estes, a saber:
“monólogo”, “inexistência de câmbio entre os locutores”,
desconhecimento do parceiro”, “distância espacial e temporal”, “tema
fixo”, “caráter público”, “reflexibilidade”, “caráter participativo pouco
intenso”, “não entrelaçamento com a situação” etc. (KOCH;
OESTERREICHER, 1985, p. 160)
Ao retomarmos o diagrama, podemos visualizar o conceito de continuum
concepcional, como sendo:
o espaço dentro do qual os componentes linguísticos da imediatez e
da distância, servindo como parâmetros específicos, misturam-se e
constituem, desse modo, formas de expressão específicas. (ibid,
p.160).
A imediatez e a distância comunicativas representam os polos extremos do
continuum falado/escrito, o espaço multidimensional representa as infinitas
possibilidades das formas comunicativas (gêneros) se desenvolverem. O sujeito
falante reage a partir dessas variáveis, criando estratégias de verbalização, como
veremos a seguir.
As condições gerais e contextuais da imediatez e da distância comunicativa
diferenciam as estratégias de verbalização. Koch e Oesterreicher (2007), apoiados
em Coseriu (1955), apresentam as classes desses contextos:
1) situacional: pessoas, objetos e ações, estados das coisas
perceptíveis na situação da comunicação;
2) cognitivo:
(a) contexto cognitivo individual (conhecimento compartilhado entre
os interlocutores, conhecimento mútuo);
(b) contexto cognitivo geral (conhecimento universal, valores
humanos, relações lógicas,leis físicas e biológicas;
103
3) contexto comunicativo linguístico: pré-conhecimento e pós-
conhecimento do enunciado em questão. (KOCH;
OESTERREICHER, 2007, p.31)
Nas cartas, existe uma relação intensa sobre o contexto comunicativo
linguístico, pois elas apresentam um conteúdo temático que se antecipa e se
reproduz nos enunciados.
4) outros contextos comunicativos:
(a) contexto comunicativo paralinguístico: relacionado à entonação,
rapidez locutiva, intensidade de som;
(b) contexto comunicativo não linguístico: aspectos extralinguísticos,
gestos, mímicas. (ibid., p.31)
Todas as classes dos contextos manifestam um caráter global (analógico). Na
comunicação imediata, todos os tipos de contexto podem entrar em ação, enquanto,
na comunicação à distância, há restrições que dizem respeito aos contextos
analógicos.
Na situação de distância física dos interlocutores e de pouca interação
discursiva, não se pode recorrer nem ao contexto situacional, nem aos contextos
paralinguístico e comunicativo não-linguístico.
No tocante aos planejamentos temático e linguístico, os enunciados de
distância comunicativa manifestam um alto grau de planificação, sendo assim
considerados elaborados, enquanto todas as condições comunicativas
representadas pela imediatez favorecem ou impõem um grau de elaboração menor.
Na visão de Koch e Oesterreicher, levando-se em conta o caráter efêmero da
oralidade, tendo o discurso uma fluidez, isso conduz, por um lado, a um discurso
moderado ou parcimonioso, e por outro, a algo fragmentado e incompleto. Por esse
104
motivo a imediatez comunicativa produz um discurso menos denso e informativo,
conforme representação no quadro a seguir:
meio gráfico meio fônico
denso/texto prototípico menos denso/menos textual
escrituralidade conceitual oralidade conceitual
distância comunicativa
imediatez comunicativa
3.2 Língua falada e língua escrita
Urbano (2011, p.40) afirma que as modalidades da língua falada e escrita
possuem forma e estrutura diferentes. Complementa ainda que as propriedades,
características e condições de produção também são diferentes, assunto discutido
no capítulo anterior.
Embora nosso corpus seja escrito em relação ao aspecto de meio e híbrido,
de modo geral, quanto à concepção, como detalharemos na análise, as cartas
entre escritores ocupam um lugar especial no continuum estabelecido entre
oralidade e escrituralidade.
Iniciaremos este capítulo apresentando discussões, principalmente sob a ótica
de Urbano (1999, 2000, 2011), de aspectos que envolvem a modalidade falada da
língua.
Um de seus enfoques é classificar as características da língua oral em
intrínsecas, inerentes a sua natureza, como ser sonora e necessitar da presença dos
interlocutores e extrínsecas, por ocorrerem na fala, mas também na escrita, “são
características da própria linguagem”. (URBANO, 2000, p.98).
Figura 11 – Densidade informativa do meio sonoro
105
As características intrínsecas, com noções esboçadas em Urbano (2000), são
aprofundadas em Urbano (2011, p.72), como sendo: “inerentes aos traços
prosódicos, como a entonação, o ritmo, a altura, a velocidade, a intensidade silábica
e/ou segmental, timbres (feminino, masculino, infantil); problemas articulatórios etc.”
Para o pesquisador, as características gerais, de ordem intrínseca ou
extrínseca, apresentam-se especificamente dentro dos eixos: fonético,
morfossintático, sintático e lexical, como reproduziremos, parcialmente, adiante.
Como introdução geral, o teórico lembra:
a entonação afetiva, manifestada, entre outras formas, pelas
intensificações da voz, a frequência de repetições ( de nível
gramatical, lexical ou sintático); as constantes pausas, hesitações,
interrrupções e correções; o uso de dêiticos pessoais, espaciais e
temporais; os marcadores conversacionais ou discursivos típicos; as
construções elípticas e anacolúticas; e as reações e feeedbacks da
audiência. (URBANO 2000, p.105-127; 2011, p.80-132)
3.2.1 Eixo fonético
Urbano (2011) analisa a transcrição conversacional de um dos inquéritos
extraídos do Projeto NURC/SP e observa seis fenômenos:
(1) que a cadeia linear da fala é, de maneira geral, quase contínua,
embora, na transcrição, se tenha tentado respeitar as palavras
como unidades discretas. As autointerrupções e suspensões da
voz são imprevisíveis;
(2) que a cadência tem ritmo particular, vinculado ao caráter
temporal da fala;
(3) que ocorrem articulações sonoras incompletas, indefiníveis ao
nível puramente acústico, sendo, porém, com frequência,
decodificáveis facilmente, graças apenas ao contexto situacional
e/ou cotexto;
106
(4) que há ocorrência de muitas operações fonológicas, variações
morfofonêmicas, como: todas as possibilidades, onde o /s/ em
situação intervocálica é pronunciado como /z/: todaz as
possibilidades;
(5) que a entonação é bastante matizada. A entonação, como os
demais traços suprassegmentais, representa um importante e,
por vezes, decisivo papel na linguagem oral, não só no aspecto
da expressividade, como também frequentemente no aspecto
intelectivo;
(6) que há frequentes alongamentos vocálicos e excepcionalmente
consonânticos, como em ia::, por::que::,u::ma. (p.97)
Além desses fenômenos, o pesquisador elenca ainda mais três: a qualidade e
a dinâmica da voz, redução de ditongo ou monotongação (baxo por baixo, mantega
por manteiga, primero por primeiro), redução de hiato a ditongo ou a vogal simples
(compriender ou comprender por compreender) e as reduções aferéticas,
sincopadas e apocopadas (tá por está, to por estou, tava por estava, , num por não,
própio por próprio, pra por para). (URBANO, 2011, p.98)
Embora Urbano, tanto nas suas obras mais específicas (2000 e 2011), como
em outras, não tenha dedicado um tópico especial ao meio gráfico e à ortografia,
não deixou de levantar a questão e sua relação com o aspecto fonético. Assim, ao
tocar na pronúncia “pra” em lugar de “para” e “tô” por “estou”, considera:
Algumas dessas formas, como pra, to, mas sobretudo o pra já estão
sendo usadas com frequência na língua escrita, representando a
vocalização própria da articulação falada. Por isso, julgamos difícil
aceitar nos dicionários de frases feitas e expressões populares, que,
em princípio, deveriam reproduzir, quanto possível, essa prosódia, a
forma “para”, como nos seguintes registros:
suar para burro
vá contar para outro
pegar alguém para Cristo
107
Nessa linha de observações, é interessante retomar aqui a gíria tai,
lembrando sua evolução: aí está > está aí > tá aí > aí.(URBANO,
2011, p.98)
A presente observação sobre grafia e ortografia se explica, não só porque
grafia e ortografia têm muito a ver com o eixo fonético, mas sobretudo, porque Mário
de Andrade já mantinha posição muito clara sobre essa questão, desde a década de
20, como detalhamos na p.70, em “2.1.Discutindo a linguagem de Mário de
Andrade”.
3.2.2 Eixo morfossintático
Para Urbano (2011, p.98), a língua oral, embora seja mais simples, é
frequentemente mais analítica. O pesquisador ressalta também que tal modalidade
“possui usos próprios em relação à língua escrita padrão” , além de ser repetitiva e
fazer uso de implícitos e de outros recursos, tanto suprassegmentais como
situacionais.
Há, na língua oral, um dinamismo maior do que na língua escrita, aspecto este
apresentado em Urbano (2000, p.111). Tal dinâmica é fruto de alguns aspectos,
entre os quais a tentativa de transpor obstáculos de toda a ordem no momento da
fala espontânea, como também “a busca constante da expressividade, do
envolvimento com o interlocutor e da expressão mais concreta; pela economia de
formas etc.” (URBANO, op.cit., p.111). Tal expressividade se faz representar pelo
uso recorrente de palavras e partículas sem conteúdo significativo: que, é que,
“bordões” fáticos e marcadores conversacionais: olha!, viu?, né?
Por meio de uma apresentação mais sintética, o pesquisador cita as formações
populares sufixais de palavras, que por vezes na língua oral adquirem um caráter
108
depreciativo ou pejorativo, como: papudo, gozação, fedengoso.
Em relação à categoria ou a classes de palavras Urbano elenca vários casos,
como substituição de pronomes oblíquos por pronomes retos sujeitos, adjetivo em
grau analítico, utilização do “você” (3ª.pessoa) pela 2ª. pessoa do discurso, certas
classes gramaticais usadas em construções intensificadoras.
3.2.3 Eixo sintático
A língua oral se realiza sintaticamente de forma diferente da língua escrita,
pois esta se explica por meio de processos lógicos enquanto a sintaxe daquela
“deve ser estudada à luz dos fatores psicológicos (subjetividade, afetividade,
motividade) e pragmáticos” (URBANO, 2000, p.111), nem sempre de uma lógica
formal.
A busca pela expressividade e aspectos como a espontaneidade e a
imprevisibilidade explicam a maior quantidade de construções frasais na fala que na
escrita.
Sendo a interação o fator mais importante da fala, isso obriga o falante, muitas
vezes, a desobedecer regras sintáticas, provocando no texto falado “não só falsos
começos, truncamentos, fragmentações, correções, hesitações, mas também
inserções, digressões, repetições e paráfrases, com função cognitivo-interacional de
grande efeito.” (ibid., p.111).
Além da ordem direta, a qual Urbano afirma se destacar na língua falada e
popular, outros aspectos sintáticos são estudados pelo autor, como os recursos do
egocentrismo, colocação pronominal, construções enfáticas e outros, que daremos
destaque na análise.
Nosso estudo se direcionará, no próximo capítulo, para os marcadores
conversacionais ou discursivos típicos, que se situam nos eixos morfossintático e
109
sintático e que indicarão a intenção do locutores em construir um discurso dialógico,
mais próximo da língua falada e da imediatez.
3.3 Marcadores conversacionais e de atenuação
Em Análise da conversação, Marcuschi (1998, p.62) considera marcadores
conversacionais “palavras ou expressões altamente estereotipadas, de grande
ocorrência e recorrência”. O teórico ainda acrescenta que tais recursos verbais não
agregam informações novas para o desenvolvimento do tópico, porém promovem
sua contextualização.
Galembeck et al (1990, p.71), citam Miguel (1984, p.1) ao iniciarem a discussão
sobre o tema:
Denominamos marcadores conversacionais às palavras e
expressões que permeiam a linguagem falada para proceder a
abertura, continuidade e fechamento de um ato converscional; para
marcar a pontuação e mudança de assunto ou tópico; para marcar
mudança de interlocutores, para despertar nestes interesses e
curiosidades e para reforçar os pensamentos expostos, tornando a
linguagem falada dinâmica e expressiva.
Para Castilho (1998, p.46-47) convencionou-se denominar marcadores
conversacionais a:
[...] itens lexicais e pré-lexicais, ou mesmo expressões mais
complexas que recorrem com certa frequência[...] verbalizam o
monitoramento da fala, sendo frequentemente vazios de conteúdo
semântico, portanto irrelevantes para o processamento do assunto,
porém altamente relevantes para manter a interação.
Na visão de Urbano (1999, p.81), outros aspectos merecem ser destacados:
110
[...] trata-se de elementos de variada natureza, estrutura, dimensão,
complexidade semântica e sintática, aparentemente supérfluos ou
complicadores, mas de indiscutível significação e importância para
qualquer análise de texto oral.
Ainda na visão de Urbano (1999, p.85), apesar de esses elementos serem de
grande frequência, não integram o conteúdo cognitivo do texto, mas articulam as
unidades cognitivo-informativas.
Segundo o pesquisador, os marcadores conversacionais são elementos que
estruturam o texto, sinalizando e orientando os interlocutores em relação ao discurso
(ibid., p.99). Concordamos com o pesquisador que tais marcadores revelam e
marcam as condições de produção do texto.
Nesse sentido, as cartas, objeto do presente trabalho, embora sejam
produzidas graficamente, carregam marcas de representação interacional.
Especialmente, trataremos dos marcadores de atenuação, também denominados
por Marcuschi (1998, p.73) de sinais de abrandamento, marcas responsáveis por
minimizar riscos inerentes à comunicação.
Os conceitos ora apresentados trazem em comum o objetivo da interação
alcançado por meio dos marcadores conversacionais. Tais marcas facultam não só a
manutenção do turno em se tratando da língua falada, como também se fazem
importantes ao indicar a força ilocutória, proporcionando e mantendo a cooperação,
nisso incluindo-se o trabalho de face, bem como sua preservação como se discutirá
no próximo capítulo.
Em seu trabalho, Rosa (1992, p.34) procura estabelecer, baseada em
Marcuschi, tipos de procedimentos que são utilizados como marcadores de
atenuação: forma passiva, marcadores de distanciamento, marcadores de rejeição,
verbos e advérbios parentéticos, indagações propostas e evasivas (hedges).
111
Tais recursos englobam tanto os chamados marcadores de distanciamento,
para Marcuschi (1998, p.73), um tipo de marcador de abrandamento, e para Rosa
(op.cit., p.41) são aqueles que “promovem o apagamento da instância da
enunciação no enunciado”; como também os marcadores que se fazem presentes
no enunciado, denominados pela pesquisadora de “marcas de enunciação”. São
esses que nos interessam para o desenvolvimento de nosso trabalho e sobre os
quais discorremos a seguir, sob o enforque de marcadores de atenuação.
3.3.1 Marcadores de atenuação
Conforme Rosa (1992, p.44), os marcadores de atenuação são bastante
numerosos, a saber: marcadores de opinião, hedges, marcadores de rejeição e os
marcadores metadiscursivos.
3.3.1.1 Marcadores de opinião
Tais marcadores representam a incerteza do locutor enunciador a respeito do
que diz. Para Rosa (op.cit., p.45), expressões formadas por verbos como: eu acho,
eu creio, eu suponho, me parece, além de indicarem incerteza também podem
representar discordância ou ainda uma forma particular de interpretação.
Urbano (1999, p.92-93) analisa vários marcadores, entre eles: “eu acho que”,
como específico, porém, não único na atitude do falante em relação ao que vai dizer.
Os marcadores apresentam funções genéricas ao articular e estruturar o texto
e funções específicas, no monitoramento e na busca de aprovação discursiva do
falante. Em relação a esta última, Rosa (1992, p.45) explica que os verbos
epistêmicos: “se referem ao saber do locutor enunciuador e à valiação que faz dos
112
seus próprios enunciados, com base nesse saber”. A pesquisadora cita como
exemplo:
(...) depois então trata-se de obedecer também às exigências do
código de trânsito suponho eu ... registrar o carro (...) (ROSA, 1992,
p.45)
Rosa (op.cit., p.63) diferencia, em seu trabalho sobre os marcadores de
atenuação, os chamados marcadores prefaciadores de opinião e de rejeição que,
em sua opinião, minimizam “os riscos e obrigações decorrentes da interação verbal
face a face, que simulem o mesmo efeito.” Como exemplo : “Não quero ser
detalhista mas acho que falta uma vírgulan neste parágrafo.” (op.cit., p.75)
Em sua pesquisa, Rosa (op.cit., p.64) considerou certas expressões
prefaciadoras, relacionando-as à “moldura cognitiva, que prepara o que vai ser dito
adiante”, em se tratando dos marcadores de opinião. De forma que, além dos
marcadores acima elencados, acrescentamos ainda marcadores frásicos ou
oracionais: o que eu sinto é o seguinte, é uma opinião particular minha, a minha
visão do problema , eu tenho a impressão que, eu fico em dúvida.
De maneira geral, tais marcadores frasais anunciam um ponto de vista
diferente, ao mesmo tempo que remetem a um quadro cognitivo tranquilizador para
o interlocutor. Especificamente, a expressão que traz o termo “impressão” afasta a
opinião técnica e traz uma visão mais subjetiva sobre o tópico tratado. Contudo, tais
marcas podem denotar além dessa moldura específica, um ponto de vista negativo,
quebrando determinadas expectativas do interlocutor e também eliminando por parte
deste qualquer possibilidade de objeção, caso ocorra uma reação não favorável.
113
3.3.1.2 Hedges
Esses elementos sinalizam atividades de planejamento verbal e, segundo
Rosa (1992, p.49), “modificam a força das asserções em que aparecem, o que
atenua a impositividade que deles pudesse decorrer”. Apresentam-se nas seguintes
expressões: assim, quer dizer, vamos dizer, digamos, digamos assim, sei lá, não sei,
como também advérbios vazios de significação: realmente, naturalmente,
evidentemente.
Segundo Rosa (op.cit., p.50), o marcador assim, bem como os verbos
declarativos quer dizer, vamos dizer, digamos e digamos assim, nem sempre são
atenuadores.
Também acrescenta a teórica que o marcador não sei, ao finalizar uma
unidade, introduz forte grau de incerteza sobre o que foi dito. Outros hedges que
independentes da posição no enunciado, também expressam incerteza: talvez,
quem sabe, sei lá, possivelmente e provavelmente.
Ao expressar sua incerteza sobre o modo de manifestação do que é expresso
pela unidade discursiva a que se refere, o locutor realiza uma avaliação de natureza
qualitativa, o que é representado pelos hedges: numa certa medida, de certa forma,
de uma certa forma, de um modo geral, numa certa situação (quer dizer), assim em
termos gerais, de certa maneira, de uma certa maneira, de certo modo, falando bem
em termos gerais e muito por cima assim dizendo como a coisa funcionaI, elencados
a partir do corpus analisado por Rosa (op.cit., p.55).
114
3.3.1.3 Marcadores de rejeição
Às pequenas orações que objetivam controlar, por antecipação, possíveis
reações desfavoráveis, funcionando como prefácio, Rosa (1992, p.57) conceitua de
marcadores de rejeição. Tais prefácios funcionam:
como marcador de atenuação, preserva a face do locutor enunciador,
restringindo a gama de respostas desfavoráveis à sua intervenção, e
preserva a face do interlocutor afastando, de antemão, interpretações
danosas à interação. (ibid., p.57)
Expressões como: se não me falha a memória, que eu me lembre, que eu me
lembre no momento, que eu saiba e se não estou enganado também são
apontadas como marcadores de rejeição e “exercem um controle sobre o
comportamento verbal do interlocutor, restringindo o modo pelo qual este pode
responder.” (ibid., p. 75)
A pesquisadora cita o caso do marcador mas que, ao ser usado, pode
funcionar como marcador de rejeição de controle específico, ao eliminar uma ou
duas respostas do interlocutor ou como marcador de rejeição de controle geral,
eliminando todas as respostas desfavoráveis do interlocutor, fornecendo uma saída
ao locutor enunciador.
Outras expressões, denominadas frases estereotipadas, funcionam como
marcadores prefaciadores de rejeição, conforme Rosa (op.cit., p.76), tais como: que
eu me lembro, que eu saiba, que eu me lembre. Tais marcadores, de maneira geral,
colocam em evidência a incerteza do locutor enunciador, entretanto podem ser
considerados marcadores de rejeição de controle geral por eliminar todas as
objeções que viriam a seguir do interlocutor.
115
3.3.1.4 Marcadores metadiscursivos
Prefácios e pequenas orações que contêm verbos declarativos e que
anunciam uma possível quebra de expectativas, e um possível ato ameaçador de
face dos interlocutores são entendidos por Rosa (1992, p.59) por marcadores
metadiscursivos. A teórica apresenta exemplos como: antes disso eu quero dizer
uma coisa. Tais marcas designam uma maneira de preparação para o que se vai
dizer, o anuncia para a realização de fato. (ibid., p.69)
Ao anunciar o que se vai dizer, tal ação torna-se menos ameaçadora à ação
subsequente. O uso dos verbos declarativos: declarar e avisar e expressões como:
eu diria mais, eu poderia só complementar, acrescentaria apenas previnem o
interlocutor sobre a continuidade ou intensificação do que se está falando.
Reiteramos que a principal função dos marcadores conversacionais é a
interação e que, especificamente, os marcadores de atenuação funcionam como
elementos modalizadores, indicando o grau de adesão do locutor enunciador a seu
enunciado. Ao elencarmos tais marcas nas cartas, objeto do presente trabalho,
pretendemos comprovar que Mário de Andrade e Manuel Bandeira tinham completo
envolvimento com as missivas e sabiam da importância delas para o
desenvolvimento estético de Alphonsus de Guimaraens Filho.
116
Capítulo 4 - Estratégias de cortesia e preservação de face
Embora cada texto apresente características que o situe na linha do
continuum entre os polos de oralidade e escrituralidade, é notório que a carta em
princípio é um gênero que se posiciona no polo da escrituralidade.
Cabe observar que a conversação, conforme Marcuschi (1998), é a primeira
forma de linguagem a que estamos expostos e se contitui basicamente de cinco
aspectos :
(a) interação entre pelo menos dois falantes;
(b) ocorrência de pelo menos uma troca de falantes;
(c) presença de uma sequência de ações coordenadas;
(d) execução numa identidade temporal;
(e) envolvimento numa “interação centrada”. (p.15)
Objetivamos mostrar, neste trabalho, que as estratégias de cortesia utilizadas
pelos escritores Manuel Bandeira e Mário de Andrade, para amenizar os atos de
ataque das faces, denotam que as cartas simulam uma conversação face a face,
espécie de monólogo conversacional. A preocupação maior dos amigos escritores é
manter a face, e consequentemente, a harmonia na interação, de maneira que os
marcadores de atenuação são os intrumentos linguísticos utilizados para esse fim
(abordaremos a questão da face no capítulo 4.2. “Discutindo a preservação de
face”).
É mister que, em todas as sociedades humanas, se verifique a ocorrência de
comportamentos corteses, permitindo que os interlocutores mantenham o mínimo de
harmonia durante a interação.
117
Entendemos que polidez indica norma social e/ou uma série de
comportamentos sociais que visam à qualidade da interação. A cortesia verbal é o
conjunto dessas normas que se concretizam pela linguagem.
Para Kerbrat-Orecchioni (2004, p.39), a cortesia é um fenômeno universal:
[...] em todas as sociedades humanas se constata a existência de
comportamentos de urbanidade que permitem manter um mínimo de
harmonia entre os interactantes, apesar dos riscos e conflitos
inerentes de toda interação.
Para a pesquisadora, a cortesia, embora sendo um fenômeno universal,
apresenta formas e condições de desenvolvimento que variam de sociedade para
sociedade, ou seja, em sua visão, a cortesia abarca comportamentos sociais e
linguísticos diversos nas diversas sociedades. Esses comportamentos contribuirão
para a harmonia no ato interacional.
Este capítulo apresenta discussões sobre estratégias discursivas que visam à
cortesia bem como à preservação da face.
4.1 Discutindo a cortesia
Conforme Silva (2008, p.157), a linguagem, sendo instrumento com o qual
construímos a interação, necessita de processos que regulem tal ação, o qual
nomeamos de cortesia.
Em seus estudos, aponta Aquino (2008, p.355) que as ações corteses
remontam à Idade Média, e eram vistas como o princípio que regulava a interação
passível de tensões.
118
Em toda situação comunicativa, o locutor-enunciador, além de desejar ser
compreendido e aceito por seu interlocutor, anseia transmitir a ele uma imagem
positiva, construindo um discurso cortês:
Podemos dizer que a cortesia verbal encontra-se primeiramente
relacionada a um modo ‘refinado’ de fala, associado a rituais nos
quais a demonstração da existência de uma hierarquia social é
fundamental. Em segundo lugar, além de propiciar a construção de
uma imagem de refinamento para o locutor, conferindo-lhe uma
determinada posição de superioridade sócio-cultural (a posição de
uma pessoa cortês, distinta), a cortesia linguística pode também ser
uma espécie de “exibição de afeto e/ou de gentileza por parte do
locutor que, em determinados rituais de linguagem, procura mostrar
respeito por uma suposta delicadeza emocional do interlocutor e, ao
mesmo tempo, o seu próprio conhecimento, sensibilidade pragmática
e refinamento. (VILLAÇA; BENTES, 2008, p.19-20)
A cortesia é um fenômeno sociocultural e como tal deve ser estudada com
enfoques interdisciplinares, envolvendo antropologia social, sociologia, psicologia,
etc (BRAVO, BRIZ , 2004, p.5). Corrobora tal ideia Almeida (2008, p.278), ao afirmar
que os nossos valores sociais interferem no modo de avaliarmos as formas de
expressão de determinada pessoa.
Urbano (2008) apresenta uma visão generalizada de cortesia:
Entendemos, inicialmente, mais ou menos empiricamente e de
acordo com o senso comum e com as acepções gerais
lexicográficas, a polidez ou cortesia como o modo e qualidade de
conduta de interações, isto é, nas relações sociais (verbais ou não),
com ou sem reciprocidade, recomendados e sugeridos pelas
convenções socioculturais gerais ou hábitos pessoais dos indivíduos,
decorrentes de sua formação educacional, estabelecidos prévia ou
circunstancialmente ad hoc, durante uma interação. Nesses termos,
relaciona-se com educação, boas maneiras, respeito, bom
comportamento e delicadeza sociais [...].(p.236)
119
Para Fraser (1990, p.219), “a polidez é vista como norma social, como máxima
conversacional e como preocupação com a preservação da face”. Cabe enfatizar
que tal estratégia é utilizada para melhor informar, agradar o outro, preservar-lhe a
imagem. Dessa forma, a polidez é utilizada para preservar o caráter harmonioso da
relação interpessoal, ultrapassando as fórmulas de determinados manuais de
etiqueta.
Urbano (2008, p.240) complementa que cabe ao locutor polido utilizar
estratégias de cortesia em relação ao outro: enaltecendo-o, fazendo-lhe elogios,
colocando-se à disposição, envolvendo-o positivamente, por intermédio de fórmulas
criadas ou ritualizadas. Ou ainda de acordo com Aquino (2008), as tensões podem
ser minimizadas pelo uso de estratégias de cortesia.
Os marcadores de atenuação representam tais fórmulas e comprovaremos, em
nossa análise que a recorrência desses elementos indicará a preocupação com a
cortesia de Mário de Andrade e Manuel Bandeira para com Alphonsus de
Guimaraens Filho.
Sendo o homem um ser essencialmente social, o fenômeno da cortesia data de
tempos remotos, segundo Leite (2008):
A sociogênese do fenômeno denominado cortesia encontra-se em
tempo e em espaço bem distantes dos nossos. A cortesia é
resultante do ‘processo civilizador’ pelo qual passou a sociedade
europeia na mudança de padrões de comportamento do feudalismo
para o absolutismo (Elias,1993). Foi a lenta e gradual transformação
dos cavaleiros feudais em homens cortesãos que ensejou a
mudança de comportamento do homem brutal, guerreiro, que não
tinha maneiras e modos para o relacionamento social pacífico, nem
tampouco jeito para tratar as mulheres, e fez aparecerem nos livros
medievais e romances de cavalaria os preceitos para regular o
comportamento do homem.(p.51)
120
Embora a gênese do fenômeno se relacione ao comportamento do homem,
como ser masculino, a cortesia, como afirma Kerbrat-Orecchioni (2004), é universal,
pois, em todas as sociedades, existem comportamentos que mantêm a harmonia
entre seus interlocutores.
Por outro lado, como lemos na mesma autora, suas formas e condições de
ocorrência variam de acordo com cada sociedade, complementa a autora: “A
cortesia intervém no nível do relacionamento interpessoal e objetiva manter essa
relação em um estado de relativa estabilidade e harmonia.” (KERBRAT-
ORECCHIONI, 2004,p.40)
Acrescenta Leite (2008, p.54) que a cortesia, genericamente, se constitui de
acordos historicamente sociais resultantes de atividades sociais positivas ou
negativas.
Tomando como base o príncípio de que, nas relações interpessoais, é
necessário estabelecer um equilíbrio, a pesquisadora se direciona para a questão da
normatividade que rege tais relações, trazendo à baila uma série de situações
históricas que apontam para a cortesia ou descortesia.
Conviver em harmonia é o conceito encontrado por Leite (op.cit.p.84),
contemplado tanto no passado quanto no presente.
Para Villaça e Bentes (2008):
[...] a cortesia, dentre outros aspectos, estaria relacionada a uma
tomada de atitude por parte do indivíduo que leve ao reconhecimento
de sua distinção em relação ao outro. Neste sentido, o
comportamento cortês, atualmente, seria menos ritualmente
determinado e mais ligado às instâncias subjetivas da interação, aos
tipos de relações que emergencialmente (Bordieu, 1985; Hanks,
1996) podem ser estabelecidas entre os interlocutores, bem como
ligado aos próprios interlocutores, variando também como a polidez,
de cultura para cultura.(p.31)
121
Preti (2008, p.217) ressalta que a cortesia é uma forma de evitar conflitos,
mesmo havendo discordância de opiniões que pode ser causada por várias
questões, entre elas a diferença de faixa etária.
Silva (2008) mostra algumas considerações sobre a noção de cortesia:
Ato de manifestar atenção, respeito ou afeto que uma pessoa tem
por outra, ou, ainda, um conjunto de regras mantidas no trato social
com as pessoas que mostram entre si consideração e respeito. É
evidente que esse conceito embute a ideia de respeito, equilíbrio,
boas maneiras, boa educação e civilidade. (p.163-164)
O pesquisador compartilha com Urbano (2008, p.236) o conceito de cortesia
apresentado no início deste capítulo, a saber:
Como se nota, muitos teóricos têm estudado questões que abordam a cortesia,
contudo, para Kerbrat-Orecchioni (2004, p.40), há correntes divergentes sobre o
tema: Pernot conceitua como linguagem de conotação, enquanto Goffman discute o
tema sob o prisma de atividades de linguagem ou face-work, ideia essa
compartilhada e ampliada por Brown e Levinson e sobre a qual discorreremos com
mais detalhes.
Silva (2008) Urbano (2008)
Conjunto de regras mantidas no trato
social
Modo e qualidade de conduta de
interações nas relações sociais
Figura 12 – Quadro sobre cortesia Silva/Urbano
122
As primeiras teorias sobre cortesia surgem com o princípio de cooperação na
conversação apresentado por Grice (1975), conforme introdução de Bravo e Briz
(2004, p.7).
Kerbrat-Orecchioni (2004) nos diz que não há teoria certa ou errada, desde que
sua aplicação obedeça a dois critérios:
1) alguns termos utilizados pelos linguistas se assemelham, no
entanto, vale ressaltar que polidez não é o mesmo que cortesia;
2) tal conceito se sustentará, se ao ser aplicado ao objeto de
estudo, souber explicar “porque tal comportamento é
considerado cortês ou descortês”. (p.41)
Concordamos com os pesquisadores, pois entendemos que a polidez é um
conjunto de comportamentos sociais, sendo um deles a cortesia, conforme Urbano e
Silva.
Barros (2008) estuda a impolidez e a descortesia, salientando que ambas
pertencem ao mesmo campo semântico da polidez e cortesia, ou seja, implicam
modos comportamentais.
Dizem respeito, portanto às regras sociais que determinam as
relações de comunicação e interação entre sujeitos e que as
qualificam como bem ou mal-educadas. A impolidez e a descortesia
pressupõem, em geral, que os comportamentos sociais
estabelecidos não foram bem aprendidos pelos descorteses ou
impolidos, que as regras sociais não foram corretamente cumpridas
ou mesmo foram rompidas. (p.93)
Urbano (2008) observa que as condutas de cortesia/descortesia se realizam
com mais evidência nas interações face a face, complementando que:
[...] dado que a interação ou interatividade é constitutiva de todo o
texto, a cortesia/descortesia podem se manifestar também em textos
123
produzidos, transmitidos e recebidos à distância, numa interação
menos concreta, sobretudo em textos característicos híbridos
(mistura de fala e escrita), com forte tonalidade de interação face a
face, com enunciatários elevados ao status de interlocutores
concretos pelo enunciador, ainda que virtuais e simulados [...].
(p.241)
Seja na interação face a face ou em textos híbridos, é fato que os interactantes
utilizarão estratégias para tornar seu discurso polido.
A polidez não implica existência de elementos atenuadores, porém, as
estratégias de atenuação implicam polidez (ou a chamada cortesia verbal).
Entendemos que a polidez é mais ampla que a atenuação, porém ambas concorrem
para a preservação da face.
A atenuação implica polidez e ocorre por meio de atenuadores – meios de
atenuação (expressões metacomunicativas- quer dizer, advérbios – às vezes, talvez;
tempos e modos verbais – imperfeito, subjuntivo, é a função interativa de um ato de
comunicação.
A cortesia bem como a polidez nascem em meio a práticas sociais,
constituindo-se fenômenos culturais, de acordo com Villaça e Bentes (2008, p.25).
No entanto, as pesquisadoras conseguem diferenciar cortesia de polidez, dando um
caráter geral para a última em relação ao caráter particular da primeira.
As pesquisadoras defendem, então, que “a polidez está mais ligada às normas,
convenções e princípios gerais que presidem à interação pela linguagem em dada
cultura, em dada sociedade” e complementam ainda que há um caráter geral
atribuído à polidez regido por convenções sociais e imposto por determinado
contrato social. (VILLAÇA; BENTES, op.cit, p.29)
124
À cortesia, contudo, é atribuído um caráter indivividual, determinado e
relacionado às instâncias subjetivas da interação. Villaça e Bentes concluem que a
polidez se relaciona a formação de registros e a cortesia à produção dos estilos,
que, por sua vez se manifesta por meio de um repertório de marcas linguísticas.
Para as autoras:
Assim é que uma forma de mostrar cortesia verbal é não fazer
asserções peremptórias, produzindo um discurso autoritário, mas
modalizá-las com o uso dos verbos achar,crer,pensar, isto é,
apresentar apenas as declarações como opiniões, facilmente sujeitas
a serem contraditadas caso o parceiro não pense da mesma
maneira. (VILLAÇA; BENTES, 2008, p.34).
Para modalizarmos nosso discurso, fazemos o uso de certas marcas, as quais
denominamos marcadores de atenuação que, embora sejam marcas típicas do texto
falado, também podem estar presentes no texto escrito cumprindo determinados
fins.
4.2 Discutindo preservação de face
Como vimos, para Rosa (1992, p.57), os marcadores de atenuação funcionam
como elementos que preservam a face do enunciador, ao restringir respostas
desfavoráveis e preservam a face do interlocutor ao afastar interpretações que
compliquem a interação.
Sobre a face, Goffman (1980) faz as seguintes considerações:
O termo face pode ser definido como valor social positivo que uma
pessoa efetivamente reclama para si mesma através daquilo que os
outros presumem ser a linha por ela tomada durante um contato
específico. Face é uma imagem do self delineada em termos de
atributos sociais aprovados. (p.76- 77)
125
Esse conceito já havia sido explanado pelo teórico em 1967. No entanto,
Modena (2013) esclarece que:
[...] todo indivíduo, quando em contato face a face com outros, tende
a exteriorizar uma linha de conduta – ou seja, um conjunto de atos
verbais e não verbais – que lhe permite exprimir seu ponto de vista
sobre a situação em que está inserido, sobre aqueles que participam
de tal situação e sobre si mesmo. (p.84)
Galembeck (2008) denomina de máscara, ou seja, algo que o indivíduo exibe
com intuito de ter o seu papel reconhecido.
A face, por sua vez, é a autoimagem pública assumida pelo falante, e
compreende aquilo que ele deseja exibir e ver sancionado (face
positiva) e o seu desejo de não-imposição, de reserva do território
pessoal (face negativa). (p.332).
Para Goffman, a face se caracteriza como uma imagem do self representada
em termos de atributos socialmente aprovados e compartilhada pelos outros.
A fim de manter a face, as pessoas entendem o contato com as outras como
um compromisso, que irá confirmar sua imagem. A pessoa está em face quando a
linha seguida apresenta uma imagem consistente de si mesma, devidamente
apoiada em julgamentos e evidências dos interlocutores.
A elaboração da face consiste em desenvolver ações que tornem qualquer
coisa consistente com a face, o que pode ser entendido como diplomacia, habilidade
social. Caso isso não ocorra, a pessoa pode salvar sua face. “Cada pessoa, cada
subcultura e cada sociedade parecem possuir seu próprio repertório característico
de práticas de salvação de face.” (GOFFMAN, 1980, p.83)
A pessoa, consciente da interpretação que os outros possam ter de seus atos,
busca formas de salvar sua face, agindo com polidez ou tato.
126
A face vai além da presença física, podendo receber um valor conotativo ao
expressar dignidade, respeito, auto-confiança.
A partir dessas considerações, infere-se que a face não é apresentada como
estável ou permanente, mas um bem que tem seu caráter alterado no curso da
interação linguística, como tal passível de ser ameaçado, protegido ou recuperado.
O autor explora essa ideia ao utilizar as terminologias: shamefaced (ficar
envergonhado); to save face (salvar as aparências, salvar a face) e to lose
face (perder o prestígio, estar desacreditado). (GOFFMAN, 1980, p.80-81)
A pessoa assume a face, uma autoimagem de acordo com a situação. Assim,
estar com face traz segurança ao locutor, enquanto fora de face há a ideia de
insegurança.
Uma vez tendo assumida uma autoimagem, que se expressa através
de uma face, há expectativas e modos que a pessoa deve preencher.
De diferentes modos, em diferentes sociedades, exigir-se-á que as
pessoas mostrem autorrespeito, recusem certas ações por estarem
acima ou abaixo de si mesmas, ao mesmo tempo em que se forçam
outras mesmo que isto lhes custe muito caro. Ao entrar em uma
situação na qual lhe é dada uma face a manter, a pessoa toma a si a
responsabilidade, de patrulhar o fluxo de eventos que passa diante
de si. (GOFFMAN,1967, p.81)
Contudo, não se trata de proteger apenas a sua face; o locutor também se
preocupa com a face de seu interlocutor. Para tanto, Goffman apresenta dois tipos
de estratégias de face: práticas defensivas, visando salvar a própria face, e práticas
protetoras que objetivam salvar a face do outro.
Haverkate trata do assunto no artigo em que estuda a cortesia e descortesia
nos diálogos de Don Quixote (HAVERKATE, 2001, p.131). Para o pesquisador é
importante fazer uma distinção entre atos comunicativos egocêntricos e
127
altrocêntricos, o que Goffman nomeia de práticas defensivas e protetoras,
respectivamente. Os atos egocêntricos objetivam fortalecer a imagem positiva do
falante e os atos altrocêntricos, fortalecer a imagem positiva do ouvinte. A função
primordial da cortesia é beneficiar o interlocutor, de maneira que a categoria dos
atos comunicativos egocêntricos, na visão de Haverkate (idem) não é tão estudada.
Os atos comunicativos egocêntricos têm papel importante na interação verbal
cotidiana, pois os participantes dos diálogos têm que se esforçar para conquistar
uma posição de destaque no universo do discurso em referência. Na visão de
Haverkate, os participantes são conscientes desse processo e procuram selecionar
com cuidado as estratégias mais eficientes para acentuar sua imagem positiva.
Procuram produzir no interlocutor uma impressão favorável de sua personalidade.
O pesquisador estuda os atos comunicativos de Don Quixote que apresentam
um exemplo prototípico de ato comunicativo egocêntrico. A personagem produz um
enunciado solene e formal, mostrando sua dignidade como cavaleiro andante.
Brown e Levinson (1978, p. 67) entendem face como um conjunto de
necessidades inerentes aos seres humanos de qualquer sociedade. Os autores
ampliam a visão de Goffman (1967), inserindo conceitos de face positiva e face
negativa.
Os pesquisadores acrescentam ainda que tais necessidades são desejadas
pelos participantes da interação, sendo de interesse de cada membro do grupo
satisfazê-las. Dessa forma, representam:
Face negativa : a necessidade de cada ‘membro adulto competente’
(de uma sociedade) de que suas ações não sejam obstruídas pelos
demais.
128
Face positiva: a necessidade de cada membro do grupo de que suas
necessidades sejam desejáveis ao menos para alguns
outros.(BROWN e LEVINSON, 1978, p.67)
A maioria dos atos de fala ameaça ora a face positiva, ora a negativa. Atos
impositivos, como pedidos, ameaçam a imagem negativa do interlocutor, ou seja, o
seu território. Já, atos vexatórios, como a crítica, ameaçam a face positiva desse
mesmo interlocutor.
Para Kerbrat-Orecchioni (2004, p.42), os ataques de face ocorrem para que os
interactantes mantenham sua face (face-want), e isso coloca em risco o
desenvolvimento e a hamonia da interação. Esse trabalho de manter a face é
nomeado por Brown e Levinson (1978) de polidez.
Com o objetivo de esclarecer sua teoria sobre os padrões universais de
polidez, Brown e Levinson apresentam alguns argumentos básicos:
1. todos os indivíduos-modelo têm face positiva e negativa e são
agentes racionais;
2. é de interesse mútuo dos indivíduos manter, respectivamente,
suas faces, a menos que o falante possa manter sua face sem
compensação para o ouvinte, por meio de coerção ou truques;
3. alguns atos ameaçam intrinsecamente a face (denominados FTAs-
Face threatening acts);
4. a menos que o interesse do falante em executar o FTA com a
máxima eficiência seja maior que o seu interesse em preservar a
face em qualquer grau, o falante procurará minimizar a ameaça à
face, implícita no FTA;
5. o indivíduo tem à sua disposição um conjunto de estratégias para
a execução dos FTA para a face; de acordo com o grau de ameaça
do FTA para a face, o falante escolherá uma estratégia que lhe
129
permita oferecer compensações mais adequadas para minimizar os
riscos;
6. desde que 1 a 5 são pressupostos pelos indivíduos, o falante não
escolherá uma estratégia com grau maior do que o necessário, pelo
risco de fazer o FTA parecer mais ameaçador do que realmente é .
(p.64-65)
Dessa maneira, constata-se que o papel de Brown e Levinson foi o de ampliar
a noção de atos de fala, relacionando-os com os efeitos que causam sobre as faces,
como também de estabelecer as estratégias de cortesia.
Com base nessa ideia, Marcuschi (1989) enumera os atos em quatro
categorias:
1.atos que ameaçam a face positiva do ouvinte: desaprovação,
insultos, acusações;
2.atos que ameaçam a face negativa do ouvinte: pedidos, ordens,
elogios;
3.atos que ameaçam a face positiva do falante: auto-
humilhação,auto-confissões;
4.atos que ameaçam a face negativa do falante: agradecimentos,
excusas, aceitação de ofertas. (p.284)
Os FTAs contrariam a necessidade universal de preservação de face ou face-
want, colocando em risco a boa interação. Percebe-se, então, que a imagem social
dos interlocutores é vulnerável, havendo uma necessidade de minimizar as ameaças
a tal imagem ou à face, segundo Silva (2008), que afirma:
Diante da eminência de efetuar um FTA, o locutor terá duas
possibilidades: não produzir o FTA ou produzir o FTA. Se a escolha
for a segunda, terá duas formas: ato indireto (off record) ou ato direto
(on record). (p.181)
130
Silva acentua que, no ato indireto, pode haver mais de uma interpretação da
intenção comunicativa, por meio da ironia, de metáfora, ou por meio de insinuações.
Nessa situação, a interpretação pode ser comprometida.
O ato direto se divide em “sem” ou “com” ação reparadora:
Produzir uma ameaça à face sem ação reparadora significa fazê-lo
de forma clara, direta e objetiva, sem margem a qualquer
ambiguidade.[...] Por outro lado, produzir uma ameaça à face com
ação reparadora significa utilizar estratégias de cortesia negativa
e/ou positiva. (ibid., p.181-182)
Entendemos com Silva (2008, p.182) que as estratégias de cortesia positiva
são aquelas voltadas para a face positiva do locutor-enunciador, ou seja, o desejo
que este tem de ser visto de forma positiva pela sociedade, enquanto as estratégias
de cortesia negativa estão relacionadas à proteção da face negativa, sobretudo a
necessidade desse locutor-enunciador não ter suas ações cerceadas.
Para Kerbrat-Orecchioni (2004), a teoria de Brown e Levinson é muito
pessimista, uma vez que se pauta apenas nos FTAs, mostrando que nossos atos de
fala sempre promovem um ataque de face, dessa forma, nas palavras da autora:
Então: se um grande número de nossos comportamentos corteses
corresponde perfeitamente a esta definição, a cortesia também
consiste, mais positivamente, em produzir antiameaças; se certos
atos de fala são potencialmente ameaçadores para a imagem dos
interlocutores, outros são, pelo contrário, mais valorizadores dessas
mesmas imagens, como o agradecimento [...] (tratado por Brown e
Levinson como um FTA puro – para a imagem negativa do
destinatário) [...] atos valorizadores da imagem do outro chamamos
de FFAs, em inglês face flattering acts. (p.43)
131
Fávero (2008, p.311) admite que a proposta de Brown e Levinson é também
redutora. Parafraseando Kerbrat-Orecchioni, a autora afirma que:
[...] esta é uma concepção defensiva porque aparece como um
malmenor e que muitos atos são potencialmente ameaçadores
dessas mesmas faces, como os cumprimentos, os agradecimentos,
os votos de confraternização etc.
Dessa forma, Kerbrat-Orecchioni introduz a noção de FFAs, ou Face Flattering
Acts, que, nas palavras de Fávero (op.cit.p.312), são atos lisonjeadores,
valorizadores das faces, cuja proposta se fundamente em três noções : face
negativa x face positiva, FTAs x FFAs e cortesia negativa x cortesia positiva.
Entendemos com Kerbrat-Orecchioni (2004) que todo ato de fala pode
apresentar FTAs e/ou FFAs. Nesse sentido, Fávero (2008) complementa tal ideia e
esclarece que há o chamado ato misto:
1) O ato é intrinsicamente misto, como o oferecimento e o
cumprimento, considerados por Brown e Levinson como FTA,
pois são, antes de tudo, uma manifestação de inveja: o objeto
elogiado é sempre cobiçado e, assim, ameaçador para a face
negativa do cumprimentado, mas é também um FFA para sua
face positiva. Segundo o contexto, um deles pode ter mais
peso – geralmente o FFA, mas, dependendo da situação, as
coisas podem se inverter (...).
2) A mesclagem dos FTAs e FFAs surge em virtude de
inferências. O agradecimento, exemplo de FFA, pode
comportar subentendidos que o restringem. Exemplo: A, ao
chegar ao teatro onde deveria encontrar um amigo e, ao ver
que este não lhe guardou lugar e a sala está cheia, diz-lhe –
Obrigada, por ter-se lembrado de mim. (p.312)
132
A cortesia pode ser vista sob dois vieses: a negativa, que evita um FTA, ou visa
a amenizar sua relação por meio de algum procedimento, e a positiva que realiza um
FFA, geralmente forçado. De forma que, temos no jogo da interação um jogo entre
FFAs e FTAs. Essas considerações ratificam as ideias de Silva (2008).
Concentraremos nossa análise na cortesia negativa que apresenta algum
procedimento, no caso os marcadores de atenuação, tópico abordado no capítulo
anterior.
Cortesia negativa: A comete alguma ofensa contra B (FTA), e tenta
imediatamente reparar por meio de desculpas (FFA). Quanto maior
o peso do FTA (peso que só se avalia em relação ao quadro
comunicativo dentro do qual está inscrito o ato em questão), tanto
mais deve ser importante o trabalho de reparação.
Cortesia positiva: A presta algum serviço para B (FFA) e então cabe
a B produzir em seu turno um FFA (agradecimento ou gentileza),
restabelecendo o equilíbrio do ritual comunicativo entre os
interactantes (como falamos popularmente ‘toma lá da cá). Quanto
mais importante é o FFA, tanto mais recíproco deve ser o FFA
recíproco. (KERBRAT-ORECCHIONI, 2004, p.44)
Vimos, então, que um FTA do enunciador pode ocasionar um FFA, o que
implica a cortesia negativa. Se o enunciador for solidário a seu enunciatário, este
produzirá um FFA, representando a cortesia positiva.
Com base em tais considerações, o modelo de Brown e Levinson se torna mais
consistente e Kerbrat-Orecchioni (2004) amplia o conceito de cortesia:
[...] Para concluir: a partir desta perpesctiva, a cortesia consiste em
um conjunto de estratégias de proteção e valorização das imagens
dos interlocutores a fim de preservar ‘a ordem da interação’. (p.45)
133
Assim, é notório que a conversação é um jogo, em que o vencedor é aquele
que tem ciência de que, ao produzir um FTA, será necessário adotar uma postura
cortês, ou seja, produzir um FFA e se, por sua vez, um dos interactantes receber um
elogio, ele logo deverá também retribuí-lo, ou seja, produzir por sua vez também um
FFA. Em linhas gerais entendemos que a cortesia deve permear todo ato de
conversação.
134
PARTE II
A REPRESENTAÇÃO DA ORALIDADE E OS ASPECTOS DE
CORTESIA E PRESERVAÇÃO DE FACE
135
PARTE II
O trabalho seguirá uma orientação pragmática de estudo da linguagem,
tratando a questão do continuum entre o polo da oralidade e escrituralidade,
centrando-se nas questões sobre oralidade, especificamente nas características da
língua falada e nos marcadores de atenuação.
O corpus consta de seis cartas de Mário de Andrade e dezenove cartas de
Manuel Bandeira enviadas a Alphonsus de Guimaraens Filho, no período de 1940 a
1944 e editadas sob o título Itinerários, pelo próprio destinatário. As vinte e cinco
cartas constam dos ANEXOS a partir da página 241.
Conforme explanamos na página 27 deste trabalho, a escolha por seis cartas
de Mário de Andrade se deve ao fato de nos preocuparmos com nosso objeto de
análise. Diminuirmos a quantidade de cartas de Mário de Andrade tornou o corpus
mais ou menos equitativo em número de linhas na comparação com as cartas de
Manuel Bandeira, perfazendo 16 páginas para esse escritor e 22 páginas para
Manuel Bandeira.
Na página 26, explicamos as referências que utilizaremos para identificação
das cartas de Mário de Andrade e Manuel Bandeira bem como outros aspectos
metodológicos utilizados.
Defendemos que as missivas de Mário de Andrade e Manuel Bandeira ocupam
uma posição especial no continuum, por representarem um gênero tipicamente
gráfico com marcas de oralidade. Além disso, tais marcas, sobretudo os marcadores
de atenuação, são recursos modalizadores que podem amenizar as ameaças às
faces dos interlocutores.
136
Finalmente, faremos um levantamento dos ataques de face com o objetivo de
mostrar que, mesmo realizando tal prática, os escritores modernistas, Mário de
Andrade e Manuel Bandeira, o fazem de forma cortês.
137
Capítulo 5 - Gêneros discursivos: discutindo Itinerários
5.1 Itinerários x historiografia do gênero carta
Inicialmente, Bazerman apresenta o caráter sócio-interativo do gênero e tem tal
ideia confirmada por Marcuschi (BAZERMAN, 2006) que escreve o texto introdutório
à obra. Todorov (1980) também afirma que os gêneros são fruto de outros gêneros.
Nesse sentido, percebemos que o gênero carta advém da conversa e traz
desse gênero oral a característica de interação. Goh (2004) observa que Monteiro
Lobato já conceituava cartas como “conversa em mangas de camisa”.
Um dos trechos das cartas de Mário de Andrade confirma também tal ideia:
Rio, 11-VII-40
Alphonsus
Espere, deixe eu mudar de pena, que esta arranha já muito. Como você está vendo: acabo
sempre respondendo, embora às vezes custe um bocadinho. Sua carta já é de 19 do mês
passado...
(MA-2-1940, linhas 1-5, p.244)
Mário de Andrade se dirige a Alphonsus de Guimaraens Filho como se eles
estivessem presentes no mesmo tempo e espaço de escritura da carta , o que
notamos pelas expressões: “deixe eu mudar de pena” e “como você está vendo”, a
carta se confunde assim com uma conversa à distância.
Bakhtin (2006, p.261) ressalta a importância de que a concretização da língua
se dá por meio de enunciados produzidos por integrantes de grupos das diversas
atividades humanas. Para o teórico, tais enunciados denotam condições específicas,
138
refletindo a finalidade dessas atividades, não apenas por meio de seu conteúdo ou
estilo, mas também pela sua construção composicional.
Em se tratando de Itinerários, temos dois locutores, Mário de Andrade e
Manuel Bandeira, que ocupam posição de destaque no cenário da literatura
brasileira, enquanto o interlocutor, Alphonsus de Guimaraens Filho, filho do grande
poeta simbolista Alphonsus de Gumaraens, está iniciando sua carreira literária,
especificamente na poesia.
Inferimos que a troca de cartas entre os escritores teve como finalidade
primeira o aconselhamento de Alphonsus de Guimaraens Filho por parte de Mário de
Andrade e Manuel Bandeira. Conduzir o jovem escritor, fazer com que ele refletisse
sobre seu processo criativo, lapidasse seus poemas tanto no aspecto de forma
quanto de conteúdo foram prerrogativas dos amigos modernistas.
Como percebemos nos trechos a seguir, nesse sentido, bem como na postura
linguística, Mário de Andrade e Manuel Bandeira são diferentes. Enquanto o
primeiro é mais combativo, o segundo é mais comedido em suas críticas.
(a) [...] Não, Alphonsus, não argumente com essa frase em relação a
você. É frase grosseira, de positivo ataque, que si eu a tivesse que dizer a você ou a diria
endereçada, ou a poria no artigo sobre você ou, é quase certo, preferiria dizê-lo por carta.
Há um lado cozinha e lavanderia das almas como dos espíritos que não estou muito
convencido deva ser ventilado em artigos públicos.
(MA-1-1940, linhas 32-36, p.241-242)
b) Venho agradecer-lhe a oferta do seu livro Lume de Estrelas e a dedicatória da parte III.
Você entrou na poesia com uma responsabilidade tremenda – o nome de seu pai ! Mas
está se saindo galhardamente. Este Lume de Estrelas atesta um grande poeta, não reflexo
da poesia paterna, mas brilho de estrela de luz própria.
139
Posso dizer-lhe que os elogios de Tristão de Ataíde e do Mário de Andrade traduzem o
sentimento geral: você está classificado pela melhor gente no scratch.
(MB-1-1940, linhas 3 -8, p.258)
Nas primeiras cartas enviadas pelos escritores, Mário de Andrade não poupou
o uso de um imperativo “não argumente”, corrigindo o posicionamento de Alphonsus
de Guimaraens Filho. Também ressaltamos a frase: “[...] mas não interessa elogiar”,
extraída da carta de Mário de Andrade (MA-3-1941, linha 15, p.247). Já Manuel
Bandeira foi só elogios.
As cartas são gêneros e, desde o início da era cristã, foram temas de
discussões retratadas por meio de tratados de epistolografia, muitos deles afirmando
que a carta tornava presente o ausente.
Démetrio afirmava, no seu tratado de epistolografia, que as cartas extensas
são tratados em forma epistolar e que tal gênero deve conter a expressão breve de
um sentimento amistoso, palavras de amizade e até provérbios.
A maioria das cartas de Manuel Bandeira são breves em relação às de Mário
de Andrade (conforme figura 14, pág. 145), contudo uma das cartas mais extensas
de Manuel datada de 1943 corrobora a visão de Demétrio, pois é amistosa, não
contém provérbios, no entanto, Manuel Bandeira compõe um poema em
homenagem a Alphonsus de Guimaraes Filho e seu pai, o poeta simbolista
Alphonsus de Guimaraens
Petrópolis, 14 de março de 1943
Meu caro Alphonsus,
Respondo à sua carta de 13 de fevereiro, de Petrópolis, onde ficarei até o fim deste mês. O
meu endereço é Hotel Suíço, rua Benjamin Constant, 280.
Achei deliciosa a sua "Surdina”. Você conhece o segredo do refrão, e estes versos são mais
140
uma prova disto (em muitos poetas o refrão não passa de uma repetição ociosa, já
reparou?). Isso me deu um tema para um poema onomástico em seu louvor e no de seu pai.
Assim:
Refrão de glória, eis vem, no trilho
Do pai — dois mestres em refrães —,
Trás Alphonsus de Guimaraens Aiphonsus de Guimaraens Filho.
(MB-15-1943, linhas 1-12, p.273)
Esse sentimento de amizade está presente explicitamente em todas as
missivas de Manuel Bandeira e em algumas de Mário de Andrade, que se mostra
mais reservado.
a) São Paulo, 27-V-43
Meu querido Alphonsus
Você diz pra eu lhe responder apenas “quando tiver vontade", mas estou lhe escrevendo
apenas pra experimentar este papel que não é nem pra tinta nem pra carta.
(MA-8- 1943, linhas 1-5, p.254)
b) Rio, 7 de outubro de 1940
Meu caro poeta Alphonsus,
Muito obrigado pela sua carta de 27 do mês passado.
Fiquei desapontado com a notícia que me dá de não terem chegado a Belo Horizonte as
minhas “Poesias Completas”.
(MB-2-1940, linhas 1-5, p.259)
c) Rio, 13 dez. 1940
Meu caro poeta,
141
Muito obrigado pela sua carta de 24 do mês passado, tão afetuosa. É um sentimento
delicioso — o melhor que nos podem dar os versos que fazemos — saber da ressonância
que despertam em almas delicadas como a sua.
(MB- 4-1940, linhas 1-6, p.261)
A amizade se faz presente por meio dos vocativos utilizados pelos dois
escritores, como vemos em (a) e (b), ou em muitas expressões utilizadas
especialmente por Manuel Banderia, dentre as as quais o destaque em (c).
As cartas, especificamente as de Mário de Andrade, são extensas, em média
duas laudas cada uma, confirmando dessa forma um dos princípios de Demétrio,
que relaciona a extensão das cartas à concepção de tratado. O que se lê nas
missivas de Mário de Andrade configura-se em vários tratados de estilo poético, por
exemplo, há textos que objetivam apresentar a Alphonsus de Guimaraens Filho o
que realmente é um soneto, como se deve desenvolvê-lo, de acordo com os moldes
tradicionais, conforme trechos a seguir:
a) A série dos sonetos que você me mandou é simplesmente ótima. O ‘Delírio’ então é de
absoluta 1ª. ordem, um grande soneto. O Manuel e eu ficamos doidos de amor por ele, uma
invenção de uma força lírica esplêndida. Quase todos os outros são também muito bons,
mas não interessa elogiar. Você já refletiu bastante sobre o soneto irregular? Não falo
apenas sob o ponto- de- vista técnico que esse é claramente indefensável, mas sob o
estético. Satisfaz ao seu sentimento estético, ao seu prazer artístico o soneto irregular?
Deus me livre negar o valor, a força lírica de certos sonetos irregulares, os seus os do
Schimidt provam isso. Mas sempre me fica um certo não-sei-quê de insatisfação artística.
(MA-3-1941, linhas 12-19, p.247)
b) As suas considerações sobre o soneto, ih,meu Deus!Agora já escrevi tanto e desenvolver
o assunto me alongaria por demais.Você reconhece no entanto que o soneto não cabe pra
todos os estados líricos e só cabe ‘em ocasiões especiais em que nos sentimos menos
derramados, menos eloqüentes’. Mas por outro lado você defende o soneto irregular em
proveito da naturalidade, o que é naturalidade? Em arte, eu só acredito naquele
supernaturalidade que só grande trabalho consegue. Mas, por favor, Alphonsus! Não deixe
de fazer seus sonetos, regulares, irregulares, como quiser, por favor! Às vezes tenho medo
142
de mim e de prejudicar os outros. A verdade é que seus sonetos, regulares ou não, são
excelentes. Trabalhe, pense nos problemas estéticos fora do momento de poetar e
principalmente depois de feito o poema. É gostoso corrigir, polir, transformar a
‘espontaneidade’ rosa-gato-pinto-macaquinho pra adquirir aquela supernaturalidade da arte,
o La Fontaine que precisou de dez versões pra atingir o La cigale ayant chanté.
(MA-4-1941, linhas 58-69, p.250)
Embora tenhamos exemplificado com apenas dois trechos, o que constatamos
em todas as cartas de Mário de Andrade é a preocupação que o escritor tem de
fazer com que Alphonsus Guimaraens Filho reflita sobre seu próprio desempenho
poético e se assegure de que está no caminho certo, ou seja, encontre sua
identidade como poeta maior.
Desde o início deste trabalho, afirmamos, respaldados por vários teóricos,
dentre eles Leite (2009), que a carta é um gênero que aproxima os distantes. O
capítulo “1.2 Historiografia do gênero carta” comprova tais afirmações,
especialmente por meio das considerações de Démetrio em seu tratado de
epistolografia. O tratadista afirma que a carta deve ser simples “pedestre” e que
deve se aproximar de uma conversa. (TIN, 2005, p.19). Entendemos que a
conversa é um gênero prototipicamente falado, indicando o contato face a face, ou
seja, os interlocutores estão frente a frente.
As expressões “O Manuel e eu ficamos doidos de amor por ele” em (a) e ih,
meu Deus! em (b), nos trechos anteriores, são marcas de oralidade e denotam
informalidade nos textos, objetivando aproximar os interlocutores e dar um aspecto
de conversa ao gênero escrito.
Cícero, em relação a Demétrio, discute outras peculiaridades das cartas, ao
demonstrar que esse gênero deve se adaptar às circunstâncias e ao temperamento
143
de seus destinatários. A chamada forma ciceroniana reza também que as cartas
sejam respondidas em ordem de chegada e, além de informar, devem persuadir.
A análise de nosso corpus nos permite afirmar que as cartas foram
respondidas em ordem cronológica às enviadas por Alphonsus de Guimaraens Filho.
Os tópicos tratados seguem uma sequência de raciocínio, percebemos que, ao
longo das cartas, tanto Mário de Andrade quanto Manuel Bandeira fazem
observações pontuais sobre o desenvolvimento de Alphonsus de Guimaraens Filho.
Em relação à forma das cartas em Itinerários, verificamos que elas seguem o
modelo da carta ciceroniana, conforme modelo por nós reproduzido a seguir:9
(a) São Paulo, 25-1-42
Alphonsus
9 Não indicamos números de linhas nas cartas que reproduziram o modelo ciceroniano, pois a compactação dos textos no box não possibilitou o alineamento fiel aos ANEXOS.
Abertura Sua carta me deu uma boa alegria, palavra. Andava meio
inquieto, com medo que você não aceitasse com leal
humanidade as minhas restrições a Lume de Estrelas,
preferindo a isso o prazer epidérmico (mas tão
incontestavelmente gostoso!...) dos elogios. Antes
mesmo de escrever a crítica, com medo de estar
totalmente errado, confessei minhas dúvidas sobre certos
aspetos do seu livro a Manuel Bandeira. Não queria estar
sozinho e me arrimava à opinião dele que, como a minha,
só podia nascer de simpatia. E foi só diante da
concordância dele, em linhas gerais, que me senti
animado a escrever.
setor central
intitulatio, inscriptio e salutatio
144
(b) Rio, 13 dez. 1940
Meu caro poeta,
Ressaltamos que, realmente, ocorre o chamado formalismo na maior parte da
carta, excetuando a saudação inicial em que não temos o intitulatio, ou seja, a
titulação de quem escreve e o inscriptio e o salutatio se fundiram. No entanto,
podemos afirmar que mais de mil anos se passaram dos estudos de Cícero e as
cartas continuam seguindo basicamente o modelo por ele proposto.
Após discorrermos sobre a carta ciceroniana, trazemos algumas
fundamentações de Gregório Nazianzeno em carta datada de 384-389 (TIN, 2005,
p.27). Para o religioso, a carta deve apresentar concisão, ou seja, escrever o
[...] E basta por hoje. Lembranças aos amigos e guarde
este abraço muito grato do
Mário de Andrade
Me mande coisas suas de vez em quando
(MA-1-1940)
conclusão
abertura
Muito obrigado pela sua carta de 24 do mês
passado, tão afetuosa. É um sentimento delicioso —
o melhor que nos podem dar os versos que fazemos
— saber da ressonância que despertam em almas
delicadas como a sua.[...]
Setor central
Receba um apertado abraço
Manuel.
P.S. Recebi e agradeço o convite para a solenidade
de formatura, W
Felicidades! (MB-4-1940)
conclusão
intitulatio, inscriptio e salutatio
Figura 13 – Estrutura da carta ciceroniana
145
suficiente, clareza, aspecto relacionado à persuasão e graça, apresentar ditos e
provérbios.
Já citamos a homenagem feita por Manuel Bandeira a seu interlocutor. Cabe
ressaltar que das 19 cartas do escritor, nove apresentam 15 ou menos linhas,
conforme quadro “cartas/número de linhas”, a seguir:
Cartas Mário de Andrade Cartas Manuel Bandeira
referência número de linhas referência número de linhas
MA-1-1940 73 MB-1-1940 11
MA-2-1940 94 MB-2-1940 12
MA-3-1941 48 MB-3-1940 24
MA-4-1941 85 MB-4-1940 16
MA-5-1941 56 MB-5-1941 11
MA-8-1943 75 MB-6-1941 10
MB-7-1941 12
MB-8-1941 21
MB-9-1941 36
MB-10-1942 28
MB-11-1942 13
MB-12-1942 25
MB-13-1942 14
MB-14-1942 12
MB-15-1943 70
MB-16-1944 26
MB-17-1944 13
MB-18-1944 19
MB-19-1944 25
Total linhas 431 398
Figura 14 – Cartas do corpus/ número de linhas
146
Esses dados mostram a preocupação de Manuel Bandeira em ser responsivo,
e no entanto, escrever apenas o suficiente.
Já Mário de Andrade, escreve em uma única carta (MA-1-1940), mais do que
Manuel Bandeira escreveu durante esse ano, sem deixar , no entanto, de ter uma
percepção sobre a questão da concisão apontada por Gregório Nazianzeno ao
sistematizar suas ideias na primeira carta:
a) Muito que bem.Agora apenas levando de sua carta uma idéia que preciso esclarecer. Uma
Uma não, três. A primeira é você acreditar, com razão que também “A Volta do Condor” se
refere a você.
(MA-1-1940, linhas 27-29, p.241)
b) O segundo ponto é o problema dos canaviais, trigais e pastores.A palavra pastor tal como
você a empregou está perfeitíssimamente bem.
(MA-1-1940, linhas 40-41, p.242)
c)Enfim 3º. e último ponto. É isso mesmo que eu quero. É que você tenha o exercício da sua
total liberdade diante de mim.(Não me chame “mestre” por favor, não gosto) (Me chame
Mário, você). Não pretendo com isto nenhuma humildade falsa.
(MA-1-1940, linhas 65-67, p.242)
Mário de Andrade organiza seu texto para que seu interlocutor acompanhe de
forma mais rápida seu raciocínio, já que o assunto é complexo e a carta é extensa.
Caio Júlio Victor (TIN, 2005, p.28) discute aspectos similares aos que aqui já
foram apresentados, mas o estudioso traz também ideias sobre a importância da
cortesia e estímulo nas cartas. Julgamos importante reproduzirmos o trecho na
íntegra:
Uma carta escrita a um superior não deve ser jocosa;a um igual, não
deve ser descortês, a um inferior, não deve ser soberba. A carta a
um culto não deve ser descuidadamente escrita, nem a carta a um
inculto deve ser indiferentemente composta, nem deve ser escrita
147
negligentemente a um amigo íntimo, nem menos cordial a um não
amigo. Seja profuso em congratular alguém em seu sucesso de tal
modo a aumentar a sua alegria, mas console alguém que está
sofrendo com poucas palavras, pois uma ferida sangra quando
tocada por uma mão pesada. Quando escrever, alegre as suas
cartas pessoais, conte com a possibilidade de que elas possam ser
relidas em tempos mais tristes. Nunca dispute, menos ainda numa
carta. (p.30)
Tanto Mário de Andrade quanto Manuel Bandeira não poupam Alphonsus de
Guimaraes Filho dos elogios, como notamos nos excertos (a) e (b), confirmando a
ideia apresentada por Caio Victor Julio.
a) Mas eu ando achando que você já alcançou uma caracterização muito grande de
personalidade. Eu sempre que leio alguma poesia sua acho, sinto os seus versos muito
caracteristicamente de você, muito exclusivamente você. Não tem dúvida nenhuma que isto
é um mérito enorme, uma grande qualidade. Terá seus perigos, mas não tem arte sem
perigos, nem qualidade que não implique a sua antítese.
(MA-8-1943, linhas 36-40, p.255)
b) Recebi os sonetos.Para que a minha opinião?Você é desses poetas visceralmente poetas
que interessam sempre a gente, façam o que fizeram. Os Sonetos estão todos muito
bonitos, nem me parece indiscreta a influência que possa haver de seu pai.
(MB-8-1941, linhas 3-5, p.265)
Mário de Andrade esclarece a seu interlocutor, logo na sua primeira carta,
como veremos a seguir, seus sentimentos de insegurança e a necessidade do aval
de Manuel Bandeira para construir críticas sobre os poemas de Alphonsus de
Guimaraens Filho, assim se distanciando da soberba criticada por Caio Júlio Vitor.
Ladeira de Santa Teresa, 106
Rio, 11-VII-40
Alphonsus
148
Sua carta me deu uma boa alegria, palavra. Andava meio inquieto, com medo que você não
aceitasse com leal humanidade as minhas restrições a Lume de Estrelas, preferindo a isso
o prazer epidérmico (mas tão incontestavelmente gostoso!...) dos elogios. Antes mesmo de
escrever a crítica, com medo de estar totalmente errado, confessei minhas dúvidas sobre
certos aspetos do seu livro a Manuel Bandeira. Não queria estar sozinho e me arrimava à
opinião dele que, como a minha, só podia nascer de simpatia. E foi só diante da
concordância dele, em linhas gerais, que me senti animado a escrever.
(MA-1-1940, linhas 1-11, p.241)
Victor salienta o quão agradável seria se pudéssemos escrever como se
estivéssemos conversando e exemplifica com frases curtas e interativas como: “você
também?”, “vejo você sorrir”. Essa ideia é uma das que motivou nosso interesse pelo
enfoque: marcas de oralidade no texto escrito. Pudemos identificar a presença de
muitas marcas de oralidade, especialmente os marcadores de atenuação que estão
representados em capítulo próprio.
5.2 Discutindo o gênero carta entre escritores
Bazerman (2006, p.87) reitera a questão da formalidade das cartas já
apresentada por Cícero, indicando apenas terminologias diferentes. O pesquisador
estabelece que as cartas devem conter: local, data, saudações, corpo e assinatura.
Sua teoria aborda também a competência metagenérica, ou seja, o pesquisador
afirma que por meio da regularidade e dos traços formais da carta, esse gênero é
facilmente reconhecido.
Contudo, o gênero carta, como já tratamos em “1.1” não se define apenas pela
forma/estrutura padrão, mas também por seus aspectos sócio-comunicativos e
sociais, como todos os demais gêneros. (BAKHTIN, 2006, p.262).
149
As cartas entre escritores, editadas em Itinerários (Guimaraens Filho, 1974),
objeto de nossa pesquisa, apresentam práticas sociais e situações que as diferem
das chamadas cartas pessoais.
De acordo com a análise que apresentaremos a seguir e que parte dos estudos
de Leite (2009), as cartas entre escritores, embora obedeçam à forma/estrutura das
cartas pessoais, abarcam aspectos distintos.
Para que possamos entender as cartas entre escritores, contantes de nosso
corpus, há necessidade de estudarmos sua constituição: objetivo, lugar, tempo,
apresentação, remetente e destinatário, pois a análise completa concentra-se nos
aspectos do contexto de produção e recepção do texto.
Primeiramente, os objetivos em Itinerários eram aperfeiçoar, melhorar os textos
poéticos de Alphonsus de Guimaraens Filho. Para isso, o escritor enviava a Mário de
Andrade e Manuel Bandeira seus poemas para serem submetidos à apreciação:
a) Muito que bem.Agora apenas levando de sua carta uma idéia que preciso esclarecer.Uma
não, três. A primeira é você acreditar, com razão que também “A Volta do Condor” se refere
a você. Se refere sim, mas também a muitos. Em principal denunciei um defeito que está se
alastrando pavorosamente no Brasil, o da poesia “séria” , o da poesia “grande”. Você se
serve daquela frase minha de alguns estarem por aí pensando que “fazendo-se grande
poesia fica-se grande poeta”. Não, Alphonsus, não argumente com essa frase em relação a
você. É frase grosseira, de positivo ataque, que si eu a tivesse que dizer a você ou a diria
endereçada, ou a poria no artigo sobre você ou, é quase certo, preferiria dizê-lo por carta.
Há um lado cozinha e lavanderia das almas como dos espíritos que não estou muito
convencido deva ser ventilado em artigos públicos.
(MA-1- 1940, linhas 27-36, p.241-242)
b) Você entrou na poesia com uma responsabilidade tremenda–o nome de seu pai !Mas
está se saindo galhardamente. Este Lume de Estrelas atesta um grande poeta, não reflexo
da poesia paterna, mas brilho de estrela de luz própria.
Posso dizer-lhe que os elogios de Tristão de Ataíde e do Mário de Andrade traduzem o
sentimento geral: você está classificado pela melhor gente no scratch.
(MB-1-1940, linhas 4-8, p.258)
150
As cartas de Mário de Andrade, a princípio, partiram do Rio de Janeiro,
especificamente da Ladeira de Santa Teresa, 106, no período de julho de 1940 a
janeiro de 1941, quando Mário se muda para São Paulo. Assim, as cartas de março
de 1941 a dezembro de 1944 partem da Pauliceia desvairada.
Manuel Bandeira sempre morou no Rio de Janeiro, de maneira que, na maior
parte do período de troca de cartas ( junho de 1940 a maio de 1967), as missivas
partiram da cidade maravilhosa rumo a Minas Gerais. Durante esse tempo, Manuel
Bandeira trocou de bairro algumas vezes e passou alguns períodos na cidade de
Petrópolis (janeiro de 1944, janeiro de 1949 e fevereiro de 1953, cartas MB-5,12,15
e 17).
Alphonsus de Guimaraens Filho (1918-2008) é o interlocutor dessas cartas,
que por ele são editadas em 1974, sob o título de Itinerários. No início da história
epistolográfica, o poeta nascido em Mariana, Minas Gerais, tinha então 22 anos,
Mário de Andrade (1893-1945) 47 anos e Manuel Bandeira (1886-1968) 56 anos,
como já mencionamos no início do trabalho.
Na introdução do livro, o poeta mineiro descreve o início dessa amizade:
Conheci Mário de Andrade em Belo Horizonte, em 1938, numa noite
em que ele disse, para apreciável número de intelectuais e amigos, o
admirável ‘Noturno de Belo Horizonte’.[...] Outros contatos com ele
tivemos, eu e meus companheiros de geração, ainda em Belo
Horizonte. Mário ouvia-nos com paciência, compreendendo a
sofreguidão de moços ávidos de alcançar, num mundo belicoso e
inseguro, a sua verdade, ou a possível verdade. (GUIMARAENS
FILHO, 1974, p.9)
Na época, Alphonsus de Guimaraens Filho completa que, ao escrever o poema
Lume de Estrelas, recebeu uma crítica de Mário de Andrade. O jovem poeta julgou a
151
crítica muito proveitosa e escreveu uma carta para Mário, agradecendo-a, nascendo
daí a história epistolográfica entre os dois poetas.
O primeiro contato que Alphonsus de Guimaraens Filho teve com Manuel
Bandeira foi por meio de carta: “Escreveu-me Bandeira, agradeci, e daí para frente
nos correspondemos com frequência” (GUIMARAENS FILHO, 1974, p.9)
É importante também apresentarmos o que representou a troca de cartas para
o escritor mineiro:
Eis o que me parece importante nestas cartas: de um lado, o que
revelam da personalidade humana de Mário e Bandeira; de outro, o
que apresentam de grande interesse pelos temas por eles
suscitados, pelo que valem como depoimento pessoal e também
como estudo de questões que interessam, e interessarão sempre,
ligadas que estão à complexidade da composição literária.
(GUIMARAENS FILHO, 1974, p.10)
Apresentada a constituição das cartas entre os escritores, elaboramos um
quadro comparativo, a partir do quadro de Leite (2009, p.119) aqui comentado à
página 65 (figura 05):
Variedade de carta
Motivação Conteúdo Estilo verbal Composição
pessoal
Necessidade de transmitir, por escrito, uma mensagem a um sujeito, com quem se mantém, em geral, relações de informalidade.
Temas pessoais, privados.
Menor rigor na organização sintática das frases, possibilidade de ocorrência de frases sem completudes sintática, seleção lexical variada, com gírias e expressões populares. Realizada em norma culta ou popular.
Menor obediência à linguagem culta, marcas de oralidade, estrutura padrão: data, vocativo, núcleo, despedida e assinatura.
152
pessoal entre escritores
Necessidade de transmitir, por escrito, uma mensagem a um sujeito, com quem se mantém relações de formalidade e informalidade.
Temas profissionais:
língua, literatura em sua forma e conteúdo, questões estéticas, escolhas lexicais.
Temas privados: os percalços na mudança de Rio de Janeiro para São Paulo, motivações pessoais, compromissos.
Organização sintática singular, realizada em norma culta e por vezes popular
Quebra dos princípios da linguagem culta, texto com marcas de oralidade estrutura padrão: data, vocativo,corpo,despedida e assinatura
A carta pessoal, em todas as suas variedades, possibilita estabelecer relações
de informalidade, enquanto a empresarial/comercial mantém-se na instância da
formalidade.
O conteúdo é o fator de diferenciação mais evidente tanto entre a carta
empresarial/comercial e a carta pessoal, como entre a carta pessoal e a carta
pessoal entre escritores.
Nas cartas entre escritores, o conteúdo é o produto das situações por eles
vividas. Mário de Andrade e Manuel Bandeira vivem do e no mundo literário:
produzem textos literários, relacionados ao estilo, à crítica literária. Tais situações
estão incorporadas nas cartas enviadas a Alphonsus de Guimaraens Filho.
Ressaltamos que, quando de nossa análise, tais questões relacionadas à tipificação
do gênero serão por nós cotejadas.
Em Itinerários, as cartas são produzidas com o objetivo de aprimorar, polir o
estilo poético de Alphonsus de Guimaraens; para isso Mário de Andrade adota uma
Figura 15 – Quadro comparativo carta pessoal vs. carta entre escritores
153
postura mais combativa, enquanto Manuel Bandeira é menos rígido, (as estratégias
de cortesia e o trabalho de face utilizada pelos autores corroborarão tais afirmativas).
Em relação ao estilo, a carta pessoal, conforme Leite, (op.cit., p.119) realiza-se
em norma culta ou popular, não se preocupando com a seleção lexical. Verificamos
que Mário de Andrade e Manuel Bandeira se preocupam com a seleção lexical e
claramente trazem para as cartas palavras que pertencem ao campo semântico
poético. Demonstraremos, em nossa análise ,que os escritores fazem uso de marcas
de oralidade, apesar de dominarem a língua culta.
Pinto (1990) afirma ser a língua das cartas pessoais o denominado português
popular escrito, contudo percebemos, por meio de nossos estudos, sobretudo pela
análise do quadro anteriormente apresentado (figura 15) que a língua das cartas
entre escritores é, na verdade, o português culto, com variações de coloquial e
diferentemente dos missivistas comuns e populares, Mário de Andrade e Manuel
Bandeira apresentam amplo domínio linguístico e fazem uso de várias estratégias
discursivas, especificamente os marcadores de atenuação para terem seu discurso
aceito ou até mesmo podemos falar no desejo de seduzir Alphonsus de Guimaraens
Filho.
Podemos conceituar as cartas, objeto de estudo deste trabalho, como um
gênero que, por sua especificidade temática (Mário de Andrade e Manuel Bandeira
criticam os aspectos estilísticos de Alphonsus de Guimaraens Filho) e discursiva
(presença de marcas de oralidade, sobretudo marcadores de atenuação) pode ser
nomeado de cartas entre escritores.
Tal denominação pode ser confirmada pela análise do quadro apresentado
anteriormente (figura 15), que mostra diferença entre as cartas pessoais e as cartas
em Itinerários no tocante ao conteúdo.
154
Enquanto, na carta pessoal, os temas são apenas pessoais e privados, as
cartas entre escritores apresentam também temática profissional: língua, literatura
em sua forma e conteúdo, questões estéticas, escolhas lexicais.
Conforme Leite (2009), a carta é o resultado da atividade de comunicação
escrita por alguém sob certas condições e “mimetizam a interrelação linguística
direta”. As cartas de Itinerários representam tais premissas, haja vista que
concretizam a atividade crítica literária de Mário de Andrade e Manuel Bandeira,
simulando um tom conversacional.
5.3 Fechando as ideias
Verificamos, por meio da historiografia, que as cartas de Itinerários não
apresentam nenhuma mudança em relação à forma e que validam todas as ideias
construídas pelos tratados de epistolografia. Vale ressaltar também o aspecto de
cortesia, já naquela época julgado de grande importância e ratificado pelas cartas
objeto deste trabalho.
Mesmo tendo temáticas comuns, há diferenças entre as cartas de Mário de
Andrade e Manuel Bandeira, primeiramente em relação à extensão, conforme
quadro (figura 14, página 145). Constatamos que Manuel Bandeira primava pela
brevidade e concisão enquanto Mário de Andrade discorria longamente sobre o fazer
poético de Alphonsus de Guimaraens Filho.
Por outro lado, em relação ao estilo, como ainda iremos analisar, antecipamos
que há mais marcadores de atenuação nas missivas de Mário de Andrade do que
em Manuel Bandeira. Isso ocorre não apenas em virtude da diferença de extensão
entre as cartas, mas pelo propósito individual dos escritores.
155
Em todas suas cartas, Mário de Andrade se preocupa em criticar, cotejar,
refletir sobre o fazer poético de Alphonsus de Guimaraens Filho. Já Manuel Bandeira
deixa o papel de “crítico” ou “mestre” para Mário de Andrade, apenas validando sua
posição em cartas que se assemelham a bilhetes.
156
Capítulo 6 - Oralidade em Itinerários
Procederemos com a análise do continuum estabelecido entre oralidade e
escrituralidade, vinculado à teoria de meio e concepção, apresentada primeiramente
por Koch e Oesterreicher (1985 e 2007) e repensada por Urbano (2006 e 2011).
Concentrar-nos-emos nas especificidades da oralidade, considerando que as
cartas, objeto de nosso trabalho, embora produzidas graficamente, respeitando a
forma/composição tradicional do gênero carta, apresentam muitas marcas de
oralidade, ou seja, representam textos “híbridos”. Essas marcas posicionam as
cartas entre o polo da escrituralidade e oralidade, de forma que independentemente
de seu meio gráfico, sua concepção se dará de acordo com a situação comunicativa
estabelecida pelos interlocutores.
As cartas se realizam dentro das normas do padrão culto, obedecem à
paragrafação e pontuação canônicas à exceção das construções singulares de
Mário de Andrade, conforme apresentamos em “2.1. Discutindo a linguagem de
Mário de Andrade”.
6.1 Discutindo o continuum em Itinerários
Da mesma forma que determinadas expressões realizadas de forma sonora
(orações de pêsames, explicações durante visitas monitoradas) apenas
correspondem a uma vaga ideia de “oralidade”, expressões realizadas graficamente,
a exemplo das cartas em Itinerários, distanciam-se da ideia de escrituralidade.
a) Não, Alphonsus, não argumente com essa frase em relação a
você.
(MA-1-1940, linhas 32-33, p.241)
b) Veja bem, Alphonsus, não me insurjo
157
absolutamente contra a Grande poesia, os grandes temas, a morte, a amada, etc. Nada
disso. Nem por sombra estou sugerindo também que você siga a espécie Manuel Bandeira
ou a espécie Carlos Drummond de Andrade, nada disso, Deus me livre!
(MA-2-1940, linhas 52-55, p.245)
c) Eu, por mim, não farei nunca sonetos irregulares . Falar nisso, você leu o
elogio e o estudo sobre a natureza do soneto,feito pelo Bandeira no discurso da Academia?
(MA-3-1941, linhas 23-24, p.247)
d) Ora, os seus poemas medidos e rimados vieram tranqüilizar-me,
mostrando que você tem todos os tons e todas as escalas.
(MB-7-1941, linhas 7-8, p.264)
e) Sua última carta mostra que você é dos tais. Já agora
não tenho mais escrúpulos de lhe falar.
(MB-9-1941, linhas 7-8, p.266)
Representamos aqui apenas um panorama geral de algumas marcas de
oralidade presentes no texto escrito das missivas de Itinerários: repetição em (a),
marcadores conversacionais em: (b),(c), (d), frases feitas e expressões gírias em (b),
(c) e (e).
Embora, a princípio, as cartas tenham sido produzidas graficamente, a
exemplo de bilhete, conversação eletrônica, entrevista publicada, entre outros
gêneros (URBANO, 2011, p.45), elas podem representar outras combinações, falado
+ escrito, denotando a possibilidade da transferência do meio típico de sua
realização para outro meio. Tais aspectos de oralidade e escrituralidade devem ser
relacionados às situações comunicativas.
Mário de Andrade e Manuel Bandeira se estabeleceram como locutores nas
cartas em Itinerários. As situações comunicativas ocorrem de forma diferente, Mário
de Andrade, muito mais que Manuel Bandeira, produziu entre 1940 e 1944 um
158
discurso preocupado com o fazer poético de Alphonsus de Guimaraens Filho,
pautando-se nos poemas previamente enviados pelo escritor mineiro, enquanto
Manuel Bandeira ficou com o papel de incentivador, o que ele fazia por meio de
elogios conforme notamos no quadro “cartas/temática”, a seguir:
Cartas de Mário Andrade Cartas de Manuel Bandeira
Referências Temática Referências Temática
MA-1-1940
p.241
Crítica sobre a
grandiloquência de AGF10,
escolhas lexicais próximas
do simbolismo e apelo
para que AGF busque a
originalidade.
MB-1-1940
p.258
Agradecimentos.
Elogios
MA-2-1940
p.244
Crítica sobre escolhas
lexicais de AGF e suas
rimas forçadas. Mário de
Andrade se coloca
contrário a “fórmulas
feitas”.
Elogios
MB-2-1940
p.259
Desculpas sobre o
envio de um livro que
AGF não recebera.
MA-3-1941
p.247
Mário de Andrade retorna
a São Paulo.
Critica o soneto irregular,
composição de AFG.
Elogios
MB-3-1940
p.260
Elogios
Breves considerações
sobre as escolhas
lexicais de AGF.
MA-4-1941
249
Menção a leituras dos
sonetos de Alphonsus de
Guimaraens (pai) e
lembranças da viagem a
MB-4-1940
p.261
Agradecimentos pela
carta recebida.
Elogios
10 AGF – Alphonsus de Guimaraens Filho
159
Minas Gerais quando
encontrou o Simbolista.
Crítica sobre os sonetos
irregulares de AGF.
Elogios
Considerações sobre
sua posse na
Academia Brasileira de
Letras.
MA-5-1941
p.252
Devolutivas das leituras,
exposição de seu próprio
percurso composicional,
uma autoanálise.
Comentários de suas
possíveis publicações.
MB-5-1941
p.262
Desculpas por não ter
respondido brevemente
à carta anterior de
AGF.
MA-8-1943
p.254
Relato do momento
(estava adoentado).
Elogios. (linhas 37-47)
Crítica sobre a
autenticidade de AGF.
MB-6-1941
p.263
Saudações e perguntas
sobre amigo em
comum.
MB-7-1941
p.264
Elogios
MB-8-1941
p.265
Elogios.
Breve crítica sobre o
processo de
metrificação/elisão de
AGF .
MB-9-1941
p.266
Crítica sobre o
processo de
metrificação/elisão de
AGF.
Elogios
Considerações sobre a
regularidade dos
sonetos .
160
MB-10-1942
p.268
Afazeres diários.
Alusão sobre a
importância da
regularidade poética.
MB-11-1942
p.269
Devolutiva citando um
quarteto composto por
ele mesmo.
MB-12-1942
p.270
Descrição sobre o lugar
onde está morando, em
virtude de sua doença.
Elogios
Suposta aceitação da
irregularidade de AGF.
MB-13-1942
p.271
Desculpas,
agradecimentos.
MB-14-1942
p.272
Devolutiva de
recebimento de
sonetos, elogios
MB-15-1942
p.273
Elogios
Descreve uma
composição em
homenagem a
Alphonsus de
Guimaraens.
MB-16-1942
p.276
Desculpas, afazeres
profissionais.
Elogios.
MB-17-1944
p.277
Envio de prefácio para
soneto de AGF.
161
Elogios
MB-18-1944
p.278
Comentário sobre a
edição e publicação de
uma antologia por ele
organizada.
Desculpas por não citar
na obra o nome de
AGF.
Elogios
MB-19-1944
p.279
Agradecimentos
Poema em
homenagem ao
nascimento do filho.
Sua viagem de avião a
São Paulo.
Elogios.
Das dezenove cartas escritas por Manuel Bandeira, treze contêm elogios e
apenas as cartas MB-3-1940, MB-8-1941, MB-9-1941, MB-10-1942, MB-12-1942
discorrem sobre o fazer poético de Alphonsus de Guimaraens Filho. Mário de
Andrade, por sua vez, trata do tema em todas as cartas, mesmo em MA-4-1941 em
que ele relata sua viagem a Minas Gerais e o encontro com Alphonsus de
Guimaraens, implicitamente ele descreve sua postura de poeta humilde quando
jovem. Em MA-5-1941, ao fazer sua autoanálise, Mário de Andrade também está
ensinando a Alphonsus de Guimaraens Filho a importância da reflexão sobre sua
própria composição.
Koch e Oesterreicher (1985) constroem um gráfico para explicar o trabalho de
formulação dos gêneros, confome já mostramos na figura 8, página 97.
Figura 16 – Temática das cartas
162
Baseando-nos nessa premissa, reconstruímos o gráfico a partir das condições
de comunicação vivenciadas por nossos locutores-enunciadores em Itinerários.
Locutor Interlocutor
Sugerimos, no gráfico, que as escolhas lexicais das cartas em Itinerários
remetem a um mesmo campo semântico = poesia, com pequenas variações =
mundo literário, o que exige conhecimento técnico dos escritores, ou dos locutores.
Em relação às normas da língua, Mário de Andrade tem um sistema ortográfico
próprio, como já mencionamos e, recorrentemente, desobedece às regras de
colocação pronominal, iniciando as frases com pronome oblíquo, enquanto Manuel
Bandeira se mantém dentro das regras gramaticais (B).
Os locutores além de fazerem menção aos poemas de Alphonsus de
Guimaraens Filho, ainda citam outros autores e livros. O que retoma a questão da
realidade extra-linguística (C) e se confirma pelos seguintes trechos:
a) Observe um Rubens em pintura um Bach em música, um Érico Veríssimo no
romance, um Augusto Frederico Schmidt em poesia.
(MA-8-1943, linhas 55-56, p.255)
b) Meu caro Alphonsus,
Recebi a sua carta de 9 e o livro do Tomás Brandão. Muito obrigado.
(MB-7-1941, linhas 1-2, p.264)
Soneto, quarteto,livros, poesia, rima (A)
Normas da língua + marcas de LF (B)
Poemas de AGF (C)
Cartas em Itinerários (D)
Figura 17 – Formulação do discurso no corpus
163
c) Gosto de conversar sobre esses problemas de técnica com poetas 100% como você,
Vinícius, Mário, Ribeiro Couto, Carlos Drummond de Andrade.
(MB-9-1941, linhas 24-25, p.266)
Tudo isso permeado por repetições e marcadores de atenuação que
imprimem ao texto escrito marcas de oralidade (B). O resultado do gráfico está na
formulação das cartas, o produto Itinerários (D).
O gráfico nos permite afirmar, respaldados em Koch e Oesterreicher (1985,
p.158), que as condições de comunicação não podem ser vistas de maneira linear,
mas sim dentro de um processo de combinação de variáveis.
A partir da combinação de determinadas variáveis, Koch e Oesterreicher (2007,
p.26-27) apresentam então 10 parâmetros ou condições comunicativas: grau de
privacidade, grau de familiaridade entre os interlocutores, grau de envolvimento
emocional, grau de ancoragem, campo referencial, imediatez física dos
interlocutores, grau de cooperação, grau de dialogicidade, grau de espontaneidade
da comunicação, grau de fixação temática, dos quais destacamos apenas os mais
relevantes para nossa análise, mantendo a referência dos itens indicados pelos
teóricos. Na análise que se segue, não discorreremos sobre os parâmetros na
ordem elencada pelos teóricos.
1. grau de familiaridade entre os interlocutores – depende do nível de
conhecimento entre os interlocutores e o conhecimento prévio dos
mesmos:
Em relação a esse grau, as cartas de Mário de Andrade e Manuel Bandeira
apresentam níveis diferentes, o que pode ser confirmado pelas saudações utilizadas
a seguir:
164
a) Ladeira de Santa Teresa, 106
Rio, 11-VII-40
Alphonsus
Sua carta me deu uma boa alegria, palavra.
(MA-1-1940, linhas 1-5, p.241)
b) São Paulo, 10-III-41
Meu caro Alphonsus
Faz um quinze dias, pouco mais, que estou definitivamente em São Paulo e já por esta
segunda-feira a vida vai correndo mais ou menos natural.
(MA-4-1941, linhas 1-5, p.249)
c) Caro poeta Alphonsus de Guimaraens Filho
Venho agradecer-lhe a oferta do seu livro Lume de Estrelas e a dedicatória da parte III.
(MB-1-1940, linhas 1-3, p.258)
d) Rio, Praia do Flamengo 122, ap. 415
Meu querido grande poeta Alphonsus
(MB-10-1942, linhas 1-2, p.268)
Cabe dizer que Manuel Bandeira se torna um ente querido da família de
Alphonsus de Guimaraens Filho, pois foi seu padrinho, enquanto Mário de Andrade
permaneceu na esteira profissional; daí a diferença de tratamento estabelecida.
Podemos ainda verificar, nos próximos excertos, que em (a) e (b), Mário se
coloca no papel de professor e crítico , mesmo que, em várias vezes, não queira
assumi-lo, talvez por modéstia, característica esta ressaltada por Manuel Bandeira
nas cartas entre eles trocadas.
165
Manuel Bandeira torna-se amigo da família, estabelece com Alphonsus de
Guimaraens Filho um discurso também preocupado com o seu fazer estético, mas,
muito mais direcionado para a motivação do poeta, como observamos em (c) e (d) a
seguir:
a) O segundo ponto é o problema dos canaviais ,trigais e pastores.A palavra pastor tal como
você a empregou está perfeitíssimamente bem. O verso é que já me parece menos
perfeitamente de você pelo seu jeito estereotipado,um pouco “estilo tal”, no caso cheirando
muito a simbolismo, ou pelo menos àquele post-simbolismo de Cinza das Horas e livros
daquele entre-meio de escolas que vivemos um tempo aqui. Com o caso do canavial já não
concordo com você. Si trigo é mais universal (não há dúvida), o é numa universalidade
perigosa, Bíblia-via-Europa.
(MA1-1940, linhas 40-46, p.242)
b) Eu, por mim, não farei nunca sonetos irregulares . Falar nisso, você leu o
elogio e o estudo sobre a natureza do soneto, feito pelo Bandeira no discurso da Academia?
É ótimo, só que eu seria mais irredutível que ele. O que vocês estão fazendo (e repare que
não ataquei o Schmidt por isso, antes elogiei) é um poema livre, com todos os caracteres e
poderes da liberdade, menos um : o número de versos. Acho impossível justificar isso quer
psicológica que estética ou tecnicamente.
(MA-3-1941, linhas 23-28, p.247)
c) Venho agradecer-lhe a oferta do seu livro Lume de Estrelas e a dedicatória da parte III.
Você entrou na poesia com uma responsabilidade tremenda – o nome de seu pai ! Mas
está se saindo galhardamente. Este Lume de Estrelas atesta um grande poeta, não reflexo
da poesia paterna, mas brilho de estrela de luz própria.
Posso dizer-lhe que os elogios de Tristão de Ataíde e do Mário de Andrade traduzem o
sentimento geral: você está classificado pela melhor gente no scratch.
(MB-1-1940, linhas 4-8, p.258)
d) Meu caro poeta,
Muito obrigado pela sua carta de 24 do mês passado, tão afetuosa. É um sentimento
delicioso — o melhor que nos podem dar os versos que fazemos — saber da ressonância
que despertam em almas delicadas como a sua.
166
(MB-4-1940, linhas 2-6, p.261)
2. grau de envolvimento emocional – estabelecido pelo interlocutor
(afetividade) e/ou pelo objeto da comunicação (expressividade). Manuel
Bandeira se destaca principalmente em relação à afetividade, pois suas
missivas são repletas de marcas de elogios, palavras de incentivo,
como se constatou no quadro (figura 16), página 158 deste trabalho e
também nos excertos a seguir em destaque:
a) Muito obrigado pela sua carta de 24 do mês passado,tão afetuosa.É um sentimento
delicioso — o melhor que nos podem dar os versos que fazemos — saber da ressonância
que despertam em almas delicadas como a sua.
(MB-4-1940, linhas 4-6, p.261)
b) Fico à espera dos seus novos poemas.É preciso pô-los para fora em livro.O Lume é muito
bom, mas o “ritmo inumerável” deu-lhe uma certa mortecor que eu receei fosse a sua
tonalidade fundamental. Ora, os seus poemas medidos e rimados vieram tranqüilizar-me,
mostrando que você tem todos os tons e todas as escalas.
Falar em Lume, li a lista dos disputantes do prêmio de poesia da Academia e ao que parece
o seu livro não é o melhor — é o único.
(MB-7-1941, linhas 5-10, p.264)
c) Rio, 19 de out. 41 Meu caro Alphonsus.
Tenho um mundo de coisas por fazer, mas não posso deixar de responder imediatamente à
sua carta de 16, recebida neste momento. Quando um poeta da sua força me pede
conselhos, fico cheio de dedos, com medo de desviá-lo para o meu caminho, quando quem
tem força anda sozinho.
(MB-9-1941, linhas 1-6, p.266)
167
Verificamos que em todos os excertos os destaques indicam uma linguagem
metafórica, especificamente em (a) a prosopopeia – versos que nos dão um
sentimento delicioso e em (b) e (c) a hipérbole indicando que, para Manuel Bandeira,
Alphonsus de Guimaraens Filho “tem todos os tons e todas as escalas” e que é
figura importante na vida do escritor, “mesmo com um mundo de coisas por fazer”
ele sempre terá tempo para lhe responder.
3. grau de espontaneidade da comunicação - podemos dizer que as
marcas de oralidade nas cartas têm a função de representar a
espontaneidade que é inerente à língua falada.
Destacamos a expressão “Deus me livre!” utilizada por Mário de Andrade três
vezes em nosso corpus, a saber: (MA-2-1940, linha 55), (MA-3-1941, linha 18), (MA-
4-1941, linhas 27-28).
4. grau de fixação temática - Embora o tema que permeie as cartas seja
o estilo de Alphonsus de Guimaraens Filho, os graus de familiaridade e
envolvimento entre os interlocutores promovem desvios temáticos.
Os afazeres de Mário de Andrade, seus dramas existenciais, suas publicações
e compromissos literários, bem como a doença de Manuel Bandeira e até sua posse
na Academia Brasileira de Letras também são assuntos para as cartas :
a) Espere, deixe eu mudar de pena,que esta arranha já muito. Como você está vendo:acabo
sempre respondendo, embora às vezes custe um bocadinho. Sua carta já é de 19 do mês
passado... Porém muita coisa sucedeu neste mês e dez dias de minha vida, muita coisa
minha, eleição do Manuel e farras consequentes, minha desistência da crítica profissional e
168
discussões preguiças consequentes, além de outra viagem a São Paulo, um novo curso
particular de filosofia da arte, mais sério e pedagógico.
(MA-2-1940, linhas 3-8, p.244)
b) Está se passando uma coisa estranha em mim,que não sei si é reflexo da doença,mas caí
numa inexistência interior assustadora. Ando completamente desnorteado comigo mesmo.
Na aparência continuo o mesmo, apenas mais magro doze quilos e um pouco amarelado.
Mas continuo, dando aulas, escrevendo minha crônica musical, cuidando dos meus
trabalhos. Leio. Não saio mais de noite a não ser por obrigação. Quando encontro amigos,
converso da mesma forma. Parece que tudo está na mesma, porém por dentro eu morri. Ou
desmaiei, pra usar palavra mais discreta. Não penso em mim, nas minhas coisas, não
sonho, não tenho vontades, não gozo nem sofro.
(MA-8-1943, linhas 9-16, p.254)
c) A minha posse na Academia foi uma dura provação:que coisa tremenda aquele fardão!
Quasi morri de calor. Por causa da tosse suspendi durante três dias o cigarro. Também mal
se acabou a cerimônia, voltei para casa, fiz um chá e disparei a fumar...
(MB-4-1940, linhas 10-12, p.261)
d) Descendo ao Rio no dia 23 do mês passado,recebi sua carta do dia 21.Não lhe pude
responder, porque no dia seguinte caí de cama com uma gripe de todos os diabos. Quinze
dias de molho. Só ante-ontem pude fugir ao forno do Rio. Naturalmente a fraqueza em que
fiquei me impediu de providenciar sobre o assunto de sua carta.
(MB-5-1941, linhas 3-6, p.262)
Segundo Koch e Oesterreicher (2007, p.28-29) há um conjunto de conceitos
que permite determinar com maior exatidão o status teórico de cada um dos
fenômenos conceituais de oralidade.
Destacamos mais algumas considerações sobre as características prototípicas
nas cartas de Itinerários:
169
5. dependência contextual restrita: Mário de Andrade, como notaremos no
capítulo específico sobre marcadores de atenuação, faz críticas
rígidas, entretanto, modaliza-as. Percebemos, pelo tom das cartas, a
extrema preocupação que Mário de Andrade tem de se fazer entender,
sem, no entanto, ser descortês para com seu interlocutor:
A série dos sonetos que você me mandou é simplesmente ótima. O ‘Delírio’ então é de
absoluta 1ª. ordem, um grande soneto. O Manuel e eu ficamos doidos de amor por ele, uma
invenção de uma força lírica esplêndida. Quase todos os outros são também muito bons,
mas não interessa elogiar. Você já refletiu bastante sobre o soneto irregular? Não falo
apenas sob o ponto- de- vista técnico que esse é claramente indefensável, mas sob o
estético. Satisfaz ao seu sentimento estético, ao seu prazer artístico o soneto irregular?
Deus me livre negar o valor, a força lírica de certos sonetos irregulares, os seus os do
Schimidt provam isso. Mas sempre me fica um certo não-sei-quê de insatisfação artística.
(MA-3-1941, linhas 12-19, p.247)
Verificamos que as três primeiras linhas do excerto denotam elogios em
relação aos poemas de Alphonsus de Guimaraens Filho, contudo, Mário de Andrade
vai construindo uma crítica progressiva, que culmina com a expressão: “Deus me
livre negar o valor [...]” , linha 18, o que lhe permite manter sua face positiva, como
veremos em capítulo específico.
6. apresenta limitações ao ponto de referência, impossibilidade da dêixis
estar centrada na origem do enunciador
As marcas dêiticas estão presentes em todas as missivas, pois elas são
iniciadas pelo local de onde escreve o locutor-enunciador, com respectiva data. O
distanciamento físico entre os interlocutores é evidente.
170
7. apresenta distanciamento físico
O distanciamento físico remete a qualquer impossibilidade de cooperação,
conforme já discorremos no tópico anterior. Assim, as cartas não representam uma
interação face a face, evidentemente, o que dá a esse gênero a característica de
híbrido é a sua presença no continuum entre os polos da oralidade e escrituralidade,
construído pela situação comunicativa criada por por Mário de Andrade e Manuel
Bandeira.
8. sem possibilidades de cooperação durante a produção
Mário de Andrade, na maior parte do tempo durante a troca de cartas,
estabeleceu-se em São Paulo e Manuel Bandeira, no Rio de Janeiro, enquanto
Alphonsus de Guimaraens Filho morava em Minas Gerais.
Os tópicos 7 e 8 indicam as características do texto prototipicamente escrito e
poderíamos classificar dessa forma as cartas se não tivéssemos uma situação
comunicativa atípica. Os escritores intencionam, desde o início das cartas,
estabelecer uma proximidade e interação com Alphonsus de Guimaraens Filho.
Como já abordamos, Manuel Bandeira constrói um texto acolhedor, repleto de
elogios e Mário de Andrade, apesar de ser crítico, faz seu papel, utilizando
marcadores de atenuação, como trataremos em capítulo específico.
9. dialogicidade estritamente regulada (pela troca de correspondência)
A dialogicidade é simulada também por meio do uso de marcadores, breves
perguntas e expressões próprias da oralidade:
a) Muito que bem.Agora apenas levando de sua carta uma idéia que preciso esclarecer.Uma
não, três. A primeira é você acreditar, com razão que também “A Volta do Condor” se refere
a você.
(MA-1-1940, linhas 27-29, p.241)
171
b) Quando não concordar, não concorde, discuta, brigue, berre.E principalmente não aceite.
(MA-1-1940, linha 69, p.243)
c) Como vai? Há muito tempo não tenho notícias suas.Venho pedir-lhe um favor:veja se me
arranja aí um exemplar do livro de Tomás Brandão sobre Marília.
Tem estado com o Rodrigo? Ele está passando uns dias em Sabará hospedado na Casa da
Intendência do Ouro.
(MB-6-1941, linhas 4-7, p.263)
Em (a) temos a presença de um marcador ‘muito que bem’, em (b) repetição de
itens lexicais e no excerto (c) duas breves perguntas que denotam a preocupação
dialógica de Manuel Bandeira.
10. desenvolvimento temático livre
Por fim, a questão do desenvolvimento temático, que já foi por nós
apresentada. Reiteramos que a temática que norteia as missivas em Itinerários é a
crítica aos poemas de Alphonsus de Guimaraens Filho, com o intuito de aprimorar
seu fazer poético. Cabe ressaltar que as cartas de Manuel Bandeira têm um
desenvolvimento temático mais livre, como apresentado no quadro da página 158
(figura 16) enquanto as cartas de Mário de Andrade mostram fixidez temática.
Podemos inferir que, nesse ponto, as cartas de Manuel Bandeira se aproximam
mais do polo da oralidade, com uma linguagem típica da imediatez.
Confirmamos, após essas discussões, que os polos do continuum são
marcados pela imediatez comunicativa e distância comunicativa, entretanto, as
combinações possíveis dentro do espaço multidimensional possibilitam que os
gêneros, em suas especificidades, se posicionem diferentemente entre os polos, o
que pudemos demonstrar ao submetermos as cartas de Itinerários aos parâmetros
estipulados por Koch e Oesterreicher (2007).
As cartas entre escritores se constituem, da perspectiva do meio, um texto
172
escrito, produzido graficamente. Da perspectiva da concepção, tais missivas
representam textos híbridos, dotados de especificidades e combinações, sobretudo
marcas de oralidade que analisaremos a seguir.
6.2 Língua falada na língua escrita de Itinerários
Primeiramente, faz-se necessário ressaltar que os estudos apresentados no
capítulo “2.1. Discutindo a linguagem de Mário de Andrade”, nos levaram a refletir
sobre as posturas linguísticas do escritor.
Mário de Andrade tinha, como observamos nos estudos de Pinto (1990), uma
vontade de sistematizar a língua portuguesa, fundindo a chamada língua às
variedades da fala, fixando e consagrando os usos.
A língua por ele utilizada nas cartas ou em qualquer outro texto escrito é
denominada de língua literária, ou seja, a legitimação da fala na escrita.
Assim, voltando-nos para a nossa análise e objetivo deste trabalho, que é
constatar a presença de marcas de oralidade, marcadores de atenuação nas cartas
de Mário de Andrade e Manuel Bandeira, a fim de legitimar a presença da cortesia
verbal; entenderemos a língua de Mário de Andrade como língua escrita,
manifestação da escrituralidade com marcas da fala, ou seja, oralidade, cuja
intenção, a nosso ver, é manter a interação com o interlocutor.
Para legitimar a posição das cartas, objeto deste trabalho, dentro do continuum
estabelecido entre os polos da oralidade e escrituralidade, cabe insistir que tais
textos são produzidos graficamente, sendo a troca de cartas uma atividade social
verbal de produção textual em que não há interação face a face.
No capítulo 5, apresentamos os aspectos de escrituralidade das cartas em
Itinerários, especificamente em “5.1 Itinerários x historiografia do gênero carta”, ao
173
relacionarmos as cartas ao modelo ciceroniano, gênero escrito, conforme figura 13,
página 143.
A escrituralidade do gênero também se legitima em “5.2 Discutindo o gênero
carta entre escritores”, especificamente pela figura 15, página 151 , quadro
comparativo carta pessoal vs. carta entre escritores, em que temos a seguinte
explicação para o tópico “motivação” das cartas : “Necessidade de transmitir, por
escrito, uma mensagem a um sujeito, com quem se mantém relações de formalidade
e informalidade”.
Dessa forma, a língua escrita, medial e concepcionalmente falando, é o “pano
de fundo” sobre o qual sobressaem certas marcas de oralidade.
Para Urbano (2011), entre as características gerais da língua oral, de ordem
intrínseca ou extrínseca, estão, entre muitas outras:
a entonação afetiva, manifestada, entre outras formas, pelas
intensificações da voz, a frequência de repetições ( de nível
gramatical, lexical ou sintático); as constantes pausas, hesitações,
interrrupções e correções; o uso de dêiticos pessoais, espaciais e
temporais; os marcadores conversacionais ou discursivos típicos; as
construções elípticas e anacolúticas; e as reações e feeedbacks da
audiência. (p.72)
Extraímos das cartas em Itinerários alguns excertos que corroboram a nossa
tese, que objetiva comprovar que, apesar de se tratar do gênero carta, em sua
especificidade, cartas entre escritores, e, portanto, ser produzida graficamente e
conter muitas marcas de escrituralidade, registra também várias características da
língua oral.
Procederemos o levantamento de marcas específicas de oralidade nos eixos:
fonético, mofossintático e sintático em nosso corpus, com o intuito de autenticarmos
174
ainda mais essa prática discursiva utilizada por Mário de Andrade e Manuel
Bandeira.
O uso de marcas da língua oral denota vontade dos locutores de aproximar o
texto do interlocutor. De forma que, se Mário de Andrade e Manuel Bandeira fizeram
uso de tais marcas eles visavam à interação mais franca e aberta com Alphonsus de
Guimaraens Filho
6.2.1 Eixo fonético
Dos fenômenos elencados por Urbano (2011, p.96), destacamos a redução
sincopada de “para” para ‘pra’. Tal fenômeno é recorrente nas cartas de Mário de
Andrade e inexistente nas cartas de Manuel Bandeira. Destacamos alguns exemplos
nas cartas de Mário de Andrade:
a) Acredite, Alphonsus,é muito mais difícil, então a gente ser sincero, ser honesto pra
com um moço como você,do que pra com um já-feito que a experiência dos anos já nos
garante que não perderemos mais.
(MA-1- 1940, linhas 22-24, p.241)
b) Como explicar a evolução das artes e de cada artista em si, sem essa insinceridade
que é a sinceridade dinâmica, que nos leva a buscar o insabido em nós e na técnica, que
nos leva a forçar a nota, a abandonar o bom passado, a manquejarmos in-habeis e
manquitolantes um tempo, pra num próximo dia adquirirmos enfim a sinceridade nova, mais
nossa pelo menos, mais invulnerável também ?
(MA-1-1940, linhas 59-63, p.242)
c) O seu substitutivo
brasileiro, de nossa intimidade, é ‘vila’. ‘Adolescente’ ainda vai bem mas sugiro qualquer
substituição, ‘povoações’, ‘povoado’, ‘vilas’, pra tornar mais íntimas as aldeias nacionais.
(MA-2-1940, linhas 66-68, p.245)
175
d) Discorde à vontade do que eu lhe digo,brigue, me xingue, mas não se zangue.No fundo
sou bom e estou gostando dos seus (pra usar uma palavra muito sua) caminhos.
(MA-2-1940, linhas 85-86, p.246)
e) O
Guilhermino, o João Alphonsus, o Ciro me conte em segredo o que estão fazendo,
romances ? Eu estou alimpando uns estudos críticos, 4, sobre artes diferentes, pra uma
série, O caderno Azul [...]
(MA-2-1940, linhas 87-90, p.246)
f) Vá sempre mandando versos pra essas rebugices.
(MA-3-1941, linha 41, p.248)
g) Faz um quinze dias,pouco mais,que estou definitivamente em São Paulo e já por esta
segunda-feira a vida vai correndo mais ou menos natural. Mas assim mesmo ainda tem
muita coisa pra arrumar, ou milhor: tudo já está arrumado, falta é ler, reler este mundão de
papéis, rasgar coisas inúteis e guardar boas.
(MA-4-1941, linhas 4-7, p.249)
h) É
certo que desejava ver a ‘Episcopal cidade’, mas a ela me levava naqueles meus 21 anos a
curiosidade de conhecer dois homens que ... pra falar a verdade não é que eu admirasse ou
amasse muito eles, era muito egoísta nos meus 21 anos pra amar homens o ‘rúim esquisito’
como lá disse o Manuel Bandeira, do Há uma Gota de Sangue em cada Poema’.
(MA-4-1941, linhas 18-22, p.249)
i) Pedi pra
copiar o ‘Vaga em redor de ti...’ que ele em seguida se prontificou a autografar.
(MA-4-1941, linhas 45-46, p.250)
j)Desculpe me divertir assim me analisando,isso não salva a Canção que evidentemente não
é das possíveis coisas boas que já fiz. O que eu a sinto é muito minha, pra me ser possível
não gostar dela com um desejo de permanência dela.
(MA-5-1941, 39-41, p.253)
176
k) Que estão enfim prontas e hoje vou ver orçamentos pra publicação delas.
(MA-5-1941, linha 44, p.253)
l) Ao
menos isso, tem de grato, a gente publicar livro por sua conta: dispõe de exemplares à farta
pra matar saudades.
(MA-5-1941, linhas 52-54, p.253)
m) Você diz pra eu lhe responder apenas “quando tiver vontade",mas estou lhe escrevendo
apenas pra experimentar este papel que não é nem pra tinta nem pra carta.
(MA-8-1943, linha 4-5, p.254)
n) E eu creio que o
gesto é milhor que a “vontade", estava impaciente pra experimentar o papel que é o mais
barato achado na cidade,
(MA-8-1943, linhas 5-7, p.254)
o) Parece que tudo está na mesma, porém por dentro eu morri. Ou
desmaiei, pra usar palavra mais discreta.
(MA-8-1943, linhas 14-15, p.254)
p) Olhe, Alphonsus, dizem mesmo que não sou um companheiro muito cômodo e andei
inventando um problema novo pra enquislar o seu espírito
(MA-8-1943, linhas 26-27, p.254)
q) É certo que não reli duma vez só (muito
importante, pra fixar opinião comparativa e bem baseada)
(MA-8-1943, linhas 33-34, p.254)
r) Pra mim, não tem dúvida nenhuma
que algumas vezes o Schmidt não está fazendo Poesia mas apenas um “à manière de"
Augusto Frederico Schmidt.
(MA-8-1943, linhas 58-60, p.255)
s) Exprimente pra ver o que sai.
(MA-8-1943, linha 63, p.255)
177
t) Tive um convite pra ir aí que em vez de me alegrar me fez sofrer: não posso ir,não devo ir.
Falar a estudantes, falar o quê!
(MA-8-1943, linhas 69-70, p.255-256)
Percebemos que as reduções utilizadas por Mário de Andrade conferem ao
texto das cartas informalidade, bem como uma proximidade entre os interlocutores.
Em meio a escolhas lexicais cultas e imbricadas no campo literário, surge, então, tal
marca “pra”, que quebra a rigidez das críticas de Mário de Andrade.
Cabe lembrar que, enquanto entendemos tal redução como marca de
oralidade, Mário de Andrade a utiliza como grafia natural e de uso sistemático e
consciente do que ele denomina de língua literária, língua brasileira escrita.
6.2.2 Eixo morfossintático
Para Urbano (2011, p.105), a língua oral possui usos próprios diferentes da
língua escrita padrão, além de ser repetitiva e fazer uso de implícitos e de outros
recursos, tanto suprassegmentais como situacionais. A informalidade da língua oral
fica, muitas vezes, por conta do uso de palavras e partículas sem conteúdo
significativo, bem como marcadores conversacionais, que denotam pouca
preocupação com o planejamento discursivo.
Alguns casos considerados nos limites da sintaxe, trataremos mais adiante,
como é o caso da expressão ‘é que’, típica da espontaneidade enfática da língua
falada, muitas vezes tida como partícula expletiva.
178
Conforme abordamos na parte teórica, o uso de formas analíticas também é
uma das características morfossintáticas da língua oral.
A seguir, elencamos as ocorrências em que Mário de Andrade utiliza a fórmula
ir + infinitivo no lugar do futuro sintético, como: recomeçarei, verei etc em (a) e (b):
a) Pelo que está assentado vou recomeçar a vida aos
47 anos feitos, contando com quatrocentos mil réis mensais de biscates de artigos.
(MA-3-1941, linhas 7-8, p.247)
b) Que estão enfim prontas e hoje vou ver orçamentos pra publicação delas.Constarão de
uma escolha de poemas dos livros já publicados e duas partes novas, uma terrível "Costela
do Grão Cão” muito brutal e pessoalmente detestável, e um “Livro Azul”, onde por minha
própria crítica está o que de milhor fiz em poesia.
(MA-5-1941,linhas 44-47, p.253)
É recorrente tal uso em todas as cartas de Mário de Andrade em Itinerários, no
entanto, como recortamos nosso corpus, só apontamos duas. Manuel Bandeira
utiliza apenas uma vez tal construção:
a) Fiz vários aqui neste repouso de
Petrópolis, em que a inspiração se sentiu estimulada pela profunda ociosidade e por um
livro encantador de Juan Ramón Jiménez (conhece-o? Que poeta!) — Canción —
emprestado pela Gabriela Mistral. Vou transcrever dois ou três para você
(MB-15-1943, linhas 15-18, p.273)
Percebemos que Mário de Andrade tem grande preocupação com a
informalidade dos textos de suas cartas. Ao usar recorrentemente as formas
analíticas, o locutor estabelece o tom de conversa nas cartas.
179
Por outro lado, Manuel Bandeira apresenta em suas cartas um texto mais
formal, o que se faz comprovar pela ausência das construções analíticas e pelo uso
de formas sintéticas, como nos seguintes trechos:
a) P.S. Um grande abraço pelos dois contos do prêmio da Academia.Depois escreverei mais
sobre o caso. Mando-lhe o meu ex-libris.
(MB-10-1942, linhas 27-28, p.268)
b) Espero que o volume tenha novas edições e então remediarei essa falha
enorme de uma antologia da lírica brasileira sem o meu querido Alphonsus de Guimaraens
Filho!
(MB-18-1944, linhas 14-16, p.278)
Além das formas analíticas, as formações sufixais, sobretudo os diminutivos e
aumentativos também contribuem para a questão da informalidade e denotam
marcas da língua oral. Verificamos tal emprego nos seguintes excertos:
Diminutivos de Mário de Andrade
a) Espere,deixe eu mudar de pena, que esta arranha já muito.Como você está vendo: acabo
sempre respondendo, embora às vezes custe um bocadinho.
(MA-2-1940, linhas 3-4, p.244)
b) E foi uma hora de êxtase em que eu não disse nem um bocadinho que era poeta,Deus me
livre!
(MA-4-1941,linhas 27-28, p.249)
c) Mas um cocarzinho da ilha do Bananal esse não pude me
desprender dele: guarda uma dessas coisas sublimes da vida de um artista.
(MA-4- 1941, linhas 37-38, p.250)
d) É gostoso corrigir, polir, transformar a
180
‘espontaneidade’ rosa-gato-pinto-macaquinho pra adquirir aquela supernaturalidade da arte,
o La Fontaine que precisou de dez versões pra atingir o La cigale ayant chanté.
(MA-4-1941, linhas 67-69, p.250)
Diminutivos de Manuel Bandeira
a) “Renúncia" foi o melhor
sonetinho até 1929 ou 1930, quando traduzi os três sonetos da Browning e peguei o jeito.
(MB-9-1941, linhas 21-22, p.266)
b) Saiu melhorzinho porque o fiz num sub-delírio da minha tuberculose (41 graus de febre).
(MB-9-1941, linha 23, p.266)
c) Quando voltei ao quartinho da rua Morais e
Vale, caí na cama estrompado e me bateu uma bruta dor de corno de deixar aquele
cantinho onde fui feliz.
(MB-10-1942, linhas 13-15, p.268)
d) Ah, queria que você visse o meu quarto! Pequenitinho,
(MB-12-1942, linha 7, p.270)
e) Quarto
caiadinho de branco, que seria muito romântico, sim senhor, se a diária não fosse de trinta
mil réis!
(MB-12-1942, linhas 9-11, p.270)
Verificamos que os diminutivos utilizados pelos escritores dão um caráter de
informalidade, como notamos nos excertos de Mário de Andrade e de Manuel
Bandeira.
Os diminutivos de Manuel Bandeira também indicam tal postura.
Especificamente (a) e (b) denotam um teor crítico, ’sonetinho’, ‘melhorzinho’
indicando também um ataque à face positiva do próprio Manuel Bandeira, que se
181
coloca numa posição de inferioridade, ‘foi o melhor sonetinho’ um poema sem muita
importância, ou aquele poema que não exigiu tanto para sua elaboração.
Já os diminutivos dos excertos (c) a (e) caracterizam tanto o tamanho diminuto
do quarto de Manuel Bandeira quanto o caráter de singularidade que ele dava a
esse local.
Urbano (2000, p.106-113) estuda as marcas específicas relacionadas à
categoria ou classe de palavras. Norteados por tal pesquisa, identificamos nas
cartas em Itinerários tais marcas:
I- Uso do pronome reto “ele” ou “ela” pelos pronomes oblíquos “o” e “a”, a
revelia da norma gramatical
a) pra falar a verdade não é que eu admirasse ou
amasse muito eles, era muito egoísta nos meus 21 anos pra amar homens o ‘rúim esquisito’
(MA-4-1941, linhas 20-21, p.249)
b) Ora até
que ponto V. já não sabe-de-cor essa personalidade caracterizada e nao estará repetindo
ela
(MA-8-1943, linhas 47-49, p.255)
Constatamos dois usos de “ele” e “ela” no lugar de ‘o’ e ‘a’ nas cartas de Mário
de Andrade e nenhum uso nas missivas de Manuel Bandeira. Inferimos que as
marcas de Mário de Andrade indicam tanto marca da língua oral, quanto a vontade
que o escritor tinha de abrasileirar a língua, conforme já expusemos em
“2.1Discutindo a linguagem de Mário de Andrade”. Já Manuel Bandeira utiliza os
pronomes oblíquos de acordo com a regra da norma culta:
a) Fico à espera dos seus novos poemas. É preciso pô-los para fora em livro.
(MB-7-1941, linha 5, p.264)
182
II- Uso do advérbio – muito – na composição do grau analítico do adjetivo:
Marcas de Mário de Andrade
a) Lembranças aos amigos e guarde este abraço muito grato
(MA-1-1940, linhas 71, p.243)
b) Soa um bocado ridiculamente, muito prosaico, sem vagueza poética.
(MA-2-1940, linhas 46, p.245)
c) Quase todos os outros são também muito bons,
mas não interessa elogiar.
(MA-3-1941, linhas 14-15, p.247)
d) Talvez reúna todos numas Poesias Escolhidas já organizadas e
escolhidas, mas que ficam muito caro de impressão.
(MA-3-1941, linhas 43-44, p.248)
e) Mas seria desleal si eu não lhe propusesse o problema, tanto mais que
ele é muito importante para caracterizar a riqueza produtiva do seu lirismo.
(MA-8-1943, linhas 28-29, p.254)
f) É certo que não reli duma vez só (muito
importante, pra fixar opinião comparativa e bem baseada)
(MA-8- 1943, linhas 33-34, p.254)
Marcas de Manuel Bandeira
a) Acho “mamãe” a palavra mais do fundo da ternura mais íntima que trazemos em nós.
Pode e deve ser empregado em ocasiões muito raras
(MB-3-1940, linhas 8-9, p.260)
b) Acho a rima indiscreta e “santos gera” muito desagradável como som.
(MB-3-1940, linha 14, p.260)
183
c) Quarto
caiadinho de branco, que seria muito romântico, sim senhor, se a diária não fosse de trinta
mil réis!
(MB-12-1942, linhas 9-11, p.270)
d) Estou muito curioso de o ler.
(MB-13-1942, linha 7, p.271)
e) Ele anda muito entusiasmado com os números
de Autores e Livros dedicados a seu Pai.
(MB-13-1942, linhas 8-9, p.271)
f) Fiquei muito
aborrecido com isso.
(MB-18-1944, linhas 6- 7, p.278)
A utilização da forma analítica indica marca da língua oral, levantamos seis
ocorrências tanto nas cartas de Mário de Andrade quanto nas cartas de Manuel
Bandeira. Consideramos, apenas, os casos em que o uso do sintético seria possível
e não causaria estranheza.
III- Utilização da 3ª. pessoa gramatical – você – ao se referir à 2ª. pessoa do
discurso, seja na função de sujeito ou não.
Por amostragem, afirmamos que os escritores fazem uso corrente do pronome
‘você’ ao se referir à 2ª. pessoa do discurso, o que também indica marca da língua
oral.
184
Marcas de Mário de Andrade
a) Acredite, Alphonsus,é muito mais difícil, então a gente ser sincero, ser honesto pra
com um moço como você, do que pra com um já-feito que a experiência dos anos já nos
garante que não perderemos mais.
(MA-1-1940, linhas 22-24, p.241)
b) que você é um
sujeito ‘direito’, mais inteligente que a vaidade.
(MA-1-1940, linhas 25-26, p.241)
c) A primeira é você acreditar, com razão que também “A Volta do Condor” se refere
a você.
(MA-1-1940, linhas 28-29, p.241)
d) “Canavial” é exótico em Rilke? Não há dúvida e é isso que me
interessa prá humanidade de você
(MA1-1940, linhas 46-47, p.242)
e) Não há dúvida e é isso que me
interessa prá humanidade de você, prá não estereotipação de você: é que se você tivesse
falado sem vir através de canaviais, ou de cafezais, ou de terras de ferro, isso seria sua
humanidade
(MA-1-1940, linhas 46-49, p.242)
f) Enfim 3º.e último ponto. É isso mesmo que eu quero.É que você tenha o exercício da sua
total liberdade diante de mim. (Não me chame “mestre” por favor, não gosto) (Me chame
Mário, você.)
(MA-1-1940, linhas 65-67, p.242)
Marcas de Manuel Bandeira
a) Você entrou na poesia com uma responsabilidade tremenda – o nome de seu pai !
(MB-1-1940, linha 4, p.258)
185
b)
Posso dizer-lhe que os elogios de Tristão de Ataíde e do Mário de Andrade traduzem o
sentimento geral: você está classificado pela melhor gente no scratch.
(MB-1-1940, linhas 7-8, p.258)
Ressaltamos o trecho (f) em que Mário de Andrade enfatiza que a utilização de
– você – indica familiaridade e é por isso que o escritor quer que Alphonsus de
Guimaraens Filho faça uso dessa forma.
Pronomes demonstrativos, artigos, adjetivos e outras expressões são
utilizados como intensificadores ou enfáticos. A seguir, elencamos oito trechos em
que Mário de Andrade faz uso do artigo indefinido para intensificar o elemento a que
se refere, contrariamente à característica essencial do artigo indefinido que é a de
generalizar substantivos comuns.
a) Por vezes, quando leio assim em seguida três ou quatro
poemas de V., tenho uma sensação vaga do “fácil”. De um “fácil" seu exclusivo de V.
(MA-8-1943, linhas 45-46, p.255)
b) Observe um Rubens em pintura um Bach em música, um Érico Veríssimo no
romance, um Augusto Frederico Schmidt em poesia.
(MA-8-1943, linhas 55-56, p.255)
Nos exemplos (a), (b) percebemos que os termos ‘um fácil”, “um Érico
Veríssimo”, “Um Augusto Frederico Shmidt” são utilizados para diferenciar o
elemento, dando-lhe um caráter de prestígio.
Localizamos também a expressão ‘por mim’ em um trecho da carta de Mário
de Andrade, que denota a ênfase na primeira pessoa, no caso o próprio escritor. Tal
expressão pode ser vista como um marcador de intensificação. Ao fazer uso de tal
expressão Mário de Andrade indica para seu interlocutor que pode haver pessoas
que pensam diferentemente dele, contudo “ele, por ele” pensa desta forma:
186
a) Eu, por mim, não farei nunca sonetos irregulares.
(MA-3-1941, linha 23, p.247)
6.2.3 Eixo sintático
Concordamos com Urbano (2011, p.114) que afirma que a sintaxe da língua
oral deve ser vista pela perspectiva de fatores psicológicos e pragmáticos. A quebra
da norma indica, muitas vezes, uma intenção de tornar o texto mais próximo do
interlocutor.
O locutor, com status sócio-cultural mais elevado que o interlocutor, ao
quebrar determinada regra sintática, por exemplo , no caso da colocação enclítica
obrigatória e utilizar a próclise, diminui uma possível tensão discursiva.
Em relação à questão sintática, apontamos em nosso corpus a presença de
dez pronomes oblíquos em início de frase, especificamente nas cartas de Mário de
Andrade, o que já era esperado, uma vez que tal uso é sistemático na linguagem do
escritor como vimos em capítulo específico. Manuel Bandeira utiliza apenas uma
vez tal ocorrência.
É norma da língua falada a colocação do pronome principalmente quanto à
primeira pessoa em início de frase11. Tais marcas tornam o texto menos formal, uma
simulação de conversa.
11 Conforme Cunha e Cintra (2001, p. 316), a colocação dos pronomes átonos no Brasil, principalmente no colóquio normal, difere da atual colocação portuguesa e encontra, em alguns casos, similar na língua medieval e clássica. Podem-se considerar como características do português do Brasil e, também, do português falado nas repúblicas africanas a possibilidade de se iniciarem frases com tais pronomes, especialmente a forma me: — Me desculpe se falei demais. (Érico Veríssimo, A, II, 487.)
187
Percebemos que, ao antecipar o pronome, Manuel Bandeira tenha realmente
pensado em atribuir um caráter de proximidade a seu texto, enquanto Mário de
Andrade o faz como uso da língua escrita que lhe é peculiar.
Pronomes proclíticos de Mário de Andrade
a) Me mande coisas suas de vez em quando.
(MA-1-1940, linha 73, p.243)
b) Me refiro à
estranheza desagradável da palavra ‘gera’ no mau verso ‘Sonho de paz que os bons e os
santos gera’
(MA-2-1940, linhas 23-25, p.244)
c) Me parece também de uma abnegação um pouco fácil, um pouco, desculpe:
acaciana
(MA-2-1940, linhas 44-45, p.245)
d) Me desculpe a demora na resposta.
(MA-3-1940, linha 4, p.247)
e) Me sinto leve, alegre, feliz outra vez
(MA-3-1940, linha 9, p.247)
f) Me apresentei
apenas como fan e assim fiquei todo o tempo.
(MA-4-1941, linhas 31-32, p.249)
g) Me escreva e mande versos pra meu
descanso e amizade.
(MA-4-1941, linhas 83-84, p.251)
h) Me diverti e
publiquei pelo que isso tinha de arranhante, nada mais.
(MA-5-1941, linhas 12-13, p.252)
188
i) Me lembro que eu
principiava pelo refrão
(MA-5-1941, linhas 18-19, p.252)
j) Me perdoe, si puder
(MA-8-1943, linha 67, p.255)
Pronomes proclíticos de Manuel Bandeira
a) Me parece
possível consertar abandonando a idéia
(MB-3-1944, linhas 14-15, p.260)
Urbano (2011, p.125) destaca ainda que a utilização do pronome pessoal ‘eu’,
centração na 1ª. pessoa, denota egocentrismo, aspecto da língua falada
conversacional, como ressaltamos em alguns trechos de Mário de Andrade e de
Manuel Bandeira:
a) Mas sua carta veio me sossegar, me provando mais uma
vez o que eu já pressentira em nossos rápidos encontros em Belo Horizonte: que você é um
sujeito ‘direito’, mais inteligente que a vaidade.
(MA-1-1940, linhas 24-26, p.241)
b) É frase grosseira, de positivo ataque, que si eu a tivesse que dizer a você ou a diria
endereçada, ou a poria no artigo sobre você ou, é quase certo, preferiria dizê-lo por carta.
(MA-1-1940, linhas 33-34, p.241)
c) Enfim 3º.e último ponto. É isso mesmo que eu quero.É que você tenha o exercício da sua
total liberdade diante de mim.
(MA-1-1940, linhas 65-66, p.242)
d) Fui interrompido por um telefonema de Murilo Miranda contando coisas.Quando soube que
eu estava escrevendo a você pediu que eu reclamasse seu livro prometido e mais a sua
seleção de poemas e também a do Emílio Moura para a Antologia, da Revista Acadêmica.
(MA-2-1940, linhas 14-16, p.244)
189
e) Se o soneto fosse meu,eu diria no 4.° verso do 2° quarteto “Dizendo a minha mãe porque
parti.
(MB-3-1940, linhas 7-8, p.260)
f) Fico à espera dos seus novos poemas.É preciso pô-los para fora em livro.O Lume é muito
bom, mas o “ritmo inumerável” deu-lhe uma certa mortecor que eu receei fosse a sua
tonalidade fundamental.
(MB-7-1941, linhas 6-7, p.264)
g) Você tem toda a razão e eu entrego a mão à palmatória: “As nossas mãos em adeuses se
desfolham" é muito melhor, como força expressiva e como ritmo, que "Nossas mãos em
adeuses se desfolham".
(MB-9-1941, linhas 11-13, p.266)
h) Demorei em responder, porque a sua carta me chegou no momento em que eu estava de
saída para aqui, e aqui uma coisa e outra me impediam de escrever: a princípio nem mesa
tinha no quarto.
(MB-12-1942, linhas 5-7, p.270)
i) Quarto
caiadinho de branco, que seria muito romântico, sim senhor, se a diária não fosse de trinta
mil réis! Mas a comida é excelente, e eu estou pertinho das árvores, e de noite pertinho do
céu.
(MB-12-1942, linhas 9-12, p.270)
Por se tratar de cartas, texto que trata das impressões do próprio locutor, há
essa marca do egocentrismo presente em todas elas, característica comum da
linguagem falada conversacional. Tanto Mário de Andrade quanto Manuel Bandeira
tecem suas críticas enfatizando esse ‘eu’, com o intuito de esclarecer para
Alphonsus de Guimaraes Filho, que essa é apenas uma das possibilidades de se
pensar poesia.
190
Urbano (2011) também ressalta que certas marcas de oralidade dão ao texto
um caráter de espontaneidade. São expressões já tratadas pelo pesquisador no eixo
morfossintático como expletivos enfáticos ou de realce.
Cremos que, especificamente, a expressão ‘é que’ indica tal característica. Ao
utilizá-la de forma recorrente, como notaremos nos dez trechos a seguir, Mário de
Andrade dá às cartas um tratamento especial de oralidade, criando uma situação
comunicativa mais informal, como se as cartas fossem lidas em alta voz, como uma
conversa.
Manuel Bandeira já se mostra módico em relação à tal marca, utilizando- a
apenas três vezes. Mais uma vez, verificamos que as cartas de Mário de Andrade
têm muito mais características da língua oral que as de Manuel Bandeira.
Utilização da expressão “é que” por Mário de Andrade
a) É que você tenha o
exercício da sua total liberdade diante de mim.(Não me chame “mestre” por favor, não
gosto) (Me chame Mário, você. Não pretendo com isto nenhuma humildade falsa. Mas você
se sentirá mais livre, e eu mais esquecido de mim).
(MA-1-1940, linhas 65-68, p.242)
b) O pior é que não consigo saber claro
porque.
(MA-2-1940, (linhas 43-44, p.245)
c) O que me agrada é que a sua poesia agora dá um
som mais forte (embora às vezes destimbrado ainda) de personalidade, de ressonância
necessária.
(MA-2-1940, linhas 57-59, p.245)
d) Só agora é que, em poesia, você está na
abertura da adolescência.Os meninos têm voz de soprano de enorme unidade e timbração
sopranística.
191
(MA-2-1940, linhas 59-61, p. 245)
e) Ao entrarem na adolescência é que se dá aquele tempo engraçadoem que
mudam de voz ora falam grosso, ora fino. Você está nesse estado de mudança de
voz...poética.
(MA-2-1940, linhas 62-64, p.245)
f) pra falar a verdade não é que eu admirasse ou
amasse muito eles, era muito egoísta nos meus 21 anos pra amar homens o ‘rúim esquisito’
como lá disse o Manuel Bandeira, do Há uma Gota de Sangue em cada Poema’.
(MA-4-1941, linhas 20-22, p.249)
g) Pena é que não possa fazer isso já, pra sair no Crítica Literária ou
que nome tenha, que darei prá Marília-Editora. Conte ao Júlio Barbosa que já estou
preparando o livro.
(MA-4-1941, linhas 55-57, p.250)
h) A verdade é que seus sonetos, regulares ou não, são
excelentes. Trabalhe, pense nos problemas estéticos fora do momento de poetar e
principalmente depois de feito o poema.
(MA-4-1941, linhas 65-67, p.250)
i) Esta contradição entre a Verdade e a verdade do momento é que provocara o
subterfúgio do final interrogativo que não era nem uma verdade nem outra: era mentira,
embora também mentira psicológica, tão sincera como qualquer verdade.
(MA-5-1941, linhas 25-27, p.252)
j) Não chego
bem mais a perceber como é que ela trabalha, assim solta, desprovida de impulsos mais
interiores, de bases mais profundas, de exigências mais completas.
(MA-8-1943, linhas 17-19, p.254)
Utilização da expressão “é que” por Manuel Bandeira
192
a) A
verdade, Alphonsus, é que soneto é poema de decassílabos.
(MB-9-1941, linhas 16-17, p.266)
b) Mas... Só ultimamente é que fiz uns dois ou três bons sonetos, porque me pus na
escola de Quental, que é a escola de Camões, que é a escola de Petrarca, que é a escola
de Dante... e paremos por aí que estamos no sétimo céu.
(MB-9-1941, linhas 19-21, p.266)
c) nós é que temos de descobrir, como eu e o Silveira fizemos,
os motivos secretos intuitivos que levam os poetas de verdade a pôr versos de 11 e 9
sílabas no meio de decassílabos.
(MB-12-1942, linhas 18-19, p.270)
O uso recorrente da expressão “é que” por Mário de Andrade imputa ao texto
de suas cartas a espontaneidade própria da língua falada e não apenas um uso
habitual do escritor na sua prática de escrita como apresentamos em capítulo
específico.
Nosso estudo se direcionará no próximo tópico para os marcadores de
atenuação, que visam a amenizar o conteúdo da mensagem, ou seja, as críticas
feitas ao fazer poético de Alphonsus de Guimaraens Filho.
6.3 Marcadores de atenuação em Itinerários
Na parte teórica deste trabalho, apresentamos os conceitos de Marcuschi
(1998) e Galembeck et al (1990) citando Miguel (1984) sobre marcadores
conversacionais. Tomando por base as premissas desses teóricos, podemos
considerar que os marcadores conversacionais são representados por palavras e
expressões, que apresentam relativa fixidez de forma, funcionam como articuladores
do texto e imprimem a ele a dinâmica e a expressividade da língua falada.
193
Para Urbano (1999, p.81), tais elementos, aparentemente, podem ser vistos
como supérfluos, no entanto, têm muita importância na articulação do texto oral,
especificamente como representantes da interação.
Há marcadores, no entanto, que se ocupam da função de modalizar, atenuar a
mensagem. São os chamados marcadores de atenuação.
Notamos, nas cartas ora analisadas, tais ocorrências que se classificam em
marcadores de opinião, hedges, marcadores de rejeição e os marcadores
metadiscursivos, conforme Rosa (1992, p.44).
Os marcadores de opinião, segundo Rosa, indicam incerteza do locutor
enunciador e podem ser representadas pelas expressões norteadas pelos verbos:
eu acho, eu creio, eu suponho.
Detectamos, nas cartas de Mário de Andrade, três trechos contendo o verbo
‘achar’ com pequenas variações em expressões como ‘acho que’, ‘arre que acho’ e
também três ocorrências nas cartas de Manuel Bandeira, conforme excertos a
seguir:
Marcadores ‘acho’ de Mário de Andrade
a) O
‘Ingênua’ acho um bocado fácil, essa comparação de mulheres com navios é bastante
usada e glosada.
(MA-2-1940, linhas 40-42, p.245)
b) Acho que
cabe mais a você que a mim refletir sobre isso, porque o problema é seu, é de vocês, é das
gerações novas
(MA-3-1941, linhas 21-23, p.247)
c) Acho impossível justificar isso quer
psicológica que estética ou tecnicamente.
(MA-3-1941, linhas 27-28, p.247)
194
Marcadores ‘acho’ de Manuel Bandeira
a) Acho “mamãe” a palavra mais do fundo da ternura mais íntima que trazemos em nós.
(MB-3-1940, linha 8, p.260)
b) Acho a rima indiscreta e “santos gera” muito desagradável como som. Me parece
possível consertar abandonando a idéia e buscando outra.
(MB-3-1940, linhas 14-15, p.260)
c) Ao contrário, acho que essas pequeninas licenças dão um
certo "jogo” pessoal aos seus versos
(MB-8-1941, linhas 13-14, p.265)
Inferimos que o verbo ‘achar’, nos trechos analisados, denota uma ideia de
empirismo, dedução e assim perda da força ilocutória, pois, ao mesmo tempo em
que Mário de Andrade e Manuel Bandeira instituem sua opinião sobre as questões
poéticas, o uso de tal marcador atenua a força discursiva.
Também localizamos nas missivas o marcador representado pelo verbo ‘crer’,
sendo sete ocorrências nas cartas de Mário de Andrade e três ocorrências em
Manuel Bandeira.
A nosso ver, diferentemente do ‘achar’, o marcador ‘crer’ indica uma ideia de
parcialidade em relação às críticas feitas, ou seja é uma visão particular dos
escritores sobre o fazer poético de Alponsus de Guimaraens Filho . Dessa forma,
verificamos que, especialmente, Mário de Andrade delega a Alphonsus de
Guimaraens ‘um certo livre arbítrio’ em relação à concepção poética.
195
Marcadores ‘creio’ Mário de Andrade
a) A sua colocação
sintática é inaceitável na naturalidade da nossa língua,e só existe como chavão parnasiano.
Creio mesmo que aparece em métrica, antes do Parnasianismo (não me lembro), e é
determinada pela necessidade de rimar.
(MA-2-1940, linhas 28-31, p.244)
b) Na prosa creio que nem mesmo nos estilistas
rebuscados você encontrará semelhante construção
(MA-2-1940, linhas 31-32, p.244)
c) Creio que pelo mesmo orgulho
arripiado com que recusaria aqui poucos meses depois ser apresentado a Amadeu Amaral
(MA-4-1941, linhas 28-29, p.249)
d) Na
última vez, primeiro eu repetia a interrogação da 1.a estrofe: “Como me alegrarei?” que
conservei por muitos dias, mais de mês creio, embora me causasse um mal-estar danado
(MA-5-1941, linhas 19-21, p.252)
e) A mistura da imagem da natureza com a realidade
psicológica foi sempre assim e saiu fluente. Creio que posso explicá-la psicologicamente.
(MA-5-1941, linhas 30-31, p.252)
f) Creio que a substituição é
que provocou o desarranjo interno que insistiu na imagem permanente de um mato “de
árvores indevassáveis” etc., ao lado da verdade sentimental do momento “de alma escusa"
etc.
(MA-5-1941, linhas 34-37, p.252-253)
g) Si eu estivesse completamente eu, creio que nunca não
imaginava num problema penoso assim.
(MA-8-1943, linhas 66-67, p.255)
196
Marcadores ‘creio’ Manuel Bandeira
a) Creio que aqui
“minha mãe” ficará melhor.
(MB-3-1940, linhas 11-12, p.260)
b) Creio,meu caro Alphonsus, que, sem abandonar outras esferas da poesia,você pode dar
no gênero coloquial coisas definitivas, como já são “Momento" e “Poema íntimo", que reputo
de primeira ordem.
(MB-3-1940, linhas 16-18, p.260)
c) Aqui creio que
você se esqueceu de escrever o pronome, porque evidentemente fica melhor dizer “Que eu
amo os céus e os rios transparentes.
(MB-8-1941, linhas 17-19, p.265)
6.3.1 Hedges
Expressões como: assim, quer dizer, vamos dizer, digamos, digamos assim,
sei lá, não sei, como também advérbios vazios de significação: realmente,
naturalmente, evidentemente representam o que Rosa (1992, p.49) nomeia de
hedges. Tais marcadores atenuam a impositividade do enunciador.
Identificamos, nas cartas de Mário de Andrade e Manuel Bandeira, alguns
trechos em que a expressão ‘assim’ representa um hedge, no sentido de diminuir a
força do tópico a ser tratado.
197
a) Não chego
bem mais a perceber como é que ela trabalha, assim solta, desprovida de impulsos mais
interiores, de bases mais profundas, de exigências mais completas.
(MA-8-1943, linhas 17-19, p.254)
b) Por vezes, quando leio assim em seguida três ou quatro
poemas de V., tenho uma sensação vaga do “fácil”.
(MA-8-1943, linhas 45-46, p.255)
O marcador ‘assim’, conforme Rosa (1992, p.50), nem sempre será utilizado
como atenuador. Para comprovar tal afirmativa extraímos alguns excertos das
missivas de Mário de Andrade.
a) Mas escrevo assim mesmo e quando a ocasião chegar mostro os poemas.
(MA-2-1940, linha 13, p.244)
b) Mas assim mesmo ainda tem
muita coisa pra arrumar, ou milhor: tudo já está arrumado, falta é ler, reler este mundão de
papéis, rasgar coisas inúteis e guardar boas.
(MA-4-1941, linhas 5-7, p.249)
Verificamos que, em alguns trechos, o ‘assim’ recebe um reforço do pronome
‘mesmo’, por exemplo, em (a) ‘escrevo assim mesmo’, ou seja, ‘realmente assim’. A
expressão denota intensificação do tópico, não atenuação como apresentamos
anteriormente.
No excerto (a), a seguir, das cartas de Manuel Bandeira, a expressão ‘assim’
também não denota atenuação, simplesmente faz a vez de advérbio de modo. Na
missiva (b) do mesmo locutor, a expressão é utilizada como conectivo, também sem
compromisso com atenuação.
198
a) Fiquei assim umas duas horas, e na ocasião em que tinha de sair
para um jantar, começou a vir o poema
(MB-10-1942, linhas 15-16, p.268)
b) Alegro-me de o ver assim numa perpétua
primavera de lirismo.
(MB-16-1944, linhas 22-23, p.276)
Identificamos nas cartas de Mário de Andrade o uso da expressão ‘não sei’
duas vezes, o que indica o aspecto de insegurança em relação aos tópicos
tratados. Cabe ressaltar que ‘insegurança’ não significa que Mário de Andrade não
dominava tal assunto, mas sim que o escritor se sentia receoso ao afirmar sua
opinião.
Hedge ‘não sei’- Mário de Andrade
a) O ‘Comunhão’, embora você tenha conseguido manter o estado de poesia
e a liberdade do assunto, não sei, me desagrada.
(MA-2-1940, linhas 42-43, p.245)
b) Um vago sabor ‘creme angélico’ de misticismo pra noviças de convento, não sei.
(MA-2-1940, linha 45, p.245)
Manuel Bandeira não utiliza a expressão ‘não sei’, porque suas críticas são
menos impositivas que as de Mário de Andrade, de forma que ele não necessita
atenuá-las como o faz Mário de Andrade.
199
6.3.2 Marcadores de rejeição
Os marcadores de rejeição além de antecipar uma visão desfavorável do
locutor, também podem restringir a resposta virtual do interlocutor. Especificamente,
Rosa (1992, p.75) mostra ocorrências com o marcador ‘mas’, que indica um controle
específico, eliminando possibilidades de resposta desfavorável do interlocutor.
Extraímos das cartas ocorrências em que o ‘mas’ restringe a possível resposta
do interlocutor, ou seja, o ‘mas’ sendo usado para direcionamento do ponto de vista
do locutor.
Foram detectadas sete ocorrências de Mário de Andrade e apenas uma de
Manuel Bandeira. Percebemos que todos os trechos em que Mário de Andrade faz
uso do hedge ‘mas’ indicam uma crítica acirrada em relação à poesia de Alphonsus
de Guimaraens Filho.
Hedge ‘mas’ – Mário de Andrade
a) Tudo é sinceridade ! Mas em você sinceridade precisa ter um sentido dinâmico.
(MA-1-1940, linha 54, p.242)
b) não concorde, discuta, brigue, berre. E principalmente não aceite.
Você pode ir longe, Alphonsus, esta é minha impressão. Mas só irá longe se se respeitar a
si mesmo
(MA-1-1940, linhas 69-71, p.243)
c) Não sei si o 1º. Terceto foi escrito, depois de escrito o segundo. Não há defeito
nem desfavor em fazer isso numa forma tão exigente e estreita como a do soneto. Mas pra
quem conhece um bocado de técnica, ao surgir a palavra ‘gera’ inda mais como vem
colocada na frase, tem-se imediatamente a sensação de rima forçada.
(MA-2-1940, linhas 25-28, p.244)
d) Os meninos têm voz de soprano de enorme unidade e timbração
sopranística. Mas essa unidade não impede que aquela não seja a voz deles, homens,
200
verdadeira.
(MA-2-1940, linhas 60-62, p.245)
e) Deus me livre negar o valor, a força lírica de certos sonetos irregulares, os seus os
do Schimidt provam isso. Mas sempre me fica um certo não-sei-quê de insatisfação
artística. Lhe falo isto com muito cuidado e muita dúvida, acredite.
(MA-3-1940, linhas 18-20, p.247)
f) O soneto, a sinfonia (formas fechadas); a poesia,
o poema sinfônico(formas abertas). Mas estabelecer preliminarmente o número de 14
versos para um poema livre é ... é inveja.
(MA-3-1940, linhas 33-35, p.247)
g) Sua poesia não tem
cacoetes externos, amaneirados, formais ou de sintaxe como por ex. a minha tem. Mas não
existem apenas receitas formais, objetivas, externas em arte, existem cacoetes, maneiras,
receitas intelectuais e sentimentais
(MA-8-1943, linhas 42-45, p.255)
Hedge ‘mas’ – Manuel Bandeira
a) Quando um poeta da sua força me pede
conselhos, fico cheio de dedos, com medo de desviá-lo para o meu caminho, quando quem
tem força anda sozinho. Mas desde que tem bastante força para decidir por si as sugestões
alheias, então tudo está muito bem.
(MB-9-1941, linhas 4-7, p.266)
Destacamos o excerto (a) em que Mário de Andrade direciona seu interlocutor
a buscar sua identidade como poeta. No excerto (c) o ‘mas’ introduz uma crítica em
forma de ironia, em (d), Mário de Andrade faz uso de uma metáfora, comparando o
fazer poético à mudança de voz dos homens, salientando qu,e mesmo na mudança,
eles ainda são reconhecidos como homens, ou seja, mesmo que Alphonsus de
201
Guimaraes esteja nesse processo ele precisa se fazer reconhecer genuinamente.
6.4 Fechando as ideias
Após levantamento dos marcadores de atenuação e em particular dos
hedges, verificamos que tais recursos são recorrentes nas cartas de Mário de
Andrade e muito pouco utilizados por Manuel Bandeira.
Podemos constatar que as missivas andradinas se mostram direcionadas
basicamente para uma postura crítica, que ocorre por meio de um texto impositivo,
às vezes áspero. Contudo, o uso dos marcadores de atenuação vem exatamente
cumprir sua função: amenizar, antecipar, preparar o interlocutor para que este não
se sinta desanimado, mas veja nos detalhes levantados por Mário de Andrade
informações úteis para a constituição de sua individualidade poética.
Itinerários revela o comprometimento que os escritores tinham para com
Alphonsus de Guimaraens Filho em relação ao seu aprimoramento poético,
especialmente Mário de Andrade como comprovamos pelo quadro (figura 16, página
158). Ele insiste em teorizar sobre a importância do modelo do soneto clássico, no
entanto, verificamos que muitos sonetos produzidos por Alphonsus de Guimaraes
Filho não atendiam à fixidez da forma.
Constatamos assim que o enunciatário, Alphonsus de Guimaraens Filho, foi
respeitoso, atentou-se para os conselhos de seus mentores, mas acima de tudo não
abandonou seus próprios princípios poéticos.
202
Capítulo 7 - Cortesia e preservação de face em Itinerários
7.1 Cortesia em Itinerários
Conforme já pontuamos na página 161 deste trabalho, esclarecemos que das
dezenove cartas de Manuel Bandeira, treze se ocupam de elogios para com
Alphonsus de Guimaraens Filho e apenas as cartas MB-3, MB-8, MB-9, MB-10, MB-
12 visam a criticar o fazer poético do jovem escritor mineiro.
No entanto, todas as seis missivas de Mário de Andrade enviadas a Alphonsus
de Guimaraes Filho, no mesmo período, contêm críticas. Percebemos, assim, que
Mário de Andrade assume o papel de mestre e Alphonsus de Guimaraens Filho de
discípulo, o aprendiz.
Manuel Bandeira, mesmo sendo o escritor renomado, prefere tratar de temas
mais amenos, criticando Alphonsus de Guimaraens apenas três vezes em quatro
anos. Por Manuel Bandeira não se preocupar em criticar as composições de
Alphonsus de Guimaraens Filho e falar de assuntos outros em suas cartas,
consideramos que a relação estabelecida entre ele e Alphonsus de Guimaraens
Filho tomou uma vertente mais pessoal, o que é comprovado pelo convite feito ao
modernista para se tornar padrinho de um dos filhos de Alphonsus de Guimaraens
Filho.
A cortesia é explicada como um conjunto de estratégias verbais que são
dirigidas por um falante a um ouvinte que afetam positivamente a situação da face
desses interlocutores.
203
Dessa primeira forma, a cortesia é vista como universal; no entanto, cada
sociedade desenvolve comportamentos corteses específicos de acordo com sua
cultura.
Se a linguagem é um instrumento de interação, é fato que o locutor-enunciador
deseja interagir com sucesso e, para isso, objetiva ser compreendido pelo
interlocutor e, dessa forma, transmitir a ele uma imagem positiva.
a) As suas poesias mandadas já divergem bastante do tom do seu livro.Achei excelente o
soneto Momento, embora você pedindo atenção especial para o outro soneto Tarde pareça
dar preferência a este.
(MA-2-1940, linhas 17-19, p.244)
b) Venho agradecer-lhe a oferta do seu livro Lume de Estrelas e a dedicatória da parte III.
Você entrou na poesia com uma responsabilidade tremenda – o nome de seu pai ! Mas
está se saindo galhardamente.
(MB-1-1940, linhas 3-5, p.258)
Em (a) e (b) os elogios conferidos por Mário de Andrade e Manuel Bandeira
cumprem a função de transmitir a Alphonsus de Guimaraes Filho essa imagem
positiva, ser aceito.
A ideia que construímos sobre a expressão do outro é direcionada pelos
nossos valores sociais. Assim, já está instituído por determinadas sociedades que o
uso (ou não) de determinadas palavras ou expressões soem como descortesia
(ALMEIDA, 2008, p.278). Os elogios conferidos por Mário de Andrade e Manuel
Bandeira a Alphonsus de Guimaraes Filho confirmam a ideia de que em nossa
sociedade ocidental, tais expressões de elogio denotam cortesia.
A cortesia verbal está relacionada à fala refinada e ao fato de se estabelecer
uma relação hierárquica social delicada entre os interlocutores; ou, ainda, uma
forma de expressão de afeto ou gentileza por parte do locutor.
204
Constatamos por meio de (a) e (b) que Mário de Andrade e Manuel Bandeira
estabelem a relação de hierarquia ao julgar as poesias de Alphonsus de Guimaraens
Filho, ou seja, neste momento temos em Mário de Andrade e Manuel Bandeira a
imagem de poetas renomados , que já conquistaram seu status no universo literário,
enquanto Alphonsus de Guimaraens Filho, ainda que filho do grande poeta
simbolista, necessita aprimorar seu fazer poético.
Urbano (2008, p.236) relaciona a cortesia “com a educação, boas maneiras,
respeito, bom comportamento e delicadezas sociais”, o que também notamos nos
excertos (a) e (b).
Complementa ainda o pesquisador que cabe ao locutor polido enaltecer e
elogiar o interlocutor, “envolvendo-o positivamente, por intermédio de fórmulas
criadas ou ritualizadas”. Constatamos tal comportamento nas missivas de nosso
corpus.
No entanto, complementamos que os elogios feitos por Mário de Andrade têm
como objetivo preservar a face positiva de Alphonsus de Guimaraes Filho. Em um
primeiro momento, relacionamos tal ato às práticas protetoras, para que, a seguir, as
críticas feitas, ou seja, o ataque a essa face, seja recebido de maneira menos tensa.
A série dos sonetos que você me mandou é simplesmente ótima. O ‘Delírio’ então é de
absoluta 1ª. ordem, um grande soneto. O Manuel e eu ficamos doidos de amor por ele, uma
invenção de uma força lírica esplêndida. Quase todos os outros são também muito bons,
mas não interessa elogiar.
(MA-3-1941, linhas 12-15, p.247)
Percebemos, no primeiro trecho sublinhado, que primeiramente Mário de
Andrade elogia de forma extremada os sonetos de Alphonsus de Guimaraens Filho e
no trecho seguinte, ao usar a expressão ‘quase todos os outros’, implicitamente quer
dizer que há problemas com alguns poemas, principalmente em relação à forma,
205
uma vez que Alphonsus de Guimaraens Filho havia lhe enviado poemas em
estrutura de soneto, no entanto, não respeitando a regularidade do gênero.
Construindo primeiramente o elogio, Mário de Andrade visa a manter a
harmonia na interação, que é um fator importante em termos de interação.
Ao elogiar Alphonsus de Guimaraens Filho, Mário de Andrade satisfaz a noção
geral de cortesia:
Ato de manifestar atenção, respeito ou afeto que uma pessoa tem
por outra, ou, ainda, um conjunto de regras mantidas no trato social
com as pessoas que mostram entre si consideração e respeito. É
evidente que esse conceito embute a ideia de respeito, equilíbrio,
boas maneiras, boa educação e civilidade. (SILVA, 2008, p.163-
164)
Mário de Andrade, normalmente, adota como estratégia primeira o elogio e
depois o ataque de face, o que caracteriza o equilíbrio nos enunciados.
Nas cartas, Mário de Andrade abre espaço para seu interlocutor discordar de
sua opinião, no entanto, valida sua face positiva “sou bom”, no sentido de ser
compreensivo, como vemos no trecho (a):
a) Discorde à vontade do que eu lhe digo, brigue, me xingue, mas não se zangue.No fundo,
sou bom e estou gostando dos seus (pra usar uma palavra muito sua:) caminhos.
(MA-2-1940, linhas 85-86, p.246)
Notamos em (b) , a seguir, que a cortesia verbal ocorre nas cartas de Mário de
Andrade quando o escritor adota a estratégia de não criticar diretamente, mas vai ao
longo dos enunciados, construindo a ideia da crítica, muitas vezes de forma
implícita. Cabe atentar nesse trecho para os dizeres do escritor: “Por vezes, quando
leio assim em seguida três ou quatro poemas de V., tenho uma sensação vaga do
“fácil”. De um “fácil" seu exclusivo de V.”
206
b) Ora, sabe o que está me preocupando a respeito da poesia de Você?(é uma das
qualidades principais dela, um dos seus méritos. É certo que não reli duma vez só (muito
importante, pra fixar opinião comparativa e bem baseada) todos os seus versos me
mandados em carta ou publicados em revistas e iornais. posteriores a Lume , de Estrelas.
Mas eu ando achando que você já alcançou uma caracterização muito grande de
personalidade. Eu sempre que leio alguma poesia sua acho, sinto os seus versos muito
caracteristicamente de você, muito exclusivamente você. Não tem dúvida nenhuma que isto
é um mérito enorme, uma grande qualidade. Terá seus perigos, mas não tem arte sem
perigos, nem qualidade que não implique a sua antítese.
E é neste ponto que talvez V. deva estudar um bocado friamente o seu caso. Você já se
propôs esta pergunta: Até que ponto V. não estará imitando você? Sua poesia não tem
cacoetes externos, amaneirados, formais ou de sintaxe como por ex. a minha tem. Mas não
existem apenas receitas formais, objetivas, externas em arte, existem cacoetes, maneiras,
receitas intelectuais e sentimentais. Por vezes, quando leio assim em seguida três ou quatro
poemas de V., tenho uma sensação vaga do “fácil”. De um “fácil" seu exclusivo de V., de
um fácil que se insinuou dentro do difícil da caracterização livre da personalidade. Ora até
que ponto V. já não sabe de-cor essa personalidade caracterizada e não estará repetindo
ela, se imitando a si mesmo, se limitando num retrato, se deixando vagar numa maneira, e,
o que seria mais prejudicial: impedindo que essa caracterização livre da sua personalidade
esteja agora impedindo que esta mesma personalidade continui evoluindo e se
caracterizando livremente?
(MA-8-1943, linhas 32-52, p.254-255)12
Inferimos que Mário de Andrade, realmente, intencionava dizer para Alphonsus
de Guimaraens Filho que ele precisava trabalhar mais arduamente o processo de
construção de seus poemas, mas não o faz diretamente. O adjetivo “fácil” denota
sim uma depreciação.
Verificamos, nas cartas de Mário de Andrade e Manuel Bandeira, que não há
comportamentos verbais descorteses, pois as regras sociais são mantidas como já
mostramos anteriormente. Os enunciadores elogiam Alphonsus de Guimaraens
12 Alguns trechos das cartas de Mário de Andrade exemplificados são extensos para que possamos observar o desenvolvimento de sua crítica.
207
Filho, modalizam as críticas , por meio dos marcadores de atenuação, o que condiz
com as considerações pontuais de Barros (2008):
A impolidez e a descortesia pressupõem, em geral, que os
comportamentos sociais estabelecidos não foram bem aprendidos
pelos descorteses ou impolidos, que as regras sociais não foram
corretamente cumpridas ou mesmo foram rompidas. (ibid., p.93)
Dessa feita verificamos que os escritores obedeceram às regras sociais,
podendo ser considerados locutores corteses.
Em complemento, ratificamos a ideia de Urbano (2008, p.241), para quem os
comportamentos corteses e descorteses ocorrem com mais evidência nas interações
face a face, sobretudo por gestos. Mas a cortesia/descortesia verbal pode se
manifestar também à distância, graficamente, e inclusive em textos híbridos, como
são as cartas de Itinerários, que denotam forte intenção interacional, pois Mário de
Andrade e Manuel Bandeira tratam Alphonsus de Guimaraens Filho como um
interlocutor concreto e próximo, apesar da distância física.
Reafirmamos a ideia de que a polidez não implica atenuação, mas as
estratégias de atenuação implicam polidez ou cortesia verbal, isso já foi
demonstrado em capítulo anterior em que estudamos e aplicamos as teorias de
marcadores de atenuação ao nosso corpus.
Tal diferença também é elucidada por Villaça e Bentes (2008, p.25) , para as
quais a polidez está relacionada a convenções sociais determinadas pelas diferentes
culturas. Já a cortesia tem um caráter individual e está ligada a situações de
interação.
208
O fato de Mário de Andrade e Manuel Bandeira se comportarem
educadamente nas cartas é uma forma de polidez, pois essa prática está
relacionada a uma convenção social, que devemos ser educados para mantermos a
interação.
Quando Mário de Andrade utiliza os marcadores de atenuação ou preserva a
face positiva de seu interlocutor para, a seguir, atacá-la por meio de uma crítica, ele
está praticando a cortesia verbal, relacionada a uma questão de estilo individual. Tal
estratégia verbal vai ao encontro das ideias de Villaça e Bentes (2008, p.34) ao
afirmarem que não devemos produzir um discurso autoritário, mas modalizado “com
o uso dos verbos achar, crer, pensar”, isso garantirá a liberdade do interlocutor de
aceitar ou não o que foi apresentado.
Isso se comprova por meio da análise por nós apresentada nas páginas 194-
196 deste trabalho onde discorremos sobre os marcadores representados pelos
verbos ‘achar’ e ‘crer’ nas cartas em Itinerários.
7.2 Preservação de face em Itinerários
As cartas foram produzidas graficamente, mas consideradas dentro continuum
oralidade/ escrituralidade, e como tais entendidas como um gênero híbrido,
favorecendo análises de várias naturezas como é o caso da imagem em jogo dos
interlocutores.
Apesar de o leitor não estar presente in loco, inferimos que todas as cartas são
responsivas a anteriores que, de uma forma implícita, aproximam o falante/escritor
do ouvinte/leitor. As cartas são gêneros que nasceram da necessidade de uma
209
conversa à distância, e elas, objeto desta pesquisa, têm como premissa primeira
exatamente a de serem consideradas como conversa literária entre escritores.
Em Itinerários, é notório o trabalho de face, especialmente nas cartas de Mário
de Andrade, haja vista que, em todo o tempo, o escritor quer manter sua imagem de
autor renomado e publicado. Por outro lado, Mário de Andrade também se preocupa
com a imagem do próprio interlocutor, Alphonsus de Guimaraens Filho.
Ressaltamos que, das dezenove cartas de Manuel Bandeira enviadas a
Alphonsus de Guimaraens Filho, apenas três visaram a criticar o fazer poético de
Alphonsus de Guimaraens Filho. De maneira que não submeteremos as cartas de
Manuel Bandeira à análise de preservação de face, pois como ele critica pouco, é
fato que a harmonia discursiva será mantida, uma vez que o escritor não traz à baila
o tema polêmico – crítica, cotejado por Mário de Andrade em todas as missivas.
Dando continuidade ao estudo da face, Brown e Levinson (1987) partem dos
estudos de Goffman e ampliam a noção de face, entendendo que todo indivíduo tem
duas faces: positiva e negativa. Face positiva é aquela em que o indivíduo requer a
aprovação social, aceitação perante o grupo, o desejo de ser admirado e ter suas
ideias respeitadas. Face negativa é aquela que se relaciona ao fato de o indivíduo
desejar independência, não sofrer imposições sociais ou formas de controle.
As faces positiva e negativa de Mário de Andrade se alternam no discurso
epistolográfico, como mostraremos em nossas pesquisas.
Inferimos que o escritor modernista sabia que os discursos produzidos nem
sempre projetavam a imagem por ele almejada, ocorrendo assim uma tensão
discursiva nas próprias missivas.
210
O trabalho de face, segundo Goffman (1967,1980) exerce nesses momentos a
função de minimizar tais tensões, inferindo ao locutor uma atitude defensiva tanto no
tocante à preservação de sua face quanto a de seu interlocutor.
Brown e Levinson (1987) classificam os atos ameaçadores de fala (face
threatening acts ou FTAs) em quatro categorias, resumidas por Marcuschi, como
vimos na página 130 deste trabalho. A fim de cotejarmos tais trabalhos de face,
separamos as missivas de Mário de Andrade dentro dessas quatro categorias.
1. Atos que ameaçam a face positiva do interlocutor: desaprovação, insultos,
acusações:
a) Em principal denunciei um defeito que está se
alastrando pavorosamente no Brasil, o da poesia “séria”, o da poesia “grande”. Você se
serve daquela frase minha de alguns estarem por aí pensando que “fazendo-se grande
poesia fica-se grande poeta”. Não, Alphonsus, não argumente com essa frase em relação a
você. É frase grosseira, de positivo ataque, que si eu a tivesse que dizer a você ou a diria
endereçada, ou a poria no artigo sobre você ou, é quase certo, preferiria dizê-lo por carta.
(MA-1-1940, linhas 29-34, p.241)
b) O segundo ponto é o problema dos canaviais,trigais e pastores.A palavra pastor tal como
você empregou está perfeitíssimamente bem. O verso é que já me parece menos
perfeitamente de você pelo seu jeito estereotipado, um pouco ‘estilo tal’ [...]
Com o caso do canavial já não
concordo com você. Si trigo é mais universal (não há dúvida), o é numa universalidade
perigosa .
(MA-1-1940, linhas 40-42;44-46, p.242)
c) Enfim, tem-se a sensação exata da muleta, coisa imperdoável num soneto.
Dos outros poemas gostei, gostei de preferência do ‘Harmonia’ (embora embirre com a
palavra ‘transcendental’’, matute sobre), o ‘Poema Íntimo’e o ‘Pudesse me esquecer’. O
‘Ingênua’ acho um bocado fácil, essa comparação de mulheres com navios é bastante
usada e glosada. O ‘Comunhão’, embora você tenha conseguido manter o estado de poesia
e a liberdade do assunto, não sei , me desagrada. O pior é que não consigo saber claro
porque.Me parece também de uma abnegação um pouco fácil, um pouco, desculpe:
211
acaciana. Um vago sabor ‘creme angélico’ de misticismo pra noviças de convento, não sei.
Soa um bocado ridiculamente, muito prosaico, sem vagueza poética.
(MA-2-1940, linhas 38-46, p.245)
d) Nem todos os poemas você datou,mas me parece sensível que você está muito mais às
tontas, muito mais irrealizado, muito mais ‘moço’ enfim! Que no seu livro. Mais que nunca eu
sinto agora que o seu livro, por mais sentido e vibrante para você, era uma espécie de
descaminho brilhante. Você se ‘encarcerara’! você se encarcerou dentro de uma fórmula,
deuz ex machina, e fez a máquina funcionar. Funcionou muito bem, mas prefiro o você mais
carne e osso e mais imperfeito de agora.
(MA-2-1940, linhas 47-52, p.245)
e) Só agora é que, em poesia, você está na
abertura da adolescência. Os meninos têm voz de soprano de enorme unidade e timbração
sopranística. Mas essa unidade não impede que aquela não seja a voz deles, homens,
verdadeira. Ao entrarem na adolescência é que se dá aquele tempo engraçado em que
mudam de voz ora falam grosso, ora fino. Você está nesse estado de mudança de
voz...poética. Já se percebe o machinho, mas de vez em quando ele ainda sopra um som
agudo. Entendo, por exemplo, como som agudo aquelas ‘aldeias’ do ‘Poema Íntimo’. Você
repare como ‘aldeia’ é ‘estilo elevado’ em nossa terminologia nacional. O seu substitutivo
brasileiro, de nossa intimidade, é ‘vila’. ‘Adolescente’ ainda vai bem mas sugiro qualquer
substituição, ‘povoações’, ‘povoado’, ‘vilas’, pra tornar mais íntimas as aldeias nacionais.
(MA-2-1940, linhas 59-68, p.245)
f) A série dos sonetos que você me mandou é simplesmente ótima.O ‘Delírio’ então é de
absoluta 1ª. ordem, um grande soneto. O Manuel e eu ficamos doidos de amor por ele, uma
invenção de uma força lírica esplêndida. Quase todos os outros são também muito bons,
mas não interessa elogiar.Você já refletiu bastante sobre o soneto irregular ? Não falo
apenas sob o ponto- de- vista técnico que esse é claramente indefensável, mas sob o
estético. Satisfaz ao seu sentimento estético, ao seu prazer artístico o soneto irregular ?
Deus me livre negar o valor, a força lírica de certos sonetos irregulares, os seus os do
Schimidt provam isso. Mas sempre me fica um certo não-sei-quê de insatisfação artística.
(MA-3-1941, linhas 12-19, p.247)
Notamos em todos os trechos acima sublinhados o tom de desaprovação de
Mário de Andrade para com Alphonsus de Guimaraens Filho.
212
Destacamos o trecho (f) em que Mário de Andrade prepara Alphonsus de
Guimaraens Filho com um elogio na primeira linha e a modalização expressa pelo
uso do advérbio ‘quase’ na linha 14. A seguir o escritor torna-se evasivo, o que se
comprova pela expressão “me fica certo não-sei- quê de insatisfação artística”, o que
indica uma crítica, uma desaprovação implícita , ou seja um FTA.
No trecho a seguir, Mário faz uma crítica mordaz em relação à construção de
poemas livres que pretendem passar por sonetos e indaga a Alphonsus de
Guimaraens Filho de forma direta. Aqui, trata-se de um FTA contundente, sem
espaço para cortesia ou atenuação – Seria Alphonsus de Guimaraens Filho
desmazelado na construção de poemas livres ? O grande poeta, Mário de Andrade,
confessa-se um rabujento, nesse momento há uma pequena amenização em
relação à critica já tecida.
O que vocês estão fazendo (e repare que
não ataquei o Schmidt por isso, antes elogiei) é um poema livre, com todos os caracteres e
poderes da liberdade, menos um : o número de versos. Acho impossível justificar isso quer
psicológica quer estética ou tecnicamente. Isso adquire o caráter da fôrma em seu mais
péssimo, depreciativo e desprezível sentido. O soneto é uma forma. Até psicologicamente o
soneto é uma forma. Vocês fizerem disso apenas uma fôrma um arbítrio injustificável porque
não se condiciona a uma técnica, isto é: um organismo completo, inteiro e fechado de
normas nascidas do lirismo psicológico e organizadas, entrosadas, completadas e fechadas
pela consciência estética. Isso cria formas. O soneto, a sinfonia (formas fechadas); a poesia,
o poema sinfônico (formas abertas). Mas estabelecer preliminarmente o número de 14
versos para um poema livre é ... é inveja. A impressão que tenho é desses régulos africanos
que trocam uma dúzia de dente de elefantes por uma casaca que não lhes cabe no corpo e
usam nas ocasiões solenes da tribo. Mas estou bancando o brilhante e impressão não é
argumento. Apenas peço a você que reflita mais sobre o assunto e se analise bem no
íntimo. Quando você faz um soneto irregular é realmente por fatalidade?Ou por desmazelo ?
É tendo em vista a Poesia ? ou tendo em vista a poesia contemporânea?
Bem, é só por hoje. Vá sempre mandando versos pra essas rebugices.
(MA-3-1941, linhas 25-41, p.247-248)
213
Há uma desaprovação, crítica, ainda sobre a questão de sonetos irregulares,
no excerto a seguir, contudo, Mário de Andrade não deixa de elogiar os sonetos de
Alphonsus de Guimaraens Filho, incentivando-o à labuta poética – transformar a
espontaneidade em arte, como se dissesse ao interlocutor: Não seja desmazelado –
todavia o faz com cortesia, citando o trabalho árduo de La Fontaine ao construir a
fábula A cigarra e a formiga. Temos um FTA e, na sequência, um elogio
acompanhado de várias estratégias de cortesia positiva. Mário de Andrade percebe
e se interessa pelo interlocutor, mostrando-se otimista:
As suas considerações sobre o soneto, ih, meu Deus! Agora já escrevi tanto e desenvolver
o assunto me alongaria por demais.Você reconhece no entanto que o soneto não cabe pra
todos os estados líricos e só cabe ‘em ocasiões especiais em que nos sentimos menos
derramados, menos eloqüentes’. Mas por outro lado você defende o soneto irregular em
proveito da naturalidade, o que é naturalidade ? Em arte, eu só acredito naquele
supernaturalidade que só grande trabalho consegue. Mas, por favor, Alphonsus! Não deixe
de fazer seus sonetos, regulares, irregulares, como quiser, por favor! Às vezes tenho medo
de mim e de prejudicar os outros. A verdade é que seus sonetos, regulares ou não, são
excelentes. Trabalhe, pense nos problemas estéticos fora do momento de poetar e
principalmente depois de feito o poema. É gostoso corrigir, polir, transformar a
‘espontaneidade’ rosa-gato-pinto-macaquinho pra adquirir aquela supernaturalidade da arte,
o La Fontaine que precisou de dez versões pra atingir o La cigale ayant chanté.
(MA-4-1941, linhas 58-69, p.250).
Verificamos que o trecho, a seguir, é iniciado com elogios, caracterizado pelo
substantivo – mérito -, mas Mário de Andrade vai, aos poucos, problematizando no
intuito de dizer a Alphonsus de Guimaraens Filho que ele ainda não encontrou seu
verdadeiro eu poético, e precisa assim libertar-se de fórmulas e escrever com
simplicidade.
214
Li os novos
sonetos da Ausência que V. me mandou, gostei muito. Ainda gostei mais na releitura de hoje
do que no dia em que os versos chegaram. Gostei sinceramente, sem reserva.
Ora, sabe o que está me preocupando a respeito da poesia de Você?( é uma das
qualidades principais dela, um dos seus méritos. É certo que não reli duma vez só (muito
importante, pra fixar opinião comparativa e bem baseada) todos os seus versos me
mandados em carta ou publicados em revistas e iornais. posteriores a Lume , de Estrelas.
Mas eu ando achando que você já alcançou uma caracterização muito grande de
personalidade. Eu sempre que leio alguma poesia sua acho, sinto os seus versos muito
caracteristicamente de você, muito exclusivamente você. Não tem dúvida nenhuma que isto
é um mérito enorme, uma grande qualidade. Terá seus perigos, mas não tem arte sem
perigos, nem qualidade que não implique a sua antítese.
E é neste ponto que talvez V. deva estudar um bocado friamente o seu caso.
(MA-8-1943, linhas 29-41, p.254-255)
No trecho em sequência, Mário de Andrade utiliza de estratégias de cortesia
positiva ao citar exemplo do Schmidt, outro poeta. Finaliza a carta com um pedido de
desculpas um FTA 4 (último trecho subinhado), que deixamos aqui para efeito de
sentido, com o objetivo de compreendermos que, após um árdua crítica, Mário de
Andrade se desculpa, numa atitude cortês.
Não esqueça, Alphonsus, que isto não é crítica nem muito menos censura, é exatamente um
problema a estudar e um perigo a evitar. Perigo sempre ao pé dos fortemente
caracterizados. Observe um Rubens em pintura um Bach em música, um Érico Veríssimo no
romance, um Augusto Frederico Schmidt em poesia. É um problema que lida imediatamente
com um dos pontos essenciais da arte: a da necessidade da obra-de-arte tal. Com o que se
diria dantes: a "inspiração” e a imitação da inspiração. Pra mim, não tem dúvida nenhuma
que algumas vezes o Schmidt não está fazendo Poesia mas apenas um “à manière de"
Augusto Frederico Schmidt. Talvez não poucas vezes... Está aí um exercício bom: V. já se
lembrou de, sem nenhum mandado interior, sentar na mesa e com toda a aplicação e
honestidade (imprescindível no caso) escrever um “à la manière de” Alphonsus de
Guimarães (sic) Filho? Exprimente pra ver o que sai.
E basta por hoje, arre! Desculpe si envenenei V. por alguns minutos. É mais uma prova que
215
o meu espírito anda solto de mim, isento de simpatia humana, de vontade de acarinhar, de
generosidade e bondade. Si eu estivesse completamente eu, creio que nunca não
imaginava num problema penoso assim. Me perdoe, si puder, e acredite , que eu sou
superior aos meus venenos.
(MA-8-1943, linhas 53-68, p.255)
Por se sentir forçado a seguir a estética de seu pai, Alphonsus de Guimaraens
Filho buscou, a princípio, escrever sonetos, preocupado sobretudo com a forma.
Mário de Andrade enxergou, nos textos de seu interlocutor, um estilo único, e
cabia a ele fazer com que Alphonsus de Guimaraens Filho aceitasse um fazer
poético e estético diferente, mas acima de tudo seu.
2. Atos que ameaçam a face negativa do interlocutor: pedidos, ordens e elogios:
Notamos, em todos os excertos na sequência sublinhados, a preocupação que
Mário de Andrade tinha em, primeiramente, elogiar Alphonsus de Guimaraens Filho.
Já os pedidos, em duplo sublinhado, são poucos e se limitam também a diminuir a
tensão existente nas críticas, como por exemplo : “Não me chame ‘mestre’ por favor,
não gosto (Me chame Mário, você)” em (d).
a) Quando a gente encontra um homem, um artista ‘direito’, se fica num
medo danado de perder essa possível companhia, esse possível calor prá idade que vai
chegar.
(MA-1-1940, linhas 20-22, p.241)
b) Mas sua carta veio me sossegar, me provando mais uma
vez o que eu já pressentira em nossos rápidos encontros em Belo Horizonte: que você é um
sujeito ‘direito’, mais inteligente que a vaidade.
(MA-1-1940, linhas 24-26, p.241)
c) Apenas
tome cuidado com esta palavra : “sinceridade” que tem o mais perigoso e confusionista dos
sentidos. Tudo é sinceridade ! Mas em você sinceridade precisa ter um sentido dinâmico
216
Você precisa não confundir o que é costume, o que é o já-sabido, o que é boca torta por uso
de cachimbo, o que é preguiça de mudar, de se auscultar, de acertar em si mesmo, de
adquirir sua realização pessoas, sua originalidade (a fatal, não a procurada),
(MA-1-1940, linhas 52-57, p.242)
d) É isso mesmo que eu quero. É que você tenha o exercício da sua
total liberdade diante de mim.(Não me chame “mestre” por favor, não gosto) (Me chame
Mário, você). Não pretendo com isto nenhuma humildade falsa. Mas você se sentirá mais
livre, e eu mais esquecido de mim).
(MA-1-1940, linhas 65-68, p.242)
e) Quando não concordar,não concorde, discuta, brigue, berre.E principalmente não aceite.
Você pode ir longe, Alphonsus, esta é minha impressão. Mas só irá longe se se respeitar a
si mesmo. E basta por hoje. Lembranças aos amigos e guarde este abraço
(MA-1-1940, linhas 69-71, p.243)
f) Achei excelente o
soneto Momento, embora você pedindo atenção especial para o outro soneto Tarde pareça
dar preferência a este. Não descubro a razão da preferência. O outro me parece
francamente milhor, mais integralmente soneto, sem enumerações, ou milhor enchimentos
gratuitos: (poéticos não há dúvida, mas gratuitos: a segunda quadra), mais unido e íntimo
na inspiração, menos temático.
(MA-2-1940, linhas 17-22, p.244)
g) O que você tem, sobretudo, é de escrever muito,muitíssimo, forçar
mesmo a chegada da poesia, gastar seu estado de poesia de até fazer sangue. E analise,
compare, jogue fora, guarde um verso de um poema, salve uma quadra mais longe, nesses
poemas forçados. Não se trata exatamente de adquirir técnica objetiva; esta, me parece que
você já tem suficientemente forte, naquilo em que técnica se aprende. Só lhe falta ainda, da
técnica, aquilo que eu chamo (eu, o eterno professor das teorizações...) de técnica
‘expressiva’.
(MA-2-1940, linhas 69-75, p.246)
Percebemos assim toda a preocupação que o modernista tinha para com seu
interlocutor, no sentido de encorajá-lo e para isso utiliza de estratégias de cortesia a
todo o tempo.
217
3. Atos que ameaçam a face positiva do locutor: auto-humilhação, auto-
confissões:
Esse ato ocorre de forma esparsa nas cartas e funcionam como um momento
de autoanálise de Mário de Andrade:
a) Andava meio inquieto, com medo que você não
aceitasse com leal humanidade as minhas restrições a Lume de Estrelas, preferindo a isso
o prazer epidérmico (mas tão incontestavelmente gostoso!...) dos elogios. Antes mesmo de
escrever a crítica, com medo de estar totalmente errado, confessei minhas dúvidas sobre
certos aspetos do seu livro a Manuel Bandeira. Não queria estar sozinho e me arrimava à
opinião dele que, como a minha, só podia nascer de simpatia. E foi só diante da
concordância dele, em linhas gerais, que me senti animado a escrever.
(MA-1-1940, linhas 5-11, p.241)
b) Indivíduos
da minha espécie,combativos e combatidos, mas em principal confiantes no progresso, no
aperfeiçoamento, não propriamente humano, mas dos homens em particular, quando
chegam numa certa idade principiam temendo o frio vazio em torno quando se der a
chegada da velhice, Isso é terrível, Alphonsus, porque é um premente, constante convite à
condescendência.
(MA-1-1940, linhas 15-20, p.241)
c) Acredite, Alphonsus, é muito mais difícil, então a gente ser sincero, ser honesto pra
com um moço como você, do que pra com um já-feito que a experiência dos anos já nos
garante que não perderemos mais.
(MA-1-1940, linhas 22-24, p.241)
d) Discorde à vontade do que eu lhe digo, brigue,me xingue, mas não se zangue. No fundo,
sou bom e estou gostando dos seus (pra usar uma palavra muito sua:) caminhos.
(MA-2-1940, linhas 85-86, p.246)
e) Me desculpe a demora na resposta.Andei atravessando uma das crises mais angustiosas
de minha vida que só passou, e passou imediatamente, com a resolução súbita que tomei
de ir morar de novo em São Paulo, onde da semana que vem para sempre você terá sua
casa franca na rua Lopes Chaves, 546. Pelo que está assentado vou recomeçar a vida aos
218
47 anos feitos, contando com quatrocentos mil réis mensais de biscates de artigos.Mas
tenho esperança de logo me arranjar milhor. Me sinto leve, alegre, feliz outra vez, com
coragem , com vontade de escrever, de produzir, de estudar. E voltei ao amor dos meus
amigos que por dois meses abandonara por completo.
(MA-3-1941, linhas 4-11, p.247)
f) Eu ando impossível.No Rio,última produção,fiz esta ’Canção’ que eu gosto muito (que hei-
de fazer!) mas reconheço absolutamente rígida, dura, sem nenhum calor de
espontaneidade. O que penso de bom sobre ela, não digo – descubra se puder.
(MA-4-1941, linhas 71-73, p.251)
No excerto (a) a auto-confissão revela a fragilidade de Mário de Andrade. Esse
tema é reiterado em (b), em que escritor revela seu medo de envelhecer.
Já em (c) a confissão dá lugar ao sentimento de respeito que Mário de Andrade
sente por seu interlocutor.
Mário de Andrade resgata sua face positiva em (d), retomando o tópicos de
confissão em (e) e (f). O escritor desvenda detalhes pessoais de sua vida, no intuito
de passar uma lição para Alphonsus de Guimaraens Filho . Mário de Andrade
salienta a importância de se fazer o que gosta e de ter coragem de recomeçar.
Percebemos que até o melhor poeta considera sua poesia por vezes longe do ideal.
4. Atos que ameaçam a face negativa do locutor : agradecimentos, excusas,
aceitação de ofertas:
Mário de Andrade não pede desculpas de forma clara, notamos apenas duas
ocorrências desse tipo de excusa:
a) E se não achar mesmo,é porque não é !!!E neste caso não se amole comigo e nem que o
universo inteiro lhe atire pedras!.
(MA-1-1940, linhas 51-52, p.242)
219
b) Gostei muito das suas observações sobre ‘Canção’,me pareceram extraordinariamente
exatas...dentro de mim. Quanto ao ‘Epitalâmio’, também, só que aqui a cantiga é outra: só
tive a intenção de arranhar os outros, irritar, mas irritar no bom sentido, deixando em certos
espíritos um ‘Que diabo de coisa esquisita que o Mário publicou, e apenas’.
(MA-5-1941, linhas 4-7, p.252)
c)
Desculpe me divertir assim me analisando, isso não salva a Canção que evidentemente não
é das possíveis coisas boas que já fiz. O que eu a sinto é muito minha, pra me ser possível
não gostar dela com um desejo de permanência dela. Vou ver se evito o “agouro chegou.
Estoura”, que censura, com justa razão, por onomatopaico, mas si jamais pensei no
“Epitalâmio” para as Poesias, a “Canção" irá certamente nelas.
(MA-5-1941, linhas 39-43, p.253)
Em (a), Mário de Andrade pede para que Alphonsus não credite suas opiniões.
Em (b), temos uma consideração sobre as críticas feitas, agora por Alphonsus de
Guimaraens Filho, aos poemas de Mário de Andrade e no último trecho (c) há um
pedido de desculpas explícito, único em nosso corpus.
7.3 Fechando as ideias
Verificamos que tanto Mário de Andrade quanto Manuel Bandeira se mostram
corteses nas cartas dirigidas a Alphonsus de Guimaraens Filho.
As missivas de Mário de Andrade apresentam cortesia verbal especialmente
representada pelos marcadores de atenuação, mas também por meio de outras
estratégias, como o elogio.
Ao fazer uso das estratégias de cortesia, principalmente Mário de Andrade
objetiva preservar sua face, bem como a de seu interlocutor.
220
Entendemos também que Mário de Andrade produziu ao longo de toda a
apistolografia de Itinerários ameaça às faces, conforme apresentamos em nosso
levantamento.
Com efeito, para muitos autores, os FTAs representam ataques de faces, que
desprestigiam os interlocutores, levando em consideração apenas os aspectos
negativos. Contudo, a nosso ver, as cartas de Mário de Andrade em Itinerários que
são praticamente permeadas de ataques às faces, denotam uma crítica literária
sincera em relação à postura poética do interlocutor, no caso, Alphonsus de
Guimaraens Filho, mas o texto é escrito com extrema preocupação cortês.
221
CONCLUSÃO
Percorridos os caminhos da INTRODUÇÃO e todos os passos desenvolvidos
na presente tese, tanto em relação aos aspectos teóricos quanto às análises do
corpus selecionado, chegamos a algumas reflexões e conclusões.
As cartas analisadas constituem um exemplo entre a infinidade de textos
híbridos de circulação em nossa sociedade. Tal classificação é decorrente das
marcas de oralidade encontradas nas cartas que são textos produzidos
graficamente, por isso com óbvias marcas de escrituralidade, como por exemplo o
fato de o gênero reiterar o modelo da carta ciceroniana, com todas as respectivas
marcas de escrituralidade convencionais.
Em Itinerários, reconhecemos como marcas orais especialmente os
marcadores de atenuação que colaboraram para a modalização pacífica das
críticas feitas por Mário de Andrade e Manuel Bandeira a Alphonsus de Guimaraens
Filho.
Retomamos o plano geral da tese apresentado na INTRODUÇÃO para
construirmos nossas considerações.
Em relação aos estudos históricos sobre o gênero carta, verificamos que as
missivas de nosso corpus mantiveram a mesma forma das primeiras cartas datadas
a partir de 100 dC.
Pautados nos estudos de Demétrio em TIN (2005), afirmamos que as cartas
de Mário de Andrade se assemelham ao chamado tratado epistolar devido à sua
extensão, conforme comprovamos por meio do quadro apresentado na página 145
222
(figura 14). Já as cartas de Manuel Bandeira atendem à premissa de Gregório de
Nazareno (ibid., 2005) por serem breves.
Tanto Mário de Andrade quanto Manuel Bandeira escreveram suas cartas
preocupados com seu interlocutor e, para isso, usam de cortesia, aspecto tratado em
seguida.
Com base na historiografia das cartas, Caio Júlio Victor já se preocupava com
tal questão, pois para ele uma carta não deveria ter um tom descortês. (TIN, 2005,
p.30).
Em grande parte de suas cartas, Manuel Bandeira se ocupa em fazer elogios a
Alphonsus de Guimaraens Filho, conforme constatamos em quadro apresentado na
página 158 (figura 16).
Em relação à temática, das seis cartas de Mário de Andrade analisadas,
apenas uma não remete à critica sobre o fazer poético de Alphonsus de
Guimaraens Filho, enquanto apenas três das dezenove cartas de Manuel Bandeira
têm tal preocupação.
Mário de Andrade se ocupa em construir um tratado estético sobre o fazer
poético de Alphonsus de Guimaraens Filho, enquanto Manuel Bandeira se afasta do
tema e se preocupa apenas com questões mais corriqueiras: envio de livros,
prefácios e troca de elogios.
Quanto ao estudo dos gêneros na perspectiva contemporânea, observamos,
pautados nos estudo de Leite (2009), que as cartas entre escritores se diferem das
cartas pessoais pela temática, uma vez que Mário de Andrade, principalmente,
argumenta criticamente sobre os poemas de Alphonsus de Guimaraens Filho.
223
Manuel Bandeira não desenvolve a crítica de forma recorrente e traz em suas cartas
temas relacionados ao universo da língua e literatura.
Em relação ao estilo verbal, as cartas em Itinerários também se realizam em
norma culta e popular, semelhante às cartas pessoais. Cabe ressaltar que em se
tratando de locutores cultos, nas cartas entre escritores, o uso popular se dá de
forma consciente e as marcas de oralidade têm o objetivo de dar um tom de
envolvimento ao texto. Adiante, abordaremos tanto sobre os aspectos de oralidade
nas cartas quanto sobre a língua peculiar de Mário de Andrade.
Com esses estudos cremos ter contemplado as orientações metodológicas de
Bazerman (2006), pois as cartas entre escritores são gêneros secundários que
circularam, especificamente, não apenas entre dois interlocutores, mas entre três,
pois constatamos que Mário de Andrade e Manuel Bandeira não apenas
comentavam sobre as cartas enviadas a Alphonsus de Guimaraens Filho, como
também liam as cartas um do outro.
As cartas entre escritores também se configuram de forma padrão, mantendo
assim a estabilidade. Por fim, constatamos pela elaboração do quadro comparativo
baseado em Leite (2009), figura 05, e pelo quadro temático, por nós desenvolvido
figura 15, respectivamente páginas 65 e 151 ), que nosso corpus tematicamente é
diferente das cartas pessoais.
No tocante ao aspecto do continuum, comprovamos que as cartas entre
escritores são gêneros híbridos, uma vez que foram produzidas graficamente, com
marcas de escrituralidade, mantendo inclusive a forma tradicional, no entanto, as
marcas de oralidade, especificamente os marcadores de atenuação, colocam-nas
em posição especial entre o polos da escrituralidade e oralidade.
224
Em se tratando das condições de comunicação teorizadas por Koch e
Oesterreicher (1985), estudamos e apontamos diferenças entre as cartas de Mário
de Andrade e Manuel Bandeira. Em linhas gerais, concluímos que o grau de
familiaridade estabelecido entre os escritores e seu interlocutor comum foi diferente,
pois Manuel Bandeira se tornou mais íntimo, inclusive padrinho de Alphonsus de
Guimaraens Filho. Tal característica foi por nós constatada quando da análise das
saudações das cartas; enquanto Manuel Bandeira se dirigia a Alphonsus de
Guimaraens com adjetivos carinhosos “ meu querido grande poeta Alphonsus”,
Mário de Andrade mantinha um distanciamento: “Alphonsus”, ou no máximo: “meu
caro Alphonsus”.
Analisado o grau de familiaridade, obtivemos também uma resposta
semelhante em relação ao grau de envolvimento, pois um é decorrente do outro.
Dessa forma, o envolvimento entre Mário de Andrade e Alphonsus de Guimaraens
Filho se dá na esteira profissional enquanto o de Manuel Bandeira se adentra por
caminhos mais pessoais.
Estudar a correspondência de escritores do modernismo, sob à ótica do
continuum da oralidade/escrituralidade, amplia o modo de compreensão dos
gêneros, especialmente a relação entre as situações comunicativas e a língua.
Antes de abordarmos a questão da língua em Itinerários, fizeram-se
necessárias determinadas considerações sobre a linguagem dos escritores
modernistas com ênfase em Mário de Andrade.
Vimos, a partir dos estudos de Pinto (1981), que Mário de Andrade defendia a
variedade brasileira da língua, para isso assumia uma norma própria. O escritor
entendia como língua literária o produto linguístico escrito.
225
Com o objetivo de sistematizar suas ideias, Mário de Andrade pensou em
construir a chamada Gramatiquinha, organizada a partir dos eixos da gramática
normativa tradicional. O trabalho de Pinto, sintetizado por nós no capítulo “2.1.
Discutindo a linguagem de Mário de Andrade” consistiu em fazer o levantamento de
textos do escritor que desenvolveram as ideias para a composição dessa obra.
Mário de Andrade ficou longe de concretizar tal projeto, uma vez que ele próprio se
julgava pouco conhecedor da língua. Como notamos nos estudos de Pinto, Mário de
Andrade apresentou estudos dentro dos eixos: fonológico, morfológico, sintático e
estilístico, mas faltou sistematização e maior aprofundamento para a concepção do
almejado projeto.
Eu enunciara um livro futuro, a GRAMATIQUINHA DA FALA
BRASILEIRA. Este livro do qual eu nunca escrevi nenhuma página,
eu nunca jamais tive intenção de escrever. (MÁRIO DE ANDRADE in
PINTO, 1981, p.128)
Quando da análise da oralidade em Itinerários, constatamos que Mário de
Andrade escrevia de forma peculiar todos os seus textos e que as cartas não foram
exceção. De forma que a língua de Mário de Andrade, nas cartas dirigidas a
Alphonsus de Guimaraens Filho, reproduz a norma do escritor, que consistia em
reduções, organização sintática diferenciada da língua normativa, palavras grafadas
de maneira atípica, próximas da fala, como: milhor, quase, milhorar. No entanto,
para efeito de nossa análise, entenderemos que tais marcas são típicas da
linguagem oral e foram estudadas como tal.
Do ponto de vista da oralidade, concluímos que Mário de Andrade e Manuel
Bandeira utilizaram tais marcas para manter a interação com Alphonsus de
226
Guimaraens Filho; contudo, as marcas são mais recorrentes nas cartas de Mário de
Andrade, não apenas pela própria sistemática do escritor, mas em virtude de
ocorrer, na nossa percepção, uma preocupação maior de Mário de Andrade de
aproximar as cartas da conversa, da língua falada.
Acrescentamos, ainda, que os escritores utilizaram os chamados marcadores
de atenuação, que se diferem dos marcadores conversacionais, por empregarem ao
texto um caráter de modalização, atenuação.
Nosso levantamento apontou mais marcadores de atenuação nas cartas de
Mário de Andrade, isso em decorrência da própria temática específica de suas
cartas: a crítica acirrada aos poemas de Alphonsus de Guimaraens Filho.
Percebemos que a recorrência da atenuação se dá por conta da preocupação de
Mário de Andrade em diminuir a possível tensão criada por conta do texto tão crítico
e combativo, especialmente em relação aos sonetos irregulares produzidos por
Alphonsus de Guimaraens Filho.
A engrenagem epistolar move-se pelo objetivo que os locutores têm em manter
a interação. Constatamos que isso se cumpre, pois tanto Mário de Andrade quanto
Manuel Bandeira utilizam da polidez, especificamente de estratégias de cortesia
para com Alphonsus de Guimaraens Filho.
Verificamos que a cortesia abarca um conjunto de estratégias verbais que são
dirigidas por um falante a um ouvinte que afeta positivamente a situação da face
desses interlocutores. Dentre tais estratégias, destacamos os elogios utilizados
pelos escritores. Mário de Andrade faz uso dessa marca de forma módica, como
notamos no quadro da página 158 (figura 16), já Manuel Bandeira não a economiza
227
engrandecendo Alphonsus de Guimaraens Filho na maior parte de suas cartas,
dedicando para isso muitas linhas.
O trabalho de face não se distancia da linha da cortesia, especialmente nas
cartas de Mário de Andrade, o que justifica termos elencado apenas os ataques de
face desse escritor.
Percebemos que, nas cartas andradinas, aos FTAs se seguem os elogios, e
os ataques de face positiva do interlocutor, geralmente são seguidos de um ataque
de face positiva ao próprio locutor.
Mário de Andrade procede dessa forma para amenizar a tensão e sobretudo
incentivar o jovem escritor, Alphonsus de Guimaraens Filho, a prosseguir seu
percurso literário. Ressaltamos que o enunciado crítico de Mário de Andrade se faz
respeitoso, preocupado e verdadeiro.
A correspondência de Mário de Andrade e Manuel Bandeira nasce sob o
signo da crítica, mas, apenas Mário de Andrade mantém o tema e é por conta dessa
posição que suas cartas são exemplos de cortesia e preservação de face.
O objetivo das cartas se cumpre uma vez que Alphonsus de Guimaraens Filho
se consagra como grande poeta como verificamos em artigo elaborado por Ivan
Junqueira e publicado pela Revista Brasileira, periódico da Academia Brasileira de
Letras (JUNQUEIRA, 2009a) e no mesmo ano pela Revista da Academia Mineira de
Letras. (JUNQUEIRA, 2009b).
No artigo, são ressaltados os títulos conquistados por Alphonsus de
Guimaraens Filho, que entre outros citamos: membro da Academia Mineira de
Letras, da Academia Marianense de Letras e do Pen Clube do Brasil, bem como
228
seus prêmios: Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras, Jabuti da Câmara
Brasileira do Livro.
Discorre Junqueira (2009a) sobre Alphonsus de Guimaraens Filho e os poetas
de seu tempo:
O desafio desses poetas era, portanto, o de buscar uma identidade
pessoal que lhes permitisse afastar-se da área de influência
daqueles grandes autores dos anos 30, os quais, é bom que se
lembre, já encontraram o terreno limpo do hieratismo parnasiano e
da evanescente [...] (p.2)
A análise de Itinerários nos permite inferir que, em todas as cartas, Mário de
Andrade “lutou” para que Alphonsus de Guimaraens Filho conseguisse encontrar
seu tom como poeta. A luta que Mário de Andrade ajudou o escritor mineiro a
combater não era uma luta isolada, mas como podemos notar pelas palavras de
Junqueira, era uma luta de todos os poetas daquela época. No entanto, somente
Alphonsus de Guimaraens Filho teve como companheiros Mário de Andrade e
Manuel Bandeira.
Continua o articulista:
Todos os Sonetos de Alphonsus de Guimaraens Filho [...]. Nele, o
poeta nos ensina, pelo menos, duas graves e belas lições: uma, a de
que o soneto [...] sobrevive e sobreviverá a quaisquer revoluções
doutrinárias ou eventuais mudanças no gosto estético; outra, a de
que o autor do volume em pauta deve ser incluído, sem favor
nenhum, ao lado daqueles que com maior mestria o praticaram entre
nós, como Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira,
229
Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Olavo Bilac,
Raimundo Correia, Odylo Costa, filho[...]. (ibid., p.3)
Concluímos nosso trabalho salientando os elogios tecidos por Junqueira como
um possível fruto da história epistográfica representada em Itinerários.
Manuel Bandeira, ao elogiar e se colocar como amigo pessoal de Alphonsus de
Guimaraens Filho, abre espaço para as críticas mais acirradas de Mário de Andrade,
que são atenuadas como comprovamos.
Os escritores, cada um com suas estratégias, formam uma dupla perfeita de
mentores, que auxilia Alphonsus de Guimaraens a encontrar sua identidade como
poeta.
Muitos outros são os itinerários para se desvendarem o gênero carta entre
escritores e as relações entre língua falada e língua escrita desses textos, não
apenas em se tratando de Mário de Andrade e Manuel Bandeira mas também de
uma infinidade de outros grandes escritores, para cujos estudos e sugestões cremos
que o presente trabalho possa abrir mais uma perspectiva.
230
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238
ANEXOS
239
CARTAS ENVIADAS ENTRE 1940 A 1944
Para efeito de análise estabelecemos um critério de seleção dos trechos
constantes do livro Itinerários, isso com o objetivo de selecionar extratos que
contenham boa informatividade em relação às teorias por nós apresentadas. Esse
critério não é rígido e só nos serviu como alicerce para trabalharmos o citado
material .
Selecionamos seis cartas de Mário de Andrade e dezenove cartas de Manuel
Bandeira, que conforme explicitamos na INTRODUÇÃO deste trabalho denotam um
corpus equitativo.
As cartas correspondem à seguinte referência: MA – cartas de Mário de
Andrade e MB cartas de Manuel Bandeira, seguidas do ano e da ordem numérica do
obra Itinerários, bem como respectivas linhas, a saber, MA-1-1940, linhas 4-5, carta
de Mário de Andrade de n.1, enviada no ano de 1940, linhas 4 a 5.
240
ANEXO 01 - Cartas de Mário de Andrade
241
MA-1- 1940
Ladeira de Santa Teresa, 106 1
Rio, 11-VII-40 2
Alphonsus 3
4
Sua carta me deu uma boa alegria, palavra. Andava meio inquieto, com medo que você não 5
aceitasse com leal humanidade as minhas restrições a Lume de Estrelas, preferindo a isso 6
o prazer epidérmico (mas tão incontestavelmente gostoso!...) dos elogios. Antes mesmo de 7
escrever a crítica, com medo de estar totalmente errado, confessei minhas dúvidas sobre 8
certos aspetos do seu livro a Manuel Bandeira. Não queria estar sozinho e me arrimava à 9
opinião dele que, como a minha, só podia nascer de simpatia. E foi só diante da 10
concordância dele, em linhas gerais, que me senti animado a escrever. 11
Não que imaginasse a possibilidade de não escrever sobre você nem muito menos a de 12
cinicamente guardar minha opinião e só, em camaradagem de salão, lhe tecer elogios. Mas 13
podia não esmiuçar as coisas, bancar o reservado, enfim usar dos mil um artifícios da 14
indiferença que também sei usar com os irremediavelmente rúins ou inexistentes. Indivíduos 15
da minha espécie, combativos e combatidos, mas em principal confiantes no progresso, no 16
aperfeiçoamento, não propriamente humano, mas dos homens em particular, quando 17
chegam numa certa idade principiam temendo o frio vazio em torno quando se der a 18
chegada da velhice, Isso é terrível, Alphonsus, porque é um premente, constante convite à 19
condescendência. Quando a gente encontra um homem, um artista ‘direito’, se fica num 20
medo danado de perder essa possível companhia, esse possível calor prá idade que vai 21
chegar. Acredite, Alphonsus, é muito mais difícil, então a gente ser sincero, ser honesto pra 22
com um moço como você, do que pra com um já-feito que a experiência dos anos já nos 23
garante que não perderemos mais. Mas sua carta veio me sossegar, me provando mais uma 24
vez o que eu já pressentira em nossos rápidos encontros em Belo Horizonte: que você é um 25
sujeito ‘direito’, mais inteligente que a vaidade. 26
Muito que bem. Agora apenas levando de sua carta uma idéia que preciso esclarecer. Uma 27
não, três. A primeira é você acreditar, com razão que também “A Volta do Condor” se refere 28
a você. Se refere sim, mas também a muitos. Em principal denunciei um defeito que está se 29
alastrando pavorosamente no Brasil, o da poesia “séria”, o da poesia “grande”. Você se 30
serve daquela frase minha de alguns estarem por aí pensando que “fazendo-se grande 31
poesia fica-se grande poeta”. Não, Alphonsus, não argumente com essa frase em relação a 32
você. É frase grosseira, de positivo ataque, que si eu a tivesse que dizer a você ou a diria 33
endereçada, ou a poria no artigo sobre você ou, é quase certo, preferiria dizê-lo por carta. 34
242
Há um lado cozinha e lavanderia das almas como dos espíritos que não estou muito 35
convencido deva ser ventilado em artigos públicos. E si houver necessidade, tem de ser 36
revelado com endereço, caso o tenha. Ora a minha frase ali se referia a ninguém, 37
positivamente a ninguém, pois que são ninguém uma cambada de grandíloquos que andam 38
se mascarando por aí de Dantes e Shelleys. 39
O segundo ponto é o problema dos canaviais, trigais e pastores. A palavra pastor tal como 40
você a empregou está perfeitíssimamente bem. O verso é que já me parece menos 41
perfeitamente de você pelo seu jeito estereotipado,um pouco “estilo tal”, no caso cheirando 42
muito a simbolismo, ou pelo menos àquele post-simbolismo de Cinza das Horas e livros 43
daquele entre-meio de escolas que vivemos um tempo aqui. Com o caso do canavial já não 44
concordo com você. Si trigo é mais universal (não há dúvida), o é numa universalidade 45
perigosa, Bíblia-via-Europa. “Canavial” é exótico em Rilke? Não há dúvida e é isso que me 46
interessa prá humanidade de você, prá não estereotipação de você: é que se você tivesse 47
falado sem vir através de canaviais, ou de cafezais, ou de terras de ferro, isso seria sua 48
humanidade, sua Minas, seu Brasil, sua América. “Trigo” é, no caso, um remígio do condor. 49
Se observe bem e você verá que é. 50
E se não achar mesmo, é porque não é !!! E neste caso não se amole comigo e nem que o 51
universo inteiro lhe atire pedras: continue falando em trigo, trigais, sinceramente. Apenas 52
tome cuidado com esta palavra : “sinceridade” que tem o mais perigoso e confusionista dos 53
sentidos. Tudo é sinceridade ! Mas em você sinceridade precisa ter um sentido dinâmico. 54
Você precisa não confundir o que é costume, o que é o já-sabido, o que é boca torta por uso 55
de cachimbo, o que é preguiça de mudar, de se auscultar, de acertar em si mesmo, de 56
adquirir sua realização pessoas, sua originalidade (a fatal, não a procurada), que tudo isso é 57
sinceridade, mas passiva e apassivante, com o sentido dinâmico que a palavra deve ter pro 58
artista. Como explicar a evolução das artes e de cada artista em si, sem essa insinceridade 59
que é a sinceridade dinâmica, que nos leva a buscar o insabido em nós e na técnica, que 60
nos leva a forçar a nota, a abandonar o bom passado, a manquejarmos in-habeis e 61
manquitolantes um tempo, pra num próximo dia adquirirmos enfim a sinceridade nova, mais 62
nossa pelo menos, mais invulnerável também ? E é nesta que cumpriremos nossa total 63
mensagem. 64
Enfim 3º. e último ponto. É isso mesmo que eu quero. É que você tenha o exercício da sua 65
total liberdade diante de mim.(Não me chame “mestre” por favor, não gosto) (Me chame 66
Mário, você.) Não pretendo com isto nenhuma humildade falsa. Mas você se sentirá mais 67
livre, e eu mais esquecido de mim). 68
243
Quando não concordar, não concorde, discuta, brigue, berre.E principalmente não aceite. 69
Você pode ir longe, Alphonsus, esta é minha impressão. Mas só irá longe se se respeitar a 70
si mesmo. E basta por hoje. Lembranças aos amigos e guarde este abraço muito grato do 71
Mário de Andrade 72
Me mande coisas suas de vez em quando 73
244
MA-2- 1940
Rio, 11-VII-40 1
Alphonsus 2
Espere, deixe eu mudar de pena, que esta arranha já muito. Como você está vendo: acabo 3
sempre respondendo, embora às vezes custe um bocadinho. Sua carta já é de 19 do mês 4
passado... Porém muita coisa sucedeu neste mês e dez dias de minha vida, muita coisa 5
minha, eleição do Manuel e farras consequentes, minha desistência da crítica profissional e 6
discussões preguiças consequentes, além de outra viagem a São Paulo, um novo curso 7
particular de filosofia da arte, mais sério e pedagógico. Com tudo isso sua carta ia sempre 8
sendo deixada para amanhã. Outras escrevi numerosas. Mas é que desejava mostrar as 9
suas poesias ao Manuel como você me pediu e não achava e nem achei ocasião. Estive até 10
mais numerosas vezes com ele, este mês, porém sempre em ar de festa, muito riso e pouco 11
siso, nada de ocasião propícia para mostrar seus poemas, nem ele em minha casa nem eu 12
na dele. Mas escrevo assim mesmo e quando a ocasião chegar mostro os poemas. 13
Fui interrompido por um telefonema de Murilo Miranda contando coisas. Quando soube que 14
eu estava escrevendo a você pediu que eu reclamasse seu livro prometido e mais a sua 15
seleção de poemas e também a do Emílio Moura para a Antologia, da Revista Acadêmica. 16
As suas poesias mandadas já divergem bastante do tom do seu livro. Achei excelente o 17
soneto Momento, embora você pedindo atenção especial para o outro soneto Tarde pareça 18
dar preferência a este. Não descubro a razão da preferência. O outro me parece 19
francamente milhor, mais integralmente soneto, sem enumerações, ou milhor enchimentos 20
gratuitos: (poéticos não há dúvida, mas gratuitos: a segunda quadra) , mais unido e íntimo 21
na inspiração, menos temático. Além disso o soneto Tarde tem um defeito de técnica, que 22
não sei si defeito mesmo ou ocasional, que não estou disposto a perdoar. Me refiro à 23
estranheza desagradável da palavra ‘gera’ no mau verso ‘Sonho de paz que os bons e os 24
santos gera’, Não sei si o 1º. Terceto foi escrito, depois de escrito o segundo. Não há defeito 25
nem desfavor em fazer isso numa forma tão exigente e estreita como a do soneto. Mas pra 26
quem conhece um bocado de técnica, ao surgir a palavra ‘gera’ inda mais como vem 27
colocada na frase, tem-se imediatamente a sensação de rima forçada. A sua colocação 28
sintática é inaceitável na naturalidade da nossa língua, e só existe como chavão parnasiano. 29
Creio mesmo que aparece em métrica, antes do Parnasianismo (não me lembro), e é 30
determinada pela necessidade de rimar. Na prosa creio que nem mesmo nos estilistas 31
rebuscados você encontrará semelhante construção. E ainda concorre pra acentuar a 32
impressão de falso, a simplicidade de dicção em que o soneto vai. O natural seria : 33
245
Faz nascer 34
Sonho de paz que gera os bons e os santos. 35
faz 36
37
Enfim, tem-se a sensação exata da muleta, coisa imperdoável num soneto. 38
Dos outros poemas gostei, gostei de preferência do ‘Harmonia’ (embora embirre com a 39
palavra ‘transcendental’’, matute sobre), o ‘Poema Íntimo’e o ‘Pudesse me esquecer’. O 40
‘Ingênua’ acho um bocado fácil, essa comparação de mulheres com navios é bastante 41
usada e glosada. O ‘Comunhão’, embora você tenha conseguido manter o estado de poesia 42
e a liberdade do assunto, não sei , me desagrada. O pior é que não consigo saber claro 43
porque.Me parece também de uma abnegação um pouco fácil, um pouco, desculpe: 44
acaciana. Um vago sabor ‘creme angélico’ de misticismo pra noviças de convento, não sei. 45
Soa um bocado ridiculamente, muito prosaico, sem vagueza poética. 46
Nem todos os poemas você datou, mas me parece sensível que você está muito mais às 47
tontas, muito mais irrealizado, muito mais ‘moço’ enfim! Que no seu livro. Mais que nunca eu 48
sinto agora que o seu livro, por mais sentido e vibrante para você, era uma espécie de 49
descaminho brilhante. Você se ‘encarcerara’! você se encarcerou dentro de uma fórmula, 50
deuz ex machina, e fez a máquina funcionar. Funcionou muito bem, mas prefiro o você mais 51
carne e osso e mais imperfeito de agora. Veja bem, Alphonsus, não me insurjo 52
absolutamente contra a Grande poesia, os grandes temas, a morte, a amada, etc.Nada 53
disso. Nem por sombra estou sugerindo também que você siga a espécie Manuel Bandeira 54
ou a espécie Carlos Drummond de Andrade, nada disso, Deus me livre! 55
E o problema é difícil justamente porque não há onde sugerir nem aconselhar, é você que 56
tem de se conseguir realizar a si mesmo.O que me agrada é que a sua poesia agora dá um 57
som mais forte (embora às vezes destimbrado ainda) de personalidade, de ressonância 58
necessária. O “Destimbrado’ me deu uma imagem. Só agora é que, em poesia, você está na 59
abertura da adolescência. Os meninos têm voz de soprano de enorme unidade e timbração 60
sopranística. Mas essa unidade não impede que aquela não seja a voz deles, homens, 61
verdadeira. Ao entrarem na adolescência é que se dá aquele tempo engraçado em que 62
mudam de voz ora falam grosso, ora fino. Você está nesse estado de mudança de 63
voz...poética. Já se percebe o machinho, mas de vez em quando ele ainda sopra um som 64
agudo. Entendo, por exemplo, como som agudo aquelas ‘aldeias’ do ‘Poema Íntimo’. Você 65
repare como ‘aldeia’ é ‘estilo elevado’ em nossa terminologia nacional. O seu substitutivo 66
brasileiro, de nossa intimidade, é ‘vila’. ‘Adolescente’ ainda vai bem mas sugiro qualquer 67
substituição, ‘povoações’, ‘povoado’, ‘vilas’, pra tornar mais íntimas as aldeias nacionais. 68
246
Mas isso é quirera. O que você tem, sobretudo, é de escrever muito, muitíssimo, forçar 69
mesmo a chegada da poesia, gastar seu estado de poesia de até fazer sangue. E analise, 70
compare, jogue fora, guarde um verso de um poema, salve uma quadra mais longe, nesses 71
poemas forçados. Não se trata exatamente de adquirir técnica objetiva; esta, me parece que 72
você já tem suficientemente forte, naquilo em que técnica se aprende. Só lhe falta ainda, da 73
técnica, aquilo que eu chamo (eu, o eterno professor das teorizações...) de técnica 74
‘expressiva’ aquilo que fez Beethoven escrever que ‘não havia regra que não se devesse 75
abandonar em benefício da expressão’, e não se aprende de ninguém, é uma realização de 76
personalidade. E não se aprende nem consigo mesmo, talvez, pelo menos no princípio... 77
Porque depende diretamente da Forma, e esta Forma, transcende as experiências, porque 78
depende exclusiva e itinerantemente do Fundo, daquela Essência nossa misteriosa, que 79
permanece sempre a mesma e a cada instante é vária e diferente. (Relendo, vejo que falei 80
em verso...) 81
Mas não se assuste com estas aparentes místicas. Não são fantasmas com que eu 82
pretenda te assustar. Tudo vem muito naturalmente, tudo virá, tudo já veio, como nos 83
poemas milhores deste grupo que você me mandou. 84
Discorde à vontade do que eu lhe digo, brigue, me xingue, mas não se zangue. No fundo, 85
sou bom e estou gostando dos seus (pra usar uma palavra muito sua) caminhos. 86
E si não se fatigar vá me mandando coisas suas e contando coisas de Minas. O 87
Guilhermino, o João Alphonsus, o Ciro me conte em segredo o que estão fazendo, 88
romances ? Eu estou alimpando uns estudos críticos, 4, sobre artes diferentes,pra uma 89
série, O caderno Azul, que se lembraram de editar o Sérgio Milliet e o Luís Martins, em São 90
Paulo. Se chamará O Baile das 4 Artes ou O Baile das Quatro-z-Artes (Le bal dês Quat-z-91
Arts) que talvez lhe mande em dezembro. Lembranças aos amigos. 92
Com o abraço do 93
Mário de Andrade 94
247
MA-3- 1941
Rio, 4-1-41 1
Alphonsus 2
3
Me desculpe a demora na resposta. Andei atravessando uma das crises mais angustiosas 4
de minha vida que só passou, e passou imediatamente, com a resolução súbita que tomei 5
de ir morar de novo em São Paulo, onde da semana que vem para sempre você terá sua 6
casa franca na rua Lopes Chaves, 546. Pelo que está assentado vou recomeçar a vida aos 7
47 anos feitos, contando com quatrocentos mil réis mensais de biscates de artigos.Mas 8
tenho esperança de logo me arranjar milhor. Me sinto leve, alegre, feliz outra vez, com 9
coragem , com vontade de escrever, de produzir, de estudar. E voltei ao amor dos meus 10
amigos que por dois meses abandonara por completo. 11
A série dos sonetos que você me mandou é simplesmente ótima. O ‘Delírio’ então é de 12
absoluta 1ª. ordem, um grande soneto. O Manuel e eu ficamos doidos de amor por ele, uma 13
invenção de uma força lírica esplêndida. Quase todos os outros são também muito bons, 14
mas não interessa elogiar. Você já refletiu bastante sobre o soneto irregular? Não falo 15
apenas sob o ponto- de- vista técnico que esse é claramente indefensável, mas sob o 16
estético. Satisfaz ao seu sentimento estético, ao seu prazer artístico o soneto irregular? 17
Deus me livre negar o valor, a força lírica de certos sonetos irregulares, os seus os do 18
Schimidt provam isso. Mas sempre me fica um certo não-sei-quê de insatisfação artística. 19
Lhe falo isto com muito cuidado e muita dúvida, acredite. Não esqueço que fui formado 20
dentro do soneto e que esse uso do cachimbo pode ter me deixado a boca torta. Acho que 21
cabe mais a você que a mim refletir sobre isso, porque o problema é seu, é de vocês, é das 22
gerações novas. Eu, por mim, não farei nunca sonetos irregulares . Falar nisso, você leu o 23
elogio e o estudo sobre a natureza do soneto, feito pelo Bandeira no discurso da Academia? 24
É ótimo, só que eu seria mais irredutível que ele. O que vocês estão fazendo (e repare que 25
não ataquei o Schmidt por isso, antes elogiei) é um poema livre, com todos os caracteres e 26
poderes da liberdade, menos um : o número de versos. Acho impossível justificar isso quer 27
psicológica que estética ou tecnicamente. Isso adquire o caráter da fôrma em seu mais 28
péssimo, depreciativo e desprezível sentido. O soneto é uma forma. Até psicologicamente o 29
soneto é uma forma. Vocês fizerem disso apenas uma fôrma um arbítrio injustificável porque 30
não se condiciona a uma técnica, isto é, um organismo completo, inteiro e fechado de 31
normas nascidas do lirismo psicológico e organizadas, entrosadas, completadas e fechadas 32
pela consciência estética. Isso cria formas. O soneto, a sinfonia (formas fechadas); a poesia, 33
o poema sinfônico (formas abertas). Mas estabelecer preliminarmente o número de 14 34
248
versos para um poema livre é ... é inveja. A impressão que tenho é desses régulos africanos 35
que trocam uma dúzia de dente de elefantes por uma casaca que não lhes cabe no corpo e 36
usam nas ocasiões solenes da tribo. Mas estou bancando o brilhante e impressão não é 37
argumento. Apenas peço a você que reflita mais sobre o assunto e se analise bem no 38
íntimo. Quando você faz um soneto irregular é realmente por fatalidade?Ou por desmazelo ? 39
É tendo em vista a Poesia ? ou tendo em vista a poesia contemporânea? 40
Bem, é só por hoje. Vá sempre mandando versos pra essas rebugices. Logo que me 41
normalizar em São Paulo hei-de copiar alguns dos meus poemas inéditos . Tenho-os 42
horríveis e outros bons. Talvez reúna todos numas Poesias Escolhidas já organizadas e 43
escolhidas, mas que ficam muito caro de impressão. Veremos com o que sobrará da 44
mudança e com as possibilidades da minha futura situação. 45
Comunique a todos (é possível comunicar à Henriqueta Lisboa, logo?) minha mudança, 46
enquanto não posso fazer oficialmente. Grande abraço de ano novo do 47
Mário 48
249
MA- 4- 1941
São Paulo, 10-III-41 1
Meu caro Alphonsus 2
3
Faz um quinze dias, pouco mais, que estou definitivamente em São Paulo e já por esta 4
segunda-feira a vida vai correndo mais ou menos natural. Mas assim mesmo ainda tem 5
muita coisa pra arrumar, ou milhor: tudo já está arrumado, falta é ler, reler este mundão de 6
papéis, rasgar coisas inúteis e guardar boas. Há surpresas gostosas como essas, de hoje 7
achar dois sonetos de seu Pai, um o ‘Fatum’ da inteira mão dele e outro, cópia minha, feita 8
na presença dele e que ele autografou. Em ambos os sonetos há pequenas variantes das 9
Obras Completas.. No ‘Fatum’ que é próprio punho de seu Pai, vem ‘albente’, por ‘algente’ 10
que está no livro. A mudança me parece muito milhor: ‘prata albente do luar morno’ pode ter 11
uma quase redundância (prata albente), mas evita a contradição algente-morno menos 12
aceitável. No outro, que é o de n. XXIII de Pulvis, na 2ª.linha do 2º. Quarteto, em vez de 13
‘nem a pura’ como se imprimiu, está na minha cópia ‘nem tão pura’. E com essas pesquisas 14
me pus lendo um bocado Alphonsus o velho e não pude sem que escrevesse a Alphonsus o 15
moço. 16
Uma coisa me deixou completamente atarentado e vai ser um problema literário em minha 17
vida. Minha primeira viagem a Minas foi em 17 e então fui visitar seu Pai em Mariana. É 18
certo que desejava ver a ‘Episcopal cidade’, mas a ela me levava naqueles meus 21 anos a 19
curiosidade de conhecer dois homens que ... pra falar a verdade não é que eu admirasse ou 20
amasse muito eles, era muito egoísta nos meus 21 anos pra amar homens o ‘rúim esquisito’ 21
como lá disse o Manuel Bandeira, do Há uma Gota de Sangue em cada Poema’. Em todo 22
caso havia uma curiosidade cheia de simpatia, uma vontade também de adesão própria de 23
moço. Estive com seu Pai ali na manhã, mais de uma hora, naquele escritório poento e 24
cheíssimo de papéis e livros que, si não me engana a memória visual, ficava um pouco 25
abaixo do nível da rua, do lado esquerdo de quem entra na casa, era isso mesmo? 26
E foi uma hora de êxtase em que eu não disse nem um bocadinho que era poeta, Deus me 27
livre! Nâo por timidez ou humildade mas porquê... homem! Creio que pelo mesmo orgulho 28
arripiado com que recusaria aqui poucos meses depois ser apresentado a Amadeu Amaral, 29
que me queria conhecer por ter achado não-sei-o-quê nas provas do meus versos, lidos no 30
escritório da tipografia Pocai onde ele no mesmo tempo editava as Espumas. Me apresentei 31
apenas como fan e assim fiquei todo o tempo. Não guardei a impressão de que o velho 32
Alphonsus tivesse comigo apenas paciência, tenho a impressão de que gostou da visita. 33
Além do que, sempre um moço de São Paulo que ia até Mariana visitá-lo. Você sabe: já tive 34
250
muitos objetos de penas feitos por índios do Brasil. Acabei dando uns e jogando outros fora. 35
Ainda agora acabei com os dois últimos, que é difícil guardar essas coisas, requer cuidado 36
constante, sinão bicha. Mas um cocarzinho da ilha do Bananal esse não pude me 37
desprender dele: guarda uma dessas coisas sublimes da vida de um artista. Um médico, si 38
não me engano, que veio lá dos nortes goianos, em viagem penosa e longa, trazendo 39
sempre numa caixa de papelão aquele cocar de lembrança peã quem ele não me conhecia 40
mas era autor de Macunaíma. Não me lembro o nome dele, não sei bem como era, parecia 41
nortista... 42
Eu lia em voz alta, dizem que eu leio bem, os versos que Alphonsus me mostrava. 43
Comentávamos juntos as belezas, só se falou de poesia, nem era possível conversar vida 44
entre nossas idades e o conhecimento de minutos sem continuidade. (gênero). Pedi pra 45
copiar o ‘Vaga em redor de ti...’ que ele em seguida se prontificou a autografar. Ora eu me 46
lembro que desde o dia em que li o ‘Fatum’ numa revista, gostei muito. Hoje meus gostos 47
mudaram e tem muitos sonetos do seu Pai que prefiro a esse. Ora, como me veio parar às 48
mãos esse autógrafo datado de 1919! A tinta é diferente da de 1917 e prova não haver 49
engano de data, embora o papel seja o mesmo. Seria acaso o João Alphonsus que me deu 50
esse autógrafo? É autógrafo porque a assinatura é a mesma do soneto que copiei e mesmo 51
estilo da letra. Pergunte ao João Alphonsus. 52
Tirei as Poesias de seu Pai da estante, o livro está aqui sobre a escrivaninha. Me dei imenso 53
que fazer pra este ano, mas assim mesmo quero ver se cumpro o desejo de escrever um 54
estudo sobre este livro. Pena é que não possa fazer isso já, pra sair no Crítica Literária ou 55
que nome tenha, que darei prá Marília-Editora. Conte ao Júlio Barbosa que já estou 56
preparando o livro. 57
As suas considerações sobre o soneto, ih, meu Deus! Agora já escrevi tanto e desenvolver 58
o assunto me alongaria por demais.Você reconhece no entanto que o soneto não cabe pra 59
todos os estados líricos e só cabe ‘em ocasiões especiais em que nos sentimos menos 60
derramados, menos eloqüentes’. Mas por outro lado você defende o soneto irregular em 61
proveito da naturalidade, o que é naturalidade? Em arte, eu só acredito naquele 62
supernaturalidade que só grande trabalho consegue. Mas, por favor, Alphonsus! Não deixe 63
de fazer seus sonetos, regulares, irregulares, como quiser, por favor! Às vezes tenho medo 64
de mim e de prejudicar os outros. A verdade é que seus sonetos, regulares ou não, são 65
excelentes. Trabalhe, pense nos problemas estéticos fora do momento de poetar e 66
principalmente depois de feito o poema. É gostoso corrigir, polir, transformar a 67
‘espontaneidade’ rosa-gato-pinto-macaquinho pra adquirir aquela supernaturalidade da arte, 68
o La Fontaine que precisou de dez versões pra atingir o La cigale ayant chanté. 69
251
Tout l’été... 70
Eu ando impossível. No Rio, última produção, fiz esta ’Canção’ que eu gosto muito (que hei-71
de fazer!) mas reconheço absolutamente rígida, dura, sem nenhum calor de 72
espontaneidade. O que penso de bom sobre ela, não digo – descubra se puder. O Murilo 73
Miranda que a leu, detestou. Se detestar, deteste com franqueza que isso só me dará algum 74
apoio pro meu espírito desnorteado. Nas Poesias Escolhidas há uma larga parte de inéditos. 75
Dei ao Manuel pra me aconselhar e ele repudiou muitos. Dei ao Prudente que também 76
repudiou muitos. Mas ambos divergiram bastante no repúdio, só tendo concordado umas 77
três vezes. Resolvi abandonar de vez o conselho de minha geração. Andei mostrando pra 78
alguns moços que têm muita liberdade, mas a máxima liberdade comigo: não repudiaram 79
nenhum! São versos brutais, representam uma das piores crises morais, ou milhor, imorais 80
que já aguentei. Vou conservar. Não lhe mando por não ter quem os copie, meu secretário 81
está ocupadíssimo agora e eu ainda mais. 82
Lembrança pro João Alphonsus e mais amigos. Me escreva e mande versos pra meu 83
descanso e amizade. Que te abraça. 84
Mário 85
252
MA-5- 1941
S.Paulo, 27-VI-41 1
Alphonsus 2
3
Gostei muito das suas observações sobre ‘Canção’, me pareceram extraordinariamente 4
exatas...dentro de mim. Quanto ao ‘Epitalâmio’, também, só que aqui a cantiga é outra: só 5
tive a intenção de arranhar os outros, irritar, mas irritar no bom sentido, deixando em certos 6
espíritos um ‘Que diabo de coisa esquisita que o Mário publicou, e apenas’. Aquilo não é 7
poesia nem nada, embora possa ter algum terço mínimo, milésima parte de segundo de 8
poesia, por suas ou três vezes. O assunto não é mais que um forçar de assunto, só me 9
salvando (não ao poema, entenda-se) por uma tal e qual comicidade aquém do assunto. 10
Quis fazer foi uma ginástica de linguagem, uma língua dura, rija, de estalo, como si a 11
palavra fosse matéria plástica ide escultura. Parnasianismo sem escola, enfim. Me diverti e 12
publiquei pelo que isso tinha de arranhante, nada mais. A “Canção” também, você tem 13
razão, é “procurada”, mas já noutro sentido, que você percebeu muito bem quando falou que 14
a percebia, apesar do que tinha de procurada e de estranho, sincera, como que uma neces-15
sidade do ser. É exatamente isso e você foi de uma fina acuidade. O Epitalâmio eu procurei 16
antes, a "Canção” saiu, fluiu. jorrou integral, e só a procurei "depois”. Lastimo não ter 17
guardado o original, a primeira versão que lhe mandaria agora. Me lembro que eu 18
principiava pelo refrão, o que o obrigava a uma repetição 4 vezes que achei exagerada. Na 19
última vez, primeiro eu repetia a interrogação da 1.a estrofe: “Como me alegrarei?” que 20
conservei por muitos dias, mais de mês creio, embora me causasse um mal-estar danado. 21
Sentia haver qualquer engano nisso mas não conseguia perceber qual. Afinal estourou a 22
verdade: a Canção é conclusiva, é um estado objeto de desistência dê luta, um estado 23
momentâneo de verdade a não a Verdade pois tenho amores, amigos e muitas alegrias em 24
minha vida. Esta contradição entre a Verdade e a verdade do momento é que provocara o 25
subterfúgio do final interrogativo que não era nem uma verdade nem outra: era mentira, 26
embora também mentira psicológica, tão sincera como qualquer verdade. Mas bastou 27
lembrar o “Nunca me alegrarei” atual e fiquei sincero, tudo se apaziguou em mim. 28
Quanto ao resto está quase como saiu originariamente. Terei mudado umas duas palavras 29
quando muito e mudei um verso de lugar. A mistura da imagem da natureza com a realidade 30
psicológica foi sempre assim e saiu fluente. Creio que posso explicá-la psicologicamente: 31
É claro que os dois versos do refrão, “Na solidão solitude, Na solidão entrei” são 32
textualmente inspirados na velha xácara portuguesa “No figueiral figueiredo, No figueiral 33
entrei", havendo em mim, desde início, plena consciência disso. Creio que a substituição é 34
253
que provocou o desarranjo interno que insistiu na imagem permanente de um mato “de 35
árvores indevassáveis” etc., ao lado da verdade sentimental do momento “de alma escusa" 36
etc. Eu pensava na minha solidão-sentimento, mas ficava sempre sensível no palimpsesto, a 37
imagem substituída do figueirai-mato-natureza. 38
Desculpe me divertir assim me analisando, isso não salva a Canção que evidentemente não 39
é das possíveis coisas boas que já fiz. O que eu a sinto é muito minha, pra me ser possível 40
não gostar dela com um desejo de permanência dela. Vou ver se evito o “agouro chegou. 41
Estoura”, que censura, com justa razão, por onomatopaico, mas si jamais pensei no 42
“Epitalâmio” para as Poesias, a “Canção" irá certamente nelas. 43
Que estão enfim prontas e hoje vou ver orçamentos pra publicação delas. Constarão de uma 44
escolha de poemas dos livros já publicados e duas partes novas, uma terrível "Costela do 45
Grão Cão” muito brutal e pessoalmente detestável, e um “Livro Azul”, onde por minha 46
própria crítica está o que de milhor fiz em poesia. Consta de três poemas, de que você já 47
conhece “O Rito do Irmão Pequeno", saído na "Homenagem a Manuel Bandeira". Terá mais 48
um "Grifo da Morte” e o "Girassol da Madrugada”que tem de mais novo viver o prazer de 49
amor, de após- sexo, livre já dos interesses da sexualidade. E desconfio que estará 50
encerrado o capítulo poesia desta complexa vida minha. Capítulo dos mais torvos... 51
Espero até o fim do ano lhe mandar essas Poesias. A você e aos outros camaradas daí. Ao 52
menos isso, tem de grato, a gente publicar livro por sua conta: dispõe de exemplares à farta 53
pra matar saudades. 54
Com um abraço do 55
Mário de Andrade. 56
254
MA-8- 1943
São Paulo, 27-V-43 1
Meu querido Alphonsus 2
3
Você diz pra eu lhe responder apenas “quando tiver vontade", mas estou lhe escrevendo 4
apenas pra experimentar este papel que não é nem pra tinta nem pra carta. E eu creio que o 5
gesto é milhor que a “vontade", estava impaciente pra experimentar o papel que é o mais 6
barato achado na cidade, 36 mil réis o milheiro, e me lembrei de lhe escrever. Quanto à 7
vontade, V. não imagina como ando desprovido delas, eu! o maior Vontadeiro desse mundo! 8
Está se passando uma coisa estranha em mim, que não sei si é reflexo da doença, mas caí 9
numa inexistência interior assustadora. Ando completamente desnorteado comigo mesmo. 10
Na aparência continuo o mesmo, apenas mais magro doze quilos e um pouco amarelado. 11
Mas continuo, dando aulas, escrevendo minha crônica musical, cuidando dos meus 12
trabalhos. Leio. Não saio mais de noite a não ser por obrigação. Quando encontro amigos, 13
converso da mesma forma. Parece que tudo está na mesma, porém por dentro eu morri. Ou 14
desmaiei, pra usar palavra mais discreta. Não penso em mim, nas minhas coisas, não 15
sonho, não tenho vontades, não gozo nem sofro. Às vezes me surpreende ver que a parte 16
inteligência lógica do meu ser, continua agindo e produzindo (por obrigação). Não chego 17
bem mais a perceber como é que ela trabalha, assim solta, desprovida de impulsos mais 18
interiores, de bases mais profundas, de exigências mais completas. Tenho a impressão do 19
fogo-fátuo bailarino solto no ar. Quanto ao corpo, a imagem exata não é a do autômato, é 20
pior. Outro dia cheguei a viver um pouco mais completamente com um nojo que tive: estava 21
no banho e de repente me pareceu que estava lavando o corpo de outro homem. Está claro 22
que a magreza atual deve ter influído muito na acusação e na repulsa conseqüente — mas 23
não há dúvida que não sei com que olhos ando observando muito, e bastante desconfiado, 24
um corpo sozinho, sem alma, nem ser. E maio está tão lindo no ar!. . . 25
Olhe, Alphonsus, dizem mesmo que não sou um companheiro muito cômodo e andei 26
inventando um problema novo pra enquislar o seu espírito e que talvez vá maltratar muito a 27
sua sensibilidade. Mas seria desleal si eu não lhe propusesse o problema, tanto mais que 28
ele é muito importante para caracterizar a riqueza produtiva do seu lirismo. Li os novos 29
sonetos da Ausência que V. me mandou, gostei muito. Ainda gostei mais na releitura de hoje 30
do que no dia em que os versos chegaram. Gostei sinceramente, sem reserva. 31
Ora, sabe o que está me preocupando a respeito da poesia de Você?( é uma das 32
qualidades principais dela, um dos seus méritos. É certo que não reli duma vez só (muito 33
importante, pra fixar opinião comparativa e bem baseada) todos os seus versos me 34
255
mandados em carta ou publicados em revistas e iornais. posteriores a Lume de Estrelas. 35
Mas eu ando achando que você já alcançou uma caracterização muito grande de 36
personalidade. Eu sempre que leio alguma poesia sua acho, sinto os seus versos muito 37
caracteristicamente de você, muito exclusivamente você. Não tem dúvida nenhuma que isto 38
é um mérito enorme, uma grande qualidade. Terá seus perigos, mas não tem arte sem 39
perigos, nem qualidade que não implique a sua antítese. 40
E é neste ponto que talvez V. deva estudar um bocado friamente o seu caso. Você já se 41
propôs esta pergunta: Até que ponto V. não estará imitando você? Sua poesia não tem 42
cacoetes externos, amaneirados, formais ou de sintaxe como por ex. a minha tem. Mas não 43
existem apenas receitas formais, objetivas, externas em arte, existem cacoetes, maneiras, 44
receitas intelectuais e sentimentais. Por vezes, quando leio assim em seguida três ou quatro 45
poemas de V., tenho uma sensação vaga do “fácil”. De um “fácil" seu exclusivo de V., de 46
um fácil que se insinuou dentro do difícil da caracterização livre da personalidade. Ora até 47
que ponto V. já não sabe de-cor essa personalidade caracterizada e não estará repetindo 48
ela, se imitando a si mesmo, se limitando num retrato, se deixando vagar numa maneira, e, 49
o que seria mais prejudicial: impedindo que essa caracterização livre da sua personalidade 50
esteja agora impedindo que esta mesma personalidade continue evoluindo e se 51
caracterizando livremente? 52
Não esqueça, Alphonsus, que isto não é crítica nem muito menos censura, é exatamente um 53
problema a estudar e um perigo a evitar. Perigo sempre ao pé dos fortemente 54
caracterizados. Observe um Rubens em pintura um Bach em música, um Érico Veríssimo no 55
romance, um Augusto Frederico Schmidt em poesia. É um problema que lida imediatamente 56
com um dos pontos essenciais da arte: a da necessidade da obra-de-arte tal. Com o que se 57
diria dantes: a "inspiração” e a imitação da inspiração. Pra mim, não tem dúvida nenhuma 58
que algumas vezes o Schmidt não está fazendo Poesia mas apenas um “à manière de" 59
Augusto Frederico Schmidt. Talvez não poucas vezes... Está aí um exercício bom: V. já se 60
lembrou de, sem nenhum mandado interior, sentar na mesa e com toda a aplicação e 61
honestidade (imprescindível no caso) escrever um “à la manière de” Alphonsus de 62
Guimarães (sic) Filho? Exprimente pra ver o que sai. 63
E basta por hoje, arre! Desculpe si envenenei V. por alguns minutos. É mais uma prova que 64
o meu espírito anda solto de mim, isento de simpatia humana, de vontade de acarinhar, de 65
generosidade e bondade. Si eu estivesse completamente eu, creio que nunca não 66
imaginava num problema penoso assim. Me perdoe, si puder, e acredite , que eu sou 67
superior aos meus venenos. 68
Tive um convite pra ir aí que em vez de me alegrar me fez sofrer: não posso ir, não devo ir. 69
256
Falar a estudantes, falar o quê! 70
Também tinha que comentar com você o lado personalismo irredutível, irreconciliável com o 71
social, da criação artística, mas agora não posso mais. Você não era capaz de se analisar o 72
mais intimamente possível quanto à fatalidade da sua poesia e me escrever sobre? Era um 73
jeito ótimo de atacar o assunto mais de perto. Com o abraço amigo do 74
Mário. 75
257
ANEXO 02 - Cartas de Manuel Bandeira
258
MB-1-1940
Caro poeta Alphonsus de Guimaraens Filho 1
2
Venho agradecer-lhe a oferta do seu livro Lume de Estrelas e a dedicatória da parte III. 3
Você entrou na poesia com uma responsabilidade tremenda – o nome de seu pai ! Mas 4
está se saindo galhardamente. Este Lume de Estrelas atesta um grande poeta, não reflexo 5
da poesia paterna, mas brilho de estrela de luz própria. 6
Posso dizer-lhe que os elogios de Tristão de Ataíde e do Mário de Andrade traduzem o 7
sentimento geral: você está classificado pela melhor gente no scratch. 8
Receba um grande abraço e os parabéns do seu amigo e admirador 9
Manuel Bandeira 10
R.Morais e Vale 57 11
259
MB-2-1940
Rio, 7 de outubro de 1940 1
Meu caro poeta Alphonsus, 2
Muito obrigado pela sua carta de 27 do mês passado. 3
Fiquei desapontado com a notícia que me dá de não terem chegado a Belo Horizonte as 4
minhas “Poesias Completas”. Vai por uns quinze dias que remeti a seu irmão João 5
Alphonsus dois pacotes de exemplares do meu livro, entre eles um para você. Mandei-os 6
sob registro para a Rua Rio Grande do Sul 1.040. 7
Diga-me se não chegaram. 8
O Mário de Andrade falou-me outro dia de você: de dois sonetos, um dos quais o deixou 9
todo eufórico. Ainda não o li. 10
Receba um grande abraço do amigo e admirador 11
Manuel Bandeira 12
260
MB-3-1940
Rio, 10 de outubro de 1940 1
Meu caro Alphonsus, 2
3
Muito obrigado lhe fico por ter escrito logo avisando-me da chegada dos meus livros. 4
Estou com os seus poemas aqui, emprestados pelo Mário. Gostei de todos, mas as minhas 5
preferências vão para o soneto “Momento” e para o “Poema íntimo”. 6
Se o soneto fosse meu, eu diria no 4.° verso do 2° quarteto “Dizendo a minha mãe porque 7
parti.” Acho “mamãe” a palavra mais do fundo da ternura mais íntima que trazemos em nós. 8
Pode e deve ser empregado em ocasiões muito raras — quando nos sentimos de novo 9
criancinhas — nos momentos em que feridos pelos outros voltamos para as nossas 10
mamães. Não é o caso do soneto, em que o poeta está numa atitude viril. Creio que aqui 11
“minha mãe” ficará melhor. 12
No outro Soneto, estou de acordo com o Mário acerca da frase “que os bons e os santos 13
gera”. Acho a rima indiscreta e “santos gera” muito desagradável como som. Me parece 14
possível consertar abandonando a idéia e buscando outra. 15
Creio, meu caro Alphonsus, que, sem abandonar outras esferas da poesia, você pode dar 16
no gênero coloquial coisas definitivas, como já são “Momento" e “Poema íntimo", que reputo 17
de primeira ordem. 18
Grande abraço do 19
Manuel. 20
P.S. No soneto gostaria de outro adjetivo para mundo em vez de “traiçoeiro". Qualquer coisa 21
como “mundo formidável". "Formidável" tem o defeito de ter na tônica a mesma vogal de 22
“tarde". 23
M. 24
261
MB- 4-1940
Rio, 13 dez. 1940 1
Meu caro poeta, 2
3
Muito obrigado pela sua carta de 24 do mês passado, tão afetuosa. É um sentimento 4
delicioso — o melhor que nos podem dar os versos que fazemos — saber da ressonância 5
que despertam em almas delicadas como a sua. 6
O Mário de Andrade mostrou-me os seus novos poemas os quais todos me deixaram 7
encantado. Em alguns notei a influência de seu pai, - sem prejuízo de sua originalidade. 8
Schmidt, depois Vinícius, agora você... É a grande linha! 9
A minha posse na Academia foi uma dura provação: que coisa tremenda aquele fardão! 10
Quasi morri de calor. Por causa da tosse suspendi durante três dias o cigarro. Também mal 11
se acabou a cerimônia, voltei para casa, fiz um chá e disparei a fumar... 12
Receba um apertado abraço 13
Manuel. 14
P.S. Recebi e agradeço o convite para a solenidade de formatura, W 15
Felicidades! 16
262
MB-5-1941
Petrópolis, Hotel Orleans 9 de fev. 1941 1
Alphonsus, 2
Descendo ao Rio no dia 23 do mês passado, recebi sua carta do dia 21. Não lhe pude 3
responder, porque no dia seguinte caí de cama com uma gripe de todos os diabos. Quinze 4
dias de molho. Só ante-ontem pude fugir ao forno do Rio. Naturalmente a fraqueza em que 5
fiquei me impediu de providenciar sobre o assunto de sua carta. 6
Mas é fácil a você obter todas as informações com o Múcio Leão, cujo endereço é Rua 7
Fernando Mendes, 7, ap. 122. Escreva-lhe sem cerimônia, pois sei que é seu grande 8
admirador. 9
Receba um abraço do amigo 10
Manuel. 11
263
MB-6-1941
Rio, 28 julho 1941 1
Meu caro Alphonsus, 2
3
Como vai? Há muito tempo não tenho notícias suas. Venho pedir-lhe um favor: veja se me 4
arranja aí um exemplar do livro de Tomás Brandão sobre Marília. 5
Tem estado com o Rodrigo? Ele está passando uns dias em Sabará hospedado na Casa da 6
Intendência do Ouro. 7
Muito às pressas, um abraço do 8
Manuel Bandeira. 9
Morais e Vale 57 Rio10
264
MB-7-1941
Meu caro Alphonsus, 1
Recebi a sua carta de 9 e o livro do Tomás Brandão. Muito obrigado. 2
Já tinha estado em casa do Carlos Chagas com o João Batista Magalhães Gomes, por 3
quem soube das suas dificuldades para arranjar o livro. 4
Fico à espera dos seus novos poemas. É preciso pô-los para fora em livro. O Lume é muito 5
bom, mas o “ritmo inumerável” deu-lhe uma certa mortecor que eu receei fosse a sua 6
tonalidade fundamental. Ora, os seus poemas medidos e rimados vieram tranqüilizar-me, 7
mostrando que você tem todos os tons e todas as escalas. 8
Falar em Lume, li a lista dos disputantes do prêmio de poesia da Academia e ao que parece 9
o seu livro não é o melhor — é o único. 10
Grande abraço do 11
Manuel Bandeira. 12
265
MB-8-1941
Rio, 7 de outubro de 41 1
Meu caro Alphonsus, 2
Recebi os sonetos. Para que a minha opinião? Você é desses poetas visceralmente poetas, 3
que interessam sempre a gente, façam o que fizeram. Os Sonetos estão todos muito 4
bonitos, nem me parece indiscreta a influência que possa haver de seu pai. 5
A propósito de metrificação, desejava saber se na pronúncia normal você faz elisão da vogal 6
nasal ou ditongo nasal finais com a vogal seguinte. Nos seus versos você costuma fazer a 7
elisão (“à minha solidão chegam as cantigas”). Os quinhentistas (Ferreira sobretudo) faziam 8
muito isso. Você elide mesmo em “As nossas mãos em adeuses se desfolham". No entanto 9
não faz em "Me desfazer em asas na distância" e "Loura Susana que confio tem amantes”. 10
Pergunto se é querido, porque seria facílimo pronunciar normalmente "Nossas mãos em 11
adeuses se desfolham”. 12
Não pense que vai censura nisto. Ao contrário, acho que essas pequeninas licenças dão um 13
certo "jogo” pessoal aos seus versos e se harmonizam com outras fluidezes da sua 14
metrificação, certos hiatos como ude Ti aceito”, etc. 15
Estou falando destas elisões porque me interessa saber a sua pronúncia habitual. 16
No soneto “Asas” está escrito “Que amo os céus e os rios transparentes". Aqui creio que 17
você se esqueceu de escrever o pronome, porque evidentemente fica melhor dizer “Que eu 18
amo os céus e os rios transparentes". 19
E quando vem o livro? Um grande abraço do 20
Manuel. 21
266
MB-9-1941
Rio, 19 de out. 41 Meu caro Alphonsus. 1
2
Tenho um mundo de coisas por fazer, mas não posso deixar de responder imediatamente à 3
sua carta de 16, recebida neste momento. Quando um poeta da sua força me pede 4
conselhos, fico cheio de dedos, com medo de desviá-lo para o meu caminho, quando quem 5
tem força anda sozinho. Mas desde que tem bastante força para decidir por si as sugestões 6
alheias, então tudo está muito bem. Sua última carta mostra que você é dos tais. Já agora 7
não tenho mais escrúpulos de lhe falar. No caso das elisões de vozes nasais, prefiro não as 8
fazer (salvo o caso velho do com o), mas não me repugna absolutamente ver a elisão num 9
bom poeta como você, no qual a elisão não é licença, e ao contrário é elemento de força. 10
Você tem toda a razão e eu entrego a mão à palmatória: “As nossas mãos em adeuses se 11
desfolham" é muito melhor, como força expressiva e como ritmo, que "Nossas mãos em 12
adeuses se desfolham". Nas observações que fiz, quis ver até que ponto eram conscientes 13
e justificáveis as suas elisões dessa espécie. Mais uma vez você provou que nasceu feito. 14
Não fale de mim como sonetista. "Um sorriso" faz também os encantos do gramatical e 15
parnasiano Oiticica. Por isso até desconfiava do bicho. O seu voto altera a situação. A 16
verdade, Alphonsus, é que soneto é poema de decassílabos. Pode haver maravilhas em 17
alexandrinos, como o miraculoso “Heureux qui comme Ulysse a fait un beau voyage” de Du 18
Bellay. Mas... Só ultimamente é que fiz uns dois ou três bons sonetos, porque me pus na 19
escola de Quental, que é a escola de Camões, que é a escola de Petrarca, que é a escola 20
de Dante... e paremos por aí que estamos no sétimo céu. É, a “Renúncia" foi o melhor 21
sonetinho até 1929 ou 1930, quando traduzi os três sonetos da Browning e peguei o jeito. 22
Saiu melhorzinho porque o fiz num sub-delírio da minha tuberculose (41 graus de febre). 23
Gosto de conversar sobre esses problemas de técnica com poetas 100% como você, 24
Vinícius, Mário, Ribeiro Couto, Carlos Drummond de Andrade. Chamo poeta 100% o que é 25
artista também, isto é, artesão também, — o poeta que sabe nadar em todas as águas: no 26
oceano em completo perpétuo movimento do verso-livre e.. . nos blocos congelados da 27
forma-fixa. Os poetas que não têm o verso medido nas ouças, mesmo quando da força 28
extraordinária de um Schmidt ou de um Murilo, me causam um certo mal-estar nas minhas 29
idéias sobre poesia. Como de resto o poeta-medidor que se perde no verso-livre que nem 30
João mais Maria sem milho para marcar o caminho na floresta. 31
Um abraço do Manuel. 32
P.S. — Importantíssimo — Aponte na obra de seu pai dez poesias que não sejam sonetos e 33
que lhe pareçam os melhores (as mais belas, não as mais características). Peça ao João 34
267
Alphonsus que faça o mesmo, mas sem se consultarem. E para a minha Antologia dos 35
Simbolistas. 36
268
MB-10-1942
Rio, Praia do Flamengo 122, ap. 415 1
Meu querido grande poeta Alphonsus 2
3
Só hoje respondo à sua boa carta de 7 de abril! 4
Mas dou-lhe idéia da minha agitação dizendo-lhe que tenho de responder muito às pressas: 5
são 9 1/2 da manhã, tenho de sair às 10 e ainda não tomei o banho! (O telefone já me 6
interrompeu três vezes depois que comecei estas “mal traçadas linhas!!) 7
Não sei como os outros vivem, se eu, simples e pobríssimo poeta lírico, não tenho tempo 8
para um bom papo com os amigos! 9
Obrigado pelo que diz do “Último poema do beco".Tive muito prazer fazendo esses versos, 10
pois havia mais de um ano que a inspiração não vinha. Mas devendo mudar-me, desci de 11
Petrópolis para ver um apartamento, vi, gostei, fui à Light tratar da transferência de gás, luz 12
e telefone, fui ao proprietário, fechei o contrato... Quando voltei ao quartinho da rua Morais e 13
Vale, caí na cama estrompado e me bateu uma bruta dor de corno de deixar aquele 14
cantinho onde fui feliz. Fiquei assim umas duas horas, e na ocasião em que tinha de sair 15
para um jantar, começou a vir o poema... Garatujei as duas primeiras estrofes, certo que a 16
torneira secaria. Saí sem papel nem lápis. Pois no bonde a coisa continuou vindo. Quando 17
cheguei ao meu destino, pedi lápis e papel, rabisquei as minhas notas e só então pude 18
jantar sossegado. Voltando a casa à meia-noite, bati tudo a máquina. 19
E com surpresa verifiquei que tinha feito um poema de sete estrofes, cada estrofe de sete 20
versos, cada verso de sete sílabas! Tudo perfeitamente regular! Hão de pensar que foi de 21
caso pensado. Pois não houve a menor intenção. 22
E como sei que você me quer m. bem, mando-lhe o corpo de delito, para que você o guarde 23
como lembrança de seu velho amigo. 24
Manuel. 25
26
P.S. Um grande abraço pelos dois contos do prêmio da Academia. Depois escreverei mais 27
sobre o caso. Mando-lhe o meu ex-libris. 28
269
MB-11-1942
Rio, 27-7-42 Alphonsus, 1
2
Às pressas respondo à sua cartinha de 16. O primeiro quarteto do soneto é assim : 3
Em meio aos gritos, quando a lua uiva 4
na noite ardendo sobre a dor marinha, 5
é que te sinto chama e fogo, ó ruiva 6
treva de sangue que a loucura aninha. 7
Como vê, muito mais bonito do que você pôde reconstituir de memória. A inspiração é um 8
fato. Abraços do 9
Manuel. 10
11
P.S. Vai mais um documento relativo ao "Último poema do beco": é a primeira versão, já 12
feita a máquina, e sobre a qual trabalhei depois. 13
270
MB-12-1942
Petrópolis, 21 de fevereiro de 1942. 1
Meu caro Alphonsus, 2
3
Recebi sua carta de 4, acompanhada da crônica e dos sonetos. Muito obrigado por tudo. 4
Demorei em responder, porque a sua carta me chegou no momento em que eu estava de 5
saída para aqui, e aqui uma coisa e outra me impediam de escrever: a princípio nem mesa 6
tinha no quarto. Ah, queria que você visse o meu quarto! Pequenitinho, em cima de uma 7
garage com uma cama de solteiro (meia cama, aliás), uma mesinha de 15$000 e um móvel 8
que é guarda-roupa, cômoda, espelho ao mesmo tempo, tipo mobília de boneca. Quarto 9
caiadinho de branco, que seria muito romântico, sim senhor, se a diária não fosse de trinta 10
mil réis! Mas a comida é excelente, e eu estou pertinho das árvores, e de noite pertinho do 11
céu. 12
Não tenho no entanto a felicidade de estar fazendo sonetos tão bonitos como esses que 13
você me mandou. Imperfeições e deficiências? Sinceramente não encontro nenhumas. O 14
primeiro verso do primeiro soneto tem onze sílabas; e o quarto verso do primeiro e do 15
segundo soneto só tem nove. Mas depois da minha antologia romântica e da edição do 16
Casimiro, do Sousa da Silveira, um grande poeta e grande versejador como você não tem 17
que dar satisfações a ninguém: nós é que temos de descobrir, como eu e o Silveira fizemos, 18
os motivos secretos intuitivos que levam os poetas de verdade a pôr versos de 11 e 9 19
sílabas no meio de decassílabos. No caso dos seus sonetos estão transparentes os tais 20
motivos, e quando você morrer (o que espero seja daqui a uns sessenta e tantos anos) e se 21
fizer uma edição crítica de suas obras poéticas há de aparecer um Sousa da Silveira para o 22
interpretar e defender das possíveis cavalgaduras do fim do século XX... 23
Um grande abraço do Manuel 24
Até meados de março aqui: Hotel Suíço, Rua João Caetano, 154, Petrópolis. 25
271
MB-13-1942
Flamengo 122, ap. 415 Rio, 19 outubro 1942 1
Meu caro Alphonsus, 2
3
Ando cada vez mais assoberbado de trabalhos, e eis o motivo por não lhe tenho escrito. E 4
antes que me esqueça: já lhe mandei o soneto que você procurou refazer de cor e não 5
conseguiu? Procurei-o nos meus papéis — o caos! — e não o encontrei na batida. 6
Muito obrigado pelo artigo sobre a Última Canção do Beco. Estou muito curioso de o ler. O 7
Múcio não me disse nada a esse respeito. Ele anda muito entusiasmado com os números 8
de Autores e Livros dedicados a seu Pai. 9
De poesia não tenho feito nada: só uma Cantiga de ninar que vai sair no suplemento da 10
Manhã; ainda não saiu porque o poema está à espera de uma ilustração de Guignard. É 11
uma coisinha pequenina e muito simples. 12
Receba, meu querido Alphonsus, um abraço muito afetuoso do velho amigo 13
Manuel 14
272
MB-14-1942
Rio, 31 de dezembro de 1942 1
Às 10 da noite 2
3
Meu caro poeta, 4
O ano novo vem por aí. . . Que ele nos traga a paz. Que ele lhe traga a felicidade completa 5
nos braços da ausente. 6
Recebi os últimos sonetos, que achei lindos como os seus trinta irmãos. 7
Tomei a liberdade de destacar cinco da coleção para serem publicados na Revista Brasileira 8
(Sei que vão sair três na Revista do Brasil: verifiquei que não são os mesmos). Está certo? 9
Receba um abraço muito afetuoso e transmita os meus votos de felicidade aos seus, 10
inclusive Alphonsus & Cia. 11
Manuel 12
273
MB-15-1943
Petrópolis, 14 de março de 1943 1
Meu caro Alphonsus, 2
Respondo à sua carta de 13 de fevereiro, de Petrópolis, onde ficarei até o fim deste mês. O 3
meu endereço é Hotel Suíço, rua Benjamin Constant, 280. 4
Achei deliciosa a sua "Surdina”. Você conhece o segredo do refrão, e estes versos são mais 5
uma prova disto (em muitos poetas o refrão não passa de uma repetição ociosa, já 6
reparou?). Isso me deu um tema para um poema onomástico em seu louvor e no de seu pai. 7
Assim: 8
9
Refrão de glória, eis vem, no trilho 10
Do pai — dois mestres em refrães —, 11
Trás Alphonsus de Guimaraens Aiphonsus de Guimaraens Filho. 12
13
Pretendo fazer imprimir no Recife essa minha coleção de poemas onomásticos, simples 14
brincadeiras ou palavras de afeto aos amigos e às amadas. Fiz vários aqui neste repouso de 15
Petrópolis, em que a inspiração se sentiu estimulada pela profunda ociosidade e por um livro 16
encantador de Juan Ramón Jiménez (conhece-o? Que poeta!) — Canción — emprestado 17
pela Gabriela Mistral. Vou transcrever dois ou três para você: 18
19
Gabriela Mistral. 20
Em menina foi 21
Lucila Godoy. 22
Dois nomes de igual 23
Beleza formal; 24
Aquele, imortal. 25
Não ó ruim. Não é do Couto. 26
É Rui, mas não é Barbosa. 27
É, sim, Rui Ribeiro Couto, 28
Mestre do verso e da prosa. 29
274
Manuel Bandeira. 30
(Sousa Bandeira. 31
O nome inteiro 32
Tinha Carneiro.) 33
— Manuel Bandeira, 34
— Quanta besteira! 35
— Olha uma cousa: 36
Por que não ousa 37
Assinar logo 38
Manuel de Sousa? 39
40
Só um poema não traz o nome declarado. É este: 41
42
Teu nome, voz das sereias, 43
Teu nome — o meu pensamento, 44
Escrevi-o nas areias, 45
Na água, — escrevi-o no vento. 46
47
Outro dia fui rever um recanto de Petrópolis onde morei com meu pai. No próprio ônibus 48
rabisquei num recibo do Correio esta 49
PEREGRINAÇÃO 50
O córrego é o mesmo. 51
Mesma aquela árvore, 52
A casa, o jardim. 53
Meus passos a esmo 54
(Os passos e o espírito) 55
Vão pelo passado, 56
Ai! tão devastado, 57
275
Recolhendo triste 58
Tudo quanto existe 59
Ainda em mim de mim, 60
Mim daqueles tempos! 61
62
A Revista Brasileira com os seus sonetos sai este mês ou em abril. 63
Não se esqueça de me mandar dizer quando pretende pôr em letra de forma os sonetos. 64
Você não está esperando para isso o meu prefácio? Escrevê-lo-ei em cima da hora 65
(habituei-me a só escrever em cima da hora...) 66
Espero abraçá-lo no Rio em maio. Im Wundesschõnen Monatmai! Um grande abraço em 67
Heine, meu caro poeta. 68
Muito seu, 69
Manuel. 70
276
MB-16-1944
Rio, 14 de dezembro de 1943 1
Meu caro Alphonsus, 2
3
Estou realmente em grande falta com os meus afilhados! Não a levem, porém, à conta de 4
desinteresse. O ano de 1943 foi de excessivos trabalhos para mim. Nomeado em junho para 5
a cadeira de Literatura Hispano-Americana da Faculdade de Filosofia, tive de escrever dia a 6
dia todo um compêndio da disciplina, por não haver no mercado de livros um livro que 7
pudesse aconselhar aos meus alunos. 8
A revisão das poesias completas de Gonçalves Dias também me tomou muito tempo. A 9
Academia dá o jeton mas também exige trabalho. A colaboração na Manhã me ocupa muito, 10
não só na obrigação de escrever um artigo semanal, mas na de visitar exposições de artes 11
plásticas e fazer a crítica depois. Na Rádio Nacional fiz um retrospecto da arte brasileira. 12
Sem falar na “poeira da estrada": seleção de poemas para uma antologia da lírica brasileira 13
a ser lançada brevemente pela Martins, de São Paulo, etc. 14
Não tenho escrito a ninguém. A minha correspondência com o Mário de Andrade, 15
antigamente constante e minuciosa, praticamente desapareceu. 16
Tenho pensado no prefácio que você me pediu para os Sonetos da Ausência, mas não 17
cheguei a resolver o modo por que o fazer. Fiquei no entanto tranqüilo: hei de me desobrigar 18
da promessa, ainda que fazendo coisa curta, só pelo prazer, tão desvanecedor, de ver o 19
meu nome unido ao seu nesse lindo livro. Nestes dias entrarei em férias na Faculdade e 20
pegarei no prefácio. 21
Foi uma delícia a leitura dos seus últimos poemas. Alegro-me de o ver assim numa perpétua 22
primavera de lirismo e faço votos para que ela jamais acabe ou enfraqueça. 23
Receba, com Hymirene, as minhas saudades, e até breve... com o prefácio! 24
Grande abraço do 25
Manuel. 26
277
MB-17-1944
Meu caro Alphonsus, 1
Aqui está o prefácio prometido para os Sonetos da Ausência, É também um Soneto, — 2
porque afinal me pareceu que não ficava bem nenhuma explicação preliminar a livro que se 3
explica tão bem por si mesmo na sua emoção tão fina e nos seus ritmos tão raros. 4
Pago os juros da mora mandando-lhe os Sonetos Espirituales de Ramón Jiménez. 5
Agora, diga-me uma coisa: você leu n'A Manhã um artiguete que escrevi no dia do 6
aniversário de seu pai? 7
Estou descansando em Petrópolis até fim de fevereiro. Endereço: Hotel D. Pedro II, 26. 8
Muitos bons anos a você, a Hymlrene e todos os seus. 9
Grande abraço do velho amigo 10
Manuel 11
Petrópolis, 12
6-1-4413
278
MB-18-1944
Rio, 11 de março de 1944. 1
Meu caro Alphonsus, 2
3
O editor Martins, de São Paulo, publicou agora uma antologia — "Obras-primas da lírica 4
brasileira” — seleção minha e notas biobibliográficas de Edgar Cavalheiro. Seu nome não 5
está nela e o nome de seu pai saiu estropiado: Afonso de Guimaraens. Fiquei muito 6
aborrecido com isso. Quero dar-lhe uma satisfação particularmente e depois outra pública. 7
Se há alguém que não deva duvidar da minha admiração e estima é você: considero-o 8
desde já um dos grandes poetas definitivos do Brasil. Como então escapou o seu nome? O 9
caso se explica assim: eu fazia a escolha dos poemas e comunicava ao Cavalheiro, que em 10
São Paulo os fazia copiar das fontes por mim indicadas. Uma carta perdeu-se e na revisão 11
apressada que fiz do livro antes de subir para Petrópolis não atentei na sua falta. Você 12
estava na tal carta, onde também estava o Adelmar Tavares, a quem quero bem e desejava 13
incluir na coleção. Espero que o volume tenha novas edições e então remediarei essa falha 14
enorme de uma antologia da lírica brasileira sem o meu querido Alphonsus de Guimaraens 15
Filho! 16
Perdoe a este miserável antologista que se confessa varrido de vergonha. 17
Manuel. 18
Flamengo 122. 19
279
MB-19-1944
Rio 1
Rio, 23 julho 1944 2
Meu querido Alphonsus 3
4
Foi com grande alegria que recebi a sua carta de 6, onde vinha a notícia do nascimento de 5
Afonso Henriques de Guimaraens Neto. Receba e transmita a Hymirene o meu abraço de 6
congratulação. Logo providenciei para saudar num jogo onomástico o novo Alphonsus, e 7
saiu-me a coisa assim: 8
9
DE ALPHONSUS PAI A ALPHONSUS FILHO, 10
GRANDES POETAS DO MEU AFETO, 11
HERDE, COM A MESMA FORÇA E BRILHO, 12
O MÍSTICO DOM ALPHONSUS NETO. 13
14
Agradeço-lhe de coração as palavras tão afetuosas de sua crônica. 15
Participo-lhe que sou agora aviador: fui a Sao Paulo assistir às festas comemorativas do 16
cinqüentenário do município de Rio Preto, boca de sertão do Oeste paulista, e fiz a viagem 17
de ida e volta num avião da Vasp. Senti-me inteiramente à vontade e gozei 18
extraordinariamente do vôo. Uma beleza! Passei quatro dias em São Paulo. Voltei ante-19
ontem e já remergulhei no trabalho . 20
Tenho de acabar até o fim do mês o livro que estou escrevendo para o Fondo de Cultura 21
Económica do México: uma Apresentação da Poesia Brasileira com pequena antologia, 22
onde você terá o seu lugar de honra. 23
Muitas saudades do seu velho amigo 24
Manuel 25