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José Loureiro: pinturas feitas com

tinta

  Bosão de L, 2011, 1626 x 540 cm

«Uma pintura para ser clara não necessita de reduzir os seus meios, mas tem de

estar consciente desses meios», 1997

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A. duas entrevistas

1. 1997

«São pinturas feitas com tinta»EXPRESSO/Actual 29 Novembro 1997, pp. 20-21. Por ocasião de uma exposição nagaleria Módulo. Republicada em JOSÉ LOUREIRO, Relógio D'Água Editores, 2001.

Idade: 36 anos. Há dez, desde a primeira exposição [1988, Ether: “José se

quiseres come as sardinhas todas”], pintor a tempo inteiro, e agora um dos

nomes maiores da actualidade. Fragmentos de uma conversa sobre pintura:

Para além de ser sobre tela, «sobre» que é esta pintura?— É uma pintura sobre a pintura. Usando os meios da pintura e chegando a umaconclusão.

 Já chegou a uma conclusão?— Não. Cheguei a conclusões provisórias, no ano passado cheguei a algumasconclusões, este ano cheguei a outras.Cada tela é uma conclusão?

— Num certo sentido é, mas é uma conclusão que se prolonga por outras telas. Nadaé concludente. Quando se fizer uma pintura absolutamente concludente, isto acaba.Estas são pinturas que têm a ver com a disposição da tinta na superfície da tela,porque o processo de fazê-las é extremamente importante.

Pode dizer-se que estas são pinturas sobre bolas e que as anteriores eram sobrequadrados?— Na série com quadrados havia uma imagem pré-existente, agora, a ordenação dasbolas sou eu que a faço. As pinturas das «Palavras Cruzadas» referiam-se ainda a

uma imagem, que era retirada «ipsis verbis» de um jornal; estas pode dizer-se que sãopinturas verdadeiramente abstractas porque não se referem a nada da natureza ou dasimagens ou do mundo visível que nos rodeia. São construções e, para mim, aestrutura da pintura sempre foi muito importante: estas grelhas de bolas estruturam apintura.Quando refere que o modo de fazer é muito importante é porque nem tudo está àvista?— Por trás das pinturas estão outras pinturas e o resultado final é um processo de

sobreposição e de amálgama, mais ou menos controlado, de tudo o que se passa. Éengraçado que uma pessoa pode pensar muito nas pinturas antes de as fazer e depois

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de as fazer, mas enquanto as faz o pensamento não ajuda muito. Então há quedominar aquela matéria, que é viscosa e nos está sempre a fugir.

 A matéria é tão importante como a forma?— Para mim a matéria é extremamente importante e sobretudo as marcas que eu

deixo na matéria, ou com o pincel ou com as impurezas que vão surgindo. Sãopinturas feitas com tinta...Tem que ser óleo?— O óleo tem características específicas, nomeadamente o facto de ser um materialviscoso, de demorar muito tempo a secar, de se poder sobrepor infinitamente. Tudoisso faz com que a superfície seja infinitamente modulada e modelada e enriquecida.

  Existe no quadro uma estrutura regular de bolas recortadas que estabelece uma

ordem, mas há sempre um balouçar entre a ordem e a desordem.— Eu sempre tive essa necessidade de ordem. A liberdade para mim não existe,quando estou a pintar: há que estar sempre a tomar decisões e tomar decisões implicauma noção muito clara da ordem, embora seja uma ordem aparentemente simples,porque é uma trama, ou são sucessivas tramas que se sobrepõem e umas ficam maisvisíveis do que outras. Pode acontecer que a última trama seja a mais evidente e quenão vejamos nenhuma das tramas que ficaram para trás, pode acontecer que se vejamvárias tramas sobrepostas.

O que quer dizer que é também um trabalho sobre o espaço.— Sobre o espaço e sobre a luz. Apesar de não estarmos perante uma janela, há umaterceira dimensão; basta considerar que conseguimos ver coisas que estão para trás e,

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assim, o facto de a superfície ser plana é ultrapassado. A superfície é planificada, masé perfurada, é subvertida.Voltando à questão da ordem, pode dizer-se que ela não impede o acidente...— Não. O acidente é extremamente importante para a construção da pintura, mas nãoquer dizer que seja o acaso. É justamente o acidente e não o acaso, é integrar oacidente numa construção.

 Ao pintar, usa grelhas perfuradas...— São grelhas de um papel vegetal mais grosso, como usam os arquitectos, que émuito resistente e se pode reutilizar várias vezes. As perfurações vão ganhando umaespessura de tinta que corrói as margens de cada círculo e tornam-se elas própriasmaleáveis, elásticas.

 Há aí um jogo entre o feito à máquina e à mão.— Para mim, a mão e a pincelada estão na essência da pintura, da minha pintura. A

grelha não é um apoio, estrutura a pintura, mas não é uma muleta da pintura. Fazparte da construção da pintura, mas não pode dissociar-se do que anda à volta. Estasbolas, estes pontos grandes navegam num magma de tinta elástica, que se espalha ese retrai. A grelha é ordem mas a ordem é sempre infringida, para voltar a ser ordem,para ser novamente infringida. Não é um ponto de chegada.O ritmo é também importante. — O ritmo e a repetição. A tela é pontuada por uma estrutura muito simples, ritmada,quase minimalista, mas sem qualquer referência reducionista; trata-se de usar uma

forma simples para se ser claro, para se pintar claramente. Uma pintura para ser claranão necessita de reduzir os seus meios, mas tem de estar consciente dos seus meios.O facto de esta estrutura ser simples ajuda à visão daquilo que me interessa, que éuma superfície coberta de tinta, com uma determinada profundidade, com umdeterminado conjunto de camadas sobrepostas.Trata-se de procurar uma regra?— Mas a regra está sempre a escapar. Com cada uma das telas tenho de recomeçartudo de novo, apesar de haver evidentemente uma relação entre elas. De cada vez,

penso que as coisas vão ser mais fáceis, mas são novamente complicadas e tem de serecomeçar sempre e sempre e sempre. É impossível estabelecer uma regra. Mesmoquando se trabalha com uma forma tão simples.

Poderá dizer-se que o seu trabalho é formalista?— Não, de modo nenhum. Apesar da forma ser muito importante, o formalismoimplica que não haja um sentido, implica um arranjo — é apenas um arranjo — eestas coisas têm um conteúdo, que não é evidente, que não é óbvio nem é para ser

óbvio. Uma pintura é tanto mais interessante quanto não for óbvia. O formalismo temuma conotação pejorativa, quer dizer que a forma se esgota na forma. Mas estaspinturas não se esgotam nesta forma. Apesar de pensar muito nos materiais, também

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não basta pensar só nos materiais...Falou num sentido ou conteúdo... Tem a ver com a emoção?— Claro. Estas pinturas são para ser experenciadas, tem de se sentir qualquer coisa àfrente delas, tem que se estar algum tempo à frente delas, tem que se usufrui-las...Mas o sentido delas não é imposto.Como se situa perante a convicção de que outras linguagens, herdadas do «readymade», são mais contemporâneas?— Duchamp já faz parte de uma tradição, já passaram muitos anos sobre aaproximação que ele fez da arte, e neste momento percebe-se que é um caminhoparalelo. A pintura pode ter sido nalgum momento abalada por essa pressão, masacho que podemos continuar a pintar calmamente, sabendo que as outras linguagens,o vídeo e a instalação, são «media» paralelos à pintura. É completamentedespropositado dizer que são «media» mais avançados... apenas permitem outras

possibilidades. Como a pintura tem uma tradição maior, de muitos séculos, podehaver quem pense que é redundante estar a pintar. Mas não, de maneira nenhuma, apintura não está nada estafada, é apenas um «medium» que se pode utilizar e, hoje,cada vez mais livremente. Muitas pessoas desistiram ou põem problemas em relaçãoà pintura, mas eu sinto-me mais livre. Por que não fazer pinturas com bolas, usarpincéis e fazer o que nos apetece?Trata-se de aceitar e de continuar uma tradição?— Claramente. Toda a pintura que está para trás é importante. Quando pinto,

continuo a pensar, por exemplo, no que levava Cézanne a pintar constantemente amontanha de Sainte Victoire. O que leva uma pessoa a pintar constantemente omesmo motivo? Acho que isso é a essência da pintura. É ter essa persistência, esserigor. A arte corre paralela à vida, é um processo inesgotável.

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2. 2001

«As pinturas provocam outraspinturas»

3 de Março de 2001Publicado em JOSÉ LOUREIRO, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2001

D e uma exposição para outra - das palavras cruzadas às bolas, e destas ao que

se lhes seguiu -, como é que se estabelece um programa de mudança?- A palavra programa é demasiado forte. Não existe programa, as coisas vão-sedesenvolvendo e vão-se modificando naturalmente. Houve uma passagem lenta debolas outra vez para riscas, que não são propriamente riscas: as bolas foram ficando

reduzidas a linhas, a barras muito estreitas e muito próximas umas das outras, e daí asuperfície da tela começar a parecer-se com um ecrã… A aproximação das barras e asua instabilização com os pontos criou uma vibração óptica, que a certa alturaresultou numa espécie de ecrã, muito vibrátil.

  Há uma série que se substitui a outra, ou osquadros sucedem-se sem existir um corte?- São mais os quadros a sucederem-se, apesar denas exposições haver alguma unidade entre aspinturas. Não penso que tenho uma exposição efaço um bloco de quadros que traz alguma coisade novo, e a seguir outro bloco que adianta maisalguma coisa. Não tem nada a ver com isso. Apintura é um processo de constante mutação e àsvezes de mutações imperceptíveis, de que a certaaltura não nos apercebemos muito bem mas que

se tornam preponderantes; às vezes acontecemreenvios, ou há pinturas que vão mais adiantadas

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para outros lados. Vejo o meu trabalho mais como uma linha contínua de progressão,não como uma coisa programada. O ecrã apareceu e agora mais uma vezdesapareceu. Essas barras pontuadas e muito vibráteis transformaram-se em barrasmais rígidas, com uma presença mais forte… Mas continua a haver essa noção depintar nos interstícios de qualquer coisa que já está lá, e a desmultiplicação dosplanos continua a ser importante.

Uma nova série não corresponde a uma mudança de programa, mas na sua pintura,as bolas e depois as barras são de algum modo um sistema, ou a procura de ummétodo, mesmo que ele não se estabilize numa fórmula.- O método é, digamos, uma percepção mais genérica das coisas. Isto é: se virmos aspinturas ao longe, percebemos que há um método por trás delas, mas vendo ao perto,elas diferenciam-se muito entre si. Essas pequenas diferenças acontecem no acto de

pintar. É impossível estabelecer uma fórmula: não é A mais B igual a boa pintura.Não pode ser. O método exige lidar com algumas constantes que as pinturas têm, masnos interstícios dessas constantes acontecem coisas diferentes.

Qual é a importância dos estudos desenhados? Que relação há entre os desenhos eas pinturas?- Jamais consegui aplicar o desenho a uma pintura. É totalmente impossível, porqueos materiais mudam. O desenho é muito mais imediato, enquanto a pintura lida commateriais mais pesados, que exigem uma maior distância, e a passagem do desenhopara a pintura é sempre muito problemática. Digamos que eu faço uma série dedesenhos, guardo uma ideia genérica, que é como um conjunto de preocupações, edepois a passagem para a pintura é muito aleatória.

Quando pinta, trabalha em vários quadros ao mesmo tempo?- Não. Tenho vários quadros à minha frente, mas pinto um de cada vez. Quando deixode pintar um quadro e passo para outro é porque, momentaneamente, não sei o quehei-de fazer com ele. Mas sei que há coisas que não estão bem, há coisas que foram

massacradas - tenho de descansar dessa pintura e passo para outra. Tenho a ideiamuito clara de que cada quadro tem de ser pintado sozinho. Não dá para passar coresde um quadro para outro, nada disso.

 Há sempre uma grelha rígida, que surge como um suporte que vai ser perturbado…- A estrutura é sempre muito forte nas minhas pinturas, desde as “Palavras Cruzadas”,e mesmo antes, nas naturezas mortas; sempre tive uma ideia forte da presença de umaestrutura, de uma organização muito bem fundamentada. Mas a sequência daspinturas é sempre perturbada, há uma instabilidade que me interessa. O que é

interessante é ultrapassar e tornar instáveis as regras que às tantas se vão criando nanossa forma de ver as coisas… As pinturas provocam outras pinturas. Nas que

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estiveram expostas no Palácio da Ajuda houve uma passagem entre quadros em queas linhas ainda tinham alguns pontos e outros em que, a certa altura, essa pontuaçãoda linha deixou de ser necessária e as linhas separaram-se. É, digamos, como oentreabrir de um estore. A certa altura surgiu uma espécie de persiana, de um estore, eele abriu-se, mas isso não é provocado…

Como é que numa situação em que existia uma marca pessoal muito forte surgiramreferências a Matisse e a Pollock?- Esse confronto com os pintores que nos dizem alguma coisa é permanente. É umdiálogo com o passado, embora ao mesmo tempo haja um distanciamento dessepassado. Umas vezes esse diálogo está mais presente, noutras está menos presente, etem-me acontecido dialogar com coisas diferentes. O diálogo com o Pollock e com asredes de drippings sem dúvida que está presente, de uma forma diferente porque a

tinta não é projectada, mas há uma desmultiplicação do espaço, como havia nascoisas dele, e também existe uma noção de rede: atrás de coisas vêm coisas que sesobrepõem a outras coisas…

Tratou-se de confrontar o seu sistema de trabalho com o de outros artistas?- É muito perigoso quando a pintura se transforma num sistema. Ser sistemático édiferente de ter um sistema. Eu sou muito sistemático, mas procuro o confronto. Achoque basta ter apenas uma ideia, uma ideia muito forte, mas depois há que ter acapacidade de confrontar essa ideia com objectos estranhos, há que introduzir aestranheza na ideia. Isso para mim é muito presente. Estou sempre à procura daestranheza, de introduzir elementos que descompõem, que se desviem de qualquerprevisibilidade. Esse é o perigo de usar uma grelha, mas por outro lado é um desafio -torna-se um desafio subverter esse sistema: tornar a rigidez uma coisa leve, etérea,ora mais pesada ora menos, contornar a rigidez.

 E reconhece a proximidade com algumas pinturas do Brice Marden?- Acho que essa aproximação obviamente se pode estabelecer, mas o próprio Brice

Marden fala do Pollock em relação às suas pinturas. Quando eu separo as linhas eelas se transformam em barras, como há uma distância maior entre elas, elasproduzem um espaço novo onde podem acontecer outras coisas, e essas pequenaslinhas que se introduzem entre as barras e que se vão continuando empurram essasbarras. O espaço está dividido e está segmentado, esse espaço pode ser percorrido porgrandes pinceladas horizontais ou por linhas verticais.

  Mas acho que a aproximação ao Brice Marden é acidental; acontece de modo fortuito porque tem uma origem diferente. Quando é que uma pintura está acabada?

- Uma pintura está acabada quando se chegou a uma determinada organização doespaço em que as coisas funcionam entre si, e já não são o somatório dos processos

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de fazer. O resultado tem do ser sempre uma coisa superior ao processo. É uma coisamuito intuitiva. Tem a ver com atingir uma depuração da imagem, haver umaconcentração de meios e não um desperdício de meios, percepcionarmos qualquercoisa organizada em que as coisas se reforçam e não se anulam… Mas é um fimsempre provisório.

Sente-se a trabalhar no interior de um campo a que se poderia chamar abstracção?- Creio que não, mas não é uma coisa em que eu pense muito. Podemo-nos perguntarse a abstracção existe realmente, e talvez exista do ponto de vista formal, mas muitasvezes um espaço não organizado que não sugere uma figura pode sugerir uma coisaespectral, sugere figuras que não são figurações. Realmente não me considero umpintor abstracto nesse sentido estrito. A prova é o surgimento daquelas figuras naspinturas de 99 que foi puramente fortuito: surgiram acidentalmente e sem qualquer

problema, meteram-se lá, e pode ser que se metam outra vez. Aparentemente asúltimas pinturas voltam a ser mais abstractas (entre aspas), mas não vejo isto comouma organização fria, por elementos... As grelhas e as barras paralelas nãorepresentam nada mas são de certa forma uma figura, que ao princípio não tem nomee que, pelos vistos, a partir de certo momento faz apelo a um nome, porque não sãoverdadeiramente abstractas. Acho que nunca pensei nessa questão da abstracção e dafiguração porque sempre circulei entre as duas. A abstracção não superou a figuração,e esse sentido finalista da história é que foi absolutamente superado.

O que significa para si a mudança de década (e também de século), já que há ohábito de ligar um artista a uma certa década, ou à datação de uma determinada

 problemática?- Essa datação das problemáticas sempre me fez muita impressão. É uma espécie delimitação que nos é imposta. Às vezes até terá sido positiva, quando pensamosnaqueles pintores russos do princípio do século, em toda aquela energia, em todoaquele momento explosivo de novas coisas que surgiram. Apetecia ter feito parte deuma coisa dessas. Hoje em dia o espaço está tão estilhaçado, a ideia de vanguarda é

uma coisa tão desactualizada… Tenho uma noção do que se está a passar nomomento e do que se passou para trás, mas nunca pensei nas minhas pinturas comoligadas a uma década. Não tenho a consciência de que seja um artista da década de90, ou 80, acho isso uma coisa absolutamente secundária no meu caso. É uma noçãomuito restritiva porque temporalmente uma década é uma coisa tão escassa… É umestreitamento, uma concentração do tempo que não é produtiva. Eu desenho todos osdias… As minhas preocupações são subjectivas e individuais, sou individualistanesse aspecto. Procuro ver o que se passa à minha volta, mas depois a criação da

pintura, os desenhos, todo esse corpo de trabalho, é gerido individualmente. A formacomo eu encaro a pintura é uma coisa muito solitária, exige uma atenção diária, mas

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isto não significa um isolamento. Há sinais que se detectam e que acabam por entrarna pintura, mas é de uma forma muito subjectiva, não programada e não dirigista.

 De que artistas se sente mais próximo?- Os meus gostos em relação a outros pintores são muito variados. É impossível

especificar, interesso-me por muitas coisas; gosto tanto do Pollock como doMondrian, ou do Rothko, gosto muito dos expressionistas abstractos americanos, porexemplo, mas também de muitas outras coisas. Lembro-me de que quando comecei aexpor tinha muito presente o meu gosto pelo Soutine, que era alguém que estava lálonge… O meu gosto flutua, embora seja muito ciente dos meus gostos.

 E agora assume essa relação com os expressionistas abstractos americanos?- Não se trata de assumir… Houve uma aproximação a certo momento em relação

especificamente ao Pollock. Aquela coisa enrodilhada agrada-me, mas é uma coisaque não é apenas traduzida na pintura dele. Por exemplo, no Soutine, naquelaspinturas tão mal pintadas (entre aspas)… gosto dessa coisa pouco pura… O meu usode grelhas é sempre no sentido não direi de conspurcá-las, mas de as sujar… Naquelaminha pintura do Mondrian a partir de Lichtenstein, a ideia que estava presente era ade fazer linhas tortas, pura e simplesmente; era pôr um bocadinho de Soutine numalinha daquelas… É uma coisa retorcida. Mas, por outro lado, também gosto de coisasmuito claras. Flutuo: há um campo muito plástico de flutuação na minha pintura.

 Mas não existe uma forte pressão para um artista estabilizar uma linguagem, repetiruma marca?- Refazer uma assinatura é uma coisa muito melancólica, muito triste. Para o mercadoé simples porque se reconhece um valor, mas uma pessoa que é consciente dos meiosque utiliza não se pode deixar ficar por aí. Evidentemente que eu creio que tenho umalinguagem própria mas que não é fechada, é uma linguagem que encolhe e alastra,que está aberta a variados factores. Mas a linguagem no sentido de um vocabulário éuma coisa muito pobre, e hoje mais ainda, com toda a diversidade de meios que

temos à nossa disposição. Estabelecer um programa de assinatura, programar umaassinatura é terrível.

 Há uma grande diversidade nas suas últimas pinturas.- Por exemplo, quando as linhas se despenham através daquelas barras horizontais,podemos lembrar-nos do Brice Marden ou do Pollock, mas elas não se despenham sónesse sentido - elas entram em conflito, conflituam… e esse conflito faz parte. Querdizer que não podemos estar nunca satisfeitos com a nossa imagem. Não vejo nestaspinturas um afastamento das minhas preocupações anteriores, mas elas podem ser

muito diferentes das que foram feitas no ano anterior. Isso agrada-me porque é umsinal de que a pintura continua a ter possibilidades dentro de si própria.

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 É trabalhar em constante risco?- Eu não vejo isto como uma situação de risco. Acho que nos artistas de que gosto éuma situação inerente à própria criação. Podemos pegar no Rothko, queaparentemente andou vinte anos a fazer aquelas pinturas, mas no caso de um homemdaqueles jamais poderemos falar numa fórmula. Aquelas pinturas têm umaintensidade e uma ética… essa ética é inerente ao trabalho de um pintor ou de artista.Não é só a intensidade da pintura, é a vida a imiscuir-se na pintura. Houve uma alturaem que pensava que as pinturas não deveriam ter nada a ver com a minha vida, mas éuma coisa impossível de destrinçar.

B. Textos críticos, notas

1995

«Sem palavras» EXPRESSO/Cartaz, 29 Abril

«I. Preto esbranquiçado», Gal. Alda Cortez

Todo o jogo infinito da pintura reencontrado por José Loureiro no espaço

gráfico das palavras cruzadas

As três grandes telas quadradas — de dois por dois metros! — dão a ver de imediatoa grelha impressa de um jogo de palavras cruzadas, delimitando e fragmentando anegro, em primeiro plano, um espaço posterior de cores diversas, profundas eflutuantes. A quadrícula ocupa toda a superfície, com os seus traços entrecruzados eos quadrados negros da praxe, recortada de um jornal antes que as palavras secomecem a inscrever. Com um olhar mais atento, ver-se-á que o rigor da grelha não éexactamente uniforme: por vezes, a consistência dos bordos desvanece-se; aqui, umgesto não se limita sob a grade e trespassa a barreira geométrica, ali, a mancha ouatmosfera de cor devora o limite que a contém.

E afinal, vendo bem, o preto não está bem impresso a preto, é irregularmente traçado,entre o cinzento e preto, com marcas da mão onde se quereria admitir a presença

uniforme da máquina. A grade negra é também exercício de pintura. Os títulos sãouma muleta acessória, neste caso: os quadros chamam-se Palavras Cruzadas,seguidos dos seus números de série, e a exposição tem o nome «I. Preto

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esbranquiçado», obviamente referido à referida grelha. Seguir-se-ão, num segundoandamento, a partir de 6 de Maio, por razões de dimensão da galeria e de intensidadeirradiante da pintura, mais três telas homónimas sob a designação «II. Cinzentobaço», de uma série que chegou às oito versões de igual formato, mas todas muitodiferentes nos valores cromáticos dominantes e também no modo de«preenchimento» da quadrícula. Talvez não se encontrasse uma mais divertida mãoestendida àqueles que treslêem a velha fórmula de que a pintura é coisa mental ouque cultivam outros idênticos interditos... E também poucas vezes a presença dapintura foi tão afirmativa e livre na sua desrazão.

Com a sua grelha, José Loureiro estabelece a exacta coincidência da superfície doquadro com o espaço da pintura, como auto-afirmação da materialidade do suporte

bidimensional, referência ao fechamento da janela ilusionista e ocupação «all-over»do campo da tela. É uma via de abordagem formalista que se sugere e, na evidênciado seu humor, assim se nega como solução. Por outro lado, ao convocar o jogointelectualmente gratuito das palavras cruzadas, para o qual cada um dos intérpretespode ensair a inútil lista de sinónimos, é também a questão por resolver do sentido dapintura que se oferece e se contraria: as palavras estão a mais, na situação do inicialcorpo-a-corpo perceptivo, quando o desafio, como aqui, é por inteiro o jogo dapintura. A grelha é uma disciplina a transgredir, uma regra que o pintor subverte,

transformando-a em liberdade acrescida — como poderiam ser a presença da figura,o assunto, a citação ou o género, outras regras passíveis de desvio. Na suabidimensionalidade afirmada, ela acrescenta mais espaço ainda ao que é infindável

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espaço pictural, atrás e entre (e também sobre) a sua frágil malha geométrica: lugarda materialidade da pintura e espaço de todas as ilusões bem reais que a pintura tece.Em vez das palavras, existem as cores, sempre impuras, como irrupção da luz e dastrevas e presença de uma matéria informe, organizada em manchas, campos,pinceladas, transparências e ocultações: um espaço de pintura que não precisa, nogozo da grade que não prende, de definir-se em significados.

Neste demorado acontecer visível desta pintura está também, para quem segue otrabalho de J.L., a marca de um outro tempo ainda mais longo que é o da sequênciadas suas exposições, permitindo entender melhor, nesse ritmo das procurassucessivas, a origem dos quadros actuais. Assim, como directa passagem, impõe-seimeditamente à memória, de entre um conjunto de telas mostradas na Madeira (naPorta 33), onde já se incluiam, aliás, as três primeiras versões das Palavras

Cruzadas, um quadro de 1993 que era uma explícita visita a Mondrian através da suatranscrição materialista e vernácula por Lichtenstein: Não Objectivo I, a partir de

R.L. Não se tratava então, apesar das aparências, de um exercício da citação, mas deum efectivo confronto com a possibilidade da pintura, reencontando a sua disciplinanum duplo sentido necessário, de lição e domínio da facilidade. Mas a ponte maisexacta deve fazer-se entre esta e a primeira exposição de J.L., em 1988 na Ether(«José se quiseres come as sardinhas todas»), em que surgira a público com asurpresa de uma pintura excepcionalmente desenvolta, que então convidava a referir

Bonnard e Dacosta, no seu intenso prazer dos óleos em que se definia ou adivinhava apresença de objectos de interiores domésticos. Sucessivos exercícios de contenção,fragmentação e recuo provisório, permitiram agora renovar o acontecer inteiro dapintura.

EXPRESSO/Cartaz 20-05-95, p. 17

“II. Cinzento baço”, Gal. Alda Cortez

Segundo capítulo de uma mesma série de telas de grande formato (“Palavrascruzadas”), onde J.L. reencontra, a partir de uma reflexão sobre Mondrian revisto porLichtenstein, e, paradoxalmente, sobre a disciplina auto-imposta de uma grelhageométrica que é, também, oportunidade da irrupção de múltiplos sentidos, aspossibilidades da pintura que anunciara em 1988-90. Pintura sobre a pintura (e nãoexercício da citação ou ilustração de “problemáticas”, que são vias mais usadas),estas telas onde os problemas do espaço plástico são revisitados com rara energia einvenção, comprovada pela própria diversidade de “soluções” presentes na série, sãoum reencontro com a complexidade e o prazer da pintura, das matérias, do gesto e da

cor,  e também uma resposta eufórica a todas as estratégias sacrificiais e facilmenterepetitivas das paredes monócromas ou matéricas.

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1996Gal. Alda Cortez

EXPRESSO/Cartaz 25 Maio, p. 17 - A pintura continua de boa saúde, como umatradição continuada e a cada momento reinventada. José Loureiro, que háexactamente um ano expusera no mesmo local as suas «Palavras cruzadas», regressacom uma nova série em que passa da estrutura quadriculada a um «sistema» de bolas,em quatro telas de grande formato e algumas outras de pequena dimensão e maisvariável resolução formal. Nos quadros maiores há sempre uma espécie de tramamais ou menos aberta sobre a qual se sobrepõem faixas de outras bolas maiores ebarras ou campos lisos de cor; mas dizer sobrepõem é aqui problemático, porque tudose passa num espaço instável, elástico e vibrante, onde as tramas não definempropriamente planos e as séries de círculos, flutuantes, surgem como problemasespaciais e desafios do olhar, onde a cada momento é perturbada a lógica explicativade um qualquer formulário.  É nesse pôr à prova do olhar e da razão que a dimensãoessencial do jogo se afirma e excede como invenção e enigma.

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EXPRESSO/Cartaz 01 Junho, p. 18 - Exercício dos meios da pintura e não«questionamento» sobre os meios, as condições e os fins da pintura, estes novosquadros de José Loureiro vêem-se como demonstração da vitalidade de uma prática,que certamente continua a convenção e a tradição da pintura ao mesmo tempo que asredescobre em cada objecto realizado, para lá de qualquer ideia de «retorno» àpintura ou à abstracção. O uso de uma espacialidade incerta, de profundidade instávelou elástica, a eficácia do trabalho da cor que é intrínseco ao jogo das tramas de bolas,indistintamente programado e aleatório, são elementos em que se conjuga amaterialidade de uma invenção. (Até 22 Jun.)

Gal. Módulo, Porto 

EXPRESSO/Cartaz 14-12-96, p. 19 - Mostrados antes na Gal. Alda Cortez, aspinturas e os papéis de José Loureiro viram-se como a sequência, diversamenteinventiva, de um retorno à picturalidade que marcara os começos do seu trabalho,após um intervalo aplicado na busca de uma disciplina mais especulativa que oficinal.Sobre uma regra de composição aparentemente geométrica, dominada pelo xadrezdas «palavras cruzadas», exercitavam-se antes vertiginosas flutuações espaciais quese prolongavam por um domínio original da cor. Depois, sucederam-se as bolas àsriscas, com idêntica, mas obviamente diversa, investigação espacial. O programa ou o

cálculo da pesquisa óptica é, porém, o de uma «nova abstracção» que mantém com aslógicas geometrizantes ou as derivas líricas uma relação marcadamente irónica, jánão discursiva e antes aplicada no reencontro de algumas intensidades imediatas, asdo fazer e do ver. O percurso é dos mais livres, sobre uma continuada segurança demeios. (Até 12 Jan.)

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1997

Expresso / Cartaz, “Actual”

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1998

referência e obra reproduzida em ”Os anos 90 nunca existiram” , in Espacio/Espaço Escrito, Badajoz, nº 15/16, 1998, pp. 106-116.

José Loureiro (1961), com primeiras individuais em 1988 que o revelavamcomo um artista prodigiosamente dotado, a que se seguiu um naturalperíodo de buscas e incertezas, mostrou nos últimos anos séries de quadros«abstractos», estruturados por grelhas ou tramas de quadrados («Palavras

Cruzadas») e de bolas, onde se constrói, de um modo simultaneamenteprogramado e aleatório, como um acontecer de pintura, uma materialidadeincerta, de profundidade espacial instável ou elástica, com um notávelsentido da cor.

referência em “Todos diferentes, todos actuais” , catálogo da III Bienal de ArteAIP'98, Europarque, Vila da Feira, 1998

José Loureiro mostra um exercício soberano da pintura, tão sensível comoexperimentalmente reflectido, mas seria absurdo classificá-lo como um«questionamento» sobre os meios, as condições e os fins da pintura. Não éum trabalho «sobre», contra a vontade de alguns pobres de espírito quequerem reduzir a (des)razão da pintura a um programa de intenções ouprotocolo explicativo, subordinando-a à sua lógica escolar e reduzindo-a àilustração de um inútil resíduo.Os seus quadros vêem-se como a demonstração vibrante e desafiadora da

vitalidade de uma prática antiga mas até agora inesgotável, continuando aconvenção do quadro e as tradições da pintura, mas afirmando-se comonovos, para lá de qualquer ideia de retorno ou pastiche.Nas suas telas actuais, «às bolas», existe sempre uma espécie de tramamais ou menos reconhecível sobre a qual se sobrepõem grelhas de outrasbolas maiores ou menores e barras ou campos lisos de cor; mas dizersobrepõem é aqui problemático, porque tudo se passa num espaço incerto,de profundidade instável ou elástica, onde as tramas não definempropriamente planos e as séries de círculos, flutuantes, surgem comoexplorações espaciais e desafios do olhar, onde a cada momento éperturbada a lógica explicativa de uma qualquer regra.

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É nesse pôr à prova do olhar e da razão, da ordem e do caos, trabalhando amatéria da cor, que a dimensão essencial do jogo, indistintamenteprogramado e aleatório, se afirma como inteligência e tecido de emoções.

1999«Voz, focagem, grão, eco...»

EXPRESSO/Cartaz de 4 Dezembro, pp 26-27

Módulo, Lisboa (27 Nov. - 31 Dez.)

Continuação e viragem no percurso seguro de um pintor. Uma pesquisa sem

fim, aberta em várias direcções

HÁ DOIS anos, José Loureiro mostrou na Módulo os seus trabalhos então maisrecentes e o «Cartaz» de 27 de Novembro ocupou as páginas centrais com um texto

crítico de José Luís Porfírio («assim o pintor atinge uma maturidade onde aconsciência da pintura é mais que um discurso, porque passa pelo ofício do pintor ese torna na consciência desse ofício») e uma entrevista que teve por título, retirado àfala do pintor, «São pinturas feitas com tinta».

Dois anos depois, Loureiro apresenta novos trabalhos: oito telas exibidas nas paredesda galeria e algumas outras, igualmente de grande ou de menor formato, acumuladasnas respectivas reservas. São fruto da mesma investigação continuada sobre umaprática chamada pintura, da mesma maturidade e ofício cedo alcançados pelo pintor.

São em grande parte as mesmas telas e já outras, partindo das direcções antesexperimentadas para pesquisas próximas e no entanto substancialmente diferentes,sem que as soluções antes encontradas se convertam num código adaptável a umacadeia ou sistema de produção, sempre trabalhadas, cada uma delas e a série que dealgum modo integram, na instabilidade consistente e consciente de uma procura semfim à vista.

Houve, a certa altura, já na sequência de um trabalho iniciado por finais de 80, as

«Palavras Cruzadas», estruturas quadriculadas que evoluíam de uma conjunção deapropriações interrogativas – Mondrian refeito por Lichtenstein e o encontro comessas grelhas geométricas vistas nos jornais, imagens preexistentes no limiar da

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«abstracção». Houve depois, mantendo a solidez da estruturação formal na base daconstrução da pintura, a evolução para uma rede de círculos ou bolas, com uma tramamais ou menos aberta, que se adensava volumetricamente em sobreposições etransparências, num espaço elástico e vibrante nascido da materialidade do óleo. As«Palavras Cruzadas» partiam de uma imagem prévia e nos quadros às bolas, essesverdadeiramente abstractos, tornava-se mais livre e intensa a evidência da matéria edo fazer da pintura.

«Globo», 1999, ó/t, 192x220 cm (continentes de cor em referência aos papéis colados de Matisse)

Depois, os alinhamentos longitudinais de círculos adensaram-se em barras queatravessavam o quadro, flutuantes e intervaladas num espaço em que a superfícieplana da tela é perfurada e subvertida pela sobreposição das tramas de pontos oubolas, maiores e menores, que «navegam num magma de tinta elástica, que se espalhae se retrai», dizia o pintor. A mesma estruturação ritmada, repetitiva, no interior decada tela, negava-se enquanto fórmula de composição rígida pela rejeição de todo o

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reducionismo que substituísse uma lógica programada de construção à emoção quepode decorrer da infracção da ordem, da integração do acidente e da surpresa nogesto e na matéria pictural, manifestação viva da pintura em acto. Chamou-se«Minutos» esse conjunto de telas, certamente relacionando cada uma com a realidadegeral da série e identificando-as como instantes exactos e claros a que chegara umapesquisa continuada. Dizia José Loureiro: «Uma pintura para ser clara não necessitade reduzir os seus meios, mas tem de estar consciente desses meios» .

A mudança do pintor é sempre lenta, ensaiada à vista nos sucessivos quadrosmostrados (e ocultada também em telas recomeçadas, onde se sedimentam formasexperimentadas e tintas sobrepostas), definida em ciclos de fronteiras flutuantes,tecendo uma variação prosseguida de tela em tela que, sem ter a sua pintura um teornarrativo, se poderia ver como uma contínua história do seu processo de fazer-se.

Entrar na sua actual exposição é viver um itinerário de sucessivas experiências,percorrer um caminho feito até de surpresas, ao entrar o visitante no primeiro espaçode acesso, depois descobrindo a grande tela que a certa altura se divisa do longocorredor da galeria, a seguir varrendo as paredes com um olhar panorâmico, até aoúltimo quadro, mais imprevisível ainda, que descobre atrás de si. Referir as suas telasserá coartar de algum modo esse efeito de surpresa tão gratificante e depoisperdurável.

Estão lá as barras e bolas, estas mais ocultas, como memória e densidade textural,mas as faixas paralelas tornaram-se mais estreitas, construindo um campo estriadomais compacto, com uma definição espacial e lumínica sempre ambígua, onde o usoparticular da cor inviabiliza uma discriminação exacta de planos, entre o que está, nasuperfície afinal plana, ilusoriamente mais atrás ou à frente, para cá ou para lá. Comessa grelha regular como as estrias de um ecrã de televisão coabitam agora,sobrepondo-se a ela, ou, aliás, divisando-se nos interstícios luminosos entre as faixas,linhas coloridas oblíquas ou entrecruzadas, atravessando o quadro, e também

rectângulos, zonas ou campos de cor. As composições anteriores, ortogonais eordenadas, são agora instabilizadas por essas linhas ou manchas.

Os quadros têm desta vez títulos individualizados – Globo, Focagem, Breve, Eco,Grão, Voz... – que surgiram depois de pintados, ou mesmo já na galeria, escolhidosos oito da montagem final. Eles não descrevem nem referem uma intenção ouprojecto, são um acto posterior de baptismo, diz o pintor, identificando um ponto dechegada, diferenciando-os entre si, como se ao nomeá-los «estivesse a sintonizarqualquer coisa» neles presente. O título Globo, a tela maior, surgiu associado à ideia

de continentes de cor – José Loureiro acrescenta que essas zonas de cor sãoreferência directa a uma grande colagem de guaches recortados de Matisse vista em

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Londres. Atribui à retrospectiva de Pollock o surgir das linhas oblíquas eentrecruzadas dos quadros recentes. Refere que alguns títulos (Grão, Focagem)reconhecem a proximidade das suas grelhas de cor cinza com as linhas do ecrã detelevisão.

Num último quadro, sem se interromper a continuidade da série, define-se entre asfaixas horizontais uma figura de homem de corpo inteiro, o retrato de um amigo,intitulado Joaquim (há um Germano nas reservas da galeria). O pintor refere que elemesmo se surpreendeu ao fazer aparecer a imagem na sequência não prevista do seutrabalho. Assim, como confirmação e viragem de um percurso seguro, esta é umaexposição feita de situações inesperadas, que se sustentam nos anteriores pontos dechegada, sempre como conclusões provisórias, e deixando abertos múltiploscaminhos de futuro.

2001

"Linhas de vida"

EXPRESSO/Actual de 22 DezembroGaleria Cristina Guerra

Razão e acção na pintura experimental de José Loureiro

Para quem acompanha o trabalho de José Loureiro através das sucessivas exposições,cada uma das suas telas é uma pintura plenamente independente no seu existirindividual e também um momento de um devir contínuo, um elo numa cadeia derealizações sequenciadas. Cada quadro é, ao mesmo tempo, imprevisível na realidadeda sua configuração material e é sustentado pela contiguidade e renovação dos«problemas» postos pelo trabalho anterior do pintor. Em vez de encontrarmosvariações sobre uma solução experimentada (o desdobramento de uma fórmula ousistema que caracterizaria uma fase de trabalho, como é mais frequente),surpreendemos, de tela em tela, os passos de um caminho que se explora e quepermanece em aberto, desconhecido.

O livro este ano publicado pelo artista na Relógio d'Água põe à disposição doespectador menos assíduo todo o corpo de trabalho, desde 1994 e com alguns passosda produção anterior, que conduziu à exposição actual, mesmo se no caso da pintura,

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e da sua em especial, nenhuma reprodução se substitui ao confronto visual e físicocom a materialidade sensível do quadro.

É de uma pintura em acção que se trata, legível de imediato como um fazer«experimental» que instabiliza em permanência os dados já antes utilizados ouestabelecidos para enfrentar sucessivamente novas possibilidades. A mobilidade dopintor não é, em absoluto, a de uma dispersão volúvel de atitudes, à maneira donomadismo com que se destitui a marca autoral, nem a continuidade do seu trabalhoresulta da fixação de um sistema ou de uma maneira. O seu trabalho, pelo contrário,realiza-se a partir da vitalidade assumida de possibilidades contrárias, entre a ideiaconceptualmente formulada e a experiência prática e imprevisível da sua realização

plástica, entre a regra construtiva (uma organização do espaço, uma grelhageométrica) e a admissão do que acontece sobre a tela como acaso, acidente ouestranheza, entre um princípio frio de definição e depuração racional e a abertura, noterreno da acção pictural, ao que é precário e impuro.

Todos estes quadros, de grande ou muito grande formato, com fundos de cor mais oumenos irregularmente lisos, são atravessados por riscas negras horizontais e paralelas,agrupadas em número variável mas com distâncias constantes entre si (como uma

pauta, sugeriu o pintor). Formam barras transversais de diferente largura, dispostasem lugares diversos da tela. Em quase todos, esse espaço irregularmente dividido éatravessado por linhas verticais, por vezes oblíquas, de diferentes cores e espessuras

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que o percorrem de modos infinitamente variáveis, sempre mais ou menosacidentados e fragmentados: fluem (escorrem) rapidamente, alargam-se em barrashorizontais, quebram-se, serpenteiam, cruzam-se, conflituam entre si, conhecemvariações tonais, retomam uma direcção ascendente, interrompem-se, etc. Nessetraçado de sugestão musical a matéria pictural imobiliza-se e permanece líquida evibrante, registando como um sismógrafo a instabilidade do que em cada quadro,como na vida, é regra ou surpresa. Sustenta-se em cada quadro um olhar inesgotável,no qual a leitura das formas não se encerra num mera inteligência formal, sem que seabram espaços de representação ou de metáfora (que os títulos não autorizam). Sãolinhas de vida que se percorrem, de pintura e de vida, inseparavelmente.

2002

EXPRESSO/Actual de 13/7/2002

Museu de Serralves, Porto.

«O lugar da pintura»

Pinturas e desenhos recentes de José Loureiro em Serralves

Numa entrevista recente, Luc Tuymans, um pintor «terminal» que Serralves já expôs,cita uma «boutade» de Catherine David, comissária da Documenta de 97, segundo a

qual a pintura é académica quando é boa e reaccionária quando é má. E acrescenta:«Tudo isto é extremamente simplista, como a maior parte dos discursos actuais sobreo carácter obsoleto da pintura, discursos vazios de sentido, porque a pintura é muitomais do que um médium» ( Artpress, Paris, Julho-Agosto). Para o discursoinstitucional, a pintura é, quando muito, um «meio expressivo» entre outros meios decomunicação, ou de produção de imagens, no seio da abstracção «Arte em geral»onde se dissolvem as práticas artísticas concretas. De vez em quando, já duas vezeseste ano, as instituições francesas redescobrem a vitalidade da pintura em mostras

compungidas a que chamam «Urgent Painting» (Museu de Arte Moderna de Paris) ou«Cher Peintre» (agora no Centro Pompidou).

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A apresentação em Serralves de José Loureiro, «um dos pintores portugueses cujaobra mais se tem vindo a afirmar desde finais da década de 80» , como informa omuseu, começa por levantar problemas de programação e enfrenta essecondicionamento discursivo sobre o carácter obsoleto da pintura. O espaço que lhefoi atribuído, habitualmente ocupado por instalações e vídeos, não é apropriado auma obra onde é precisamente substancial a distância entre pintura e imagem, quenão pode confundir-se com a eventual diferença abstracção-figuração. A deficienteiluminação (talvez já em parte corrigida com a abertura de uma janela) dificulta umacontemplação que actue sobre a superfície do quadro para percorrer (decifrar?) tudo oque nela se expõe e oculta, a flutuação do seu espaço virtual, o tempo inscrito nosmateriais, a opacidade ou vibração da cor, etc.

Também seria possível questionar o desequilíbrio da programação entre maiores e

menores representações, mesmo antes de chegar o mega-evento de Verão e debilheteira que serão as intimidades de Nan Goldin, mas importa mais reflectir sobre ouso de um jargão «especializado», simplista e obscuro, que esconde os objectos emvez de os iluminar. «A obra de José Loureiro confronta o tempo de quem declara a

  pintura como um género extinto nas suas possibilidades», afirma João Fernandes,director-adjunto e comissário, logo no começo do seu prefácio. Não é claro se elepróprio declara o «género extinto», mas ainda mais obscura é a adaptação do seutexto que abre a «folha de exposição»: «Os quadros de J.L. revelam uma

singularidade que se torna visível no confronto com os saberes e práticas quetestaram os limites formais e conceptuais da pintura enquanto género.» A suasingularidade não é a de um exercício dentro de limites da pintura anteriormente«testados», mas a invenção de um campo infindável de possibilidades, inéditasmesmo se dialogam com as invenções de outros artistas (outro prefácio, de FilomenaMolder, interessa-se precisamente por essa continuidade de experiências esignificados).

Na sequência de uma série mostrada na Galeria Cristina Guerra, os novos quadros

colocam à prova e alargam as direcções que partem de uma provisória regraconstrutiva, onde uma estrutura rígida de linhas paralelas horizontais é aleatoriamenteinterrompida pela animação dos fundos de cor e por traços verticais irregulares. Écom elementos mínimos, que não são um mero jogo formal, que a pintura aconteceao fazer-se, ultrapassando os sistemas e limites de que parte para absorver o olhar epôr em cena e em questão as virtualidades de uma prática chamada pintura.

Numa segunda sala, uma nova série de desenhos dá a conhecer uma produção

paralela à pintura, como um campo experimental onde se ensaiam ideias de pintura,sem que esta nunca seja a aplicação de um projecto prévio. Esses desenhos reabremum diálogo entre figuração e abstracção que tem estado sempre presente no trabalho

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do pintor: sobre as linhas horizontais de uma mesma pauta regular surgem silhuetasde corpos humanos, sobrepostas e variavelmente descentradas ou flutuantes na páginabranca. As linhas de contorno repetidas identificam o uso de moldes recortados apartir de fotografias, contornados com a irregularidade da mão (de novo a regra e oacidente). São mostrados sem título, mas em alguns desses desenhos, identificadospelo artista, estão, por exemplo, Mark Rothko e Merce Cunningham. É imprevisível,também para o próprio artista, o que poderá, ou não, decorrer desta «experiência»,num trabalho que sempre se reinventa sobre os provisórios limites de uma práticaviva.

2003Expresso/Actual 08 Fev.

Gal. Presença, Porto

Em Serralves, José Loureiro  mostrou no Verão desenhos-estudos onde surgiamsilhuetas humanas (retiradas de fotografias, em geral de artistas históricos), váriasvezes sobrepostas e descentradas, visivelmente realizadas com o uso de moldes comcontornos recortados. Esse ensaio de ideias de pintura concretizou-se numa novasérie de telas de grande formato, mas a passagem do papel ao quadro não é meraoperação de transcrição-ampliação, vivendo a sua pintura, sempre, das contingênciase das explorações sucessivas do seu próprio fazer, mesmo se o pintor gosta de contera liberdade da mão com a regra pré-fixada pelos moldes. As anteriores barras queatravessavam ou percorriam a tela tomam agora formas humanas, por vezes muitoindefinidas pela sobreposição, rotação e inversão das matrizes recortadas. Entre a«abstracção» e o reconhecimento, entre o programa e o acidente ou aleatório, a

mesma pintura experimenta uma nova direcção, experimenta-se entre o saberadquirido e o gosto pelo risco, ao nível da melhor pintura que hoje se pratica (emqualquer parte do mundo). (Até 1 Mar.)

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2005

«O quadro negro»

EXPRESSO/Actual de 20 Agosto

Centro Cultural Emmerico Nunes, Sines 

Pintar, entre programar e acontecer

Entra-se na Capela da Misericórdia pela porta lateral que dá para o largo da Matriz,para o mar e a casa branca e azul do Centro Cultural. A pequena porta recorta apintura em frente, que ao entrarmos se amplia até aos seus imensos 3,70 x 2,96metros, de um negro brilhante, aparentemente liso e uniforme, estriado por linhasbrancas e cinzentas que a percorrem horizontalmente de bordo a bordo.

Vendo melhor, a horizontalidade é apenas aparente; as linhas paralelas começam, à

esquerda, no sentido da leitura, por um breve movimento ascendente e quebram-selogo a seguir para iniciarem a travessia da tela, não exactamente na horizontal massim levemente oblíquas, descendo tão lentamente que o olhar não o distingue deimediato. O traço é regular, visivelmente apoiado numa régua mas não mecânico, ecintila sobre o fundo negro com espessuras alternadas e intensidades regularmentevariáveis de branco e cinzento - não é como um padrão ou um sistema padronizadoque essa regularidade se vê, mas como um acontecer imponderável, regrado mas aomesmo tempo imprevisto. Esse negro brilhante do óleo também não é uma superfície

invariável ou uniforme. Para além dos acidentes introduzidos pelos reflexos da luzprojectada (apetece voltar com diferentes ambientes luminosos, de dia com luzzenital difusa e ao poente que entrará pela porta em frente), há vestígios e relevos queficaram de estados anteriores da pintura e pequenas manchas esbranquiçadas eirregulares que acontecem por acidente ou voluntária vontade de imperfeição.

Poderia ser um céu nocturno e o movimento das estrelas quando uma fotografia asregista numa longa exposição, mas o negro e as linhas claras são aqui poderosamentemateriais, e diante do quadro (completo em si mesmo, não um fragmento de algo que

os bordos recortem) suspendem-se as tentativas de encontrar uma referênciaconhecida que o explique. Ele basta-se a si mesmo, com a sua imensa superfície

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vertical e as estrias quase horizontais que a atravessam, entre a regularidade exacta eao mesmo tempo vibrátil da sua estrutura equilibrada e a fractura subtil das duasoblíquas desiguais.

Visto no espaço da capela, ao lado do púlpito elevado e lateral ao grande altar de

talha dourada, poder-se-ia procurar um propósito de diálogo com o sagrado, ou com arazão humana do sublime, mas a realidade é que essa é apenas uma temporáriacondição de exposição, antes de outros destinos e outras leituras. Mais do que essemomentâneo local e as sugestões iconográficas que ele pode motivar, importará olugar desta pintura na sequência do trabalho do pintor, lembrando outras barras,bandas, riscas, grelhas, que atravessam as telas. Ou podem vir à memória as pinturasnegras de Frank Stella, com as suas bandas estáticas sobre o fundo plano e impessoaldo esmalte, simétricas e voluntariamente pobres no seu rígido programa formal. Mas

essa aparente semelhança muda-se logo num feixe de diferenças, como se a mesmaaparente redução inicial dos meios fosse, afinal, um ponto de partida para outrosdestinos e olhares em aberto.

No catálogo, um texto de João Miguel Fernandes Jorge refere esta mesma tela mascom diferentes configurações (a segunda vez já num Post Scriptum que revê aobservação inicial). É uma outra pista sobre o trabalho do pintor, que insatisfeito como seu quadro o refaz e depois o recomeça, já inteiramente diferente. Nesse passo deavaliação crítica do seu quadro, no próprio processo de o fazer, está inscrita a questãodecisiva dos critérios que distinguem a qualidade intrínseca de um obra (quando aausência ou indiferença dos critérios de qualidade se tornou para muitos uma regra).O que teria falhado nessa obra que passava à pintura sobre tela e ao muito grandeformato a linha de trabalho gerada pelas grelhas de rectângulos que vemos na sérieparalela de pinturas sobre papel, na variabilidade aleatoriamente experimentada dasua estrutura pré-definida, igualmente expostas e excelentes em si mesmas? O que é,como dizer, a excelência de uma pintura? (foto: Sem título, 2005, guache sobre papel)

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2007

«Equilíbrios instáveis»EXPRESSO/ACTUAL de 17 de Março

Galeria Cristina Guerra (1-31 de Março)

A pintura impura de José Loureiro, entre os seus programasprévios e o acontecer do quadro, num momento de aproximação às

grelhas de MondrianÉ inevitável pensar em Mondrian e nas suas composições de rectângulos e quadradosdefinidos por traços negros que estruturam o espaço plano do quadro, onde seinscrevem zonas brancas ou de cores primárias. Nas pinturas de José Loureiro aslinhas rectas interrompem-se ou duplicam-se (são a justaposição de contornos demoldes usados como régua, em precária aliança da mão e da máquina), a ordem éinstável (arbitrária, mas justa), a estrutura vacila sem se desmoronar, a superfíciebranca «all-over» vibra, abre-se para dentro, numa insondável profundidade flutuante,

como um ecrã catódico, mas é a grelha de Mondrian que se move nestes quadros.

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Não é a primeira vez que esse encontro acontece nem ele é acidental, tratando-se deum pintor que põe em jogo meios de organização sistemática do espaço do quadro,com formas modulares, padrões, barras e outros elementos de repetição estrutural - etambém, para lá da fronteira movediça do que se chama abstracção, matrizesrecortadas de figuras e objectos, adoptando a disciplina da variação mecânica emsituações de representação figurativa.

A grelha teve, no século XX, a partir do cubismo, um papel de especial importância,chegando-se a substituir o mundo visível pela busca da sua estrutura espacial(Rosalind Krauss chamou-lhe o «emblema da ambição modernista»). Mondrian levoumais longe que ninguém a especulação sobre a variabilidade harmónica da grelhageométrica não decorativa, investigando questões de ritmo, equilíbrio dinâmico,tensão e oscilação ópticas ou vibração espacial. A visualidade pura da «nova plástica»

não se pode isolar, porém, duma reflexão milenarista, utópica e de contornos místicosque a distingue de outros formalismos modernistas. No âmbito da conflitualidadeideológica do primeiro pós-guerra, tratava-se de atravessar as aparências para atingirum equilíbrio universal de relações, partindo da dualidade fundamental da vertical/horizontal para abordar ou resolver outras dualidades: masculino/feminino, material/espiritual, abstracto/natural, etc.

No caso de José Loureiro, o conhecimento das vicissitudes das utopias escreve-sesilenciosamente na prática pictural, mas os elementos formais também nunca sãoapenas formas destituídas de conteúdo e expressão. São sempre possibilidade desentido e de emoção, dinamizada pelo olhar activo do observador que contempla.Numa entrevista, Loureiro falou do gosto em «flutuar» entre Mondrian e Soutine. Éisso que aqui se passa, nestes quadros de grande formato que usam os meios mínimosda pintura (a linha e duas não-cores, branco e preto, mas transformadas em cores comluz própria), não como resíduos dum caminho geral fatalmente reducionista mascomo elementos bastantes para continuar a manifestar toda a ambição da pintura.

Loureiro chegou às actuais grelhas instáveis a partir de trabalhos em que repetiamódulos contíguos de dimensões constantes, numa estrutura ortogonal plana sujeita asobreposições ocasionais de formas iguais mas de cores diferentes. A estruturaaparentemente rígida (vendo melhor, sempre variável de densidade, espessura evelocidade do seu traçado modular) dava lugar a uma rede irregular graças a essesmódulos móveis, descentrados e ligeiramente oblíquos, que conferiam relevo espacialà superfície e inscreviam o seu tempo de factura na imagem-objecto plástico. Nessetrânsito que a pintura inclui importam o programa e a sua variação improvisada, a

regra e o acidente, a hesitação da mão e os acasos materiais, como se a vibração dofazer dessa grelha a tornasse mais atraente e perfeita, talvez porque mais humana. Apossibilidade de recomeçar, repintando tudo, oculta-nos o que, ao olhos do

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observador privilegiado que é o pintor, se pode tornar uma obra falhada (era esse ocaso do «quadro negro» exposto em Sines em 2005).

Na passagem para as telas actuais, a regularidade modular deu lugar à malha variável

de rectângulos e quadrados a preto e branco que tem a marca especulativa deMondrian, mas sem a economia e equilíbrio duma tensão geométrica que procura ouniversal e o intemporal. Todas as hipóteses simbólicas da janela, da cruz, da árvore,etc., são também anuladas pela recusa da simetria e das relações de proporção queMondrian designava como «trágicas». Em vez da contemplação da forma plástica quebusca a harmonia dum tempo messiânico, de uma ideia da «aparição abstracta dascoisas» alheia à aparência natural, estamos perante o acontecer material da pintura,com as impurezas, os acidentes, os acasos, o tempo e os modos do fazer que se

interpõem entre o projecto e a decisão de chegar ao fim de um quadro. Numa outratela, de ainda maior formato, a inscrição de um rectângulo muito alongado e tambémvacilante, numa breve deslocação lateral, pode ver-se como um encontro com BarnettNewman. Não é citação, apropriação ou simulacro, nem vem prolongar o sentidometafísico dos eixos verticais do pintor americano, sem certamente se recusar a seruma homenagem prestada a um dos herdeiros de Mondrian. Duas telas mais, muitodiferentes (e toda a exposição simultânea no espaço Chiado 8 que se prolonga até dia23), situam esses encontros com o que já é história, sem deixar de ser pintura viva, noâmbito do itinerário pessoal dum grande pintor dos nossos dias. Entretanto, falar de«regresso da pintura» não é mais do que ruído.

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C. Notas 1988-1993

1988 Ether: “José se quiseres come as sardinhas todas”

Expresso/Cartaz, 29 Outubro, p. 20

O espaço é à partida impróprio para a pintura; depois, no segundo piso, depara-secom a curiosa colocação dos quadros (mesas, naturezas mortas…) num plano muitobaixo. Descobre-se que se trata de um jogo, com os olhares, os respectivos hábitos, asrelações usuais com a pintura, as luzes e os seus efeitos sobre as cores e densidadesdo óleo – o texto breve do catálogo fala de penumbras e da presença dos objectosdesfocados (o lugar é dedicado à fotografia, em princípio… Mas não se trata deóbvias pinturas de referências fotográficas). Raramente o retorno a uma práticaarcaica e injustificada se revela tão capaz de surpresa, longe do exercício académico eafirmando o domínio das suas regras, circulando entre “temas” com o saber de umalinguagem definida e o sabor das cores, das matérias, dos objectos – o gosto dapintura. (Até 19 Nov.)

1988 Diferença: “Lumaréu”

Expresso/Cartaz, 26 Novembro, p. 20

Guaches de José Loureiro, cuja primeira pintura sobre tela foi uma muito recenterevelação da galeria Ether. A seu propósito, como de Miguel Branco, por exemplo, setem falado dos “netos de Dacosta” e em algumas figuras ou na sensualidade detexturas ou em opções cromáticas se pode reconhecer pelo menos a admiração por

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ele, um humor próximo. O discurso é aqui mais livre que na anterior exposição, ondeos quadros deixavam supor um gosto do precioso e do exercício virtuosístico,sobreposto ao prazer da descoberta da pintura. (Até 4 Dez.)

1990 Diferença: “O Juramento”

Expresso/Cartaz, 10 Fevereiro, p. 11 - Com duas individuais de pintura praticamentesimultâneas em 1988, que foram particularmente saudadas pela sua originalidade,falta a este regresso, naturalmente, a frescura de uma descoberta. Menos natural é quepareça faltar  também a inquietação que se supõe dever marcar um itinerário criativo:a presença dos objectos (Jarra, despertador, máquina, de 87, num exemplo aoacaso do catálogo da exposição da Ether), sempre incertamente definidos, era a da

arbitrariedade de um jogo de matérias; as formas assumem agora um peso descritivo,anedótico, em que a imprecisão das coisas é trabalhada como fórmula, numaconstrução amável de efeitos narrativos.

Expresso/Cartaz, 17 Fev., p. 8 - A simultaneidade das duas primeiras individuais nãopermitiu economizar a dificuldade da segunda exposição. A primeira (em especial ada Ether) foi a ocasião da descoberta da pintura, da sedução dos seus materiais eprocessos, da referência directa a alguns modelos sobrepostos, de Fautrier a Dacosta,passando por Bonnard. A segunda é a das tentações e das facilidades imprudentes, emque algumas fórmulas narrativas se caricaturam em vez de se aprofundarem, algumas

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ampliações de escala se fazem mecanicamente, ou em que o alargamento das gamasde cor e da luz (a penumbra dominava em muitas pinturas anteriores) não resulta doamadurecimento dos recursos.

1991 Gal. Alda Cortez

Expresso/Cartaz, 20 Abril

É de um recomeço que parece tratar-se, depois da brilhante revelação das duasindividuais de 88, a que se seguiu, em 90, uma imprudente gestão de talentos efacilidades. José Loureiro concentra-se agora sobre objectos isolados num fundoindefinido (boca, orelha, batata, e suas sombras), em oposição às complexas

composições datadas de 87-88 - recorde-se por exemplo, Garfo, mesa, jarra, onde asuspensão da definição das formas se fazia num terreno pictural onde os valores daspastas, da iluminação e da cor se impunham com (ingénuo?) sucesso, numa linha que

“Boca” , guache, 28x34 cm 

apontava então a atracção por Bonnard e Dacosta. Tanto como à interrogação dosentido das imagens, numa direcção mais irónica e «cruel», lembrando Guston, é à

reconsideração de processos e de meios que agora se assiste. Como forma derecomeçar, espera-se. ( Até 30) 

1993 Galeria Alda Cortez 

Expresso/Cartaz, 8 Maio

Desenhos: um novo momento de um percurso de decomposição, isolamento e

fragmentação de imagens, num processo de reconsideração de objectivos guiado pelarecusa e a crítica. Algumas das peças consistem em construções duplas, com a

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repetição de mão esquerda de um motivo tomado a uma figura de BD, ou, noutrocaso, de um esquema de pintura matissiana; noutros desenhos ainda (posteriores?) o«tema» banaliza-se deliberadamente e multiplica-se em fragmentos, num mesmocaminho de negação da habilidade manual e do projecto. É uma via de interrogações,certamente em busca de um limiar que sirva de novo ponto de partida.

 Equilíbrios instáveis, Expresso/Actual, 17.03.07.O quadro negro, Expresso/Actual, 20.08.05

 José Loureiro, Expresso, 08.02.03O lugar da pintura, Expresso, 13.07.02

 Linhas de vida, Expresso, 22.12.01Voz, focagem, grão, eco…, Expresso, 04.12.99Os anos 90 não existiram, Espacio/Espaço Escrito, n.º 15/16, 1998

«São pinturas feitas com tinta» (entrevista), Expresso, 29.11.97A pintura como ‘arte pública’, Expresso, 21.11.97«José Loureiro», Expresso, 14.12.96«José Loureiro», Expresso, 20.05.95Sem palavras, Expresso, 29.04.95«José Loureiro», Expresso, 08.05.93«José Loureiro», Expresso, 20.04.91«José Loureiro», Expresso, 17.02.90«José Loureiro», Expresso, 10.02.90«José Loureiro», Expresso, 26.11.88«José Loureiro», Expresso, 29.10.88

Todos diferentes, todos actuais, catálogo da III Bienal de Arte AIP’98, p. 73, Vila da Feira, 1998«As pinturas provocam outras pinturas» (entrevista), in JOSÉ LOUREIRO, Relógio D'ÁguaEditores, Lisboa, 2001

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