performatus.net
1
Inhumas, ano 3, n. 14, jul. 2015
ISSN 2316-8102
MATÉRIA EM CONSTANTE MOVIMENTO: JOSEPH
BEUYS E TIM INGOLD
Renan Marcondes
1. Introdução: um homem que fala com lebres
A poluição ambiental avança paralelamente à poluição do mundo dentro de nós. Joseph Beuys e Heinrich Böll
Um dos trabalhos mais paradigmáticos da arte contemporânea,
reproduzido em diversos livros e estudos sobre o tema, consiste em uma
performance de alto teor simbólico realizada em 1965 na Galerie Schmela, em
Düsseldorf, intitulada Como se explicam quadros a uma lebre morta. Nela, o
artista passeia pelo espaço expositivo repleto de quadros, embalando uma lebre
morta nos braços e explicando para ela o que é “arte” pelo período de três horas.
Vestindo sapatos com sola de feltro e cobre, e com o rosto envolto em mel e
ouro em pó, Joseph Beuys (1921 – 1986) interrompe a explicação prévia e se senta
com ela em um banco para lhe falar murmúrios incompreensíveis. O artista
alemão, autor desse e de tantos outros trabalhos marcantes da segunda metade
do século XX, será discutido no presente artigo como um promotor de novas
formas de se pensar a relação entre homem e natureza.
No trabalho que citamos acima, por exemplo, essa nova forma pode ser
indicada pelas simbolizações e relações entre os elementos utilizados pelo
artista, conforme apontado pelo crítico Alain Borer: o mel, produzido pelas
abelhas – de forma absolutamente organizada – e utilizado pelo homem, ao ser
empregado na obra une os diferentes reinos, assim como estão unidos homem e
lebre, cujo pelo pode ser entrelaçado e feltrado (assim como o feltro sobre o qual
o artista pisa com seus sapatos). Porém, morta, a lebre se torna símbolo de
renascimento e reencarnação de uma relação que só é possível a partir de uma
performatus.net
2
língua primordial e gutural: os murmúrios (BORER, 2001, p. 20). A imagem
solitária do homem que tenta se comunicar de forma ritualizada com um animal
já morto sintetiza um interesse declarado do artista por uma revisitação de um
saber primitivo e por uma igualdade no diálogo entre homem e animal como
elementos necessários para se discutir, pensar e refletir não somente a respeito
da arte, mas acerca de uma nova sociedade crível.
Como é possível ver nesse breve exemplo, a produção artística de Joseph
Beuys promove um outro tipo de olhar sobre natureza, de caráter sinérgico e
coetâneo, o que leva ao nosso interesse de pensar sua produção por um viés da
coexistência entre forma e material na constituição de um “reino” que pretende
reconstruir espiritualmente a unidade do ser humano, “onde natureza e
civilização, ser humano e técnica, arte e vida, teriam suas dimensões igualadas”
(ROSENTHAL, 2002, p. 20).
Para tanto, colocaremos sua produção em relação às recentes teorias do
antropólogo britânico Tim Ingold, que propõe uma revisão dos termos
“natureza” e “cultura” e dos usos que deles fazemos, pensando a relação do
homem com o seu ambiente de modo coetâneo e sinérgico. Autor de livros como
Being alive (2011), The perception of environment (2001) e Making (2013), Ingold
– ainda não traduzido no Brasil1 – realiza constantes entrecruzamentos entre a
antropologia e as artes. Mesmo sem analisar diretamente a produção de Beuys
em seus textos, suas reflexões fornecem outros caminhos para pensarmos a
produção do artista, uma vez que a sinergia pensada por Ingold conversa
diretamente com a “fusão entre ecologismo radical e estética pós-moderna” no
projeto artístico de Beuys, que é acompanhada pela “falta de uma distinção
significativa entre humanidade e o resto da natureza” (GANDY, 1997, p. 638).
É importante o termo projeto para introduzirmos o artista pois suas
obras sempre se destinam a um objetivo maior, que visa, dentre outros fatores,
a reestruturação de uma economia baseada num imperativo ecológico,
reformulando o organismo social – o qual Beuys chama de escultura social. Esse
projeto tem como alicerces a sabedoria mitopoética criada a partir de sua própria
1 As traduções para o português contidas no artigo foram realizadas por Renan Marcondes.
performatus.net
3
história pessoal e de uma série de partituras (grandes diagramas simbólicos e
textuais) que são resultantes de suas aulas e palestras.
Dessa forma, mesmo sem uma preocupação cronológica2, o artigo se
debruçará sobre algumas obras de Beuys que se agrupam a partir do
entrecruzamento entre o artista e Tim Ingold, uma vez que as obras nos levarão
aos questionamentos de Ingold acerca do olhar socialmente dado aos materiais,
que condiciona nossos modos de relação e sensibilidade para com o mundo
material e os tornam meramente utilitários. Iniciaremos com a constituição do
mito de Beuys e a importância desse ponto de partida para sua produção
posterior, ainda com grande caráter escultórico, porém com um modo de
tratamento dos materiais e resolução formal das obras que se distancia da
lógica utópica da modernidade artística, dando espaço para uma existência
concreta dos seus principais materiais (o feltro e a gordura animal). Em um
segundo momento, olharemos para alguns desenhos e anotações de Beuys,
comparando uma forma recorrente neles e na argumentação de Ingold: a forma
espiralada. Com esses breves estabelecimentos de relação, veremos em Beuys
modos de articulação concreta das proposições teóricas de Ingold.
2. Forma e matéria
Em ações concretas, Beuys traz para o espaço retangular de uma galeria vários pacotes de gordura. Abre-os, empilha-os e amassa tudo, de modo que o material se torne plasticamente maleável. Então ele aplica essa gordura a um ou mais cantos, alisando-a ao máximo. Depois contempla, analisa o todo por algum tempo e, a seguir, deixa a sala. Assim como se aplica óleo na cabeça do moribundo no sacramento da extrema-unção, o espaço humano, marcado pelo ângulo reto, é ungido nas ações do artista, para que possa estar à altura do futuro orgânico, das leis da vida e crescimento da natureza.
Volker Harlan 2 Como analisaremos as obras sem explicitar a relação entre sua forma e o percurso do artista, que é essencial para a compreensão aprofundada das transformações e principalmente para um aumento de proposições e intervenções de caráter mais performativo e intervencionista na fase final da produção, é importante citar brevemente sua passagem pelo grupo Fluxus (movimento vanguardista liderado por Nam June Paik e George Maciunas) durante os anos de 1960, e a posterior inclusão em diversos projetos sociais como a Organização pela democracia direta via plebiscito, a Organização para não-votantes e, principalmente, a fundação da Universidade Livre Internacional, em 1974, que coincide com a reformulação da teoria de escultura social a partir de seus estudos sobre a estrutura das plantas (vista na segunda parte do artigo) em comparação com a sociedade, ou, nas palavras do artista: o organismo social. A partir dessa vivência, cada vez mais as aulas e ações públicas tomam grande parte de sua produção, e o homem passa a ser considerado como um dos materiais essenciais a serem trabalhados e esculpidos. A relação entre o homem e seu entorno, agora não mais evidenciada apenas pelas propriedades da matéria em relação ao corpo – como nos trabalhos anteriores – opera também via discursos, performances e ações públicas.
performatus.net
4
O artista Joseph Beuys, após ter participado da Segunda Guerra Mundial
como soldado da Alemanha nazista, retira-se em um longo período de exclusão
marcado por uma profunda crise pessoal, interrompendo a sua produção
durante os anos de 1950. Ao retomá-la, o artista narra constantemente uma
história sobre sua participação na guerra, que inclui uma experiência de quase
morte e que descreve principalmente o encontro afetivo com os materiais que
serão recorrentes em sua produção futura. Sem nunca ter comprovado os fatos –
de caráter altamente simbólico –, a história é geralmente nomeada como uma
lenda. Citamos um trecho dela, transcrita por Alain Borer em um denso texto
sobre a obra do artista, que servirá como uma das bases para nossa
argumentação:
Ainda jovem, começou o estudo de medicina, pretendendo devotar-se aos mais humildes, esse desejo, no entanto, foi destruído quando pilotava o seu Stuka, depois de ingressar na Luftwalle em 1941. No ano de 1944, aos 22 anos, ele miraculosamente escapou da morte na Ásia. O seu avião, um JU 87, caiu numa região coberta de neve chamada Crime ou Crimeia. Joseph ficou inconsciente por vários dias, semicongelado, foi levado por genuínos tártaros, que cuidaram de suas chagas. O povo, natural do lugar, logo o tomou por um dos seus: “Du nix Njemcky, du Tatar”3, e trouxe-o de volta à vida, enrolando-o em seus tradicionais cobertores de feltro e aquecendo-o com gordura animal (BORER, 2001, p. 13).
Essa lenda, constantemente atacada por diversos teóricos que duvidam
de sua veracidade, importa mais como elemento integrante do projeto artístico
de Beuys – que compreende um olhar afetivo e sensitivo em relação aos
materiais – do que como fato histórico a ser comprovado. Como nos coloca Alain
Borer, “a lenda de Beuys deve ser tida como 'verdadeira' não porque os fatos que
a alimentam sejam verdadeiros (eles nunca foram totalmente comprovados),
mas porque uma lenda não é nem verdadeira nem falsa” (ibid., p. 12).
Em outras palavras, interessa mais o reconhecimento corpóreo e,
poderíamos dizer, afetivo, que todos podemos ter da sensação de aquecimento
do feltro e da gordura, dois dos materiais mais usados pelo artista. Essa lenda
3 “Você não é alemão, você é tártaro”.
performatus.net
5
demarca, em relação aos trabalhos anteriores, um processo de reconhecimento
do sensível nas obras de Beuys, que afirma: “Os homens de hoje não têm mais
conhecimento da essência das coisas [...] e nem do sentido da vida, ou do
sentido das relações com o mundo” (BEUYS apud BORER, 2001, p. 14).
Para pensar sobre a revisão dos sentidos em Beuys, olhemos para um
dos postulados de reversão citados por Borer ao introduzir o pensamento
poético do artista (BORER, 2001, p. 15). O segundo deles, denominado como
perda, consiste na percepção de uma redução da sensibilidade dos homens e da
tentativa constante do artista de revertê-la (daí o caráter reverso dos
postulados). O meio de operar contra essa redução será deslocar o olho e o corpo
do espectador de sua obra para a qualidade pura dos materiais, preocupação
próxima à de Tim Ingold, ao colocar a seguinte pergunta em seu livro Being alive:
“Que perversão acadêmica nos leva a falar não dos materiais e de suas
propriedades mas da materialidade dos objetos?” (INGOLD, 2011, p. 20). A
constatação feita é que o olhar que lançamos para o trabalho manual com os
materiais compreende todo o processo social que envolve sua produção (quem o
produziu, o contexto da produção, quais objetos produzidos etc.), porém nunca
olhamos para o material que o constitui. Somos culturalmente condicionados a
focar em processos de consumo em detrimento dos processos produtivos, o que
move nosso olhar para os objetos produzidos – e que contêm determinada
materialidade – e não para o material. Dito em outros termos por Ingold: “é por
isso que nós comumente descrevemos materiais como 'crus' mas nunca como
'cozidos' – pois a partir do momento em que eles se solidificam como objetos
eles já desapareceram” (ibid., p. 26).
Há um paralelo claro entre esse modo de visão teórica e grande parte da
história da arte ocidental, uma vez que ambas compreendem as substâncias
materiais do mundo como tábula rasa para a inscrição de formas ideais. É
preciso lembrar, inclusive, que Beuys contraria o minimalismo, movimento
contemporâneo a Beuys no qual a “noção de real significado de se descobrir
‘como é o mundo’ excluía a possibilidade de formularmos qualquer hipótese
estética segundo a qual pudéssemos investigar em profundidade o centro da
matéria e dar-lhe vida metaforicamente” (KRAUSS, 2002, p. 303). Negando a
performatus.net
6
“interioridade da forma esculpida” (ibid), escultores minimalistas como Donald
Judd ou Carl Andre colocavam a ideia em primeiro plano, subjugando a matéria a
formas mínimas como cubos, retângulos etc. Em Ingold, podemos perceber
como esse posicionamento dialoga com uma visão mecanicista da natureza, na
qual a imersão do criador “foi gradualmente suplantada pelo trabalho operativo
cujo trabalho era colocar em movimento um sistema exterior de forças
produtivas, de acordo com os princípios do funcionamento mecânico” (INGOLD,
2011, p. 295).
Poderíamos dizer que Beuys, contrariando uma racionalidade
dominadora da matéria pressuposta no minimalismo, retoma uma importância
do espaço interior da forma escultural visto durante a primeira metade do século
XX4. Em um paralelo com os anéis de um tronco de madeira, Rosalind Krauss
demonstra a importância de um núcleo interno que mantém viva a energia da
matéria para os artistas modernistas:
A importância simbólica de um espaço interior, central, de onde provém a energia da matéria viva, a partir do qual sua organização se desenvolve como os anéis concêntricos que anualmente se formam em direção ao exterior a partir do núcleo constituído pelo tronco da árvore, tinha desempenhado um papel crucial na escultura moderna. Isso porque, na medida em que a escultura do século XX rejeitou a representação realista como sua principal ambição e voltou-se para jogos bem mais genéricos e abstratos da forma, surgiu a possibilidade – o que não se deu com a escultura naturalista – de que o objeto esculpido fosse visto como nada senão matéria inerte (KRAUSS, 2002, p. 301).
Porém – como Krauss argumenta –, não era o interesse desses artistas
fornecer o material não transformado ao espectador, o que em Beuys surge
como um dos principais fatores da obra. O uso da gordura animal, por exemplo,
permite que reflitamos “sobre o material antes da forma” (BORER, 2001, p. 15),
uma vez que ela possui um movimento próprio da sua relação sensível com o
calor. É essencial para Beuys as propriedades de cada material em relação à
4 Cf. KRAUSS, Rosalind. “O duplo negativo: uma nova sintaxe para a escultura”. In: Caminhos da escultura moderna.
performatus.net
7
transmissão de calor5, uma vez que “observar as reações de materiais sensíveis
ao calor também é um modo de investigar a relação entre movimento e forma”
(ibid.). Em obras como Sala com gordura em Lucerna ou FOND III (ambas de
1969), podemos perceber como a forma de organização espacial e os materiais
usados dialogam diretamente com a transmissão de calor entre corpo humano e
material: Na primeira obra, o artista preenche as quinas da sala de exposição
com gordura, substituindo os ângulos retos por massas que os arredondam; em
FOND III, o artista dispõe, no espaço expositivo, diversas pilhas de feltro com
chapas de cobre sobre cada uma, ligadas a um fio condutor, criando sistemas de
fluxo, condensação e dispersão do calor que alteram diretamente o material
(como no caso da gordura na sala, uma vez que ela é colocada nas áreas mais
quentes do espaço) ou que simplesmente agrupam em áreas da sala
quantidades extremas de calor (uma vez que o calor contido nas placas de cobre
não se dissipa com o feltro).
Em Beuys, é a propriedade da matéria que constitui a obra, uma vez que
“ante a matéria e, se pode dizer assim, antes da forma, antes de dar a forma,
Beuys convida a apreender a dar próprias substâncias às potencialidades que
elas encerram e, por conseguinte, às nossas” (ibid.). Essa aproximação entre o
objeto de arte e um organismo vivo, que dialoga diretamente com outro (o
observador), nos reporta a Tim Ingold no capítulo “Sobre tecer um cesto”, de seu
livro The perception of environment (2001). Nele, o autor propõe o entendimento
de que a ação de fazer é um modo de tecer, ao contrário do comum pensamento
de que a ação de tecer é um modo de fazer, pois na tecelagem há uma geração
da forma que parte diretamente da relação entre a matéria e o artesão.
Para desenvolver seu argumento, Ingold se reporta à divisão entre forma
e substância, que, para o autor, implica a relação entre a especificação do objeto
e os materiais brutos que o constituem, respectivamente. No caso dos seres
vivos, poderíamos dizer que a forma é gerada internamente, uma vez que são os
genes que indicam a estrutura formal primeira do ser; já no caso dos objetos,
5 Vemos em Borer que “O be-a-bá dessa linguagem [de Beuys] implica reconhecer que o feltro, por exemplo – cujas fibras de origem animal entrelaçadas deixam circular o ar em seus espaços –, é um excelente isolador de calor, ou que a cera de abelha, um bom isolante, é também um mau condutor de calor, uma vez que o absorve muito lentamente, ou reconhecer que o cobre, um isolante medíocre, é um excelente condutor de calor ou de eletricidade” (BORER, 2001, p. 15).
performatus.net
8
essa relação é invertida: a “forma é aplicada de fora, ao invés de ser revelada de
dentro” (INGOLD, 2001, p. 339). Nos objetos, em uma primeira instância é o
mundo das substâncias, da matéria pura, que precisa se apresentar ao feitor do
artefato como substância para ser transformado.
Mas Ingold prossegue, em uma pergunta que Beuys pode já ter feito
antes de passar mel em seu rosto, na performance de 1965: E por que uma
colmeia de abelha não poderia ser um artefato, uma vez que é decorrente da
aplicação de uma força externa sobre um material bruto? Uma visão
padronizada dessa distinção responderia que o que torna o objeto produzido um
artefato é a possibilidade de projeção humana (ou seja, de idealização) antes de
sua execução. Essa separação “metafísica” entre mente e natureza supõe que a
forma dos objetos tem sua origem na mente humana, como “soluções
preconcebidas e intelectuais para problemas particulares de design” (ibid., p.
340). Encontramos na constatação do seguinte problema por Ingold a chave
para sua relação com Beuys: “Se o fazer significa a imposição de uma forma
conceitual na matéria inerte, então a superfície do artefato vem representar
muito mais que uma interface entre substância sólida e o meio gasoso; ela se
torna a própria superfície do mundo material da natureza ao confrontar a mente
humana criativa.” (ibid.)
Para Ingold e Beuys, o fazer está vinculado mais a um processo de
diálogo e coexistência com o material do que à imposição de formas externas
sobre ele. Se vemos demonstrado esse interesse nos materiais em constante
transformação de movimento e calor em relação aos outros corpos e ao espaço,
encontramos em seus desenhos e diagramas outros eixos de representação e
visualização dessas questões. Porém, para chegarmos aos desenhos, voltemos
antes à argumentação de Ingold sobre o fazimento como um modo de
tecelagem para ver uma forma específica que demonstra esse diálogo entre
forma imposta e crescimento orgânico: a espiral.
3. A forma espiralada e a natureza
performatus.net
9
O mundo de nossa experiência está, de fato, continuamente e eternamente se construindo ao redor de nós enquanto tecemos. Se há uma superfície, é como a superfície de um cesto: não tem “dentro” ou “fora”. A mente não está acima, nem a natureza abaixo; ao contrário, se nós nos perguntarmos onde a mente está, ela estará na tecelagem da própria superfície.
Tim Ingold
O fazimento como um processo de diálogo entre a aplicação de forças
internas e a força constituinte da própria forma do artefato é exemplificado por
Ingold através da forma do cesto. Construído a partir do entrelaçamento das
fibras em um processo de tecelagem, “a atual e concreta forma do cesto não
parte da ideia. Ela surge através do gradual desenrolar do campo de forças
armado através do engajamento sensitivo e ativo do praticante e do material”
(INGOLD, 2001, p. 342). Como já citado, o exemplo vem demonstrar a inversão
proposta por Ingold entre a ação de fazer e tecer: em vez de pensarmos a
tecelagem como um dos modos de fazer, o autor propõe pensar o tecer como um
modo de fazimento, processo de constante embate de forças que cria um campo
que “não é nem interno ao material nem interno ao praticante (por isso externo
à matéria); ao contrário, ele atravessa a superfície emergente entre eles” (ibid.).
É central para a argumentação do autor a forma espiral que se dá no
processo de entrecruzamento das fibras. Contrapondo um desenho da forma do
cesto feito pelo antropólogo Franz Boas com uma imagem da concha de um
molusco feita pelo biólogo D’Arcy Wentworth Thompson, Ingold demonstra
como em ambos os casos “a forma aparenta emergir com uma certa
inevitabilidade lógica do próprio processo, de enrolamento no primeiro caso [o
cesto] e sedimentação no segundo [a concha]” (ibid., p. 343). Essa recorrência da
forma tanto na natureza quanto no artefato encontra-se também em Beuys,
porém a partir da forma das plantas, como representação gráfica de processos
naturais como percebidos pelo artista.
Em um estudo minucioso sobre o processo de formação das teorias que
movem a produção de Beuys, Volker Harlan encontra diversas aparições das
espirais. Elas aparecem primeiramente em anotações e esboços nas margens
dos livros de Rudolf Steiner, grande influência teórica para o artista, que o leu
aos 26 anos, em 1947, antes da produção das obras analisadas neste artigo.
performatus.net
10
Nessas anotações, a espiral surge tanto como uma forma circular que volteia ao
redor do seu eixo quanto como espirais ascendentes e descendentes, que se
unem numa formação gráfica que remete a uma flor (figuras 1 e 2).
F iguras. 1 e 2: Aparecimentos da forma espiralada nos desenhos de Joseph Beuys
Ao comparar com desenhos posteriores do artista, datados de 1970,
Harlan nota a semelhança formal entre o esquema morfológico de uma planta e
as formas espiraladas que o artista desenha. Como analisa o estudioso
Também aí se reconhece que a intenção do artista é representar a formação do tipo planta; quando a planta floresce, os cotilédones caíram, secos, há muito tempo. Girando em forma de espiral e balançando levemente, sobe pelo meio do desenho uma linha que se expande e, em seguida, contrai-se numa pequena estrutura, antes de continuar a subir e de partir, em linhas circulares, rumo ao centro (HARLAN, 2010, p. 33).
performatus.net
11
Essas espirais, que geralmente aparecem em trios, partem dos estudos
do artista sobre a estrutura tripartida das folhas6, mas vão gradualmente se
estendendo à sua compreensão do organismo social. Curiosamente, em um dos
diagramas feitos pelo artista (figura 3), a espiral aparece como parte central
desse trio, entrecruzamento entre os polos da forma e do caos (sempre
representados com um triângulo e um quadrado, respectivamente). Estaria aqui
um caminho de aproximação com Ingold, ao propor a forma espiralada como
amálgama do embate entre forma idealizada e inexatidão formal do processo de
fazimento?
Figura 3: Diagrama de Joseph Beuys
Simbolicamente, as estruturas circulares se traduzem nas obras de
Beuys como o constante movimento das matérias usadas pelo artista em sua
obra, que se dá pela interface entre “objeto (organismo ou artefato)” e
“ambiente”. Assim, homem, gordura, planta fazem parte de um mesmo
6 Beuys toma como base a aplicação feita por Steiner dos três princípios alquímicos (enxofre, mercúrio e sal) para a formação da estrutura das plantas: ao processo de transformação e metamorfose das plantas, Steiner denomina mercúrio; à formação de raízes, sal; ao processo de florescimento, enxofre (HARLAN, 2010, p. 30).
performatus.net
12
ambiente no qual “as propriedades dos materiais são diretamente implicadas no
processo de geração da forma” (INGOLD, 2001, p. 345).
Porém, além do simbolismo, a estrutura cíclica e espiralada nos remete
às esculturas citadas na primeira parte do artigo, pois a forma espiral
compreende, para Beuys, principalmente a movimentação inerente a todo
organismo em funcionamento, nos reportando novamente a Ingold, para o qual
“inverter o fazimento e a tecelagem é também inverter ideia e movimento, ver o
movimento como verdadeiro gerador do objeto e não como mero revelador de
um objeto que já está presente, em uma forma ideal, conceitual ou virtual”
(ibid.). Essa movimentação opera tanto nos materiais – como já vimos – quanto
na própria atitude do artista em relação à sua obra: ao propor para a documenta
de Kassel o trabalho 7000 Carvalhos, no qual plantava sete mil árvores pela
cidade, colocando, ao lado de cada uma, pedras de basalto, Beuys demonstra
profunda compreensão de que “o artista se envolve no mesmo sistema do
material com o qual trabalha, assim sua atividade não transforma o sistema
mas é – assim como o crescimento das plantas e animais – parte e parcela da
própria transformação do sistema” (ibid.). Sem crer em um espaço para a criação
de uma obra que parta de sua individualidade, o artista apenas se movimenta
pelo espaço urbano e planta árvores. Aqui a “regularidade da forma e repetição
rítmica do mesmo movimento” (BOAS apud INGOLD, 2001, p. 345), vista por
Ingold como parte integrante do movimento autopoético de tecelagem, aparece
traduzido como uma grande ação artística e urbanística.
4. Considerações finais: Para um só futuro
Para concluir, citemos a expressão usada por David Adams em seu artigo
para definir o artista: um ecologista radical. Vimos que Beuys não desenvolve
sua arte apenas como representação indireta de conceitos ou de teorias sobre o
papel da arte para a transformação de um organismo social, mas sim como uma
apresentação direta desses conceitos, com a qual “a criação artística pode
diretamente transmitir as atitudes existenciais de um entendimento mais
profundo das relações naturais e ecológicas” (ADAMS, 1992, p. 26).
performatus.net
13
Assim, ao falar que todo homem é um artista, Beuys deixa pressuposto
que o pensamento e a criatividade são motores para a escultura. Essa
movimentação desvia-se de um olhar para a produção artística como algo já
morto – cadáver que só pode ser contemplado de forma desinteressada7 –, e
recoloca-a como algo da ordem mágica, mística e religiosa. Seu trabalho, como
aponta Adams, solicita “um passo adicional, levando a novos conceitos de arte e
ciência, baseados na aquisição de um modo de pensar intuitivamente vívido e
consciente” (ibid., p. 28), unindo pensamento racional e intuitivo.
É com integração parecida que Ingold traça sua argumentação: para que
seja possível uma mudança de atitude em relação ao mundo, é preciso deixar de
olhar para a natureza como um conceito metafísico percebido culturalmente
como algo separado de nós e passar a pensar sobre um ambiente, no qual
estamos construindo ao passo que somos construídos8. Isso inclui um retorno a
outros tipos de saberes renegados pela ciência, o que o autor nomeia como
intuição ou ecologia sentiente, uma sabedoria “informal” ou “não autorizada”,
que agrega ao distanciamento científico uma sensitividade e capacidade de
resposta que vem da integração ao próprio meio (INGOLD, 2001, p. 25). E se a
arte, para o autor, “é a forma que é tomada pela nossa percepção do mundo,
guiada por orientações específicas, disposições e sensibilidades que nós
adquirimos ao termos coisas apontadas ou mostradas para nós no curso da
nossa educação sensória” (ibid.), vemos em Beuys alguma possibilidade de se
pensar a arte fora da chave dicotômica entre natureza e cultura, como uma arte
que olha para o mundo como ambiente, e que vê em si a possibilidade de
“desmantelar os repressivos efeitos do antigo organismo social que continua a
vigorar [...] e deve ser desfeito para a construção do organismo social
7 Diversos teóricos da arte contemporânea, como Boris Groys e Jacques Rancière, situam a produção realizada desde o romantismo como um olhar desfuncionalizado para os objetos do mundo, tomando-os como mortos e não mais pertencentes ao mundo. Essa mudança no olhar do objeto artístico vem da necessidade dos revolucionários da Revolução Francesa de lidar com os objetos provenientes dos palácios tomados da monarquia. Conforme Boris Groys: “A Revolução Francesa transformou o design do Antigo Regime no que hoje chamamos de arte, ou seja, os objetos não de uso, mas de pura contemplação. Este ato violento, revolucionário, de estetização do Antigo Regime criou a arte como nós a conhecemos hoje. Antes da Revolução Francesa, não havia nenhuma arte – apenas design. Após a Revolução Francesa, a arte surgiu, como a morte de design” (GROYS, 2014, p. 6). Para mais, ver o artigo On art activism, de Boris Groys e a entrevista de Jacques Rancière a Laurent Jeanpierre e Dork Zabunyan no livro La méthode de l 'égalité. 8 [...] O meu ambiente é o mundo tal como ele existe e assume um significado em relação a mim, e, nesse sentido, sua existência e desenvolvimento se altera comigo e ao meu redor. Em segundo lugar, o ambiente não é completo. Se os ambientes são forjados através das atividades de seres vivos, então, desde que a vida continua, eles estão continuamente em construção. Assim também, é claro, são os próprios organismos (INGOLD, 2000, p. 20).
performatus.net
14
como um trabalho de arte” (BEUYS apud ROSENTHAL, 2011, p. 113, grifo
nosso).
Figura 4: Detalhe de diagrama de Joseph Beuys
Como vemos no desenho acima, a relação entre homem e planta é
pensada de forma direta por Joseph Beuys, em uma clara metáfora acerca da
forma e dos processos biológicos de formação e da estrutura corporal desses
organismos. Não há distinção entre um homem, um coiote, um coelho ou uma
planta, da mesma forma que a obra de arte é entendida como “tanto algo que
resulta da ação do homem quanto uma obra da natureza” (HARLAN, 2010, p.
35). Talvez seja por isso que Beuys resolva se reportar a uma lebre morta para
falar de arte, mas em seus sussurros inaudíveis certamente fala para nós algo
sobre vida – ou ao menos um tipo de vida, já perdida ou ao menos já muito
imaginada – integrada ao meio no qual se insere, ou seja, “uma acepção na qual
a interioridade do homem estava também fora do ambiente, na qual a
consciência humana e o mundo externo são interdependentes” (ADAMS, 1992,
p. 28). Como a massa da gordura que vai lentamente se transformando e prova
que sua substância está em relação direta com seu ambiente, também o
homem e sua criatividade podem realizar o mesmo movimento.
performatus.net
15
BIBLIOGRAFIA
ADAMS, David. “Joseph Beuys: pioneer of a radical ecology”. Art
Journal. V. 51, n. 2, p. 26-34, 1992.
BORER, Alain. Joseph Beuys. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
GANDY, Matthew. “Contradictory modernities: conceptions of nature in
the art of Joseph Beuys and Gerhard Richter”. Annals of the association of
American Geographers. V. 87, n. 4, p. 636-639, 1997.
HARLAN, Volker. “A planta como arquétipo da teoria da plasticidade e a
floresta como arquétipo da escultura social”. In: BEUYS, Joseph. Joseph Beuys:
a revolução somos nós. São Paulo: Edições SESC SP, 2010.
INGOLD, Tim. Being alive: essays on movement, knowledge and
description. New York: Routledge, 2011.
_______ The perception of environment: essays on livelihood,
dwelling and skill. New York: Routledge, 2000.
KRAUSS, Rosalind. Caminhos da Escultura Moderna. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
ROSENTHAL, Dália. O elemento material na obra de Joseph
Beuys. Dissertação de mestrado. Campinas, SP: [s.n.], 2002.
_______ Joseph Beuys: o elemento material como agente social. ARS
USP. V. 9, n. 18, p. 110-133, 2011.
PARA CITAR ESTE ARTIGO
MARCONDES, Renan. “Matéria em Constante Movimento:
Joseph Beuys e Tim Ingold”. eRevista Performatus,
Inhumas, ano 3, n. 14, jul. 2015. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2015 eRevista Performatus e o autor