FUNDAO GETLIO VARGAS
ESCOLA DE DIREITO DE SO PAULO
NATLIA FAZANO NOVAES
JUDICIALIZAO DA SADE E ASSISTNCIA FARMACUTICA NO PS-88: EFEITOS NA ADMINISTRAO PBLICA MUNICIPAL DO ESTADO DE SO PAULO
MESTRADO DIREITO E DESENVOLVIMENTO INSTITUIES DO ESTADO DEMOCRTICO DE
DIREITO E DESENVOLVIMENTO POLTICO E SOCIAL
SO PAULO
2012
NATLIA FAZANO NOVAES
JUDICIALIZAO DA SADE E ASSISTNCIA FARMACUTICA NO PS-88: EFEITOS NA
ADMINISTRAO PBLICA MUNICIPAL DO ESTADO DE SO PAULO
Dissertao apresentada Escola de Direito de So Paulo da Fundao Getlio Vargas, como requisito para a obteno do ttulo de Mestre em Direito. rea do conhecimento: Direito e Desenvolvimento Instituies do Estado Democrtico de Direito e Desenvolvimento Poltico e Social Orientadora: Prof. Dra. Luciana Gross Cunha
Novaes, Natlia Fazano.
Judicializao da Sade e Assistncia Farmacutica no ps-88: Efeitos na Administrao Pblica Municipal do Estado de So Paulo / Natlia Fazano Novaes. - 2012.
190f.
Orientador: Luciana Gross Cunha.
Dissertao (mestrado) - Escola de Direito de So Paulo da Fundao Getulio Vargas.
1. Poder judicirio e questes polticas. 2. Poltica de sade - Brasil. 3. Sistema nico de Sade (Brasil). 4. Administrao municipal - So Paulo (Estado). I. Cunha, Luciana Gross. II. Dissertao (mestrado) - Escola de Direito de So Paulo da Fundao Getulio Vargas. III. Ttulo.
CDU 342.565.4
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NATLIA FAZANO NOVAES
JUDICIALIZAO DA SADE E ASSISTNCIA FARMACUTICA NO PS-88: EFEITOS NA
ADMINISTRAO PBLICA MUNICIPAL DO ESTADO DE SO PAULO
Dissertao apresentada Escola de Direito de So Paulo da Fundao Getlio Vargas, como requisito para a obteno do ttulo de Mestre em Direito. rea do conhecimento: Direito e Desenvolvimento Instituies do Estado Democrtico de Direito e Desenvolvimento Poltico e Social Orientadora: Prof. Dra. Luciana Gross Cunha Data de aprovao 29.10.2012 Banca examinadora:
Prof. Dra. Luciana Gross Cunha (orientadora) Direito GV-SP
Prof. Dr. Jos Reinaldo de Lima Lopes Direito GV-SP
Prof. Dra. Vanessa Elias de Oliveira Universidade Federal do ABC (UFABC)
3
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer a todos aqueles que contriburam para que esta obra coletiva se tornasse uma conquista acadmica individual. Por essa razo, desejo expressar os meus sinceros agradecimentos: Professora Luciana Gross Cunha, minha orientadora, pela competncia cientfica e acompanhamento do trabalho, pela disponibilidade e pacincia em todas as etapas do trabalho, assim como pelas crticas, correes e sugestes. A todos os professores da Direito GV e da Tilburg University, por sua importante contribuio na minha formao e no desenvolvimento do trabalho. A todos os Secretrios de Sade e funcionrios dos municpios de Assis, Barretos, Bauru, Birigui, Franca, Franco da Rocha, Ilhabela, Itanham, Itapetininga, Itapira, Jaboticabal, Mirassol, Mogi das Cruzes, Ourinhos, Presidente Prudente, Registro e So Carlos, pela tempo e ateno disponibilizado para a realizao deste trabalho. A todos os meus amigos e familiares, pelo apoio e suporte durante o difcil perodo do mestrado. Em especial minha me, com sua pacincia para discutir todas as questes mdicas e acadmicas e minha sempre professora e amiga Claudia Costa, que me apoiou e auxiliou durante toda a faculdade e mestrado. Em especial, Fundao Carlos Chagas e Fundao Mario Henrique Simonsen, pelo apoio sem o qual o presente trabalho no poderia ter se concretizado.
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RESUMO
Com a crescente judicializao dos conflitos polticos no Judicirio brasileiro, questes como o direito sade e acesso a aes de sade passam a ser decididas junto aos tribunais, produzindo diversos efeitos na Administrao e polticas pblicas j em andamento. A partir da Constituio Federal de 1988, o direito sade passou a ter, alm de sua abordagem poltica e tcnica, uma abordagem jurdica. Essa duplicidade faz com que sua interpretao, aplicao e efetividade encontrem solues muito distintas nos poderes pblicos. Tendo em vista a necessidade da criao de polticas pblicas para a efetivao do direito sade de modo universal e igualitrio, assim como a atuao do Judicirio na justia distributiva, uma srie de consequncias e dificuldades apontada pela doutrina jurdica para a Administrao Pblica. O trabalho objetiva verificar os efeitos especficos da interpretao e participao do Judicirio nas polticas pblicas municipais de Assistncia Farmacutica do SUS, pois as aes e decises judiciais, neste contexto, produzem diferentes efeitos na Administrao Pblica (responsvel pelas polticas pblicas de assistncia farmacutica). Essa participao judicial e seus efeitos podem, por um lado, ser proveitosas e auxiliar na proteo do direito sade, promovendo e estruturando polticas pblicas; contudo, podem, tambm, proporcionar consequncias desastrosas para a performance da Administrao. A hiptese do trabalho de que a atuao do Judicirio, ao condenar a Administrao Pblica Municipal na Assistncia Farmacutica, no gera consequncias positivas, e sim negativas, dificultando a gesto poltica do SUS. Portanto, o trabalho discute essa participao do Judicirio na sade e os efeitos no Sistema nico de Sade, no mbito municipal no Estado de So Paulo. Palavras-chave: Judicializao, Assistncia Farmacutica, Administrao Municipal
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ABSTRACT The growth of political conflicts taken to the Brazilian Judiciary power, has caused issues such as health rights and drug distribution policies to be now decided in the Brazilian courts; such decisions produce a variety of effects to the ongoing public policies. According to the Federal Constitution of 1988, the right to health was added a legal approach apart from the political and technical ones. This duplicity generates different interpretations, execution and effectiveness for the health rights in the public powers. Given the need to develop public policies for the effectiveness of health rights, in a universal and egalitarian way, as well as the role played by the Judiciary in distributive justice, many consequences and difficulties are created for the public administration and pointed out by the legal doctrine. This work proposes to verify the specific effects generated by the interpretation and participation of the judicial power into the Pharmaceutical public policies of SUS (Sistema nico de Sade/Unify Heath System) in the municipalities of So Paulo. In this context, the lawsuits and court decisions produce different effects in the Public Administration (responsible for public policies of pharmaceutical assistance). This participation and its effects may be useful and positive, because it assists in the protection of social rights by promoting and structuring public polices; although it may also provide disastrous consequences in the Public Administration performance. The hypothesis proposed in this work intends to demonstrate that when the judicial power condemns the municipal Public Administration on the Pharmaceutical Assistance policies it does not generates positive accomplishes, but negative consequences and difficulties for the public health management of SUS. In that way, the present research seeks to identify some of the possible effects of judicialization process in health rights and drug distribution policies in the municipalities in the State of So Paulo. Keywords: Judicialization, Pharmaceutical Assistance, Public Administration
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SUMRIO
1 INTRODUO...............................................................................................7 2 PANORAMA DO DEBATE..........................................................................11
2.1 Sade e Justiciabilidade......................................................................11 2.1.1 Constitucionalizao do direito sade..................................11
2.1.1.1 Contextualizando o direito sade no Brasil: pr-constituinte e a Reforma Sanitria..........................................14
2.1.1.2 Conceito de sade com base na Reforma Sanitria.......19
2.1.2 Contexto da sade no Brasil: constitucionalizao do direito sade e a criao do Sistema nico de Sade (SUS)........25
2.1.2.1 Assistncia Farmacutica no Estado de So Paulo.......38
2.2 Judicializao dos direitos sociais.....................................................44 2.2.1 A interveno do Judicirio nas polticas de sade: consideraes ao processo de judicializao da sade e acesso a medicamentos.......................................................................................44
2.2.1.1 A crescente interveno judicial na sade e o posicionamento dos tribunais.................................................51
2.2.1.2 A interveno do Judicirio nas polticas de sade: consideraes ao processo de judicializao da sade e acesso a medicamentos.........................................................56
3 ESTUDO DE CASO: As Prefeituras do Estado de So Paulo e a judicializao da sade no mbito da assistncia farmacutica...............................................................................................69 3.1 Metodologia...........................................................................................69 3.2 Apresentao dos Municpios estudados: Assis, Barretos, Bauru,
Birigui, Franca, Franco da Rocha, Ilhabela, Itanham, Itapetininga, Itapira, Jaboticabal, Mirassol, Mogi das Cruzes, Ourinhos, Presidente Prudente, Registro e So Carlos......................................77
3.3 Resultados das entrevistas com os Secretrios de Sade
Municipais..............................................................................................98 3.4 Interpretao dos dados coletados nas entrevistas nas Secretarias
de Sade Municipais...........................................................................119
4 CONSIDERAES FINAIS.......................................................................163 5 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..........................................................173
ANEXO I Tabelas..............................................................................................186 ANEXO II Roteiro para entrevistas ................................................................188
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1
INTRODUO
Apresentao do tema
O presente trabalho tem como objetivo colaborar para o debate da
judicializao da sade no que diz respeito Assistncia Farmacutica Municipal. O
termo judicializao da sade entendido no estudo como a utilizao da via judicial
para demandar em face do poder pblico determinadas aes, servios ou
prestaes de sade. Na pesquisa realizada pretende-se discutir as consequncias
e efeitos decorrentes do processo de judicializao da Assistncia Farmacutica na
estrutura e gesto da Administrao Pblica Municipal nos municpios do Estado de
So Paulo.
O ponto de referncia neste debate a Constituio Federal de 1988
(CF/1988), que, no mbito social, contempla grandes promessas para o
desenvolvimento social e garantia da qualidade de vida dos cidados, propondo-se a
efetivar de modo universal e igualitrio direitos sociais como a sade, educao,
previdncia social, entre outros. Esses direitos, elevados ao status de direitos
fundamentais sociais, implicam normas constitucionais que, via de regra, garantem
prestaes positivas proporcionadas pelo Estado, de modo direto ou indireto, na
busca por maior equidade e justia social (SILVA, 2006, p. 186-187).
Neste contexto, a jurisdio constitucional brasileira vive a expanso da
judicializao de conflitos polticos, na qual o Judicirio participa ativamente da
elaborao de polticas pblicas1 e efetivao de direitos (FERRAZ, 2011a, p. 76).
Inevitavelmente, esta atuao produz efeitos na estrutura e no desenho institucional
eleito pelo Estado, e muitos desses decorrem da nova lgica na soluo de conflitos
introduzida pelo Judicirio no controle de constitucionalidade. No caso da sade, a
1 Poltica pblica o programa de ao governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo oramentrio, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial visando coordenar os meios disposio do Estado e as atividades privadas, para a realizao de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Como tipo ideal, poltica pblica deve visar a realizao de objetivos definidos, expressando a seleo de prioridades, a reserva de meios necessrios sua consecuo e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados (BUCCI, 2006. p. 39).
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crescente judicializao introduziu questionamentos quanto capacidade
institucional do Judicirio de proteger e garantir o direito e desenvolver polticas
pblicas.
Assim, a proposta do presente estudo centra-se na constatao e percepo
emprica dos efeitos, positivos ou negativos, e consequncias da judicializao da
assistncia farmacutica nas gestes municipais de sade do Estado de So Paulo.
Objetiva-se, por meio de um estudo de caso, explorar os efeitos prticos da
interpretao e interferncia judicial na esfera municipal do Sistema nico de Sade
(SUS).
Vale destacar que o estudo apresentado e os dados disponveis no momento
da pesquisa no possibilitam uma avaliao plena desse importante fenmeno
municipal. No Brasil, a disponibilidade de dados de sade ainda precria,
inexistindo um banco de dados estatsticos suficientes para uma avaliao mais
detalhada. No caso dos municpios, o armazenamento de dados e sries histricas
ainda mais contingente. Entretanto, apesar de os dados e impresses coletadas
para esta anlise no proporcionarem uma explicao aprofundada da judicializao
municipal, estes possibilitam algum avano no entendimento do fenmeno.
A esfera municipal foi eleita por diversas razes, primeiramente pela prpria
condio poltica do ente federativo municipal, uma fora poltica fragmentada que
conta com dificuldades na exposio e divulgao de seus problemas,2 pois a
judicializao no atinge os municpios de modo uniforme, o que dificulta a
exposio cientfica de seus problemas. Ainda assim, existem evidncias fortes de
que a judicializao tambm crescente e problemtica no mbito municipal
(FERRAZ, 2011a, p. 88).
Ademais, os possveis impactos negativos podem produzir consequncias
mais severas ao ente municipal, tendo em vista a baixa arrecadao, elevada
dependncia financeira e o crescente acmulo de responsabilidades na gesto do
SUS. Este ltimo ocorre em razo da legislao do SUS (SUS Lei 8.080/1990),
que objetiva a descentralizao, enfatizando os princpios da municipalizao e
subsidiariedade.
2 No mbito estadual e federal identifica-se uma pluralidade de trabalhos cientficos sobre a judicializao, contudo sua grande maioria reflete os problemas da esfera estadual do SUS.
9
E, ainda, as aes destinadas Ateno Bsica de Sade (que atendem as
doenas mais comuns ou prioritrias populao, muito importantes no
desenvolvimento e melhoria das condies de sade) ficam a cargo das
municipalidades, o que confere aos municpios uma grande responsabilidade e
participao na melhoria das condies de sade da populao.3
A ao de sade de Assistncia Farmacutica foi definida como foco do
estudo proposto por ser o setor de maior destaque no processo de judicializao da
sade ao longo dos anos e por ainda encontrar-se entre as aes de sade mais
demandas nos tribunais brasileiros.
O trabalho dividido em duas etapas: um panorama terico-conceitual,
seguido do estudo de caso nas municipalidades eleitas. No panorama conceitual so
introduzidas as questes pertinentes ao debate da judicializao da sade no Brasil,
no buscando aprofundar-se nas peculiaridades de tais questes, proporcionando
um apoio na compreenso do tema do estudo, as teorias e os desafios existentes,
no sendo este o objetivo principal da pesquisa desenvolvida.
Inicialmente apresenta-se uma breve contextualizao histrica sobre a
incluso do direito sade na Constituio Federal de 1988 e os interesses
presentes na constituinte de 1988. A discusso histrica objetiva elucidar e justificar
o surgimento e estruturao do Sistema nico de Sade (SUS) conforme o disposto
na CF e na Lei 8.080/1990. Este momento histrico pode ser compreendido como o
cerne de posicionamentos to distintos entre os gestores das polticas pblicas de
sade e o Poder Judicirio na judicializao da sade, assim como a dificuldade de
adeso do executivo e gesto da sade atual interpretao judicial do direito
sade.
Seguidamente so introduzidos brevemente os temas da judicializao da
sade, a interpretao do Judicirio e as crescentes crticas perante a participao
judicial nas polticas pblicas de sade. Essa contextualizao objetiva, de um modo
explanatrio, apresentar a controvrsia existente entre a Administrao e o
Judicirio em torno da sade.
3 Secretaria de Sade do Estado de So Paulo. Assistncia Farmacutica. Componente de Ateno Bsica. Disponvel em: . Acesso em: 10 jun. 2012.
10
E, por fim, so introduzidos um resumido histrico da construo institucional
do SUS e alguns dos atuais desafios do sistema para a efetivao do direito, a
estrutura da Assistncia Farmacutica desenhada pelo SUS e as responsabilidades
dos entes governamentais em sua promoo.
A apresentao destes temas se mostra indispensvel para o estudo de caso
realizado, uma vez que, para compreender impactos da judicializao nas
municipalidades, necessrio conhecer: i. a proposta que o SUS trouxe quando da
sua criao; ii. que objetivos eram almejados com a institucionalizao da
assistncia pblica de sade; iii. como o Judicirio interpretou essa proposta aps
sua constitucionalizao e as possveis distores desse posicionamento; e iv. o que
o SUS no mundo real, sem idealismos e projees, mas aquilo que tem sido feito
para proporcionar maior equidade social por meio do acesso sade, a fim de se
conhecer a estrutura que absorve os impactos das decises judiciais sobre o direito
sade.
Hiptese
A hiptese que orienta este trabalho a de que a atuao do Judicirio,
condenando a Administrao Pblica Municipal da Assistncia Farmacutica, gera
uma pluralidade consequncias negativas e positivas e dificulta a gesto poltica do
SUS. De forma subsidiria, temos como hipteses secundrias que: i. a utilizao de
recursos financeiros e humanos, em funo de aes judiciais voltadas para a
soluo de problemas individualizveis (aes ou prestaes especficas), faz com
que a gesto da sade em prol de toda a coletividade seja preterida; ii. tendo em
vista as diretrizes da lei do Sistema nico de Sade, que visa a descentralizao na
prestao dos servios de sade, a possvel interferncia das aes judiciais
prejudica no apenas a evoluo e o bom andamento das polticas pblicas nos
municpios, mas tambm o processo de descentralizao dos servios de sade.
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2 PANORAMA DO DEBATE
2.1 Sade e justiciabilidade*
2.1.1 Constitucionalizao do direito sade
No panorama apresentado, a CF/1988 o ponto central para o debate da
judicializao da sade, pois nela que o Poder Judicirio encontra sua legitimidade
para interferncia no domnio dos Poderes Executivo e Legislativo e interpretao do
direito sade.
Entretanto, apesar da constitucionalizao do direito sade, sua
interpretao e adjudicao devem considerar variveis alm do dispositivo
constitucional expresso e da relao processual, devendo ser incorporados ao jogo
de ponderaes do Judicirio os efeitos prticos da interpretao e deciso judicial
(FERRAZ, 2011a, p.1642-1647).
Os atuais arranjos polticos e constitucionais incluem e enaltecem a
importncia da justia constitucional, fazendo com que o limite entre poltica e justia
se torne mais tnue no mundo contemporneo. No entanto, se, por um lado, a
judicializao traduz o avano das democracias constitucionais, por outro, questes
polticas e sociais passam a ser decididas nas instncias judiciais, em vez de suas
instncias polticas tradicionais (Executivo e Legislativo). Esse deslocamento
envolve um remanejamento poltico de poder para o Judicirio, exigindo deste uma
nova linguagem e abordagem para os conflitos (BARROSO, 2012, p. 3).
Todavia, a CF/1988 analtica e ambiciosa (VIEIRA, 2008, p. 441-463) e
impe ao sistema jurdico-constitucional matrias que antes integravam
exclusivamente a poltica. E a constitucionalizao dos direitos sociais, como a
sade, fez questes polticas e sociais integrarem o complexo sistema de direitos
fundamentais constitucionalmente assegurados (BARROSO, 2012, p. 4).
* Justiciabilidade e judicializao so termos usados neste trabalho como sinnimos.
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Em algumas democracias constitucionais modernas, como os Estados Unidos
e Alemanha, o Judicirio assume o papel central no controle constitucional, porm
no Brasil esse papel ainda mais ampliado. O sistema hbrido de controle de
constitucionalidade proporciona tanto o controle incidental difuso, por qualquer juiz
ou tribunal, como o controle concentrado, pelo Supremo Tribunal Federal nas aes
diretas de inconstitucionalidade, aes declaratrias de constitucionalidade e
arguies por descumprimento de preceito fundamental.
Apesar de a judicializao ser um fenmeno mundial, no Brasil ela resultado
de um arranjo constitucional. Em funo de suas responsabilidades na jurisdio
constitucional, o Judicirio compelido a manifestar-se sobre direitos
constitucionais, sejam estes de carter poltico ou no. No entanto, como esses
direitos chegaram a Constituio? No caso da sade, como ela surgiu como um
direito fundamental social na CF/1988? E que interpretao o Judicirio tem
dispensado a tal direito no controle constitucional? Estas questes so
indispensveis para o entendimento do processo de judicializao da sade no
Brasil.
O direito fundamental sade encontra-se disposto no artigo 6.o da CF/1988,
seguido dos artigos 196 a 200 que tratam do sistema utilizado para sua efetivao
(Sistema nico de Sade SUS) e do papel do Estado na assistncia sade.
Entretanto, apesar do dispositivo constitucional, o direito sade se apresenta com
categorias semnticas abertas (LIMA, 2011, p. 20).4 Isso quer dizer que a CF/1988
no apresenta em seus dispositivos uma definio exata e inequvoca do conceito
do direito, tampouco a legislao que regulamenta a sade.
Desse modo, o Judicirio passa a proteger um direito de inexata e difcil
conceituao, e a incerteza conceitual possibilita vises e posturas diversificadas
quanto ao significado e efetivao do direito sade. Assim, enquanto a
Administrao Pblica interpreta e efetiva o direito conforme a sua racionalidade
prpria, o Judicirio muitas vezes impe, por meio de suas decises, uma
interpretao que rompe com a sistemtica e lgica empregada pela gesto do SUS. 4 O trabalho em questo foi indicado pelo Prof. Jos Reinaldo de Lima Lopes, durante a defesa de qualificao, que trata sobre a interpretao do direito sade pelo Supremo Tribunal Federal, trazendo tambm uma reviso histrica da origem do Sistema nico de Sade, proporcionando uma nova interpretao para os dados, pois foi capaz de mostrar, por meio da histria, a existncia de diferentes significados para o termo direito sade.
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Essa ruptura produz uma pluralidade de efeitos na gesto dos recursos e
polticas pblicas, presentes e futuras, do SUS. Neste trabalho no se pretende
avaliar qual destas racionalidades estaria correta, tampouco oferecer uma resposta
conceitual. Busca-se aqui verificar quais efeitos a interpretao do Judicirio em
relao ao direito sade tem produzido na gesto municipal de sade, e, para isso,
importante destacar a divergncia e a dissonncia entre o Judicirio e a
Administrao Pblica no emprego do conceito de sade e em sua efetivao.
Aos olhos da gesto de sade, o Judicirio apresenta uma interpretao
equivocada da sade, que dificulta ou at mesmo impossibilita a persecuo do
direito conforme a interpretao administrativa adotada. Por outro lado, o Judicirio
interpreta o direito de modo a identificar na gesto de sade do SUS falhas graves
em sua efetivao, impondo decises que objetivam corrigi-las.
Em ambos os casos, os poderes estatais passam a lidar com o direito
sade sem a adoo de um parmetro comum em suas aes (pblicas ou
judiciais), uma vez que a linguagem empregada pelos rgos quanto ao sentido do
direito no uniforme. Neste diapaso, esclarecem Octvio Luiz Motta Ferraz e
Fabola Sulpino Vieira (2009, p. 223-224):
As implicaes dessa judicializao constitucional das polticas de sade esto longe de triviais. De um lado, impe aos tcnicos em sade pblica princpios e limites legais que antes no estavam presentes ou, quando estavam, no se revestiam da fora de normas constitucionais. De outro, traz ao seio do mundo jurdico uma das mais complexas reas de polticas pblicas do Estado moderno. No seria realista esperar que esse embate entre duas reas tcnicas distintas, que operam com conceitos e modelos de racionalidade significativamente diversos, se desse sem maiores choques e conflitos.
A partir do final da dcada de 1990, os problemas latentes desta unio inusitada vm aflorando em milhares de aes judiciais espalhadas pelo pas, centenas delas culminando na mais alta corte, o Supremo Tribunal Federal. Percebe-se, nessas aes, um claro descompasso entre o que o Poder Judicirio e os tcnicos em sade do Estado vm entendendo por direito sade.
Tendo em vista que o direito sade exige dos poderes pblicos uma
atuao positiva, a discusso semntica do direito indispensvel para a
identificao da atuao esperada, tampouco inexiste definio legal de prioridades
nas aes e aplicao dos recursos pblicos. Assim, ainda que a gesto de sade
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defina um plano de desenvolvimento, diante das necessidades endmicas, este
pode ser desconsiderado em detrimento de uma pretenso jurdica isolada
(FERRAZ, 2011b, p. 1643).
Diante da problemtica conceitual delineada e para melhor compreenso do
significado de sade, conforme a CF/1988, faz-se necessrio revisitar historicamente
os movimentos e interesses que deram origem ao texto constitucional. A colocao
do direito sade nos moldes apresentados, suas categorias semnticas abertas e
a maleabilidade conceitual no so irrefletidas. A sistemtica adotada para o direito
sade prope uma reforma na racionalizao de seu conceito e traz consigo uma
luta poltica por igualdade social que deve ser conhecida pelos operadores do
direito.
2.1.1.1 Contextualizando o direito sade no Brasil: pr-
constituinte e a Reforma Sanitria
A constitucionalizao do direito sade resultado de um longo processo
de debates e politizao na sociedade brasileira, em um movimento conhecido como
Reforma Sanitria. Contudo, o processo de reforma da sade no contou com todas
suas determinantes to prximas feitura do texto constitucional, apesar de os
debates ocorridos na poca ter influenciado decisivamente os dispositivos
constitucionais, a criao do novo sistema de sade trata-se de uma evoluo
histrica do modelo de sade no Pas.
A histria dos sistemas de sade no Brasil inicia-se muito antes das
discusses da Constituinte de 1988. Entre o incio do sculo XIX at 1988 o
sanitarismo brasileiro transitou entre trs modelos de sistema de sade: o modelo de
sanitarismo campanhista, o modelo mdico-assistencial privatista e o atual modelo
plural (que inclui o Sistema nico de Sade na esfera pblica). Estes modelos
relacionam-se com determinantes econmicas e conceituais de sade adotadas pela
sociedade conforme o perodo histrico (MENDES, 1996, p. 46).
O sanitarismo campanhista relaciona-se ao modelo econmico
agroexportador brasileiro, que demandou das polticas pblicas de sade estruturas
de combate de doenas de massa, com o saneamento dos espaos de circulao
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das mercadorias exportveis e de eventuais doenas prejudiciais estrutura
econmica. Em uma estrutura de inspirao militarista, com intervenes
repressivas, buscou-se o combate de doenas em massa por meio de estruturas ad
hoc e intervenes individuais e sociais (MENDES, 1996, p. 46).
Com o processo de industrializao, as determinantes econmicas e sociais
se alteraram e a partir do deslocamento da populao da zona rural para os centros
urbanos surgem novas demandas para o sistema de sade. A preservao dos
espaos, como ocorria no modelo agroexportador, no era mais a prioridade, mas a
preservao do corpo do trabalhador (fonte de capital). nesta nova realidade
econmica que o modelo mdico-assistencial privatista se consolida (LIMA, 2011,
p.22 ).
O modelo mdico-assistencial surge a partir dos anos 1920, por um sistema
de asseguramento dos servios de sade. A Previdncia Social brasileira passa a
garantir a assistncia mdica para os trabalhadores vinculados a algum tipo de
fundo de caixa ou penso (de acordo com a categoria do trabalhador), em um
modelo segurador que se difundiu no Pas por muitos anos.
Ocorre que, durante a regncia deste modelo, a maior parte da populao
no se encontrava incorporada ao mercado formal de trabalho, muito menos
vinculada ao sistema de asseguramento social. E entre aqueles que no estavam
segurados, poucos contavam com recursos financeiros para o custeio de um servio
de sade privado. Essa discrepante realidade marginalizou grande parte da
populao no que diz respeito ao acesso sade, deixando-os dependentes dos
pouqussimos servios assistenciais pblicos ou filantrpicos/caridosos (LIMA, 2011,
p. 23).
O modelo securitrio mdico-assistencial privatista5 consolidou-se em 1966
com a criao do Instituto Nacional de Previdncia Social (INPS) e durou at 1975, 5 De acordo com Mendes: O modelo mdico-assistencial privatista compunha-se de trs subsistemas. Na base, um subsistema estatal, representado pelo complexo Ministrio da Sade/Secretarias Estaduais e Municipais de Sade, em que se exercitava a medicina simplificada destinada cobertura nominal de populaes no integradas economicamente e ao desenvolvimento de aes remanescentes do sanitarismo. O subsistema hegemnico era o subsistema privado contratado e conveniado com a Previdncia Social que cobria os beneficirios daquela instituio. Este subsistema cresceu induzido por polticas pblicas de terceirizao da ateno mdica que criaram um mercado cativo na rea da Previdncia Social e, muito secundariamente, pelo financiamento subsidiado de capital fsico por meio do FAZ. De tal forma que, no perodo 1969/1984, os leitos privados subiram de 74.543 para 348.255, um crescimento prximo a 500%.
16
com a diviso das aes de sade pblica, das aes de ateno de sade dos
indivduos e a criao do Sistema Nacional da Previdncia Social, que resultou no
surgimento do Instituto Nacional de Assistncia Mdica e Previdncia Social
(Inamps) (MENDES, 1996, p. 46-47).6
Uma discusso voltada para o novo modelo de sade surge somente no incio
da dcada de 1980, cujo motriz deste movimento era o prprio sistema anterior,
excludente e incapaz de atender os problemas coletivos e individuais da populao
no assegurada pela previdncia; a profunda crise poltica, econmica e social
vivida pelo Estado brasileiro na poca; entre tantas outras insatisfaes sociais da
populao marginalizada (MENDES, 1996, p. 48).
De certo modo, a reforma no modelo assistencial de sade (Reforma
Sanitria) s foi possvel em razo do movimento sanitrio e uma pluralidade de
aes e experincias que tornaram o sistema de sade pblica uma realidade.
Neste sentido, Thalita Moraes Lima (2011, p. 25-26) elenca algumas aes e
experincias cruciais para este processo, entre elas: (i) o Centro Brasileiro de
Estudos da Sade (Cebes) e a Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade
Coletiva, que desempenharam um importante papel na disseminao de
conhecimentos, crticas e propostas contra o modelo militar existente, assim como
na formao de profissionais com uma viso distinta da medicina curativa
individualizada; (ii) o sanitarismo desenvolvimentista, preceituando que para
melhorar as condies de sade necessrio romper com o ciclo de misria e
enfermidades, encarando a sade como uma condio poltico-social; (iii) a VIII
Conferncia Nacional de Sade em 1986,7 que proporcionou uma base poltico-
ideolgica da Reforma Sanitria (conhecida como a pr-Constituinte da sade),
contando com representantes de movimentos sociais, profissionais da sade,
Um terceiro subsistema que comeava a delinear-se e a implantar-se, aproveitando os incentivos do convnio empresa o subsistema de ateno mdica supletiva que buscava atrair a mo de obra qualificada das grandes empresas. Contudo, na dcada de 70, este subsistema no chegou a atingir uma massa significativa de beneficirios (MENDES, 1996, p. 47). 6 O modelo assistencial privatista foi consolidado por meio de alteraes com base nas diretrizes do II Plano Nacional de Desenvolvimento e a partir da Lei 6.229/1975 (MENDES, 1996, p. 47). 7 Esta Conferncia foi palco de um acirrado debate sobre princpios e diretrizes da Reforma Sanitria; questes como o conceito ampliado de sade, o reconhecimento da sade como um direito de todos e um dever do Estado, a criao do Sistema nico de Sade, a participao popular, a descentralizao e hierarquizao dos servios de sade, integralidade, entre outras. Na Conferncia foi criada a Comisso Nacional da Reforma Sanitria, responsvel pelo encaminhamento das propostas do texto constitucional para a Assembleia Nacional Constituinte.
17
trabalhadores, estudantes, intelectuais da sade, sindicatos, polticos, entre outros,
totalizando a participao de cinco mil pessoas.
Tendo em vista que a descrio histrica apresentada visa a compreenso
dos interesses no momento da constitucionalizao da sade, os eventos
predecessores da Constituinte de 1988 ocupam importante papel na formulao e
definio dos princpios que orientadores da Reforma Sanitria e,
consequentemente, do texto constitucional. O movimento de Reforma Sanitria
objetivou democratizar da sade, contrapondo-se ao modelo mdico-assistencial
excludente, trabalhando com a preveno coletiva em oposio assistncia
individual, sob uma nova viso de sade.
A proposta encaminhada Assembleia Constituinte de 1988, formulada pela
Associao Brasileira de Sade Coletiva (Abrasco) no 1.o Congresso Brasileiro de
Sade Coletiva com base nas propostas discutidas na VIII Conferncia Nacional de
Sade, surge no seio desta discusso e transio (RODRIGUEZ NETO, 2003, p.
54).
A diversidade de sugestes coletadas na VIII Conferncia Nacional de Sade
impossibilitou que todas estas fossem encaminhadas, mas alguns pontos centrais
foram utilizados como definidores do movimento reformista e da proposta de sade
para a CF/1988, entre eles: (i) o conceito ampliado de sade (que inclui outros
fatores, e no somente a assistncia mdica, mas condicionantes como salrio,
trabalho, moradia, meio ambiente, entre outros); (ii) o acesso universal e igualitrio
sade; (iii) o dever do Estado na proteo, promoo e recuperao da sade; (iv) a
natureza pblica dos servios e aes de sade; (v) a hierarquizao e
regionalizao do Sistema nico de Sade (pblico e descentralizado para os
Estados e Municpios); (vi) subordinao do setor privado s normas do SUS; (vii)
desvinculao do Sistema de Previdncia Social (financiamento prprio, piso de
gastos); (viii) impossibilidade de destinao de recursos pblicos para o setor
privado de sade; (ix) impossibilidade de capital estrangeiro integrar as aes de
sade; (x) proibio da propaganda de medicamentos; (xi) subordinao das
polticas de recursos humanos, de insumos (medicamentos, equipamentos e
derivados) poltica de sade; (xii) explicitao de atribuies do SUS, na
assistncia, vigilncia sanitria, epidemiolgica, saneamento e sade ocupacional
(RODRIGUEZ NETO, 2003, p. 54-55).
18
Como j mencionado, a Reforma Sanitria tambm teve como objetivo a
incluso de uma participao mais democrtica da populao e sociedade civil
organizada nas polticas pblicas de sade, entendida como indispensvel para uma
melhor gesto e desenvolvimento dos servios de sade (LIMA, 2011, p. 28).
O direito sade incorporado CF/1988 foi um processo histrico, poltico e
cultural de transformao e ruptura com o modelo de sade assistencial-privatista e
segurador. E neste movimento, encabeado pela Reforma Sanitria, uma
pluralidade de conceitos e anseios por mudanas foram incorporados ao novo
modelo de sade. A introduo dos conceitos ocorreu por meio de Comisses8 que
auxiliaram a formulao do texto final com base nas propostas do movimento
sanitarista (LIMA, 2011, p. 29-30).
O dispositivo 196 da CF/1988 traz consigo a luta por transformao da
poltica de sade no Pas, a sade, antes entendida como o estado de no doena,
em que o tratamento e cura dos agravos era o centro da atividade mdica, passa a
ser vista sob a tica de sua preveno, promoo e melhoria das condies de
sade (BRASIL, 2000, p. 14).
Contudo, alm da previso legal, a alterao de um sistema requer estruturas
e agendas de desenvolvimento para se tornar o novo sistema operacional. A
constitucionalizao um primeiro, e grande, passo para a construo de um
sistema coletivista e pblico, e, sem dvidas, a revoluo proposta pelo movimento
sanitrio na sade brasileira no seria possvel sem a constitucionalizao dos
princpios e conceitos. Alm disso, a revoluo institucional e prtica da sade ainda
demanda do novo sistema de sade investimentos financeiros capazes de
operacionalizar estes conceitos. Entretanto, apesar de a luta poltica da reforma
sanitria ser vitoriosa na CF/1988, a dvida que ainda permanece a seguinte: o
que sade?
8 Eg. Subcomisso da Sade, Seguridade e Meio Ambiente; Comisso da Ordem Social; Comisso da Sistematizao. Para saber mais sobre as comisses que encaminharam as propostas do movimento sanitrio Constituinte de 1988 ver: RODRIGUEZ NETO, 2003, p. 59-75.
19
2.1.1.2 Conceito de sade com base na Reforma Sanitria
No breve histrico apresentado, resta claro que os bastidores da incorporao
do direito sade no texto constitucional ocorreram em movimento poltico e social
parte da Assembleia Constituinte, e seus ideais e propostas deram origem ao direito
sade disposto na Constituio Federal de 1988.
Conforme expresso no artigo 196 da CF/1988, o direito sade no encontra
na legislao uma definio exata de seu termo. Isto ocorre exatamente para
proporcionar a necessria maleabilidade para criao e gesto do SUS.
Artigo 196 da CF/1988:
A sade direito de todos e dever do Estado, garantido mediante polticas sociais e econmicas que visem reduo do risco de doena e de outros agravos e ao acesso universal igualitrio s aes e servios para sua promoo, proteo e recuperao.
Apesar da indefinio do contedo e alcance do direito sade, o termo pode
ser empregado, no que diz respeito ao exerccio desse direito, em uma pluralidade
de significados (GOUVA, 2004, p. 206-207). Contudo, dentro do movimento
sanitrio existia uma clareza em relao aos termos empregados.
Em uma interessante anlise do preceito constitucional tratado, Thalita
Moraes Lima (2011, p. 31) apresenta uma interpretao compartimentada do
dispositivo 196 da CF/1988 e algumas importantes consideraes sobre o conceito
de sade.9
A primeira considerao tecida em face dos ideais reformistas a
contraposio entre o ideal de sade, como uma forma de expresso democrtica, e 9
NCLEO DOADOR DE SENTIDO
SUJEITO DESTINATRIO
SUJEITO DEVEDOR
INSTRUMENTO GARANTIDOR DA PRESTAO
OBJETOS DAS POLTICAS PBLICAS
OBJETIVO DAS POLTICAS PBLICAS
FINALIDADE DO ARTIGO (CONTEXTO)
Sade, como expresso de um processo democrtico, no como mercadoria
Todos os habitantes do territrio nacional, sem qualquer distino
O Estado (estando ressalvada a iniciativa privada)
Polticas sociais e econmicas
Aes e servios, por meio de um sistema de sade nico e da participao social
Reduo do risco de doenas e outros agravos, e acesso igualitrio, universal e integral
Resgatar uma dvida social com a cidadania e superar a dicotomia entre aes de sade pblica e o atendimento clnico individual, a partir de uma matriz distributiva de coletivismo igualitrio
(LIMA, 2011, p.31)
20
a sua comum ideia de sade como uma mercadoria,10 um bem a ser adquirido. Ou
seja, a nova viso de sade visa retirar o aspecto da comercializao, assim como
romper com o assistencialismo privatista e suas carssimas prticas curativas que
imperaram nos sculos anteriores.11
Nesta nova abordagem proposta pelo movimento sanitrio, a dimenso
conceitual da sade, nos moldes tradicionalmente empregados no Pas, se perdeu.
Eleutrio Rodriguez Neto (2003, p. 130) esclarece esta dimenso conceitual da
seguinte forma:
Nessa tica, a Sade no est contida em uma definio conceitual, mas parte de um processo, resultante do modo de insero do indivduo e de seu grupo social na sociedade, tendo, por conseguinte, uma base material para sua explicao e determinao. Essa concepo o que se poderia chamar de materialista dialtica por incluir no s as condies materiais objetivas de existncia, mas sobretudo a dinmica social e poltica que reconhece e legitima os direitos individuais e coletivos quanto Sade, em um determinado lugar e momento.
10 A sade como mercadoria se relaciona com o modo de operao do sistema anterior. Quando a sade considerada como o o estado de no doena, a cura da enfermidade transforma-se em uma mercadoria comercializvel. O doente adquire a sade comprando o tratamento que retire o agravo. No caso da sade pblica, sade no mais vista como um a ausncia de doena, mas sim como um direito de melhor qualidade de vida, de melhores condies de sade que protejam a populao de atingir o estado de doena. Quando nos referimos questo da sade como uma mercadoria, busca-se expressar a face privatista da sade no Brasil durantes os anos anteriores Constituio Federal de 1988. Como j discutido, antes da CF/1988 no existia qualquer acesso a tratamentos ou sistema pblico de sade seno por meios privados, arcados por particulares ou sistemas seguradores. Nesta viso da medicina, esta encontrava-se focada em prticas lucrativas, priorizando sempre as ofertas privadas dos servios. Em grande parte, as tcnicas empregadas eram sempre as mais dispendiosas e lucrativas para o setor da sade, e no para a populao. Essa espcie de viso da sade ainda encontra-se presente em grande parte dos sistemas, tendo em vista a rentabilidade do setor. No caso da Assistncia Farmacutica esse quadro mostra-se mais latente, uma vez que so notrias a fora e a rentabilidade da indstria farmacutica em todo o mundo. 11 A ideia exposta com o termo assistencialismo do modelo de sade anterior vislumbra-se a prtica tradicional de medicina curativa e de assistncia individualizada ao paciente, ou seja, o indivduo enfermo assistido por meios privados (incluindo o modelo de seguro de sade dos trabalhadores formais) e o papel da medicina pauta-se essencialmente na recuperao individualizada do estado de sade do paciente. Este tipo de prtica mdica a mais tradicional e baseia-se quase que exclusivamente na relao mdico-paciente, no existindo concomitantemente uma prtica mdica preventiva que objetive conter as doenas recorrentes e prevalentes na populao. Este modelo privado, individualizado, curativo e assistencialista se contrape ao sistema proposto pela Reforma Sanitria com a criao do SUS. O Sistema nico de Sade no desejou transformar o modelo anterior gratuito a toda a populao, como a atual interpretao judicial parece pautar-se; o modelo pblico de sade buscou transformar a medicina assistencialista curativa em uma medicina preventiva coletiva, na qual o Estado, por meio de polticas pblicas em diversas reas, procura melhorar as condies de sade da populao. A ideia tambm tratar os indivduos j enfermos, mas acima de tudo criar ambientes propcios para a preveno e conteno de novas doenas.
21
A sade no mais vista apenas como um estado de sade ou doena, muito
menos sob a tica de mercadoria, mas algo dependente de uma perspectiva
multissetorial envolvendo tanto o bem-estar social como a qualidade de vida, no
sendo o sistema de sade o nico responsvel pela sade da populao. A sade
passa a depender de um conjunto de polticas pblicas em diversas frentes e
setores da vida econmica e social. Ou seja, a proposta constitucional de sade no
se tratou da simples troca de um modelo que apenas garantia servios e aes de
sade assistenciais aos segurados da previdncia social, para um sistema pblico
de servios e aes assistenciais gratuitos a todos os cidados (RODRIGUEZ
NETO, 2003, p. 130).
Trata-se de algo ainda mais elaborado, de uma poltica multissetorial capaz
de alavancar o desenvolvimento social e romper com o ciclo crnico de
desigualdades, melhorando as condies de sade com a articulao de polticas
sociais e econmicas em diversas reas sociais.
A transformao social proposta no espera que o SUS melhore as condies
de sade e proporcione todas as aes necessrias, pois depende da atuao de
outras esferas de governo e da ruptura de estruturas institucionais propagadoras de
desigualdade (como o sistema educacional, tributrio, previdencirio, inclusive o
Judicirio, entre tantos outros que se mantm como fonte da desigualdade
brasileira). Neste sentido, Lenir Santos (2003, p. 97) aponta:
O comando do art. 196 nos leva compreenso de que o Estado deve adotar polticas pblicas que induzam o desenvolvimento social e econmico, reduzam a desigualdade, eliminem os fatores que negativamente afetam a sade da populao, como a baixa renda, a falta de escolaridade, a pobreza, o desemprego, a fome e outros fatores determinantes e condicionantes de uma m qualidade de vida que certamente influenciar nas condies de sade da populao, aumentando o risco de doenas. [...]
Sade no tem apenas o significado de equilbrio orgnico, mas o resultado da qualidade de vida de um povo, das polticas adotadas pelo Estado, no podendo o setor de Sade, exclusivamente, ser responsabilizado pelas condies de sade da populao. A concepo de sade como resultante de questes extrassetoriais mais abrangentes se contrape concepo de que a doena (falta de sade) causa de distrbios e desvios de outros setores. A pobreza, a alimentao deficiente, a moradia precria, a falta de saneamento so causas bsicas da doena, ou da falta de sade.
22
O modelo de sade coletiva resulta na insero do indivduo e da
coletividade na sociedade, tratando-se de um direito de cidadania. Esta proposta foi
elaborada no seio da medicina coletiva, social e sanitria, ou seja, especialistas na
rea da sade que apresentavam uma viso distinta da sade no modelo privatista
(LIMA, 2011, p. 26 e 32).
Neste sentido, Thalita Moraes Lima (2011, p. 41) elucida:
As aes e servios de sade (definidos no art. 200 da CF e no artigo 6. da Lei 8.080/90) so constitucionalmente previstos como de relevncia pblica (art. 197), rompem com uma tradio corporativa e ingressam numa linha de reconhecimento de direito de cidadania, na qual a universalidade, a integralidade, a isonomia e a racionalidade na distribuio dos frmacos esto inseridas numa complexa e abrangente as medidas necessrias so tomadas de acordo com a segurana dos usurios, com o perfil endmico da sociedade , e no podem ser simplificadas, de maneira que a prestao de um determinado servio da rea de sade, como o fornecimento de determinado remdio, represente uma ao isolada, no compreendida dentro do sistema nico.
Nesta lgica, o direito sade impe ao Estado um dever de promover,
proteger e recuperar a sade, e, ainda, construir polticas pblicas que visem a
reduo do risco de agravos, garantindo a todos os indivduos o acesso igualitrio,
universal e integral. As polticas pblicas so o instrumento para a realizao do
direito, que por aes estratgicas e alocao dos recursos pblicos tornam possvel
atingir objetivos definidos.
No sistema de sade definido pela CF/1988, o sistema de sade se
estrutura em torno de um objetivo, que no se relaciona, como muitos podem
pensar, com a simples gratuidade de qualquer ao assistencial curativa existente
no setor privado. Pode-se dizer que polticas pblicas de sade visam a melhora da
qualidade da sade e da vida de toda a populao. Assim, a constitucionalizao do
direito sade incorpora a proposta do movimento sanitrio de um sistema de
sade institucional-distributivo (LIMA, 2011, p. 39-40).
Para que o sistema proposto se realize, as polticas pblicas de sade
devem ser democrticas em sua formulao, sendo a participao democrtica
indispensvel no controle das aes estratgicas propostas pelo SUS (SANTOS,
2003, p. 97).
23
O vis democrtico da sade construdo, por exemplo, por meio das
conferncias de sade,12 que avaliam e propem periodicamente diretrizes para as
polticas de sade, e com os conselhos de sade, rgos deliberativos permanentes
e colegiados do SUS presentes em todas as esferas de governo. A participao
democrtica na gesto das polticas de sade prope estratgias e controla a
execuo das polticas de sade (LABRA, 2006, p. 199).
Alm da participao democrtica no direito sade, a CF/1988 tambm
introduz outros princpios definidores do conceito, tais como a universalidade,
igualdade e integralidade das aes de sade. So eles a base ideolgica e
estrutural do SUS, em especial os princpios com maior controvrsia interpretativa
no mbito da sade, a universalidade e a integralidade.
Na perspectiva dos reformistas, a universalidade um princpio de
incluso social e garantia de acesso s aes e servios pblicos de sade,
refletindo o direito ao uso do Sistema nico de Sade, conforme sua estrutura e
12 As Conferncias de Sade se iniciaram h 76 anos, cumprindo o disposto no pargrafo nico do artigo 90 da Lei n. 378, de 13 de janeiro de 1937. A obrigatoriedade da realizao das Conferncias de Sade foi mantida, em 1990, quando a Lei n. 8.142 as consagrou como instncias colegiadas de representantes dos vrios segmentos sociais, com a misso de avaliar e propor diretrizes para a formulao da poltica de sade nos nveis municipais, estaduais e nacional. Tambm a partir da Lei n. 8.142 ficou estabelecida uma periodicidade de quatro anos para a realizao das Conferncias de Sade, que deveriam contar, necessariamente, com a participao dos movimentos sociais organizados, das entidades ligadas rea da Sade, dos gestores e dos prestadores de servios de sade. Convocadas pelo Poder Executivo ou, extraordinariamente, pelo Conselho de Sade, as Conferncias tm como objetivos principais avaliar a situao de sade e propor diretrizes para a formulao da poltica de sade nos trs nveis de gesto. Isso significa dizer que as deliberaes das Conferncias devem servir para orientar os governos na elaborao dos planos de sade e na definio de aes que sejam prioritrias nos mbitos estaduais, municipais e nacional. A cada nova Conferncia tem sido observado um aumento importante da participao da sociedade civil, fenmeno que garante a definio de polticas de sade cada vez mais democrticas. As Conferncias so fruns privilegiados que a sociedade civil possui para discutir e apontar solues para os problemas que envolvem a sade da populao brasileira. nos espaos das Conferncias que a sociedade se articula para garantir os interesses e as necessidades da populao na rea da Sade e assegurar as diversas formas de pensar o SUS, assim como para ampliar, junto sociedade, a disseminao de informaes sobre o Sistema, para fortalec-lo. Gesto participativa no Sistema nico de Sade A gesto participativa e a apropriao do direito sade so um desafio constante, pois a ampliao do controle social sobre o Estado depende, em ltima instncia, da participao da sociedade na definio e no exerccio dos direitos de cidadania, tambm da cultura de participao que se cria tanto nos espaos institucionalizados quanto nas relaes interpessoais. Sendo assim, fortalecer o controle social e a gesto participativa, enquanto poltica de um governo democrtico popular, representa o compromisso de identificar, desencadear e fortalecer dispositivos que promovam a participao da populao (SUS. Portal da Sade. Conferncias de Sade e Gesto Participativa. Disponvel em: . Acesso em: 3 jun. 2012).
24
regras de funcionamento, sem qualquer espcie de preconceito, excluso ou
privilgio, ou qualquer outra possvel condicionante (LIMA, 2011, p. 36).
A universalidade foi includa como um meio de ruptura com o modelo de
sade anterior, que impossibilitava o acesso aos servios existentes populao
no assegurada. E, tendo em vista o conceito ampliado de sade, a universalidade e
o acesso amplo s servios e aes de sade tm como escopo a ideia de que sem
a superao da misria e das desigualdades no h bem-estar nem justia social
(BALERA, 1989, p. 35).
O princpio da integralidade foi proposto no texto constitucional como um
conjunto de aes e servios articulados entre todos os nveis de complexidade
(baixa, mdia e alta), mas, apesar de sua definio, ainda se verifica alguma
dificuldade em sua interpretao. O objetivo desses princpios a garantia da
racionalidade na instituio e acesso dos servios e aes de sade, sendo a base
para um sistema mais justo, solidrio e comprometido com os valores distributivos
do direito sade, oferecendo oportunidades para aqueles que delas necessitam
(LIMA, 2011, p. 37).
A integralidade trata-se de uma articulao governamental das polticas
de sade na soluo dos problemas da populao, pela identificao de solues
tcnicas e cientficas, capazes de instituir estruturas e regras claras quanto
racionalidade dos servios e emprego dos recursos. No se busca a restrio do
acesso, mas sim oferecer e garantir a ao adequada para a soluo dos problemas
e que seja esta ofertada a toda a parcela da populao que dela necessite (LIMA,
2011, p. 37).
No entanto, a integralidade gera incertezas quanto s prioridades e
limitaes do SUS, de modo que aes e servios prioritrios devem ser
estabelecidos conforme as necessidades endmicas, e no por meio de regras
gerais. A reviso destas prioridades deve ocorrer periodicamente, sendo
democraticamente decididas entre os gestores dos servios de sade, as
comisses, conselhos de sade e sociedade civil.
Ocorre que, apesar de os princpios informadores do direito sade
buscarem conduzir a efetividade do direito, este encontra na CF/1988 previses
abertas. Isso ocorre porque o movimento sanitrio e os tericos da mudana do
25
sistema de sade conheciam a impossibilidade de se promover uma transformao
to significativa no modelo de sade por meio de estruturas e comandos fechados,
uma vez que as prioridades so variveis, endmicas e temporais. Deste modo,
promover qualidade de sade pode apresentar uma pluralidade de combinaes, e a
ideia exatamente esta. O SUS o instrumento que identifica essas variaes e
promove as aes corretas conforme as necessidades, de modo a proporcionar uma
melhora significativa na qualidade de sade de toda a populao.
A amplitude semntica do conceito de sade e a utilidade desta para o
modelo proposto no demandam do Judicirio uma definio jurisprudencial, dado
que indispensvel para as estratgias de desenvolvimento da sade. A CF/1988
traz consigo o inexplorado universo da sade pblica, do sanitarismo e da medicina
e sade coletiva, um modelo que sequer difundido entre os profissionais de sade
no Pas, que por dcadas tiveram sua formao voltada para o modelo
assistencialista, o que torna quase impossvel para o Judicirio promover
adequadamente o conceito.
Com a inverso da noo de sade para algo alm da simples ausncia
da doena, a sade passa a incorporar em seu conceito dimenses antes no
consideradas. Conforme a proposta da Organizao Mundial de Sade (OMS) a
sade o estado de completo bem-estar fsico, mental e social e no apenas a
ausncia de doena (OMS, 1947). Tendo em vista esse conceito, quase tudo passa
a ser um aspecto ou dimenso da sade. Para o Judicirio trabalhar com a
interpretao de uma ideia to vaga ele deve faz-lo com demais poderes, em
especial com aquele responsvel pela execuo das polticas de sade.
2.1.2 Contexto da sade no Brasil: constitucionalizao do direito sade e a criao do Sistema nico de Sade (SUS)
Nesta segunda etapa do panorama conceitual so abordadas a origem e a
estrutura do SUS sob uma tica operacional, introduzindo uma breve noo do
significado do SUS em suas estruturas e operacionalizao para melhor
compreenso de como a judicializao e atual interpretao constitucional podem
impactar o SUS.
26
Primeiramente, sero apresentados o histrico e as dificuldades enfrentadas
pelo sistema de sade brasileiro para a recepo do SUS em 1988, pois o processo
de evoluo e transformao do sistema pode ter contribudo para uma parcela das
presentes dificuldades de efetivao do direito sade no Pas. Como j discutido, o
SUS foi idealizado dentro do movimento sanitrio, entretanto o aparato tcnico e
institucional para a prestao dos servios pblicos de sade e efetivao do direito
sade no surgiu com a CF/1988.
O ponto de partida apresentado para o processo histrico de reformulao do
sistema de sade no Brasil encontra-se em meados da dcada de 1980, sendo a
primeira etapa a partir das Aes Integradas de Sade (AIS).13 Nessas aes, que
se iniciaram em 1984, buscava-se ampliar a participao dos Estados e Municpios
como uma iniciativa ao processo de descentralizao da sade.
O Ministrio da Sade, at esse momento, atuava apenas por medidas
preventivas de sade (e.g., campanhas de vacinao, preveno de surtos
epidemiolgicos) e no atendimento de algumas poucas doenas para aqueles que
no contavam com a assistncia oferecida pelo Inamps, destinado aos contribuintes
da Previdncia Social (FISHLOW, 2011, p. 97).
A partir da VIII Conferncia Nacional de Sade de 1986, o Ministrio da
Previdncia Social, responsvel pelo Inamps e pelo sistema de sade at 1988,
criou o Sistema Unificado e Descentralizado de Sade (Suds) em convnio com os
governos estaduais.14 O Suds tinha como objetivo dar continuidade ao processo de
descentralizao e transferncia de recursos aos Estados e Municpios que
criassem conselhos de sade, e principalmente dar incio ao processo de reforma
sanitria que beneficiasse todos os cidados (FISHLOW, 2011, p. 97).
Com a nova Constituio em 1988, surge o Sistema nico de Sade (SUS),
resultado da reforma no Sistema de Sade brasileiro, cujos principais objetivos so a 13 Em 1981 foi criado o Conasp que elaborou um novo plano de reorientao da Assistncia Mdica [...] que, em linhas gerais propunha melhorar a qualidade da assistncia fazendo modificaes no modelo privatizante (de compra de servios mdicos), tais como a descentralizao e a utilizao prioritria dos servios pblicos federais, estaduais e municipais na cobertura assistencial da clientela. A partir do plano do Conasp, surgiu o Programa de Aes Integradas de Sade, que ficou conhecido como AIS. Tinha o objetivo de integrar os servios que prestavam a assistncia sade da populao de uma regio. Os governos estaduais, atravs de convnios com os Ministrios da Sade e Previdncia, recebiam recursos para executar o programa, sendo que as prefeituras participavam atravs de adeso formal ao convnio (TAPAJS, 1992). 14 Decreto 94.657/1987.
27
universalizao, a descentralizao, a consolidao do financiamento do sistema,
bem como uma melhor e mais igualitria distribuio dos servios.
Como j discutido no item anterior, o processo de transformao do sistema
de sade assistencialista privatista em um sistema pblico de sade, que resultou na
criao do SUS, implicou modificaes extremamente significativas no sistema de
sade brasileiro em um curto intervalo de tempo. Em uma dcada, o sistema que era
centralizado, assistencialista, segurador, voltado para atender aos contribuintes da
Previdncia Social, passa a operar de modo descentralizado e atendendo a todos os
indivduos.
A partir de 1988, com o disposto no artigo 196 da CF/1988 e a criao do
SUS, que aponta a sade como um direito de todos e dever do Estado, toda a
populao passa a ser titular dos diretos sade, independentemente ou no de
sua vinculao ao mercado formal de trabalho e de sua contribuio Previdncia
Social.
De acordo com Albert Fishlow (2011, p. 98), o Sistema nico de Sade
consolidado na Constituio Federal de 1988 apresenta trs principais
caractersticas: (i) a concentrao de responsabilidades em todos os nveis de
governo, dando destaque ao Ministrio da Sade, que possui o papel antes
desempenhado pelo Ministrio da Previdncia Social na conduo das polticas de
sade; (ii) a descentralizao da administrao do servios pblicos; (iii) e a
distribuio do financiamento entre os entes federativos.
O sistema de sade previsto na Constituio Federal de 1988 consolidou o
processo de reformulao da sade e adotou como principais caractersticas: a
universalidade e igualdade no acesso s aes de sade; a descentralizao, com
direo nica em todas as esferas de governo; o atendimento integral com
prioridade s aes preventivas, sem prejuzo dos servios assistenciais; e a
participao da comunidade.
A Constituio Federal de 1988 culminou na transio formal de um sistema
de sade universal e igualitrio. Contudo, as alteraes e os recursos necessrios
para instituir um sistema de sade pblico funcional dificultaram a implementao de
um sistema de sade capaz de atender a todas as deficincias da sade no
momento, e, ainda, capaz de promover o direito sade conforme os preceitos
28
constitucionais. A construo do SUS ocorreu de modo abrupto com a CF/1988, em
um cenrio de insuficincia econmica do Pas e fortes anseios sociais. Isto resultou
em dificuldades na estruturao e operacionalizao do SUS, deixando uma larga
agenda de problemas a serem superados.
Durante anos subsequentes Constituio Federal de 1988, a grande
preocupao do Pas concentrou-se no controle da inflao e estabilizao
econmica. Os problemas sociais no integraram o principal foco da poltica
brasileira, at mesmo por uma impossibilidade de realizao de grandes
investimentos para sanar deficincias to profundas. Desse modo, o Pas, que j
acumulava um dficit social na rea da sade, em funo do sistema
assistencialista-segurador que o regia, mesmo aps a CF/1988 no foi capaz de
realizar um aporte significativo de investimentos para tornar o SUS um sistema de
seguridade de sade pleno conforme a corrente interpretao jurisprudencial.
Dentre as principais dificuldades a serem superadas estava o aumento da
demanda pelos servios. De acordo com o relatrio do Banco Mundial, no perodo
de 1987-1991 houve um aumento de 53% no uso do sistema de sade, passando de
um total de 2,370 milhes de usurios para 3,629 milhes. Este aumento est
diretamente ligado abertura do sistema para toda a populao,
independentemente de o indivduo estar assegurado, visto que nesse perodo o
crescimento populacional no ultrapassou 2% (WORLD BANK, 1993).
Problemas como estes, somados falta de previsibilidade na estruturao e
desenho do sistema sade, falta de recursos econmicos para tornar o SUS
operacional, entre tantos outros, resultaram em um sucateamento do sistema antes
mesmo que este se tornasse efetivamente funcional (no sentido de atender aos
cidados conforme os parmetros constitucionais atualmente interpretados pelo
Poder Judicirio).
Em um cenrio de insuficincia econmica e aumento da demanda por
servios so indispensveis parmetros de priorizao das aes desenvolvidas
para um proveitoso desenvolvimento. A CF/1988 no ofereceu tais parmetros e a
legislao que regulamentou o SUS somente ocorreu na dcada de 1990, mas
tampouco solucionou as questes estratgicas de construo e operacionalizao
do SUS.
29
importante considerar que, apesar de o Sistema nico de Sade se
comprometer formalmente a oferecer aos cidados uma pluralidade de prestaes
de sade, ainda que sem qualquer especificao de quais, as dificuldades para
proporcion-las de fato esbarrou em uma srie de questes conjunturais vividas pelo
Pas. Abrir o sistema para toda a populao foi um grande avano aos direitos
sociais e uma importante conquista para os brasileiros, contudo a forma como esta
abertura seria realizada e os obstculos a serem superados no foram considerados
em sua integralidade no momento de sua previso.
Independentemente das dificuldades de institucionalizao do SUS, esta
ocorreu e elaborou uma estrutura com o intuito de iniciar esse processo de
transformao do sistema e iniciar o desenvolvimento da sade no Brasil de modo
universal. Nessa transio, dois diplomas legais so tidos como centrais. O primeiro
indiscutivelmente a CF/1988 e o segundo, a Lei 8.080/1990 que dispe sobre as
condies para a promoo, proteo e recuperao da sade, assim como a
organizao e funcionamento dos servios correspondentes, regulamentando sobre
as aes e servios de sade no territrio nacional, sejam estes realizados por
pessoas jurdicas de direito pblico ou privado.15
Na Constituio Federal de 1988, alm das disposies previstas nos artigos
6.o e 196 e seguintes,16 que determinam que a sade um direito fundamental de
15 Art. 1. da Lei 8.080/1990. 16 Texto Original da Constituio Federal de 1988: Art. 196. A sade direito de todos e dever do Estado, garantido mediante polticas sociais e econmicas que visem reduo do risco de doena e de outros agravos e ao acesso universal e igualitrio s aes e servios para sua promoo, proteo e recuperao. Art. 197. So de relevncia pblica as aes e servios de sade, cabendo ao Poder Pblico dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentao, fiscalizao e controle, devendo sua execuo ser feita diretamente ou atravs de terceiros e, tambm, por pessoa fsica ou jurdica de direito privado. Art. 198. As aes e servios pblicos de sade integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema nico, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I descentralizao, com direo nica em cada esfera de governo; II atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuzo dos servios assistenciais; III participao da comunidade. Pargrafo nico. O sistema nico de sade ser financiado, nos termos do art. 195, com recursos do oramento da seguridade social, da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios, alm de outras fontes. Art. 199. A assistncia sade livre iniciativa privada. 1. As instituies privadas podero participar de forma complementar do sistema nico de sade, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito pblico ou convnio, tendo preferncia as entidades filantrpicas e as sem fins lucrativos. 2. vedada a destinao de recursos pblicos para auxlios ou subvenes s instituies privadas com fins lucrativos.
30
todos e dever do Estado, outras previses importantes relativas estrutura do
sistema de sade podem ser destacadas. Em relao competncia, a CF/1988
realiza distintas distribuies. Para instituir polticas pblicas no mbito da sade, a
Constituio Federal de 1988 dispe:
CF/1988, art. 23, II. competncia comum da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios: [...] II cuidar da sade e assistncia pblica, da proteo e garantia das pessoas portadoras de deficincia.
Quanto competncia para legislar em matria de sade, a CF/1988
estabelece um sistema de competncias concorrentes. Em seu artigo 24, dispe que
cabe Unio, Estados e Municpios legislar concorrentemente em prol da efetivao
do direito sade. J no tocante prestao dos servios de sade, em seu artigo
30, inciso VII, a CF/1988 incumbe aos municpios o dever de prestar, com a
cooperao tcnica e financeira da Unio e do Estado, servios de atendimento
sade da populao.
Esses dispositivos esclarecem que a competncia para criar polticas pblicas
de sade e legislar no mbito da sade concorrente entre Unio, Estados e
Municpios. Por sua vez, a prestao dos servios de sade sero de
responsabilidade dos municpios, contudo seu financiamento e suporte tcnico sero
efetuados em cooperao com os demais entes federados. O deslocamento da
prestao dos servios de sade aos municpios implica relevantes alteraes na
3. vedada a participao direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistncia sade no Pas, salvo nos casos previstos em lei. 4. A lei dispor sobre as condies e os requisitos que facilitem a remoo de rgos, tecidos e substncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfuso de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercializao. Art. 200. Ao sistema nico de sade compete, alm de outras atribuies, nos termos da lei: I controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substncias de interesse para a sade e participar da produo de medicamentos, equipamentos, imunobiolgicos, hemoderivados e outros insumos; II executar as aes de vigilncia sanitria e epidemiolgica, bem como as de sade do trabalhador; III ordenar a formao de recursos humanos na rea de sade; IV participar da formulao da poltica e da execuo das aes de saneamento bsico; V incrementar em sua rea de atuao o desenvolvimento cientfico e tecnolgico; VI fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e guas para consumo humano; VII participar do controle e fiscalizao da produo, transporte, guarda e utilizao de substncias e produtos psicoativos, txicos e radioativos; VIII colaborar na proteo do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.
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organizao municipal, nos servios de sade e principalmente passa a exigir das
municipalidades a complexa gesto destes servios.
Apesar dos princpios da universalidade e o dever de criar e garantir polticas
pblicas na rea, a CF/1988 tambm estabeleceu que a assistncia sade poder
ser explorada pela iniciativa privada. Esse tema no ser objeto de grandes
discusses neste trabalho, mas merece ser registrado. A universalizao dos
servios de sade com o SUS no reduziu a participao privada, e o sistema misto
de prestao e financiamento da sade permanece at hoje, o que de alguma forma
tambm ampliou a participao do Judicirio na definio de polticas na rea.
A iniciativa privada sempre ocupou um papel relevante no cenrio da sade
no Brasil (FISHLOW, 2011, p. 97), e, conforme pesquisas sobre o tema realizadas
em 1998, as classes mais altas da sociedade so prevalentes no uso destes
servios (MEDICI, 2002). Uma crtica apresentada em face da estrutura dicotmica
do sistema de sade o fato de que pessoas de maior renda acabam por utilizar
gratuitamente o SUS para procedimentos mais custosos, reduzindo suas
mensalidades nos planos privados. Entretanto, os valores pagos na sade privada
so dedutveis no imposto de renda, gerando duas espcies de problemas: (i)
classes altas e baixas competindo por recursos escassos na utilizao dos servios
pblicos complexos; (ii) as dedues no imposto de renda tornavam o SUS mais
barato para as altas classes. Ambas as questes podem ser apontadas como
propagadoras de desigualdades sociais no Pas (FISHLOW, 2011, p. 218).
No que diz respeito legislao infraconstitucional, a Lei Complementar
8.080/1990, em seu artigo 4.o, define o SUS como o conjunto de aes e servios
de sade, prestados por rgos e instituies pblicas federais, estaduais e
municipais, da administrao direta e indireta e das fundaes mantidas pelo Poder
Pblico. Nesse sentido, verifica-se que o SUS no significa uma Instituio em si,
mas um conjunto de aes empregadas por diversos rgos pblicos de natureza e
dimenso administrativa distintas na prestao dos servios de sade. Ainda quanto
s competncias, a Lei Complementar 8.080/1990 preceitua, em seu artigo 9.o,
quais rgos sero responsveis pela direo do SUS em cada esfera de governo.
No caso da Unio, seu responsvel o Ministrio da Sade; nos Estados e Distrito
Federal, as Secretarias de Sade ou rgo equivalente; e nos Municpios, as
Secretarias de Sade ou rgos equivalentes. A tripartio na gesto das aes do
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SUS implica dificuldades na identificao da autoridade responsvel pelo servio
prestado (GOUVA, 2004, p. 213).
Ademais, a Lei 8.080/1990 seguiu o mesmo caminho da CF/1988, retomando
o status de direito fundamental sade, e vinculou o sistema de sade a uma srie
de princpios.17 De acordo com estudo realizado pela Secretaria Executiva do SUS,
os mais importantes princpios elencados na CF/1988 e na Lei Complementar
8.080/1990 podem ser divididos em: (i) doutrinrios/ticos (universalidade de acesso
aos servios, integralidade e igualdade na assistncia); e (ii)
organizacionais/operativos, regionalizao e hierarquizao da rede;
descentralizao dos servios; participao da comunidade) (BRASIL, 2000, p. 6).
A implementao do SUS e a alterao no sistema de sade anterior pautam-
se na interdependncia dos princpios citados. A construo de um novo sistema de
sade depende de um programa gradual de desenvolvimento, exatamente para que
no ocorra nenhuma ruptura na prestao dos servios de sade e inadequao dos
princpios orientadores do sistema. Portanto, o ideal que os princpios
organizacionais/operativos encontrem-se bem estruturados para que os princpios
ticos/doutrinrios possam se realizar (BRASIL, 2000, p. 6-7).
17 Lei 8.080/1990, art. 7. As aes e servios pblicos de sade e os servios privados contratados ou conveniados que integram o Sistema nico de Sade SUS so desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no artigo 198 da Constituio Federal, obedecendo ainda aos seguintes princpios: I universalidade de acesso aos servios de sade em todos os nveis de assistncia; II integralidade de assistncia, entendida como um conjunto articulado e contnuo das aes e servios preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os nveis de complexidade do sistema; III preservao da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade fsica e moral; IV igualdade da assistncia sade, sem preconceitos ou privilgios de qualquer espcie; V direito informao, s pessoas assistidas, sobre sua sade; VI divulgao de informaes quanto ao potencial dos servios de sade e sua utilizao pelo usurio; VII utilizao da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocao de recursos e a orientao programtica; VIII participao da comunidade; IX descentralizao poltico-administrativa, com direo nica em cada esfera de governo: a) nfase na descentralizao dos servios para os municpios; b) regionalizao e hierarquizao da rede de servios de sade; X integrao, em nvel executivo, das aes de sade, meio ambiente e saneamento bsico; XI conjugao dos recursos financeiros, tecnolgicos, materiais e humanos da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios, na prestao de servios de assistncia sade da populao; XII capacidade de resoluo dos servios em todos os nveis de assistncia; e XIII organizao dos servios pblicos de modo a evitar duplicidade de meios para fins idnticos.
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Enquanto os princpios ticos doutrinrios podem ser compreendidos como
objetivo do sistema de sade, os princpios organizacionais/operativos servem como
suporte para a prtica dos princpios ticos/doutrinrios.
A universalidade dos servios de sade um princpio extrado do artigo 196
da CF/1988 como uma garantia de acesso s aes e servios de sade a todos os
brasileiros e estrangeiros residentes no Pas (RIOS, 2009, p. 6). A equidade na
prestao de servios entendida pela administrao pblica como uma igualdade
material, com a funo redistributiva e de corrigir desequilbrios sociais e regionais.
Desse modo, dispensa um tratamento desigual em situaes desiguais, com o
objetivo de garantir maior uniformidade e equidade na prestao dos servios
(BRASIL, 2000, p. 6).
J a integralidade da assistncia assegura o direito dos indivduos de serem
atendidos na ntegra de suas necessidades, ou seja, em todos os nveis de
complexidade dos servios de sade (bsica, media e alta complexidade) (BRASIL,
2000, p. 6). A integralidade encontra-se expressa na Lei 8.080/1990, art. 7., inciso
II, e entendida como um conjunto articulado das aes e servios preventivos e
curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os nveis de
complexidade do sistema.
Os princpios organizacionais/operativos tm neste contexto uma relevncia
maior, pois com base neles que o SUS estruturado para atingir os objetivos
traados com os princpios ticos/doutrinrios. Os princpios organizacionais so os
meios, enquanto os fins so os princpios ticos.
A participao social, como princpio, reflete a institucionalizao da
democracia participativa, ampliando-se assim o controle social e democrtico sobre
a gesto do SUS. Deste princpio decorrem a obrigatoriedade da constituio e o
funcionamento dos conselhos de sade, em todas as esferas de governo (BRASIL,
2000, p. 6).
A regionalizao e a hierarquizao da rede objetiva uma melhor distribuio
espacial dos servios de sade e assim melhor atender as necessidades dos
usurios do SUS em todos os nveis de complexidade. Para um melhor
desenvolvimento destas aes, os Estados e Municpios passam a atuar juntos, de
modo articulado, sendo facultada a criao de consrcios e pactuaes.
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E o ltimo princpio organizacional/operativo, que merece especial ateno no
presente trabalho tendo em vista o tema proposto, a questo da descentralizao
e municipalizao na prestao dos servios de sade. O sistema de
descentralizao na prestao de servios estabelecido na CF/1988 e reforado
pela Lei Complementar 8.080/1990 est centrado na noo de repartio de
responsabilidades e competncias entre os entes federativos. Trata-se de um
modelo implantado no apenas no sistema de sade, mas em toda a estrutura
federativa brasileira prevista com a CF/1988 (ABRUCIO, 2005, p. 77).
A descentralizao ope-se ao sistema anterior, que centralizava a execuo e
coordenao dos servios de sade no ente federal. Conforme j mencionado, o
primeiro passo para a ruptura com a centralizao dos programas e gesto dos
recursos ocorreu a partir da criao do Sistema Unificado e Descentralizado de
Sade (SUDS), que objetivava a descentralizao de recursos fsicos, humanos e
financeiros. Esse processo descentralizador resultou no fortalecimento do ente
estadual, tendo em vista que o processo de descentralizao municipal no foi
concludo (ABRUCIO, 2005, p. 78).
Foi a Constituio Federal de 1988 que alavancou o processo de
descentralizao municipal, assim como a Lei Complementar 8.080/1990 que
promoveu a regulamentao da gesto do SUS. As Normas Operativas Bsicas
(NOBs) tambm contriburam com a estruturao dos repasses financeiros e
fiscalizao da sade, possibilitando a maior participao dos municpios na
execuo dos servios de sade. A NOB 96 tem um destaque na definio do SUS
e da estrutura de cooperao tcnica e financeira na gesto dos entes federativos,
cujo principal objetivo promover e consolidar o pleno exerccio, por parte do poder
pblico municipal e do Distrito Federal, da funo de gestor da ateno sade dos
seus muncipes (ABRUCIO, 2005, p. 79).
A descentralizao da sade impe uma redistribuio das responsabilidades e
dos recursos de financiamento da sade entre as trs esferas (Unio, Estados e
Municpios) e, ainda, partindo da noo de que a Unio (nvel central) somente deve
executar aquilo de que os demais entes (Estados e Municpios) no so capazes
(BRASIL, 2000, p. 6).
Inicialmente, os problemas do processo de descentralizao vinculavam-se
mais irregularidade e fontes de repasses financeiros, mas, com a estabilizao
econmica e fim da inflao, a descentralizao comeou a ganhar forma. Quatro
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importantes avanos contriburam para a descentralizao: (i) o fortalecimento dos
Conselhos de Sade, aperfeioando a accountability da gesto de sade; (ii) a
melhora das atividades centralizadas (e.g., organizao administrativa do Ministrio
da Sade, sistemas de informao, Datasus, agncias reguladoras (Anvisa e ANS);
(iii) a criao do PAB (piso de ateno bsica),18 que visa reduzir as desigualdades
nas transferncias de recursos; (iv) e a PEC da Sade (Emenda Constitucional
29/2000), responsvel pela organizao dos recursos financeiros destinados
sade nos trs nveis de governo, hoje regulamentada pela Lei Complementar
141/2012 (ABRUCIO, 2005, p. 80-83).
A Emenda Constitucional 29/2000 foi essencial para este processo, pois
estruturou o instvel financiamento do SUS, assegurando recursos mnimos de
financiamento dos servios e aes pblicos de sade. N o entanto, apesar de tudo,
os valores necessrios para cobrir o dficit j existente no sistema e dar maior
operacionalidade aos SUS ainda eram demasiadamente altos (FISHLOW, 2011, p.
215).
Alm dos princpios diretores do sistema de sade, outros temas importantes
encontram algum destaque e definio na legislao. No tocante Assistncia
Farmacutica, a Lei 8.080/1990 confere alguma clareza obrigao do fornecimento
de medicamentos, porm de modo amplo e sem grandes avanos organizacionais.
O artigo 6.o, inciso I, alnea d, da Lei 8.080/1990 dispe que esto includas nas
aes a serem oferecidas pelo SUS a assistncia teraputica integral, inclusive a
18 O Piso de Ateno Bsica (PAB), criado em 1997, implantado no primeiro semestre de 1998 e ampliado em 2001, um mecanismo de financiamento do Sistema nico de Sade (SUS), que altera a lgica do pagamento por produo, modelo este que foi muito criticado por dar nfase ao financiamento da doena em detrimento da ateno integral sade e privilegiar as localidades que possuem maior estrutura de servios. Com a nova sistemtica, os fundos municipais de sade recebem diretamente do Fundo Nacional de Sade (repasse fundo a fundo) um montante, calculado com base em um valor per capita, e a administrao local assume a responsabilidade pela ateno bsica sade da populao de seu territrio. Para acompanhamento do desempenho de Estados e municpios no cumprimento de suas responsabilidades nesse nvel de ateno, foi institudo o Pacto de Indicadores da Ateno Bsica, um instrumento formal de negociao entre gestores das trs esferas de Governo (municipal, estadual e federal), cujo objeto de negociao so metas a serem alcanadas em relao a indicadores de sade previamente acordados. Ao fim de cada ano, municpios e Estados tm seu desempenho avaliado pelos diversos nveis de gesto em funo do cumprimento das metas pactuadas. A prefeitura deixa de ser tratada pelo Ministrio da Sade como prestadora de servios e o secretrio de sade passa a exercer o papel de gestor da Ateno Bsica no seu municpio, a partir da elaborao de planos de aes em sade, de acordo com a realidade local (BRASIL, 2002, p. 5-6).
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farmacutica.19 Conforme ser abordado posteriormente, a assistncia farmacutica,
ao contrrio do discurso popular de ineficincia da gesto do SUS, tem sido
amplamente estruturada por meio de portarias, protocolos e listagens de
medicamentos, para atender a disposio legal e a integralidade das aes de
sade.
possvel que o maior problema de ineficincia do SUS esteja vinculado ao
fato de que o direito sade foi formalmente estabelecido pela CF/1988 e no
paulatinamente conquistado pelos cidados ao longo da histria. Se o direito
sade tivesse surgido dentro de um sistema pblico de sade j funcional, em vez
de um sistema novo criado para atender uma populao carente por direitos, talvez
a dificuldade em operacionalizar o direito no fosse to grande. Isso sem contar os
poucos avanos desde a CF/1988 no mbito da desigualdade social brasileira.20
Do modo como o direito foi assegurado, os interesses e possibilidade, os
recursos e opes polticas, assim como todas as decises necessrias para darem
efetividade ao direito sade, foram tomados durante a prpria construo do SUS.
O SUS foi idealizado como um modelo de prestao ampliada de sade
populao, mas, diante das possibilidades econmicas e institucionais para o
servio, passou a sofrer cada vez mais com sua prpria previso.
19 Art. 6. da Lei 8.080/1990. Esto includas ainda no campo