2
JUÍZES DE TOGA, NOBREZA TOGADA:O JUDICIÁRIO NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO IMPÉRIO
Karine Cristinie da Silva Fontineles – Bolsista PIBIC/UESPIProfessor Dr. Marcelo de Sousa Neto - UESPI
Resumo: o presente artigo tem por escopo discutir a respeito da educação piauiense na primeira metade do século XIX, com ênfase no nível de instrução dos magistrados da província piauiense. A História do Direito no Brasil representa área ainda pouco explorada, visto que ainda são parcos os trabalhos publicados acerca dessa proposta temática. No caso do Piauí, em especial, pesquisas sobre a temática são ainda mais escassas, o que tem dificultado o desenvolvimento das Ciências Jurídicas, bem como o desenvolvimento da própria História. As dificuldades no acesso ao ensino formal, associadas à grande extensão territorial do Império corroboraram a deficiência da prática jurisdicional dos magistrados na província piauiense. Entender essa dimensão histórica contribui para entender o desenvolvimento das sociabilidades em dado período, uma vez que as decisões políticas do Brasil Império eram diretamente influenciadas pela formação jurídica dos membros de sua elite. Partindo dessa perspectiva, analisar o surgimento prematuro e desorganizado do judiciário piauiense em meio às tentativas de atender as exigências de Portugal e, posteriormente, do Império Brasileiro é o objetivo do presente estudo, bem como entender as disputas por poder e a utilização da educação formal como elemento diferenciador e legitimador dos detentores desse poder. No que concerne à metodologia utilizada na pesquisa, lançou-se mão de uma discussão analítico-interpretativa dos pronunciamentos oficiais do Visconde da Parnaíba, Manuel de Sousa Martins – à época presidente da província, endereçados à Assembléia Legislativa. Como referenciais teóricos para alicerçar a pesquisa foram utilizadas as discussões de Bevilaqua (1977), Bonavides (2002), Carvalho (2003) e Moraes (2003), que se debruçam sobre a história do Direito nas esferas nacional e local, além da análise da documentação oficial da época oriunda da Assembléia Legislativa do governo provincial. Considera-se que a formação judiciária dos jovens bacharéis, que em geral tiveram sua formação ligada à Faculdade de Direito de Recife, teve papel fulcral nos direcionamentos das decisões políticas da província piauiense.
Palavras-chave: Educação. História. Direito
1. Introdução
As pesquisas no ramo das Ciências Jurídicas pouco têm se direcionado para a
História do Direito. Temáticas relativas a essa área são ainda escassas, o que proporciona
dificuldades no desenvolvimento das Ciências Jurídicas e, conseqüentemente, no
desenvolvimento da própria História, uma vez que a percepção da dimensão histórica
auxilia a compreensão das relações de sociabilidades em dado período. José Murilo de
Carvalho endossa esse entendimento quando expõe que as decisões políticas durante o
Brasil Império estavam diretamente associadas à formação jurídica de muitos membros de
sua elite.
O Judiciário, como grande parte das instituições no Brasil, surge de forma
prematura e desorganizada, como uma forma de se adequar às exigências portuguesas e
posteriormente do Império brasileiro. Sem pessoal qualificado com formação específica,
3
considerando que o primeiro curso de Ciências Jurídicas do Brasil data do ano de 18271,
nossos primeiros juízes constituíram-se, principalmente, de leigos indicados por seus
colégios paroquiais eleitorais, nos quais o poder e prestígio de ricos senhores de terras
terminavam por indicar que conduziriam os caminhos da magistratura.
Esse grupo de juízes, ao assumir importantes atribuições no controle administrativo
da colônia e depois Império esculpirá os moldes em que se delineará toda a prática
jurisdicional de que se tem conhecimento no Brasil atualmente, apesar de que ao longo dos
anos, o judiciário sofreu profundas transformações. Analisar sua história, destacando a
relação entre o interesse privado e público e a autonomia do judiciário permite
aprofundarmos a discussão e o estudo sobre a independência do Poder Judiciário e a defesa
do interesse público, bem como da própria História do Direito, contribuindo para entender
a própria história do Brasil.
Na primeira metade do século XIX, com a Constituição de 1824 e com o Código de
Processo Criminal2, a esfera de atuação dos magistrados aumenta consideravelmente em
detrimento de grupos políticos que até então agiam quase de forma absoluta nas províncias.
Certamente que essas disputas entre o poder local gerariam conflitos, como é possível
notar na fala de Manuel de Sousa Martins, presidente da província do Piauí, segundo o
qual o judiciário piauiense era composto “por homens rudíssimos, presidido por juízes de
direito não letrados e igualmente ignorantes” 3.
A insatisfação quanto à influência da prática desses magistrados na organização
política do Império não se deu isoladamente na província piauiense. Referindo-se à
província de Goiás, Eliane Martins de Freitas aponta a “freqüente insatisfação por parte
dos Presidentes da Província com relação à atuação do Judiciário, são reclamações
relativas à falta de juízes letrados; à benevolência do júri; à falta de conhecimento das leis
por parte dos juízes municipais4”, o que instiga o desenvolvimento da pesquisa no intuito
1 BEVILAQUA, Clovis. História da Faculdade de Direito do Recife. – 2ª ed. – Brasília, INL, Conselho
Federal de Cultura, 1977. 2
BONAVIDES, Paulo & AMARAL, Roberto. Textos políticos da História do Brasil.3.ed. Brasília: Senado Federal, 2002.
3 PIAUÍ. APEP. Oficio da Assembléia Legislativa da Província do Piauí ao Governo da Província, deliberando sobre o numero de alunos nas aulas de Francês na cidade de Oeiras, em 12 de setembro de 1937. Registro de Correspondência da Assembléia Legislativa, com o Governo da Província, 1835-1843.
4 FREITAS, Eliane Martins de. Organização administrativa do Poder Judiciário no século XIX. OPSIS-Revista do NIESC. V. 5, 2005.
4
de analisar as ocorrências desses conflitos nos seus desdobramentos na efetivação da
prática do direito e conseqüências políticas.
O recorte temporal deste estudo contempla a primeira metade do século XIX, período
em que o Império buscava sua consolidação, utilizando-se da força do Poder Judiciário
para atingir a unificação territorial e legitimava os magistrados, a partir da Constituição e
do Código Criminal, a atribuições administrativas e políticas, até então exercidas por
outros grupos da elite.
2. Objetivos
2.1. Objetivo Geral
* Analisar a história do Poder Judiciário, na primeira metade do século XIX, sobretudo no Piauí, destacando seu processo de estruturação em um período de forte centralização administrativa, bem como sua relação com o Poder Executivo das províncias, visando a compreender como isso influenciou as alterações históricas vividas no Brasil nesse período histórico.
2.2. Objetivos Específicos
* Analisar a organização administrativa do judiciário e formação de seu corpo funcional, através de um estudo interdisciplinar entre História e Direito.
* Discutir a atuação do judiciário e sua independência em relação aos demais poderes, bem como refletir acerca dos limites do judiciário na primeira metade do século XIX.
* Investigar a relação entre o judiciário e os diversos interesses locais exercidos por lideranças políticas provinciais.
3 Metodologia
O projeto aqui apresentado objetiva investigar a história do judiciário brasileiro da
primeira metade do século XIX, especialmente no que concerne às disputas entre juízes e
presidentes de províncias e a respeito da formação acadêmica desses magistrados.
Em seu estudo, propõe-se a utilização de fontes bibliográfica elaborando-se as
análises a partir da associação destas. As fontes bibliográficas a serem utilizadas devem
compreender não somente especificamente a temática de estudo, mas obras específicas
sobre a sociedade brasileira da época, com o objetivo de perceber sua organização,
articulando-o com a realidade social, sem, contudo, prender-se exclusivamente a marcos
cronológicos delimitados pelo recorte temporal a serem utilizados pela pesquisa, como
sugere Eric Hobsbawm (1998).
5
Definiu-se como recorte temporal o período relativo aos cinqüenta primeiros anos do
século XIX, no qual o Brasil deixa de ser Colônia e busca efetivar-se como Império,
passando o Judiciário a ser grande ferramenta dos interesses imperiais.
É de grande relevância para o projeto seguir a orientação de Lopes (apud COSTA
FILHO, 2000), que sugere aos pesquisadores incorporar os saberes de outras áreas do
conhecimento e atenuar a rigidez do uso das fontes tradicionais, com a utilização de todo e
qual quer documento que guarde correspondência com o tema. Deve ser lembrado que aqui
se delineia uma proposta de trabalho, no entanto, somente ao longo da pesquisa, com as
respostas obtidas das fontes é que se avaliará a necessidade de correção de rota, pois, se
história é processo, sua pesquisa também o é.
4. Resultados ObtidosJuízes de Paz, Juízes Municipais e de Órfãos, Juízes de Direito Interino, todos leigos e rústicos, que mal assinam os seus nomes, circunscritos em si mesmos ou guiados pelos travessos e desconceituados escrivães, sem ter um advogado ao seu lado, e nem mesmo ao longe da Província, a quem possam consultar, como se há de desenvolver com acerto nas complicadas e difíceis matérias do foro judicial, que demandam conhecimentos privativos, sérios e circunspetos estudos?5.
Durante o período colonial foi implantado no Brasil o direito português. Esta
modalidade de direito estabelecida na colônia era, tal como na metrópole, uma combinação
do direito consuetudinário, do direito romano e do direito canônico. A aplicação do sistema
jurídico na colônia sofria pequenas adaptações às condições locais, quando necessário. No
entanto, por ser um modelo importado de um país cuja estrutura sócio-cultural divergia
drasticamente, tornava-se muitas vezes ineficiente.
As primeiras leis feitas especificamente para o Brasil foram os regimentos dos
governadores gerais (dentre os quais o mais antigo data de 17 de dezembro de 1548, que
estabelecia as atribuições do governador-geral Tomé de Sousa), dos ouvidores gerais e dos
provedores, formando o início de uma estrutura administrativa própria da colônia.
5 PIAUÍ. APEP. Fala que recitou o Excelentíssimo Senhor Visconde da Parnaíba, Presidente desta Província
do Piauí, na ocasião da abertura da Assembléia Provincial em 7 de julho de 1843. Registro de Correspondência da Assembléia Legislativa, com o Governo da Província. 1835-1843.
6
Eram legitimados a aplicar a ordem jurídica os juízes ordinários, membros das
Câmaras Municipais, que não tinham formação jurídica e, como requisito, deveriam
obrigatoriamente residir nas comarcas em que possuíam jurisdição; e os juízes de fora,
magistrados nomeados pela Coroa; os ouvidores de comarcas e os tribunais da Relação6,
que existia na Bahia e, posteriormente, no Rio de Janeiro e no Maranhão. A respeito da
atuação destes tribunais de Relação e da conduta dos juízes em suas esferas jurisdicionais,
o desembargador do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, Antonio Pessoa Cardoso,
destaca que:
um historiador da época comenta que ‘com mais Relação, porém, ou menos Relação, na Bahia ou no Rio de Janeiro, a justiça continua irregular e falha, pessoal e feroz, cera que se amolda à vontade pessoal do juiz, que quando não é arbitrária é ignorante e, quando não é ignorante é venal’ (Cardoso, 2008)
A denúncia quanto à parcialidade dos juízes está presente em muitos textos da época.
Nota-se na fala de pessoa Cardoso, os ecos da insatisfação da população do período diante
dos vícios incrustados no sistema judiciário colonial, uma vez que “ao fraco valia sempre
suportar os agravos dos portentosos, perdoando, esquecendo-os a articular qualquer
protesto” (Cardoso, 2008). É tentador atribuir a culpa das irregularidades e falhas aos
juízes ordinários, leigos, sem instrução jurídica, cujo conhecimento das leis se dava
exclusivamente por meio da prática da função jurisdicional adquirida.
Todavia, os tribunais de Relação eram compostos também por juízes de fora,
magistrados e, portanto, detentores do saber jurídico ministrado nos cursos de ciências
jurídicas. Se, de acordo com as críticas da época, os juízes ordinários não estavam aptos a
resolver as celeumas geradas em sua jurisdição, tomando atitudes grosseiras para com o
povo que deveriam representar, pode-se inferir que os juízes de fora, apesar de sua
formação acadêmica, em muitos casos, tendiam a não resolver satisfatoriamente todas as
querelas provenientes da realidade da Colônia, com ênfase àquelas decorrentes dos
arbítrios dos juízes ordinários.
Os magistrados coloniais formavam um grupo de burocratas elitizados, fiéis
servidores reais, movidos por generosas promoções e interesses pessoais. O cargo
representava prestígio, dinheiro e status. A magistratura não era apenas um ramo da
6 Tribunais de segunda instância, responsáveis pela fiscalização dos demais magistrados da colônia.
7
burocracia, mas tornava-se um setor social almejado pelas famílias abastadas. Era
sinônimo de distinção e abismo entre os grupos sociais.
Nesse cenário institucional, forjado sob a influência da matriz lusitana, é que o
Brasil torna-se politicamente independente em 1822. De súditos da Coroa portuguesa, os
brasileiros passam a ser cidadãos do novo Império. É mister ressaltar que um jugo de mais
de três séculos não se dissolve tão repentinamente, principalmente quando a nova nação
independente traz como imperador um membro da família real da ex-metrópole. Além
disso, como ressalta Bloch (1976), as estruturas políticas e sociais estão condicionadas
pelos laços da mentalidade, ou seja, novas conjunturas erguem-se sobre os alicerces de
suas predecessoras sem destruí-las por completo, mas sim, adaptando-as conforme novos
interesses. Daí a necessidade de estruturar fundamentos jurídicos ao novo Estado nacional
que emergia.
Em decorrência de tais transformações e adaptações, do ponto de vista da Ciência
Política, o Estado é visto como uma sociedade política juridicamente organizada. Era
necessário, após a declaração de independência, providenciar uma Constituição que
estruturasse o império, pois para Alexandre de Moraes, a
Constituição deve ser entendida como a lei fundamental e suprema de um Estado, que contém normas referentes à estruturação do Estado, à formação dos poderes públicos, forma de governo e aquisição do poder de governar, distribuição de competências, direitos, garantias e deveres dos cidadãos (MORAES, 2003).
Com o intuito de estruturar e regulamentar a formação do Estado brasileiro foi
elaborada a Constituição de 1824. O Brasil recebeu forte influência dos ideais iluministas,
que se traduziram no mundo jurídico pela idéia de uma Constituição que resguardasse os
direitos civis e políticos e organizasse o estado com base na lei. Predominou nesse
momento o constitucionalismo francês, embora houvesse também influências da
Constituição norte-americana.
Quanto à repartição dos poderes, a Constituição do Império merece destaque pela
implantação do Poder Moderador. O quarto poder seria exercido pela figura do imperador,
cujas atribuições seriam velar “sobre a manutenção da independência, pelo equilíbrio e
pela harmonia7” dos demais poderes. De acordo com o texto constitucional, estabeleceu-se
7 Constituição Política do Império.
8
que o Executivo competia ao imperador e ao conjunto de ministros por ele nomeados. O
Legislativo era representado pela Assembléia Geral, formada pela Câmara de Deputados e
pelo Senado, nomeados por D. Pedro I. O Poder Judiciário era formado pelo Supremo
Tribunal de Justiça, com magistrados escolhidos pelo imperador. Quando o monarca não
era o representante direto de um dos poderes, fazia-se representar por seus nomeados.
Após a outorga da primeira constituição brasileira, em 1824, procurou-se ordenar a
vida jurídica brasileira em função da nova realidade política e jurídica. Iniciava então a
busca por um ordenamento penal e processual penal próprio. A consciência nacional,
inspirada pelas dificuldades sociais e econômicas e ainda por ideais humanistas
revolucionários vindos da Europa e da América do Norte, estava em livre trâmite nos
meios intelectuais e de políticos no Brasil.
Como forma de buscar a homogeneidade social, buscava-se nos primeiros anos de
Império, uma estrutura institucional que articulasse a unidade e a consolidação nacional.
Nesse sentido, a magistratura preenchia as aspirações do governo. No dizer de José Murilo
de Carvalho
Partimos da suposição que o emprego público seria a ocupação que mais favorecia uma orientação estatista e que melhor treinava para as tarefas de construção do Estado na fase inicial de acumulação do poder. A suposição era particularmente válida em se tratando dos magistrados que apresentavam a mais perfeita combinação de elementos intelectuais, ideológicos e práticos favoráveis ao estatismo (2003, p.99).
Os artigos referentes ao poder judiciário da carta constitucional de 1824 estão
contidos no Título IV – Do Poder Judicial, mais especificamente do artigo 151 ao 164. As
bases jurídicas e institucionais do país são alteradas pelas inovações constitucionais que,
em sua maioria, favorecem a descentralização do poder e o fortalecimento das províncias.
Quanto às inovações trazidas pela Lei Maior de 1824, observa-se a abolição, para os
considerados cidadãos, de penas de açoites, torturas, marcas de ferro quente ou qualquer
pena cruel. Aos escravos, entretanto, a regra geral é que, se não fosse cominada a pena de
morte, seriam comutadas penas como açoites ou grilhões.
Como estipulado em disposição constitucional que previa a elaboração de um código
que disciplinasse questões penais, em 29 de novembro de 1830 é aprovado o Código do
Processo Criminal, que altera a organização do Poder Judiciário. A figura do juiz ordinário,
de acordo com os novos dispositivos legais, é substituída pela do juiz de paz,
9
permanecendo o critério de eleição de juízes leigos no âmbito municipal. Os juízes de paz,
eleitos diretamente sob o controle dos senhores locais, passam a acumular amplos poderes
nas localidades sob sua jurisdição.
Nesse sentido, insta observar o quão importantes eram essas eleições para juízes de
paz, também chamados juízes municipais, posto que galgar um cargo de magistrado
implicava também status, poder e uma série de vantagens políticas e administrativas em
âmbito local, como bem explana Graham:
Vencer as eleições era também a melhor maneira de garantir ou conservar cargos. Um juiz municipal, “um dos chefes mais influentes”, compreendeu isso claramente, desejando vencer uma eleição porque, como dizia, “uma eleição é o melhor meio para alcançar uma vara de Direito.
Martins Pena (1997), dramaturgo contemporâneo à aprovação e vigência do Código
do Processo Criminal, infligiu sua visão crítica e bem humorada a respeito da atuação das
autoridades públicas na comédia de costumes O juiz de paz na roça, de 1838. Na obra, o
juiz de paz, valendo-se de sua posição de destaque e da inocência da população roceira,
comete inúmeros abusos de poder durante a resolução dos casos. Apesar da pincelada de
comicidade, é interessante ressaltar que por ser uma comédia de costumes, Martins Pena
utilizou a realidade da aplicação da justiça nas províncias mais remotas e, portanto, mais
distantes da fiscalização do Império para desenvolver o enredo de sua obra. No trecho a
seguir, Martins Pena retrata, em certa medida, o cotidiano do gerenciamento da carta
constitucional:
Manuel André: Mas, Sr. Juiz, ele também está ocupado com uma plantação.Juiz: Você replica? Olha que o mando pra cadeia.Manuel André: Vossa Senhoria não pode prender-me à toa; a Constituição não manda.Juiz: A Constituição!...Está bem!...Eu, o juiz de paz, hei por bem derrogar a Constituição! Sr. escrivão, tome termo que a Constituição está derrogada, e mande prender-me este homem (1997, p.11).
As críticas tecidas ao Judiciário da época apontam um corpo de magistrados
detentores de amplos poderes no âmbito burocrático. No entanto, em função de seu caráter
de destaque na hierarquia do Estado, eram responsáveis por cometer deslizes durante o
10
exercício jurisdicional. A literatura da época põe em evidência tais práticas, permitindo a
íntima relação entre História, Literatura e o Direito.
No trecho supracitado da obra de Martins Pena, o juiz de paz, mesmo em face de
uma alegação de prática inconstitucional, considera-se em posição tão superior que ignora
os preceitos da Constituição vigente. Logicamente que a falta de conhecimento da lei por
parte do povo corroborava no sentido de que as decisões judiciais fossem pouco
contestadas.
Há que se observar que os juízes gozavam de uma vitaliciedade e não eram
beneficiados pelo princípio hoje aceito da inamovibilidade, o que pode ser observado no
artigo 153, da Constituição de 1824, “Os juízes de direito serão perpétuos, o que todavia
se não entende que não possam ser mudados de uns para outros lugares pelo tempo, e
maneira, que a lei determinar”8. Isso talvez explique muitas das críticas atribuídas a
desmandos desses magistrados. Todavia, isso não significa ausência de controle do Estado
em relação à sua atuação.
A Constituição do Império não foi omissa quanto à orientação da atividade dos
magistrados, chegando inclusive a prever punições e suspensões em casos de desvios da
conduta profissional adequada, restringindo ou pretendendo restringir arbitrariedades neste
campo.
Art.154 O Imperador poderá suspendê-los por queixas contra eles feitas, precedendo audiência dos mesmos juízes, informação necessária, e ouvido o Conselho de Estado. Os papéis, que lhes são concernentes, serão remetidos à relação do respectivo distrito, para proceder na forma da lei.(...)Art. 156. Todos os juízes de direito e os oficiais de justiça são responsáveis pelos abusos de poder e prevaricações que cometerem no exercício de seus empregos; esta responsabilidade se fará efetiva por lei regulamentar.9
Um dos fatores que dificultava a aplicação desses artigos era a distância entre as
províncias e os respectivos tribunais a que eram subordinadas. Desde o fim do período
colonial havia quatro Tribunais de Relação que visavam à fiscalização da atividade
jurisdicional. De acordo com o texto constitucional, para julgar as causas em segunda e
última instância, haveria nas províncias do império as “relações que fossem necessárias
8 Constituição Política do Império.9 Constituição Política do Império do Brasil. 1824.
11
para a comodidade dos povos”. Acontece que durante o Primeiro Império, nenhum outro
Tribunal de Relação foi criado, o que dificultava a atividade de fiscalização, tendo em vista
a quantidade de províncias sob a jurisdição de cada Relação e a distância entre cada uma
delas.
Nesse sentido, tinha-se que o Tribunal do Rio de Janeiro abrangia as províncias do
Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, Goiás
e Mato Grosso. O Tribunal de Salvador tinha sob sua jurisdição Bahia e Sergipe. As
províncias do Maranhão, Piauí, Amazonas e Pará eram subordinadas ao Tribunal de São
Luís do Maranhão. Por fim, o Tribunal de Recife compreendia as províncias de
Pernambuco, Alagoas, Ceará e Rio Grande do Norte.
A província do Piauí teve sua primeira comarca criada por ordem da Carta-régia de
18 de março de 1722. Até então os julgamentos da população piauiense eram feitos em
Pernambuco. O povoado da Mocha, que futuramente se tornaria a cidade Oeiras, primeira
capital do Piauí, tornou-se sede da comarca. No ano seguinte à Carta-régia, foi designado o
primeiro magistrado do Piauí, Vicente Leite Ripado.
Enquanto na Bahia, desde 1609, havia um Tribunal de Relação, somente no ano de
1773, mais se um século depois, a província do Piauí ganha seu primeiro magistrado. O
desenvolvimento da estrutura judicial no Brasil Colônia não se deu de maneira uniforme,
não se pode, portanto, esperar que os magistrados da Bahia, com uma maior tradição
jurisdicional, atuassem do mesmo modo que os juízes do Piauí, cuja história da
magistratura dava ainda seus primeiros passos para consolidar-se.
Com a Independência do Brasil, é válido destacar que a magistratura no Piauí, assim
como nas demais províncias, não foi unânime quanto à aceitação da emancipação política.
Segundo Antonio Carlos Wolkmer,
a Independência do país não encontrou adesão integral da antiga magistratura, pois enquanto alguns apoiavam a ruptura, muitos outros permaneceram fiéis à monarquia lusitana [...]não é fácil demarcar o número de juízes que, por lealdade, abandonaram o país e regressaram a Portugal, bem como os que, por conveniência, comprometeram-se com as novas condições políticas que se implantaram.
A província do Piauí, em especial, reflete essa dúvida quanto à adesão ao novo
regime. Por sua localização territorial, fazia parte do plano engendrado por Portugal para
manter o norte da ex-colônia sob seu domínio. A população piauiense ficou dividida
12
quanto a apoiar a emancipação, com sua nova forma de governo; ou manter-se fiel à
metrópole, sob pena de retaliações.
Na disputa contra a intervenção metropolitana, a magistratura ligada ao Império teve
desempenho importante. Eliane Martins de Freitas defende a tese de “que a estruturação
das comarcas no Norte tem a função de fazer sentir a presença do Estado e garantir a
defesa de seus interesses, bem como a unidade territorial” (2005, p.127).
Manuel de Sousa Martins teve papel preponderante na luta para tornar a Província do
Piauí livre das investidas portuguesas. Foi Presidente da Junta Governativa Piauiense de
1823 a 1824 e presidente da província em três oportunidades posteriores: de 1824 a 1828;
em breve período em 1829 e por fim, de 1831 a 1843. Neste último governo, Martins teceu
severas críticas ao Judiciário piauiense do século XIX, como na ocasião de instalação da
Assembléia Legislativa do Piauí em 1834, dizendo que
Pelo que toca a Administração da Justiça, dessa mola principal da tranqüilidade publica, tenho a revelar-vos que se acha inteiramente montada sobre o seu grande eixo Constitucional em conformidade do novo Código, e que como não é rigorosa, e ativa sua marcha, poucos são os réus que chegam a ser julgados no competente Tribunal do Júri, e que poucos são os Processos que não envolvam defeitos e nulidades que induzem regularmente a isentar os malvados das penas, que merecem pelas suas execrações [...]10
Para Manuel de Sousa Martins, à época Barão da Parnaíba, os vícios de
procedimento da magistratura piauiense eram responsáveis pela inaplicabilidade do
“castigo e severidade legal” previstos na Constituição e no código Criminal. Quando não
omissos, os magistrados incorriam em erros que culminariam em processos desprovidos
das formalidades prescritas pela lei e, portanto, ineficazes à justa sanção dos delitos
cometidos.
Segundo ele, era impossível garantir a tranqüilidade de tão “vasta província, aberta
por todos os lados” sem um comportamento mais enérgico por parte da Justiça. Desde
1833, a Província do Piauí passou a ter quatro comarcas: Oeiras, Parnaíba, Marvão e
Parnaguá.
Prossegue o pronunciamento atribuindo os possíveis motivos das eventuais
perturbações à ordem provincial, pois seriam 10 PIAUÍ. APEP. Fala, que dirigiu a Assembléia Legislativa no ato de sua instalação, o Presidente da
Província no dia 5 de maio de 1834. Registro de Correspondência da Assembléia Legislativa, com o Governo da Província, 1835-1843.
13
males estes provenientes da absoluta falta de Cadeias e Casas de Correção em todos os Municípios e Distritos do Piauí, onde possam ser seguros, e da pouca inteligência dos Magistrados leigos, que privados de consultarem pessoas versadas em as matérias do Foro, se deixam levar pelas insinuações dos seus próprios Escrivães, que de certo não acreditam muito o contencioso.11
Pelo exposto no trecho citado, a Província do Piauí era desprovida de
estabelecimentos de detenções destinadas ao abrigo de infratores das leis vigentes. Ainda
que o Judiciário chegasse efetivamente a punir os praticantes dos delitos, conclui-se que
grande seria a demanda de réus capturados que evadiriam para outras localidades tendo em
vista a falta de infra-estrutura necessária para recolhê-los com a devida segurança.
Quanto à instrução dos juízes piauienses, tem-se que em 1834 a magistratura era
composta exclusivamente por juízes leigos, característica comum aos juízes de paz de todo
o Império. Devido à falta de conhecimento específico das leis, cometiam deslizes no
exercício da prática jurídica. A ignorância quanto aos procedimentos adequados, levavam
muitos desses juízes a se guiarem por métodos imprecisos. Por tal declaração do Barão da
Parnaíba depreende-se que até aquela data os juízes letrados, com formação acadêmica,
ainda não exerciam atividade jurisdicional no Piauí.
No rol de comentários tecidos à magistratura e ao sistema judiciário da província do
Piauí por Manuel de Sousa Martins, são recorrentes suas críticas quanto à falta de
advogados nas extensões provinciais, ocasionando maior morosidade ao ritmo da Justiça.
No dizer do Visconde da Parnaíba, argumentando mais uma vez sobre o excesso de
atribuições que deixavam os juízes abarrotados de processos estagnados:
Por desgraça nossa, em toda a Província, não há um advogado que os possa guiar no confuso labirinto das controvérsias judiciais. [...] Deveis ponderar, senhores, que um só magistrado hoje não pode arrastar os encargos que lhe são atribuídos12.
O discurso do Visconde da Parnaíba, datado do ano 1837, evidencia a ausência de
profissionais habilitados a exercer a advocacia na província. Diante de tal comentário,
percebe-se que passados exatos dez anos desde a fundação das primeiras faculdades de 11 Será mantida a escrita de época dos documentos consultados.12 PAUÍ. APEP. Fala com que o Excelentíssimo Presidente da Província abriu a Sessão Ordinária da
Assembléia Provincial em 13 de julho de 1837. Registro de Correspondência da Assembléia Legislativa, com o Governo da Província, 1835-1843.
14
Direito em São Paulo e em Recife, pelo menos uma província do Império estava
desprovida da atividade deste profissional do Direito.
Em relação ao ensino acadêmico de matérias jurídicas, deve-se levar em conta que
até a criação das faculdades de Direito no ano de 1827 (tardiamente se comparado com as
primeiras universidades do México e do Peru datadas de 1551), os advogados e bacharéis
brasileiros recebiam formação prioritariamente na Universidade de Coimbra, na qual a
disciplina Cânones e Leis sempre apresentou o maior número de matrículas ofertadas.
Fora das classes privilegiadas, poucos conseguem diploma de doutor. Por
conseguinte, poucos membros pertencentes a outras classes alcançam os degraus mais altos
da carreira política. A formação mais freqüente, decerto também por influência das
tradições ibéricas, é a jurídica.
Partindo do fato de que salvo raras exceções apenas os estudantes abastados das
capitanias e províncias poderiam custear os gastos oriundos de uma educação superior na
Europa, tem-se como conseqüência que isso contribuiu para uma unificação ideológica
entre os representantes da elite imperial, como bem explana José Murilo de Carvalho:
A concentração temática e geográfica promovia contatos pessoais entre estudantes das várias capitanias e províncias e incutia neles uma ideologia homogênea dentro do estrito controle a que as escolas superiores eram submetidas pelos governos tanto de Portugal como do Brasil (2003, p. 65).
À época da independência, tal unificação ideológica serviu como propagadora dos
ideais separatistas, posto que em contato com pensamentos liberais na Europa, essa elite
tratou de difundi-los na Colônia, adaptando-os aos seus interesses.
Quanto à participação dos estudantes piauienses nos quadros discentes de Coimbra,
Carvalho aponta que entre os anos de 1772 a 1872 há registros de que apenas 0,08% dos
alunos eram oriundos do Piauí, o que correspondia a uma parcela de 2,84% da população.
Número expressivo, se considerada a distância e as dificuldades de acesso ao ensino
primário e secundário na província. Numa abordagem sobre a Instrução Pública do Piauí,
Marcelo de Sousa Neto destaca que:
Vale ressaltar que em 1824 os gastos com a Instrução Pública no Piauí foram irrisórios, considerando ainda que todas as atenções se voltavam para as Lutas de Independência e seu desenrolar na Província. Existiam, então, apenas três escolas de Primeiras Letras, instaladas nas cidades de Oeiras, Campo Maior e Parnaíba, e duas Cadeiras Secundárias de latim, em Oeiras. Assim, a Instrução Pública no Piauí
15
continuava esbarrando em dois entraves já citados: falta de recursos financeiros e de pessoas qualificadas para o magistério.
Pelo exposto por Sousa, os obstáculos ao alcance de uma formação superior se
davam não só pela inexistência de universidades em solo pátrio, como também pela difícil
tarefa de se conseguir formação básica que tornasse os estudantes piauienses aptos a
pleitear vaga em Coimbra.
Os dados referentes às matrículas de piauienses na universidade portuguesa suscitam
o questionamento a respeito do que acontecia com os bacharéis piauienses formados em
Coimbra. Pelo já exposto por esta pesquisa, no que concerne à magistratura havia a figura
do juiz de fora, magistrado nomeado pela Coroa, com formação acadêmica.
Nesse sentido, constata-se que o efetivo de alunos egressos de Coimbra dificilmente
passava a exercer prática jurisdicional em terras piauienses. Como exemplo dessa
tendência de evasão de bacharéis para outras províncias pode-se citar Ovídio Saraiva de
Carvalho e Silva, nascido na Vila de São João da Parnaíba. Após formação jurídica em
Portugal, foi nomeado juiz de fora em Mariana, em Minas Gerais (1812), posteriormente
exerceu o cargo de segundo juiz de fora em Nossa Senhora do Desterro, em Santa Catarina
(1816 a 1819).
Havia ainda os profissionais que exerciam a carreira jurídica com vistas a ingressar
na política, algo que não necessariamente se dava em terra natal, posto que a visibilidade
política fosse mais eficaz nas terras com maior tradicional jurisdicional. Evidenciam-se
também os advogados que exerciam simultaneamente a carreira de jornalista.
A esse respeito, discutindo a atuação dos jornalistas piauienses no século XIX,
Lavina Ribeiro Prado descreve que a “maioria dos jornalistas do período imperial (os quais
posteriormente seguem carreiras políticas) e dos políticos que se lançam no mundo do
jornalismo são formados em direito”. Mais um relato de que apesar de o Piauí não contar
com advogados em seu território, havia um razoável número de piauienses exercendo a
advocacia em outras províncias.
Prado prossegue sua explanação a respeito do efetivo de advogados-jornalistas
piauienses do século XIX e a utilização da profissão como vitrine política:
No jornalismo piauiense [...] exercem advocacia e têm o jornalismo como fonte secundária de sustentação, assumindo-o como profissão paralela a de advogado, encontrando-se, assim, aptos tanto a concorrerem a posições junto à burocracia estatal e ao Parlamento
16
quanto a opinarem sobre suas deliberações, seja a partir do instituto partidário ou do jornalístico (Prado, 2009).
Nesse sentido, pode-se observar que os profissionais que exerciam a advocacia e o
jornalismo ansiavam por conseguir prestígio político tanto por deter o conhecimento
técnico das leis, quanto pela legitimidade conferida a eles para propagar as notícias que,
dependendo dos interesses políticos e econômicos dos grupos a que essas notícias
pertenciam, poderiam render-lhes vultosa evidência.
Em relação ao ensino de Ciências Jurídicas em território brasileiro, têm-se as duas
primeiras faculdades do Brasil Império, criadas por meio da Carta de lei de 11 de agosto de
1827, cujo teor instituía taxativamente a implantação de cursos jurídicos nas cidades de
São Paulo, com instalação em 01 de maio de 1828 e de Olinda, instalado em 15 de maio do
mesmo ano.
Pela proximidade com a província do Piauí, a maioria dos estudantes que daqui
migraram em busca de estudos acadêmicos destinava-se a Faculdade de Olinda. A respeito
da importância dessa faculdade para a propagação do ensino jurídico, Bevilqua reflete que
a instituição:
Enviou, aos recantos mais distantes do país, as idéias e doutrinas, que assimilou ou produziu, sendo assim fator poderoso do levantamento do nível intelectual do país. Contribuiu, consideravelmente, para dar ao povo brasileiro a consciência da sua unidade, porque não somente estabeleceu vínculos espirituais entre as populações dispersas.
Reproduz-se em Olinda/Recife o que durante muito tempo se configurou em
Coimbra: por ser destino de formação acadêmica de muitos jovens destituídos de ensino
superior em seu próprio território, tornou-se centro de homogeneidade ideológica e de
propagação de tendências culturais, sociais e políticas.
Em consonância com o que explicita Clovis Bevilaqua, entre os piauienses que
ocuparam as cadeiras da Faculdade de Direito de Olinda vindo a se formar juristas, pode-se
listar Francisco de Sousa Martins (em 1832), Casimiro José de Morais Sarmento, Marcos
Antônio de Macedo (ambos em 1836), Antonio Borges Leal Castelo Branco (em 1838). No
ano seguinte, Antonio Francisco de Sales e Joaquim Augusto de Holanda Costa Freire.
O rol de filhos do Piauí pertencentes ao corpo discente da Faculdade de Olinda e
posteriormente da Faculdade de Recife é imenso, listá-los na íntegra não é objetivo desta
pesquisa, o que se pretende a partir de agora é seguir o rastro da atuação desses nomes em
17
território nacional, principalmente no que concerne a pratica jurisdicional em território
piauiense nos anos referentes ao recorte de 1835 a 1843, ampliando-o, caso os registros
apontem para fatos que suscitem explanação mais específica.
É mister enfatizar que os juízes de paz, que ganharam amplos poderes com as
reformas constitucionais, não eram muito bem quistos pelos políticos mais conservadores,
que viam na autonomia da magistratura e na descentralização do poder uma ameaça ao
controle social do vasto Império. Portanto, é possível que o Barão da Parnaíba, criticasse o
Judiciário não apenas pelas imperícias cometidas durante a práxis jurídica, mas porque a
magistratura poderia representar perigo ao desenvolvimento de seu governo,
marcadamente fiel às aspirações imperiais.
No decorrer dos anos, o anseio do Barão da Parnaíba pela resolução dos casos de
desordem à tranqüilidade pública da província continua a ir de encontro à atividade da
magistratura. A esse respeito alertava os deputados provinciais
Acerca da Administração da Justiça continua a ser irregular e pouco profícua, como vos anunciei no meu Relatório passado por existir ainda as mesmas coisas que produzem tais defeitos: o Júri, esse grande conselho, donde depende a sorte, e o destino dos Réus, que parece dever sustentar no equilíbrio reto o fiel da balança para seus julgamentos, por isso mesmo que é composto por homens rudíssimos presididos por Juízes de Direito não Letrados, e igualmente ignorantes, calcados pela maior parte das vezes as precisas circunstancias das Leis, deixando impunes os mais execrandos criminosos, que na força de todas as luzes ousaram cometer os seus delitos em agravo das mesmas Leis da Razão, e da Natureza13.
O relato contido na mensagem do presidente da província à Assembléia deixa claro
sua insatisfação quanto à inércia do Poder Judiciário, composto por juízes e pelo tribunal
do júri, diante das resoluções das contendas. E mais uma vez evidencia a falta de formação
de ensino superior por parte dos magistrados piauienses, que aliada à ignorância dos
jurados fomentava a impunidade nos territórios da província.
Essa exígua formação não se restringia ao Piauí, pois no Brasil da época era muito
reduzida a escolaridade formal, sobretudo em nível superior, o que credencia José Murilo
de Carvalho a afirmar que o “Brasil era uma ilha de letrados em um mar de analfabetos”
13 PIAUÍ. APEP. Fala com que o Excelentíssimo Senhor Presidente da Província abriu a Sessão Ordinária da
Assembléia Provincial de 1836. Registro de Correspondência da Assembléia Legislativa, com o Governo da Província, 1835-1843.
18
(2003, p.65). No campo jurídico, a maioria abastada seguia para Portugal, para obter
formação em Coimbra ou dirigia-se a Pernambuco ou a São Paulo, que abrigavam as
únicas faculdades de Direito do país.
As reclamações do Barão da Parnaíba não eram as únicas entre os presidentes das
províncias. Ao falar da estrutura judiciária de Goiás no século XIX, Eliane Martins de
Freitas aponta:
No que tange propriamente às questões relativas à Justiça, a documentação apresenta uma freqüente insatisfação por parte dos Presidentes da Província com relação à atuação do Judiciário, são reclamações relativas à falta de juízes letrados; à benevolência do júri; à falta de conhecimento das leis por parte dos juízes municipais; à polícia desaparelhada e em número insuficiente; a pouca ou nenhuma segurança das cadeias; dentre outros. (2005, p.128)
Sob o ponto de vista dos presidentes das províncias do Piauí e de Goiás, como
conseqüência direta dessas falhas no sistema judiciário, é possível elencar um aumento no
índice de criminalidade, favorecido em grande parte pela vastidão territorial, uma vez que
a vigilância permanente e integral das fronteiras era uma tarefa impossível, o que
proporcionava rotas de entrada e evasão dos possíveis desordeiros.
As críticas tecidas pelos governadores de províncias são dirigidas principalmente à
formação leiga dos magistrados. Havia previsão legal para o exercício jurisdicional pelos
juízes de paz, que eram eleitos pela população local. A lei de 15 de outubro de 1827
estabeleceu a criação dos juizados de paz, cujas atribuições eram judiciais, políticas e
administrativas. No dizer de Evandro de Andrade Vellasco
O juiz de paz, eleito, acumulava amplos poderes, até então distribuídos por diferentes autoridades (juízes ordinários, almotacés, juízes de vintena) ou reservados aos juízes letrados (tais como julgamentos de pequenas contendas, feitura do corpo de delito, formação de culpa, prisão, etc.). (2003, p. 4)
Importante observar que a atividade do juiz de paz abrangia áreas de atuação
anteriormente exercidas por cargos já arraigados na burocracia colonial e do recente
Império, portanto, o que suscitou descontentamentos, principalmente das partes que foram
preteridas face à nova organização judiciária proposta pela lei de criação dos juizados de
paz.
Por fim, em meio aos questionamentos suscitados ao longo desta pesquisa, pode-se
concluir que a organização da estrutura administrativa do Judiciário durante o Brasil, no
19
século XIX, esteve articulada à defesa da unidade territorial, ao monopólio político e,
sobretudo, para incutir na população a idéia de um Estado forte cujo poder era perceptível
através da atuação dos juízes. Tal articulação deve ser compreendida, a nosso ver, dentro
do processo de construção do Estado imperial e das exigências desse processo de expansão
da capacidade reguladora do Estado por meio da ação dos mais variados agentes
administrativos.
5. Considerações Finais
A crítica quanto à formação leiga dos magistrados e seus desvios ao longo da
atividade jurisdicional encontram respaldo uma vez que estes julgadores eram legitimados
por uma legislação que permitia cargos de juízes não versados nas Ciências Jurídicas,
sobretudo pela dificuldade de acesso ao ensino formal e universitário, ainda mais quando
se considera como opções a Universidade de Coimbra e, só tardiamente, a criação de
Faculdades de Direito no Brasil
No entanto, a constância e homogeneidade dessas críticas, tecidas em sua maioria
pelos presidentes das Províncias também encontram arrimo numa disputa pelo poder
interno, uma vez que esses magistrados faziam parte da elite política local, assim como os
presidentes, o que, ocasionalmente gerava atritos quando os interesses destes colidiam com
as atividades daqueles. É também o entendimento de Carvalho (2003, p. 138) ao citar que
“a tarefa do juiz era importante para o controle da mão-de-obra e para a competição com
fazendeiros rivais. Ser capaz de oprimir ou proteger os próprios trabalhadores ou de
perseguir os trabalhadores dos rivais, fazendo uso da política, era um trunfo importante na
luta econômica”.
A presente pesquisa, essencialmente bibliográfica, conseguiu também catalogar
alguns documentos inéditos nos estudos acerca do Judiciário no período imperial. Foram
feitos estudos bibliográficos de obras de referência nacionais do funcionamento do
judiciário no recorte contemplado pela pesquisa, além de ter encontrado preciosas fontes,
que ainda necessitam de mais análises uma vez que nenhuma pesquisa basta a si mesma
nem jamais encerra o leque de possibilidades de se estudar um assunto. Para tanto, faz-se
um convite a todos que queiram enveredar por este recorte histórico e abordar a temática
da estruturação do Judiciário brasileiro.
6. Referências Bibliográficas
20
ARAÚJO, Dinavan Fernandes. Poder Judiciário do Piauí: Tribunal de Justiça do Estado do Piauí. Teresina. Invista Publicações & Editora Ltda., 2008.
BEVILAQUA, Clovis. História da Faculdade de Direito do Recife. – 2ª ed. – Brasília, INL, Conselho Federal de Cultura, 1977.
BLOCH. Marc. Introdução à história. 3. ed. Rio de Janeiro: Publicações Europa-América, 1976.
BONAVIDES, Paulo & AMARAL, Roberto. Textos políticos da História do Brasil.3.ed. Brasília: Senado Federal, 2002.
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2003.
COSTA FILHO, Alcebíades. Escola do Sertão. Teresina. Fundação Cultural Monsenhor Chaves.2000.
DOLHNIKOFF, Mirian. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX. – São Paulo: Globo, 2005.
FREITAS, Eliane Martins de. Organização administrativa do Poder Judiciário no século XIX.
OPSIS-Revista do NIESC. V. 5, 2005.
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo. Companhia das Letras. 1998.
HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes. 2001.
JUSTO, Antônio dos Santos. O direito brasileiro: raízes históricas. Revista Brasileira de Direito Comparado.
KOERNER, Andrei. Punição, disciplina e pensamento penal no Brasil do século XIX. Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 35, jul-set 2001.
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 7 ed. São Paulo: LTr, 2009
MATOS, Gregório de. Crônica do Viver Baiano Seiscentista. Letrados. Disponível em: <http:www.cce.ufsc.br> acesso em: 02 maio 2008.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
PENA, Martins. O juiz de paz na roça. São Paulo: Publifolha, 1997.
21
PIAUÍ, APEP. Fala que dirigiu a Assembléia Legislativa no ato de sua instalação, o Presidente da Província no dia 5 de maio de 1834. Registro de correspondência da Assembléia Legislativa, com o Governo da Província, 1835-1843.
PIAUÍ. APEP. Fala que o Excelentíssimo Senhor Presidente desta Província abriu a sessão ordinária Assembléia Provincial em 13 de julho de 1837. Registro de Correspondência da Assembléia Legislativa, com o Governo da Província, 1835-1843.
PIAUÍ. APEP. Fala que recitou o Excelentíssimo Senhor Visconde da Parnaíba, Presidente desta Província do Piauí, na ocasião da abertura da Assembléia Provincial em 7 de julho de 1843. Registro de Correspondência da Assembléia Legislativa, com o Governo da Província. 1835-1843.
PIAUÍ. APEP. Fala, que recitou o Excelentíssimo Senhor Barão da Parnaíba, Presidente da Província do Piauí, na ocasião da abertura da Assembléia Legislativa Provincial, no 9° de julho do corrente ano de 1838. Registro de Correspondência da Assembléia Legislativa, com o Governo da Província, 1835-1843.
PIAUÍ. APEP. Oficio da Assembléia Legislativa da Província do Piauí ao Governo da Província, deliberando sobre o numero de alunos nas aulas de Francês na cidade de Oeiras, em 12 de setembro de 1937. Registro de Correspondência da Assembléia Legislativa, com o Governo da Província, 1835-1843.
SILVA, Wellington Barbosa da. História: cultura e sentimento. Outras Histórias do Brasil. Org. Antonio Torres Montenegro et al. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2008.
WOLKMER, Antonio Carlos. A magistratura brasileira no século XIX. Disponível em: <http:www.buscalegis.ufsc.br> acesso em 03 mar. 2008.