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Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do SulUNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do ParanáCascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751

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LINGUAGEM, IDENTIDADE E SUBJETIVIDADE NO ESTUDO DE CASO DOSUJEITO AFÁSICO RG

Iva Ribeiro COTA1 Nirvana Ferraz Santos SAMPAIO2

RESUMO: Este trabalho apresenta análises do estudo de caso do sujeito afásico RG, 34anos, e questiona: O que esse sujeito pode manifestar sobre si, sobre sua nova condição se alinguagem que é constituidora de seu ser apresenta “embaraços”? Até que ponto os

percalços pelos quais a linguagem passou podem ser superados e até onde se pode analisaresses fatos? A hipótese que orienta esta pesquisa defende que a língua oferece recursos que

possibilitam aos sujeitos afásicos a mobilização das suas dificuldades e que a linguagem, que permeia o humano, permite a utilização de sistemas alternativos de significação, e, ainda,reforça o papel das interações neste processo, valorizando a subjetividade e a identidade. Naabordagem teórico-metodológica, busca-se os princípios da Neurolinguística Discursiva e o

suporte das reflexões teóricas da Filosofia, buscando compreender a afasia de modointerpretativo por meio da análise da linguagem em funcionamento e sobre o processoenunciativo constituído, trazendo importantes subsídios para a reflexão, pois, coloca emevidência o sujeito e suas dificuldades. Os resultados indicam que no estudo de caso deafasia não se pode negar a subjetividade e a identidade, que se transluz por meio dalinguagem em funcionamento, e que a avaliação e a intervenção linguística eficazescolaboram para a análise da linguagem dos sujeitos afásicos, até mesmo quando seapresenta percalços, pois, esses percalços também são reveladores e construtores.

PALAVRAS-CHAVE: Linguagem; Identidade; Subjetividade.

ABSTRACT: This paper presents a case study analysis of the subject person RG, 34 years,and asks: what can this subject express about yourself, about your new condition if thelanguage presents "encumbrances"? Until that point the mishaps by which the language

passed can be overcome and even where you can analyze these facts? The hypothesis that guides this research argues that the language provides features that make it possible toaphasics the mobilization of their difficulties and that language, that permeates the human,allows the use of alternative systems of signification, and also strengthens the role of theinteractions in this process, valuing the subjectivity and identity. Theoretical-methodologicalapproach, the principles of Discursive Neurolinguistics and the support of theoretical

reflections of the Philosophy, seeking to understand their interpretative mode aphasiathrough the analysis of language in operation and about the enunciative process, bringingimportant subsidies to the reflection, therefore, puts in evidence the subject and theirdifficulties. The results indicate that in the case study of aphasia cannot deny subjectivity andidentity, which through the working language, and that language assessment and effectiveintervention collaborate to the analysis of language of the subjects aphasics, even when

presented mishaps, because these mishaps are also developers and constructors.

1 Graduada em Letras com Inglês e Mestranda do Programa de Pós-GraduaçãoStrictu Sensu em Linguística daUniversidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Participa do Grupo de Pesquisas e Estudos em Neurolinguística (GPEN), cadastrado no CNPq/UESB. E-mail: [email protected] Professora Doutora em Linguística pela UNICAMP, lotada no Departamento de Estudos Linguísticos eLiterários da UESB. Líder do Grupo de Pesquisas e Estudos em Neurolinguística (GPEN), cadastrado noCNPq/UESB. E-mail: [email protected].

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KEYWORDS: Language; Identity; Subjectivity.

1 Introdução

Este estudo3 baseia-se no acompanhamento longitudinal de RG, 34 anos, queapresenta, segundo diagnóstico médico, a afasia4 como sequela de um acidente vascularcerebral isquêmico (AVCi) decorrente de trombose de seio venoso.

Desde o dia 1° de julho de 2011, RG tem sido acompanhada por pesquisadores doGrupo de Pesquisa e Estudos em Neurolinguística (GPEN), no Laboratório de Pesquisa eEstudo em Neurolinguística (LAPEN), vinculado ao Programa de Pós-Graduação emLinguística, Mestrado Acadêmico em Linguística, da Universidade Estadual do Sudoeste daBahia (UESB), no Espaço de Convivência entre Afásicos e não Afásicos (ECOA), ematividades individuais e em grupo, com o intuito de avaliar o funcionamento da linguagem eintervir nas dificuldades linguísticas apresentadas em situações significativas.

As atividades individuais caracterizam-se por sessões que buscam evidenciar a formacomo o sujeito em questão lida com o funcionamento da linguagem depois do AVCi e dodiagnóstico de afasia, partindo de conversas informais, leituras, jogos, filmes, músicas,conversas ao telefone, troca de correspondências por MSN, e-mail, etc. As atividades emgrupo são realizadas de forma interativa com outros sujeitos afásicos e pesquisadores com oobjetivo de compartilhar e socializar experiências.

Com o acompanhamento longitudinal, observa-se que RG apresenta dificuldade deevocar palavras, troca de fonemas, dificuldade de leitura, de escrita e de representaçãonumérica, além de déficit na percepção acústica em conversas ao telefone. Nas atividades emgrupo, observa-se que, quando há sobreposição de fala de interlocutores, apresentadificuldade de compreensão, perda do foco e desvio do tópico conversacional.

Para entender as alterações dos processos linguísticos que cercam este estudo de caso,considera-se a linguagem como um fenômeno social, cultural, próprio da vida humana que aotentar concebê-la isoladamente para uma análise é preciso refletir sobre o que passa arepresentar o sujeito que a “domina”.Dessa forma, logo surgem questionamentos: Há nessarelação dominante e dominado? O que a linguagem e o sujeito representam?

Nesse sentido, busca-se na Filosofia um apoio para a reflexão no sentido de esclarecero terreno da linguagem e do sujeito. Mais precisamente, o que se propõe aqui é um estudo dosujeito pragmático e de sua linguagem em funcionamento no sentido de promover uma açãocrítica nos casos de afasia. Para subsidiar o enfoque destes casos toma-se os princípios da Neurolinguística Discursiva (doravante ND)5.

É lícito esclarecer que a reflexão aqui exposta terá foco na abordagem que o filósofo ehistoriador escocês David Hume (1711-1776) propõe como filosofia fácil e clara “que penetrana vida cotidiana, molda o coração e os afetos, e ao atingir os princípios que impulsionam os

3 Este trabalho está vinculado ao financiamento do CNPq processo 471384/2010-0.4 Coudry (1988) conceitua a afasia como alterações de processos linguísticos de significação de origemarticulatória e discursiva (nesta incluídos aspectos gramaticais) produzidas por lesão focal adquirida no sistemanervoso central, em zonas responsáveis pela linguagem, podendo ou não se associarem a alterações de outros processos cognitivos. Partindo de uma perspectiva linguística, um sujeito é afásico quando o funcionamento desua linguagem prescinde de determinados recursos de produção ou interpretação.5 Cabe mencionar que o conceito de ND aqui utilizado apoia-se no seguinte excerto proposto na obra de Coudry:“A Neurolinguística Discursiva é constituída por um conjunto de teorias e práticas, cuja concepção delinguagem, ao contrário de uma visão organicista, concebe língua, discurso, cérebro e mente como construtoshumanos que se relacionam.” (COUDRY, 2008, p. 16).

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homens, reforma-lhes a conduta e aproxima-os mais do modelo de perfeição que eladescreve” (HUME, 1748, p. 26)

Este artigo, primeiramente, sistematiza questões sobre a linguagem na Filosofia e na Neurolinguística Discursiva, tecendo relações com a identidade e a subjetividade do sujeito

afásico RG. Em seguida, apresenta a revelação do sujeito esclarecendo a abordagem dosujeito pragmático. Propõe-se, a partir desse ponto, uma relação de unidade entre o sujeito e alinguagem com o intuito de desvendar a constituição dessa relação, para estabelecer umdiálogo entre sujeito, linguagem e as questões de afasia, tomando como base dados do estudode caso. Por último, apresenta-se o arremate das ideias através das considerações finais.

2 A linguagem, identidade e subjetividade e o sujeito afásico RG

Para abordar a linguagem é preciso desvendar todo um universo que a cerca. Ela vaialém de um conjunto de símbolos ou sentenças. Nesse contexto, encontra-se na ND a seguintedefinição:

A linguagem, pois, não é um dado ou resultado; mas um trabalho que ‘dáforma’ ao conteúdo variável de nossas experiências, trabalho de construção,de retificação do ‘vivido’, que ao mesmo tempoconstitui o sistemasimbólico mediante o qual se opera sobre a realidade e constitui a realidadecomo sistema de referências em que aquele se torna significativo. Umtrabalho coletivo em que cada um se identifica com os outros e a eles secontrapõe, seja assumindo a história e a presença, seja exercendo suasopções solitárias. (FRANCHI apud COUDRY, 1988, p. 55)

Compreendendo esse universo que está ao redor da linguagem que se alia o interesse

Filosófico desse estudo, pois:A importância filosófica do estudo da linguagem pode ser definida pelo fatode a linguagem ser uma característica tipicamente humana. Compreender alinguagem é importante para compreender a natureza humana. [...] Alinguagem pode ser entendida desta maneira como constituidora e reguladorada atividade social, tendo em vista a sua função comunicativa e ascaracterísticas de sua constituição, que representam a sua dimensão social.(MARCONDES, 2001, p. 55)

O que se analisa, nesse contexto, são as implicações da linguagem em funcionamento já que “o fato de a linguagem significar implica que há conexão entre os signoslinguísticos,as representações mentais e o mundo exterior.” (AUROUX, 1998, p.224)

A linguagem perpassa então o eu e outro em um movimento que é construído atravésdas vivências. Hume (1748) esclarece:

todos os materiais do pensamento derivam de nossas sensações externas ouinternas; mas a mistura e a composição deles dependem do espírito e davontade. Ou melhor, para expressar-me em linguagem filosófica: todas asnossas ideias ou percepções mais fracas são cópias de nossas impressões ou percepções mais vivas. (HUME, 1748, p. 36-37)

É um processo que vai além do controle humano, pois “podemos mudar o nome dascoisas, porém sua natureza e sua ação sobre o entendimento não mudam jamais.“ (HUME,

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1748, p. 97). A linguagem conduz à significação, porém, “não é na intenção de significar quenasce o signo, mas na interação social que nasce o signo e na utilização socializada dos signosque nascem e se desenvolvem a intençãode significar e a consciência.”(AUROUX, 1998, p.231). Dessa forma linguagem se constitui em movimento entre um eu, o outro e o mundo.

Ao explorar esse movimento, destaca-se a questão do “eu” que constitui o aspecto dasubjetividade. Pensar no sujeito é tentar encontrar a essência do ser, entender o que o constituie conduz. A noção de sujeito é heterogênea, tem-se vários aspectos a considerar, entre eles asua posição, a enunciação, a ideologia. Neste estudo, trata-se do sujeito pragmático, que usa alíngua nas mais diversas situações e com diferentes interlocutores e propósitos. Nessecontexto, a ND torna visível que:

O sujeito é sempre incompleto, imaturo, e ao mesmo tempo múltiplo: aomesmo tempo social, histórico, psicológico e psicanalítico, biológico,linguístico. Todos esses aspectos convivem apesar da especificidade de cadaum. (COUDRY, 1988, p. 67)

Ao analisar esse sujeito é preciso considerar o que Hume (1748) propõe nas suasreflexões filosóficas: “a existência de qualquer ser somente pode ser provada medianteargumentos derivados de sua causa ou de seu efeito, e estes argumentos se fundaminteiramente na experiência.” (HUME, 1748, p. 153)

A constituição do sujeito envolve relações que resultam no seu envolvimento social, pois:

O homem é um ser racional e, como tal, recebe da ciência sua adequadanutrição e alimento. Mas os limites do entendimento humano são tãoestreitos que pouca satisfação se pode esperar neste particular, tanto pela

extensão quanto pela segurança de suas aquisições. O homem é um sersociável do mesmo modo que racional. (HUME, 1999, p. 27)

Para apresentar a relação entre sujeito e linguagem é necessário pensar em duasquestões que perpassam este trabalho: O que representaria o sujeito sem linguagem? O queseria da linguagem sem o sujeito? Um imenso vazio toma conta de uma possível resposta. Háde se pensar que “o pensamento humano é consciência: onde não há consciência não há nem pensamento nem linguagem, no máximo uma imagem do pensamento ou da linguagem.”(AUROUX, 1998, p.224)

E a linguagem e o sujeito se engrenam em um movimento infinito que:

Até mesmo em nossos mais desordenados e errantes devaneios, comotambém em nossos sonhos, notaremos se refletimos, que a imaginação nãovagou inteiramente a esmo, porém havia sempre uma conexão entre asdiferentes idéias que se sucediam. Se se transcrevesse a conversa mais soltae mais livre, notar-se-ia imediatamente alguma coisa que a ligou em todas assuas transições. (HUME, 1748, p. 39)

O sujeito se constitui através da linguagem, por meio da qual revela a identidade e alinguagem vai sendo constituída pelo sujeito através das experiências que envolvem o outro.Assim:

Numa palavra, a inferência e o raciocínio experimental referentes aos atos deoutrem incorporam-se tanto na vida humana, que nenhum homem, enquanto

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está desperto, deixa de utilizá-los por um momento sequer. (HUME, 1748, p.96)

Essas experiências formam um processo ativo que envolve o sujeito, a linguagem e

sua relação com o mundo, pois, “para falar, não basta fazer frases corretas, é preciso aindaancorá-las no mundo percebido”(AUROUX, 1998, p. 230). Essa percepção é particular, masenvolve o todo o contexto de interação que a cerca e a configura de diferentes formas a partirdo que se vive.

3 O que os dados6 revelam sobre a relação linguagem, identidade e subjetividade

Com o intuito de compreender a amplitude dessas questões que envolvem alinguagem, identidade e subjetividade, tomam-se dados do estudo de caso, buscandocompreender o que a linguagem em funcionamento evidencia. Os dados são transcritosseguindo, com algumas adaptações, o modelo de registro do Banco de Dados em Neurolinguística (BDN) da Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP (conferir anexo1)7.

No dado a seguir, o sujeito afásico RG e Iic (investigadora) conversam sobre a trocaque RG realizou ao tentar falar papel de seda (temo utilizado papel tecida).

Situação enunciativo-discursiva do dia 05/08/2011Quadro 1: Dado 1: Analisando as parafasias

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Observações sobrecondições de produção do

enunciado verbal

Observações decondições doenunciado não

verbal

1 RG Na minha cabeça tava normalé na fala que eu não consigo.2 Iic Ah! Entendi.

3 RG

Entendeu? Assim tudo o queeu falo é, Iic, é assim na horade falar tá todo aqui só que a, a pronúncia que não vem,entendeu?

4 Iic Tanto é que você retoma e falaa palavra certa.

5 RG

Por isso que, às vezes, porexemplo, se eu estiver nervosa, por exemplo, é ansiosa demaisé isso que acontece. Aí eu falo para minha mãe eu não querofalar, não. Por quê? Porqueassim eu quero, na minhacabeça eu falo certo, eu pensocerto e não falo, falo errado.

6 Coleta de dados autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UESB - Protocolo 061/2010.7 Cabe mencionar que o modelo de registro do Banco de Dados em Neurolinguística (BDN) da UniversidadeEstadual de Campinas, UNICAMP, foi retirado da tese de doutorado intitulada“Uma abordagemsociolinguísticada afasia: O Centro de Convivência de Afásicos (UNICAMP)” de autoria de NirvanaFerraz Santos Sampaio(2006).

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RG, no dado acima, posiciona-se como um avaliador crítico do seu quadro. Analisa oque ocorre em sua fala e testemunha o fenômeno em um ângulo que só se poderia obter pormeio de suas impressões que é a representação psíquica do que é vivenciado ao dizer no turno5 que “na minha cabeça eu falo certo, eu penso certo e não falo, falo errado”

O sujeito e a linguagem conjugam juntos o verbo construir. Essas construções revelamum sujeito de linguagem com sua natureza, seu modo de pensar, de agir. Hume (1748)exemplifica bem isso quando diz:

o homem é um ser que conhecemos pela experiência: seus motivos e seusdesígnios nos são familiares; seus projetos e suas inclinações têm certaconexão e certa coerência, segundo as leis que a natureza tem estabelecido para governo de uma tal criatura. Portanto, quando vemos que uma obra procede da habilidade e do trabalho humano, e como por outro ladoconhecemos a natureza deste ser animado, podemos tirar cem inferênciasacerca do que se pode esperar dele; estas inferências estarão todas fundadasna observação e na experiência. (HUME, 1748, p. 138)

Quando se considera as realizações dos sujeitos, o que se evidencia é uma série devivências que o conduziram a esse estado e o caracterizam. Essas vivências só são possíveis por suas experiências através da linguagem.

Assim, é revelador constatar que “não há espécie de raciocínio mais comum, mais útile mesmo mais necessário à vida humana que o derivado do depoimento humano, dos relatosdas testemunhas oculares e dos expectadores.” (HUME, 1999, p. 112). Isso é a representaçãoda unidade sujeito e da linguagem.

No dado a seguir, RG expõe seu medo de entrar novamente na sala de aula paraministrar os cursos de oratória como fazia antes do AVC.

Situação enunciativo-discursiva do dia 08/07/2011Quadro 2: Dado 2: Meu medo

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Observações sobrecondições de produção do

enunciado verbal

Observações decondições do

enunciado nãoverbal

1 RGMeu medo hoje de entrar nasala de aula é de gaguejar. Éde se as palavras vãoaparecer.

2 IicÔ, RG, eu também tenhoesses medos.

3 RG É todo mundo tem. Masassim\

4 Iic Você não tinha antes?

5 RG

Não. Esse é o problema, porque eu sempre fuidespachada em sala de aula,não tenho problemas comrelação a isso. Leio umacoisa e vou falando o que euentendo.

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Refletir sobre a constituição da linguagem e do sujeito no contexto da afasia é avaliaro ser e seus posicionamentos e para isso é necessário o convívio e a interação com essescasos. É essa vivência que trará subsídios para a reflexão, pois somente a linguagem emfuncionamento pode colocar em evidência o sujeito e suas dificuldades.

Aqui não cabe a avaliação de uma sentença de um afásico proferida isoladamente. Aafasia precisa revelar as suas lacunas com relação à linguagem em um processo ativo para quese possa perceber onde o investigador pode trabalhar. Nesse processo inclui-se a interação deigual para igual para vivenciar a linguagem em funcionamento, para só depois deslocar-se para a análise dos dados.

Adentrar esse universo que não é palpável é desafiador. Envolve um sujeito que sedistancia de si e dos outros por suas dificuldades com a linguagem, pois a doença apaga muitacoisa. Envolve, ainda, um comprometimento do investigador que precisa estar aberto parainteragir com um sujeito “que se reconstitui e reconstitui a sua linguagem” (COUDRY, 1988, p. XVII). Nesse sentido Hume (1748) fortalece:

Por mais árdua que possa parecer essa pesquisa ou investigação interna, elase torna, em certa medida, indispensável àqueles que quiserem descrevercom sucesso as aparências exteriores e patentes da vida e dos costumes(HUME, 1748, p. 29)

O estudo de caso de afasia requer, portanto, a intervenção ativa do pesquisador atravésda interação. É no momento que o sujeito afásico interage, mesmo com suas dificuldades, quesuas intenções vão transparecendo e que as suas ideias são compartilhadas. Dessa forma, a suadeficiência transforma-se em estímulo para um processo de significação e reconstrução. É preciso pensar que “os dados provêm do sujeito afásico e da atuação conjunta do investigadore, por outro lado, a análise e o processo de reconstrução provêm do investigador e da atuaçãoconjunta do sujeito afásico.”(COUDRY,1988, p.73)Com a análise dos dados do estudo de caso de RG, o que se avalia é o funcionamentoda linguagem neste sujeito após essas intercorrências. É notório que o processo dereconstrução da linguagem perpassou por aspectos obscuros até o momento em que ela seapresenta de forma clara e mais articulada, pois, o sujeito afásico modifica-se a partir dainteração com o investigador, com os outros membros do ECOA, com seus familiares e todasas outras pessoas que o cercam.

RG, em algumas situações iniciais,desconecta o seu “eu” antes da afasia do “eu-afásico” que relata tudo pela lente do “Mundo fantástico de Bob”8. Dessa forma, ao realizaruma troca descabida, ou, ao analisar algum texto (como provérbios, por exemplo) surge umoutro caminho paralelo a interpretação da sentido figurado, que desencadeiam o destaque nosentido literal, que ora amplia o significado ou o confunde.

Isso se torna perceptível no dado a seguir em que RG, Ins e Iic conversam sobre provérbios. Inicialmente, RG faz a interpretação do sentido do provérbio “De grão em grão agalinha enche o papo”, depois, resgata o que veio a sua mente no momento em que leu o provérbio, revelando o Mundo fantástico de Bob.

Situação enunciativo-discursiva do dia 26/08/2011Quadro 3: Dado 3: Mundo fantástico de Bob

8 Ao citar o Mundo Fantástico de Bob, RG faz referência a uma série de desenhos animados famosos dos anos90, criado pela FOX, que contava a história de Bob, um garoto de quatro anos, que tinha uma imaginação fértil.Ele explorava um universo divertido, complexo e cheio de confusões dentro da mente infantil dentro de suasvivências cotidianas.

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Turno Sigla doLocutor Transcrição

Observações sobrecondições de produção do

enunciado verbal

Observações decondições do

enunciado não verbal

1 RG

igual a um trabalho, vamos pensar assim, um trabalho, sevocê fizer o trabalho, se vocêentrou agora nessa empresa evocê começou do\, da faxina e aívocê vai subindo de, de, denível, e, igual escola a gentecomeça do, você não sabia nadae você vai subindo, você vaisubindo até a faculdade, pós,doutorado, pós doutorado.Então, assim, é igualzinho aquilo

de grão em grão a gente vai, vaié a galinha vai\ . Eu tô pensandosabe o quê?

2 Ins Hum?3 RG Sabe aquela\

4 Iic Pode falar a sessão hoje estálivre para tudo, sem censuras.

5 RGSabe aquele filme das galinhas?Da galinha, você sabe qual é?Que tem um, um que a galinha \

6 Ins A fuga das galinhas?

7 RG

Isso! Que no final, no início, queuma galinha ia colocar, colocoua galinha num negócio pra\. Eutava imaginando se a galinha pegar o, a, como é que falaaquele negócio \ a enxada, e seele tivesse, se ele

Risos.

8 Iic Se ele o que, minha NossaSenhora?

9 RG

Como é o nome? A enxada pegou a galinha e pegou aenxada e tivesse ma, matado a

galinha, aí ia sair um monte demilho, tuf.

Risos.

10 Iic Foi, primeiro, isso que você pensou?

11 RG Mundo fantástico de Bob, sabe?

Depois da interpretação do provérbio, RG revela o processo que desencadeou asignificação. As imagens literais que aparecem ao ouvir o provérbio “De grão em grão agalinha enche o papo” remetem à galinha e grãos. O curso de análise desses dados podededuzir que este sujeito perpassa no significado literal de forma ampla para depois, atingir umsentido figurado.

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RG desvincula, também, a anormalidade no funcionamento da linguagem através dareferência das características afásicas à sua cabeça que ela apresenta como “doida”, conformeo dado a seguir em que RG justifica a utilização de uma parafasia.

Situação enunciativo-discursiva do dia 26/08/2011Quadro 4: Dado 4: A doida

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Observações sobrecondições de produção do

enunciado verbal

Observações decondições doenunciado não

verbal1 RG Mas não sou eu, não. É ela, a

cabeça que é doida.Aponta para a

cabeça

Essas desvinculações do seu eu afásico com o tempo foram superadas pelaautoconfiança adquirida através das diversas formas de interação proporcionadas pelo

investigador, somadas às experiências vivenciadas no ECOA e deixaram de ser utilizadas porRG, pois, sente-se mais à vontade para se comunicar.O que se pode inferir nesse caso através dos relatos e da interação com esse sujeito é

que o processo de reconstrução da linguagem não se dá no isolamento e sim no encontro como outro. É no momento que RG relata a sua história, a sua rotina, convive com o investigadorcom seus anseios ou seus gostos, e que espera desse outro um compartilhamento de ideias éque a sua dificuldade transforma-se em estímulo para um processo de reconstrução.

Por isso, defende-se que a análise do funcionamento da linguagem no caso de afasia sedá no viés da reintegração social e subjetiva, ou seja, através de experiências, pois,“asobservações gerais armazenadas durante o transcurso da experiência dão-nos o elo condutorda natureza humana, e nos ensinam a desfiar todas as suas complicações.” (HUME, 1748, p.

92). A linguagem, assim, dá forma às experiências em um meio para operar a realidade e aomesmo tempo torná-la significativa, em um processo que revela a subjetividade e aidentidade.

3 Considerações finais

As considerações sobre subjetividade, identidade e linguagem devem ser bem pensadas ao se propor estudos de afasia, pois a postura que se toma perante esses casosrefletirá em experiências para esses sujeitos. Assim, torna-se imprescindível considerar que “oinvestigador não é um sujeito exterior e distante que ‘observa, analisa e teoriza’, mas umverdadeiro interlocutor que participa do espaço de linguagem em que o afásico se constituicomo sujeito.”(COUDRY, 1988, p.196)

Reiterando a importância de se examinar todos os aspectos da linguagem quecompõem o sujeito é que Coudry (1988) ressalta:

essa atividade do sujeito, aquilo que realça, os recursos que emergem a partirde sua doença, não poderá ser depreendida fora de condições de exercício dalinguagem. Importa menos estudar o resíduo que a afasia provocou nosujeito (reconhecimento de déficits através de sintomas) e mais conhecersuas dificuldades e favorecer o desenvolvimento de alternativas próprias para reelaborá-las. (COUDRY, 1988, p.196)

Respaldado desses dados que se evidenciam no estudo de caso do sujeito RG, é preciso considerar a abreviatura das iniciais do seu nome e sobrenome, utilizada para não

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Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do SulUNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do ParanáCascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751

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identificar seus dados, traduzem, mesmo tratando-se de uma mera coincidência, aefervescência da sua identidade que tem seu lugar neste estudo. Talvez, indiretamente, possavir para sublinhar que ao considerar os estudos de caso de afasia não se pode negar asubjetividade, o pessoal e o particular, que se transluz por meio da linguagem em

funcionamento, até mesmo quando se apresenta percalços, pois, esses percalços também sãoreveladores e construtores.

Referências

AUROUX, Sylvain. A filosofia da linguagem. Rio de Janeiro: UNICAMP, 1998.COTA, I.R., SAMPAIO, N.F.S. A afasia e a abordagem no erro na fala e na escrita : umestudo de caso. Disponível em: http://www.ileel.ufu.br/anaisdosilel/pt/arquivos/silel2011/637.pdf[acesso em 01 agosto de 2012].COUDRY, M.I.H.. Diário de Narciso: discurso e afasia: análise discursiva de interlocuçõescom afásicos. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988. Edição consultada: 2001. _____. Neurolinguística Discursiva: afasia como tradução . Estudos da Língua(gem), 2008; 6:9-38.HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano: ensaios morais, políticos eliterários. São Paulo: Nova Cultura, 1748. 352p. (Os pensadores) Edição consultada: 1999MARCONDES, Danilo. Filosofia, linguagem e comunicação. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2001.SAMPAIO, N.F.S.Uma abordagem sociolingüística da afasia : o Centro de Convivência deAfásicos (UNICAMP) como uma comunidade de fala. Campinas: UNICAMP, 2006.175p.Tese (Doutorado em Linguística), Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadualde Campinas, Campinas, 2006.

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ANEXO 1Banco de Dados em Neurolinguística (BDN)

Modelo de Registro

O BDN é formado por: um sistema de notação e codificação que representa a dinâmicada atividade verbal e não verbal vivenciada no grupo II do CCA e certas especificidades dalinguagem patológica.

A fim de padronizar o registro dos dados foram criadas, para o BDN, uma série de“regras”. 1)Tabela

É composta por 6 colunas: Código de Busca, Numeração dos enunciados, Sigla doLocutor, Transcrições, Observações sobre condições de produção do enunciado verbal,Observações de condições do enunciado não-verbal.

*ColunaCódigo de Busca:É usada a seguinte notação:

Código Finalidade\tom Entonação utilizada pelo falante\TF Transcrição Fonética\her Hesitação, repetição\top Topicalização sintática\neg Enunciado negativo\ins Inserção\aí Aí, daí, então\né

\tá\rir Risos/humor\int Introdução de opinião\lei Leitura em voz alta\com Comparação\esc Escrita\: Alongamento vocálico\imp ordem, pedido\ / Pausa breve\ // Pausa longa

\ ? pergunta\ ! Exclamação

* ColunaSigla do LocutorOs sujeitos devem ser identificados por uma sigla(de 2 letras e em maiúsculo) que é

formada a partir da primeira letra de seu nome e a primeira de seu sobrenome. Exemplo : CF= Ceumara Fernandes

Já o investigador é identificado por uma sigla de 3 letras, na qual a primeira será aletra “ i” (Investigador ) em maiúsculo e as duas seguintes as primeiras letras do nome esobrenome em minúsculo. Exemplo: Imc = Investigadora Maria Coudry

*ColunaTranscrição

Espaço destinado para registro baseadono que foi dito pelos sujeitos e investigadores. Esses

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registros podem ser feitos de dois tipos: a transcrição fonética (utilizando os caracteres doIPA) e a transcrição simples ou ortográfica.

* Colunas deObservação sobre as condições de produção de processos designificação verbais e Observação sobre as condições de produção de processos de

significação não-verbaisEspaço destinado para se explicitar a natureza dos dados,não mais o que foi dito mas

como foi dito.Engloba observações a cerca doritmo (pausado, acelerado, hesitação, pausa breve, longa etc.) e dotom (afirmativo, dúvida, surpresa, decepção, suspense, ironia,incerteza, enumeração etc).

Além de observações sobre os gestos( não-verbais).2) Outras marcações:

* Marcação de ênfase ou acento mais forte que o habitual --------> a transcrição doenunciado é feita em letras maiúsculas.

* Marcação de alongamento de vogal --------> usa-se dois “pontos” após a vogalalongada ( : )

* Marcação de Silabação -------------> usa-se hífen indicando a silabação. Exemplo: A – DO- REI.


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