7/26/2019 Livro Cerrado
1/264
Carlos Eduardo Mazzetto Silva
O CERRADO EM DISPUTA
Apropriao global e resistncias locais
7/26/2019 Livro Cerrado
2/264
7/26/2019 Livro Cerrado
3/264
Carlos Eduardo Mazzetto Silva
O CERRADO EM DISPUTA
Apropriao global e resistncias locais
Maro de 2009
7/26/2019 Livro Cerrado
4/264
Clvis Nascimento
Csar Benjamin
Confea - Superintendncia de
Comunicao e Marketing
Dialog Comunicao e Eventos
Igor Barros Cavalcante
Coronrio Editora Grfica Ltda
Coordenao
Edio
Produo Executiva
Arte da capa
Editorao e diagramao
Impresso
Carlos Eduardo Mazzetto S i lva , 2009
D i r e i t o s a d q u i r i d o s p e l o C o n s e l h o F e d e r a l d e E n g e n h a r i a ,
A r q u i t e t u r a e A g r o n o m i a - C o n f e a
www.confea.org.br
Srie Pensar o Brasi l e Construir o Futuro da Nao
1 a edio, maro de 2009
Tiragem: 5 .000 exemplares
S586 S i lva , Carlos Eduardo Mazzetto
O cerrado em disputa : apropriao global e res istncias locais . - Bras l ia : Confea , 2009.
264p. (Pensar o Brasil Construir o Futuro daNao)
1 . Cerrado vegetao . 2 . Cerrado populao . I .Ttulo. I I . Srie .
7/26/2019 Livro Cerrado
5/264
Sumrio
Apresentao
Sobre o Autor
Introduo
I. O Cerrado brasileiro: formao, caractersticas ecolgicas e
histrico de ocupao...Os grandes domnios paisagsticos do Brasil A formao do Cerrado
brasileiro Populao e distribuio estadual do Cerrado Biodiversidade
e gua: a importncia e a riqueza ecolgica do Cerrado Sobre o que resta
de Cerrado / Ocupao originria: os povos dos cerrados e seus saberes
Camponeses: os herdeiros dos saberes O Cerrado-mercadoria: a lgica
da expanso espacial do agronegcio global
II. Geraizeiros encurralados: a luta pela reapropriao territorialno Alto Rio Pardo...
A regio norte de Minas: o serto dos Gerais O municpio de Rio
Pardo de Minas A comunidade de Vereda Funda: a luta dos geraizeiros
encurralados O conito por gua e terra em Vereda Funda - a voz
geraizeira Finalizando: monocultura de eucalipto e (falta de) gua no
Cerrado
III. Cerrados do sul do Maranho: O (des)encontro entre oagronegcio da soja e os camponeses dos vos...
A regio em foco A realidade agrria e ambiental O primeiro
impulso da soja na regio de Balsas: o Prodecer III O avano da soja
no Gerais de Balsas / A regio do Parque Estadual do Mirador (PEM)
Finalizando
11
13
15
19
83
135
7/26/2019 Livro Cerrado
6/264
IV. A riqueza do primo pobre: (des)envolvimento dos de fora ouconvivncia e sustentabilidade para os de dentro?...
Sintetizando e atualizando a situao de apropriao global do Cerrado
A riqueza do primo pobre: a matria-prima de novos modelos Para
uma outra perspectiva de sustentabilidade
Anexo 1 Carta do Maranho...
Anexo 2 A sobrevivncia dos Cerrados e de seus povos...
Bibliografia...
Pginas eletrnicas consultadas...
197
227
235
245
261
7/26/2019 Livro Cerrado
7/264
Relao de mapas
Mapa 1.Domnios naturais do Brasil, 12 mil a 18 mil anos atrs...
Mapa 2.Domnio do Cerrado e suas reas de transio...
Mapa 3. Cerrado Contnuo e as grandes bacias hidrogrficas
brasileiras...
Mapa 4. Distribuio geogrfica original do tronco Macro J...
Mapa 5. Territrios indgenas no domnio do Cerrado e suas
transies...Mapa 6. reas de remanescentes de quilombos no domnio do
Cerrado e suas transies...
Mapa 7. Avano da produo de soja no Brasil com recorte do
Cerrado e suas transies 1992 e 2002...
Mapa 8.Regies de planejamento de Minas Gerais...Mapa 9.Domnios biogeogrficos de Minas Gerais...
Mapa 10.Localizao do municpio de Rio Pardo de Minas e muni-
cpios vizinhos na regio norte de Minas Gerais...Mapa 11.Vegetao original do Maranho...Mapa 12.Localizao dos municpios em foco...
Relao de tabelas
Tabela 1.Populao da rea de domnio do Cerrado Contnuo no
Brasil, 1996...Tabela 2.Percentuais de Cerrados e suas transies nos Estados
brasileiros...
Tabela 3. Quantidade de espcies animais e vegetais do Cerrado
brasileiro...
Tabela 4. Distribuio espacial primitiva dos diferentes tipos de
ecossistemas do domnio do Cerrado (includo o Pantanal)...
23
34
42
52
60
61
81
84
85
87
137
138
30
31
35
39
7/26/2019 Livro Cerrado
8/264
8
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
Tabela 5.Taxas de transpirao para diferentes tipos de coberturavegetal...
Tabela 6.Principais usos da terra no Cerrado...
Tabela 7.Caracterizao do bioma Cerrado por regio fitoecol-
gica agrupada...
Tabela 8. Dimenso das reas protegidas nos principais biomas
brasileiros...
Tabela 9. Peso da agricultura familiar nos principais estados do
domnio do Cerrado 1995/96...Tabela 10.Programas governamentais de desenvolvimento agrcola
do Cerrado...
Tabela 11.Tipos de ocupao nos estabelecimentos rurais e pro-
jeo no domnio do Cerrado (milhes de hectares) de 1970 a
2000...
Tabela 12.Extenso da superfcie das gramneas forrageiras mais
cultivadas no Cerrado em 1995...
Tabela 13.Contribuio crescente dos Cerrados produo de sojano Brasil, de 1970 a 2003...
Tabela 14.Populao rural e urbana, Rio Pardo de Minas, 1991 e2000...
Tabela 15.Cobertura vegetal e uso da terra de Rio Pardo de Minasem 1994...
Tabela 16.Cobertura vegetal e uso da terra de Rio Pardo de Minasem 2005...
Tabela 17.Nmero de estabelecimentos, rea e valor bruto da pro-duo... Categorias familiares por tipo de renda e patronal. RioPardo de Minas/MG - 1995/1996...
Tabela 18.Benefcios sociais recebidos pelos moradores da comu-
nidade de Vereda Funda...Tabela 19.Total da renda anual no oriunda das atividades agrco-
las locais da comunidade de Vereda Funda...
43
45
47
48
59
63
70
71
80
86
88
90
91
100
101
7/26/2019 Livro Cerrado
9/264
9
Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a
Tabela 20.Estabelecimento por estrato de rea na comunidade deVereda Funda...Tabela 21. Condio de posse e uso da terra na comunidade de
Vereda Funda...Tabela 22.Dados hidrolgicos e de produo de biomassa compa-
rativos entre monoculturas de eucalipto e pinus e o Cerrado nativo
de Gro Mogol/MG...
Tabela 23.Vegetao natural do Maranho e sua extenso...
Tabela 24.Populao e extenso territorial dos municpios visita-dos na pesquisa de campo...
Tabela 25. Classes de vegetao do municpio de Balsas 1998...
Tabela 26. Classes de vegetao do Municpio de S. R. dasMangabeiras 1998...
Tabela 27. Nmero e percentual dos estabelecimentos agrcolas
familiares nos municpios visitados 1995/1996...
Tabela 28.Distribuio do tamanho dos estabelecimentos agrcolas
(ha) nos municpios da pesquisa de campo (n estabelecimentos e%) 1995/1996...
Tabela 29. Estabelecimentos e condio do produtor no Maranho
entre 1970 e 1995/96...
Tabela 30.reas ocupadas e produo das principais lavouras tempo-
rrias do Maranho entre os Censos Agropecurios de 1970 e 1996...
Tabela 31. rea de produo de soja em alguns municpios da
regio de Balsas e S. R. das Mangabeiras 2001 e 2006...
Tabela 32.Dez Estados do Brasil com maior superfcie de terras deestrangeiros novembro de 2007...
Tabela 33.Preo do hectare no Brasil...
Tabela 34. Preo do hectare por regio nov-dez/07...
Tabela 35.Dez estados com maior ndice de violncia no campo no
Brasil em 2005...
Tabela 36.Propostas apoiadas pelo PPP-Ecos entre 1995 e 2008...
102
103
128
136
138
140
141
142
143
144
145
148
202
203
203
207
214
7/26/2019 Livro Cerrado
10/264
7/26/2019 Livro Cerrado
11/264
11
Apresentao
Depois de tratar da Matriz de Transportes, o Projeto Pensar o Brasil
retoma a reexo sobre o territrio brasileiro, dando continuidade srie que foi iniciada com estudos sobre a Amaznia e o Semi-rido.
Neste quarto volume, Carlos Eduardo Mazzetto Silva resume a adapta a
tese de doutoramento que defendeu no Departamento de Geografia da
Universidade Federal Fluminense sobre o Cerrado.
O Cerrado Contnuo corresponde a 193 milhes de hectares, quase23% do nosso territrio, predomina em dez estados e abriga cerca de
22 milhes de pessoas. Se considerarmos todas as reas de transio e
as ilhas de Cerrado na Amaznia, esses nmeros aumentam para 315
milhes de hectares e 37% do territrio. Por sua posio central, a
grande regio de contato com os outros biomas: a Floresta Amaznica, a
Mata Atlntica, a Floresta de Araucria, a Caatinga, o Pantanal e as Matas
de Cocais do Maranho e do Piau. Abriga uma biodiversidade ainda
bastante desconhecida, com a ora mais rica entre as savanas do mundo.Encontram-se ali mais de 10 mil espcies vegetais, das quais 4.400 end-micas (exclusivas).
Mais de 80% da rea do Cerrado Contnuo so ocupados por ecos-
sistemas de chapada, reas de recarga hdrica do bioma. Carlos Eduardo
Mazzetto Silva mostra que essas extensas chapadas planas, de solos pro-
fundos, geologicamente velhos e permeveis, fazem da regio a verda-
deira caixa dgua do territrio brasileiro, aquela que capta e distribui
as guas que alimentam a maior parte das bacias do So Francisco e doAraguaia/Tocantins, toda a parte alta da bacia do Paran e partes impor-
tantes das bacias do Atlntico Norte-Nordeste, do Amazonas (auentesda margem direita) e do Atlntico Leste. Alm disso, as chapadas de tran-
sio com a Mata Atlntica e a Caatinga so responsveis pelas cabecei-
ras de outras bacias, como as dos rios Pardo e Jequitinhonha, em Minas
Gerais.
7/26/2019 Livro Cerrado
12/264
A rpida alterao da cobertura vegetal da regio, com a expansodas monoculturas de espcies exticas (especialmente a soja e o euca-
lipto), devoradoras de gua, multiplica problemas. A vegetao nativa
produz entre 10 e 40 toneladas de biomassa por hectare, enquanto o
eucalipto produz mais de 300. Como 2/3 da biomassa so compostos
de gua, a disseminao dessas plantaes artificiais altera todo o ciclo
hidrolgico regional, afetando a recarga hdrica que abastece o lenol
fretico, as nascentes e os cursos dgua. Alm disso, a formao de gran-
des latifndios em terras que h pouco tempo eram devolutas, de usocomum pelas populaes locais, agrava problemas sociais. Os povos do
Cerrado so herdeiros das antigas culturas indgenas que aprenderam a
conviver com o ecossistema. Sua relao com o meio segue outra racio-
nalidade, que nos recusamos a valorizar. Para destac-la, este livro d voz
aos sertanejos.
H pouco debate sobre essa vasta regio, frequentemente subesti-
mada e considerada quase naturalmente como um espao de expanso
do agronegcio. Mas o Cerrado tem histria, tem gente, tem uma fun-o nica no territrio brasileiro e tem grandes potencialidades. o que
Carlos Eduardo Mazzetto Silva nos mostra. Quando terminamos a lei-
tura, o nosso conceito de desenvolvimento est na berlinda.
Marcos Tlio de Melo
Presidente do Confea
Clvis NascimentoCoordenador do Projeto Pensar o Brasil
7/26/2019 Livro Cerrado
13/264
Sobre o Autor
Carlos Eduardo Mazzetto Silva formado em engenharia agron-
mica pela Universidade Federal de Viosa. Fez mestrado em organiza-o humana do espao no Departamento de Geografia do Instituto de
Geocincias da UFMG (1999) e doutorado em ordenamento territorial
e ambiental no Departamento de Geografia da UFF (2006).
Entre 1987 e 1994 foi tcnico, fundador e coordenador executivo
do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas, entidadeagroecolgica de apoio aos movimentos camponeses da regio. Foi
assessor da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte entre 1995 e 1996,
atuando em programas de autoabastecimento e comercializao direta
da Secretaria Municipal de Abastecimento.
Foi colaborador da Assessoria e Servios em Projetos de Agricultura
Alternativa (AS-PTA) no mbito do Projeto Brasil Sustentvel e
Democrtico entre 1999 e 2000, quando elaborou o texto do Caderno
Temtico 4 da srie de publicaes desse projeto: Democracia e sus-tentabilidade na agricultura: subsdios para construo de um novo
modelo de desenvolvimento rural. Com esse texto, obteve o segundo
lugar do Prmio Ncleo de Estudos Agrrios e de Desenvolvimento
Rural (NEAD) na categoria prossional em novembro de 2001.Trabalhou nas polticas pblicas vinculadas reforma agrria,
tendo sido consultor de meio ambiente no Incra-MG, atravs do con-
vnio Incra-IICA, entre 1999 e 2002, e diretor de Desenvolvimento
Rural Sustentvel do Instituto de Terras de Minas Gerais, entre 2003e 2004.Foi professor do curso de geografia do Projeto Parceladas da
Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat), tendo sido res-
ponsvel pelas disciplinas agricultura e desenvolvimento regional em
julho/1999 e uso e manejo do solo em fevereiro/2001 e pela orientao
de trs monografias (Luciara/MT).
7/26/2019 Livro Cerrado
14/264
Foi professor do curso de geografia e anlise ambiental do CentroUniversitrio de Belo Horizonte (Uni-BH), onde criou e ministrou a
disciplina ecologia e desenvolvimento rural entre 2002 e 2006. Foi tam-
bm instrutor-colaborador da Coordenao de Educao Ambiental do
Ibama desde setembro de 2001, participando de cursos de introduo
educao no Processo de Gesto Ambiental e de cursos de formao
para analistas ambientais em vrios lugares do Brasil.
Tem prestado diversos trabalhos de consultoria a diversos rgos e
entidades no campo agroambiental como: Ministrio do Meio Ambiente,Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio), Pr-Manejo/Ibama,
Fundao Trocaire, Central de Cooperativas Agroextrativistas do
Maranho, Rede Cerrado, Cemig (projeto de reassentamento das fam-lias atingidas pela Usina Hidroeltrica de Irap).
Entre julho e dezembro de 2005, atuou como consultor territorial
no Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentvel dos Territrios
Rurais da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT) do Ministrio
de Desenvolvimento Agrrio (MDA).Em 2007 e 2008 elaborou para o Ministrio do Meio Ambiente
os estudos socioeconmicos relativos a sete reas em anlise para se
tornarem reservas extrativistas no Cerrado mineiro. Nesse perodo foi
tambm pesquisador de ps-doutorado do CNPq, desenvolvendo a pes-
quisa A dinmica dos projetos de assentamento de reforma agrria na
Regio Metropolitana de Belo Horizonte no IGC/UFMG. pesquisador de ps-doutorado da Fapemig, desenvolvendo a pes-
quisa Unidades de Conservao de Uso Sustentvel no Cerrado: con-itos socioambientais e perspectivas de sustentabilidade na FAFICH/UFMG.
autor de diversos artigos publicados sobre temas como: agroeco-
logia, reforma agrria e meio ambiente, desenvolvimento rural, campe-
sinato e agricultura familiar, sustentabilidade do Cerrado etc.
7/26/2019 Livro Cerrado
15/264
15
H um silncio sobre o Cerrado brasileiro. Apesar de ser a mais
rica savana do planeta, a regio apresentada quase sempre comoo espao a ser incorporado pela grande produo agropecuria de
exportao do pas. No imaginrio da sociedade brasileira predo-
mina a imagem de uma vegetao rala, de rvores tortas, sem beleza,
sem utilidade e sem valor intrnseco seja social, econmico ou eco-
lgico. Por isso, alguns estudiosos, jornalistas e militantes da defesa
do Cerrado o chamam, provocativamente, de o primo pobre dos
biomas brasileiros. No tem a exuberncia nem o status ecolgico
das Florestas Amaznica e Atlntica, nem os atrativos tursticosdo Pantanal as trs grandes regies naturais brasileiras reconhe-
cidas como Patrimnio Nacional. Entretanto, para quem passa a
conhec-lo mais profundamente, o encantamento se impe, junto
com o desvendamento de sutis estratgias de sobrevivncia que pro-
piciam riqueza a quem o habita. um hbitat acolhedor, agradvel
e generoso.
Introduo
7/26/2019 Livro Cerrado
16/264
1 6
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
O presente texto procura combater a viso depreciativa hegem-nica e mostrar a riqueza e importncia do Cerrado e dos povos que o
habitam, invisveis para um determinado tipo de racionalidade moderna
que importamos e para boa parte da sociedade urbana brasileira. Sem
falar dos setores ruralistas e do agronegcio exportador, que nunca con-
seguem v-lo como hbitat, mas apenas como mercadoria (Mazzetto
Silva, 2005a).
O mergulho na realidade profunda dos cerrados (pois so mui-
tos e diversos) que ocupam a poro central do territrio brasileiro nosfaz compreender, pouco a pouco, tanto o funcionamento e a fascinante
dinmica ecolgica do Cerrado, como as lgicas adaptativas que as
diversas racionalidades indgenas e camponesas foram desenvolvendo
para habitar e sobreviver nesses lugares. Entretanto hoje, em pratica-
mente todos os lugares dessa grande regio ecolgica, essas formas tra-
dicionais se encontram ameaadas, pressionadas, encurraladas pelas
expresses modernas das monoculturas vinculadas a cadeias e redes de
exportao. No perodo mais recente, de globalizao neoliberal e depropaganda ufanista da ideologia do agronegcio, essa presso se inten-
sificou dramaticamente, assim como comearam a se tornar mais vis-
veis e mais articuladas as resistncias locais. Por causa desse processo,
que o que marca o cho do Cerrado brasileiro hoje, escolhi o ttulo
deste trabalho.
Grande parte do presente texto baseia-se na minha tese de dou-
torado1 (Mazzetto Silva, 2006), defendida em maro de 2006 no
Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense.Longe de se constituir em uma pesquisa neutra, ela cheia de envol-
vimento com as lutas pelo Cerrado e seus povos, tendo, em grande
parte, ganho um formato etnogrfico (no que se refere pesquisa de
1 Tive o privilgio de, no meu doutorado, ter a orientao do Professor Carlos WalterPorto Gonalves.
7/26/2019 Livro Cerrado
17/264
1 7
Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a
campo) articulado a uma observao participante. Esse envolvimentotambm inuenciou na escolha dos locais para a execuo da pesquisade campo. Essa escolha (Gerais de Balsas e regio do Parque Estadual
do Mirador, no sul do Maranho, e Alto Rio Pardo, no norte de MinasGerais) se deu em funo das articulaes sociais a existentes, de
processos de resistncia ao avano do agronegcio e das caractersti-
cas diferenciadas de dois tipos de complexos agroindustriais ligados a
duas cadeias distintas: o complexo da produo de gros (que envolve
produo de leo, rao animal etc.) e o complexo da monocultura doeucalipto ligado produo do carvo vegetal e indstria siderr-
gica. So dois complexos e duas redes que operam a partir do plan-
tio de grandes monoculturas (soja/milho, eucalipto), mas que partem
de uma apropriao e incidem sobre o territrio de maneira diferen-
ciada e especfica. Outra diferena das duas regies pesquisadas sua
dinmica no tempo. O sul do Maranho uma regio de avano rela-
tivamente recente da monocultura de gros, cujos efeitos tambm so
percebidos mais recentemente, assim como as respectivas reaes. J oAlto Rio Pardo uma regio onde as chapadas foram apropriadas pelasempresas reorestadoras no nal da dcada de 1970 e no incio da de1980. Seus efeitos j so sentidos h mais tempo e as reaes esto mais
organizadas, incluindo aes concretas de reapropriao das chapadas
pela populao local.
Essa pesquisa de campo est retratada nos Captulos II (Alto
Rio Pardo) e III (sul do Maranho) do presente trabalho. Eles docu-
mentam e analisam o encontro e o embate territorial entre a formacamponesa/tradicional e a forma moderna/empresarial de apropriao
do espao e suas repercusses para a sustentabilidade dos ecossistemas
em questo. Pela caracterstica ecolgica do Cerrado e pela forma de
ocupao das chapadas pelas monoculturas, a questo da gua, insisten-
temente colocada pelos camponeses e camponesas, acabou sendo um
tema norteador/organizador do trabalho de campo.
7/26/2019 Livro Cerrado
18/264
1 8
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
Os captulos II e III esto precedidos, naturalmente, do Captulo I, noqual trao um quadro geogrfico e ecolgico do domnio biogeogrfico
do Cerrado, apresento sua histria de ocupao e algumas amostras
dos saberes tradicionais que se desenvolveram durante pelo menos
11 mil anos de presena humana nessa grande regio e que foram
incorporados, de uma forma ou de outra, pela sociedade sertaneja.
Termino esse captulo com a anlise da incorporao do Cerrado
dinmica de desenvolvimento nacional e sua insero no circuito
mundial de produo de mercadorias, via Revoluo Verde patrocinadapelo Estado, num primeiro momento, e via apropriao e regulao
privada pelo agronegcio global, num segundo momento.
No ltimo captulo, apresento um resumo das concluses e atu-
alizo a situao de apropriao global do Cerrado. Em seguida, apre-
sento um painel da evoluo recente das polticas pblicas para o bioma
e das iniciativas alternativas e articulaes que vm sendo desenvolvi-
das pelos povos e as entidades defensoras do Cerrado e que mostram o
potencial de outros modelos de convivncia sustentvel com os diversosecossistemas que o compem. Termino procurando articular a necessi-
dade de mudana da realidade atual do Cerrado com um debate con-
ceitual e poltico-ideolgico sobre a sustentabilidade e o termo que se
consagrou, ao mesmo tempo se esvaziou, no perodo recente: o desen-
volvimento sustentvel. Nesse sentido, procuro realar noes como
racionalidade ambiental, ecologismo de sobrevivncia e campesinidade,
que podem constituir idias-fora capazes de embasar uma perspectiva
de sustentabilidade includente e dialgica para o Cerrado brasileirocom toda sua riqueza e diversidade.
7/26/2019 Livro Cerrado
19/264
19
Os grandes domnios paisagsticos do BrasilO Brasil um pas que guarda uma rica diversidade de paisagens e de
tipologias vegetais. AbSaber vem, h muitas dcadas, estudando, dimen-
sionando e classificando as grandes formaes paisagsticas e macroeco-lgicas do pas (AbSaber, 1971, 1995, 2003). Para tanto, o autor utiliza-se
do conceito de domnio morfoclimtico, que se materializa tambm num
domnio fitogeogrfico.1Ele define um domnio morfoclimtico e fitoge-
ogrfico da seguinte maneira:
1 Morfose refere forma efitose refere vegetao.
I
O Cerrado brasileiro: formao, caractersticasecolgicas e histrico de ocupao
Os primeiros agrupamentos humanos assistiram s variaes
climticas e ecolgicas desse utuante universo paisagstico e hidro-
lgico dos tempos quaternrios e foram profundamente inuenciados
por eles. (...) Mais do que simples espaos territoriais, os povos herda-
ram paisagens e ecologias, pelas quais certamente so responsveis, oudeveriam ser responsveis. (AbSaber, 2003: 10)
7/26/2019 Livro Cerrado
20/264
2 0
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
Um conjunto espacial de certa ordem de grandeza territorial de centenas de milhares a milhes de quilmetros quadrados
de rea onde haja um esquema coerente de feies de relevo,
tipos de solos, formas de vegetao e condies climtico-
hidrolgicas. Tais domnios espaciais, de feies paisagsti-
cas e ecolgicas integradas, ocorrem em uma espcie de rea
principal de certa dimenso e arranjo, em que as condies
fisiogrficas e biogeogrficas formam um complexo relativa-
mente homogneo e extensivo. A essa rea mais tpica e con-tnua via de regra, de arranjo poligonal aplicamos o nome
de rea core, logo traduzida por rea nuclear termos indife-
rentemente empregados, segundo o gosto e as preferncias de
cada pesquisador. [Entre as reas nucleares] existe sempre um
interespao de transio e de contato, que afeta de modo mais
sensvel os componentes da vegetao, os tipos de solos e sua
forma de distribuio e, at certo ponto, as prprias feies de
detalhe do relevo regional. (AbSaber, 2003: 11 e 12)
Segundo AbSaber, o Brasil abriga seis grandes domnios mor-
foclimticos ou paisagsticos, que so: (a) terras baixas orestadas daAmaznia ocupando uma extenso territorial de aproximadamente 2,8
milhes de km2; (b) chapades recobertos por Cerrados e penetrados
por orestas-galerias se estendendo por entre 1,7 e 1,9 milho de km2;
(c) depresses interplanlticas semiridas do Nordeste ocupando umarea entre 700 e 850 mil km2(predominncia de caatinga); (d) mares de
morros orestados abrangendo, na sua rea nuclear, cerca de 650 milkm2 (predominncia de Mata Atlntica); (e) planaltos das Araucrias
com uma extenso de cerca de 400 mil km2; (f) pradarias mistas do
sudeste do Rio Grande do Sul com cerca de 80 mil km2(AbSaber, 1971,1995 e 2003).
7/26/2019 Livro Cerrado
21/264
2 1
Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a
importante, para ajudar no entendimento das categorias queusaremos no decorrer deste captulo, diferenciar o que chamamos de
domnios morfoclimticos que corresponde aos domnios fitogeogr-
ficos e as noes de biomae de ecossistema. Este ltimo se refere aos
sistemas ecolgicos, com seus componentes biticos (fauna, ora) eabiticos (rocha, solo, gua, clima) presentes num determinado local
ou regio, no tendo, portanto, o carter de domnio de uma grande
faixa territorial como requer o conceito de bioma. AbSaber afirma que,
no Brasil, os ecossistemas bsicos so os Cerrados, as Caatingas, asFlorestas Amaznicas, as Florestas Atlnticas, as Araucrias e Bosques
Subtropicais e as Pradarias Mistas (AbSaber, 1995). Entretanto, exis-
tem enclaves de Cerrados na Amaznia, no Nordeste e no Brasil tro-
pical atlntico, o que quer dizer que os diversos ecossistemas podem
ser encontrados dentro de domnios fitogeogrficos cujo ecossistema
predominante diverso. J a categoria bioma se refere a um conjunto
vegetacional que apresenta certa uniformidade fisionmica.
Ribeiro e Walter (1998) entendem a noo de bioma de maneiraprxima ao conceito de domnio fitogeogrfico que adoto aqui.
Em cada bioma h um tipo de vegetao ou fitofisionomia
predominante, que ocupa a maior parte da rea, determinada
primariamente pelo clima. Outras fitofisionomias tambm so
encontradas, e a sua ocorrncia est associada a eventos tem-
porais e a variaes locais, como aspectos fsicos e qumicos,geomorfologia e topograa. (Ribeiro e Walter, 1998: 93)
Para fins deste trabalho, o bioma Cerrado o conjunto vegetacio-
nal que predomina no (e caracteriza o) domnio morfoclimtico e fito-
geogrfico dos chapades recobertos de Cerrado.
7/26/2019 Livro Cerrado
22/264
2 2
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
A formao do Cerrado brasileiroOs Cerrados brasileiros constituem uma fisionomia de savana nicano planeta. As savanas africanas e australianas so significativamente
diversas em relao ao nosso Cerrado, que representa hoje cerca de 5%
da biodiversidade planetria. De acordo com AbSaber,
na frica, predomina um arranjo transicional gradativo para os
diversos tipos de savanas, enquanto no Brasil, cerrados e cer-rades se repetem por toda parte, no interior e nas margens da
rea nuclear dos domnios morfoclimticos regionais. As varia-
es orsticas esto mais relacionadas com as orestas de gale-
ria do que propriamente com os nossos padres de cerrados e
cerrades. (AbSaber, 2003: 37)
Os Cerrados j ocupavam no Pleistoceno2
importantes exten-ses do Brasil Central, assim como dominavam a maior parte da rea
atual do domnio da Floresta Amaznica (Mapa 1). Devido ao clima
mais frio e seco que vigorou at no ltimo perodo do Pleistoceno (12
mil a 18 mil anos A.P.),3as formaes semiridas ocupavam parte do
Brasil Central, e a formao savnica ocupava a maior parte da RegioAmaznica. Com a ltima glaciao, que deu incio ao Holoceno (12
mil anos A.P.) ocorreu a tropicalizao do ambiente.
2 Pleistoceno a era geolgica compreendida entre 1.860.000 e 12.000 anos. Elesucede a poca Pliocena e antecede a poca Holocena (atual).
3 A. P. abreviao de antes do presente.
7/26/2019 Livro Cerrado
23/264
2 3
Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a
Mapa 1. Domnios naturais do Brasil, 12 mil a 18 mil anos atrs
Fonte: LEMTO/UFF, a partir de AbSaber (1977).4
4 LEMTO o Laboratrio de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades doDepartamento de Geografia da UFF, coordenado pelo professor Carlos Walter Porto Gon-alves. Trabalharam na confeco deste mapa os gegrafos Hugo Fioravante e Andressa Lac-erda. O gegrafo Sandro Heleno Laje converteu a figura para o preto e branco.
N
500 250 0 500 1.000
km
0
10S
20S
30S
0
10S
20S
30S
70W 60W 50W 40W
70W 60W 50W 40W
DOMNIO
REAS DE ESTEPE SUBDESRTICAS
REAS SEMI-RIDAS COM CAATINGAS E FLORAS SIMILARES (CACTCEAS)
FLORESTAS TROPICAIS, REFGIOS DE MATAS E BREJOSDE ENCOSTAS E SERRAS MIDAS
GRANDES NCLEOS DE CERRADO COM ENCLAVES DE CAATINGAS
NCLEO DE ARAUCRIA
REAS DE TRANSIO
7/26/2019 Livro Cerrado
24/264
2 4
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
O final do Pleistoceno (18 mil 12 mil anos A. P.) foi rigoro-
samente frio e seco, e o nvel do mar estava ao menos 100mabaixo do atual; o perodo anterior (30 mil 20 mil anos A.P.) apresentava, ao menos parcialmente, condies climticasmais amenas e o nvel do mar era mais alto; o Holoceno, final-mente, trouxe consigo o calor e a umidade, juntamente comum nvel de mar alto, que redundaram na tropicalizao doBrasil e, a partir do incio da era atual, numa certa estabilidadedessas condies. (Schmitz, 1993: 109)
Com esse aquecimento e umedecimento dos ambientes, o Cerrado
avanou sobre a caatinga. As orestas avanaram sobre o Cerrado (for-mando a oresta amaznica) e tambm sobre a caatinga (formando aoresta atlntica). Depois de milhares de anos consolidou-se o desenhofinal dos domnios citados acima, e o desenho do domnio do Cerrado
se configurou da forma como est representado no Mapa 2, restando
ainda algumas ilhas remanescentes na Regio Amaznica.
Nessa definio final, o clima foi e um fator preponderante. Aregio de domnio do Cerrado caracteriza-se pela presena de invernos
secos e veres chuvosos, um clima classificado como Aw de Kppen ou
tropical chuvoso (Ribeiro e Walter, 1998). Possui mdia anual de pre-cipitao da ordem de 1.500mm, variando de 750mm a 2.000mm. As
chuvas so concentradas de outubro a maro, e a temperatura mdia do
ms mais frio superior a 18 C. O contraste entre as superfcies mais
baixas (inferiores a 300m), as longas chapadas (entre 900m e 1600m) e
a extensa distribuio em latitude conferem ao Cerrado uma diversifi-cao trmica bastante grande (Ribeiro e Walter, 1998). Eiten, porm,afirma que:
O efeito do clima sobre o Cerrado, entretanto, direto somente
no sentido de que o Cerrado s ocorre onde no h geadas ou,
7/26/2019 Livro Cerrado
25/264
2 5
Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a
como na borda sul da provncia, somente geadas infrequen-tes, quase sempre leves e de pouca durao. [...] Dentro desses
limites, o efeito do clima sobre o Cerrado indireto, atravs
de sua ao sobre o solo. O mesmo clima no Brasil Central
sustenta a oresta mesoftica de intervio, em solos su-
cientemente profundos, bem drenados, relativamente ricos
em ons que as plantas requerem e com pouco ou nenhum
alumnio disponvel, e sustenta vrias densidades de Cerrado
onde o solo mais pobre, seja arenoso ou argiloso, e com apre-civel alumnio disponvel. [...] Mas esta prpria condio foi
causada pelo clima tropical e mido, pelo menos em parte do
ano, agindo por tempos longos nas partculas de solo perto
da superfcie, lixiviando-as e mudando os minerais de argila
do tipo montmorilonita, que retm bastante ons, para o tipo
caulinita e sesquixidos de ferro e alumnio, que retm poucos
ons. (Eiten, 1993: 19)
A interao dos fatores clima e solo na constituio do Cerrado vem
sendo objeto de uma longa e antiga polmica. Nas dcadas de 1960 e 1970
foram publicadas diversas pesquisas que sustentavam que a propalada
pobreza dos solos dos Cerrados (acidez/alto teor de alumnio,5distro-
fismo/baixos teores de nutrientes) estaria na base da explicao da sua
fisionomia tortuosa, de cascas espessas e folhas coriceas.6A teoria do
escleromorfismo oligotrficoligado deficincia de nutrientes e toxidez doalumnio, presente em alto teor nos solos dos Cerrados, foi tida, nessa
5 A acidez do solo est vinculada ao PH baixo e, em geral, est associada ao elevadoteor de alumnio no solo que, em altas concentraes, txico s plantas.
6 O termo coriceasvem de couro. Quer dizer que as folhas tem uma textura espessa,endurecida.
7/26/2019 Livro Cerrado
26/264
2 6
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
poca, como a grande descoberta para a explicao do seu xeromorfismo,7
ao contrrio do entendimento anterior de que esse xeromorfismo estaria
ligado ao dficit hdrico (Goodland, 1971, Ferri, 1977, Ferri e Goodland,
1979). Segundo esses autores, o dficit hdrico no existiria, pelo fato de
no haver essa deficincia nos solos de Cerrado (esses solos teriam uma
grande capacidade de guardar gua e as razes, de busc-la) e, tambm,
por no se constatar restries na abertura dos estmatos8das plantas do
Cerrado, no sentido de diminuir sua transpirao.
Entretanto, estudos posteriores vieram contestar essa teoria. Alvime Silva (1980), por exemplo, pesquisaram o balano hdrico de diversas
plantas arbreas do Cerrado, tomando por base o crescimento do tronco,
parmetro considerado como dos mais precisos para o estudo da econo-
mia de gua de plantas tropicais. Os resultados desses estudos demons-
tram claramente que as rvores tpicas do Cerrado tm seu crescimento
fortemente reduzido nos perodos secos (em geral de maio a agosto),
no se podendo, portanto, dizer que tais plantas sejam fisiologicamente
insensveis s condies de aridez sazonal que caracterizam as zonas deCerrado, ou que o chamado xeromorfismo da grande maioria das esp-
cies no seja uma manifestao de real xerofitismo, ou adaptao anat-
mica e fisiolgica carncia de gua durante a seca (Alvim, 1996). Por
outro lado, Miranda e Miranda (1996), em estudos realizados no Distrito
Federal, apontam que as taxas de transpirao de um Cerrado estrito
senso so bastante baixas e se reduzem ainda mais na seca. Veremos estesdados mais frente na Tabela 5.
J pesquisadores da rea da pedologia, como Ker e Resende(1996: 17), afirmam que a presena de Cerrado em solos praticamente
7 Xeromorfismo tem a ver com uma fisionomia (forma) de plantas de ambiente seco(xerfitas
8 Estmatos so estruturas celulares na folha que tm as funes de realizar trocasgasosas entre a planta e o meio ambiente e viabilizar sua transpirao.
7/26/2019 Livro Cerrado
27/264
2 7
Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a
sem alumnio (Resende et al., 1988)9
indica no ser este elemento oresponsvel pelos aspectos xeromrficos da plantas do Cerrado. Eles
afirmam que as plantas de Cerrado, pelo menos em grande parte, devero
manter as caractersticas de tortuosidade e aspecto xeromrfico quando
as sementes so plantadas em solo eutrfico,10ou seja, a tortuosidade e
xeromorfismo so de origem gentica e no ambiental. Arrisco afirmar,
ento, que essas caractersticas seriam o resultado de um longo processo
de adaptao (gentica), inclusive a fatores como o fogo, um componente
ambiental sempre presente na histria de constituio do Cerrado. Afinal,a constituio gentica se d a partir da seleo natural que se opera
na relao adaptativa das espcies com as caractersticas e limitaes
ambientais, como mostrou Charles Darwin.
De acordo ainda com Ker e Resende (1996), a pobreza qumica e adeficincia de gua atuais no so as causas do Cerrado, apenas o man-
tm em relao s ocupaes competitivas da oresta11e da caatinga. OCerrado, uma vez estabelecido, tende a se manter com mais tenacidade
do que outras formaes e , de certa forma, favorecido pelas limitaesambientais, desde que no sejam extremas. Uma deficincia de gua mais
pronunciada leva caatinga; deficincia de oxignio leva aos campos
higrfilos e hidrfilos. J a deficincia de fertilidade, de acordo com estes
autores, , por ora, o nico extremo que favorece o Cerrado,12talvez numa
expresso mais campestre. Assim, o Cerrado teria na plasticidade s limi-
taes de deficincia de gua e nutrientes, um ponto forte e na propagao
por sementes, a maior dificuldade no seu estabelecimento e manuteno.
9 RESENDE, M.; SANTANA, D. P.; CURI, N. (1988). Pedologia e Fertilidade doSolo; interao e aplicaes. Lavras: ESAL, 81 p.
10 Eutrfico se refere boa disponibilidade de nutrientes (o contrrio distrfico).
11 A pobreza qumica do solo, no caso da oresta amaznica, um fator comum como Cerrado. O que diferencia o regime de chuvas que permite a constituio da oresta.
12 Mas, s o favorece nas condies climticas especficas, pois uma maior umidadepode gerar a constituio de um ecossistema orestal no lugar da savana.
7/26/2019 Livro Cerrado
28/264
2 8
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
Importante salientar aqui que esse conceito de pobreza ou deficin-cia de fertilidade do solo oriundo da agronomia moderna que definiu
os macro e microelementos qumicos (nutrientes) que fazem um solo ser
considerado rico ou pobre em nutrientes. Certamente, esta definio tem
a ver com as exigncias das principais culturas alimentares do mundo, que
no so iguais, por exemplo, s das plantas frutferas do Cerrado como
pequi, buriti, araticum, mangaba, cagaita, cajuzinho, bacuri etc., que so
ricas em nutrientes e sempre fizeram parte da dieta dos povos do Cerrado.
Essas plantas nascem, crescem e produzem, com um nvel razovel defartura, em condies chamadas por essa agronomia de baixa fertilidadeealta acidezdos solos, inclusive com nveis de alumnio considerados txi-
cos. Isso demonstra um processo histrico de adaptao (inclusive ao fogo)
que relativiza esses conceitos um tanto reducionistas do que seja riqueza
ou pobreza. Esses solos, teoricamente pobres, sustentam uma das maiores e
mais ricas biodiversidades do planeta, como veremos.
Enfim, a concluso de Alvim (1996), num artigo especfico sobre
este tema, parece ser a mais certeira e sinttica no tocante aos fatores deformao do Cerrado.
Com base na reviso anterior, [...] conclui-se que o fator
ambiental mais diretamente relacionado com a formao des-
ses ecossistemas , indubitavelmente, a carncia de gua para
o crescimento das plantas durante determinados perodos do
ano (estresse hdrico). Tal carncia tanto pode ser uma con-seqncia direta do regime pluviomtrico da regio (longa
estao seca), a exemplo do que acontece no Brasil Central,
ou indiretamente, uma resultante de limitaes fsicas ou
mesmo qumicas do solo que prejudicam o crescimento das
razes, conseqentemente reduzindo a capacidade de absor-
o de gua das plantas, como ocorre nas manchas podzlicas
7/26/2019 Livro Cerrado
29/264
2 9
Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a
da regio amaznica. As queimadas freqentes indubitavel-mente modicam a ora e as caractersticas sionmicas dos
Cerrados, porm nada tm a ver com os processos evoluti-
vos que deram origem ao aparecimento das plantas tpicas do
ecossistema. (Alvim, 1996: 58)
Essa concluso vai no sentido de afirmar o Cerrado como uma vege-
tao/fisionomia clmax, podendo esta fisionomia ser modificada pelaao do fogo. Mas a ausncia deste no modifica a natureza savnica desse
conjunto vegetacional que o Cerrado brasileiro.
Populao e distribuio estadual do CerradoOs dados que apresentaremos a seguir se basearam num levanta-
mento realizado pelo Laboratrio de Estudos de Movimentos Sociais
e Territorialidades (LEMTO, Geografia/UFF), a partir do documentoEcossistemas brasileiros,13 que dividiu o territrio brasileiro em 49
ecorregies. Este levantamento indicou que o domnio do Cerrado se
estende no Brasil por 192,8 milhes de hectares, abrangendo treze esta-
dos da federao, o que corresponde a 22,65% do territrio brasileiro,
onde vivem mais de 22 milhes de pessoas (Tabela 1). Esse total corres-
ponde ao chamado Cerrado Contnuo, ou rea nuclear do Cerrado bra-
sileiro. Como se pode observar na Tabela 2, h estados que tm a tota-
lidade ou a maior parte de seu territrio dentro do Cerrado Contnuocomo: Distrito Federal (100,0%), Gois (96,6%), Tocantins (75,6%) e
Mato Grosso do Sul (59,3%). H estados em que, mesmo no sendo
majoritrio, o percentual pertencente rea do Cerrado Contnuo
bastante significativo: Mato Grosso (48,3%), Minas Gerais (46,7%),
13 Organizado por Moacir Bueno Arruda, 2001, edies IBAMA.
7/26/2019 Livro Cerrado
30/264
3 0
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
Maranho (42,1%), Piau (38,6%), So Paulo (30,6%) e Bahia (21,4%).Finalmente, h estados com um pequeno percentual de seu territrio
dentro do Cerrado Contnuo, como: Rondnia (6,7%), Paran (2,7%)e Par (0,1%).
Tabela 1. Populao da rea de domniodo Cerrado Contnuo no Brasil, 1996
Estados Populao Totaldo Cerrado
PopulaoUrbana do
CerradoPopulao Ruraldo Cerrado
Bahia 141.682 50.367 91.315
Distrito Federal 1.821.946 1.692.248 129.698
Gois 4.388.809 3.765.836 622.973
Maranho 984.805 513.068 471.736
Mato Grosso 1.638.620 1.334.006 304.613
M. Grosso doSul 1.236.006 1.072.476 163.530
Minas Gerais 5.531.652 4.642.139 889.514
Par 3.609 1.884 1.725
Paran 174.964 146.831 28.133
Piau 414.982 211.552 203.429
So Paulo 5.042.005 4.589.621 452.384
Tocantins 532.979 340.701 192.278
Total Brasil 21.912.059 18.360.729 3.551.328Total Brasil 100,00% 83,79% 16,21%
Fonte: LEMTO, a partir de: Arruda (2001 - Ecossistemas Brasileiros) e IBGE, contagempopulacional, 1996.
Por se constituir em um bioma de localizao central, o domnio do
Cerrado brasileiro se caracteriza por ser uma grande regio de contato
7/26/2019 Livro Cerrado
31/264
3 1
Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a
com os outros biomas e seus domnios (Mapa 2) a Floresta Amaznica,a Mata Atlntica, a Floresta de Araucria, a Caatinga, o Pantanal, as Matas
de Cocais do Maranho e Piau. Se considerarmos todas essas reas de
transio e ainda as ilhas de Cerrado na Amaznia (AP, RR, AM e PA),chegamos a um total de 315,0 milhes de hectares, ou 37% da superfcie
de nosso pas, onde vivem mais de 37 milhes de pessoas, de acordo com
os dados da contagem populacional do IBGE de 1996.14
A Tabela 1 revela ainda que a populao da rea do Cerrado
Contnuo est localizada nas sedes municipais (83,79%), ao contrriodo que acontecia em 1960, ano da inaugurao de Braslia, quando
dos 11 milhes de habitantes da regio, aproximadamente 7 milhes
viviam nas reas rurais (63,6% do total), de acordo com Brito (1980:
275). Houve ento, nesse perodo, uma forte migrao das reas
rurais para as sedes municipais (critrio usado pelo IBGE para definir
urbanizao).
Tabela 2. Percentuais de Cerrados e suastransies nos estados brasileiros
UF - Tipo de Cerrado % de Cerrado % de CerradoTotal
Amap - Cerrados Amaznicos-AP
6,7 6,7
Amazonas - Transio Cerrado-Floresta Amaznica
0,4 0,4
Bahia - Cerrado Contnuo 21,4Bahia - Transio Cerrado-
Caatinga3,8
14 Esses dados foram organizados no LEMTO (Laboratrio de Estudos de Movimen-tos Sociais e Territorialidades) do Departamento de Geografia da UFF, utilizando a malhamunicipal de 1996, ressaltando que outros municpios foram criados depois desse ano.
7/26/2019 Livro Cerrado
32/264
3 2
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
Bahia - Transio Mata Atlntica-Cerrado 0,0 25,2
Distrito Federal - CerradoContnuo
100,0 100,0
Gois - Cerrado Contnuo 96,6
Gois - Transio Cerrado-MataAtlntica
3,5 100,0
Maranho - Cerrado Contnuo 42,1
Maranho - Transio Cerrado-Floresta Amaznica
0,0
Maranho - Zona dos Cocais 32,2 74,3
Mato Grosso - rea Cerrado-Pantanal
5,9
Mato Grosso - Cerrado Contnuo 48,3
Mato Grosso - Transio Cerrado-Floresta Amaznica
27,7 81,9
Mato Grosso do Sul - reaCerrado-Pantanal
26,0
Mato Grosso do Sul - CerradoContnuo
59,3
Mato Grosso do Sul - TransioCerrado-Mata Atlntica
14,8 100,0
Minas Gerais - Cerrado Contnuo 46,7
Minas Gerais - TransioCerrado-Caatinga
2,6
Minas Gerais - TransioCerrado-Mata Atlntica
1,9
Minas Gerais - Transio MataAtlntica-Cerrado
8,9 60,2
Par - Cerrado Contnuo 0,1
Par Cerrados Amaznicos-PA 1,2
7/26/2019 Livro Cerrado
33/264
3 3
Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a
Par - Transio Cerrado-FlorestaAmaznica 12,8 14,1
Paran - Cerrado Contnuo 2,7
Paran - Transio Cerrado-MataAtlntica
41,2 44,0
Piau Cerrado Contnuo 38,6
Piau - Transio Cerrado-Caatinga
6,7
Piau Zona dos Cocais 19,0 64,3
Rondnia - Cerrado Contnuo 6,1
Rondnia - Transio Cerrado-Floresta Amaznica
2,2 8,3
Roraima - Cerrados Amaznicos-RR
23,8 23,8
So Paulo - Cerrado Contnuo 30,6
So Paulo - Transio Cerrado-Mata Atlntica
37,7 68,3
Tocantins - Cerrado Contnuo 75,6
Tocantins - Transio Cerrado-Floresta Amaznica
21,7 97,3
Fonte: LEMTO, a partir de Arruda, 2001 - Ecossistemas Brasileiros.
7/26/2019 Livro Cerrado
34/264
3 4
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
Mapa 2. Domnio do Cerrado e suas reas de transio
Autor: LEMTO, a partir de Arruda, 2001; layoutdo gegrafo Sandro Heleno Laje da Silva.
Biodiversidade e gua: a importncia ea riqueza ecolgica do CerradoA dimenso da biodiversidade dos Cerrados ainda no est completa-
mente conhecida. Segundo Dias (1996), so mais de 2 mil espcies de
N
0
10S
20S
30S
0
10S
20S
30S
70W 60W 50W 40W
70W 60W 50W 40W
DOMNIO CERRADO E TRANSIES
REA CERRADO PANTANAL
CERRADO CONTNUO
CERRADOS AMAZNICOS - AP
CERRADOS AMAZNICOS - PA
CERRADOS AMAZNICOS - RR
TRANSIO CERRADO AMAZNIA
TRANSIO CERRADO CAATINGA
TRANSIO CERRADO MATA ATLNTICA
TRANSIO MATA ATLNTICA CERRADO
ZONA DOS COCAIS500 250 0 500 1.000
kmm
7/26/2019 Livro Cerrado
35/264
3 5
Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a
plantas lenhosas, um nmero ainda maior de espcies herbceas (entreelas mais de 233 espcies de orqudeas s no Distrito Federal) e um
nmero ainda desconhecido de animais; s no Distrito Federal esto
registradas mais de 430 espcies de aves (Dias, 1996). De acordo com
Arruda (2001) a ora do Cerrado comporta mais de 10 mil espcies,com 4.400 endmicas (exclusivas) dessa rea.
Klink (1996) arma que o Cerrado possui a ora mais rica dentreas savanas do mundo. Partindo de um nmero bem mais modesto do
que o de Dias, de 429 espcies de rvores e arbustos, mostra que essevalor muito superior ao nmero de espcies de rvores e arbustos das
savanas do Suriname (15) ou da Venezuela (43).O documento recente do Ministrio do Meio Ambiente sobre a
biodiversidade brasileira aponta os nmeros de espcies para o Cerrado
brasileiro expostos na Tabela 3.
Tabela 3. Quantidade de espcies animais
e vegetais do Cerrado brasileiro
Discriminao Cerrado
rvores 6.000
Aves 837
Mamferos 195
Peixes 78015
Anfbios 113
Mamferos 195
Fonte: Ministrio do Meio Ambiente, 2004. 15
15 Esse nmero inclui Cerrado e Pantanal, os outros so referentes ao Cerrado contnuo.
7/26/2019 Livro Cerrado
36/264
3 6
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
Dias ressalta no universo vegetal dos Cerrados quatorze grupos deplantas teis:
Plantas forrageiras: um percentual expressivo1. 16da rea do bioma
dos Cerrados utilizada como pastagens nativas que ajudam a
suportar cerca de 40% do rebanho nacional. Filgueiras e Wechsler
(1996) j identificavam, nessa poca, 270 espcies de gramneas
e 548 de leguminosas forrageiras nos Cerrados, alm de 83 esp-
cies de rvores, arbustos e ervas consumidas pelo gado;
Plantas madeireiras: segundo Silva Jr. e Felfili (1996), um2.hectare de Cerrado estrito senso (Cerrado tpico) produz at
27,24 toneladas de material lenhoso, comportando espcies
de madeira de alto valor comercial como aroeira Astronium
urundeuva, sucupira Bowdichia virgilioides, landim, pau-preto,
vinhtico Platymenia reticulata, perobaAspidosperma dasycar-
pon, jatob Hymenaea stignocarpa, pau dleo Copaifera langs-
dorfi, gonalo-alvesAstronium fraxinifoliume outras;
Plantas alimentcias: cerca de oitenta espcies dos Cerrados for-3.necem frutos, sementes ou palmitos saborosos e nutritivos ao
homem. Pequi Caryocar brasiliense, araticum Annona crassi-
flora, mangaba Hancornia speciosa, guariroba Syagrus oleracea,
cagaita Eugenia dysenterica, coquinho-azedo Syagrus flexuosa,
baru Dypterix alata, jatob, cajuzinhoAnacardum athonianum,
murici Byrsonima coccolobifolia, mama cadela Brasimum gandi-
chandie o buritiMauritia viniferaso alguns exemplos;
Plantas condimentares, aromatizantes e corantes: as pimen-4.
16 Esse percentual era cerca de 40% ao final da dcada de 1990. Hoje, as estimativasso variadas, mas certamente, o valor menor, em funo do avano do desmate para im-plantao de monoculturas e pastagens homogneas. Um trabalho da EMBRAPA-Cerradosestimava para o ano 2001, em apenas 13%, o percentual de pastagem nativa na rea do CerradoContnuo. Ver: SANO, E. E.; JESUS, E. T.; BEZERRA, H. S. Uso de um Sistema de InformaesGeogrficas para quantificao de reas remanescentes do Cerrado. Planaltina, DF: EmbrapaCerrados, 2001 (Comunicado Tcnico).
7/26/2019 Livro Cerrado
37/264
3 7
Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a
tas-de-macacoXylopia sspe Piper tuberculatum, a canela-ba-talha Cryptocaria sp, a baunilha Vanilla sp, o arcassu Croton
adenodontuse o aafro do Cerrado Escobedia grandiflora;
Plantas txteis (fibras);5.
Plantas corticeiras: cerca de vinte espcies conhecidas;6.
Plantas tanferas (alto teor de tanino no lenho, na casca ou nos7.
frutos) como o barba-timo Stryphnodrendron adstringens, o
angicoAnadenanthera spp, o carvoeiro Sclerolobium panicula-
tum, a favela Dimorphandra mollis(fava danta ou faveira);Plantas com exsudatos no tronco (resina, goma, blsamo e8.
ltex): os jatobs, o breu Protium brasiliense, a laranjinha do
campo Styrax ferrugineus, as gomeiras Vochysia ssp, o angico
vermelhoAnadenanthera macrocarpa, a aroeira, o pau dleo,
a mangaba e outras;
Plantas produtoras de leo e gordura como o babau9. Orbygnia
oleifera, a macabaAcrocomia sclerocarpae o pequi;
Plantas medicinais: mais de cem espcies dos Cerrados so10.empregadas neste sentido;
Plantas ornamentais: cerca de duzentas espcies;11.
Plantas empregadas no artesanato: cerca de cem espcies12.
conhecidas;
Plantas apcolas: um levantamento no Distrito Federal13.
levantou 220 espcies;
Plantas aparentadas de cultivos comerciais: essas pertencem a14.
gneros nos quais se encontram importantes espcies comer-ciais e que mereceriam estudos para possvel uso e melhora-
mento. So exemplos: os gneros da mandioca (Manihot), do
caju (Anacardium), do abacaxi (Ananas), da pinha (Anona),
do car (Dioscorea), do caqui (Dispyrus), da goiaba (Psidium),
do maracuj (Passiflora), do amendoim (Arachis), do guaran
(Paullinea) (Dias, 1996).
7/26/2019 Livro Cerrado
38/264
3 8
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
A grande biodiversidade presente no domnio dos Cerrados sereete nas diferentes sionomias/ecossistemas que a se abrigam. Nadescrio de Dias:
A regio dos Cerrados constitui um grande mosaico de paisa-
gens naturais dominado por diferentes fisionomias de savanas
estacionais sobre solos profundos e bem drenados das chapadas
(os cerrados), ocupando mais de 2/3 das terras, que so recor-tadas por estreitos corredores de orestas mesofticas perenif-
lias ao longo dos rios (as matas de galeria) ladeados por savanas
hiperestacionais de encosta (os campos midos) ou substitudos
por brejos permanentes (as veredas). Esse padro interrompido
por encraves de outras tipologias vegetais: savanas estacionais
de altitude (os campos rupestres), savanas estacionais em solos
rasos (os campos litlicos), orestas xeromrcas semidecduas
(os cerrades), orestas mesofticas dos aoramentos calcrios(as matas secas), orestas mesofticas de planalto (as matas de
intervio), savanas hiperestacionais aluviais com murunduns
(os pantanais), orestas baixas xeromrcas decduas em solos
arenosos (os carrascos), alm dos ambientes diferenciados asso-
ciados s cavernas, lajedos, cachoeiras e lagoas.17(Dias, 1996:17)
17 Nesta descrio, Dias identifica 11 ecossistemas ou tipos de vegetao que podemser separados em dois grandes tipos: as formaes orestais (matas de galeria, cerrades, ma-tas secas, carrascos e matas de intervio), as formaes savnicas (Cerrados, pantanais, cam-pos midos, campos rupestres, campos litlicos, veredas). Ribeiro e Walter (1998) descrevemtambm 11 tipos fisionmicos dentro do domnio do Cerrado, mas de forma diferente: forma-es orestais (mata ciliar, mata de galeria, mata seca e cerrado), savnicas (Cerrado sentidorestrito, parque de Cerrado, palmeiral e vereda) e campestre (campo sujo, campo rupestre ecampo limpo). Particularmente, prefiro a descrio de Dias por ser mais integradora do pontode vista ecolgico.
7/26/2019 Livro Cerrado
39/264
3 9
Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a
Alm dessas diversas formaes especficas que ocorrem no inte-rior do Cerrado Contnuo, importante ressaltar a diversidade de ecos-
sistemas e espcies especficas das reas de transio, onde se formaram
fisionomias tambm especficas como a mata de cocais18no Maranho,
Piau e Tocantins e diversas outras formaes que propiciaram, inclu-
sive, nichos favorveis sobrevivncia de diversos povos que a se esta-
beleceram, explorando a riqueza ofertada pela natureza. Tambm
importante destacar que no domnio do Cerrado se encontram as duas
maiores plancies alagadas do planeta: o Pantanal e a plancie do Araguaia(Tabela 4). Esse fato refora a relevncia hdrica do domnio do Cerrado,
como veremos.
As diferentes formaes/ecossistemas descritas por Dias esto
organizadas a partir das grandes unidades de paisagem presentes na
rea do Cerrado Contnuo, conforme a Tabela 4.
Tabela 4. Distribuio espacial primitiva dos diferentes tipos deecossistemas do domnio do Cerrado (includo o Pantanal)
Tipo de ecossistemarea estimada1000 ha %
Ecossistemas de serra(2,5%)
Campo rupestre 5.100 2,5
Ecossistemas de chapada
(80,4%)
Cerrados (estritosenso)
108.000 53,0
Campos de cerrado 23.600 11,6
Cerrades 16.900 8,3
Matas de intervio 10.200 5,0
18 A mata de cocais, caracterizada pela presena dominante do coco babau, , naverdade, uma formao de transio entre 3 grandes biomas: Cerrado, Floresta Amaznica eCaatinga.
7/26/2019 Livro Cerrado
40/264
4 0
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
Ecossistemas de transiochapada/encosta (2,5%) Campo litlico 5.100 2,5
Ecossistemas de planciealagada (5,5%)
Campo mido/pantanal
11.200 5,5
Ecossistemas de encosta efundo de vale (5,0%)
Matas de galeria 10.200 5,0
Vereda e brejo 5.100 2,5
Outros (4,0%) Carrascos e outros 8.200 4,0
Total 203.600 100,0
Elaborado pelo autor a partir de Dias, 1996.
Pela sua extenso territorial (25% do pas), pela sua posio
central (que propicia compartilhar espcies com quatro outras
regies), pela sua diversidade de tipologias vegetais (que
abrigam cerca de onze biotas distintas), e por conter trechos
importantes das trs maiores bacias hidrogrficas brasileiras
e sul-americanas, a regio do Cerrado potencialmente abrigaaproximadamente um tero da biota brasileira, ou seja, cerca
de 5% da fauna mundial. (Dias, 1996: 20)
Nota-se, a partir da Tabela 4, que os ecossistemas de chapada repre-
sentam 80,4% da rea do Cerrado Contnuo. Esse dado extremamente
relevante, pois as chapadas so reas de recarga hdrica do biomae, como
veremos, nessa unidade da paisagem que se d a disputa entre o agro-negcio e o agroextrativismo campons pelo modelo de ocupao, produ-
o e desenvolvimento no mbito do domnio do Cerrado. A localizao
central do domnio do Cerrado e as caractersticas dessas extensas cha-
padas planas, de solos profundos, geologicamente velhos e permeveis,
fazem dessa regio a verdadeira caixa dgua do territrio brasileiro, fato
ilustrado e comprovado pelo Mapa 3 que mostra como a regio central
7/26/2019 Livro Cerrado
41/264
4 1
Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a
do domnio do Cerrado capta e distribui as guas que vo alimentar amaior parte da bacia do So Francisco e do Araguaia/Tocantins, toda
parte alta da bacia do Paran e partes importantes das bacias Atlntico
Norte-Nordeste, Amazonas (parte dos auentes da margem direita) eAtlntico Leste (Pimentel et al, 1977). Alm disso, uma parte importante
das chapadas da transio Cerrado-Mata Atlntica e Cerrado-Caatinga
responsvel pelas cabeceiras de bacias importantes como as dos rios
Pardo e Jequitinhonha em Minas Gerais.
Na verdade, a funo de caixa dgua do Cerrado, exercida pri-mordialmente pelas suas chapadas, reforada pela prpria fisiologia
e ecologia da vegetao do Cerrado, que se manifesta nas seguintes
caractersticas:
Baixa produo de biomassa, que condiciona baixo consumo1.
de gua. Enquanto a Floresta Amaznica produz entre 350 e
550 toneladas de biomassa por hectare, o Cerrado produz entre
10 e 40 toneladas. Como 2/3 da biomassa constituda de gua,
conclui-se que a vegetao do Cerrado retm menos gua nasua biomassa do que as formaes orestais. A monoculturado eucalipto em reas de Cerrado, por exemplo, produz mais
de 300 toneladas de biomassa por hectare, retendo muito mais
gua na sua estrutura (Lima, 1996).
As caractersticas fisionmicas de possuir casca grossa e folhas2.
coriceas fazem com que a vegetao do Cerrado transpire
pouco, transpirao essa que ainda mais restrita na poca da
seca: o Cerrado transpira 2,6mm no perodo das guas e 1,5mmpor dia na seca. A monocultura da soja transpira 8,4mm e a do
eucalipto 6,0mm por dia, como mostra a Tabela 5. Naturalmente,
a substituio do Cerrado por essas monoculturas altera o ciclo
hidrolgico local, afetando a recarga hdrica que abastece o len-
ol fretico e, por conseqncia, as nascentes e cursos dgua
do bioma.
7/26/2019 Livro Cerrado
42/264
4 2
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
A capacidade de reserva hdrica e de nutrientes do sistema radi-3.cular da vegetao do Cerrado muito superior das formaes
orestais, o que lhe confere tambm uma maior capacidade derebrota aps possveis perturbaes (fogo, corte raso etc.).19
Mapa 3. Cerrado Contnuo e as grandesbacias hidrogrficas brasileiras20
19 Devido a esta caractersticas, muitos dizem que o Cerrado uma oresta de cabeapara baixo, pois a maior parte de sua biomassa estaria dentro da terra.
20 Este mapa foi elaborado pelo autor e pelo gegrafo Sandro Heleno Laje da Silva, apartir do banco de dados do LEMTO.
N
0
10S
20S
30S
0
10S
20S
30S
70W 60W 50W 40W
70W 60W 50W 40W
DOMNIO CERRADO E TRANSIES
BACIAS HIDROGFICAS
CERRADO CONTNUO
Bacia do Rio Amazonas
Bacia do Atlntico - Trecho N/NE
Bacia do Atlntico - Trecho Leste
Bacia do Rio So Francisco
Bacia do Rio Paran
Bacia do Rio Tocantins
Bacia do Atlntico Trecho SE
Bacia do Rio Uruguai
1
2
3
4
5
6
7
8
500 250 0 500 1.000kmm
1 2
6
4
3
5
8
7
7/26/2019 Livro Cerrado
43/264
4 3
Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a
Alm desses fatores fisionmicos, a funo de caixa dgua (reade recarga) exercida pelas chapadas do domnio do Cerrado tam-
bm condicionada por sua topografia plana ou suave-ondulada e pelas
caractersticas dos latossolos profundos e porosos que a predominam,
fazendo com que funcionem como uma esponja absorvedora de gua
que alimenta o lenol fretico.
Os latossolos sob Cerrado tendem, ao contrrio da maioriados latossolos amaznicos, a ser ricos em gibbsita,21 apre-
sentando uma estrutura granular bem desenvolvida, p de
caf, que facilita: a infiltrao de gua, a eroso em sulcos e
a baixa condutividade capilar, quando o solo deixa de estar
saturado. Alm desses aspectos, os latossolos gibbsticos tm
grande poder tamponante sobre o ciclo da gua: os cursos
de gua tendem a ser mais perenes que os de outros ecossiste-
mas (amaznico, inclusive); mas em compensao, no raro,encontram-se a mais de 20km um do outro.22(Ker e Resende,
1996: 15)
Tabela 5. Taxas de transpirao paradiferentes tipos de cobertura vegetal
Cobertura vegetal Taxa de transpirao (mm/dia)Cerrado (chuva) 2,6
Cerrado (seca) 1,5
21 Gibbsita um xido de alumnio.
22 Grifos meus.
7/26/2019 Livro Cerrado
44/264
4 4
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
Arroz 4,3Girassol 5,6
Milho 2,8
Soja 8,4
Trigo 4,4
Campo 2,6
Pinus elliotis 4,7
Eucalipto 6,0
Fonte: Miranda e Miranda, 1996.
Sobre o que resta de CerradoH vrios estudos sobre a situao do uso da terra no domnio do
Cerrado e sobre os seus remanescentes, com diferentes metodologias e
nomenclaturas e alguma divergncia entre eles.
Um estudo importante foi realizado nos ltimos anos pelaConservao Internacional do Brasil (Machado et al, 2004), com base
em imagens de satlite de agosto de 2002. Esse estudo mostra que a
rea desmatada j atingia 55% da rea de domnio do Cerrado (cerca
de 87 milhes de hectares), numa taxa mdia anual de desmatamento
de 1,1%. O estudo mostra que entre as regies mais conservadas esto
o Oeste da Bahia e Sul do Piau e Maranho, que so hoje, junto com
as reas do Estado do Mato Grosso, as principais reas de expanso das
monoculturas de soja, fato que confirma a preferncia do agronegcio porreas novas. O estudo mostra ainda que as unidades de conservao
no Cerrado somavam 2,2% sendo modestas as perspectivas de sua
expanso e as terras indgenas representavam 2,3% da rea original do
domnio do Cerrado.
Numa publicao posterior, Klink e Machado (2005) apresentam
os resultados sistematizados, segundo a tabela abaixo (Tabela 6), ressal-
7/26/2019 Livro Cerrado
45/264
4 5
Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a
vando que a rea pesquisada (158 milhes de hectares) menor do quea rea considerada como Cerrado Contnuo ou rea nuclear do Cerrado
(cerca de 200 milhes de hectares).
Tabela 6. Principais usos da terra no Cerrado
Uso da terra rea (ha) % rea central dobioma
reas nativas* 70.581.162 44,53
Pastagens plantadas 65.874.145 41,56Agricultura 17.984.719 11,35
Florestas plantadas 116.760 0,07
reas urbanas 3.006.830 1,90
Outros 930.304 0,59
Total 158.493.921
Fonte: KLINK e MACHADO, 2005. * Estimativas sem aferio em campo e incluindo reasnativas em qualquer estado de conservao.
Pela tabela, podemos inferir que mais de 55% das reas com
vegetao nativa do Cerrado j estavam antropizadas, ou seja, t ive-
ram a vegetao nativa erradicada para dar lugar a outras paisa-
gens: agricultura, pastagem, monocultura de rvores, reas urbanas
e outras.
Ribeiro (2007), que catalogou estes estudos recentemente para
um programa do Ministrio do Meio Ambiente (MMA), observa queos pesquisadores afirmam que essa destruio atinge nmeros supe-
riores ao observado na Amaznia, pois os 880.000km j desmatados
no Cerrado representam quase trs vezes a rea desmatada naquele
bioma. No apenas esse quadro preocupante, mas tambm o ritmo de
destruio do Cerrado adquire propores alarmantes e superiores ao
observado, historicamente, em outras paisagens brasileiras.
7/26/2019 Livro Cerrado
46/264
4 6
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
As taxas anuais de desmatamento tambm so mais elevadasno Cerrado: entre os anos de 1970 e 1975, o desmatamento
mdio no Cerrado foi de 40.000km2por ano 1,8 vezes a taxa
de desmatamento da Amaznia durante o perodo 1978-1988
(Klink & Moreira, 2002). As taxas atuais de desmatamento
variam entre 22.000km2 e 30.000km2 por ano (Machado et
al., 2004a), superiores quelas da Amaznia. Estas diferenas
se devem em parte ao modo que o Cdigo Florestal trata os
diferentes biomas brasileiros: enquanto exigido que apenas20% da rea dos estabelecimentos agrcolas sejam preserva-
das como reserva legal no Cerrado, nas reas de oresta tro-
pical na Amaznia esse percentual sobe para 80%. (Klink e
Machado, 2005: 148, citados por Ribeiro, 2007)
Outro estudo, realizado mais recentemente pela Embrapa-
Cerrados, a Universidade Federal de Uberlndia (UFU), a UniversidadeFederal de Gois (UFG) e a Fundao de Apoio Pesquisa e ao
Agronegcio (Fagro), por encomenda do MMA, revelou um quadro
um pouco diferente, apresentando uma cobertura vegetal nativa de
Cerrado maior do que os dados analisados acima. Tal diferena pode
ser explicada pelas resolues espaciais dos satlites utilizados, mas
resulta principalmente da incluso, nesse estudo, de aproximadamente
28 milhes de hectares de pastagens nativas na categoria de vegetao
nativa. Caso esse montante fosse considerado como rea antrpica,como em estudos anteriores, a porcentagem de reas com vegetao
nativa obtida nesse trabalho seria reduzida para 46,74%. A Tabela 7
mostra os dados ali apresentados.
7/26/2019 Livro Cerrado
47/264
4 7
Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a
Tabela 7. Caracterizao do bioma Cerrado
por regio fitoecolgica agrupada
Regio Fitoecolgica Agrupada rea (Km2) %
Vegetao Nativa Florestal 751.943,49 36,73
Vegetao Nativa No-Florestal 484.827,26 23,68
reas Antrpicas 23 797.991,72 38,98
gua 12.383,88 0,6
Total 2.047.146,35 100,00
Fonte: Mapas de Cobertura Vegetal dos Biomas Brasileiros (Brasil, 2006).23
possvel constatar, independentemente do estudo analisado, uma
situao de desmatamento acelerado do Cerrado, uma regio que con-
siderada um Hotspot de biodiversidade,24 contribuindo para acender
um alerta vermelho entre os ambientalistas. Na atualidade, o Cerrado
apresenta-se, comparado com outros biomas brasileiros, em segundolugar no que se refere ao percentual de seu territrio includo em uni-
dades de conservao de proteo integral, de uso sustentvel e terras
indgenas, como mostra a Tabela 8.
23 Nos 38,98% de rea antrpica, a categoria predominante a de pastagens cultiva-das, com 26,45% da rea de domnio do Cerrado.
24 O conceito Hotspot foi criado em 1988 pelo eclogo ingls Norman Myers paraajudar os conservacionistas a definir quais as reas mais importantes para preservar a bio-diversidade na Terra. Hotspot toda rea prioritria para conservao por possuir uma ricabiodiversidade (com pelo menos 1.500 espcies endmicas de plantas) e ameaada no maisalto grau (que tenha perdido mais de 3/4 de sua vegetao original).
7/26/2019 Livro Cerrado
48/264
4 8
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
Tabela 8. Dimenso das reas protegidas
nos principais biomas brasileiros
Bioma rea(km2)
Unidadesde proteointegral a,b
Unidades deuso sustent-
vel a,b
Terrasindgenasa
Cerrado 2.116.000 2,20 1,90 4,10
FlorestaAmaznica
(incluindoectonos24)
4.239.000 5,70 7,70 17,70
MataAtlntica
1.076.000 1,90 0,11 0,15
Pantanal 142.500 1,10 0,00 2,40
Caatinga 736.800 0,80 0,11 0,15
Brasil 8.534.000 3,50 3,40 8.80aValores apresentados em porcentagens da rea original do bioma.
b
Unidades de conservao estaduais e federais combinadas.Fonte: Ribeiro, 2007, a partir de Klink e Machado, 2005.25
Entretanto, essa situao, quando analisada em mais detalhes, apre-
senta aspectos menos confortveis. A maior parte dessas unidades de
conservao (UCs) bastante recente e pouco estruturada. 75,8% dessas
UCs se referem a unidades de conservao criadas nos ltimos dez anos,
como esforo para compensar o quadro assustador de rpida destruio
desse bioma (Ribeiro, 2007). Cerca de 70% da rea dessas UCs pertence categoria das UCs de proteo integral, que no admitem populaestradicionais no seu interior. Outra grande parte so reas de Proteo
Ambiental (APAs); esta categoria, embora defina unidades de uso sus-
25 Ectonos se referem a ecossistemas inseridos em zonas de transio entre dois oumais biomas.
7/26/2019 Livro Cerrado
49/264
4 9
Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a
tentvel (que mantm as propriedades privadas da rea), no se caracte-riza pela presena de populaes tradicionais, como se observa nas o-restas nacionais, reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentvel,
que, juntas, somam apenas 0,8% das reas de unidades de conservao
do Cerrado. Conclui-se que predomina uma estratgia de conservao
restritiva, que separa as comunidades de seus lugares. Como o Cerrado
possui uma trajetria histrica de ocupao humana muito mais inten-
siva que a Amaznia, se torna mais difcil encontrar reas ainda preser-
vadas sem a presena comunidades tradicionais, que ali habitam e usamos seus recursos por vrias geraes (iremos ver isso mais frente). Por
isso, ganha fora a idia de que uma estratgia de expanso de criao de
novas reas protegidas nesse bioma dever contemplar a presena dessas
populaes, priorizando as UCs de uso sustentvel (Ribeiro, 2007).Outra constatao importante que os estudos nos levam a con-
siderar que uma das chaves para a conservao da biodiversidade dos
Cerrados est na poro chamada por Dias (1993) de paisagens natu-
rais manejadas e que foram estimadas, para o ano de 1985, em 56%da rea de Cerrado Contnuo, mais de 100 milhes de hectares. Essa
categoria corresponde ocupao tradicional do Cerrado (pastos natu-
rais e rea de extrativismo), que vem sendo substituda ou encurralada
pelas monoculturas modernas. Esse percentual j tinha diminudo para
40% ao final da dcada de 1990. Hoje, as estimativas da extenso dessa
tipologia so variadas, mas certamente o valor bem menor, em fun-
o do avano do desmate para implantao de monoculturas e pasta-
gens homogneas. Um trabalho da Embrapa-Cerrados estimava parao ano 2001 em apenas13% o percentual de pastagem nativa na rea do
Cerrado Contnuo (Sano et al, 2001).
Tanto a biodiversidade quanto a funo hidrolgica das chapadas
vm sendo ameaadas, cada vez mais intensamente, por um modelo
de ocupao moderno, predatrio e excludente, ancorado em enormes
monoculturas produtoras de commodities. um processo progressivo
7/26/2019 Livro Cerrado
50/264
5 0
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
de apropriao transnacional do territrio, caracterstico dos temposde globalizao econmica, que Milton Santos chamou de globalita-
rismo os Cerrados so o exemplo mais vivo desse fenmeno no Brasil
(Santos, 2003 e Carvalho et al., 2000). Esse processo anda junto com
uma expropriao camponesa sem precedentes, gerando, junto com a
eroso gentica oriunda da perda de biodiversidade, uma eroso cultu-
ral, de modos de vida e de apropriao da natureza, que poderiam ser a
base para a construo de modelos sustentveis de ocupao, produo
e gerao de riquezas na regio de domnio do Cerrado, nos quais asociobiodiversidade seria o principal trunfo e valor.
Ocupao originria: os povos dos cerrados e seus saberesEstudos arqueolgicos registram a mais antiga ocupao no Cerrado h
cerca de 11 mil anos, ligada ao que esses estudiosos chamam de tradi-
o Itaparica(Barbosa e Nascimento, 1993): povos caadores e coleto-
res que se aproveitavam da diversidade de ecossistemas e espcies teisque o Cerrado oferecia. A tradio Itaparica teve seu clmax ao redor
de 10.000 A.P. e parece ter terminado bruscamente a partir de 8.500
A. P. quando se iniciou uma nova tendncia para a especializao
caa de animais de pequeno porte e coleta de moluscos (Barbosa e
Nascimento, 1993: 168). Esta tradio, juntamente com outras duas
(Una e Aratu/Sapuca), est associada aos grupos indgenas do grupo
lingstico Macro J, herdeiros de uma longa tradio de povos origin-
rios habitantes dos Cerrados (Ribeiro, 2005a).Segundo Urban (1992), existem no Brasil quatro grandes gruposlingusticos com numerosos membros espalhados por diversas reas:
Arawak, Karib, Tupi e J. O autor esclarece que hoje se faz uma distino
entre a famlia J propriamente dita e o chamado Macro J. Os primeiros
representam um ramo relativamente recente, que se separou h cerca de
3 mil anos ou mais do tronco maior dos Macro J. Este guarda relaes
7/26/2019 Livro Cerrado
51/264
5 1
Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a
mais distantes, datando provavelmente de uns 5 mil ou 6 mil anos, pelomenos. Com o Mapa 4, o autor mostra claramente a ligao do tronco
Macro J com o Cerrado brasileiro.
Toda a rede de lnguas geneticamente filiadas ao tronco
Macro-J est concentrada na parte oriental e central do pla-
nalto brasileiro. O grupo central dos J, cuja radiao supo-
mos ter-se iniciado h uns 3 mil anos, est localizado entrepopulaes com relaes mais afastadas a leste e a oeste. Da
distribuio depreende-se que esse grupo de J propriamente
dito teria se originado em algum lugar entre as nascentes dos
rios So Francisco e Araguaia, possivelmente nas proximida-
des do grupo J Central, atualmente extinto, conhecido como
Xakriab.26(Urban, 1992: 90)
No mapeamento de Urban se destacam, dentro da famlia J, os
grupos: Timbira (Canela, Krinkati, Pukoby, Krenj, Gavio, Krah),
Kayap (Kubenkranken, Kubenkraoti, Mekraoti, Kokraimoro,
Gorotire, Xikrin, Txukahame), Xerente, Karaj, Xavante, Xakriab,
Apinay (hoje tido como do grupo Timbira), Suy, Kreen-Akarre,
Kaingang e Xokleng. O tronco maior Macro J incluiria ainda os
Patax, Bororo, Maxakali, Botocudo, Kamak, Kariri, Puri, Ofai, Jeik,
Rikbats, Guat e Fulni.
26 Na poca que o autor escreveu, imaginava esse grupo extinto. Entretanto, ele rena-sceu das cinzas e se constitui hoje, mesmo com um grau importante de mestiagem, no prin-cipal representante deste tronco nos Cerrados mineiros e detentor da maior reserva indgenado estado no municpio de Misses, na regio norte de Minas Gerais.
7/26/2019 Livro Cerrado
52/264
5 2
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
Mapa 4. Distribuio geogrfica original do tronco Macro J
Fonte: Urban, 1992.
N
K3
KREEN-AKARRE
BORORO
GUAT
S.KAY
AP*
XAVANTE
KAIGANG
XOKLENG
SUY
RIKBAKTS
KAYAP
KARAJ
APINAY
TIMBIRA
XERENTE
JAIK * FULNI
KARIRI *
XAKIAB
R
MAX
AKALI
B
OTOCUD
O*
PUR *
PATA
X
KAMAK
*
K4K5
K6
K1
K7
T5T4 T1
T2T3
T6
XERENTE
KARAJ
BORORO
*
J
Macro-J
possivelmente Macro-J
extinta ou praticamente extinta
famlia de lnguas
classificao ainda duvidosa
Dialetos Kayap
K1
K2
K3
K4
K5
K6
K7
Kubenkraken
Kubenkraoti
Mekraoti
Kokraimoro
Gorotire
Xikrin
Txukahame
Dialetos Timbira
T1
T2
T3
T4
T5
T6
Canela
Krinkat
Pukoby
krenj
Gavio
Krah
Lnguas Macro-J
7/26/2019 Livro Cerrado
53/264
5 3
Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a
Ainda segundo Ribeiro (2005a), os principais povos indgenasque habitaram os Cerrados mineiros se distribuem em trs famlias
desse tronco lingstico: Bororo, Cariri e J (lnguas Akuen, Kayap e
Kaingang).
A riqueza do conhecimento desses povos no manejo dos ecossiste-
mas exemplarmente ilustrada pela pesquisa realizada por Darrel Posey
e Anthony Anderson (1987) com os Kayap no sul do Par regio de
transio entre os Cerrados e a Floresta Amaznica. Esses pesquisadores
registraram, na aldeia de Gorotire, roas com alto nvel de agrobiodi-versidade, com mdia de 58 espcies de plantas por roa. Identificaram,
por exemplo, 17 variedades de mandioca e 33 de batata-doce, inhame
e taioba que se distribuam no espao, de acordo com pequenas varia-
es microclimticas. Observaram que o modo como os ndios alteram
a estrutura das roas ao longo do tempo parece seguir um modelo que se
baseia na prpria sucesso natural dos tipos de vegetao: das espcies de
baixo porte e vida curta, at as espcies orestais de grande porte (hoje
esse mtodo chamado de agroorestao). Eles distinguem e nomeiamos tipos diferentes de Cerrados: desde os campos limpos (kapt kein)at os cerrades (kapt kumernx). Nos campos de Cerrado prximos
aldeia Gorotire aparecem ilhas (apt) de vegetao lenhosa (nos
Cerrados, em geral a vegetao lenhosa aparece dispersa). Os pesquisa-
dores registraram e inventariaram 120 espcies em um desses campos de
Cerrado adensados, sendo 90 delas plantadas. Os usos eram diversos
como: medicinal, atrativo para caa, alimento, lenha, adubo, sombra etc.
Os pesquisadores procuraram demonstrar que, ao contrrio do que oscientistas vinham afirmando at ento, o fogo no era a nica forma de
manejo praticada em reas de Cerrado por grupos indgenas. Os Kayap
tm papel ativo na formao de ilhas de vegetao no Cerrado, formao
que engloba vrios processos e etapas: preparao de pilhas de adubo
composto com material vegetal, macerao do material aps seu apodre-
cimento, escolha de local com alguma depresso para colocar o adubo
7/26/2019 Livro Cerrado
54/264
5 4
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
(s vezes misturado com pedaos de ninho de formiga [mrum kudj]para que no haja ataque de cupins aos plantios), plantio das primeiras
espcies na estao seca (junho a novembro). Os Kayap reconhecem
vrios tipos de aptconforme o tamanho, a configurao e a compo-
sio que apresentam. Reconhecem, ainda, vrias zonas ecolgicas nosapt maiores, relacionadas com a maior ou menor incidncia da luz
solar. A pesquisa detectou ainda que o uso do fogo nos campos Cerrados
apresenta uma srie de sutilezas relacionadas observao, por exemplo,
da poca em que os botes orais dos pequizeiros j esto desenvolvidose proteo dos aptcom aceiros. Ela revelou ainda que os Kayap tm
profunda inuncia sobre a estrutura e a composio dos Cerrados quecercam a aldeia de Gorotire. Os autores afirmam:
H indcios de antigas aldeias Kayap espalhadas por toda
imensa rea entre os rios Araguaia e Tapajs, e provvel
que outros povos como os Xavante, Canela, Gavio, Xifrine Apinaj tenham praticado formas semelhantes de manejo
em reas de Cerrado, aumentando assim a inuncia indgena
nesse ambiente. [...] Tal constatao nos leva a uma conclu-
so: muitos dos ecossistemas tropicais at agora considerados
naturais podem ter sido, de fato, profundamente moldados
por populaes indgenas. (Anderson e Posey, 1987: 50)
O conhecimento tradicional dos Khra, outro povo do tronco
Macro J, sobre o Cerrado tem sido pesquisado. Este povo vive hoje
numa reserva de 350.000ha no estado de Tocantins, a maior rea de
Cerrado contnuo conservado do Brasil. Levantamento recente, reali-
zado por um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de So
Paulo (Unifesf), identificou 138 plantas medicinais utilizadas pelos
7/26/2019 Livro Cerrado
55/264
5 5
Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a
Khra. De acordo com matria publicada na Folha de S. Paulo, em 13 deagosto de 2002, o estudo, iniciado em 1999, estava sendo considerado
modelo por contemplar o pagamento de royalties ao povo indgena.
Entretanto, ele foi paralisado em 2001, pela dificuldade de definir quem
poderia atuar como representante legal dos ndios e pela existncia de
um conito legal entre o funcionrio da Funai e a equipe de pesquisa-dores. O episdio demonstra o potencial de conito que permeia hoje aquesto da biodiversidade, propulsora de um confronto entre o conhe-
cimento tradicional e os chamados direitos de propriedade intelectual.
Camponeses: os herdeiros dos saberesO conhecimento dos povos indgenas do tronco Macro J foi transmi-
tido, em grande parte, para a sociedade sertaneja27que se alojou nos
Cerrados. Ribeiro (1997) realizou uma pesquisa sobe o relato dos via-jantes pelo serto mineiro28na primeira metade do sculo XIX e afirma
no final de seu texto:
Esses estudos arqueolgicos apontam, assim, uma linha de
transmisso de traos culturais entre antigas populaes
27 Sobre a adoo de conhecimentos indgenas e sua mistura com os oriundos da Eu-ropa nos sertes da capitania de So Paulo por volta do Sculo XVII, nos fala Srgio Buarquede Holanda: Prticas indgenas, que tinham todos os requisitos para alarmar ou escandalizaros europeus, encontraram, por outro lado, acolhida inesperadamente favorvel... No faltam,
finalmente, aspectos de nossa medicina rstica e caseira que dificilmente se poderiam filiar, seja atradies europias, seja a hbitos indgenas. Aspectos surgidos mais provavelmente das prpriascircunstncias que presidiram ao amlgama desses hbitos e tradies(Buarque de Holanda,1994: 78).
28 O serto, marcante na obra de Guimares Rosa, no tem uma denio precisa,estando relacionado noo de interior, desconhecido, pouco habitado, locais distantes.O serto mineiro inclui predominantemente reas de Cerrado, mas tambm pores de caat-inga e as transies entre um e outro presentes na regio norte de Minas Gerais (Ribeiro,1997).
7/26/2019 Livro Cerrado
56/264
5 6
Pen s ar o B r as i l : Cer r ado
do Cerrado e os povos indgenas ali encontrados pelosportugueses, principalmente no que se refere ao uso dos
recursos naturais daquele bioma. Nesse processo, no s
se adaptaram quele meio ambiente, como tambm atuam
sobre ele, transformando-o por meio de diversas tcnicas
de manejo. Conforme procurei ressaltar, parte desse patri-
mnio cultural foi incorporado pelos sertanejos, sucesso-
res daqueles povos indgenas na rea do Cerrado. (Ribeiro,
1997: 31)
Esse patrimnio cultural sertanejo, apontado por Ribeiro, foiabsorvido, de uma forma ou de outra, pelos dois principais protagonis-
tas do perodo moderno-colonial de ocupao do serto: o latifndio
do gado e as comunidades camponesas. Estas ltimas, em funo da
necessidade e de uma relao menos mercantil com os Cerrados (sis-
temas baseados na subsistncia), conseguiram manter e talvez ampliaro conhecimento indgena de uso de plantas e animais do Cerrado, con-
servando e ao mesmo tempo recriando as prticas extrativistas oriun-
das dos povos originrios. Diversos modos de apropriao camponesa
da natureza foram sendo criados e recriados ao longo dos sculos, for-
jando identidades camponesas tambm diferenciadas no mbito do
Cerrado como: geraizeiros (Norte de Minas), geraizenses (Gerais de
Balsas/MA), retireiros (reas alagadas do Araguaia/MT), barranquei-
ros e vazanteiros da beira e das ilhas do So Francisco (MG), quebra-deiras de coco (Zona dos Cocais/MA, PI e TO), pantaneiros (MT e
MS), camponeses dos vos (sul do MA) e outras denominaes mais
gerais apontadas por Arruda e Diegues (2001), como: varjeiros e ribei-
rinhos (ao longo dos rios So Francisco, Grande e Paran), caipiras
(Tringulo Mineiro e So Paulo) e sertanejos (Norte de Minas, Bahia,
Maranho e Piau).
7/26/2019 Livro Cerrado
57/264
5 7
Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a
Essas populaes desenvolveram, ao longo dos sculos, modos devida com uma relao orgnica com os ecossistemas,29baseados na sua
produo biolgica primria (extrativismo, caa, pesca) e em estratgias
agropecurias que otimizavam as potencialidades do ambiente de trans-
formar energia solar em alimentos, carnes e fibras, utilizando de forma
heterognea e diversificada (Toledo, 1996) as diferentes unidades da pai-
sagem do Cerrado: agricultura de encosta e fundo de vale, solta de gado
e extrativismo na chapada. Nas reas alagadas, como a plancie do rio
Araguaia, se desenvolveu um sistema que articula caa, extrativismo emanejo do gado que, como no Pantanal, se reveza entre as reas baixa
(plancie alagada) e alta (chapadas intermedirias), aproveitando o movi-
mento das guas que fertilizam a plancie e esverdecem o capim, para
ser pastejado na estao seca, quando se mantm verde, ao contrrio do
capim da chapada. Um uxo produtivo e de sustentao econmica quese ancora no prprio uxo temporal-espacial-ecolgico da natureza.
Como bem ressalta Escobar (2000), no chamado Terceiro Mundo,
em especial no seu espao rural, o povo segue construindo e readaptandoseus modelos locais, que carregam conhecimentos e vises de mundo
diferenciados da ideologia desenvolvimentist