Terapia Comunitária
Reflexões
Rolando Lazarte
João Pessoa, outubro de 2010
Introdução
Estes escritos pretendem servir de subsídio para a formação de terapeutas comunitários.
Aliás, os textos nada pretendem, uma vez que não lhes cabe pretender coisa alguma, e
sim ao seu autor, neste caso eu, que, depois de ter tomado o tempo dos leitores e leitoras
quero somente terminar esta breve introdução, dizendo que este texto está em
elaboração, daí alguns descuidos que a benevolência dos leitores/as deverá relevar, ou
não, dependendo dos casos. Estou preparando exercícios de aplicação para os distintos
tópicos do livro que agora tens em mãos, querido leitor ou leitora, de modo que a
qualquer momento poderás vir a saber que chegaram às bancas ou às livrarias os tais
exercícios de aplicação, o que não impede de forma alguma, que vás elaborando os teus
por tua própria conta, como talvez já tenhas feito, e se não fizeste, deverás fazer. A
prática da Terapia Comunitária supõe uma geração constante de reflexões sobre os seus
pilares básicos (que me nego a chamar de teóricos, porque são práticos, ainda os
teóricos) ou sobre os efeitos sobre as pessoas, comunidades, sociedades e, por que não
dizer, sobre a humanidade, que em algum momento é necessário socializar, como forma
de renovação constante. Apenas queria dizer estas coisas e as disse, de forma que é hora
de me despedir por aqui, desejando a todas e a todos uma boa leitura, e até.
O Autor
Sumário/Índice
A pedagogia de Paulo Freire e a Terapia Comunitária 4
A teoria da comunicação humana como pilar da Terapia Comunitária 6
A Terapia Comunitária como estratégia de mobilização social 8
A Terapia Comunitária como estratégia de participação social 9
A terapia comunitária e a recuperação da pessoa humana 11
A terapia comunitária na inclusão social 13
Espiritualidade e Terapia Comunitária 14
O autoconhecimento nas rodas da terapia comunitária 16
O que é ser um terapeuta comunitário 17
Os valores na formação do terapeuta comunitário 18
Pedagogia de Paulo Freire e Terapia Comunitária 20
Resiliência, quando a carência gera competência 21
Terapia Comunitária, epistemologia e método 23
Terapia comunitária, esperança 25
Sobre o autor
A pedagogia de Paulo Freire e a Terapia Comunitária
A pedagogia de Paulo Freire e a Terapia Comunitária partilham alguns princípios
comuns que estão interconectados: A autonomia do sujeito, a horizontalidade do saber,
a educação como prática libertadora, e a incompletude do ser humano.
O princípio da autonomia concebe o ser humano como autor do seu próprio destino,
livre e responsável, construtor da sua própria circunstância e, portanto, autor das
práticas capazes de reconduzi-lo ou reconduzi-la à liberdade em caso de dominação ou
opressão.
A horizontalidade do saber supõe que todos sabemos, todos somos doutores na nossa
própria vivência e a experiência de cada um é a fonte primeira do saber que nos permite
eleger e viver. A terapia comunitária parte deste princípio, unindo saber popular e
científico, numa amálgama que reconstrói pessoas e comunidades no seu protagonsimo,
rompendo com a cultura da vitimização e da miséria psíquica. Na terapia comunitária,
por outro lado, também se incorporam saberes de distintas vertentes de sabedoria da
humanidade, como o conhecimento dos chakras como centros energéticos que nos
conectam com o todo.
O caráter libertador da prática educativa supõe eu saber nos faz livres, e que podemos
saber não acumulando conhecimento ou informação, mas nos apropriando da nossa
própria experiência, nos tornando donos do que somos, donos de nós mesmos. Saber
por que somos e como somos nos faz senhores da nossa vida e não vítimas das
circunstâncias ou de algo ou alguém em quem projetamos um dominador ou um
inimigo.
Na terapia comunitária, você descobre seu inimigo como um colaborador, alguém sem o
qual você não seria quem é, já que ele lhe mostra o que você não quer ver, a parte sua
que você rejeita.
Você busca dentro de si mesmo a razão de ser do que lhe acontece, ao invés de culpar
os outros ou o destino ou Deus ou quem for, pelo que ocorre na sua vida.
Isto faz você forte, porque embora você esteja como todos estamos, em relação com
outras pessoas, esta relação não o oprime mas o liberta. Você compreende que um
mundo melhor se faz a partir do momento em que você se perdoa, se quer, se percebe
como alguém bom vencedor, capaz de amar se ser amado, de errar e corrigir o rumo,
alguém que está a caminho, sempre, nunca concluído.
Desta forma, você já não mais se julga vítima daquele trauma ocorrido na sua infância
ou depois, na sua vida adulta. A vida nos golpeia, todos sabemos, mas a capacidade de
nos fortalecermos com esses golpes que teriam nos derrubado, a resiliência, é um saber
a flor de pele no povo, nas classe populares, embora nem sempre a pessoa tenha noção
disto, mas essa força reside nela e é ativada no encontro com outros vencedores, nas
rodas da terapia, nas formações, onde ela descobre que sua vida é uma teia, a vida de
todos é uma teia tecida em todas as direções, unindo o que foi e o que é, o que será, tudo
está conectado. E a mudança que processo em mim, melhora a vida de todo o que me
rodeia e de que faço parte, incessantemente, continuamente, sem fim.
Essa noção de unidade plenifica e reconforta, repõe uma sensação de eternidade sem a
qual o efêmero perde sua significação e seu sentido.
A teoria da comunicação humana como pilar da Terapia Comunitária
A teoria da comunicação humana é um dos pilares básicos da terapia comunitária.
Formulada por Watzlawick, Helmick-Beavin e Jackson, permite compreender a ação
humana como um comportamento em que são transmitidas mensagens. Toda a conduta
humana é transmissora de mensagens, inclusive quando nos propomos a não comunicar,
estamos dizendo algo: você não existe, você não me importa, você não é de nada. Bem
dizem que o contrário do amor não é o ódio, mas a denegação. Na terapia comunitária,
aprendemos que uma pessoa deixa de ter sentido ou passa a ser ignorada
deliberadamente, e isto acarreta conseqüências para a sua auto-estima, para a noção de
si, para o seu modo de ser e de se comportar no mundo.
Uma criança que não foi desejada, desde o ventre materno soube disso, e veio ao mundo
preparada para ter que agradar, para dizer que sim o tempo todo, para aceitar qualquer
coisa em troca de um pouco de afeto. Uma que foi querida desde a conceição, ao
contrário, é capaz de dizer sim quando quer, e não quando não quer. Estas constatações
aparentemente muito simples, permitem com que a pessoa comece a ver a si própria
desde outro lugar, desde uma possibilidade de auto-conhecimento autêntico, sem
enganos, verdadeiro.
Muitas vezes, nas terapias ou nas formações de terapeutas comunitários, os participantes
são levados a descobrirem as falsas imagens que fizeram de si mesmos, e que os tem
aprisionado durante a vida toda, ou por longos períodos de tempo. Quando a pessoa
começa a se perceber como alguém que venceu muitas batalhas, alguém que soube dar a
volta por cima em circunstâncias que poderiam tê-la quebrado ou desviado do seu
caminho, o conceito de si começa a emergir de uma maneira positiva. O sujeito se
descobre capaz de direcionar sua própria vida, de dar um significado ao seu existir, de
decidir o que quer que seja o seu próprio ser. ―O que você quer para eu querer‖ (a
criança ou a pessoa boazinha). ―O que você quer para eu não querer‖ (o rebelde ou
contestatário) são prisões em que a pessoa deixa de ser ela mesma, perde a sua
liberdade, age por automatismos.
Quando aprendemos a decodificar as primeiras mensagens e a lê-las ao nosso sabor,
quebram-se os determinismos da nossa vida. Se alguém se sentiu abandonado, não
querido, porque foi esperado menina e era menino, ou o contrário, isto determinou
reações que estiveram fora do seu controle, da sua capacidade de decidir. Agiu durante
anos contra o mundo, contra as pessoas, por vingança: não me quiseram, não os quero.
Muitos comportamentos agressivos estão animados por uma reação de quem se sentiu
não querido, não amado.
Muitas vezes a agressividade vai direcionada contra a própria pessoa, que passa a
conviver com um tirano interno, um sabotador da sua felicidade e do seu direito a viver
com alegria e segundo sua maneira única e irrepetível, no meio aos outros. Nas
formações de terapeutas comunitários, um dos exercícios é a descoberta do animal com
que cada um se identifica. Formam-se grupos e os coleguinhas que escolheram o
mesmo animal, trocam figurinhas a respeito de si mesmos, dos seus modos de ser
característicos.
Isto faz com que cada um descubra sua natureza mais comum ou freqüente, suas formas
habituais de ser e de se comportar. Então, a pessoa deixa de se condenar e de se
comparar com os outros, descobre sua forma única de ser, e a aceita. As mensagens
recebidas (fui abandonado, não me quiseram) são re-codificadas em função do contexto
interpretativo que a interpretação sistêmica e integrativa propõe, com base nos valores
dos pais e da cultura em volta, e das escolhas próprias a pessoa. O que se aprende na
terapia comunitária, em termos da comunicação, é a sair ou tentar quebrar as armadilhas
da comunicação paradoxal, do duplo vínculo e das descorsões das mensagens equívocas
que emitimos ou recebemos. ―Carta certa para pessoa errada‖, é quando emitimos uma
mensagem que é correta no seu conteúdo, mas está sendo direcionada a quem não tem
nada a ver. Quando a reação é desproporcionada ao fato, estamos reagindo não ao fato,
mas ao que ele nos remete. Estas chaves nos dão elementos para irmos re-programando
a nossa conduta desde uma visão mais atual, mais presente, menos condicionada pelo
passado. O passado é visto como o estrume necessário para o crescimento da planta. O
presente desponta como um tempo novo, livre de amarras. O empoderamento das
pessoas e das comunidades depende em boa medida da decodificação e re-codificação
de mensagens recebidas e emitidas.
A Terapia Comunitária como estratégia de mobilização social
Se entendermos a mobilização social como um processo de dissolução de barreiras que
impedem a livre circulação e inserção de pessoas na sociedade como um todo, ou em
alguma das suas sub-sociedades (famílias, bairros, comunidades, movimentos),
podemos entender, como aqui esta dito, que a terapia comunitária seja uma estratégia de
mobilização social.
Nela colaboram, lado a lado, pessoas humildes e doutores, estudantes e donas de casa,
pessoas viciadas em drogas e crentes das igrejas mais variadas, com o objetivo comum
de superarem juntos, os problemas mentais, emocionais e relacionais de todo ser
humano.
Nas rodas de terapia, como diz o Prof. Adalberto Barreto, seu fundador, e a experiência
comprova, os estudantes saram do autismo universitário, da miragem de um saber sem
gente, de um conhecimento sem experiência. E as pessoas do meio popular colaboram
com o que tem de mais próprio, seus valores originais, a sua generosidade,
simplicidade, solidariedade, entre outros. Não partimos de uma visão idealizada dos
pobres.
Um dos pilares da Terapia Comunitária, a pedagogia de Paulo Freire, afirma a
autonomia dos sujeitos e a horizontalidade do saber. Isto é praticado a partir do
momento em que você entra numa roda de terapia. Ninguém lhe pergunta sua profissão,
embora você possa dizê-la. Mas quando alguém fala, os outros escutam. Todos e todas
tem algo a dizer. Todas as histórias, os problemas, os sonhos, os anseios e ansiedades,
são importantes. Ninguém dá conselhos nem interrompe quando os outros falam. Não
há ninguém mais importante que os demais.
Todos se tocam, se abraçam, se trocam olhares e palavras de carinho, de afeto, de apoio,
de compreensão.
Costumo dizer, e tenho ouvido outros e outras dizerem, que na terapia comunitária, você
se torna terapeuta de si mesmo. Não há a pretensão de que o terapeuta cure ninguém. É
a comunidade que cura. A sua comunidade interna e a externa. A que você é em si
mesmo ou em si mesma, e a que você forma, faz parte, fora de você, na sua relação com
os demais.
Quebra-se a dependência, você pode, os outros podem, todos juntos podemos mais. E se
isto possa soar como algo ilusório ou pueril, você pode testar, de várias formas, a sua
veracidade. Uma, participando de uma ou mais rodas de terapia. Outra, ouvindo alguém
que já participou ou participa. E, ainda, tomando conhecimento do impacto que esta
atividade vem mostrando em diversos municípios do Brasil, na criação ou reforço de
redes solidárias, estimulando o aumento da auto-estima de pessoas e comunidades,
promovendo a reintegração de ex-dependentes de álcool ou outras drogas ilícitas,
mobilizando coletivos das periferias urbanas e de nichos de classe média das cidades,
que, aos poucos, mas evidentemente, começam a sair do imobilismo e da apatia, da
resignação e da manipulação externa, para serem, cada vez mais, pessoas e
comunidades, agentes ativos da sua vida e do seu destino.
A Terapia Comunitária como estratégia de participação social
O tema da participação social há muito tempo tem transbordado os âmbitos acadêmicos
e/ou tecnocráticos dos governos e entidades de pesquisa, para se tornar, cada vez mais,
assunto do dia a dia, do cotidiano das pessoas e instituições. No caso concreto do Brasil,
há já várias iniciativas que vem, como a Terapia Comunitária Integrativa e Sistêmica do
Prof. Adalberto Barreto, ganhando espaços na construção e reforço de laços sociais,
agregando pessoas e comunidades, em sentido contrário ao produzido pelas tendências
dissociadoras e anomizantes do mercado.
Na ética cotidiana de pessoas e comunidades, de gestores em saúde e ambientes
acadêmicos e de mobilização social, as relações cada vez mais são permeadas por
valores solidários, pela recuperação e fortalecimento das identidades pessoas e sociais,
reforçando instituições e indivíduos numa marcha silenciosa mas eficiente. Se isto pode
parecer idílico ou sonhador, não sabemos, mas o certo é que, pela base da sociedade
brasileira, este e outros movimentos, como o da Teologia da Libertação e a Educação
Popular de molde freireano, vêm ganhando espaço de forma animadora.
Os valores cotidianos, que pareciam entregues ao imediatismo e ao pragmatismo
utilitário bem ao gosto do capitalismo diário, cedem espaço para o interesse pelo outro,
pela ajuda mútua em várias modalidades. Isto permite conjecturar que, em não muitos
anos, várias das lacunas de participação no Brasil possam estar fechadas ou em vias de
fechamento. A educação em expansão em moldes integrativos, com programas como o
da Universidade Aberta; o crescente interesse e participação de pessoas de todas as
idades em atividades voluntárias de várias tonalidades e formatos, vão construindo, com
outras iniciativas nos terrenos da arte e da cultura, da dança e da música, do artesanato,
e da reciclagem de resíduos, uma perspectiva de coesão e de participação social
impensável pouco tempo atrás.
O analfabetismo, a expulsão dos pequenos agricultores das terras nos interiores, o
desemprego e o subemprego, a subremuneração e a exclusão social que em grande
medida ainda prevalecem no País, cedem terreno, como dissemos, em escalas não
pequenas, a estas ações concretas que pontuamos, visando a construção de um tecido
social mais firme e unido.
Verdadeiramente os desafios são enormes, pois que, embora estes sinais apontados são
alvissareiros, os obstáculos internos e externos não são de pequena monta. O que vale,
neste contexto, é que a esperança que nos é possível vislumbrar neste momento, está
longe de ser um devaneio ou um desideratum abstrato.
Ao contrário, se alimenta de inúmeras experiências vivenciadas tanto no Brasil,
especialmente mas não exclusivamente na Paraíba e no Ceará, em ações pela base, em
que nos foi possível construir este retrato esperançoso que, temos certeza, será ainda
aprimorado pela colaboração de muitas e muitos pelo Brasil afora, nessa construção
calada que marca as mudanças internas e externas que consolidam, dia a dia, a efetiva
construção de um mundo melhor, feito de amor e de paz, de justiça e de respeito à
diversidade, no marco de uma humanidade uma e única, sem distinções de qualquer
espécie, reintegrada à matriz cósmica de que vem e à qual pertence desde sempre pois
que é o seu lugar.
Sabemos que muitas e muitos, em distintos lugares, somam suas ações e intenções, seu
trabalho silencioso, melhorando a si e a outras pessoas com que convivem, de maneiras
tão diversas que seria impossível enumerar, mas às quais nos referimos no começo
destas linhas. Terapia Comunitária, Educação Popular, Teologia da Libertação, são
outras tantas veredas alinhadas com o projeto de humanização do ser humano, de
reintegração da humanidade ao cosmos, como já foi dito, às matrizes primordiais que
dormem no interior de cada pessoa e de tudo que existe, uma vez que tudo é oriundo do
mesmo lugar e a ele retorna após os ciclos individuais das pessoas, das espécies, dos
povos, das civilizações, das nações.
A Terapia Comunitária, entre outras coisas, talvez a mais importante, restitui a
identidade da pessoa, melhor dizendo, você se reencontra na Terapia. Volta a si mesmo
ou a si mesma. Retorna ao que você sempre foi. O que é muito. Na Teologia da
Libertação, você redescobre um ser divino que lhe acompanha e que acompanha a todas
e a todos que se voltam para o cuidado dos excluídos e das excluídas.
Paulo Freire e a sua pedagogía libertária, desfazem as estruturas alienantes do saber
privatizado, empossando pessoas de todas as idades e condições sociais, quebrando o
síndrome da miséria psíquica, e tantas mazelas como o consumismo, a passividade, a
resignação, a omissão.
Você se descobre poderoso, vencedor de tantas batalhas que venceu ao longo da sua
vida. E ao seu redor, outras tantas pessoas que, como você, fizeram o caminho de volta.
Gente que deixou a bebida, as drogas, a depressão, a solidão, para se juntar a outros e a
outras, numa caminhada infinita de ajuda mútua e de construção coletiva de melhores
condições de vida para todas e todos.
Cada um, leitor ou leitora, poderá acrescentar da sua própria experiência, ações de que
participa ou das que tem conhecimento, em que a esperança viva se faz verdade, de
modos simples mas efetivos.
Por isto, podemos dizer, como o poeta, alguma palavra que nos anime a seguir nesta
trajetória, confiando que a herança de que somos depositários e depositárias, nos torna
capazes de seguir vencendo, em direção a um horizonte que cada vez está mais perto.
A terapia comunitária e a recuperação da pessoa humana
Tratar de definir o que seja a espiritualidade, parece-me o começo necessário deste
diálogo. Entendo por espiritualidade, a vivência de Deus ou do sagrado, por
contraposição com a religiosidade, que é essa mesma vivência no âmbito de uma
religião. A primeira, se processa no cotidiano, e, nesse sentido e contexto, tudo é
sagrado. A segunda, se bem que possa estar incluída ou incluir a primeira, se processa
sobre tudo, embora não exclusivamente, no âmbito definido como sagrado por uma
religião.
Entendo por religião, um conjunto de práticas e crenças orientadas à vivência do
sobrenatural e divino. Supõe, embora nem sempre, uma hierarquia sacerdotal ou de
mediadores entre o humano e o divino, o que é suprimido tanto pela terapia comunitária
–em que cada pessoa é o seu próprio mediador, se assim podemos nos expressar–
quanto na espiritualidade, âmbito por excelência da vivência mística ou da participação
com Deus.
Pode ser contraditório, ou parecê-lo, colocar em âmbitos separados e até opostos, o que
parece estar unido e ser uma única e a mesma coisa, isto é: a vivência e a crença. A
experiência e a conceituação dessa mesma experiência. São como a forma e o conteúdo:
indissociáveis. Mas, para fins da análise, devemos separá-los.
Uma coisa é crer em Deus, e outra, viver em Deus, ou com Deus, ser um com ele. Um
é o âmbito da crença, como dissemos, outro o da experiência. Um o da religião, outro, o
da mística.
Na terapia comunitária, abole-se a mediação entre o ser humano e o sagrado. Repõe-se
no âmbito da sociabilidade que abole as barreiras de classe, social, de status
socioeconômico, de nível intelectual, de aparência, raça, cor, religião, etc, a unidade e
igualdade essencial da pessoa, seu pertencimento a uma realidade que a inclui, com seus
atributos que lá fora, na vida anterior e exterior ao espaço da terapia comunitária como
recriação da pessoa para si, opõe o igual ao seu igual, faz do irmão um inimigo, do
vizinho um estranho, do diferente alguém perigoso, do pobre um desprezado que nada
vale, do intelectual e do técnico, do doutor e do profissional, um que é tudo, que vale
mais, e deve ser respeitado embora nem sempre mereça esse respeito.
Neste sentido, a terapia comunitária funciona como um embrião de religiosidade
primitiva, sem o tom eclesiástico ou institucional que a palavra possa ter ou despertar.
Religiosidade, no sentido de pertencimento, de união com o real, sem fissuras nem
cisões. Aqui, a espiritualidade, nos parece, já se separa como uma prática ou um estado
de consciência, em que a pessoa e a comunidade abolem as barreiras que a sociabilidade
capitalista, a sociedade do pensamento único que classifica, que coisifica, que aliena o
indivíduo de si mesmo e da vida, do tempo, da história e da memória, dos seus
semelhantes.
Na terapia comunitária, a pessoa se reencontra consigo mesma, mas não com essa
mesmidade que pode parecer coisa intimista ou excludente do coletivo, do social, e sim
com a sua totalidade, com tudo que ela é. Ela recupera, vai recuperando gradativamente
ou de uma só vez, a imagem do ser inteiro que ela é, da sua trajetória de vida, seus
valores, os esforços pessoas e familiares de que é resultado, o seu projeto de futuro,
ancorado num pertencimento coletivo que antes apenas podia vislumbrar e agora se lhe
aparece como um horizonte concreto de existência.
Este processo ocorre nas rodas de terapia comunitária pelo Brasil afora, e, já, no
Uruguay, onde desde o ano passado, um grupo de terapeutas comunitários vem
trabalhando em setores como a recuperação de jovens uduários de drogas, e demais
setores da atenção primária em saúde.
A pessoa, muitas vezes arremessada de cidades pequenas ou do campo para as grandes
cidades, outras vezes, muito frequentemente, perdida na prisão de papéis sociais que lhe
negam a identidade e a plena realização das suas potencialidades, redescobre o sentido
da sua vida, depara-se novamente com a vida como algo a ser criado, construido epssoal
e coletivamente, no seio da sua família, no convívio com vizinhos e coleags de trabalho
ou de estudo. Em outras palavars, novamente se descobre autora do seu próprio destino,
sujeito e não objeto.
Isto pode parecer ambicioso demais ou excessivo, se você não participou ainda destas
experiências coletivas de recuperação de pessoas, mas quem já tem alguns passos dados
nesta esrtarda, sabe o quanto se partilha de novos nascimentos cada vez que os
terapuetas se encontram, cada vez que é posta a rodar novamente esta roda da vida que,
não por acaso, se apoia essencialmente e muito fortemente, no pensamento de Paulo
Freire, a pedagogia da autonomia, a educação como prática da liberdade.
Esta é uma das estradas, desses caminhos palmilhados por centenas de pessoas pelo
Brasil afora, e, como dissemos, já em marcha no Uruguay, com entrada para a
Argentina, na província de Misiones. São formas concretas de reconstrução da
humanidade sobre novas bases, ou melhor, sobre bases olvidadas, que começam a ser
redescobertas e postas em prática.
A terapia comunitária na inclusão social
Nos dias de hoje, muito se ouve falar sobre inclusão social. Para quem, como eu, tem
estudado a marginalidade social desde pontos de vista sociológicos, o conceito de
inclusão social remete a uma integração de setores marginalizados no quadro da
estrutura social vigente. No contexto destas breves reflexões que hoje quero partilhar
com vocês, a inclusão social tem um aspecto de integração da personalidade e
integração na sociedade. Nas rodas da terapia comunitária, que é chamada de integrativa
e sistêmica, as pessoas passam a perceber a unidade das suas vidas, o fio condutor que
costura, unificando, os fatos primeiros e derradeiros das suas vidas.
Isto ocorre de várias formas. A história pessoal de cada um e de cada uma vem a tona, e
se emparenta com as histórias de vida dos outros presentes. A saída da roça ou da
cidade pequena para a grande cidade, para a periferia urbana, com a conseqüente
sensação de perda de identidade, soa sentimentos comuns aos migrantes no Brasil e em
qualquer parte do mundo. Mudam os costumes, deixo de ser alguém inserido numa
trama de relações habituais, para passar a ser algo estranho, um desenraizado, uma alma
penada, como diz Adalberto Barreto em ―As dores da alma dos excluídos no Brasil‖.
Quando passo a fazer parte da roda da terapia, começa a se costurar a minha própria
história, ela ganha coerência e consistência. Já não sou mais um João ninguém. Outros
pronunciam meu nome uma vez à semana, ao menos. São lembrados aos aniversários,
canta-se e dança-se juntos. Muitas donas de casa que não saiam de casa, vêem outras
pessoas, sorriem, encontram um sentido maior no seu viver, do que meramente
atenderem marido e filhos que, muitas vezes tem suas próprias vidas à margem delas.
Aposentados que apenas viviam à espera da morte, recuperam a alegria de viver,
brincam, contam chistes, dançam nas rodas e entoam orações com crianças, com jovens,
com estudantes e doutores da universidade e técnicos em saúde, agentes comunitários,
etc. A integração funciona para todos, para os de baixo e os do meio, na verdade, uns e
outros geram uma mandala giratória, em que ninguém sabe quem é o outro. Apenas um
igual, alguém que como eu se perdeu ou se perde ainda, e se reencontra.
Assim, a inclusão funciona para dentro e para fora da pessoa. Eu me incluo na medida
em que me sinto incluído numa história comum, numa fala comum em que me
reconheço. Neste sentido, inclusão e integração, funcionam quase como sinônimos. Os
estudantes e doutores, médicos e professores, por sua vez, quebram a barreira do
isolamento que a educação superior produz com freqüência, e se redescobrem gente,
apenas gente. Nestas rodas, se processam momentos de encontro das pessoas consigo
mesmas, motivo pelo qual pode se dizer, como conclusão destas breves considerações,
que a terapia comunitária é uma ferramenta de inclusão social.
Espiritualidade e Terapia Comunitária
Nestes anos em que venho participando da Terapia Comunitária, já como curioso ou
então como colaborador em distintos trabalhos, tenho tido a oportunidade de observar
que a conexão entre espiritualidade e Terapia Comunitária é intensa e profunda.
As rodas de Terapia Comunitária concluem com rituais de integração. São momentos de
comunhão com o sagrado, de reforço de laços solidários. São momentos em que revive
a religiosidade adormecida. As pessoas se abraçam, formam-se rodas, cantam-se hinos
religiosos, abençoam-se uns aos outros, incluindo os ausentes. Mas não quero me referir
aqui somente a manifestações explícitas de religiosidade, e sim, pontuar o que me
parece ainda mais importante, que é como, a partir da prática da terapia comunitária, da
redescoberta de si mesmo e da nossa inserção num todo maior, praticam-se a
fraternidade, o amor de uns pelos outros, o amor a si mesmo, o respeito e a reverência à
vida nas suas distintas manifestações, na sua misteriosa inextinguibilidade.
Quando as pessoas aprendem a se escutar com atenção e respeito, e ao ouvir o outro
percebo que ele e eu somos semelhantes, passamos por sofrimentos parecidos ou
situações também parecidas, surge uma empatia. Eu e o outro não somos tão diferentes.
Ela ou ele, e eu, temos muito em comum. Eu ajudo e sou ajudado. As redes, a teia de
aranha, não são símbolos sem significado, mas realidades concretas.
Quando, na finalização da roda de Terapia, nos abraçamos uns aos outros, é porque
juntos descobrimos uma força maior, uma que estava adormecida ou esquecida, como
dissemos, e que foi revivida em poucos minutos.
Quando a Terapia Comunitária chegou em João Pessoa em 2004, no bairro dos
Ambulantes, na louça da sala da Associação dos Moradores do Bairro em que se
iniciaram os trabalhos, estava escrito: Juntos podemos vencer todos os problemas.
Não poderia haver nada mais significativo. O reencontro da força coletiva, a
recuperação da fé em si e na comunidade como ator social concreto, efetivo, no
empoderamento das pessoas e na revitalização dos seus laços de pertencimento ao
tempo e à vida, à sociedade e ao mundo atual, é profundamente religioso, no sentido
original do termo.
Alguns alunos do Programa de Posgraduação em Enfermagem da UFPB tem pesquisado
a influência ou presença da fé nas rodas de terapia no Rio Grande do Norte. Outros, tem
levantado, em entrevista com profissionais da saúde formados em Pedras de Fogo,
Paraíba, a autoconsciência do renascimento que se processa na pessoa no processo de
formação em Terapia Comunitária.
Ainda, no México, no Uruguay, e na Venezuela, tenho observado a confluência de
tradições místicas da humanidade, entre as pessoas na ENEO-UNAM, na Facultad de
Enfermería de la Universidad de la República (UDELAR), e na Universidad de
Crarabobo.
O clima de alegria, a sensação de as pessoas serem vencedoras, o sentirem-se parte de
uma força ativa de saração, é profundamente espiritual. Pessoas tem visto cor violeta
(Uruguay), após uma sensiblização realizada, na qual, no final, cantou-se o Ave Maria.
No México, um reviver da tradição asteca e tolteca, na visita às pirâmides de Cholula e
Teotihuacán. Na Venezuela, um eclodir da alegria espontânea e gratuita que se
expressam na dança e na piada, no mútuo se alegrar com a companhia dos promotores
da vida, dos parteiros da esperança.
Não estamos falando apenas –embora também—das formas de religiosidade explícita,
mas, sobre tudo, de vivências do sagrado. Nas Ocas do Índio em Beberibe-CE, nos
encontros de formadores ou nas vivências durante a formação como terapeutas
comunitários, temos vivenciado em nós e no grupo, estas sensações de pertencimento,
de uma calma que ultrapassa a compreensão, uma sensação de paz, um estado de
inexprimível unidade.
Já não importa o cargo ou a profissão, o papel social da pessoa ou a sua educação (grau
de escolaridade), mas entre todos se criam laços de união duradouros que perpassam o
tempo e as distâncias.
O autoconhecimento nas rodas da Terapia Comunitária
O autoconhecimento tem sido visto, em parte corretamente, como uma atividade
essencialmente solitária. Na medida em que somos seres sociais, no entanto, isto é
verdade apenas de um lado, desde uma perspectiva, a perspectiva interna, presente em
todas as interações sociais. Saber quem sou é uma preocupação e interesse dos mais
genuinos da pessoa humana, e acompanha os primeiros passos do despertar da
consciência de cada um de nós.
Nos percebemos vivos, existindo, respirando, tendo sensações e sentimentos, um corpo
que se move, com desejos, passado, ambições ou expectativas, esperanças e decepções.
Isto tudo desperta a natural curiosidade por virmos a saber quem é esse ser que cada um
é. Aqui quero me referir a este processo de vir a sabermos quem somos, quem de
verdade somos, sem máscaras nem dissimulações, sem equívocos nem enganos, no
processo da pessoa que se integra nas rodas da terapia comunitária.
Este processo começa a rodar a partir da hora em que você entra nas rodas da terapia
comunitária, seja como curioso, como usuário, ou bem como membro formador nos
encontros, nas vivências, nos congressos, nas reuniões de pesquisa, ou nas trocas que
ocorrem em cada lugar em que se encontram pessoas com o objetivo de se tornar mais
quem elas são, autênticamente, o que supõe um resgate da criança interior, do menino
ou da menina que fui, que você foi, que todos fomos e de alguma forma somos ainda e
continuaremos a ser.
Uma das premissas básicas deste processo de reencontro interior, de voltar a si mesmo
ou a si mesma, é saber o que quero, o que sou, o que vou sendo e o que tenho sido ao
longo da vida, e como isto tem ido mudando meu modo de ser, minhas aspirações,
frequentemente me distanciando do que de verdade sou, do meu ser verdadeiro e
genuíno. “Eu sou quem eu sou, e não quem os outros querem que eu seja”,
escutamos uma e outra vez. “Eu não apenas tenho sofrido, mas tenho crescido com
as minhas dores”.
Ninguém nasceu para sofrer, mas todos podemos crescer, e de fato crescemos, com a
dor. Para chegar a ser quem sou hoje, tive que vencer muitos desafios. Nas rodas da
terapia comunitária, percebo, todos percebemos, que não somos os únicos, que o
vizinho e a vizinha passaram por experiências de triunfo, de luta e de dor como as
minhas. Isto tem um potencial libertador acima de qualquer expectativa, uma vez que
reinsere, por este expediente tão simples, você na trama da normalidade da existência
social.
O que é ser um terapeuta comunitário
Um terapeuta comunitário é uma pessoa que quer sarar constantemente das suas neuras,
das suas dificuldades pessoais, e, como pessoa deste tempo, homem ou mulher do
século XXI, abrir caminho para seus sonhos, suas possibilidades e suas capacidades
para ser feliz.
É alguém que aprendeu, de repente ou num processo, que não poderia sarar sozinho,
pois que não fora sozinho que adoecesse. Suas dores foram coletivas, embora aninhadas
no seu ser individual.
O terapeuta comunitário aprendeu a lembrar de si e lembrar outros de si mesmos. Não
como técnica apenas, mas sobre tudo como prazer pessoal, como satisfação de ver o
outro crescer no processo mútuo de construção da própria pessoa.
Um terapeuta comunitário é alguém que lembrou das suas raízes, do lugar e da família,
do bairro ou da terra, da província ou do estado de origem. O terapeuta, ao lembrar de
si, reconstitui a sua história, sue memória, seus afetos, suas lutas, e se torna um
motivador da libertação pessoal e coletiva.
O terapeuta comunitário aprendeu que é dando que se recebe. No convívio com os
pobres, rompeu barreiras que as socializações posteriores à primária, estabeleceram no
seu ser, retomando o contato com a fonte viva da vida. A gratuidade e a generosidade
das pessoas do meio popular, sua fé e solidariedade, sua esperança ativa, renovam no
terapeuta comunitário a sua própria resiliência.
O terapeuta comunitário rompeu com o autismo universitário, com o egocentrismo
intelectualista, com os preconceitos que o isolavam de si mesmo e da vida e das pessoas
ao seu redor. Por viver em rede, ele se restitui constantemente à trama da vida. O
símbolo da terapia comunitária, a teia da aranha, mostra o trabalho constante do ser
humano, terapeuta ou não, por estabelecer conexões vitais em todas as direções. Para
dentro e para fora. Consigo, contigo, com o passado, o presente e o futuro. Com Deus,
com a terra, com os vizinhos, com as pessoas com que se encontra a qualquer momento
e em qualquer lugar. O terapeuta comunitário é um germe do homem e da mulher novos
pelos quais trabalharam, sonharam e morreram milhares de pessoas em todos os tempos
e em distintos lugares da Terra.
Ele é uma semente de esperança viva e ativa.
E muitas outras coisas que iras descobrindo na tua própria caminhada.
Os valores na formação do terapeuta comunitário.
Na terapia comunitária, a pessoa, se reencontra com o que ela é, com seu ser mais
profundo. Quando você começa a participar das rodas da terapia, você percebe que não
está só nem isolado, que a sua história não está solta nem você desgarrado. A sua vinda
para a cidade, se você veio do interior ou de outro estado ou, ainda, de outro país, é um
caminho que muitas pessoas na roda fizeram. Aos poucos, você vai se sentindo mais
coeso, mais integrado, mais parte de um todo. Esse todo é você mesmo, a pessoa que
você é. A soma de pequenos e não tão pequenos atos e decisões, fatos da sua família e
do seu povo, da sua cultura e das situações que você passou para chegar aonde está, para
vir a ser quem você é.
Como foi escolhido o seu nome, qual dos filhos ou filhas da sua família você é, como
foi o seu nascimento, todos são fatos que compõem essa diversidade conflitante ou não,
em movimento, em perpétua reorganização, que cada um de nós é, que todas as pessoas
são. Na formação como terapeuta comunitário, cada um de nós da um mergulho
profundo na sua história, nas suas raízes, na caminhada que o fez chegar a ser quem é e
a estar aonde está.
Muitas vezes na primeira roda, a primeira vez que você comparece a uma roda de
terapia, a pessoa descobre que ela não é a única que sofre essa dor ou que passa por essa
dificuldade que lhe tira o sono, que a faz sentir alguém sem um lugar. Na primeira
intervisão dos terapeutas comunitários formados em Salto, Uruguay, em novembro de
2009, tive a oportunidade de ouvir a história de um homem que entrou na roda da
terapia comunitária, na sua cadeira de rodas, e saiu aliviado, dizendo: ―Eu achava que
eu fosse o único‖.
Quando você descobre que a sua dor não é a maior do mundo, que a sua perda, a dor
que você acarretou durante anos, o não gostar de si mesmo ou de si mesma, que lhe foi
inculcado por circunstâncias que você aprende a decodificar e compreender ou por
situações perante as quais você foi forçado a se submeter sem poder reagir para
preservar a sua identidade, você começa a fazer o caminho de volta para si mesmo ou
para você mesma.
Se diz que a terapia comunitária é integrativa e sistêmica. Integrativa, porque a pessoa
passa se perceber como uma unidade, não mais fragmentada. Sistêmica, porque a sua
vida, a sua história, as coisas em que cada um de nós crê e que nos dão razão e sentido
para viver, são comuns a um povo e a uma cultura. Na formação do mesmo grupo de
terapeutas comunitários do Uruguay, em julho de 2009, tive a oportunidade de intervir,
com a parte sobre os valores na formação do terapeuta comunitário. Lembro como se
fosse agora, as expressões nos rostos dos participantes da formação. A alegria, de se
saberem partes de uma história, descobridores e descobridoras de si mesmos/as.
Na ocasião, entre outras coisas, se falava do lugar e do papel de cada um e de cada uma
na vida, o lugar que cada um e cada uma ocupam, lugar insubstituível. Em outras
formações, no interior da Paraíba, na cidade de Souza, uma formanda expressava com
veemência: ―Eu sou o que eu sou, e não o que os outros querem que eu seja.‖ Essa
expressão, seu profundo significado, vão trazendo você de volta.
Quando fui para o Uruguay em 2005 pela primeira vez, participei de uma
sensibilizaçaão em terapia comunitária na Universidad de la República, na Faculdade de
Enfermagem. Nessa oportunidade, por primeira vez na minha vida me encontrei com
um grupo de pessoas que tinham sobrevivido a uma ditadura militar. Ouvia s histórias
de cada um e de cada uma, e aos poucos a minha história, a de quem também
sobrevivera a outra ditadura militar, foi se montando de outra forma.
Isto ocorre nas rodas da terapia. Na história do outro, me reconheço. Essa história evoca
a minha própria história. É o que se chama de escuta ativa, uma das ferramentas do
terapeuta comunitário. E vou deixando por aqui, na expectativa de ter atiçado a sua
curiosidade, querido leitor ou leitora, para vir a fazer parte dessa roda, caso já não o
faça.
Pedagogia de Paulo Freire e Terapia Comunitária
Há vários aspectos da pedagogia de Paulo Freire que se encontram incorporados na
Terapia Comunitária. Dentre eles, cabe aqui mencionar a criticidade (como oposta à
visão ingênua, alienada, do mundo), a contextualização, a problematização, o caráter
dialógico da construção do conhecimento --e, mais, da construção da realidade--, a
noção do opressor introjetado no oprimido –como um obstáculo à liberdade-- , e a
noção de que o processo educativo é sempre de duas vias: todos aprendem, o educador
e o educando, isto é: todos somos educadores-educandos, por um lado, e, por outro, a
noção de que todos somos geradores de saberes e de visões de mundo irredutíveis umas
às outras, em um movimento contínuo de mútua contradição e complementariedade. A
compreensão de que a vida é um processo incompleto, é outra das características do
pensamento de Paulo freire
Estas noções são algumas que se apresentam como relevantes. Podem parecer muito
simples, mas –talvez como conseqüência dessa mesma simplicidade-- o seu efeito
libertador nas rodas de Terapia Comunitária, e na formação de terapeutas comunitários
–toda terapia comunitária tende a ser um processo constante de auto-descoberta e
libertação—é muito evidente e constante, como o atestam algumas das pesquisas
reunidas nesta coletânea.
Ver as coisas em processo, se ver no processo de oposições e de contradições que é a
vida. Poder se ver no contexto das circunstâncias em que cada um foi sendo moldado,
passando a ser um analista de si mesmo e das pessoas em redor, e não mais espectador
passivo. Se perceber como co-responsável na criação das circunstâncias em que se vive
e se luta, nas quais se descobrem recursos próprios e coletivos para a emancipação do
que oprime, e não mais como vítima. Se perceber, portanto, como sujeito construtor de
modos de vida e visões de mundo, de relações sociais que oprimem mas também
podem e devem libertar, em outras palavras, assumir a pessoa que se é e que se está
sendo, o destino que se quer realizar. Ou seja: sujeito ativo, criativo, capaz (o eu posso
individual e coletivo), autor das próprias escolhas e dono da própria vida. Tudo isto em
movimento, ou seja: não mais a vida como passividade, submissão, aquiescência, mas
como atividade, criatividade, compromisso consciente.
É possível reconhecer no pensamento de Paulo Freire, a marca de pensadores como
Sócrates, Karl Marx, Max Weber, e Martin Buber. Os ensinamentos de Jesus Cristo
também tem sido rastreados como uma das fontes de inspiração da pedagogia freireana.
Resiliência, quando a carência gera competência
Toda carência gera uma competencia. A resiliência, um dos pilares básicos em que se
apóia a Terapia Comunitária, se refere ao saber que a pessoa adquire ao longo da sua
vida, pela experiência, a luta, as vitórias sobre dores que poderiam te-la quebrado ou, de
fato, a quebraram durante anos.
Quando a pessoa emerge vitoriosa do processo de estranhamento de si mesma, quando
ela recupera a sua autoestima, aprende que ela é alguém de valor sem igual na sua vida,
alguém que por ter vencido todas as batalhas que se apresentaram até o momento atual,
é dona de um saber e de um poder que nada deve a ninguém, mas apenas a si mesma.
Tendemos a valorizar em demasia algo que lemos, uma ajuda que recebemos, alguma
pessoa ou muitas, a quem atribuimos valor enorme na nossa vida. Mas sem a nossa
decisão de vencer, teriamos sucumbido. As pessoas do meio popular valorizam muito o
saber aprendido na escola da vida.
A Terapia Comunitária reforça esta atribuição de valor, enfatizando que cada um é
doutor na sua própria experiência. Saber que se aprende nos livros e nas escolas, o
saber técnico-científico, na substitui mas se complementa com o saber experiencial, o
que foi adquirido no dia a dia, ao longo dos anos, na luta contra circunstâncias adversas,
quer seja na família, a primeira escola de cada um, quer na escola ou no trabalho, na
vizinhança, nas distintas esferas sociais de atuação.
A pessoa resiliente valoriza os gestos de ajuda que recebeu e recebe ao longo da vida.
Ela se nutre da generosidade, da infinidade de atos de amor que a acolheram e
ampararam ao longo das vicissitudes que teve de atravessar. Ela sabe que cada um, cada
ser humano, é a soma de infindáveis atos e gestos de colaboração que deram por
resultado o ser que cada um de nós é agora.
A vida adquire um valor inestimável desde esta perspectiva, em que tudo que somos
reúne os nossos ancestrais, os amigos que fomos tendo nas distintas etapas da vida, as
lutas que tivemos que enfrentar, os ambientes e experiências adversos pelos que tivemos
que atravesar, as vitórias que nos foi dado obter. Somos uma soma de atos de amor.
A pessoa resiliente sabe disto, e age em conseqüência, valorizando cada pequena coisa.
É comum em famílias de imigrantes ou pessoas que sofreram necessidades como fome
ou escassez, valorizar uma migalha de pão, uma gota de água, um pedaço de comida,
um olhar de compreensão, uma escuta calorosa e atenta.
Quando a pessoa se vê na trama da vida, na teia da vida, como costumamos dizer na
Terapia Comunitária, ela não dispensa nada, e o que a faz sofrer a faz crescer. Ela
descobre isto na sua formação como terapeuta comunitário, quando reconhece o
processo do qual é resultado. Si se sentiu abandonada, não querida, torna-se amorosa,
sensível ä dor alheia, capaz de se doar sem nada esperar, sabendo da alegria de poder se
integrar amorosamente na vida dos outros.
Se foi problema, tende a ser solução. Se se sentiu um estorvo, sabe acolher. No processo
de se tornar terapeuta comunitário, a pessoa aprende a se tornar cada vez mais autônima,
mas senhora de si, na medida em que sai do papel de vitima para o de vencedor. A
complementação do saber científico com o experiencial, oriundo da vida e das vivências
que cada pessoa passou e passa, cria essa capacidade resiliente que torna o individuo
forte naquilo em que foi mais débil.
É a transformação da fraqueza em força, e cada ser humano é capaz de descobrir e
descobre que isto ocorre na vida de cada pessoa. Neste sentido, pode-se dizer que é a
vitória do ser humano sobre a adversidade. Eterna epopéia infindável em que todos
estamos involucrados, e que não termina enquanto há vida.
Terapia Comunitária, epistemologia e método
Entendemos a Epistemologia (de episteme, saber) como a reflexão sobre os
fundamentos da realidade e do conhecimento, as definições básicas a partir das quais
transcorre um afazer, neste caso, a Terapia Comunitária. A Terapia Comunitária é mais
do que um mero afazer. É um modo de ser, ou muitos modos de ser, entrelaçados, e
cabe a cada um dos seus praticantes, terapeutas ou formadores, discernir, a cada
momento, o que seja esse viver em rede, esse ser em rede que acabamos descobrindo
nesta vida construida entre muitos. Aqui, talvez, esteja a mais forte das mudanças que a
TC introduz nas nossas vidas: Já não sou só, agora vivo em relação, vivo interligado,
me descubro, mas não apenas intelectualmente, como um ser comunitário, alguém que
não apenas está, mas também é, em relação, em sociedade, em rede. Esta autodescoberta
rompe o isolamento, define novas formas de ser e de fazer, se sentir e de pensar, que
cada um ira descobrindo na caminhada da vida, na vida na terapia.
Na sociedade capitalista em que vivemos, o outro é construído como ameaça, obstáculo,
ou meio. Raramente fraternalmente, mais comumente, competitivamente. Alguém que
se opõe aos meus fins, ou alguém que devo ou posso usar para atingir minhas metas. Na
Terapia Comunitária, aprendemos, e não só teóricamente, que com o outro, e apenas
com os outros, no plural, posso crescer, posso ser, posso me tornar quem sou. Desde o
começo, quando demos o primeiro passo para este mundo novo, alguma coisa mudou
essencialmente em cada um de nós. Talvez uma solidão, um abandono, uma sensação de
estranhamento, de não pertencimento, de andar vagando sem rumo pelo mundo e pela
vida, de não ser alguém de jeito nenhum, mas apenas uma folha ao vento, estranho e só,
alheio a tudo e a todos, tenha se rompido.
Ao sermos acolhidos, ao nos descobrirmos parte de uma comunidade, a nossa
reinserção no mundo e na vida, na sociedade que existe fora e dentro de nós, ocorreu.
Esse fato fundamental mudou radicalmente a minha vida, a vida de todos vocês, a vida
de cada um que se encontra ou se reencontra nas rodas da terapia.
O problema ou os problemas que me dilaceravam, que faziam de mim um sujeito sem
raízes, um pedaço de mim, como diz a canção de Chico Buarque, aquilo de tão horrível
e único que me quebrava por dentro, que e fazia ser agressivo ou passivo, obediente ou
subserviente, mecânico, técnico, um arremedo de gente e não gente de verdade, se
tornou, na verdade, a minha ponte de regresso, uma ponte de volta para mim mesmo,
para a vida, para Deus, para a sociedade.
Cada um de nós tem histórias a contar a este respeito. Temos estudado os fundamentos
da Terapia Comunitária na formação, nos estudos coletivos e individuais. Temos
pensado sobre as noções de homem/mulher (ser humano) implícitas na formação do
terapeuta comunitário e na sua ação. Como se concebe, no pensamento de Adalberto
Barreto, a realidade social, o mundo, a vida, as relações sociais, o tornar-se homem-
mulher no convívio, na relação consigo mesmo e com os demais, com o tempo, o
trabalho, as necessidades básicas, a vida, tudo o que existe, a saúde, a doença, a política,
o futuro, o passado, as raízes, a morte, a solidariedade.
Cada um de nós registra com clareza, esta caminhada de volta para nós mesmos de
retorno da alienação, da fragmentação, da separatividade, do isolamento, do autismo, da
coisificação, do viver sem rumo nem direção, da falta de sentido, do desenraizamento,
do niilismo, do fatalismo em que vivíamos.
Esta revolução interior que pôs a nossa vida de pé sobre as nossas próprias pernas, que
nos fez seres autônomos e responsáveis, reintegrados à trama da existência, com
projeção para o aqui e agora desde um passado que nos fez gente, feito de dores, de
sonhos, de amargura, de lutas vencidas e perdidas, de utopias pessoas e muito mais do
que pessoais, em direção a um futuro que vislumbramos individual e coletivamente, é
incessante, não acaba nunca, é para todo o sempre. A TC apenas nos tornou conscientes,
o que não é pouco, da incompletude, do inacabamento, como diz Paulo Freire, de tudo
quanto existe. Tudo é um vir a ser, um Heráclito incessante, como diz Borges no seu
poema Arte poética.
Nossos sonhos juvenis, de um mundo de amor e de paz, fraterno, com oportunidades
iguais para todos, justo, sem fome, com emprego e casa, saúde, bem estar e cultura,
educação para todos, está em nossas mãos. Somos parte de um exército de formigas,
como dizia Dom Fragoso, construtores constantes de um homem e uma mulher novos,
como Cristo e Che Guevara ensinaram. Homens e mulheres numa terra nova, de luz,
plenitude, prosperidade para todos e todas sem distinção. Uma terra de vida eterna. Tu
és essa terra, essa terra é esta terra, essa terra, esse mundo novo, é aqui mesmo, é aqui.
O metido estabelece a direção e o sentido. O caminho se faz ao andar, como diz a
canção de Joan Manoel Serrat, citando versos de Antônio Machado.
Mais do que técnica, a Terapia Comunitária é um gesto de amor.
É um método de retorno do ser humano a si mesmo como ser social, como diz Marx em
A Ideologia alemã. Redescobrir a socialidade total que me constitui. É o fim da
sociedade de classes e o começo da verdadeira história da Humanidade. É o fim do
antagonismo entre o eu e o tu, como dizia Martin Buber.
Terapia comunitária, esperança
Alguns anos atrás, lia um artigo do Professor Adalberto Barreto, As dores da alma dos
excluídos no Brasil, e comecei a chorar. Mas não penses que foi por outro motivo, do
que o de ver, ali, o retrato de meu próprio processo como migrante, alguém que, como
as pessoas de que o escrito falava, tinha também perdido a alma no processo de ruptura
com as raízes.
Esta leitura me emocionava ainda por um outro motivo: o fato de ali estar retratado um
trabalho coletivo, o da Terapia Comunitária, de resgate da humanidade dos migrantes.
Vindo da Argentina nos tempos da ditadura militar de lá, em São Paulo encontrei
migrantes nordestinos de diversos estados do Brasil que, como eu, buscavam amparo na
Associação Voluntários pela Integração do Migrante, onde o padre Mário Miotto nos
ajudava a conseguirmos documentos e, mais, nos dava apoio na busca de emprego.
O texto do Prof. Adalberto Barreto ainda me emocionava porque ali eu via o triunfo dos
ideais pelos quais a minha geração e muitas anteriores, se empenharam nos anos 1960 e
1970, até a vinda do terrorismo de Estado. Esses ideais estavam vivos. Era a pedagogia
de Paulo Freire, era a fraternidade, era o amor, a solidariedade. E isto de maneira
concreta e prática, não declamada ou apregoada.
Eram pessoas de diversas classes sociais, profissionais de saúde, e gente do povo,
amalgamados em mutirões por este vasto país, em busca do resgate da sua própria
identidade, tal como eu também me encontrava. Os anos passaram, e me formei
terapeuta comunitário, passando a formar parte dessa rede de apoio que se estende por
todo o Brasil, e já para a América Latina de fala espanhola, como o Uruguay, a
Argentina e Venezuela.
Estas linhas apenas tentam retratar, de maneira muito sucinta, uma trajetória de
resiliência que se deu no Brasil, e já está deitando raízes firmes para o sul da América
do Sul. Por anos, senti, como tantos e tantas, que tínhamos sido derrotados, que o
capitalismo selvagem e a violação sistemática dos direitos humanos perpetrada pelas
ditaduras que assolaram nossos países, seriam o horizonte com que teríamos que nos
conformar. Submissão, impunidade.
Não era assim: este trabalho de resgate da autonomia e da auto-estima, de
empoderamento de pessoas e comunidades, de desalienação, para dizê-lo numa palavra,
se oferece como alternativa eficaz à reconstução humana que segue os pesadelos das
ditaduras e as suas continuidades neoliberais.
Rolando Lazarte, sociólogo e terapeuta comunitário, nasceu em 1953 em Godoy Cruz,
Mendoza, Argentina. Cursou estudos secundários em Córdoba (Colégio Leo Bovisio,
Embalse/San Ignacio), prosseguindo no Liceo Agrícola y Enológico Domingo Faustino
Sarmiento, em Mendoza.
Em 1966, o regime militar de plantão desencadeia protestos na Argentina, mobilizando
a população, principalmente estudantes e operários, reprimidos em jornadas como o
Cordobazo (1969) e o Mendozazo (1972). Nessa época, os Beatles e os Rolling Stones,
o movimento do rock, o movimento hippie, as rebeliões estudantis, agitavam o mundo
animando esperanças libertárias. Os movimentos orientalistas disputavam a hegemonia
da Igreja católica. O nosso jovem estudante se soma às passeatas e mobilizações
estudantis, engrossando as fileiras dos que construíram uma carreira de sociologia
voltada para os interesses populares na Universidad Nacional de Cuyo. Era o ano de
1973, um clima de mudança favorável aos movimentos populares, revertido
rapidamente pela reação da direita peronista e, logo, pelo golpe de 1976, que forçou o
nosso jovem estudante a abandonar os estudos, expulsos que foram da universidade os
participantes desta iniciativa, tida como subversiva pelos golpistas.
Após um ano de serviço militar, em 1977 prossegue seus estudos universitários de
sociologia na Escola de Sociologia e Política de São Paulo e, em 1987, conclui o
mestrado em sociologia no IUPERJ, no Rio de Janeiro.
Trabalha no Centro de Estudos Migratórios de São Paulo, no CEBRAP, na Escola de
Sociologia e Política de São Paulo e Universidade São Francisco, até que, em 1989,
migra para João Pessoa, admitido que por concurso público como professor da
Universidade Federal da Paraíba, onde hoje participa do Grupo de Estudos e Pesquisas
em Saúde Mental Comunitária.
É membro da diretoria da Abratecom e do pólo formador MISC-PB
Publicou Max Weber, ciência e valores (São Paulo, Cortez, 2001, 2ª. Ed.), Mosaico
(João Pessoa, Editora Universitária da UFPB, 2005) e Resurrección (Juiz de Fora,
Estúdio Três, 2009). Traduziu para espanhol o livro do Prof. Adalberto Barreto,
Terapia Comunitária passo a passo. Publica em Consciência.Net.