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Deleuze e Hegel: variações a respeito de necessidade da arte
Luiz B. L. Orlandi (Unicamp/PUC-SP)
Fiquei impressionadíssimo ao ler os títulos das setenta
comunicações inscritas neste colóquio. Independentemente dos seus
resultados estritamente acadêmicos, já estamos participando do
estado de coisas de um valoroso acontecimento. Isto me leva a
homenagear os partícipes deste encontro, seus organizadores e
idealizadores. Sou grato, particularmente, a Sandro Kobol Formazari
e a Cíntia Vieira da Silva pelo generoso convite que me fizeram para
estar aqui neste momento. Aproveito esta rara oportunidade para, de
público, prestar minha modesta homenagem a uma pessoa muito
querida. Refiro-me a Marilena Chauí, a quem admiro há várias
décadas. E a admiro não só pela excepcional qualidade e grandeza de
sua multíplice contribuição às pesquisas e estudos filosóficos feitos no
Brasil, mas também pelo seu excepcional nível de abertura aos
problemas de nossa contemporaneidade, problemas que ela sempre
soube enunciar com a competência teórica e a clareza retórica que
tanto nos encantam.
Para findar este prólogo, manifesto também uma quase
certeza: a de que nós todos estamos aqui reunidos com o inocente e
fecundo intuito de criar condições atuais e futuras para novas
conversações que nos sejam mutuamente úteis em nossas pesquisas.
Por que digo isso? Por causa de uma interessante idiossincrasia
assumida por Deleuze: é que ele apreciava conversações. Exemplo
disso é a coletânea denominada Pourparlers (justamente traduzida
como Conversações pelo nosso amigo Peter Pál Pelbart). Porém,
embora favorável a conversações, Deleuze manifestava fortes
reservas a colóquios que primassem por discussões inúteis,
mormente aquelas entre exibicionistas de suas próprias auto-
afirmações, mesmo que amparadas em leituras até formalmente
corretas.
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Pois bem, essa posição sugere um quadro de cuidados a serem
tomados. Cuidados que estão implícitos na valorização, no valor de
uso das conversações, na sua utilidade a estudiosos, a pesquisadores
e mesmo a curiosos. O subproduto dessa valorização é uma espécie
de depreciação da entrega de si a discussões filosóficas. É claro que
uma discussão filosófica, detestável como espetáculo de egos
discutidores, pode mostrar-se útil a um pesquisador. Em tal caso, é a
própria extração de sua utilidade que a transforma imediatamente
numa conversação tripartite, multipartite, no espírito desse
pesquisador. A condição negativa é que ele não reduza tal utilidade a
uma posição dogmática posta a serviço de um dos discutidores,
embora lhe caiba, obviamente, privilegiar a via que se mostrar
circunstancialmente mais propícia ao desdobramento das questões ou
problemas que o apaixonam. É claro que uma discussão ao vivo pode
ser acalorada, nascer de paixões elevadas ou baixas, e mesmo
suscitá-las. Mas isso não autoriza alguém a limitar o desenvolvimento
do questionário que o apaixona.
Mas de onde vem a necessidade de tomar alguns cuidados? É
que o campo problemático, onde se cruzam tantos questionários, não
merece estar preso aos estados a que ele se reduz quando se acha
dualizado por polêmicas. Ele pede novos ares, mudanças de assunto,
sensibilidades que explorem sua fecundidade questionadora. Nas
conversações – que, por si, parecem mais promissoras como
diversidade paisagística de pontos de vista -- os principais tensores
que nos apaixonam são, justamente, variações de circuitos pulsantes
no campo problemático. Por isso, esse campo é irredutivel ao manto
de respostas impostas por discussões. Neste sentido, confiando na
força de sua abertura à multiplicidade de linhas do campo
problemático, as conversações talvez tenham condições para operar
como cuidadosas herdeiras de uma criativa atmosfera filosófica. Com
efeito, isso acontece até mesmo, e talvez principalmente, nas
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conversações solitárias de alguém com os livros que o acodem em
suas leituras especiais. Aquele risco grifando palavras ou enunciados,
aquelas anotações que ocupam as margens dos textos, tudo isso é
sinal de conversa, sem que esta caia, necessariamente, naquilo que
Heidegger chamaria de conversa fiada, esse tipo de conversa que,
entretanto, é por vezes muito mais interessante que uma discussão.
Sonoramente, elas também comportam os riscos e rabiscos das
intensas leituras feitas nos encontros solitários com os livros. São
sinais que herdam outras conversas e que dão testemunho das
solidões povoadas, como diria Deleuze: aquelas solidões criativas que
absorvem verdadeiros filósofos em suas contínuas ou despedaçadas
relações com outros filósofos, seja numa grandiosa história hegeliana
da filosofia ou numa ziguezagueante geofilosofia deleuze-guattariana.
Quero dizer que não advém de mera discussão egocentrada o
gradativo ou repentino mapeamento de diferenças conceituais que
um filósofo é coagido a construir relativamente a outros filósofos. É
claro que também não se trata de um puro exercício racional posto a
conversar com outro puro exercício racional. Entre um subjetivismo
exacerbado e um puro exercício de imperturbável racionalidade, há
apaixonados e apaixonantes deslocamentos de problemas num
inexaurível campo de tensões. É uma complexa intersecção desses
deslocamentos, é um frêmito de dobras agitadas por dinamismos
espaciais e temporais, que arrasta as vidas e os esforços tanto dos
filósofos quanto dos estudiosos dedicados às suas obras. É do gosto
dessa atmosfera que nos separamos quando bebemos ou respiramos
a acidez das discussões. E guando são egocentricamente
contaminadas, as discussões obnubilam (para empregar uma palavra
que aprendi com Hegel) o que há de sutil abertura das conversações
ao ziguezague que torna ilimitável o apaixonado interesse pelas
filosofias todas, mesmo quando não se tenha condições de ocupar,
como especialista, mais do que um limitado ou limitadíssimo número
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delas. É neste caso que me sinto incluído ao atrever-me, aqui, a
relatar tão-somente o estado atual da minha pesquisa. Essa pesquisa
faz uma pergunta que muita gente sabe responder, menos eu. Ela
pergunta pelas variações a serem cartografadas entre Hegel e
Deleuze ou entre Deleuze e Hegel a respeito da necessidade da arte
ou de necessidade de arte.
Como não sou especialista em Hegel, a pesquisa ainda sofre um
evidente desnível. É que, enquanto leitura da estética de Hegel, o
encaminhamento da pesquisa fica numa espécie de admiração
cautelosa, mais colado ao pé da letra dos cursos dados por esse
imenso filósofo ao longo dos poucos anos que antecederam sua
morte, em 1831. E do ponto de vista das minhas leituras de obras de
Deleuze, a pesquisa sofre uma espécie de excessivo bem-estar, não
ao pé da letra deleuziana, precisamente, mas ao pé de um fogo que
nasce e renasce, desses que aquecem bons encontros. Em ambos os
casos, porém, a pesquisa não chega, e talvez nem queira chegar, a
um conjunto de interpretações já decididas. Às vezes, ela se atém a
um genérico bloco de anotações de estudo. Outras vezes, ela dá a
impressão de ser mesmo verdadeira a idéia de que a filosofia é
também uma questão de gosto. É que, em certos momentos, a
pesquisa sente no ar algo como uma emanação de alergia filosófica,
uma alergia que, embora aquém do conceito, distancia um sorridente
Deleuze, vestido com sua “jaqueta de camponês” 1, da universal
grandeza de Hegel, ou então, em outra modulação, a alergia que leva
certos hegelianos a se distanciarem da leveza deleuziana.
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1 Gilles Deleuze, Pourparlers (1972-1990). Paris : Minuit, 1990, p. 13. Conversações (1972-1990), tr. br. de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro : Ed. 34, 1992; São Paulo. 2ª ed., 2010, p. 13.
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Pois bem, como Hegel configura o problema da necessidade da
arte em sua longa introdução aos seus “cursos de estética”? 2. Em
resumo, ele nos acostuma a pensar a arte sob a vigilância da
“ciência” que ele está elaborando, ou seja, de sua “filosofia da arte”,
por ele restringida a uma “filosofia da bela arte”, excluindo, assim, o
“belo natural”. Conceitualmente, essa exclusão implica a afirmação
da “superioridade do espírito e da sua beleza artística”. Porém, tal
superioridade não é afirmada apenas perante a natureza, pois isto
seria pensar o espírito ainda de modo relativo. A superioridade é
afirmada por força da intimidade do espírito com a verdade. Com
efeito, ele diz que “somente o espírito é o verdadeiro, que tudo
abrange em si mesmo, de modo que tudo o que é belo só é
verdadeiramente belo quando toma parte desta superioridade e é por
ela gerada” [14-15]. E na última página da introdução, lê-se o
seguinte: “portanto, segundo o conceito, o que as artes particulares
realizam em obras de arte singulares são apenas as Formas
universais da Idéia de beleza que a si se desenvolve” etc. [124].
Entre esses dois extremos da introdução, Hegel enfrenta duas
dificuldades que se opõem ao intento de mostrar que a “bela arte é
digna de tratamento científico”. Ele mostrará que ela é digna, porque
“as Formas [Form, distinta de Gestalt, que é forma determinada
2 HEGEL, George Wilhelme Friedrich (1770-1831), Vorlesungen über die Ästhetyk, Francoforte, Suhrkamp, 1986; textos presentes nos volumes 13, 14 e 15 reeeditados por Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel com base na edição de 1842. Tr. br.: Cursos de Estética, São Paulo, Edusp, 4 volumes assim distribuídos: Vol. 1. Parte I. A Idéia do belo artístico ou o Ideal. Tr. br. de Marco Aurélio Werle: 1ª ed. 1999; 2ª ed. 2001. [302 pp.]. Vol. 1. Parte I. A Idéia do belo artístico ou o Ideal. Tr. br. de Marco Aurélio Werle: 1ª ed. 1999; 2ª ed. 2001. [302 pp.]. Vol. 2. Parte II. O desenvolvimento do Ideal nas formas particulares do belo artístico: Primeira Seção. A forma de arte simbólica; Segunda Seção. A forma de arte romântica. Tr. br. de M. A. Werle e Oliver Tolle, 2000. [351 pp]. Vol. 3. Parte III. O sistema das artes particulares: Primeira Seção. A Arquitetura; Segunda Seção. A Escultura; Terceira Seção. As artes românticas: Pintura; Música. Tr. bre. de M. A. Werle e O. Tolle, 2002. [345 pp.]. Vol. 4. Parte III [Final do Sistema das artes particulares]. A Poesi. Ter. br. de M. A. Werle e O. Tolle, 2002. [287 pp.]. A tradução preserva, entre colchetes, a paginação do original. É essa paginação que reterei, também entre colchetes, ao longo da minha exposição.
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individual] não estão fora dos “fins últimos verdadeiros da vida”.
Deste modo, quando a arte “lança mão da ilusão para servir como
meio a outros fins, isto lhe é prejudicial, pois o “meio deve ser
adequado à dignidade da finalidade”. A seleção do mais adequado
impõe-se, porque a “ciência tem de refletir sobre os verdadeiros
interesses do espírito segundo o modo verdadeiro da efetividade e o
modo verdadeiro de sua representação” [16, 17]. Outra dificuldade a
ser enfrentada por Hegel é esta: embora “sirvam a reflexões
filosóficas”, seriam as artes “um objeto adequado para a
consideração científica autêntica”? [18] Por que haveria essa
dificuldade? E a resposta de Hegel, distribuída em vários níveis, é
admirável, graças à consciência que ele demonstra ter do quão
invasivo pode ser determinado exercício do pensamento.
Num primeiro nível, a dificuldade aparece porque “a beleza
artística se apresenta ao sentido” (sensação, intuição, imaginação),
isto é, a um “âmbito” que não é o do “pensamento científico”. Num
segundo nível, a dificuldade se recompõe, porque o que se frui na
beleza artística é a “imaginação criadora”, a “liberdade da produção e
das configurações” estéticas, de modo que, diz Hegel, ficam
suspensas “as amarras da regra e do que é regrado” tanto “na
produção quanto na contemplação de suas criações”. No terceiro
nível, quando Hegel exaspera a dificuldade, ficamos mais ou menos
sabendo qual é o modo de pensar aí chicoteado pela arte: “perante
esta plenitude incomensurável da fantasia e de seus produtos livres”,
diz ele, “o pensamento parece que tem de perder a coragem para
trazê-los em sua completude diante de si, para julgá-los e enquadrá-
los em suas fórmulas gerais”. Finalmente, o quarto nível distribui em
dois pontos de vista a dificuldade de a ciência pensar as artes: do
ponto de vista da Forma, o pensamento faz abstrações, exclui a
imaginação (que “é o órgão da atividade e fruição artísticas”) e leva o
conceito a uma “simplicidade destituída de efetividade e a uma
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abstração cheia de sombras”; e do ponto de vista do conteúdo, a
dificuldade se bifurca, por duas razões: de um lado, a ciência se
ocupa com “o que é em si mesmo necessário”; ora, como ela extrai
da “natureza” a “representação da necessidade e conformidade a
leis”, e como Hegel já eliminou de suas preocupações o belo natural,
então essa ciência ainda precária [por não ser dialética, entenda-se]
fica desarmada perante obras do espírito, dado que este, para essa
ciência precária, é o onde “reside o arbítrio e o desregramento”,
justamente o que impede a “fundamentação científica” visada por
Hegel. Como resumo desses quatro níveis da dificuldade, Hegel diz
que “a arte resiste em sua autonomia contra a atividade reguladora
do pensamento e não se mostra adequada à autêntica investigação
científica” [18, 19].
Então, cabe perguntar: como a filosofia hegeliana da arte põe
essa autonomia na direção de uma “esfera” determinada pela sua
própria filosofia geral? Primeiramente, ele elimina a “arte servil” para
ficar com a “arte livre”, que é livre em seus fins e em seus meios,
embora, como todo pensamento, ela possa ser empregada para “fins
finitos e meios casuais”. O que importa afirmar é que a “arte pode
libertar-se dessa servidão”. Sim, mas Hegel não se contenta com
esse pedaço da frase. Ele dá um destino a essa libertação: a arte
pode libertar-se “para elevar-se à verdade numa autonomia livre, na
qual ela se realiza independentemente, apenas com seus próprios
fins”. E o que acontece nessa trajetória de livre efetuação de si? Ao
fazer isso, a arte, diz Hegel, “leva a termo sua mais alta tarefa,
quando se situa na mesma esfera da religião e da filosofia”. E o que a
arte se torna ao cumprir livremente sua inclusão nessa esfera? E aí a
frase de Hegel escorrega num terrível apenas: “ela se torna apenas
um modo de trazer o divino à consciência e exprimi-lo”. Mas é um
grande apenas, pois, como Göttliche, em alemão, o divino fica mais
maravilho, dado que implica “os interesses mais profundos da
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humanidade, as verdades mais abrangentes do espírito”. E sabemos
qual é o modo peculiar pelo qual a arte ganha um lugar nessa esfera,
nessa linhagem da qual a religião participa e que a filosofia coroa.
Sua função aí é “expor sensivelmente o que é superior”. E ao fazer
isso, ela está aproximando o superior daquilo que tinha sido afastado,
mas que é agora recuperado; ela aproxima o superior da “maneira de
aparecer da natureza, dos sentidos e da sensação” [Empifindung].
Quer dizer que a necessidade da arte consistiria em evitar que
religiões e filosofias ficassem boiando em simples abstrações a
respeito da “profundidade de um mundo supra-sensível”? Sim e não.
Sim, porque a arte aparece como primeiro elo entre o puro pensar,
isto é, a liberdade infinita do pensamento conceitual e o meramente
exterior, sensível e passageiro, isto é, natureza e efetividade finita.
Não, porque, ao cumprir esse papel mediador, a arte está sendo
apenas o modo pelo qual o espírito cura a si próprio da ferida de
sentir-se cortado do “aquém, ou seja, da efetividade sensível e da
finitude”. E como o espírito cura a si próprio? Muito simples: “ele gera
a partir de si mesmo as obras da arte bela como primeiro elo” entre o
puro pensar e o meramente exterior. [20, 21, 22]. Quer dizer que a
necessidade da arte é derivada do livre auto-movimento do espírito,
auto-movimento que implica o poder de ligar essência e aparência. É
essa ligação que dá consistência à idéia hegeliana do verdadeiro, do
real, isto é, da “autêntica efetividade”, como diz Kervégan, e não se
perde na mera ilusão do “falsamente efetivo”. O que é esse
falsamente efetivo? É a ligação das sensações e dos objetos
exteriores; mais precisamente, é a ligação entre, de um lado, o
mundo interior sensível e dos sentidos e, de outro, o mundo exterior
dos fenômenos e sua materialidade imediata3. Cumprindo com
autenticidade seu papel, isto é, tomada pela boa necessidade, a arte,
3 Jean-‐François Kervégan, “L’effectif et le rationnel”, em François Dagognet e Pierre Osmo (Ed.), Autour de Hegel – Hommage à Bernard Bourgeois, Paris, Vrin, 2000, pp. 240 ss, esp., p. 245.
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com sua aparência, dá “efetividade ao que é verdadeiro em si
mesmo”. E quando, graças à arte, o verdadeiro em si mesmo penetra
a aparência, ele ganha o estatuto de “verdadeiramente efetivo”, do
que “é em-si-e-para-si” [Anund-fürsichseiende], ou seja, “o
substancial da natureza e do espírito”. Cumprindo sua mais elevada
necessidade, a arte vista por Hegel “ressalta e deixa aparecer
precisamente a dominação destes poderes universais”.
Contudo, a arte não basta para tanto. Por que? Porque esse
poder todo se concentra na verdade. Então, chegará um momento
em que, diz Hegel, “o caráter peculiar da produção artística e de suas
obras já não satisfaz nossa mais alta necessidade”. É que, para ele,
já “ultrapassamos o estágio no qual se podia venerar e adorar obras
de arte como divinas”, no qual a arte “proporcionava satisfação das
necessidades espirituais”, estágio, agora “irrecuperável” [22, 23]. A
“cultura [Bildung] da reflexão” anula a anterior necessidade espiritual
da arte, pois, nesta, “a universalidade não está presente como norma
e máxima”. Assim, embora a arte ainda proporcione “fruição
imediata”, ela perde “sua destinação suprema“, sua “autêntica
verdade e vitalidade”. A essa devastação filosófica, sucede uma
apropriação, também filosófica, do necessário. É que aquela anterior
necessidade encontra seu mais efetivo lugar na “ciência da arte”,
agora entendida como filosofia da arte, filosofia que é, diz Hegel,
“muito mais necessária do que em épocas nas quais a arte por si só
proporcionava plena satisfação, enquanto arte”. Por que a filosofia da
arte tornou-se muito mais necessária? Primeiro, porque a própria
filosofia tem a “tarefa” de “considerar um objeto segundo a
necessidade, que não pode ser [...] necessidade subjetiva ou estar
submetida a uma ordem e classificação exterior”. Como a
necessidade de um objeto é “sua própria natureza interior”, e como
essa natureza interior é “natureza lógico-metafísica” (evitando cair
nas “raias da contingência”), a filosofia hegeliana da arte se livra dos
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sustos que a arte pode causar, e se livra apenas perguntando pelo
“que é a arte”. Deste modo, sem perturbações de fora, essa filosofia
configura a necessidade da arte do ponto de vista logocêntrico do
“progresso interior do seu conteúdo e em seu meio de expressão”.
Mas Hegel tem consciência de que tal programa exige de sua filosofia
algo que será sempre posto em questão: um modo de criação
conceitual que não desfigure e nem mate “o factual em geral”, que
não mate “a vida da natureza e do espírito” [25-27].
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Considerando brevemente o conjunto das obras de Deleuze e
Guattari, e sem entrar nos detalhes da pesquisa que venho fazendo,
a pergunta deve ser nuançada: relativamente a essas obras, como
poderia ser configurado o problema do liame entre arte e
necessidade? Mas, nesse caso, a pergunta metodológica inicial, e de
inspiração bergsoniana, é outra: com base nessas obras, trata-se de
um problema verdadeiro ou falso? Há testemunhos de que se trata de
um problema verdadeiro. E mais: trata-se de um problema que
ganha seu caráter verdadeiro com base numa questão que é tão
fundamental no estudo da filosofia hegeliana quanto na filosofia
deleuze-guattariana da diferença. A questão é esta: que significa
pensar? Ao longo das obras que a constituem, uma filosofia secreta
uma imagem do que, para ela, significa pensar. Sabe-se que Deleuze
tem um nome para isso: a imagem do pensamento, o plano de
imanência que é erigido à medida que os conceitos vão sendo criados
numa filosofia. Numa carta-prefácio a Jean-Clet Martin, Deleuze diz:
“creio que, além das multiplicidades, o mais importante para mim foi
a imagem do pensamento, tal como tentei analisá-la em Diferença e
repetição, depois em Proust e em toda parte” 4. Um breve
levantamento bibliográfico permite notar que há sugestivas 4 G. Deleuze, “Lettre-préface” (1990) a MARTIN, Jean-Clet, Variations, Payot, Paris, 1993, p.8.
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incidências dessa idéia em pelo menos dez obras ao longo de várias
décadas: Empirismo e subjetividade [1953], Nietzsche e a filosofia
[1962], Filosofia crítica de Kant [1963], Proust e os signos [1964],
Nietzsche [1965], Diferença e repetição [1968], Lógica do sentido
[1969], Mil platôs (com Guattari) [1980], Conversações [1990], Que
é a filosofia? (com Guattari) [1991]. O importante é que essas
incidências atestam o quão decisiva é essa idéia na inovação do
pensamento da diferença e o quanto ela opera na crítica ao
pensamento representativo, especialmente ao pensamento hegeliano.
Mas em quê a imagem deleuze-guattariana do que significa
pensar permite tratar como verdadeiro o problema do liame entre
arte e necessidade do ponto de vista dessa filosofia da diferença? Eis
uma resposta de Anne Sauvagnargues: “Deleuze finda sua primeira
versão de Proust e os signos com uma conclusão que se intitula A
imagem do pensamento, e que mostra o quanto a filosofia tem
necessidade da arte”, neste caso, “da literatura”. E a necessidade que
Anne destaca está ligada a uma longa e decisiva passagem do
romance. Nessa passagem do volume dedicado a O tempo
redescoberto, Proust contraria “as verdades que a inteligência
apreende direta e claramente no mundo da plena luz”, dizendo que
elas “são menos necessárias“ do ponto de vista da “vida” e que “seria
preciso interpretar as sensações como signos” a serem desvendados
etc. Eis como Deleuze pratica sua transcriação filosófica dessa
passagem: “o pensamento nada é sem algo que força a pensar” 5. Em
outro texto, é ainda Anne que destaca, e com razão, que os
encontros de Deleuze com as artes são marcados por constante
abertura à “experimentação” levada a cabo pelas “artes”, abertura
que percute também em sua própria “experimentação em filosofia” 6.
5 Ver Anne Sauvagnargues, “La table ds catégories comme table de montage », em François Dosse e Jean-‐Michel Frodon (Dir.), Gilles Deleuze et les images, Paris, Cahiers du Cinéma – Essais, 2008, p. 118. A frase de Deleuze aparece em Proust et les signes, Paris, PUF, 1976, p. 117.
6 A. Sauvagnargues, Deleuze et l’art, Paris, PUF, 2006, p. 260.
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É preciso salientar, entretanto, que, embora haja troca de efeitos
entre essas experimentações, isso não redunda, é claro, em invasão
pura e simples de uma linha sobre a outra. Esse pensar com, e não
sobre, é como uma posição de princípio não totalitário, desde que se
leve suficientemente em conta o seguinte: ao contrário do
enciclopedismo hegeliano, sempre propenso a se julgar onipotente
para pensar o todo, essa filosofia da diferença, esse empirismo
transcendental, eminentemente cioso do campo problemático, opera
ao ritmo de uma micro e nômade pedagogia do conceito, uma
experiência de filósofo aprendiz, que não pode estabelecer uma
hierarquia interna entre as grandes formas do pensar, esta atividade
sempre questionada pelo “caos” das “variabilidades”: as filosofias,
que pensam por conceitos (“cujos seres são variações”); as ciências,
que pensam por funções (“cujos seres são variáveis”); e as artes, que
pensam por sensações (“cujos seres são variedades”) 7.
Os textos dessa filosofia são muito ricos em passagens que
atestam a intenção de não impor seus conceitos a outras linhas de
pensamento. Mais do que isso, atestam sua necessidade de outras
linhas para que algum conceito chegue a ser criado em sua própria
linha. Por exemplo, eis uma idéia que circula tanto em Foucault
quanto em Blanchot, a idéia de um “pensamento do fora”, idéia que
não se dá bem com a interioridade. Trata-se, dizem Deleuze e
Guattari, de “colocar o pensamento em relação imediata com o fora,
com as forças do fora, em suma, fazer do pensamento uma máquina
de guerra”, como os “aforismos” de Nietzsche, “muito diferente da
máxima, pois uma máxima, na república das letras, é como um ato
7 G. Deleuze e Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?. Paris: Minuit, 1991. pp. 166, 186, 187. [O que é a filosofia?, tr. br.de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, ver pp. 227, 254].
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orgânico de Estado ou um juízo soberano” 8. Em outro registro, ainda
a respeito de Foucault, a “lógica de um pensamento” é sentida por
Deleuze “como um vento que nos impele, uma série de rajadas e de
abalos”, e não como “um sistema racional em equilíbrio” 9. São
rajadas ou abalos imprescindíveis ao atletismo que liga pensar e
criar, ventos que engendram ´”pensar’ no pensamento”, como
Deleuze dizia em Diferença e repetição, e também com a ajuda de
Artaud 10. E o modo de tratar os encontros que fazem pensar exige
uma nova teoria das faculdades, atenta aos seus acordos
discordantes, exige, explicitamente, a “destruição da imagem de um
pensamento que pressupõe a si próprio”. Por quê? Porque, para
Deleuze, “os conceitos designam tão-somente possibilidades. Falta-
lhes uma garra, que seria a da necessidade absoluta, isto é, de uma
violência original feita ao pensamento, de uma estranheza, de uma
inimizade, a única a tirá-lo do seu estupor natural ou de sua eterna
possibilidade: tanto quanto só há pensamento involuntário, suscitado,
coagido no pensamento, com mais forte razão é absolutamente
necessário que ele nasça, por arrombamento, do fortuito no mundo.
O que é primeiro no pensamento é o arrombamento, a violência, é o
inimigo, e nada supõe a filosofia; tudo parte de uma misossofia. Não
contemos com o pensamento para assentar a necessidade relativa do
que ele pensa; contemos, ao contrário, com a contingência de um
encontro com aquilo que força a pensar, a fim de realçar e erigir a
8 G. Deleuze e Félix Guattari, Mille Plateaux (com Félix GUATTARI). Paris: Minuit, 1980, p. 467. Mil Platôs, vol. 5, Tr. br. de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Ed. 34, 1997, p. 46.
9 G. Deleuze, Pourparlers, op. cit., p. 129. Conversações, op. cit., p. 122.
10 G. Deleuze, Différence et répétition. Paris: PUF, 1968, p. 192. -Diferença e repetição, tr. br. de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal, 1988, p. 243.
14
necessidade absoluta de um ato de pensar, de uma paixão de
pensar”11.
Há muitos outros exemplos de enunciações deleuze-
guattarianas como essas. Elas reafirmam a idéia de um pensar
filosófico que, para subsistir criando em sua própria linha, não tem
necessidade de dominar as outras grandes linhas a partir dos seus
conceitos, mas tem, isto sim, necessidade de aprender com o que ele
não é, mas que o afeta. Necessidade de aprender, sim, mas para
quê? Talvez a gente encontre um sinal de resposta na seguinte
passagem de Imagem tempo: “não há outra verdade senão a criação
do Novo: a criatividade, a emergência, o que Melville chamava
‘shape’, [configurar, modelar, plasmar, forjar?] em contraposição a
‘form’” [forma, molde] 12. Essa resposta parece dizer: trata-se de
aprender com o que nos faz pensar para que possamos participar da
criação do novo, seja em filosofia, seja em arte, seja em ciência...
Observemos que esse aprender não corresponde apenas à
necessidade subjetiva de um sujeito criativo, mas vai ao fundo do
que é necessário para que haja criação na linha que sorve o sujeito.
Estamos diante de uma complexa necessidade de dupla face. Com
efeito, para haver criação, seja em arte ou em filosofia, diz Deleuze,
“é preciso que haja uma necessidade” [nécessité], de modo que “um
criador” venha a fazer tão só “aquilo de que ele tem absoluta
necessidade” [besoin]. Ao supor a existência de tal “necessidade”
[nécessité], que “é uma coisa muito complexa”, Deleuze diz o
seguinte: ela “faz com que um filósofo [...] se proponha inventar,
11 G. Deleuze, Différence et répétition, op. cit., p. 181, 182. Diferença e repetição, op. cit., p. 230, 231.
12 Cinéma 2. L’image-temps. Paris: Minuit, 1985, p. 191. Cinema 1. A imagem-tempo, tr. br. de Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 178.
15
criar conceitos, e não ocupar-se em refletir” sobre algo, mesmo que
seja “sobre o cinema” 13.
Para findar esta parte do relato da pesquisa, recupero uma
passagem que servirá de resumo ao que foi visto e que talvez ajude a
acrescentar algo mais a essa resposta. Vou ao cinema. Estou no
cinema. Ao ver um filme, devo permanecer receptivo para não perdê-
lo. Também o cérebro, que é o que, em mim, pensa, vai aprendendo
a pensar graças a um corpo que chamo de meu, embora eu não saiba
o que esse corpo pode, como nos ensina o amado Espinosa. Que está
ocorrendo nesses casos? Está ocorrendo a experiência de um pensar
não voluntário, até mesmo a experiência de uma impotência de
pensar. Só que se trata de uma impotência aberta à potência que, de
fora, me faz e fará pensar. Deleuze transcria com Artaud a idéia da
“crença que faz do impensado a potência própria do pensamento”.
Vale dizer que “a impotência para pensar”, diz Deleuze, “pertence ao
pensamento, de modo que devemos fazer dela nossa maneira de
pensar, sem pretender restaurar um pensamento todo-poderoso”. E
completando essa formulação de uma ardilosa impotência, Deleuze
cria uma política vital. Por quê? Porque, segundo ele, o que nos cabe
fazer é “nos servir dessa impotência para acreditar na vida, e
encontrar a identidade do pensamento e da vida” 14. Levando em
conta isso, pode-se nuançar um pouco mais a resposta à pergunta a
respeito do pensar forçado a aprender com o que o faz pensar. Trata-
se de um aprendizado que envolve o aprendiz na criação do novo; e
considerando que o pensar assim forçado pode aliar-se à vida, então
a criação do novo define-se como criação de saídas para a vida,
conforme, aliás, uma crença manifestada por Deleuze ao dizer: “não
13 G. Deleuze, “Qu’est-ce que l’acte de création?”. Texto nº 45 (1987, 1989, 1998), em G. Deleuze Deux régimes de fous ( textes et entretiens 1975-1995). Éd. préparée par David Lapoujade. Paris : Minuit, 2003, p. 291.
14 Cinéma 2. L’image-temps, op. cit., p. 191. Cinema 1. A imagem-tempo, op. cit., p. 178.
16
há obra que não indique uma saída para a vida, que não trace um
caminho entre as pedras”15. E como a vida é inovação por si mesma,
então criar o novo, criar saídas para a vida, é recomeçar a inovação
criativa da e de vida. As linhas que pulsam em todos os circuitos
desse complexo aprendizado são interpotências de encontros
intensivos. Deleuze diz: «Do intensivo ao pensamento, é sempre por
uma intensidade que o pensamento nos advém” 16. E é por
intensidades que pensamento e vida se ligam, porque “as
intensidades”, afirma Deleuze, “dizem respeito a modos de vida e à
prudência prática experimental”, o que inclui as artes e tudo o que é
“vida não-orgânica” nesses circuitos, porque são as intensidades que
a “constituem”17
xxx
Apresentado esse panorama do problema do liame entre
necessidade e arte em Hegel e em Deleuze e Guattari, é claro que a
pesquisa não se dá por satisfeita por duas razões: primeiramente,
porque esse panorama carece de um detalhamento mais
convincente; em segundo lugar, porque há todo um cenário de
confrontos que ainda não foram indicados neste relato. A esse
respeito, um enorme acúmulo de dados impede o tratamento deste
segundo ponto aqui. O que segue, portanto, não será, também, mais
do que o resumo de alguns pontos e da explicitação da necessidade
de conversações e não de discussões.
Houve, inicialmente, menção a uma espécie de alergia
filosófica, que guarda algum parentesco com a idéia de gosto em
Hume. Essa alergia é uma das qualidades sensíveis da relação de
15 Pourparlers, op. cit., p.196; Conversações, op. cit., p. 179.
16 Différence et répétition, op. cit., p. 188. Diferença e repetição, op. cit. p. 239.
17 G. Deleuze, « Huit ans après : Entretien 80 ». Texto 22 (1980), em Deux régimes de fous, op. cit., pp. 165-166.
17
Deleuze com Hegel, seja quando se trata de arte ou de outra coisa.
Ela faz com que a relação ganhe um ar de tormento, o tipo de
tormento que ataca o leitor de um romance em que um grandioso
personagem é sentido como traidor de um enredo possível, mas que
ele não deixa fluir. E atormenta, principalmente a quem admira há
muito tempo essas duas filosofias. Trata-se de uma relação
geralmente pintada pelos estudiosos como tempestuosa. Com mais
cautela, é possível dizer que essa relação sofre quase sempre o
assédio de posicionamentos que privilegiam um ângulo de ataque
excessivamente bloqueador. Bloqueador do quê? Esse ângulo de
ataque parece bloquear, não conciliações ou fusões impossíveis,
indesejáveis, mas um tipo de esforço menos estriado, mais liso. Um
esforço, por exemplo, destinado a cartografar detalhadamente os
efluentes e afluentes que pororocam entre Hegel e Deleuze. O que se
pode esperar de tal cartografia? Além de propiciar conversações entre
estudiosos, é quase provável que ela torne possível preencher menos
unilateralmente as linhas que tecem a distância entre esses dois
filósofos.
Essa distância é construída dos dois lados, elabora-se a partir
dos campos de ambas as filosofias. Do lado deleuziano, as críticas a
Hegel e ao pensamento representativo participam, no melhor dos
casos, da tentativa de marcar um território conceitual que
salvaguarde o pensamento deleuze-guattariano como pensamento
filosófico original em sentido pleno. Do lado de estudiosos das obras
de Hegel (já que este não pode -- pelo menos até agora -- responder
pessoalmente aos ataques), a tentativa é contestar as críticas
deleuzianas, mostrando, também no melhor dos casos, que os
ataques não atinam com a efetiva complexidade e alcance de
conceitos hegelianos. Porém, além da vertente aqui chamada de ‘no
melhor dos casos’, as críticas emitidas de um lado e de outro também
acionam asperezas que compõem momentos que se poderia chamar
18
de ‘no pior dos casos’. Dado o estado atual desta pesquisa, não é
prudente apontar exemplos de incidências do melhor e do pior dos
casos, mesmo porque um único livro, como o de Hardt18 pode ser rico
em incidências de úteis esclarecimentos conceituais, assim como de
asperezas que se pode atribuir, principalmente, a uma ansiosa
bipolarização de escolhas. Aliás, é nesse mesmo livro que Hardt cita a
frase em que Judith Butler propicia um exemplo de incidência do que
há de “pior dos casos” na equipe hegeliana. Diz ela: “As referências a
um ‘rompimento’ com Hegel são quase sempre impossíveis, até
porque Hegel fez da própria noção de ‘ruptura’ um princípio central
da sua dialética”19.
É que, em ambos os lados, há rastros indicando que alguns dos
seus posicionamentos não levam suficientemente ao pé da letra certo
cuidado manifestado por Deleuze, quando jovem, em sua obra de
1953 a respeito de Hume. É sabido que a dedicou, como
“homenagem sincera e respeitosa”, a Jean Hyppolite, seu ex-
professor e diretor da dissertação da qual resultou essa obra. Sabe-se
também que Hyppolite traduziu para o francês a Fenomenologia do
Espírito 20, de Hegel. Pois bem, em seu Hume, Deleuze expressa um
cuidado a ser mantido à vista: inicialmente, ele se diz “surpreso” ao
“considerar o sentido geral das objeções constantemente feitas
contra Descartes, Kant, Hegel etc”. Por que surpreso? Porque são
objeções ditas filosóficas, mas que “só têm de filosófica o nome”. E
são filosóficas apenas nominalmente, porque, diz ele, “consistem em
18 Michael Hardt, Gilles Deleuze – an apprenticeship in philosophy, Regents of the University of Minnesota, 1993. (Gilles Deleuze – Um aprendizado em filosofia, tr. br. de Sueli Cavendish, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1996, p. 11).
19 Judith Butler, Subjects of Desire, Columbia University Press, New York, 1987, A frase aparece na p. 184. Por outro lado, Hardt destaca a obra de Michael Roth, Knowing and History: Appropriations of Hegel in Twentieth-‐Century France (Cornell University Press, Ithaca, N. Y., 1988) como exemplo de reconhecimento de “ruptura bem-‐sucedida da problemática hegeliana no pensamento francês dos anos 60”, p. 12.
20 Jean Hyppolite, Genèse et structure de la Phénoménologie de l’Esprit de Hegel, Paris, Aubier-‐Montaigne, 1946.
19
criticar uma teoria sem considerar a natureza do problema ao qual
ela responde, no qual ela encontra seu fundamento e sua teoria” 21.
Um ano depois, em 1954, esse cuidado se mantém, mas já numa
atmosfera de torção do modo como, na França, ocorria uma absorção
humanista do pensamento hegeliano. Com efeito, ao resenhar o livro
de Hyppolite, Logique et existence 22, Deleuze manifesta acordo com
um dos pontos decisivos. Esse ponto é o da afirmação da filosofia não
como antropologia (entendida esta como “discurso sobre o homem”),
mas como ontologia; e ontologia do sentido, não da essência,
justamente porque, diz ele, “o Ser, segundo Hyppolite, não é a
essência, mas o sentido”.
Porém, eis como Deleuze monta conceitualmente a dificuldade
que encontra no livro de Hyppolite; e aqui o cuidado permanece, mas
em prol de uma torção mais acentuada, que vai criando um desvio
entre ele e Hyppolite: “o que se tem no empírico e no absoluto”, diz
ele, “é o mesmo ser e é o mesmo pensamento; mas a diferença entre
o pensamento e o ser é ultrapassada no absoluto pela posição do Ser
idêntico à diferença, ser que, como tal, se pensa e se reflete no
homem. Esta identidade absoluta do ser e da diferença chama-se
sentido. Porém, em tudo isso há um ponto no qual Hyppolite mostra-
se completamente hegeliano: o Ser só pode ser idêntico à diferença à
medida que a diferença seja levada ao absoluto, ou seja, à
contradição. A diferença especulativa é o Ser que se contradiz. A
coisa se contradiz porque, distinguindo-se de tudo aquilo que não é,
ela encontra seu ser nessa própria diferença; ela só reflete refletindo-
se no outro, pois o outro é seu outro”. E, no final dessa pequena
resenha, Deleuze faz uma pergunta, contrariando a necessidade do
conceito hegeliano de contradição, buscando com isso o
21 EMPIRISME ET SUBJECTIVITÉ (Essai sur la nature humaine selon Hume), Paris, PUF, 1953, p. 118, tr. br. p. 119.
22 Jean Hippolite, Logique et existence, Paris, PUF, 1953
20
desdobramento de um outro modo de pensar a diferença, modo este
que já o vem atraindo em sua ligação com Bergson e também com
seu professor Jean Wahl. A pergunta já reitera, portanto, o intento de
enveredar por um programa de pesquisa que ele intensificará em
seus futuros estudos. Eis a pergunta: “não se poderia fazer uma
ontologia da diferença que não tivesse de ir até a contradição? A
contradição não é somente o aspecto fenomênico e antropológico da
diferença?” 23.
Em nota de David Lapoujade, apensa à p. 18 de L’île déserte [tr.,
p. 23], lê-se que essa resenha foi publicada, primeiramente, em
julho-setembro de 195424. E graças a um texto de Giuseppe Bianco25,
lê-se que, já no dia 12 de maio do mesmo ano, Deleuze fizera uma
conferência na Associação dos Amigos de Bergson, “da qual Hyppolite
era membro ativo”, conferência “intitulada A idéia de diferença na
filosofia de Bergson”. Convém observar que essa conferência já
continha uma dupla resposta à pergunta que ele fará depois, e que
foi anotada acima. De um lado, Deleuze já respondia, como diz
Bianco, “ao capítulo IV do livro de Hyppolite, Lógica e existência – no
qual Bergson era ‘condenado’ por sua concepção puramente empírica
da diferença”; por outro lado, ele também já respondia “à questão”
que ele próprio, Deleuze, “tinha levantado no final da sua resenha”.
Qual é essa resposta? É a seguinte: “A originalidade da concepção
bergsoniana está em mostrar que a diferença interna não vai e não
deve ir até a contradição, até a alteridade e até ao negativo, porque
23 G. Deleuze, « Jean Hyppolite, Logique et existence » [1954]. Ver G. Deleuze L’île déserte et autres textes (textes et entretiens 1953-1974).Éd. préparée par David Lapoujade. Paris : Minuit, 2002. Texto nº 2, pp. 18-23; citações: pp. 18, 22 e 23. Tr. br. de Luiz B. L. Orlandi do texto 2, em G. Deleuze, A Ilha deserta e outros textos (textos e entrevistas 1953-1974). São Paulo: Iluminuras, 2006. Texto 2, pp. 23-27,. Citações: pp. 23, 26 e 27.
24 Revue philosophique de la France et de l’étranger, vol. CXLIV, nº 7-‐9, julho-‐setembro de 1954, pp. 457-‐460.
25 Giuseppe Bianco, « Jean Hyppolite et Ferdinand Alquié », em Stéfan Leclercq (Dir.), Aux sources de la pensée de Gilles Deleuze – 1, Paris, Sils Maria, 2005, p. 101.
21
essas três noções são de fato menos profundas que ela ou são visões
que incidem sobre ela apenas de fora” 26.
Não se trata, aqui, de discutir, o bergsonismo de Deleuze, mas
apenas de anotá-lo como sendo um dos passos do modo deleuziano
de evitar a absorção dialética da diferença. É claro que isso já se
prenunciava com o privilégio da conjunção e, com a idéia de
exterioridade das relações relativamente aos termos relacionados,
privilégio e idéia já atuantes em seu encontro com Hume. Evitar essa
absorção hegeliana é coisa que reaparece diferentemente (e grifo
diferentemente) a cada momento da obra individual de Deleuze e das
obras que marcaram seus fecundos encontros com Guattari e outros.
Porém, em face daquele cuidado que ele propunha tomar a propósito
das objeções filosóficas, a maneira como reaparece diferentemente
sua crítica à dialética hegeliana varia, também estilisticamente, entre
um jeito por assim dizer argumentativo (e, portanto, favorável a
conversações) e um jeito que se poderia chamar de nervoso, porta de
entrada para discussões mais inúteis do que úteis.
Tomo a liberdade de lembrar, rapidamente, a ocorrência desses
dois jeitos numa única obra, aquela dedicada a Nietzsche, de 1962,
cerca de oito ou nove anos depois de ter lançado a diferença interna
bergsoniana contra o Hegel de Hyppolite. Em Nietzsche e a filosofia, a
crítica do negativo é um dos vetores responsáveis pela contundência
anti-dialética da leitura deleuziana de Nietzsche. Logo no início do
primeiro capítulo, ao iniciar o § 4, justamente denominado “contra a
dialética”, encontramos a crítica do negativo como chave da leitura
deleuziana da idéia nietzschiana de força: “Nietzsche é ‘dialético’?
pergunta Deleuze, com ironia ou humor, isto é outro problema. E
prossegue: “Uma relação, mesmo que seja essencial, entre o um e o 26 Ver «La conception de la différence chez Bergson” [1956]. Ver G. Deleuze, L’île déserte, op. cit. p. 53. Texto nº 5, pp. 43-72 ; citação p. 53. Tr. br. de Lia Guarino e Fernando Fagundes Ribeiro do texto 5 : “ A concepção da diferença em Bergson », em G. Deleuze, A ilha deserta, op. cit., pp. 47-‐71; citação p. 55.
22
outro não basta para formar uma dialética: tudo depende do papel do
negativo nesta relação. Nietzsche diz que a força tem por objeto uma
outra força. Porém, precisamente, é com outras forças que a força
entra em relação. É com outra espécie de vida que a vida entra em
luta. O pluralismo tem às vezes aparências dialéticas; ele é seu
inimigo mais esquivo”27. E o último capítulo do livro -- “o super-
homem: contra a dialética” --, expõe de maneira detalhada e
convincente (do ponto de vista assumido por Deleuze) uma série de
lances desse embate. Porém, a esse jeito argumentativo, acrescenta-
se um jeito nervoso de dizer coisas, como no primeiro parágrafo da,
de resto, breve e excelente conclusão do livro. Jeito nervoso, até
briguento, justificável de certo modo, quando se leva em conta o
ambiente francês de polêmicas daquele momento, mas que acaba
motivando palavras de ordem quase que impensadas contra as
demais enunciações filosóficas emitidas então. “A filosofia moderna”,
diz Deleuze, “apresenta amálgamas que atestam seu vigor e sua
vivacidade, mas que comportam também perigos para o espírito.
Estranha mistura de ontologia e de antropologia, de ateísmo e de
teologia. Em proporções variáveis, um pouco de espiritualismo
cristão, um pouco de dialética hegeliana, um pouco de fenomenologia
como escolástica moderna, um pouco de fulguração nietzschiana
formam estranhas combinações” 28 . Etc.
Em face dessa nervosa expressividade, o leitor pode grifar o
segmento “estranhas combinações” e perguntar se Deleuze também
não as pratica. E encontrará muitas ocasiões em que isso ocorre
clandestinamente ou de maneira assumida. Nunca carta de 1973,
por exemplo, ao recordar a necessidade ou o gosto que o levava a
criticar o negativo hegeliano, ele diz o seguinte: “’fiz’ por muito 27 G. Deleuze, Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 1962, p. 9. Nietzsche e a filosofia, tr. br. de Ruth Joffily Dias e Edmundo Fernandes Dias. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976, p. 7. 28 G. Deleuze, Nietzsche et la philosophie, op. cit., p. 223. Trad. br., op. cit., p. 162.
23
tempo história da filosofia, li livros sobre tal ou qual autor. Mas eu me
compensava de várias maneiras. Primeiro, gostando dos autores que
se opunham à tradição racionalista dessa história (e entre Lucrécio,
Hume, Espinosa, Nietzsche, há para mim um liame secreto
constituído pela crítica do negativo, pela cultura da alegria, pelo ódio
à interioridade, pela exterioridade das forças e das relações, pela
denúncia do poder... etc.)” 29.
Que diferença haveria entre esse assumido “liame secreto” e
aquelas “estranhas combinações”? É possível que para alguma
perspectiva de estudos hegelianos, essa diferença seja nula pelo fato
de se poder acusar Deleuze de não ter ido suficientemente longe na
apreciação conceitual da negatividade hegeliana; indo mais longe,
Deleuze, segundo Pierre Verstraeten, por exemplo, teria visto a
complexidade que reúne os componentes do conceito hegeliano de
contradição, complexidade concentrada na expressão “a diferença
essencial determinada”. A análise desse concentrado revela, primeiro,
“uma diferença pensada como oposição ou contradição”; segundo, a
diferença posta como “essencial” contra uma “adversidade precisa”;
terceiro, “a diferença essencial deve ser “determinada”, isto é, não
permanecer “numa oposição vaga ou abstrata da adversidade em
geral”, mas operar numa “situação específica e concreta”; vale dizer
que “a diferença essencial é determinada pelo que, explicitamente,
constitui problema no caso considerado” 30. Nesse pequeno texto,
Verstraeten apresenta de maneira concentrada vários argumentos
que Juliette Simont 31 desenvolveu, anteriormente, num longo livro,
merecedor de demorada pesquisa em prol de uma conversação
29 Gilles Deleuze, Pourparlers, op. cit., p. 14. Conversações, op. cit. p. 14. 30 Pierre Verstraeten, “La question du négatif chez Deleuze », em Vários, Gilles Deleuze, Paris, Vrin, 1998, p. 179-‐180.
31 Juliette Simont, Essai sur la quantité, la qualité, la relation chez Kant, Hegel, Deleuze. Les «fleurs noires » de la logique philosophique, Paris, Harmattan, 1977. [Sou agradecido a Veronica Damasceno pela indicação desse livro].
24
menos agressiva. Aliás, o panorama dos atritos entre dialética e
filosofia da diferença dá sinais de abrir-se a um período de pesquisa
histórica mais nuançada, ou seja, menos atraída por bipolarizações
que podiam dar a impressão de pretenderem disciplinar o campo
problemático. São exemplos disso, parece-me, os livros de Jérôme
Lèbre e Frédéric Worms 32.
Só para findar este resumido relato do estado atual da
pesquisa, convém pelo menos indicar a questão que marcará seu
próximo passo. “Toda a questão”, diz Deleuze, “é saber em que
condições a disjunção é uma verdadeira síntese, e não um
procedimento de análise que se contenta em excluir os predicados
de uma coisa em virtude da identidade de seu conceito (uso
negativo, limitativo ou exclusivo da disjunção). A resposta é dada na
medida em que a divergência ou o descentramento determinados
pela disjunção tornam-se objetos de afirmação como tais" 33. Essa
questão é decisiva do ponto de vista do conceito deleuziano e
deleuze-guattariano de síntese disjuntiva. François Zourabichvili
aponta esse conceito como “operador principal” dessa filosofia 34.
Também Hegel, como herdeiro de Kant, ao recuperar o silogismo
disjuntivo, valorizou o que está em pauta nesse conceito, razão pela
qual Simont e Verstraeten tratam dessa questão. Todavia, é
engraçado notar o seguinte: enquanto o lado deleuze-guattariano
liga positivamente a síntese disjuntiva ao que se passa em duas
rebeldes manifestações literárias, o lado hegeliano parece não saber
muito bem o que fazer com elas. Trata-se da novela de Herman
Melville, Bartleby, the Scrivener, de 1853, com sua fórmula 32 Jérôme Lèbre, Hegel à l’épreuve de la philosophie contemporaine – Deleuze, Lyotard, Derrida, Paris, Ellipses, 2002. Frédéric Worms, La philosophie en France au XXe siècle – Moments, Paris, Gallimard, 2009. [Sou agradecido a Maurício Rocha pela indicação desses dois livros].
33 Logique du sens. Paris: Minuit, 1969, p. 204. Lógica do sentido, tr. br. de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo, Perspectiva, 1982, p. 180. 34 François Zourabichvili, Le vocabulaire de Deleuze, Paris, Ellipses, 2003, p. 81. O vocabulário de Gilles Deleuze, tr. br. de André Telles, Rio de Janeiro, 2004, p. 106.
25
enlouquecedora: “preferiria não”. Para Verstraeten, essa fórmula
peca por compor um “não-liame”35 , mas sabemos que é com ela
que Deleuze se diverte e expande o tema da “literalidade” 36. Trata-
se também do romance de Pierre Klossowski, Le Baphomet, que
opõe a um Deus, “senhor das exclusões e limitações na realidade
que dele deriva”, um “anticristo, príncipe das modificações que, ao
contrário, determina a passagem de um sujeito por todos os
predicados possíveis”. Para Deleuze e Guattari, trata-se de uma
“disjunção inclusiva que opera a síntese”, levando-a a derivar “entre
um termo e outro segundo a distância”37. Em contrapartida, Simont,
examinando as frases de Deleuze e de Deleuze e Guattari relativas
ao Baphomet, faz uma pergunta absorvente: como as frase lançam
a “‘disjunção inclusa’” contra a contradição e a síntese dialéticas, a
autora pergunta: “Mas estas seriam tão diferentes daquela?” 38.
Que fará a pesquisa com esses acordos e desacordos? Que
fará com as tonalidades de humor que deles exalam?
Agosto de 2010
35 P. Verstraeten, op. cit., p. 188.
36 G. Deleuze, Critique et clinique. Paris: Minuit, 1993, pp. 89-114. Crítica e clínica, tr. br. de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997, pp. 80-103.
37 G. Deleuze e F. Guattari, L’Anti-‐Oedipe, Paris, Minuit, 1972/1973, p. 92. O Anti-‐Édipo, tr. br. de Luiz B. L. Orlandi, p. 106.
38 J. Simont, op. cit., p. 266.