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JEAN-FRANÇOI

o PÓS-MO U 11111111111U) 066963

\ Contribuição à discussão internacional sobre aquestão da legitimidade: o que permite dizer, hoje,que uma lei é justa, um enunciado verdadeiro? Exis-tiram os grandes relatos, a emancipação do cida-dão, a realização do espírito, a sociedade semclasses. A idade moderna recorreu a eles para legi-timar ou criticar seussaberes e seusatos.

O homem pós-moderno não acredita mais nisto.Osdecisores lhe oferecem como per$pectiva o au-mento do poder e a pacificação pela transparên-cia comunicacional. Mas ele sabe que o saber,

. qu,ando se torna mercadoria informacional, é uma ~:foMe de lucros e um meio de decidir e controlar.

Onde reside a legitimidade, ap9s os relatos? Namelhor operatividade do sistema? Eum critério tec-nológico, ele não permite julgar o verdadeiro e ojusto. No consenso? Masa invenção sefaz no dissen- ,timento. ~

Porque não neste último? A sociedade que vemergue-se menos de uma antropologia newtoniana(como. o estruturalismo ou a teoria dos sistemas) emais de uma pragmática das partículas de lingua-gem. . .

. O saber pós-moderno não é somente o instru-mento dos poderes: ele nos refina 'a senSib;.i1idadepara as diferenças e nos reforça a capacid de desuportar o incomensurável. Elemesmo não ncon-tra sua razão na homologia dos experts, mas na pa- I

ralogia dos inventores. (f agora: uma legitimação do vínculo, sociaf, .

uma sociedade justa, seria praticáv:!fseQundo umparadoxo análogo? Emque este co~istina?

JEAN-FRANCOIS LYOTARD

J_o-JOSÉ OlYMPIO EDITORA

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Jean-François Lyotard é poucoconhecido entre nos. Ativo, contes-tador, adversário declarado dosmodismos orquestrados pelos massmedia, é provavelmente um dosmais brilhantes filósofos da sua gera-ção. Nascido em 1924, seguiu um iti-nerário intelectual bastante comum.Marxista durante os anos 50-60, fezparte do grupo "Socialismo e Barbá-rie" animado por Cornélius Casto-riadis. Ativista durante a guerra daArgélia, foi um dos artesã os daquelaruptura com as ideologias dominan-tes que na França d~terminaram aaceleração dos acontecimentospoliticos de 1968.

Com a publicação, em 1974, deDérive à partir de Marx et Freud e Desdispositifs pulsionnels, Lyotard impôs-se como um dos mais importantespensadores franceses da atualida-de. Próximo de Gilles Deleuze pelaconstante referência ao desejo esuas adjacências, dele se distingue,no entanto, por ter uma postura poli-

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tica radical: a abolição definitiva daidéia de verdade que durante mui--tos séculos tem sido uma das princi-pais ferramentas do poder. Para Lyo-tard, portanto, a tarefa principal do ~filósofo contemporâneo é a de I,.

"acelerar" a decadência dessaidéia, e nesse sentido defende um"Niilismo ativo". Nietzsche, por con-seguinte, está no horizonte dessasreflexões.

EmO pós-moderno,'importante li-vro publicado na França em 1979,Lyotard leva adiante o projeto deacelerar a decadência da idéia deverdade, pelo menos tal como ela éentendida por algumas correntesda filosofia moderna. Com o termo"Pós-moderno", pretende antes detudo designar o conjunto das trans-formações ocorridas nas regras dojogo da produção cultural e quemarcam o advento das sociedadespós-industriais. Sua preocupaçãobásica, como indica o subtítulo do li-vro, não é a de avaliar todo o con-junto das modificações sofridas pe-la herança cultural deixada pelosmodernos, mas sim a de avaliar "ascondições do saber produzido nassociedades mais avançadas", mui-to particularmente as condições dosaber científico e seu suporte tradi-cional, a universidade.

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Jean-François Lyotard

o pós-modernoTradução

RICARDO CORRÊA BARBOSA

J_o-JOSÉ OLYMPIO EDITORA

RIO DE JANEIRO/1988

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Título do origina! francês:LA CONDITION POSTMODERNE

'reitos adql:liridos para a língua portuguesa, no Brasil, pelarO M. D RIA JOSÉ OL YMPIO EDITORA S.A."I, /9 ~ Rua Marquês de Olinda, 12

"'llio de neiro, RJ - República Federativa do BrasilR O Q. (' ( <', 'k () . rinted in Brazil / Impresso no Brasil

It'J .~ •. ''''~;!H'';''~;;~~;~ ISBN 85-03-00080-6

.;> 3t BJ;'I/Qt",,, IIJ" 2-7073-0276~~~~;~ ~~ft~~~~de Minuit, Paris)

BIBLIOTECA CENTR

UFESN. '> __ fljf!j}~º_...._..~__

CapaJAIR PINTO

TEMPOS PÓS-MODERNOS (Wilmar do Valle Barbosa) viiINTRODUÇÁO xv

DiagramaçãoHELIO LiNS

Preparação de originaisHELOISA MENDES FORTES DE OLIVEIRA

RevisãoMARCOS ROMA SANTA

bo CorreiaI

o campo: O saber nas sociedades informatizadas 3O problema: a legitimação 11O método: os jogos de linguagem 15A natureza do vínculo social: a alternativa moderna .. 20A natureza do vínculo social: a perspectiva pós-moderna 27Pragmática do saber narrativo 35Pragmática do saber científico < • • • • • • • • • •• 44A função narrativa e a legitimação do saber 51Os relatos da legitimação do saber 58A deslegitimação 69A pesquisa e sua legitimação pelo desempenho 77O ensino e sua legitimação pelo desempenho 88A ciência pós-moderna como pesquisa de instabilidade 99

~timação pela paralogia 111CDD - 301.2CDU -130.2

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"A verdade é que a ciência favorecelI; aidéia de uma força intelectual rude e só-bria que torna francamente insuportáveltodas as velhas representações metafísicase morais da raça humana."

(Robert Musil,O homem sem qualidades, 11

COM o início) por volta dos anos 50) da chamada "erapós-industrial))) assistimos a modificações substantivas nosestatutos da ciência e da universidade. O mais importantenesse processo de modificação) cuja origem encontra-se na"crise da ciência)) (e da verdade) ocorrida nos últimos de·cênios do séc. XIX) não foi apenas a eventual substituiçãode uma "má)) concepção da ciência (a empirista) por exem-plo) por outra qualquer. O que de fato vem desde entãoocorrendo é uma modificação na natureza mesma da ciên-cia (e da universidade) provocacla pelo impacto das trans-LOt'~ações tecnológicas sobre o saber. A cot1JEiüência maisimediata desse novo cenáriO/oi tornar ineficaz;o quadroteórico proporcionado pelo filósofo (leia-se: metafísico)moderno que) como sabemos) elegeu como s~a questão aproblemática do conhecimento) secundarizando as ques-tões ontológicas em face às gnoseológicas. Mas) ao proce-der dessa maneira) fez da filosofia um metadiscurso delef.!,itimaçãoda própria ciência. A modernidade do quadroteórico em questão encontra-se exatamente no fato de con-ter certos récits aos quais a ciência moderna teve que re-correr para legitimar-se como saber: dialética do espírito)emancipação do sujeito razoável. ou do trabalhador) cres-

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A clencia, para o filósofo moderno, herdeiro do !lu-minismo, era vista como algo auto-referente, ou seja, exis-tia e se renovava incessantemente com base em si mesma.Em outras palavras, era vista como atividade "nobre", "de-sinteressada", sem finalidade preestabelecida, sendo quesua função primordial era romper com o mundo das "tre-vas" mundo do senso comum e das crenças tradicionais,. ,contribuindo assim para o desenvolvimento moral e espi-ritual da nação.

Nesse contexto, a ciência não era sequer vista como"valor de uso" e o idealismo alemão pôde então concebê-lacomo fundada em um metaprincípio filosófico (a "vida di-vina" de Fichte ou a "vida do espírito", de Hegel) que,, ,por sua vez, permitiu concebê-la desvinculada do Estado,da sociedade e do capital, e. fundar sua legitimidade emsi mesma.

"Nação" e "ciência" caminharam juntas, por exem-plo, na avaliação humboldtiana, de sab(jf' humanístico-libe-ral, e que esteve na base da criação da Universidade deBerlim (1807-10)) modelo para muitas organizações uni-versitárias nos meados do séc. XX.

"" T ,. 'd {('/'-'1-0 entanto) o cenarza -p1Js-mo erno, com sua voca-ção" inf.DnJJ.iÍJi.ca~~.in.fºr.1Jlaçiºnal) (~ÍJJ.J,2e51e" qsobre.3Jt a

5-0nceP.4º--dºsil~er ~~entíf!co. Como muito bem notouAlfred N. W hitehead) o séc. XX vem sendo o palco deuma descoberta fundamental. Descobriu-se que a fonte detodas as fontes chama-se jnformaçª~ e que a ciência -assim como qualquer moddtáãd(;' de conhecimento - na-da mais é do que 1f-1JJ.çf;I..tQtl1JjdQ.d.forgqn.izalJ.estº~a~~~_",dÜJribu.ir C(4Jªs.jnjor.maç.õ,f.L Longe, portanto, de contI-nuar tratando a ciência como fundada na "vida do espíri-to" ou na "vida divina"; o cenário pós-moderno_com~ç{j..a. vê-ja ..COlllQ..tftJ1.fQ.n.Í-UPtode menslIg,ms possÍJl.f.LiJ:~~sertraduzid º-~_':._q}}~e..(bi ts) de=oii1.tar.mação".Ora) seas máquinas informáticas justamente operam traduzindo asmensagens em bits de informação, só será "conhecimento

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cimento da riqueza e outros. Desde o momento em quese invalidou o enquadramento metafísico da ciência mo-derna, vem ocorrendo não apenas a crise de conceitos ca-ros ao pensamento moderno) tais como "razão") "sujeito","totalidade") "verdade", "progresso". Ço-J$.~tatamosque aolado dessa crise opera-se sobretudo a(~ de novos..f1J:...quadra!!!EJl!211e6ri.Çf)s("aumento da potência") "eficácia","opilmização das perf.ormances do sistema") legitimadoresda produção científico-tecnológica numa era que se (juerpós-industrial. º JJ..Ql-mpderno,e.n~!!:!~CSJ'!ldção_4g.SJ.Il-

~.1l.eS1a ...era,c.ara.cteriza~se e~mente pela incredulida-de perante o metadiscurso jilosófico-meta!ísico, C01JL5.1J.4L~e.s;temporajs e universalizantes.

O cenáâQ_/2Q.J.-mQderno.éessencialm en~f.-.ÇjJzgnéti.co~informático e informacional. Nele, expancLem-se cada vezmais os estudos e as pesquisas sobre a ITiigUa~, com oobjetivo de cO~-!f_mecânica dCLs..u.ã._P~ e dee.I' tabelecer ~jil2.i1idadêJ ent~gJM2Lm~..JJJª-qyinª_iJJ.~_formática. Incrementam-se também os estudos sobre a "in-teligência artificial)) e o esforço sistemático no sentido deconhecer a estrutura e o funcionamento do cérebro bemcomo o mecanismo da vida. Neste cenário) predominamos esforços (científicos, tecnológicos e políticos) no senti"do de j1)fQJ1J1atiZªJª-SQ.kÍ.e.dade.Se, por um lado, o avançoe a c~tidianização da teenologia informática já nos im-põem sérias reflexões/ por outro lado, seu impacto sobrea ciência vem se revelando considerável.

I Reflexões sobre questões éticas (direito à informação), questões de-ontológicas (relativas à privacidade. à vida privada) questões jurídico-po-líticas (transmissão transfronteira de dados -'- transborder data flow) e aquestão da soberania e da censura estatal; questões culturais (diversidadee identidade cultural e a possível homogeneidade da mensagem telemá·tica transmitida por satélite); questões político-sociais (democratização dainformação, rediscussão da censura, pertinência sócio-cultural da infor·11l11l"iío).

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(ÍC'lIlíjico" certo tipo de informação traduzível na lingua-W'!II (Iue essas máquinas utilizam ou então compatível comc/ri, () que se impõe com o tratamento informático da"mensagem" científica é na verdade uma concepção ope-racional da ciência. Nesse contexto) a pesquisa científicapassa a ser condicionada pelas possibilidades técnicas damáquina informática) e o que escapa ou transcende taispossibilidades tende a não ser operacional) já que não podeser traduzido em bits. Assim sendo) a atividade científicadeixá de ser aquela praxis que) segundo a avaliação hu-manístico-liberal) especulativa) investia' a formação do ((es-pírito") do "sujeito razoável") da ((pessoa humana" e atémesmo da "humanidade". Com ela) o que vem se impondoé a concepção da ciência como tecnologia intelectual, ouseja) como valor de troca e) por isso mesmo) desvincula-da do produtor (cientista) e do consumidor. Uma práticasubmetida ao capital e ao Estado) atuando como essa par-ticular mercadoria chamada força de produção.

Esse processo) fruto da corrosão dos dispositivos mo-dernos de explicação da ciência) é muito apropriadamentedesignado por Lyotard pela expressão "deslegitimação". Noentanto) ele não se dá apenas em função da corrosão do((dispositivo especulativo" (Idealismo alemão) Hegel) oudo ((dispositivo de emancipação" (Iluminismo) Kant) Marx).Essa corrosão (que Nietzsche entendeu ser uma das raí·zes do "Niilismo europeu")) muito bem captada em nar-rativas como Pais e filhos (Ivan Turgueniev)) O homemsem qualidades (Robert Musil) e Sonâmbulos (HermanBroch)) fez surgir novas linguagens que escapam às deter.minações teóricas dos dispositiv.os modernos e aceleram suaprópria deslegitimação. Da segunda lei da termodinâmicilà teoria da catástrofe) de René Thom; do simbolismo quí-mico às lógicas não-denotativas; da teoria dos quanta àfísica pós-quântica; do uso do paradigma.._cibemético-il1jor-mático no estudo do código genético ao ressurgimento dacosmologia de observaç~o; da crise da Weltanschauung

newtoniana à recuperação da noção de ((acontecimento")"acaso "I na física) na biologia) na história) o que temosé a crise de uma noção central nos dispositivos de legiti-mação e no imaginário modernos: a noção de ordem. Ecom ela assistimos à rediscussão da nocão de "desordem"/o qUf!por sua vez torna impossível submeter todos os dis-cursos (ou iogos de lingHqgm..s) Uu.toridLlde. de um -meta-dis.cur-s-o_quese-p~etendeaJÍl11§.2e. do .llgJ1jJifªl1te)J!g §tg:~o e da p.rJ2l!rjq!.~~o) )sto él.-li1Jjl!frsg1 ...~_consistente.

Por isso mesmo é que as delimitações clássicas doscampos científicos entram em crise) se desordenam. Desa-parecem disciplinas) outras surgem da fusão de antigas;as velhas faculdades dão lugar aos institutos de ensino e/oupesquisa jinanciadospela iniciativa privada) pelo poder pú-blico ou por ambos. A universidade) por sua vez) enquan-to produtora de ciência) torna-se uma instituição sempremais importante no cálculo estratégico-político dos Esta-dos atuais. Se a revolução industrial nos mostrou que semriqueza não se tem tecnologia ou mesmo ciência) a condi-ção pós-moderna nos vem mostrando que sem saber cien-tífico e técnico não se tem riqueza. Mais do que isto: mos-tra-nos) através da concentração massiva) nos países ditospós-industriais) de bancos de dados sobre todos os sabereshoje disponíveis) que a competição econômico-políticaentre as nações se dará daqui para frente não mais ,emfunção primordial da tonelagem anual de matéria-prima oude manufaturados que possam eventualmente produzir.Dar-se-á) sim) em função da quantidade de informação

1 Cf. Communications, n.· 18, 1972 (número especial sobre a retomadada noção de acontecimento pelas ciências contemporâneas).2 Sobre a centralidade dessa rediscussão na atual fase da pesquisa cientí-fica, cf. Edgar Morin, La methode I: La nature de Ia nature; La methode11: La vie de Ia vie e Le paradigme perdu: Ia nature humaine, todospela Bditions du Seuil, Paris em 1977, 1980 e 1973, respectivamente.

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téol;ClH';entífica que suas universidades e centros de pes-'1/IiJa forem capazes de produzir} estocar e fazer circularcomo mercadoria,

qJg_~te.~!Q.Jjf!:-d esle gi~ima.f.4Q~,pQs-m od e1J1.ª.)JãQ" p"Qtie}evidentemente} passar se111U11!4~SJ2.0sitjv() de..kgJli1J1ação~"A administração da prova}}} escreve Lyotard} "que emprincípio não é senão uma parte da argumentação destina-da a obter o consentimento dos destinatários da mensa-gem científica} passa assim a serco~t;ol;dtl) por um outro

# jogo de linguagem onde o que está em questão não é averdade mas o desempenho} ou seja} a melhor relaçãoinput/output" (p. 83). Como novo dispositivo de legiti-mação} o critério do desempenho impõe não apenas oabandono do discurso humanista-liberal por parte do Es-tado} do capital ou mesmo da universidade. Na medida emque seu objetivo é aumentar a eficácia} dá primazia à ques-

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tão do erro: oimportante agora não é afirmar a verdade}/ 'mas sim localizar' o-erro no sentido de aumentar a eficácia}

Qu.melhor} a potência. Nessas circunstâncias} a universida-de} o ensino e a pesquisa adquirem novas dimensões: for-mam-se pesquisadores ou profissionais} investe-se na pes-quisa e na sua infra-estrutura não mais com o objetivo depreparar indivíduos eventualmente aptos a levar a naçãoà sua ({verdade}}) mas sim formar competências capazes desaturar as junções necessárias ao bom desempenho da di-nâmica institucional.

Após essas considerações} parece-nos razoável dizerque o texto de Lyotard contém, implícita} uma observa-ção que reputamos fundamental: o contexto pós-modernotende a eliminar as diferenças epistemológicas significati-vas entre os procedimentos científicos e os procedimentospolíticos. A retomada pós-moderna dessa !Wstti,ra.kt1(Qnia-na nos coloca em uma via não-cartesiana, não-kantian~-Jésde o momento em que, contrariamente ao pensadopelos dispositivos modernos de legitimação, parte do pres-Jupasto de que "verdade}} e "poder" não podem ser separa-

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cios. Jl idha baconiana de que o conhecimento é o poderparccc, Jem dúvida} animar a construçao'aodisposÜivopâJ-moderno de legitimação, No entanto} é preciso notar'lI/C} para Bacon} pensar dessa maneira constituía um mo-do de tentar abolir a oposição entre ((técnica)} e ((eman-cipação}} sem oâb'ahc19nQ . .d.esJa."O filósofo inglês era doparecer de que a construção de um ((novo mundo)} era obje-tivo fundamental e que só pela via de um conhecimentoque deixasse de ser concebido como contemplação / desig-nação de uma ((ordem eterna)}} perfeita} divina e trans-histórica} poderíamos construir uma comunidade livre de((ídolos)}. A problemática do ((novo mundo}}) no entanto)parece não seduzir o filósofo pós-moderno} avesso às filo-sofias da subjetividade e aos metadiscursos de emancipa-ção. Preocupado com o presente e com o reforço do cri-tério de desempenho - critério tecnológico -" visandocom isso o reforço da ((realidade)} e o aumento das chan-ces de se ter ((razão}}) ele parece ter abandonado os cami-nhos da utopia) esse modo de encantar o mundo que ani-ma as Íições de Bacon e de outros modernos. Estas} porsinal} mostram o esforço do filósofo no sentido de supe-rar o divórcio entre inteligência e emoção. Para isso é semdúvida necessário que o conhecimento (inclusive a filo-sofia) esteja mais perto do concreto} do presente} coope-

"rando com as forças do acontecimento, de codificando edando coerência aos detalhes da cotidianidade. Mas tudoisso com o objetivo de resgatar o encantamento que asreligiões proporcionaram aos nossos ancestrais. Estar} sim}perto do cotidiano} do presente} mas visando a interpene-tração da emoção e da ciência} da paixão e da inteligência}do sonho e da prática} de forma que a poesia possa vir aser a flor espontânea do mundo futuro.

Rio de Janeiro, outubro de 1985WILMAR DO VALLE BARBOSA

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ESTE estudo tem por objeto a pOSlçao do saber nassociedades mais desenvolvidas. Decidiu-se chamá-Ia de"pós-moderna". A palavra é usada, no continente ameri-éano, por sociólogos e críticos. Designa o estado da cul-tura após as t!.illlsf9J::maç§es_que afetaram as regras dosjogos da ciêndâ, da literatura e das artes a partir do finaldo século XIX. Aqui, essas transformações serão situadasem relação à crise d-º§_}"~lªtgs.

Originalmente, a ciência entra em conflito com osrelatos. Do ponto de vista de seus próprios critérios, amaior parte destes últimos revelam-se como fábulas. Mas,na medida em que não se limite a enunciar regularidadesúteis e que busque o verdadeiro, deve legitimar suas re-gras de jogo. Assim, exerce sobre seu próprio estatutoum discurso de legitimação, chamado filosofia. Quandoeste metadiscurso recorre explicitamente a algum granderelato, como a dialética do espírito, a hermenêutica dosentido, a emancipação do sujeito racional ou trabalhador,o desenvolvimento da riqueza, decide-se chamar "mo-derna" a ciência que a isto se refere para se legitimar.E assim, por exemplo, que a regra do consenso entre o re-metente e destinatário de um enunciado com valor deverdade será tida como aceitável, se ela se inscreve naperspectiva de uma unanimidade possível de mentalidadesracionais: foi este o relato das Luzes, onde o herói dosaber. trabalha por um bom fim ético-político, a paz uni-

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Vl'l"saI.Vê-se neste caso que, legitimando o saber por umll1l'tarrclato, que implica uma filosofia da história, somosconduzidos a questionar a validade das instituiçõe~ .queregem o vínculo social: elas também devem ser legltlma-das. A justiça relaciona-se assim com o grande relato, nomesmo grau que a verdade.

Simplificando ao extremo., considera-se "pó~-moderna,"a incredulidade em relação aos metarrelatos. E, sem du-vida um efeito do progresso das ciências; mas este pro-gres~o, por sua vez, a supõe. Ao desuso do dispositivometanarrativo de legitimação corresponde sobretudo acrise da filosofia metafísica e a da instituição universi-tária que dela dependia. A função narrativa perde .seusatores (functeurs), os grandes heróis, os grandes pengos,os grandes périplos e o grande objetivo. Ela s: dispersaem nuvens de e'1ementos de linguagem narrativos, mastambém denotativos, prescritivos, descritivos etc., cada umveiculando consigo validades pragmáticas sui generis.Cada um de nós vive em muitas destas encruzilhadas. Nãoformamos combinações de linguagem necessariamente es-táveis, e as propriedades destas por nós formadas não sãonecessariamente comunicáveis.

Assim, nasce uma sociedade que se baseia menosnuma antropologia newtoniana (como o estruturalismo oua teoria dos sistemas) e mais numa pragmática das partí-culas de linguagem. Existem muitos jogos de linguagemdiferentes' trata-se da heterogeneidade dos elementos. So-mente da;ão origem à instituição através de placas; é odeterminismo local.

Não obstante, os decisores tentam gerir estas nuvensde socialidades sobre matrizes de input / output, segundouma lógica que implica a comensurabilidade dos elemen-

, tos e a determinabilidade do todo. Para eles, nossa vidai fica reduzida ao aumento do poder. Sua legitimação em

matéria de justiça social e de verdade" científica seria a deotimizar as performances do sistema, sua eficácia. A apli-

cação deste critério a todos os nossos jogos não se realizasem algum terror, forte ou suave: sede operatórios, isto é,comensuráveis, ou desaparecei.

Esta lógica do melhor desempenho é, sem dúvida,inconsistente sob muitos aspectos, sobretudo no que serefere à contradição no campo sócio-econômico: ela quer,simultaneamente, menos trabalho (para baixar os custosda produção) e mais trabalho (para aliviar a carga social dapopulação inativa). Mas a incredulidade resultante é talque não se espera destas contradições uma saída salva-dora, como pensava Marx.

A condição pós-moderna é, todavia, tão estranha aodesencanto como à positividade cega da deslegitimação.Após os metarrelatos, onde se poderá encontrar a legiti-midade? O critério de o~eratividade é te.cnológico.; ele linão é pertinente para se Julgar o verdadeIro e o Justo'_JSeria pelo consenso, obtido por discussão, como pensaHabermas? Isto violentaria a heterogeneidade dos jogosde linguagem. E a invenção se faz sempre no dissenti-mento.' O saber pós-moderno não é somente o instru-mento dos poderes. Ele aguça nossa sensibilidade para asdiferenças e reforça nossa capacidade de suportar o in-comensurável. Ele mesmo não encontra sua razão de serna homologia dos experts, mas na paralogia dos inventores.

A questão aberta é a seguinte: uma legitimação dovínculo social, uma sociedade justa, será praticável se-gundo um paradoxo análogo. ao da atividade científica?Em que consistiria este paradoxo?

o TEXTO que se segue é um escrito de circunstância.É uma exposição sobre o saber nas sociedades mais de-senvolvidas, proposto ao Conselho das Universidades juntoao governo de Quebec, a pedido do seu presidente. Esteúltimo autorizou amavelmente sua publicação na França,e aqui lhe agradeço.

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Resta dizer que o_~pQsitQr ...~ Ufl1_JiJº~ºfº, e__nãº_YIllexpert. Este sabe o qu~.§.ªbee o que não sabe,aql.lelé:não.Um conclui, o outro interroga; são dois jogos de lingua-gem. Aqui eles se encontram misturados, de modo quenenhum dos dois prevalece.

O filósofo ao menos pode se consolar dizendo quea análise formal e pragmática de certOs discursos de legi-timação, filosóficos e ético-políticos, que sustenta nossaExposição, verá a luz depois desta. Ela a terá introduzido,por um atalho um pouco sociologizante, que, embora a re-duzindo, a situa.

Tal como está, nós a dedicamos ao Instituto Poli-técnico de Filosofia da Universidade de Paris VIII (Vin-cennes), neste momento muito pós-moderno em que estauniversidade corre o risco de desaparecer e o institutode nascer.

o pós-moderno

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o CAMPO: O SABER NAS SOCIEDADESINFORMATIZADAS

NaSSA hipótese de trabalho é a de que o saber, mudade estatuto ao mesmo tempo que as sociedades entram naidade dita pós-industrialeas. ÇlJJturas na idade dita pós-moderna.l Esta passagem começou desde pelo menos ofinal dos anos 50, marcando para a Europa o fim de suareconstrução. Foi mais ou menos rápida conforme os paí-ses e, nos países, conforme os setores de atividade: dondeuma discronia geral, que não torna fácil o quadro deconjunto.2 Uma parte das descrições não pode deixar deser conjectural. E sabe-se que é imprudente conceder umcrédito excessivo à futurologia.3

Em lugar de organizar um quadro que não poderáser completo, partiremos de uma característica que de-termina imediatamente nosso objeto. O saber científicoé uma espécie de discurso. Ora, pode-se dizer que há qua-renta anos as ciências e as técnicas ditas de vanguardaversam sobre a linguagem: a fonologia e as teorias lin-güísticas,4 os problemas da comunicação e a cibernética,5as matemáticas modernas e a informática,6 os computadorese suas linguagens,? os problemas de tradução das lingua-gens e a busca de compatibilidades entre linguagens-máquinas,8 os problemas de memorização e os bancos dedados,9 a telemática e a instalação de terminais "inteli-

"10 dI' 11 • , 1 .gentes, a para oxo ogIa: eIS aI a gumas provas eVI-dentes, e a lista não é exaustiva.

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Parece que a incidência destas informações tecnoló-gicas sobre o .ê.aber deva ser considerável. Ele é ou seráafetado em suas duas principais funções: a pesquisa e atransmissão de conhecimentos. Quanto à primeira, umexemplo acessível ao leigo é dado pela"g~fl~tica, que deveseu paradigma teórico à cibernética; Há uma infinidadede outros exemplos. Quanto à segunda, hoje em dia já sesabe como, normaJizando, miniaturizando e comerciali-zando os aparelhos~ modificam-se as operações de aquisi-ção, classificação, aCesso e exploração dos conhecimentos.12

É razoável pensar que a multiplicação de máquinas infor-macionais afeta e afetará a circulação dos conhecimentos,do mesmo modo que o desenvolvimento dos meios de cir:culação dos homens (transportes), dos sons e, em seguida,das imagens (media)13 o fez.

Nesta transformação geral, a natureza do saber nãopermanece intacta. Ele não pode se submeter aos novoscanais, e tornar-se operacional, a não ser que o conhe-cimento possa ser traduzido em quantidades de informa-ção.14Pode-se' então prever que tudo o que no saber cons-tituído não é traduzível será abandonado, e que a orien·tação das .novas pesquisas se subordinará à condição detradutibilidade dos resultados eventuais em linguagem demáquina. Tanto os "produtores" de saber como seus utili-zadores devem e deverão ter os meios de traduzir nestaslinguagens o que· alguns buscam inventar e outros apren-der. As pesquisas versando sobre estas máquinas-intérpre-tes já estão adiantadas.15 Com a hegemonia da informática,impõe-se uma certa lógica e, por conseguinte, um con-

i junto de prescrições que versam sobre os enunciados acei-tos como "de saber".

Pode-se então esperar uma explosiva exteriorizaçãodo saber em relação ao sujeito que sabe (sachant), em

_ qualquer ponto que este se encoiltre no processo de conhe-r cimento. O antigo princípio segundo o qual a aquisição

do saber é indissociável da formação (Bildung) do espí-rito, e mesmo da pessoa, cai e cairá cada vez mais em4

desuso. Esta relação entre fornecedores e usuários do CO-!

nhecimento e o próprio conhecimento tende ~ tenderá a i

assumir a forma que os produtores: e os consumidores de _mercadorias têm com estas últimas, ou seja, a forma valor.Ql;~L~.~e~j_PE~.4~id~ ..p_a!a.~~.Lv~!l_dido, e ele é eiserá consumido para ser valorizado numa .nova produção: 1

nos dois casos, para ser trocado. Ele deixa de ser para si!mesmo seu próprio fim; perde o seu "valor de uso" .16 ~

Sabe-se que o saber tornou-se nos últimos decêniosa principal força de produção,17 que já modificou sensi-velmente a composição das populações ativas nos paísesmais desenvolvidos18 e constitui o principal ponto de es-trangulamento para os países em vias de desenvolvimento.Na idade pós-industrial e pós-moderna, a ciência conser-vará e' sem dúvida reforçará ainda mais sua importânciana disputa das capacidades produtivas dos Estados-nações.Esta situação constitui mesmo uma das razões que fazpensar que o afastamento em relação aos países em viasde desenvolvimento não cessará de alargar-se no futuro.J9

Mas este aspecto não' deve fazer esquecer outro quelhe é complementar. Sob a forma de mercadoria infor- Imacional indispensável ao poderio produtivo, o saber jáé e será um desafio maior, talvez o mais importante, nacompetição mundial pelo poder. Do mesmo modo que osEstados-nações se bateram para dominar territórios, e· comisto dominar o acesso e a exploração das matérias-primase da mão-de-obra barata, é concebível que eles se batamno futuro para dominar as informações. Assim encontra-seaberto um novo campo para as estratégias industriais e

,comerciais e para as estratégias militares e políticas.20

Contudo, a perspectiva assim aberta.não é tão sim-ples como se diz. Pois a mercantilização do saber não po-derá deixar intacto o privilégio que os -Estados-nações mo-dern0s detinham e 'detêm ainda no que concerne à pro-dução e à difusão dos conhecimentos. A idéia de que estesdependem do "cérebro" ou do "espírito" da sociedade que

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(: () I'~sl:Ido será suplantada à medida que seja reforçado op"incípio inverso, segundo o qual a sociedade não existel' não progride a não ser que as meflsagens que nela cir-culem sejam ricas em informação e fáceis. de decodificll~'O Estado começará a aparecer como um fator de opaCI-dade e de "ruído" para uma ideologia da "transparência"comunicacional, que se relaciona estritamente com a comer-cialização dos saberes. É sob este ângulo que se arriscaa apresentar-se com uma nova acuidade o problema dasrelações entre as instâncias econômicas e as instânciasestatais.

Já nos decênios anteriores, aquelas puderam pôr emperigo a estabilidade destas graças às novas formas decirculação de capitais, às quais deu-se o nome genéricode empresas multinacionais. Estas formas implicam qu~ asdecisões relativas ao investimento escapam, pelo menos emparte, ao controle dos Estados-nações.ll Com ~ tecnologiainformacional e telemática, a questão corre o rISCOde tor-nar-se ainda mais espinhosa. Admitamos, por exemplo,que uma firma como a IEM seja autorizada a ocupar umafaixa do campo orbital da Terra para implantar satélitesde comunicação e/ou de banco de dados. Quem terá acessoa isto? Quem definirá os canais ou os dados proibidos? OEstado? Ou ele será um usuário como os outros? Nova-mente, surgem problemas de direito, e através deles aquestão: querp saberá?

A transformação da natureza do saber pode assim tersobre os poderes públicos estabelecidos um efeito de re-torno tal que os obrigue a reconsiderar suas relações dedireito e de fato com as grandes empresas e mais generi-camente com a sociedade civil. A reabertura do mercadomundial, a retomada de uma competição econômica ativa,o desaparecimento da hegemonia exclusiva do capitalismoamericano, o declínio da alternativa socialista, a aberturaprovável do mercado chinês às trocas, e muitos outrosfatores, vêm preparar os Estados, neste final dos anos 70,

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para uma reVIsao serIa do papel que se habituaram a de-sempenhar desde os anos 30, que era de proteção e guia,e até de planificação dos investimentos.22 Neste contexto,as novas tecnologias, pelo fato de tornarem os dados úteisàs decisões (portanto, os meios de controle) ainda maisinstáveis e sujeitas à pirataria, não podem senão exigirurgência deste reexam~.

Em vez de serem difundidos em virtude do seu valo.r"formativo" ou de sua importância política (administra-tiva, diplomática, militar), pode-se imaginar que os conhe-cimentos sejam postos em circulação segundo as mesmasredes da moeda, e que a clivagem pertinente a seu res-pei to deixa de ser saber/ignorância para se tornar comono caso da moeda, "conhecimentos de pagamento/conhe-cimentos de investimento", ou seja: conhecimentos tro-cados no quadro da manutenção da vida cotidiana (recons-tituição da força de trabalho, "sobrevivência") versus cré-ditos de conhecimentos com vistas a otimizar as perfor-mances de um programa.

Neste caso, tratar-se-ia tanto da transparência comodo liberalismo. Este não impede que nos fluxos de di-nheiro uns sirvam para decidir, enquanto outros não sejambons senão para pagar. Imaginam-se paralelamente fluxosde conhecimentos passando pelos mesmos canais e demesma natureza, mas dos quais alguns serão reservadosaos "decisores", enquanto outros servirão para pagar adívida perpétua de cada um relativa ao vínculo social.

1. A. Touraine. La Société postindustrie/le, Denoel, 1969; D. Bell, The Co-ming of Post-Industria/ Society, New York, 1973; Iha~ Hassan. TheDismemberment of Orpheus: Toward a Postmodern Llterature, NewYork, Oxford U. P.,.1971; M. Benamou & Ch. Caramello ed., Perfor-mance in Postmodern Cu/ture, Wisconsin. Center for XXth CenturyStudies & Coda Press. 1977; M. K01er. "Postrriodernismus: einbe-griffgeschichtlicher Ueberblick". Amerikastudien 22,1 (1977).

2. Uma expressão literária doravante clássica é dada por M. Butor, Mo-bile. Etude pour une' représentation des Etats-Unis, Gallimard, 1962.

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lif Fowlcs ed., Handbook of Futures Research, Westport, Conn .. Gre-cnwood Press, 1978.N. S; Troubetzkoy, Grundzüge der Phonologie, Praga, T.C.L.P .. VII.1939; t.f. Cantineau, Principes de phonologie, Paris, Klincksiel.k, 1949.

N. Wiener, CYberneti~s and Society. The Human Use of Human Beíngs,Boston, Hougton Mifflin, 1949; t.f. Cybernétique et Société, Dwx ~i-ves, 1949, 10/1.8, 1960. W. R. Ashby, An Introduction to Cybernetlcs,Londres, Chapman and Hal1, 1956.Ver a obra de Johannes von Neumann (1903-1957).S. Bellert, "La formalisation des systemes cybernétiques", in Le conceptd'information dansla science contemporaine, Minuit, 1965.G. Mounin, Les problemes théoriques de Ia traduction, Gallimard, 1963.Data-se de 1965 a revolução dos computadores com a nova geraçãodos computadores 360 IBM: R. Moch,. "Le tournant informatique",Documents contributifs, annexe IV, L'informatisation de Ia société,La Documentation française, 1978. R. M. Ashby, "La seconde géné-ration de Ia micro-életronique", La Recherce 2 (juin 1970), 127 sq.C. L. Gaudfernan & A. Talb, "Glossaire", in P. Nora & A. Mine.L'informatisation de Ia société, La Documentatión française, 1978. R.Beca, "Les banques de données", Nouvelle informatique et noul'ellecroissence, annexe 1, L'informatisation ... , loc. citoL. Joyeux, "Les applications avancées de l'informatique", Doculllcntscontributifs, loc. cito Os terminais domésticos (Integrated Vidco Ter-minais) serão comercializados antes de 1984 por aproximadamente1.400 dólares, segundo um informe do Internatiortal Resource De-velopment, The Home Terminal, Conn., I.R.D. Press, 1979.P. Watzlawick. J. Helmick-Beavin, D. lackson, Praglllatics of HUlIlanCummunication. A Study of Interactional Patterns. Pathologies, andParadoxes, N.Y., Northorn, 1967; t.f. I. Mosche, Une logique de Iacommunication, Seuil, 1972.I. M. Treille, do Grupo de análise e de prospectiva dos sistemas eco-nômicos e tecnológicos (G.A.P.S.E.T.), declara: "Não se fala o bas-tante das novas possibilidades de disseminação da memória, em par~ticular graças aos semicondutores e aos lasers ( ... ). Cada um poderaem breve estocar a baixo preço a informação onde ele quiser, e disporalém disso de capacidades de tratamento autônomas" (La selllainemedia 16. 15 février 1979). Segundo uma enquete da National Scien-tific Foundation, mais de um em dois alunos de high schuul utilizacorrentemente os serviços de um computador; os estabelecimentos es-colares possuirão os seus desde o início dos anos 1980 (La selllainemedia 13,25 janvier 1979).L. Brunel. Des machines et des hommes, Montreal. Ouebec Seience.1978. J. L. Missika & D. Wolton, Les réseaux pensants, Librairietecnique et doe., 1978. O uso da videoconferência entre Ouebec eParis está em vias de se tornar um hábito: em novembro e dezembrode 1978 realizou-se o quarto ciclo de videoeonferências en direct (pelosatélite Symphonie) entre Ouebec e Montreal. de um lado, e Pa.ris(Université Paris Nord e Centre Beaubourg) de outro (La selllwnemedia 5, 30 novembre 1978). Outro exemplo. o jornalismo e1etrônieo.

Os três grandes canais americanos A.B.C., N.B.C. e C.B.S. de talmodo multiplicaram seus estúdios de produção através do mundo,que quase todos os eventos que ocorrem podem agora ser tratadoseletronicamente e transmitidos aos Estados Unidos por satélite. Apenasos escritórios de Moscou continuam a trabalhar com filmes, que elesexpedem de Frankfurt para difusão por satélite. Londres tornou-seo grande packing point (La semaine media 20, 15 mars 1979).A unidade de informação é o bit. Para suas definições, ver Gaudfer-nan & Talb, "Glossaire", loc. cito Discussão em R. Thom, "Un protéede Ia sémantique: l'information" (1973), in Modeles mathématiquesdela morphogenese, 10/18, 1974. A transmissão das mensagens emcódigo digital permite notadamente eliminar as ambivalências: verWatzlawick et ai. op. cit., 98.As firmas Craig e Lexicon anunciam a colocação no mercado detradutores de bolso: quatro módulos em línguas diferentes aceitossimultaneamente, cada um com 1.500 palavras e memória. A WeidnerCommunication Systems Inc. produz um Multilingual Word Processingque permite ampliar a capacidade de um tradutor médio de 600 para2.400 palavras por hora. Possui uma tríplice memória: dicionário bi-língüe, dicionário de sinônimos, índice gramatical (La semaine media,6, 6 décembre 197.8, 5).J. Habermas, Erkenntnis und Interesse, Frankfurt, 1968; t.f. Brohm &Clémençon, Connaissance et intérêt, Gallimard, 1976."A base (Grundpfeiler) da produção e da riqueza ( ... ) torna-se ainteligência e a dominação da natureza na existência do homem en-quanto corpo social", de modo que "o saber social geral, o knowledge,tornou-se força de produção imediata", escreve Marx nos Grundrisseder Kritik der politischen Oekonomie (1857-1858), Berlin, Dietz Verlag,1953, 594; t.f. Dangeville, Fondements de l'économie politique, Anthro-pos, 1968, I, 223. Todavia, Marx concede que não é "na forma dosaber, mas como órgão imediato da práxis social", que o conheci-mento torna-se força, isto é, como máquinas: estas são "órgãos docérebro humano forjados pela mão do homem, da força de saberobjetivada". Ver P. Mattick, Marx and Keynes, The Limits of theMixed Economy, Boston, Sargent, 1969; t.f. Bricianier, Marx et Keynes,Les limites de l'économie mixte, Gallimard, 1972. Discussão em J. F.Lyotard, "La place de l'aliénation dans le retournement marxiste"(1969), in Dérive à partir de Marx et Freud, 10/18, 1973.A composição da categoria de trabalhadores (labor force) nos EstadosUnidos modificou-se, em vinte anos (1950-1971), como se segue:

1950 1971

, 'I Trabalhadores de fábricas, deserviços ou agrícolas 62,5% 51.4%

Profissionais liberais e técnicos 7.5% 14,2%i

Empregados 30 34 I(Statística! Abstracts, 1971) I

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1'1 1':111 I'az.lo da dUl'ação do tempo dB "fabricação" de um técnico supe-rior ou de um cientista médio relativamente ao tempo de extracãode matérias-primas e de transferência de capital moeda. Ao final dosallos 60, Mattick avaliava a taxa de investimento líquido nos paísessubdesenvolvidos entre 3 e 5% do P.N.B., nos países desenvolvidosentre 10 e 15% (op. cit., t.f. 287).

20. Nora & Mine, L'informatisation de Ia société, loc. cit., notadamente aprimeira parte: "Les défis", Y. Stourdzé, "Les États-Unis et Ia guerredes communications", Le Monde, 13-15 d"écembre 1978. Valor de mer-cado mundial dos instrumentos de telecomunicação em 1979: 30 bi-lhões de dólares; estima-se que em dez anos ela atingirá 68 bilhões(La semaine media, 19, 8 mars 1979, 9).

21. F. de Combret, "Le redéploiement industriel", Le Monde, avril 1978;H. Lepage, Demain le capitalisme, Paris, 1978; Alain Cotta, La Franceet l'impératif mondial, P.U.F., 1978.

22. Trata-se de "enfraquecer a administração", de chegar ao "Estadomínimo". É o declínio do Welfare State, concomitantemente à "crise"que se iniciou em 1974.

I, I

~l'!1

ESTA é então a hipótese de trabalho que determina ocampo no q"!lalpretendemos apresentar a questão do esta-tuto do saber. Este cenário, similar ao de "informatizaçãoda sociedade", ainda que proposto de maneira totalmentediversa, não tem a pretensão de ser original, nem mesmode ser verdadeiro. O que se reivindica a uma hipótese detrabalho é uma grande capacidade discriminante. O ce-nário da informatização das sociedades mais desenvolvi-das permite iluminar, com o risco mesmo de exagerá-Iosexcessivamente, certos aspectos da formação do saber e dosseus efeitos sobre o poder público e as instituições civis,efeitos que permaneceriam pouco perceptíveis noutras pers-pectivas. Não se deve pois dar-lhe um valor de previsãoem relação à realidade, mas estratégico em relação à ques-tão apresentada.

Contudo, é grande sua credibilidade, e neste sentidoa escolha desta hipótese hão é arbitrária. Sua descrição jáfoi ampla~ente elaborada pelos expertsB e já guia certasdecisões das administrações públicas e das empresas maisdiretamente afins, como as que gerenciam as telecomuni-cações. Portanto, pertence, já, em parte, à categoria dasrealidades observáveis. Enfim, excluindo-se o caso de umaestagnação ou de uma recessão geral devida, por exemplo,a uma ausência persistente de solução relativa ao problemamundial da energia, este cenário tem boas chances deprevalecer: pois não se vê que outra orientação as teéno-

1 t

BiBLIOTECA CENTRALUfES

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logias contemporâneas poderiam tomar que fosse uma al-tcmativa à informatização da socied~de.

Isto significa que a hipótese é banal. Mas ela o é so-mente na medida em que não coloca em causa o paradigmageral do progresso das ciências e das técnicas, ao qual pa-recem evidentemente éorresponder o crescimento econô-mico e o desenvolvimento do. poder sociopolítico. Admite·se como ponto pacífico que ó saber cit;ntífico e técnico seacumulaI' discute-se quando muito à forma desta acumu-lação, que alguns imaginam regular., contínua e unânime,e outros como sendo periódica, descontínua e conflitual.24

Estas evidências são falaciosas. Para começar, <l.lia-bersi~!ltífico.não_~_~9A()~0 saber; ele sempre teve ligadõa seu conceito, em competição com uma outra_espécie desaber que, para simplificar, chamaremos def)arratiViY)'}:queserá caracterizado mais adiante. Não se trata- dé-dizer queeste último possa prevalecer sobre ele, mas seu modelo~stáJeJacionado à~ !<:l~iasde. equilíbrio inte~l"iore- de -con-vivialidade,25 comparadas às quais o saber contemporâneoempalidece, sobretudo se tiver que sofrer uma exteriori-zação em relação àquele que sabe (sachant) e uma alienaçãoelll re!açãQ,a seus usuários bem maiores do que antes. A des-moralização conseqüente dos pesquisadores e dos profes-sores é fato importante, tanto que veio à tona, como sesabe, junto àqueles que se destinavam a exercer estas pro-fissões, os estudantes, ao longo dos anos 60, em todas associedades mais desenvolvidas, e veio retardar sensivel-mente, durante este período, o rendimento dos laborató-rios e das universidades que não conseguiram evitar a suacontaminação.26 A questão não é e nem foi a de aguardaruma revolução, fosse para esperá-Ia ou para temê-Ia, comoaconteceu freqüentemente; o curso das coisas da civiliza-ção pós-industrial não será mudado de um dia para o outro.Mas é impossível não levar em consideração este compo-nente maior, a dúvida dos cientistas, quando se trata deavaliar () estatuto presente e futuro do saber científico.12

Além disso, ela interfere no problema essencial, o dalegitimação. Aqui, tomamos a palavra em um sentido maislato do que lhe é dado na discussão da questão da autori-dade pelos teóricos alemães contemporâneos.27 Considere-se uma lei civil; seu enunciado é o seguinte: tal categoriade cidadãos deve desempenhar tal tipo de ação. A legiti-mação é um processo pelo qual um legislador é autoriza-do a promulgar esta lei como norma. Considere-se umenunciado científico; ele está submetido à regra: um enun-ciado deve apresentar determinado conjunto de condiçõespara ser reconhecido como científico. Aqui, a legitimaçãoé o processo pelo qual um "legislador" ao tratar do dis-curso científico é autorizado a prescrever as condições es-tabelecidas (em geral, condições de consistência interna ede verificação experimental) para que um enunciado façaparte deste discurso e possa ser levado em consideraçãopela comunidade científica.

O paralelo pode parecer forçado. Veremos que não:-A questão da legitimação encontra-se, desde Platão, indis-soluvelmente associada à da legitimação do legislador.Nesta perspectiva, o direito de decidir sobre o que é ver-dadeiro não é independente do direito de decidir sobre oque é justo, mesmo se os enunciados submetidos respec-tivamente a esta e àquela autoridade forem de naturezadiferente. É que existe um entrosamento entre o gênero delinguagem que se chama ciência e o que se denomina éticae política: um e outro procedem de uma mesma perspec-tiva ou, se se preferir, de ·uma mesma "opção", e estachama-se Ocidente.

Examinando-se o estatuto atual do saber científico,constata-se que enquanto este último parece mais subor-dinado do que nunca às potências e, correndo até mesmoo risco, com as novas tecnologias, de tomar-se um dosprincipais elementos de seus conflitos, a questão da dupl~legitimação está longe de se diluir e não pode deixar, porisso, de ser considerada com mais cuidado. Pois ela seapresenta em sua forma mais completa, a da reversãQi; que

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vem evidenciar serem saber e poder as duas faces de umamesma questão: quem decide o que é saber, e quem sabeo que convém decidir? O problema do saber na idade dainformática é mais do que nunca o problema do governo.

23. La nouvelle informatíque et ses utilisateurs, annexe lU, "L'informati-sation, etc.", loe. eit.

24. B. P. Lécuyer, "Bilan et perspectives de Ia sociologie des sciencesdans les pays occidentaux", Arehives européennes de sociologie XIX(1978) (bibliog.), 257-336. Boa informação sobre as correntes anglo-saxô-nicas: hegemonia da escola de Merton até início dos anos 1970, dis-persão atual, notadamente por influência de Kuhn; pouc,a informaçãosobre a sociologia alemã da ciência.

25. O termo foi difundido por Ivan Illich, Tools for Conviviality, N.Y.,Harper & Row, 1973; t.f. La eonvivialité, Seuil, 1974.

26. Sobre esta "desmoralização", ver A. Jaubert e J .-M. Lévy-Leblond ed.(Auto)eritique de Ia scienee, Seuil, 1973, parte I.

27. J. Habermas, Legitimationsprobleme im Spiitkapitalismus, Frankfurt,Suhrkamp, 1q73; t.f. Lacoste, Raison et légitimité, Payot, 1978 (bi-bliog.).

PELO que antecede, já/se observou que, para analisareste problema no Ç1Vª,dro que determinamos, preferimosum procedimento: o de enfatizar os fatos de linguageme, nestes fatos, seu aspecto pragmático.28 A fim de facili-tar o desenvolvimento da leitura, é útil apresentar umavisão, mesmo que sumária, do que entendemos por estetermo.

Um enunciado denotativ029 como: A universidadeestá doente, proferido no quadro de uma conversação oude um colóquio, posig()_~_~l1_r.ems:le.nt~, (aquele que oenuncia), seu 4~§tIiÍi.tário (aquele que o recebe) e seu re-ferente (aquiI(; de que trata o enunciado) de uma maneiraespedfica: o remetente é colocado e exposto por esteenunciado na posição de quem sabe (sachant) (ele sabecomÇ>Vaia universidade), o destinatário é colocado napostura de ter de conceder ou recusar seu assentimento,e o próprio referente é apreendido de uma maneira pró-pria aos denotativos, como qualquer coisa que precisa sercorretamente identificada e expressa no enunciado quea ele se refere.

Se se considera uma declaração como: A universida-de está aberta, pronunciada por um decano ou um reitorquando do início do ano letivo, vê-se que as especifica-ções precedentes desaparecem. Evidentemente, é precisoque o significado c:l0 enun<.:i_~~oseja compreendido, mas

-.'-'. -

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isto é uma condição geral da comunicação, que não per-mite distinguir os enunciados ou seus efeitos próprios. Osegundo enunciado, chamado de desempenho 3Üf~..,possuia particularidade de seu efeito sobre o referente coincidircom sua enunciação: a universidade encontra-se abertapelo fato de que é declarada como tal nestas condições.Isto não está então sujeito a discussão nem a verificaçãopelo destinatário, que encontra-se imediatamente coloca-do no novo contexto assim criado. Quanto ao' remetente,deve ser dotado da autoridade de proferi-Ia; mas pode-sedescrever esta situação de modo inverso: ele não é decanoou reitor, isto é, alguém dotado de autoridade para pro-ferir este gênero dé enunciados, senão quando os profere,obtendo o efeito imediato que dissemos, tanto sobre seureferente, a universidade, quanto sobre seu destinatário,o corpo docente.

Um caso diferente é o dos enunciados do tipo: Dêemmeios à universidade, que são prescrições. Estas podemser moduladas em ordens, comandos, instruções, recomen-dações, pedidos, solicitações, súplicas, etc. Vê-se que o re-metente é aqui colocado na posição de autoridade, no sen-tido mais amplo do termo (incluindo a autoridade que opecador tem sobre um deus que se declara misericordio-so), o que significa que ele espera do destinatário a reali-zação da ação referida. Estas duas últimas posições sofrema seu turno, na pragmática prescritiva, efeitos concomi-tantes.31

Outra é ainda a eficiência de uma interrogação, deuma promessa, de uma descrição literária, de uma narra"ção, etc. Resumindo. Quando Wittgenstein, recomeçandoo estudo da linguagem a partir do zero, centraliza suaatenção sobre os efeitos dos discursos, chama os diversostipos de enunciados que ele caracteriza desta maneira, edos quais enumerou-se alguns, de jogos de linguagem.32

Por este termo quer dizer que cada uma destas diversas

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rat~gorias de enunciados deve poder ser determinada porregras que especifiquem suas propriedades e o uso quedelas se pode fazer, exatamente como o jogo de xadrezse define como um conjunto de regras que determinam:lS propriedades das peças, ou o modo conveniente ded~sIocá-las.

Três observações precisam ser feitas a respeito dosjogos de linguagem. A primeira é que suas regras nãopossuem sua legitimação nelas mesmas, mas constituemobjeto d~ _U.1l1~011tEatoexplícito ou nã9~!ltreQS jogadores(o que não quer dizer todavia que estes as inventem). Asegunda é que na ausência de regras não existe jogo,33que uma modificação, por mínima que seja, de uma regra,modifica a natureza do jogo, e que um "lance" ou umenunciado que não satisfaça as regras, não pertence aojogo definido por elas. A terceira observação acaba de serinferida: todo enunciado deve ser considerado como um"lance" feito num jogo.

Esta última observação leva a admitir um primeiroprincípio que alicerça todo o nosso método: é que falaré combater, no sentido de jogar, e que os atos de lingua-gem34provêm de uma agonística gera1.35Isto não significanecessariamente que se joga para ganhar. Pode-se realizarum lance pelo prazer de inventá-Io: não é este ocaso dotrabalho de estírnuloda língua prqvocado--petãfªlª __popu-lar ou pela literatl.!ta'? A invenção contínuà de --êonstruçõesnovas, de- palávras e de sentidos que, no nível da palavra,é o que faz evoluir a língua, proporciona grandes alegrias.Mas, sem dúvida, mesmo este prazer não é independentede um sentimento de sucesso, sobre um adversário pelomenos, mas de envergadura: a língua estabelecida, a cono-

~ 36laçao.Esta idéia de uma agonística da linguagem (tanga-

.~icre) não deve ocultar o segundo princípio que lhe é com-plementar e que norteia nossa análise: é que o vínculo social

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i',. Â agol11stlca está no princIpIo da ontologia de Heráclito e da dialé-tica dos sofistas. sem falar dos primeiros trágicos. Aristóteles reser-va-lhe uma grande parte de sua reflexão sobre a dialética in Tópicosc Helutaç'ões solísticas. Ver F. Nietzsche, "La joute chez Homere·', in"Cinq préfaces à cinq livre·s qui n'ont pas été écrits" (1872). EcritsJ!osthul1les 1870-1873, t.f. Backes, Haar & de Launay. Gallimard, 1975,IQ2-200.

\b. No sentido estabelecido por L. Hjelmslev, Prolegol1lenll to a Theory01 Language, t. inglesa Whitfield, Madison, U. Wisconsin Press, 1963;LI'. Una Canger, Prolégol1l(!I1es à une théorie du langage, Minuil, 1968.E retomado por R. Barthes, Elél1lents de sél11i%gie (1964), Seuil, 1966§ IV. I.

obscrváve1 é feito de "lances" de linguagem. Elucidandoesta proposição entraremos no ceme do nosso tema.

28. Na esteira da semiótica de Ch, A. Peirce. a distinção dos domíniossintático, semântico e pragmático é feita por Ch. W. Morris, "Foun-dations of the Theory of Signs", in O. Neurath, R. Carnap & Ch.Morris ed., International Encyclopedia 01 Unilied Science, I, 2 (1938),77-137. Nós nos referimos sobre este termo sobretudo a; L. Wittgen-stein, Philosophical Investigations, 1945 (Lf. Klossowski, Investigationsphilosophiques, Gallimard, 1961); J. L. Austin, How to Do Thingswith Words, OxIord, 1962 (t.f. Lane, Quand dire c'est faire, Seuil,1970); J. R. Searle, Speech Acts, Cambridge U.P .. 1969 (LI. Pauchard,Les actes de langage, Hermann, 1972); J. Habermas, VorbereitendeBemerkungen zu einer Theorie der kommunikativen Kompetens, inHabermas & Luhmann, Theorie der Gese/lschaft oder Sozialtechnologie,Stuttgart, Suhrkamp, 1971; O. Ducrot, Dire et ne pas dire, Hermann,1972; J. Puclain, "Vers une pragmatique núcleaire de Ia communica-tion", datilog., Université de Montréal, 1977. Ver também Watzlawicket aI.• op. cito

29. Denotação corresponde aqui à descrição conforme uso clássico dos ló-gicos. Quine substitui denotation por true of (verdade de). Ver W.V. Quine, t.f. Dopp e Gochet, Le mot et Ia chose, Flammarion, 1977,140, n. 2. Austin, op. cit., 39, prefere constatif a descriptif.

30. Em teoria da linguagem, performativo assumiu desde Austin um sen-tido preciso (op. cit., 39 e passim). Iremos reencontrá-Io mais adianteassociado aos termos performance e performatividade (de um sistema,notadamente) no sentido que se tornou corrente de eficiência mensu-rável na relação input/output. Os dois sentidos não são estranhos umao outro. O performativo de Austin realiza a perlormance ótima.Na tradução para o português preferiram-se as palavras desempenho oueficiência mensurável como tradução de performativité e performatif·(N. do Ed.)

31. Uma análise recente destas categorias foi feita por Habermas, "Vor-bereitende Bemerkungen ... ", e discutida por J. Poulain, art. cito

32. Investigations philosophiques, loc. cit., § 23.33. J. von Neumann & Morgenstern, Theory of Games and Economic

Behavior, Princeton U.P., 1944, 3: ed., 1954; 49: "O jogo consiste noconjunto das regras que o descrevem." Fórmula estranha ao espíritode Wittgenstein, para quem o conceito de jogo escaparia aos ditames'de uma definição, visto que esta já é um jogo de linguagem (op. cit.,§ 65-84 sobretudo). .

34. O termo é de J. H.' Searle: "Os atos de linguagem são as unidadesmínimas de base da comunicação lingüística" (op. cit., d., 52). Nós ascolocamos de preferência sob a égide do agôn (a polêmica) que dacomunicação.

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CQm Parsons, o princlpIO do sistema é, se se podediJ':l'r, ainda otimista:corresponde à estabilização das eco-Illlmias em crescimento e das sociedades de abundância sob:\ t'giJe de um welfare '{tate temperado.38 Para os teóricosalemães de hoje, a SystJmtbeorie é tecnocrática e mesmo

~'-""""'"_._-''''''"'"''''.'"-''"''''''''''''' 'dl~ica, para não dizer desesperàda: a harmonia entre ne-l'l'ssiJades e esperanças dos indivíduos e dos grupos comas funções que asseguram o sistema não é mais do que11111acomponente anexa do seu funcionamento; a verda-deira finalidade do sistema, aquilo que o faz programar-sea si mesmo como uma máquina inteligente, é a otimiza-~'iloda relação global entre os seus input e output, ou seja,(l seu desempenho. Mesmo quando suas regras mudam einovações se produzem, mesmo quando suas disfunções,como as greves, as crises, o desemprego ou as revoluçõespolíticas podem fazer acreditar numa alternativa e levan-lar esperanças, não se trata senão de rearranjos internose seu resultado só pode ser a melhoria da "vida" do siste-ma, sendo a entropia a única alternativa a este aperfei-~'oamento das performances, isto é, o declínio.39

Aqui também, sem cair no simplismo de uma socio-logia da teoria social, é difícil não estabelecer pelo menos11m paralelo entre esta versão tecnocrática "dura" da so-ciedade e o esforço ascético que se pede, sob o nome de"liberalismo avançado", às sociedades industriais mais de-senvolvidas para que se tornem competitivas (e assim oti-mízar sua "racionalidade") no contexto de retomada daguerra econômica mundial a partir dos anos 60.

Para além do imenso deslocamento que conduz dopensamento de um Comte ao de um Luhmann vislumbra-selima mesma idéia do social: a sociedade é uma totalidadetinida, uma "unicidade". Parsons o formula claramente:111\ condição mais decisiva para que uma análise dinâmicaseja boa, é de que cada problema seja contínua e sistema-t icamente referido ao estado do sistema considerado como11mtodo ( ... ). Um processo ou um conjunto de condições

21

A NATUREZA DO VÍNCULO SOCIAL:A ALTERNATIVA MODERNA

SE SE quer tratar do saber na sociedade contemporâneamais desenvolvida, deve-se primeiramente decidir qual arepresentação metódica que dela se faz. Simplificando aoextremo, pode-se dizer que durante o último meio século,pelo menos, esta representação divídiu-se, em princípio,entre dois modelos: a) a sociedade forma um todo funcio-nal; b) a sociedade divide-se em duas partes. Pode-se ilus-trar o primeiro com o nome de TaIcou Parsons (pelo me-nos, o do pós-guerra) e sua escola; o segundo pela correntemarxista (todas as escolas que o compõem, por mais dife-rentes que sejam, admitem o princípio da luta de classese a dialética como dualidade trabalhando a unidade

. 1) 37SOCla .

Esta clivagem metodológica que determina duas gran-des espécies de discursos sobre a sociedade provém doséculo XIX. A idéia de que a sociedade forma um todoorgânico, sem o que deixa de ser uma sociedade (e a so-ciologia não tem mais objeto), dominava o espírito dosfundadores da escola francesa; torna-se mais precisa como funcionalismo; assume uma outra modalidade quandoParsons, nos anos 50, compara a sociedade a um sistemaauto-regulável. O modelo teórico e mesmo material nãoé mais o organismo vivo; ele é fornecido pela cibernéticaque lhe multiplica as aplicações durante e ao final da Se-gunda Guerra Mundial.

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ou bem 'contribui' para a manutenção (ou para o desen-volvimento) do sistema, ou bem é 'disfuncional' prejudi-cando assim a integridade e a eficácia do sistema. ,,40Ora,esta idéia é também a dos "tecnocratas" .41Daí sua credi-bilidade: possuindo os meios de se tornar realidade, pos-sui os de administrar suas provas. É o que Horkheimerchamava de "paranóia" da razão.42

Mas não se pode julgar como paranóicos o realismoda auto-regulação sistemática e o círculo perfeitamente fe-chado dos fatos e das interpretações, a não ser sob con-dição de se dispor ou de se pretender dispor de um obser-vatório que por princípio escape à sua atração. Tal é afunção do princípio da luta de classes na teoria da socie-dade a partir de Marx.

Se a teoria "tradicional" está sempre ameaçada deser incorporada à programação do todo social como umsimples instrumento de otimização das performances desteúltimo, é que seu desejo de uma verdade unitária e totali-zante presta-se à prática unitária e totalizante dos geren-tes do sistema. A teoria "crítica" ,43por se apoiar sobreum dualismo de princípio e desconfiar das sínteses e dasreconciliações, deve estar em condições de escapar a estedestino.

É pois um outro modelo da sociedade (e uma outraidéia da função do saber que nela se pode produzir e delase adquirir) que guia o marxismo. Este modelo origina-senas lutas que acompanham o cerco das sociedades civistradicionais pelo capitalismo. Não se trata aqui de seguiros périplos que são a matéria da história social, políticae ideológica de mais de um século. Basta lembrar o ba-lanço que dela se pode fazer hoje, pois seu destino é co-nhecido: nos países de gestão liberal ou liberal avançada,a' transformação destas lutas e dos seus órgãos' em regu-ladores do sistema; nos países comunistas, o retorno, emnome do próprio marxismo, do modelo totalizante e deseus efeitos totalitários, tendo sido as lutas em questão

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~;illlpll'smente privadas do direito à existência.44 E em todaparle, em nome de um ou outro, a Crítica da economiapolítica (era este o subtítulo do Capital, de Marx)' e a crí-I jea da sociedade alienada que lhe era correlata são utili-I.adas à guisa de elementos na programação do sistema.45

Seguramente, o modelo crítico manteve-se e apurou-se em face deste processo em minorias como a Escola deFrankfurt ou o grupo Socialismo ou barbárie.46 Mas nãoSl' pode esconder que o pilar social do princípio da divi-s:lo, a luta de classes, tendo se diluído a ponto de perderImia radicalidade, encontrou-se finalmente exposto ao pe-rigo de perder sua base teórica e de se reduzir a uma"lItopia", a uma "esperança",47 a um protesto pela honrafeito em nome do homem, ou da razão, ou da criatividade,ou ainda de determinada categoria social reduzida in extre-mis às funções de agora em diante improváveis de sujeitocrítico, como o terceiro mundo ou a juventude estudantiI.48

Esta retrospectivaesquemática (ou esquelética) nãoleve outra função senão a de esclarecer a problemática naqual pretendemos situar a questão do saber nas sociedadesindustriais avançadas. Pois não se pode entender o estadoatual do saber, isto é, que problemas seu desenvolvimentoe difusão encontram hoje, se não se conhece nada da socie-dade na qual ele se insere. E, hoje mais do que nunca, co-nhecer qualquer coisa daquela é primeiro escolher a ma-neira de interrogá-Ia, que é também a maneira pela qualela pode fornecer respostas. Não se pode concluir que opapel principal do saber é o de ser um elemento indispen-sável do funcionamento da sociedade e agir em conse-qüência para com ela a não ser que se conclua que estaé uma grande máquina.49

Inversamente, não se pode contar com sua funçãonítica e sonhar em orientar-lhe o desenvolvimento e adifusão neste sentido, a não ser que se tenha concluídoque ela não perfaz um todo integrado e que continua aser perturbada por um princípio de contestação.50 A alter-

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UU, antes, as possibilidades técnicas impõem a utilização que delasse faz." Habermas opõe a esta lei o fato dos conjuntos de meiostécnicos e dos sistemas de ação racional completa jamais se desen-volverem de maneira autônoma: "Conséquences pratiques du progresscientifique et technique" (1968), in Theorie und Praxis, Neuwied,Luchterhand, 1963; t.f. Raulet, Théorie et Praxis, Payot, 11. 115-136.Ver também J. Ellul, La technique et l'enjeu de Ia science, Paris, Ar-mand Colin, 1954; id., Le systeme technicien, Paris, Calmann-Lévy.Que as greves e em geral a forte pressão exercida pelas poderosasorganizações de trabalhadores produzem uma tensão finalmente bené-fica para a eficiência mensurável do sistema, é o que Ch. Levinson,dirigente sindical, declara claramente; explica ele esta tensão como oavanço técnico e gestionário da indústria americana (citado por H.-F.de Virieu, Le Matin, décembre 1978, n.O spécial "Que veut GiscardT').

40. T. Parsons, Essays in Sociological Theory Pure and Applied, Glencoe,Free P., 1957 (reed.), 46·47.

·11. A palavra é tomada aqui segundo a aeepção que J. K. Galbraith deuao termo tecnoestrutura em Le nouvel .État industriel. Essai sur lesysteme économique américain, Gallimard, 1968, ou R. Aron ao deestrutura tecno-burocrática nas Dix-huit leçons sur Ia société indus-tielle, Gallimard, 1962, de preferência ao sentido evocado pelo termoburocracia. Este último é muito mais "duro", porque é tanto socio-político quanto econômico, procedendo inicialmente de uma críticafeita pela Oposição operária (Kollontai:) ao poder bo1chevique, depoispela oposição trotskista aO estalinismo. Ver a este respeito CI. Lefort,Eléments d'une critique de Ia bureaucratie, Genebra, Droz, 1971,onde a crítica se estende à sociedade burocrática em seu conjunto.

·12. Eclipse de Ia raison, loco cit., 183.4"). M. Horkheimer, "Traditionelle und kritische Theorie" (1937) in

t.f. Maillard & Muller, Théorie traditionnelle et théorie critique, Galli-mard, 1974. Ver também: 1,f. Collectif du College de philosophie,Théorie critique, Payot, 1978. E a bibliografia comentada sobre aEscola de Frankfurt (francesa, interrompida em 197.8) in Esprit 5 (mai1978), por Hoehn & Raule1,

44. Ver CI. Lefort, op. cit.; id .. Un homme en trop, Seuil, 1976; C. Cas-toriadis, La société bureaucratique, 10/18, 1973.

4'5. Ver por exemplo J. P. Garbier, Le marxisme lénifiant, Le Sycomore,1979.

'Ib. t o título que tinha o "órgão de crítica e de orientação revolucionária"publicado de 1949 a 1965 por um grupo cujos principais redatores(com diversos pseudônimos) foram C. de Beaumont, D. Blanchard,C. Castoriadis, S. de Diesbach, CI. Lefort, J.-F. Lyotard, A. Maso,D. Mothé, B. Sarrel, P. Simon, P. Souyri.

·17. E. Bloch, Das Prinzip Hoffnung (1954-1959). Frankfurt, 1967. Ver G.Raulet ed., Utopie-Marxisme selon E. Bloch, Payot, 1976.

,11'. r:: um!i alusão às obstruções teóricas provocadas pelas guerras daArgélia e do Vietnã, e pelo movimento estudantil dos anos 1960. Umpanorama histórico é dado por A. Schnapp e P. Vidal-Naquet, Jour-/lal de Ia Commune étudiante, Seuil, 1969, Apresentação.

nativa parece clara - homogeneidade ou dualidade in-trínsecas do social, funcionalismo ou criticismo do saber- mas a decisão parece difícil de tomar. Ou arbitrária,

Tentou-se dela escapar distinguindo duas espécies desaber: um positivista, que encontra facilmente sua aplica-ção às técnicas relativas aos homens e aos materiais e quese presta a tornar-se uma força produtiva indispensável aosistema, e uma espécie crítica ou reflexiva ou hermenêu-tica que, interrogando-se direta ou iridiretamente sobreos valores ou os fins, opõe um obstáculo a qualquer"recuperação" .51

37. Ver em particular Ta1cott Parsons, The Social System, Glencoe Free,P., 1967; id., Sociological Theory and Modem Society, N.Y., Free P.,1967. A bibliografia da teoria marxista da sociedade contemporâneaocuparia mais de cinqüenta páginas. Pode-se consultar a útil catalo-gação (dossiês e bibliografia crítica) feita por P. Souyri, Le marxismeopres Marx, Flammarion, 1970. Uma visão interessante do conflitoentre estas duas grandes correntes da teoria social e de sua mixagemé apresentada por A. W. Gouldner, The Coming Crisis of WesternSociology (1970), Londres, Heineman, 2: ed., 1972. Este conceitoocupa um lugar importante no pensamento de J. Habermas, simulotaneamente herdeiro da Escola de Frankfurt e polemizando com ateoria alemã do sistema social, sobretudo a de Luhmann.

38. Este otimismo aparece claramente nas conclusões de R. Lynd, Know-ledge for What?, Princeton U.P., 1939, 239, que são citadas por M.Horkheimer, Eclipse of Reason, Oxford U.P., 1947; t.f. Laizé, Eclipsede Ia raison, Payot, 1974, 191: na sociedade moderna, a ciência deverásubstituir a religião "usada até a exaustão" para definir a finalidadeda vida.

39. H. Schelsky. Der Mensch in der wissenschaftlichen Zeitalter, Colô'nia, 1961, 24 sq.: "A soberania do Estado não se manifesta mais pelosimples fato de que ele monopoliza o uso da violência (Max Weber) oudecide sobre o estado de exceção (Car! Schmitt), mas antes de tudopelo fato de que decide sobre o grau de eficácia de todos os 1l1j:iostécnicos existentes em seu seio, que reserva para si aqueles cuja efi·cácia for mais elevada e pode praticamente colocar-se ele mesmo forado campo de aplicação destes meios técnicos que impõe aos outros."Dir-se-á que é uma teoria do Estado, não do sistema. Mas Schelskyacrescenta: "O próprio Estado vê-se submetido, em função da própriacivilização industrial: a saber, são os meios que determinam os fins,

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Lcwis Mumford, The Myth of the Machine. Tecnics and HumanDevelopment, Londres, Secker & Warburg, 1967; t.f. Le mythe deIa machine, Fayard, 1974.A hesitação entre estas duas hipóteses se evidencia, no entanto, noapelo destinado a obter a participação dos intelectuais no sistema:Ph. Nemo, "La nouvelle responsabilité des deres", Le Monde, 8septembre 1978.A oposição entre Naturwissenschaft e Geistwissenschaft tem sua ori·gem em W. Dilthey (1863-1911), t.f. Rémy, Le monde de l'esprit,Aubier-Montaigne, 1947.

A NATUREZA DO VÍNCULO SOCIAL:A PERSPECTIVA PÓS-MODERNA

NÃO seguimos uma solução de divisão como esta. Pos-tulamos que a alternativa que ela busca resolver, mas quenão faz senão reproduzir, deixou de ser pertinente emrelação às sociedades que nos interessam, e que ela mesmapertence a um pensamento por oposições que não corres-ponde às manifestações mais doqüentes do saber pós-moderno. O "redesdobramento" econômico na fase atualdo capitalismo, auxiliado pela mutação das técnicas e dastccnologias segue em paralelo, já se disse, com umamudança de função dos Estados: a partir desta síndromeforma-se uma imagem da sociedade que obriga a revisarseriamente os enfoques apresentados como alternativa. Di-gamos sumariamente 'que as funções de regulagem e, por-tanto, de reprodução, são e serão cada vez mais retiradasdos administradores e confiadas a autômatos. A grandequestão vem a ser e será a de dispor das informações queestes deverão ter na memória a fim de que boas decisõessejam tomadas. O acesso às informações é e será da alçadados experts de todos os tipos. A classe dirigente é e seráa dos decisores. Ela já não é mais constituída pela classepolítica tradicional, mas por uma camada formada por di-rigentes de empresas, altos funcionários, dirigentes dewandes órgãos profissionais, sindicais, políticos, confes-

• • 52SlonalS.

A novidade é que, neste contexto, os antigos pólosde atração formados pelos Estados-nações, os partidos, os

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profissionais, as instituições e as tradições históricas per-dem seu atrativo. E eles não parecem dever ser substituí-dos, pelo menos na escala que lhes é própria. A Comissãotricontinental não é um pólo de atração popular. As "iden-tificações" com os grandes nomes, com os heróis da histó-ria atual, se tornam mais difíceis.53 Não é entusiasmanteconsagrar-se a "alcançar a Alemanha", como o presidentefrancês parece oferecer cpmo finalidade de vida a seuscompatriotas. Pois não se trata verdadeiramente de umafinalidade de vida. Esta é deixada à diligência de cadacidadão. Cada qual é entregue a- si mesmo. E cada qualsabe que este si mesmo é muito pOUCO.54

Desta decomposição dos grandes Relatos, que anali-saremos mais adiante, segue-se o que alguns analisam comoa dissolução do vínculo social e a passagem das coletivi-dades sociais ao estado de uma massa composta de átomosindividuais lançados num absurdo movimento browniano.55

Isto não é relevante, é um caminho que nos parece obs-curecido pela representação paradisíaca de uma sociedade"orgânica" perdida.

O si mesmo é pouco, mas não está isolado; é tomadonuma textura de relações mais complexa e mais móvel doque nunca. Está sempre, seja jovem ou velho, homem oumulher, rico ou pobre, colocado sobre os "nós" dos cir-cuitos de comunicação, por ínfimos que sejam.56 É prefe-rível dizer: colocado nas posições pelas quais passam men-sagens de natureza diversa. E ele não está nunca, mesmo ~o mais desfavorecido, privado de poder sobre estas men- \sagens que o atravessam posicionando-o, seja na posiçãode remetente, destinatário ou referente., Pois seu deslo-camento em relação a estes efeitos de jogos de linguagem(compreende-se que é deles que se trata) é tolerável pelomenos dentro de certos limites (e mesmo estes são ins-táveis) e ainda suscitado pelas regulagens, sobretudo pelosreajustamentos através dos quais o 'sistema é afetado afim de melhorar suas performances, Convém mesmo dizer

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que o sistema pode e deve encorajar estes deslocamentos,na medida em que luta contra sua própria entropia e quelima novidade correspondente a um "lance" não esperadoe ao deslocamento correlato de tal parceiro ou de tal grupode parceiros que nele se encontra implicado, pode forne-cer ao sistema este suplemento de desempenho que elenão cessa de requisitar e de consumir .57

Compreende-se atualmente em que perspectiva forampropostos acima os jogos de linguagem como método geralde enfoque. Não pretendemos que toda relação social sejadesta ordem; isto permanecerá aqui uma questão penden.te; mas que os jggos ..de .linguagem~,sejam,~_poru11l1l:lgº,.omínimo de rdação exigido para qu~ hªja "o sQci~clacl~.1.nãoé necessário que I~e recorra a uma robinsonada para quese faça admiti-Io; desde antes do seu nascimento, haja vistao nome que lhe é dado, a criança humana já é colocadacomo referente da história contada por aqueles que a cer-cam58 e em relação à qual ela terá mais tarde de se deslo·car. Ou mais simplesmente ainda: ~_~e~~xínculosocial, enquªntQCnl~§t~~ é 19:o,jQgQ,de ..liugJlagem., o dainterrogação, que posiciona imediatamente aquele que aapresenta, aquele a quem ela se dirige, e o referente queela interroga: esta questão já é assim o vínculo social.

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Por outro lado, numa sociedade em que a componentecomunicacional torna-se cada dia mais evidente, simulta-neamente como realidade e como problema,59 é certo que() aspecto de linguagem (langagier) adquire uma nova im-portância, que seria superficial reduzir à alternativa tra-dicional da palavra manipuladora ou da transmissão uni-lateral de mensagem, por um lado, ou da livre expressãoou do diálogo, por outro lado.

Uma palavra sobre este último ponto. Expondo-seeste problema em termos simples de teoria da comunica-(,"ão, se estaria esquecendo de duas coisas: ~s. !p~~~,-são dotadas de formas e de efeitos bastante diferentes,conforme forem, por exemplo, denotativas, prescritiv,a,s,

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avaliativas, performativa§, etc. É certo que elas não ope-o. ram apenas ria-medida em que comunicam informação. Re-

duzi-Ias a esta função é adotar uma perspectiva que pri-vilegia indevidamente o ponto de vista do sistema e seuúnico interesse. Pois éamáqyina cibernética que funcionapela informação, mas, por exemplo, os fins que lhe sãodados quarido de sua programação provêm de enunciadosprescritivose avaliativos que ela não corrigirá no cursodo funcionamento, por exemplo, a maximização de suasperformances. Masc0tIl0 garantir que a maximização dasperformances constiáll sempre o melhor fim para o siste-.ma social? Os "átomos" que formam a sua matéria são,em todo caso, competentes em relação a estes enunciados,e notada mente a esta questão.

E, por outro lado, a teoria da informação em sua ver-são cibernética trivial deixa de lado um aspecto decisivo,já evidenciado, o aspecto agonístico. Os átomos são colo-cados em encruzilhadas de relações pragmáticas, mas elessão também deslocados pelas mensagens que os atraves-sam, num movimento perpétuo. Cada parceiro de lingua-gem sofre por ocasião dos "golpes" que lhe dizem respeitoum "deslocamento", uma alteração, seja qual for o seugênero, e isto não somente na qualidade de destinatárioe de referente, mas também como remetente. Estes "gol-pes" não podem deixar de suscitar "contragolpes"; ora,todo mundo sabe pela experiência que estes últimos nãosão "bons" se forem apenas reacionais. Pois, então, elesnão são senão efeitos programados na estratégia do adver-sário; eles a realizam e vão assim a reboque de uma modi··ficação da relação das respectivas forças. Daí a importân-cia que existe em agravar o deslocamento e mesmo em \desorientá-lo, de modo a conduzir um "golpe" (um novo \enunciado) que não seja esperado.

O que é preciso para compreender desta maneira asrelações sociais, em qualquer escala que as consideremos,não é somente uma teoria da comunicação, mas uma teo-

ria dos jogos, que inclua a agonística em seus pressupos-[os. E já se adivinha que, neste contexto, a novidade re-querida não é a simples "inovação". Encontrar-se-á juntoa muitos sociólogos da geração contemporânea matériacom que se possa apoiar este enfoque,60 sem falar de lin-güistas ou filósofos da linguagem.

Esta "atomização" do social em flexíveis redes dejogos de linguagem pode parecer bem afastada de umarealidade moderna que se representa antes bloqueada pela

t b ,. 61 I ' 1ar rose urocratlca. nvocar-se-a pe o menos o peso dasinstit~ições que impõem limites aos jogos de linguagem,c aSSIm restringem a inventividade dos parceiros em ma-téria de lances. Isto não nos parece constituir uma difi-culdade particular.

No uso ordinário do discurso, numa discussão entredois amigos, por exemplo, os interlocutores lançam mão detodos os meios, mudam de jogo entre um enunciado eoutro: a interrogação, a súplica, a asserção, o relato sãolançados confusamente na batalha. Esta não é desprovi-da de regra,62 mas sua o regra autoriza e encoraja a maiorflexibilidade dos enunciados.

Ora, deste ponto de vista, uma' instituição diferesempre de uma discussão no que ela requer de pressões1<

suplementares para que os enunciados sejam declaradosadmissíveis em seu seio. Estas pressões operam como fil-tros sobre os poderes de discursos, eles interrompem co-nexões possíveis sobre as redes de comunicação: há coisasque não devem ser ditas. E elas privilegiam certos tiposde enunciados, por vezes um único, cuja predominânciacaracteriza o discurso da instituição: há coisas que devemser ditas e maneiras de dizê-las. Assim: os enunciados decomando nas forças armadas, de prece nas igrejas, de deno-tação nas escolas, de narração nas famílias, de interroga-

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ção nas filosofias, de desempenho nas empresas ... A bu-rocratização é o limite extremo desta tendência.

Contudo, esta hipótese sobre a instituição é aindamuito "pesada"; ela parte de uma visão "coisista" do ins-tituído. Hoje, sabemos que o limite que a instituição opõeao potencial da linguagem em "lances" nunca é estabele-cido (mesmo quando ele o é formalmente).63 Ele mesmo é,antes, o resultado provisório e a disputa de estratégias delinguagem travadàs dentro e fora da instituição. Exemplos:o jogo de experimentação sobre a linguagem (a poética)terá seu lugar numa universidade? Pode-se contar histó-rias no conselho de ministros? Reivindicar numa caserna?As respostas são claras: sim, se a universidade abrir seusateliers de criação; sim, se os superiores aceitarem deli-berar com os soldados. Dito de outro modo: sim, se oslimites da antiga instituição forem ultrapassados.64 Reci-procamente, dir-se-á que eles não se estabilizam a não serque deixem de ser um desafio.

Acreditamos que é neste espírito que convém abor-dar as instituições contemporâneas do saber.

M. Albert, comlssano do Plano francês, escreve: "O Plano é umarepartição de estudos do governo ( ... ). I! também uma grande en-cruzilhada da nação, encruzilhada onde se agitam idéias, onde :econfrontam pontos de vista e onde se formam as mudanças ( ... ). Naopodemos fic-ar ·sozinhos. I! preciso que outros nos esclareçam ( ... )"(L'Expansion, novembre, 1978). Ver, sobre o problema da declsao,G. Gafgen, Theorie der wissenschaftlichen Entschiedung, Tübing.en,1963; L. Sfetz, Critique de Ia décision (1973), Presses de Ia FondatlOnnatiWlale des sciences politiques, 1976.Que se observe o declínio de nomes tais como o de Stalin, Mao, Castrocomo epônimos da revolução há vinte anos. Que se pense no avilta-mento da imagem do presidente dos Estados Unidos após o casoWatergate.E um tema central de R. Musil, Der Mann ohne Eigenschaften (1930-1933), Humburgo. Rowohlt, t.f. Jacottet, L'homme sans qualités, Seuil,1957. Num comentário livre, J. Bouveresse salienta a afinidade deste

tema de "derrelição" do "si mesmo" com a "crise" das ciências noinício do século XX e com a epistemologia de E. Mach; cita os se-guintes exemplos: "Considerando-se em particular o estado da ciên-cia, um homem não é feito senão do que se diz que ele é ou quese faz com o que ele é ( ... ). I! um mundo no qual os eventos vividostornam-se independentes do homem ( ... ). I! um mundo do futuro, omundo daquilo que acontece sem que isto afete ninguém, e sem queninguém seja responsável" ("La problématique du sujet dans L'hommesans qualités", Noroit [Arras] 234 & 235 [décembre 1978 - janvier1979]; o texto publicado não foi revisto pelo autor).

55. J. Boudrillard, A /'ombre des majorités silencieuses ou Ia fin du socialUtopie, 1978. "

56. I! o vocabulário da teoria dos sistemas; por exemplo, Ph. Nemo,loc. cit.: "Representamo-nos a sociedade como um sistema, no sen-tido da cibernética. Este sistema é uma rede de comunicações comencruzilhadas para onde a comunicação converge e de onde é redis-tribuída ( ... )."

57. Um exemplo dado por J .-P. Garnier, op. cit., 93: "O Centro deinformação sobre a inovação social, dirigido por H. Dougier e F.B1och-Laine tem por papel recensear, anali"sar e difundir informaçõessobre as experiências novas de vida cotidiana (educação, saúde, jus-tiça, atividades culturais, urbanismo e arquitetura, etc.), Este bancode dados sobre as "práticas alternativas" presta seus serviços aos ór-gãos estatais encarregados de esforçar-se para que a "sociedade civil"permaneça uma sociedade civilizada: Comissariado do Plano Secre-taria~o de ação social, D.A.T.A.R" etc,". '

58. S. Freud acentuou particularmente esta forma de "predestinação".Ver Marthe Robert, Roman des origines, origine du roman, Grasset.1972.

59. Ver a obra de M. Serres, notadamente os Hermes I a IV, Minuit.1969-1977.

60. Po~ exemplo, E. Goffman, The PresentatiQn of Self in El'eryda)' Life,Edmburgh, U. of Edinburgh P., 1956, t.f. Accardo, La mise en scenede Ia vie quotidienne (I. La présentalion de soi), Minuit, 1973: A.W .. Gouldner, op. cit., capo 10; A. Touraine, La l'oix et le regard.SeUll, 1978; ido et ai .. Lutle éludiante, Seuil, 1978; M. Callon, "Socio-Iogie des techniques?", Pandore 2 (février 1979), 28-32; P, Watzlawicket ai., op. cito

Ver aci~a a nota 41. O .tema da burocratização geral como futurodas SOCiedades. m?dernas foi desenvolvido inicialmente por B. Rizzo.La BureaucrallsallOn du monde. Paris, 1939.

Ver H. P. Grice, "Logic and Conversation" in P. Cole & J. r. Mor-gan ed., Speech Acts lIl, Synlax and Semantics, N.Y., Academic P..1975, 59-82.

Para um enfoque fenomenológico do problema, ver em M. Merleau-Ponty (CI, Lefort ed.), Résumés de cours, Gallimard, 1968, o curso doano ~95~ 19?5. Para um enfoque psicossociológico, R. Loureau, L'ana-Iyse IIlstltutlOnne/le, Minuit, 1970.

61.

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M. Cal1on, loco cit., 30: "A sociológica é o movimento pelo qual osatores constituem e instituem diferenças, fronteiras entre o que é so-cial e o que não o é, o que é técnico e não o é, e o que é imaginárioe o que é real: o traçado destas fronteiras é uma disputa e nenhumconsenso, salvo em caso de dominação. é realizáve1." Comparar como que A. Touraine chama de "sociologia permanente", La voix et leregard, loe. cito

,A ACEITAÇÃO sem exame de um conceito instrumen-tal do saber nas sociedades mais desenvolvidas, fizemosanteriormente (seção 1) duas objeções. O saber não é aciência, sobretudo em sua forma atual; e esta, longe depoder ocultar o problema de sua legitimidade, não podedeixar de apresentá-lo em toda sua amplitude, que nãoé menos sociopolítica que epistemológica. Precisemos, deinício, a natureza do saber narrativo; este exame permi-tirá, por comparação, discernir melhor pelo menos certascaracterísticas da forma de que se reveste o saber cientí-fico na sociedade contemporânea. Ajudará também a com-preender como se considera hoje, e como não se consideramais, a questão da legitimidade.

O saber em geral não se reduz à ciência, nem mesmoao conhecimento. O conhecimento seria o conjunto dosenunciados que denotam ou descrevem objetos,65 exc1uindo-se todos os outros enunciados, e susceptíveis de serem de-clarados verdadeiros ou falsos. A ciência seria um sub-conjunto do conhecimento. Feita também de enunciadosdenotativo~, ela imporia duas condições suplementares àsua aceitabilidade: que os objetos aos quais eles se refe-rem sejam acessíveis recursivamente, portanto, nas condi-ções de observação explícitas; que se possa decidir se cadallm destes enunciados pertence ou não pertence à lingua-gem considerada como pertinente pelos experts.66

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Mas pelo termo saber não se entende apenas, é cla-ro, um conjunto de enunciados denotativos; a ele mistu-ram-se as idéias de saber-fazer, de saber-viver, de saber-escutar, etc. Trata-se então de uma competência que exce-de a determinação e a aplicação do critério único de ver-dade, e que se estende às determinações e aplicações doscritérios de eficiência (qualificação técnica), de justiça e/oude felicidade (sabedoria ética), de beleza sonora, cromáti-ca (sensibilidade auditiva, visual), etc. Assim compreen-dido, o saber é aquilo que torna ,alguém capaz de proferir"bons" enunciados denotativos, mas também "bons"enunciados prescritivos, avaliativos... Não consiste nu-ma competência que abranja determinada espécie de enun-ciados, por exemplo, os cognitivos, à exclusão de outros.Ao contrário, permite "boas" performances a respeito devários objetos de discursos: a: se conhecer, decidir, ava-liar, transformar ... Daí resulta uma de suas principais ca-racterísticas: coincide com uma "formação" considerávelde competências, é a forma única encarnada em um sujeitoconstituído pelas diversas espécies de competência que ocompõem.

Uma outra característica a assinalar é a afinidade dedeterminado saber com os costumes. Com efeito, o queé um "bom" enunciado prescritivo ou avaliativo senãouma "boa" performance em matéria denotativa ou técni-ca? Uns e outros são julgados "bons" porque estão deacordo com os critérios pertinentes (respectivamente, dejustiça, beleza, verdade e eficiência) admitidos no meioformado pelos interlocutores daquele que sabe (sachant).Os primeiros filósofos67 chamaram de opinião este modode legitimação dos enunciados. O consenso que permitecircunscrever tal saber e discriminar aquele que sabe da-quele que não sabe (o estrangeiro, a criança) é o que cons-titui a cultura de um pOVO.68

Este breve sumário acerca do que o saber pode sercomo formação e como cultura é baseado em descrições

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etnológicas.69 Mas uma antropologia e uma literatura vol-tadas para as sociedades em desenvolvimento rápido, de-tectam-lhe a persistência pelo meI10s em certos setores.70

A própria idéia de desenvolvimento pressupõ~ o horizon-te de um não-desenvolvimento, supondo-se que as diver-sas competências estão envolvidas' na unidade de uma tra-dição e não se dissociam em qualificações que seriam ob-jeto de inovações, debates e exames específicos. Esta opo-sição não implica necessariamente uma mudança de na-tureza na situação do saber entre "primitivos" e "civili-zados".71 Ela é compatível com a tese da identidade for-mal entre "pensamento selvagem" e "pensamento cien-tífico",72 e mesmo com aquela, aparentemente contráriaà precedente, de uma superioridade do saber que vem doscostumes sobre a dispersão contemporânea das compe-tências.73

Pode-se dizer que todos os observadores, seja qualfor o cenário que eles proponham para dramatizar e com-preender o distanciamento entre este estado habitual(coutumier) do saber e aquele que é o seu na idade dasciências, estão de acordo quanto a um fato: a preeminên-cia da forma narrativa na formulação do saber tradicio-nal. Uns tratam esta forma em si mesma,74 outros a vêemcomo a vestimenta em diacronia dos operadores estrutu-rais que, segundo eles, constituem propriamente o saberque encontra-se em jogo;75outros ainda lhe dão uma inter-pretação "econômica" no sentido freu<;liano.76Não é pre-ciso reter de tudo isto senão o fato da forma narrativa.O relato é a forma por excelência deste saber, e isto emmuitos sentidos.

Primeiro, estas histórias populares contam o que sepode chamar de formações (Bildungen) positivas ou ne-gativas, isto é, os sucessos ou os fracassos que coroam astentativas dos heróis; e estes sucessos ou fracassos ou dãosua legitimidade às instituições da sociedade (função dosmitos), ou representam modelos positivos ou negativos (he-

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róis felizes ou infelizes) de integração às instituições esta-belecidas (lendas, contos). Estes relatos permitem então,por um lado, definir os critérios de competência que sãoos da sociedade nas quais eles são contados, e, por outrolado, avaliar, graças a estes critérios, as performances queaí se realizam, ou podem se realizar.

Em segundo lugar, a forma narrativa, diferentemen-te das formas desenvolvidas dos discursos de saber, admi-te nela mesma uma pluralidade de jogos de linguagem:encontram facilmente lugar no rel,ato dos enunciados de-notativos, que versam, por exemplo, sobre o céu, as esta-ções, a flora e a fauna; dos enunciados deânticos que pres-crevem o que deve ser feito quanto a estes mesmos refe-rentes ou quanto ao parentesco, à diferença dos sexos, àscrianças, aos vizinhos, aos estrangeiros, etc.; dos enuncia-dos interrogativos que estão implicados, por exemplo, nosepisódios de desafio (responder a uma questão, escolherum elemento em um lote); dos enunciados avaliativos,etc. As competências cujos critérios o relato fornece ouaplica encontram-se aí misturadas umas às outras num teci-do cerrado, o do relato, e ordenadas numa perspectiva deconjunto, que caracteriza este gênero de saber.

Examinaremos um pouco mais longamente uma ter-ceira propriedade, relativa à transmissão destes relatos.Sua narração obedece freqüentem ente a regras que lhefixam a pragmática. Isto não significa que por instituiçãodeterminada sociedade confere o papel de narrado r a talcategoria de idade, sexo, grupo familiar ou profissional.Queremos falar de uma pragmática dos relatos popularesque lhe é, por assim dizer, intrínseca. Por exemplo, umcontador de histórias cashinahua77 sempre começa sua nar-rativa por uma forma fixa: "Eis aqui a história de ... ,tal como sempre a ouvi. Eu vou contá-Ia por minha vez,escutai." E ele a encerra com uma outra fórmula igual-mente invariável: "Aqui termina a história de ... Aquele

que a contou a vocês é. .. (nome cashinahua), entre osbrancos. " (nome espanhol ou português).,,78. Uma análise sumária desta dupla instrução pragmá-

tlca revela o seguinte: o narrador não pretende marlÍfestarsua competência em contar a história, mas apenas pelofato de dela ter sido um ouvinte. O narratário atual ouvin-do-o, eleva-se potencialmente à mesma autoridade. De-clara-s.e o relato como exposto (mesmo se a performancenarratIva for fortemente inventiva) e exposto "desde sem-pre": :~u herói, que é cashinahua, foi então, ele também,narratano e talvez narrador deste mesmo relato. Devidoa esta similitude de condição, o próprio narrador atual podeser o herói de um relato, como o foi o Antigo. Com efeito,ele o é, necessariamente, pois leva um nome revelado aofinal de sua narração, que lhe foi atribuído' conforme orelato canânico que legitima a distribuição cashinahua dosnomes de família (patronímicos).

A regra pragmática ilustrada por este exemplo nãoé evidentemente universalizáve1.79 Mas ela fornece um in-dicativo de uma propriedade geralmente atribuída ao sa-ber tradicional: os "postos" narrativos (remetente desti-natário, herói) são de tal modo distribuídos, que o' direitode ocupar um deles, o de remetente, fundamenta-se sobreo duplo fato de ter ocupado o outro, o de destinatário, ede ter sido, pelo nome que se tem, já contado por umrelato, quer dizer, colocado em posição de referente diegé.tico de outras ocorrências narrativas.80 O saber que estasnarrações veiculam, longe de se ater exclusivamente àsfunções de enunciação, determina assim ao mesmo tempoo que é preciso dizer para ser entendido, o que é precisoescutar pa:-a poder falar e o que é preciso representar (so-bre a cena da realidade diegética) para poder se constituirno objeto de um relato.

Os atos de linguagem81 que são pertinentes para estesaber não são portanto efetuados somente pelo interIo-cutor, mas também pelo ouvinte e ainda pelo terceiro do

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qual se fala. O saber que se desprende de um tal dispo-sitivo pode parecer "compacto", em oposição àquele quechamamos de "desenvolvido". Deixa perceber claramentecomo a tradição dos relatos é ao mesmo tempo a dos cri-térios que definem uma tríplice com'petência - saber-dizer, saber-ouvir, saber-fazer - em que se exercem asrelações da comunidade consigo mesma e com o que acerca. O que se transmite com os relatos é o grupo deregras pragmáticas que constitui o vínculo social."

Um quarto aspecto deste saber narrativo mereceriaser examinado com cuidado. Trata-se de sua incidênciasobre o tempo. A forma narrativa obedece a um ritmo,é a síntese de um metro que marca o tempo em períodosregulares e com um acento que modifica o comprimentoou a amplitude de algumas dentre elas.82 Esta propriedadevibratória e musical torna-se evidente na execução ritualde alguns contos cashinahua: transmitidos nestas condi-ções iniciáticas, de uma forma absolutamente fixa, numalinguagem que torna obscuros os desregramentos lexicaise sintáticos que se lhe inflige, são cantados em intermi-náveis melopéias.83 Estranho saber, dir-se-á, que nem aomenos se faz compreender pelos jovens a quem se dirige!

É entretanto um saber muito comum, o das cantigasinfantis, aquele que as músicas repetitivas em nossos diastentaram reencontrar ou pelo menos dele se aproximar.Apresenta uma propriedade surpreendente: à medida que _o metro prevalece sobre o acento nas ocorrências sonoras,faladas ou não, o tempo deixa de ser o suporte da memo-rização e torna-se uma cadência imemorial que, na ausên-cia de diferenças observáveis entre os períodos, impedede enumerá-los e os relega ao esquecimento.84 Se interro-garmos a forma dos ditos, provérbios e máximas que sãocomo que pequenos fragmentos de relatos possíveis, oumatrizes de relatos antigos e que continuam ainda a cir-cular em certos patamares do edifício social contemporâ-neo, reconheceremos na sua prosódia a marca desta bizarra

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temporalização que se choca em cheio com a regra de ourodo nosso saber: não esquecer.

Ora, deve haver uma congruência entre, por um lado,esta função letal do saber narrativo e, por outro, entre asfunções de formação de .critérios, de unificação de com-petências e de regulagem social que citamos mais acima.A título de imaginação simplificadora, pode-se supor queuma coletividade que faz do relato a forma-chave da com-petência, não possui, contrariamente a toda expectativa,necessidade de poder lembrar-se do seu passado. Ela en-contra a matéria de seu vínculo social não apenas na sig-nificação dos relatos que ela conta, mas no ato de recitá-los. A referência dos relatos pode parecer que pertence aotempo passado, mas ela é, na realidade, sempre contempo-rânea deste ato. É o ato presente que desdobra, cada vez,a temporalidade efêmera que se estende entre o Eu ouvidizer e o Vocês vão ouvir.

O importante nos protocolos pragmáticos desta espé-cie de narração é que eles marcam a identidade de prin-cípio de todas as ocorrências do relato. Ele pode ser irre-levante, o que acontece freqüentemente, mas não .se devedissimular o que existe de humor ou de angústia no res-peito desta etiqueta. Em suma, a importância é dada àcadência métrica das ocorrências do relato e não à dife-rença de tom de cada performance. É assim que se podechamar esta temporalidade simultaneamente de evanescen-te e imemorial.85

Enfim, assim como não tem necessidade de se lem-brar do seu passado, uma cultura que concede a preemi-nência à forma narrativa, sem dúvida não tem mais neces-sidade de procedimentos especiais para autorizar seus re-latos. Mal se imagina, de início, que ela isola a instâncianarrativa das outras para lhe conceder um privilégio napragmática dos relatos; que em seguida ela se interrogasobre o direito que o narrado r , assim desconectado donarratário e da diegese, teria de contar o que ele conta;

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. enfim, que ela empreende a análise ou a anamnesede sua própria legitimidade. Imagina-se ainda menos queela possa atribuir a um incompreensível sujeito da narra-ção a autoridade sobre os relatos. Eles possuem esta auto-ridade por si mesmos. O povo não é, num sentido, senãoo que os atualiza, e àinda o faz não somente contando-os,mas também ouvindo-os e fazendo-os contar por elés, istoé, "encenando-os" em suas instituições: assim, tanto colo-cando-se nos postos do narratário e da diegese, como donarrador.

Existe assim uma incomensurábilidade entre a prag-mática narrativa popular, que é por si legitimante, e estejogo de linguagem conhecido do Ocidente que é a ques-tão da legitimidade ou, antes, a legitimidade como refe-rente do jogo interrogativo. Os relatos, já o vimos, deter-minam os critérios de competência e/ou ilustram a sua apli-cação. Eles definem assim o que se tem o direito de dizere de fazer na cultura e, como também eles são uma partedesta, encontram-se desta forma legitimados.

65. Aristóteles circunscreve o objeto do saber definindo o que ele chamade apophantikos: "Todo discurso significa alguma coisa (sémantikos),mas todo discurso não é denotativo (apophantikos): só o é aquele aoqual cabe dizer do verdadeiro ou falso. Ora, isto não se produz emtodos os casos: a prece, por exemplo, é um discurso, mas ela não énem verdadeira nem falsa" (Péri herméni?ias 4, 17 a).

66. Ver K. Popper, 'Logik der Forsehung, Viena, Springer, 1935; d. Thys·sen-Rutten & Devaux, La logique de Ia déeouverte scientifique, Payot,1973; id., "Normal Science and its Dangers", in I. Lacatos e A. Mus-grave ed., Criticism and the Growth of Knowledge, Cambridge (G.B.)U.P., 1, 1970.

67. Ver Jean Beaufret, Le poeme de Parménide, P.U.F., 1955.68. No sentido de Bildung ainda (inglês: eulture), tal como foi difundido

pelo culturalismo. O termo é pré-romântico e romântico; d. o Volks-geist de Hege1.

69. Ver a escola culturalista americana: C. DuBois, A. Kardiner, R. Lin-ton, M. Mead.

76.

. 77.

78.79.

I 80.

81.82.

83.

84.

85.

Ver o surgimento dos folclores europeus a partir do final do séculoXVIII em .relação com o romantismo: estudos dos irmãos Grimm, deVuk Karadlc (contos populares sérvios). ete.

~ra esta, sumariamente. a tese de L. Léyy-Bhrul, La mentalité primi-tive. Alcan. 1922.

CI. Lévi·Strauss, La pensée sauvage. Plon, 1962.R. Jaulin. La paix b/anche, Seuil, 1970.

VI.. ~ropp. "Morphology of the Folktale". International Journal of Lin-gUlstlCS.24. 4 (october 1958); d. M. Derrida. Todorov & Kahn, Mor-ph%gle elu conte. Paris. SeuiJ. 1970.

CI. Lévi·Strauss. "La structure des mythes" (1955), in Anthropologiestruetura/e. Plon, 1958; id .. "La structure de Ia forme. Réflexions SUl'un ouvrage de Vladimir Propp". Cahiers de I'Institut de scienee écono-mique appliquée 99. série M. 7 (mars 1960).

Geza Roheim. Psychoanalysis anel Anthrop%gy. N.Y., 1950; t.f., Psy·chanalyse el antropologie. Paris. 1967.

André M. d·Ans. Le dit eles vrais hommes. 10/18, 1978.Ibid., 7.

Nós a m.al~ivemos por causa da "etiqueta" pragmática que envolvea ~ransmlssao dos relatos e da qual o antropólogo nos informa comcUidado. Ver P. Clastres. Le grand Parler. Mvthes et chants sacrésdes Jndiens Guarani. SeuiJ. 1974. .

Para uma narratologia que faz intervir a dimensão pragmática, verG. Genette. Figures ITl, Seuil. 1972.Cf. nota 34.

A relação metro/acelito que faz e desfaz o ritmo está no centro dareflexão hegeliana sobre a especulação. Ver Phénomenologie ele I'Es-prit. Prefácio, § IV.

Estas informações são devidas à cortesia de A. M. d'Ans, a quemagradeço.

Ver as an~lises de D. Charles. Le temps et Ia voix, Delarge. 1978. Ede Domllllque Avron. L'appareil musical, 10/18. 1978.Ver Mircea Eliade, Le mvthe de l'éternel retour' Archétypes et répéti.tíons, GaJ1imard, 1949.'· .

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dições. Antes disto ele não poderá ser consideradó comoalguém que efetivamente conheça a matéria.

Em terceiro lugar, o referente, a trajetória dos pla-netas .da qual fala Copérnico, supõe-se "expressa" peloenuncIado conforme o que ela é. Mas, como não se podesaber o que é senão por enunciados da mesma ordemque os de Copérnico, a regra da adequação constitui umproblema: o que eu digo é verdadeiro porque o provo;mas o que prova que a minha prova é verdadeira?

A solução científica desta dificuldade consiste naobservância de uma dupla regra. A primeira é dialéticaou mesmo retórica de tipo judiciário:87 é referente o querode fornecer matéria comprobatória no debate. Não éISSO:posso provar porque a realidade é como eu a digo;mas, quando posso 'provar, é permitido pensar que a reali-

.dade é como eu a digo.88 A segunda é metafísica: o mesmoreferen~e ,~ão pod~ forn~cer uma pluralidade de provascontradltorIas ou mconsIstentes; ou ainda: "Deus" nãoé falacioso.89

Esta dupla regra sustenta o que a ciência do séculoXIX cha~a verificação e a do século XX, falsificação.90

~la ~e~mIte dar. ao debate dos parceiros, remetente e des-tmatarIO, o hOrIzonte do consenso. Todo consenso não éin,dicativo de verdade; mas supõe-se que a verdade de umenunciado não pode deixar de suscitar o consenso.

Is~o quanto à investigação. Vê-se que ela faz apeloao ensmo como seu complemento necessário. Pois é ne-cessário ao cientista um destinatário que possa, por suavez, ser um remetente, que seja um parceiro. Senão averificação do seu enunciado é impossível por falta de umdeba~e c~ntraditório, que a não·renovação das competênciastermmarIa por tornar impossível. E não é somente a ver-dade do seu enunciado mas sua própria competência queestá em jogo neste debate; pois a competência não é nuncaadquirida, ela depende do enunciado proposto ser ou nãoconsiderado discutível numa seqüência de argumentações

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TENTEMOS caracterizar, mesmo que sumariamente, apragmática do saber científico tal como ela emerge da con-cepção clássica deste saber. Distinguir-se-á o jogo da pes-quisa e o do ensino.

Copérnico declara que a trajetória dos planetas é cir-cular.86 Que a proposição seja verdadeira ou falsa, ela com-porta um conjunto de tensões e cada uma influencia' sobrecada um dos postos pragmáticos que ela coloca em jogo- remetente, destinatário, referente. Estas "tensões" sãotipos de prescrições que regulam a aceitabilidade do enun-ciado enquanto "de ciência",

Inicialmente, supõe-se que o remetente diz a verda-de a propósito do referente, a trajetória dos planetas. Oque isto significa? Que supõe-se seja ele capaz de, por umlado, reunir as provas do que diz e, por outro lado, refu-tar qualquer enunciado contrário ou contraditório versan-do sobre o mesmo referente.

Em seguida, supõe-se que o destinatário pode con-ceder validamente o seu consentimento (ou recusá-ia) doenunciado que ele ouve. Isto implica que ele mesmo épotencialmente um remetente pois, quando formula seuassentimento ou o seu dissentimento, será submetido àmesma dupla exigência de provar ou refutar que o reme-tente atual, Copérnico. Supõe-se assim que ele reúna 'po-tencialmente as mesmas qualidades que este: ele é seu par.Mas não o saberá, a não ser quando falar, e nestas con-

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(' de refutações entre pares. A verdade do enunciado e acompetência do enunciador são assim submetidas ao assen-timento da coletividade de iguãis em competência. É pre-ciso, portanto, formar iguais.

A didática assegura esta reprodução. Ela é diferentedo jogo dialético da pesquisa. Resumindo, seu primeiropressuposto é que o destinatário, o estudante, não sabe oque sabe o remetente; com efeito, é por esta razão queexiste algo a se aprender. Seu segundo pressuposto é ode que ele pode aprender e tornar-se um expert da mesmacompetência que seu mestre.91 Esta dupla exigência supõeuma terceira: existem enunciados a respeito dos quais atroca de argumentos e a administração das provas queformam a pragmática da pesquisa são consideradas C(lmotendo sido suficientes e que podem assim ser transmitidasde saída a título de verdades indiscutíveis no ensino.

Em outras palavras, ensina-se o que se sabe: eis oexpert. Mas, à medida que o estudante (o destinatárioda didática) melhora sua competência, o expert pode co-locá-Ia a par do que ele não sabe mas busca saber (se pelomenos o expert for, por outro lado, um pesquisador). Oestudante é assim introduzido na dialética dos pesquisa-dores, isto é, no jogo da formação do saber científico.

Se se compara esta pragmática à do saber narrativo,notar-se-ão as seguintes propriedades:

(' cientista se se pode proferir enunciados verificáveis ouLtlsificáveis a respeito de referentes acessíveis aos experts.

2 ~ Este saber encontra-se assim isolado dos outrosjogos de linguagem cuja combinação forma o vínculo so-cial. Em relação ao saber científico, elé não é mais umacomponente imediata e partilhada como o é o saber narra-tivo. É uma componente indireta, porque torna-se umaprofissão e dá lugar a instituições, sendo que nas socie-dades modernas os jogos de linguagem se reagrupam soba forma de instituições animadas pelos participantes quali-ficados, os profissionais. A relação entre o saber e a socie-dade (quer dizer, entre o conjunto dos participantes naagonística geral, enquanto eles não são profissionais daciência) exterioriza-se. Um novo problema aparece, o darelação entre instituição científica e sociedade. Poderia oproblema ser resolvido pela didática, por exemplo, s~gundo() pressuposto de que todo átomo social pode adquirircompetência científica?

1 - O saber científico exige o isolamento de umjogo de linguagem, o denotativo; e a exclusão dos outros. Ocritério de aceitabilidade de um enunciado é o seu valor deverdade. Encontram-se com certeza outras classes de enun-ciados, como a interrogação ("Como explicar que ... ?")e a prescrição ("Seja uma série enumerável de elemen-tos ... "); eles são apenas suportes na argumentação dialé-tica; esta deve terminar em um enunciado denotativo.92

Assim, é-se um erudito (neste sentido) se se pode pro-ferir um enunciado verdadeiro a respeito de um referente;

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3 ~ No seio do jogo da pesquisa, a competênciarL·querida versa unicamente sobre a posição do enuncia-dor. Não existe competência particular como destinatário(ela não é exigível senão na didática: o estudante deveser inteligente). E não existe nenhuma competência comoreferente. Mesmo se se trata de ciências humanas, o refe-rente que é então determinado aspecto do comportamentohumano, é em princípio colocado na exterioridade em re-lação aos parceiros da dialética científica. Não existe aqui,como no narrativo, algo como saber ser o que o saberdiz que se é.

4 - Um enunciado de Clencia não extrai nenhumavalidade do que é relatado. Mesmo em matéria de peda-

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gogia, não é ensinado senão enquanto é sempre presen. ,temente verificável por argumentação e prova. Em si, nãoestá nunca ao abrigo de uma "falsificação" .93 Desta ma-neira, o saber acumulado em enunciados aceitos anterior-mente pode sempre ser recusado. Mas, ao contrário, todonovo enunciado, se for contraditório em relação a umenunciado anteriormente admitido que verse sobre o mesmoreferente, não poderá ser aceito como válido a não ser querefute o enunciado precedente com argumentos e provas.

Não se poderia assim julgar nem sobre a existência11('111 sobre o valor do narrativo a partir do científico, nem() inverso: os critérios pertinentes não são os mesmos p~alllll ou outro. Há, apenas, que se admirar com esta varie-dad~ de espécies discursivas, como se faz com as espéciesvegdais e animais. Lamentar-se sobre "a perda do sentido"lIa pós-modernidade seria ~epl<;>rarque o saber não sejaIllais principalmente narrativo. E uma inconseqüência. Umalllllra não é menor: a de querer derivar ou engendrar (por()p~radores tais como o desenvolvimento, etc.) o saber cien-Iífico a partir do saber narrativo, como se este contivesseaquele em estado embrionário.

No entanto, como as espécies vivas, as espécies delinguagem têm relações entre elas, e estas relações estãolonge de ser harmoniosas. A outra razão que pode justifi-car o relato sumário das propriedades do jogo de lingua-I',em da ciência refere-se precisamente à sua relação com() saber narrativo. Dissemos que este último não valoriza aqlll$tão de sua própria legitimação; ele autoriza-se a siIIl~smo pela pragmática de sua transmissão sem recorrer;'1 argumentação e à administração de provas. Por isso;tcrcscenta à sua incompreensão dos problemas do discursocientífico uma tolerância determinada a seu respeito: con-sidera-o de início como uma variedade na família das cul-(mas narrativas.95 O inverso não é verdadeiro. O cientistai 11 terroga-se sobre a validade dos enunciados narrativos econstata que eles não são nunca submetidos à argumen-Iação e à prova.96 Ele os classifica conforme outra menta-lidade: selvagem, primitivo, subdesenvolvido, atrasado,alienado, feito de opiniões, de costumes, de autoridade,de preconceitos, de ignorâncias, de ideológias. Os relatoss:io fábulas, lendas, mitos bons para as mulheres e ascrianças. Nos melhores casos, tentar-se-á fazer penetrar aluz neste obscurantismo, civilizar, educar, desenvolver.

Esta relação desigual é um efeito intrínseco das re-I',ras próprias a cada jogo. Conhecem-se os seus sintomas.

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5 - O jogo de clencia implica então uma tempo-ralidade diacrônica, isto é, uma memória e Bm projeto.Supõe-se que o remetente atual de um enunciado cientí-fico tenha conhecimento dos enunciados precedentes quedizem respeito a seu referente (bibliografia) e não pro-ponha um enunciado sobre este mesmo assunto a não serque ele difira dos enunciados precedentes. O que se cha-mou de "acento" de cada performal1ce é aqui privilegiadoem relação ao "metro", e ao mesmo tempo à função polê-mica deste jogo. Esta diacronia supondo a memorizaçãoe a pesquisa do novo delineia em princípio um processocumulativo. O "ritmo" deste, que é a relação entre acentoe metro, é variáve1.94

Estas propriedades são conhecidas. Todavia, elas me-recem ser lembradas por duas razões. De início, o para-lelismo da ciência com o saber não científico (narrativo)faz compreender, pelo menos sentir, que a existência daprimeira é tão necessária quanto a da segunda, e não me-nos. Uma e outra são formadas por conjuntos de enun-ciados; estes são "lances" apresentados por jogadores noquadro das regras gerais; estas regras são específicas· decada saber, e os "lances", considerados bons aqui ou ali,não podem ser da mesma espécie, salvo por acaso.48

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É toda a história do imperialismo cultural desde os iní-cios do Ocidente. É importante reconhecer o seu teor,que o distingue de todos os outros: está comandado pelaexigência de legitimação.

A FUNÇAO NARRATIVA E A LEGITIMAÇAODO SABER

86. o exemplo é tirado de Frege, "Ueber Sinn und Bedeutung" (1892);t. ing. "On Sense and Reference", Philosophical Writings, Oxford,Blackwell, 1960.

87. Br. Latour, "La rhétorique du discours scientifique", Actes de Ia re-cherche en sciences sociales 13 (mars 1977).

88. G. Bachelard, Le nouvel esprit scientifique, P.U.F., 1934.89. Descartes, Méditations métaphysiques 1641, Meditação IV.90. Ver por exemplo K. Hempel, Philosophy of Natural Science, En-

glowood Cliffs (N.J.), Prentice Hall, 1966; t.f. Saint·Sernin, Elémentsd'epistémologie, Armand Colin, 1972.

91. Não se pode abordar aqui as dificuldades que esta dupla pressuposi-ção suscita. Ver Vincent Descombes, L'inconscient malgré lui, Minuit,1977.

I~~SI'E problema da legitimação não é mais consideradoII()je como uma fraqueza no jogo de linguagem da ciência.Sel"ia mais justo dizer que ele é por si mesmo legitimadonlll1ü problema, isto é, como instrumento heurístico. Masesla maneira de tratá-Ia, por inversão, é recente. Antesde se chegar a ela (isto é, ao que alguns chamam de posi-I ivismo), o saber científico pesquisou outras soluções. É(Ic se admirar que por tanto tempo estas soluções nãotenham podido evitar o recurso a processos que, aberta-llllonte ou não, relacionam-se ao saber narrativo.

Este retorno do narrativo ao não-narrativo, sob umalorma ou outra, não deve ser considerado como ultra-passado para sempre. Uma prova grosseira: que fazem oscientistas chamados à televisão, entrevistados nos jornais,após alguma "descoberta"? Eles contam a epopéia de umsaher que, entretanto, é totalmente não-épica. Satisfazem:Issim às regras do jogo narrativo, cuja pressão não so-IlIente junto aos usuários da mídia, mas em seu foro inte-rior, permanece considerável. Ora, um fato como este não(; trivial nem secundário: diz respeito à relação entre sa-Iler científico e saber "popular" ou o que disto resta. OI':slado pode despender muito para que a ciência possafigurar como uma epopéia: através dela ele ganha credi-hilidade, cria o assentimento público de que seus próprios(kcísores têm necessidade.97

92. Esta observação mascara uma dificuldade importante, que apareceriatambém no exame da narração: a que concerne a distinção entre jogode linguagem e gênero de discurso. Não a estudaremos aqui.

93. No sentido anteriormente indicado na nota 90.94. Th. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, Chicago U.P.,

1962; t.f. La structure des révolutions scientifiques, Flammarion, 1972.95. Cf. a atitude das crianças nas suas primeiras aulas de ciências, ou a

maneira como os aborígines interpretam as explicações dos etnólogos(ver Lévi-Strauss, La pensée sauvage, loco cit., cano 1, "La science duconcret"). .

96. É assim que Métraux diz a Clastres: "Para poder estudar uma socie-dade primitiva, é preciso que ela já esteja um pouco decomposta."É preciso, com efeito, que o informador indígena possa examiná-Iocom o olho de umetnólogo, colocando-se a questão do funciona-mento de suas instituições e, portanto, de sua legitimidade. Refletindosobre seu fracasso junto à tribo dos Aché, Clastres conclui: "E porisso, num mesmo movimento, os Aché recebiam os presentes que nãopediam e recusavam as tentativas de diálogo porque estavam suficien·temente fortes para precisar disto: começaríamos a falar quando elesestivessem doentes." (Citado por M. Cartry, "Pierr,e Clastre", Libre4 [1978].)

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Não está assim excluído que o recurso ao narrativoseja inevitável; ao menos na medid~ em que o jogo. de',linguagem da ciência zele pela verdade dos seus enuncia-dos e que ele não possa legitimá-Ia por seus próprios meios.Neste caso, seria preciso reconhecer uma necessidade dehistória irredutível, compreendendo-a, como já esboçamos,não como uma necessidade de recordar-se e de projetar(necessidade de historicidáde; necessidade de "acento"),mas, ao contrário, como uma necessidade de esquecimento(necessidade de "metro") (seção 6).,

É no entanto prematuro chegar a este ponto. Master-se-á presente ao espírito, no correr das consideraçõesseguintes, ,a idéia de que as soluções aparentemente emdesuso que puderam ser dadas ao problema da legitimaçãonão o são em princípio, mas 'Somente nas expressões quetomaram, e que não é de se espantar ao vê-Ias persistirhoje sob outras formas. Nós mesmos não temos necessi-dade, neste momento, de preparar um relato do sabercientífico ocidental para precisar seu estatuto?

Desde os seus inícios, o jogo de linguagem apresentao problema de sua própria legitimidade, como em Platão.Este não é o lugar de se fazer a exegese das passagensdos Diálogos em que a pragmática da ciência coloca-seexplicitamente como tema ou implicitamente como pres-suposto. O jogo do diálogo, com suas exigências especí-ficas, a resume, incluindo em si mesmo a dupla funçãode pesquisa e ensino. Reencontramos aqui algumas regrasanteriormente enumeradas: a argumentação unicamente comfins de consenso (homologia), a unicidade do referentecomo garantia da possibilidade de chegar a um acordo,a paridade dos participantes, e mesmo o reconhecimentoindireto de que se trata de um jogo e não de um destino,visto que dele encontram-se excluídos todos aqueleS quenão aceitam suas regras, por fraqueza ou por insensibi-lidade.98

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Acontece que a questão da legitimidade do própriojogo, considerando-se sua natureza cientí~ica, deve tambémfazer parte das questões que são levantadas no diálogo.IJm exemplo conhecido, e importante, à medida que ar-Iicula sem dificuldade esta questão à da autoridade socio-política, é dado nos livros VI e VII da República. Ora,sabe-se que a resposta consiste, pelo menos em parte,llum relato, a alegoria da caverna, que conta por qu~ ecomo os homens querem relatos e não reconhecem o saber.Este encontra-se assim fundado pelo relato de seu martírio.

Há mais, porém: é em sua própria forma, os Diálo-gos escritos por Platão, que o esforço de legitimação en-1rega as armas à narração; pois cada um deles assumesempre a forma do relato de uma discussão científica.Que a história do debate seja mais mostrada do que rela-tada, mais encenada do que narrada,w e assim refira-se mais;10 trágico que ao épico, importa pouco aqui. O fato éque o discurso platônico que inaugura a ciência não é cien-Iífico, e isto à medida que pretende legitimá-Ia. Osaber científico não pode saber e fazer saber que ele é overdadeiro saber sem recorrer ao outro saber, o relato,que é para ele o não-saber, sem o que é obrigado a sepressupor a si mesmo e cai assim no que ele condena, apetição de princípio, o preconceito. Mas não cairia tam,.bém nisto valendo-se do relato?

Não vamos aqui acompanhar esta recorrência do nar-rativo no científico através dos discursos de legitimaçãodeste último, que são, pelo menos em parte, as grandesfilosofias antigas, medievais e clássicas. É um tormentocontínuo.

Um pensamento tão incisivo como o de Descartesnão pode expor a legitimidade da ciência a não ser noque Valéry chamava a história de um espírito1OO ou aindanesta espécie de romance de formação (Bildungsroman)

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que é o Discurso do Método. Aristóteles sem dúvida foium dos mais modernos isolando a descrição das regrasàs quais é preciso submeter os enunciados que se decla-ram como científicos (o Organon), da pesquisa de sualegitimidade num discurso sobre o Ser (a Metafísica). l,Emais ainda sugerindo que a linguagem científica, inclu-sive em sua pretensão de definir o ser do referente, nãoé feita senão de argumentações e de provas, isto é, dedialética .10\

Com a ciência moderna, duas novas componentesaparecem na problemática da legitimação. De início, pararesponder à questão: como provar a prova?, ou, maisgeralmente: quem decide sobre o que é verdadeiro?, des-via-se da busca metafísica de uma prova primeira ou deuma autoridade transcendente, reconhece-se que as condi-ções do verdadeiro, isto é, as regras de jogo da ciência,são imanentes a este jogo, que elas não podem ser esta-belecidas de outro modo a não ser no seio de um debatejá ele mesmo científico, e que não existe outra prova deque as regras sejam boas, senão o fato delas formarem oconsenso dos experts.

Esta disposição geral da modernidade em definir oselementos de um discurso num discurso sobre estes ele-mentos combina-se com o reestabelecimento da dignidadedas culturas narrativas (populares), já no humanismo re-nascentista, e diversamente no iluminismo, no Sturm undDrang} na filosofia idealista alemã, na escola históri'ca naFrança. A narração deixa de ser um lapso da legitimação.Este apelo explícito ao relato na problemática do saber éconcomitanteà emancipação dos burgueses em relação àsautoridades tradicionais. O saber dos relatos retorna noOcidente para fornecer uma solução à 'legitimação das nQ-vas autoridades. É natural que, numa problemática nar-rativa, esta questão espere a resposta de um nome deherói: quem tem o direito de decidir pela sociedade? qual

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é o sUjeIto cujas prescnçoes são as normas para aquelesque elas obrigam?

Este modo de interrogar a legitimidade sociopolíticacombina-se com a nova atitude científica: o nome do heróié o povo, o sinal da legitimidade seu consenso, a delibe-ração seu modo de normativação. Disto resulta infalivel-mente a idéia de progresso; ela não representa outra coisasenão o movimento pelo qual supõe-se que o saber seacumula, mas este movimento estende-se ao novo sujeitosociopolítico. O povo está em debate consigo mésmo so-bre o que é justo e injusto, da mesma maneira que a comu-nidade dos cientistas sobre o que é verdadeiro e falso; opovo acumula as leis civis, como os cientistas acumulamas leis científicas; o povo aperfeiçoa as regras do seu con-senso por disposições constitucionais, como os cientistasrevisam à luz dos seus conhecimentos produzindo novos"paradigmas" .\02 .

Vê-se que este "povo" difere completamente daqueleque está implicado nos saberes narrativos tradicionais, osquais, como se disse, não requerem nenhuma deliberaçãoinstituinte, nenhuma progressão cumulativa, nenhuma pre-tensão à universalidade: são eles os operadores do sabercientífico. Não deve causar espanto que os representantesda nova legitimação pelo "povo" sejam também os des-truidores ativos dos saberes tradicionais dos povos, per-cebidos de agora em diante como minorias ou como sepa-ratismos potenciais cujo destino não pode ser senão obs-curantista.103

Concebe-se igualmente que a existência real deste su-jeito forçosamente abstrato (porque modelado sobre o pa-radigma do único sujeito conhecedor, isto é, do remetente-destinatário de enunciados denotativos com valor de ver-dade, excluindo-se os outros jogos de linguagem) seja sus-penso às instituições nas quais ele é admitido para deli-berar e decidir, e que compreende todo ou parte do Es-

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tado. É assim que a questão do Estado encontra-se estrei-tamente imbricada com a do saber científico.

Mas vê-se também que esta imbricação não pode sersimples. Pois o "povo" que é a nação ou mesmo a huma-nidade não se contenta, sobretudo em suas instituiçõespolíticas, em conhecer; ele legisla, ou seja, formula pres-crições que têm valor de normas.I04 Exerce assim sua com-petência' não somente em matéria de enunciados denota-tivos dependentes do verdadeiro, como também em ma-téria de enunciados prescritivos tendo pretensão à justiça.É exatamente esta, como se disse, a propriedade do sabernarrativo, donde seu conceito é retirado, de encerrar am-bas as competências, sem falar do resto.

O modo de legitimação de que falamos, que reintro-duz o relato como validade do saber, pode assim tomarduas direções, conforme represente o sujeito do relato comocognitivo ou como prático: como um herói do conheci-mento ou como um herói da liberdade. E, em razão destaalternativa, não somente a legitimação não tem sempreo mesmo sentido, mas o próprio relato aparece já comoinsuficiente para dar sobre ela uma versão completa.

103. M. de Certau, D. Julia e J. Revel, Une politique de Ia langue. LaRévolutioll jrançaise et les patois, Gallimard, 1975.

104. Sobre a distinção entre prescrições e normas, ver G. Kalinowski, "Dumétalangagc en logique. Réflexions SUl' Ia logique déontique et sonrapport avec Ia logique dcs normes", Documents de travai/ 48 (no-vembrc 1975), Università di Urbino.

97. Sobre a ideologia cientificista, ver Survivre 9 (aofrt-septembre 1971),repetido em Jaubert e Lévy-Leblond ed.,op. ât.;51 sq. Encontra·seno final. desta uma bibliografia dos periódicos e dos grupos que lutamcontra as diversas formas de subordinação da ciência ao sistema.

98. V. Goldschmidt, Les Dialogues de Platon, P.U.F., 1947.99. Termos tirados de G. Genette, Figures III, loco cito

100. P. Valéry, Introduction à Ia méthode de Léonard da Vinci (1894),Gallimard, 1957 (contém também "Marginália" [19301, "Note et di-gression" [19191, "Léonard et les philosophe.s" [1929]).

101. P. Aubenquç, Le probleme de l'EtTe chez Aristoie, P.U.F., 1962.102. P. Duhem, Essai sur Ia notion de théorie physique de Platon à Galilée,

Hermann, 1908; A. Koyré, Etudes galiléennes (1940), Hermann, 1966;Th. Kuhn, op, cito

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EXAMINAREMOS duas grandes versões do relato delegitimação; uma mais política, a outra mais filosófica, am-bas de grande importância na história moderna, em parti-cular na do saber e de suas instituições.

Uma é a que tem por sujeito a humanidade comoherói da liberdade. Todos os povos têm direito à ciência.Se o sujeito social já não é o sujeito do saber científicoé porque foi impedido nisto pelos padres e tiranos. O di-reito à ciência deve ser reconquistado. É compreensívelque este relato oriente mais uma política dos ensinos pri-mários que das universidades e escolas.1os A política es-colar da lU República ilustra claramente estes pressupostos.

Quanto ao ensino superior, este relato parece deverlimitar o seu alcance. É assim que, em geral, se descrevemas disposições tomadas a este r~speito por Napoleão, cui-dando de produzir as competências administrativas e pro-fissionais necessárias à estabilidade do Estado.I06 Assimignora-se que este último, na perspectiva do relato dasliberdades, não recebe sua legitimid~de de si mesmo, esim do povo. Se as instituiçõ~s de ensino superior sãoconsagradas pela política imperial a serem estufas dos qua-dros do Estado e, secundariamente, ,da sociedade civil, éporque através das administrações e"das profissões em quese exercerá sua atividade, a própria nação está autorizadaa conquistar sua liberdade graças à difusão dos no~os sa-

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beres na população. O mesmo raciocmlO vale a fortioripara a fundação das instituições propriamente científicas.Reencontra-se o recurso ao relato das liberdades cada vezque o Estado toma diretamente a si o encargo da formaçãodo "povo" sob o nome de nação e sua orientação no ca-

. h d 107mm o o progresso.Com o outro relato de legitimação, a relação entre

a ciência, a nação e o Estado dá lugar a uma elaboraçãobastante diferente. É o que se deu quando da fundaçãoda Universidade de Berlim, entre 1807 e 1810.108 Sua in-fluência será considerável sobre a organização dos cursossuperiores nos países jovens nos séculos XIX e XX.

Por ocasião desta criação, o ministério prussiano foisurpreendido com um projeto de Fichte e consideraçõesopostas apresentadas por Schleiermacher. Coube a Wilhelmvon Humboldt resolver o caso; decidiu a favor da opçãomais "liberal" do segundo.

Lendo-se o relatório de Humboldt, pode-se ser ten-tado a reduzir toda sua política sobre a instituição cientí-fica ao célebre princípio: "Buscar a ciência em si mesma".Isto seria equivocar-se sobre a finalidade desta política,muito próxima daquela que Schleiermacher expôs de modomais completo e em que predomina o princípio de legiti-mação que nos interessa.

Humboldt declara, é certo, que a ciência obedece àssuas regras próprias, que a instituição científica "vive erenova-se sem 'cessar por si mesma, sem nenhum cercea-mento nem finalidade determinada". Mas acrescenta quea universidade deve rem~ter seu material, a ciência, à "fot-mação espiritual e moral da nação" .109 Como este efeitode Bildung pode resultar de uma pesquisa desinteressadado conhecimento? O Estado, a nação, a humanidade in-teira não são indiferentes ao saber considerado em simesmo? Com efeito, o que lhes interessa é, como declaraHumboldt, não o conhecimento, mas "o caráter e a ação".

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o conselheiro do ministro coloca-se assim face a umconflito maior, que lembra a ruptura introduzida pela crí-tica kantiana entre conhecer e querer, o conflito entre umjogo de linguagem feito de denotações que não emanamsenão do critério da verdade, e um jogo de linguagem queorienta a prática ética, social, política, e que comportanecessariamente decisões e obrigações, ou seja enunciadosdos quais não se espera que sejam verdadeiros, mas jus-tos, e que portanto não emanam em última análise dosaber científico.

A unificação destes dois conjuntos de discursos é, noentanto, indispensável à Bildung visada pelo projeto hum-boldtiano, e que consiste não somente na aquisição deconhecimentos pelos indivíduos, mas na formação de umsujeito plenamente legitimado do saber e da sociedade.Humboldt invoca assim um Espírito, que Fichte tambémchamava de Vida, movido por uma tríplice aspiração, oumelhor, por uma aspiração simultaneamente tríplice e uni-tária: "a de tudo fazer derivar de um princípio original",à qual corresponde a atividade científica; "a de tudo re-ferir a um ideal", que governa a prática ética e social;"a de reunir este princípio e este ideal em uma únicaIdéia", assegurando que a pesquisa das verdadeiras causasna ciência não· pode deixar de coincidir com a persecuçãode justos fins na vida moral e política. O sujeito legítimoconstitui-se desta última síntese.

Humboldt acrescenta de passagem que esta trípliceaspiração pertence naturalmente ao "caráter intelectuald - I -" 110 E' - d'a naçao a ema. uma concessao, mas lscreta, ao ou-tro relato, isto é, à idéia de que o sujeito do saber é opovo. Na verdade, esta idéia está longe de se conformarao relato da legitimação do saber proposto pelo idealismoalemão. Sinal disto é a suspeita de um Schleiermacher, deum Humboldt e mesmo de um Hegel a respeito do Es-tado. Se Schleiermacher teme o nacionalismo estreito, oprotecionismo, o utilitarismo, o positivismo que guia os60

poderes públicos em matéria de ciência, é porque o prin-cípio desta não reside, mesmo indiretamente, naqueles. Osujeito do saber não é o povo, é o espírito especulativo.Ele não se encarna, como na França de após a Revolução,num Estado, mas num Sistema. O jogo de linguagem delegitimação não é político-estatal, mas filosófico.

A grande função que as universidades têm a desem-penhar é a de "expor o conjunto dos conhecimentos eevidenciar os princípios ao mesmo tempo que os funda-mentos de todo saber", pois "não existe capacidade cien-tífica criadora sem espírito.especulativo".l1\ Aqui, a espe-culação é o nome que o discurso sobre a legitimação dodiscurso científico recebe. As escolas são funcionais; a uni-versidade é especulativa, isto é, filosófica.ll2 Esta filosofiadeve restituir a unidade dos conhecimentos dispersados emciências particulares nos laboratórios e nos cursos pré-uni-versitários; ela não pode fazê-Io senão num jogo de lin-guagem que una ambos os aspectos como momentos nodevir do espírito, portanto, numa narração ou, antes, numametanarração racional. A Enciclopédia de Hegel (1817-27)buscará satisfazer este projeto de totalização, já presenteem Fichte e em Schelling como idéia do Sistema.

É aí, no dispositivo de desenvolvimento de uma Vidaque é ao mesmo tempo Sujeito, que se nota o retorno dosaber narrativo. Existe uma "história" universal do espí-rito, o espírito é "vida", e esta "vida" é a apresentaçãoe a formulação do que ela mesmo é; ela tem como meioo conhecimento ordenado de todas as suas formas nasciências empíricas. A enciclopédia do idealismo alemão éa narração da "história" deste sujeito-vida. Mas o que elaproduz é um metarrelato, pois o que conta este relatonão deve ser um povo estrangulado na positividade par-ticular de seus saberes tradicionais, e tão pouco o con-junto dos cientistas que são limitados pelos profissiona-lismos correspondentes às suas especialidades.

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Este não pode ser senão um metassuJelto em viasde formular tanto a legitimidade dos disçursos das ciên-cias empíricas, como a das instituições imediatas das cul-turas populares. Este metassujeito, revelando seu funda-mento comum, realiza seu fim implícito. O lugar em quehabita é a universidade especulativa. A ciência positivae o povo não são outra coisa senão suas formas brutas.O próprio Estado-nação não pode exprimir validamente opovo a não ser pela mediação do saber especulativo.

Era necessário resgatar a filosofia que ao mesmotempo legitima a fundação da universidade berlinense edevia ser o motor do seu desenvolvimento e do saber con-temporâneo. Como já foi dito, esta organização universi-tária serviu de modelo para a constituição ou a reformados cursos superiores nos séculos XIX e XX em muitospaíses, a começar pelos Estados Unidos.ll3 Mas sobretudo,esta filosofia, que está longe de ter desaparecido, princi-palmente no meio universitário/14 propõe uma representa-ção particularmente viva de uma solução dada ao proble-ma da legitimidade do saber.

Não se justifica a pesquisa e a difusão do conheci-mento por um princípio em uso. Não se pensa de modoalgum que a ciência deva servir aos interesses do Estadoe/ ou da sociedade civil. Negligencia-se o princípio huma-nista segundo o qual a humanidade eleva-se em dignidadee em liberdade por meio do saber. O idealismo alemãorecorre a um metaprincípio que simultaneamente funda-menta o desenvolvimento ao mesmo tempo do conheci-mento, da sociedade e do Estado na realização da "vida"de um Sujeito que Fichte chama "Vida divina" e Hegel"Vida do espírito". Nesta perspectiva, o saber encontrade início sua legitimidade em si mesmo, c é ele que pod~ \dizer o que é o Estado e o que é a sociedade.llS Mas n~opode desempenhar este papel senão mudando de patamar,por assim dizer, deixando de ser o conhecimento positivodo seu referente (a natureza, a sociedade, o Estado, etc.),

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e vindo a ser também o saber destes saberes, isto é, espe-culativo. Sob o nome de Vida, de Espírito, é a si mesmoque nomeia.

Um resultado apreciável do dispositivo especulativo,é o de que todos os discursos de conhecimento sobre todosos referentes possíveis são aí considerados não com seuvalor de verdade imediato, mas com o valor que eles assu-mem pelo fato de ocuparem um certo lugar no percurso doEspírito ou da Vida, ou, se se prefere, uma certa posiçãona Enciclopédia que descreve o discurso especulativo. Esteos cita expondo por si mesmo o que sabe, isto é, expondo-se a si mesmo. Nesta perspectiva, o verdadeiro saber ésempre um saber indireto, feito de enunciados recolhidos,e incorporados ao metarrelato de um sujeito que assegura-lhe a l~gitimidade.

Isto vale para todos os discursos, mesmo se eles nãoforem de conhecimento como, por exemplo, os do direitoe do Estado. O discurso hermenêutico contemporâneott6

emerge desta pressuposição que assegura finalmente quehá sentido a conhecer e que confere assim sua legitimi-dade à história e, notadamente, à do conhecimento. Osenunciados são tomados como autônimos deles mesmos,1l7e colocados num movimento onde se admite que eles seengendrem uns aos outros: tais são as regras do jogo delinguagem especulativo. A universidade, como seu nomeo indica, é a sua instituição exclusiva.

Mas, como se disse, o problema da legitimidade poderesolver-se pelo outro processo. É preciso marcar-lhe adiferença: a primeira versão da legitimidade reencontrouum novo vigor hoje, enquanto o estatuto do saber encon-tra-se desequilibradoJe sua unidade especulativa fragmen-tada.

O saber não encontra aí sua validade em si mesmo,num sujeito que se desenvolve atualizando suas possibili-dades de conhecimen,to, mas num sujeito prático que é ahumanidade. O princípio do movimento que anima o povo

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não é o saber em sua autolegitimação, mas a liberdade emsua autofundação ou, se se prefere, em sua autogestão.O sujeito é um sujeito concreto ou suposto como tal, suaepopéia é a de sua emancipação em relação a tudo aquiloque o impede de se governar a si mesmo. Supõe-se queas leis que para si mesmo estabelece sejam justas, não por-que elas estarão ajustadas a determinada natureza exteriore sim pelo fato de que, por constituição, os legisladoresnão são outros senão cidadãos submetioos às leis e que,em conseqüência, a vontade de 'que a lei faça justiça, queé a do cidadão, coincide com a vontade do legislador, queé a de que a justiça seja lei.

Este modo de legitimação pela autonomia da vonta-dells privilegia, como se vê, um jogo de linguagem bemdiverso, o que Kant chamava de imperativo e os contem-porâneos chamam de prescritivo. O importante não é, ounão é apenas, legitimar os enunciados denotativos, depen-dentes do verdadeiro, como: ATerra gira em torno dosol, mas enunciados prescritivos, dependentes do justo,como: Ê preciso destruir Cartago, ou: Ê preciso fixar osalário mínimo em x francos. Nesta perspectiva, o saberpositivo não tem outro papel senão o de informar o sujeitoprático da realidade na qual a execução da prescrição devese inscrever. Ele lhe permite circunscrever o executável,o que se pode fazer. Mas o executório, o que se devefazer, não lhe pertence. Que um empreendimento sejapossível é uma coisa; que ele seja justo, outra. O sabernão é mais o sujeito, ele está a seu serviço; sua única legi-timidade (mas ela é considerável), é permitir que a mora-lidade venha a ser realidade.

Assim introduz-se uma relação entre o saber e a so-ciedade e seu Estado, que é, em princípio, a relação entremeio e fim. Os. cientistas não devem se prestar a isso anão ser que julguem a política do Estado justa; isto é, oconjunto de suas prescrições. Eles podem recusar as pres-crições do Estado em nome da sociedade civil de que são

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os membros, se consideram que esta não é bem represen-tada por aquele. Este tipo de legitimação lhe reconhecea autoridade, a título de seres humanos práticos, derecusar em prestar sua colaboração de cientistas a um po-der político que eles julgam injusto, isto é, não fundamen-tado sobre a autonomia propriamente dita. Eles podemmesmo até fazer uso de sua ciência para mostrar coinoesta autonomia de fato não é. realizada na sociedade e noEstado. Reencontra-se assim a função crítica do saber.Acontece que este não tem outra legitimidade final senãoa de servir os fins visados pelo sujeito prático que é acoletividade aut6noma.119

Esta distribuição dos papéis na tarefa de legitimaçãoé interessante, segundo o nosso ponto de vista, porquesupõe, ao contrário da teoria do sistema-sujeito, que nãoexiste unificação nem totalização possíveis dos jogos delinguagem num metadiscurso. Aqui, ao contrário, o privi-légio concedido aos enunciados prescritivos, que são osque o sujeito prático profere, torna-os independentes, emprincípio, dos enunciados de ciência, que não têm maisfunção senão a de informação para o dito sujeito.

1- Seria fácil mostrar que o marxismo oscilou entreos dois modelos de legitimação narrativa que descrevemos.O Partido pode tomar o lugar da universidade - o pro-letariado, o do povo ou da humanidade, o materialismodialético, o do idealismo especulativo, etc.; pode daí re-sultar o estalinis410. e sua relação específica com as ciên-cias, que lá estão apenas enquanto citação do metarrelatoda marcha para o socialismo como equivalente da vida dóespírito. Mas ele pode, ao contrário, conforme a segundaversão, desenvolver-se em saber cr.ítico, postulando que osocialismo não é senão a constituição do sujeito autônomo

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c que toda a justificação das clencias é dar ao sujeito em-pírico (o proletariado) os meios de sua emancipação emrelação à alienação e à repressão: sumariamente, foi estaa posição da Escola de Frankfurt.

rion, 1977. t igualmente esta norma, ao que parece, que orienta aestrutura dos programas dos C.E.G.E.P. de Quebec, e sobretudo osde filosofia (ver por exemplo os Cahiers de l'enseigment collégial1975-1976 para a filosofia).

106. Ver H. Janne, "L'Université et les besoins de Ia société contemporai-ne", Cahiers de l'association internationale des universités 10 (1970),5; citado in Commission d'études SUl' les universités, Document deconsultation, Montreal 1978.

107. Encontra-se uma expressão "dura" (quase místico-militar) em Júliode Mesquita Filho, Discurso de Paraninfo da primeira turma de licen-ciados pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidadede São Paulo (25 de janeiro de 1937); e uma expressão adaptada aosproblemas modernos do desenvolvimento no Brasil no Relatório doGrupo de Trabalho, Reforma Universitária, Brasília, Ministério daEducação e Cultura, do Planejamento, etc., agosto de 1969. Estesdocumentos fazem parte de um dossiê sobre a universidade brasi-leira que me foi amavelmente comunicado por Helena C. Chamliane Martha Ramos de Carvalho, da Universidade de São Paulo. e aelas agradeço.

108. O dossiê é acessível ao leitor de língua francesa graças a MiguelAbensour e ao College de philosophie: Philosophies de l'Université.L'idéalisme allemand et Ia question de l'université (textos de Schel-ling, Ficht, Schleiermacher, Humboldt, Hegel), Payot, 1979.

109. "SUl' I'organisation interne et externe des établissements scientifiquessupérieurs à Berlin" (1810), in Philosophies de l'Université, loco cit.,321.

110. Ibid., 323.111. F. Schleiermacher, "Pensées de circonstance SUl' les universités de con·

ception allemande" (1808), ibid., 270-271.

112. "O ensino filosófico é reconhecido de maneira geral como o funda-mento de toda atividade universitária" (ibid., 272).

113. A. Touraine analisa as contradições desta transplantação em Univer-sité et société aux Stats-Unis, Seuil, 1972, 32-40.

114. Sensível até nas conclusões dc um R. Nisbet, The Degradation ofAcademic Dogma: the Ul1iversity il1 America, 1945-1970, Londres,Heinemann, 1971. O autor é ;Jl'ofessor na Universidade da Califórnia,Riverside.

115. Ver G. W. Hegel, Philosophie des Rechts (1821), t.f. Kaan Principesde philosophie du droit, Gallimard, 1940.

116. Ver P. Ricouer, Le conflit des interprétations. Essais d'herméneu-tique. Tübingen, Mohr, 2.' ed .. 1965, t.f. Vérité et méthode, Seuil,1976.

117. Sejam dois ~nunciados: (1) La lune est levée; (2) O enunciado / Lalune est tevée/ é um enunciado denotativo. Diz-se que em (2) o sin-tagma /La lune est levée/ é o autônimo de (1). Ver J. Rey·Debove,Le métalangage, Le Robert, 197.8, parte IV.

118. O princípio, em matéria de ética transcendental pelo menos, é kan-tiano: ver a Crítica da razão prática. Em matéria de política e de

2 - Pode-se ler o Discurso que Heidegger proferiuno dia 27 de maio de 1933, quando de sua ascensão aoreitorado da Universidade de Friburgo,120 como um episó-dio infeliz da legitimação. A ciência especulativa tornou-seo questionamento do ser. Este é o "destino" do povoalemão, chamado "povo histórico-espiritual". É a este su-jeito que se devem os três serviços: do trabalho, da defe-sa e do saber. A universidade assegura o metassaber deseus três serviços, isto é, a ciência. A legitimação se fazentão como no idealismo por meio de um metadiscursochamado ciência, tendo pretensão ontológica. Mas ele équestionante, e não totalizante. E, por outro lado, a uni-versidade, que é o lugar onde ele existe, deve esta ciênciaa um povo cuja "missão histórica" é a de cumpri-Ia traba-lhando, combatendo e conhec~ndo. Este povo-sujeito nãotem vocação para a emancipação da humanidade, mas paraa realização de seu "verdadeiro mundo do espírito", que é"o poder de conservação mais profundo de suas forças deterra e de sangue". Esta inserção do relato da raça e dotrabalho no relato do espírito é duplamente infeliz: teori-camente inconsistente, bastaria, contudo, para encontrarno contexto político um eco desastroso.

105. Encontra-se um vestígio desta política na instituição de uma classede filosofia ao final dos estudos secundários. E ainda no projeto doGrupo de pesquisas sobre o ensino da filosofia de ensinar "a filosofia"desde o primeiro ciclo dos estudos secundários: G.R.E.P.H., "La phi-losophie déclassée", Qui a peur de Ia philosophie?, Paris, F]amma-

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ética empírica, Kant é prudente: como ninguém pode se identificarcom o sujeito normativo transcendentaI, é mais exato teoricamentecompor com as autoridades existentes. Ver por exemplo: Antwortan der Frage: "Was ist 'Aufklarung'?", (1784), t.f. Piobetta, "Qu'est-ceque les Lumieres?" in Kant, La Philosophie de l'histoire, Aubier.1943.

119. Ver I. Kant, art. cit.; J. Habermas, Strukturwandel der Oejjentlich-keit, Frankfurt, Luchterhand, 1962; t.f. de Launay, L'espace publicoArchéologie de la publicité comme dimension constitutive de la so-ciété bourgeoise, Payot, 1978. Os termos public e publicité signifi-cam "tornar público uma correspondência privada", "debate público",etc. Este princípio de Oejjentlichkeit guiou a ação de muitos gruposde cientistas, ao final dos anos 1960. notadamente o movimento "Sur-vivre", o grupo "Scientists and ERgineers for Social and PoliticalAction" (USA) e o grupo "British Society for Social Responsabilityin Science" (G.B.).

120. G. Granel traduziu-o para o francês em Phi, Suplemento dos Annalesde l'université de Toulouse-Le Mirail. Tculouse (janvier 1977).

NA SOCIEDADE ena cultura contemporânea, socieda-de pós-industrial, cultura pós-moderna,12l a questão da le-gitimação do saber coloca-se em outros termos. O granderelato perdeu sua credibilidade, seja qual for o modo deunificação que lhe é conferido: relato especulativo, relatoda emancipação.

Pode-se ver neste declínio dos relatos um efeito dodesenvolvimento das técnicas e das tecnologias a partir da

. Segunda Guerra Mundial, que deslocou a ênfase sobre osmeios da ação de preferência à ênfase sobre os seus fins;ou então o redesdobramento do capitalismo liberal avan-çado após seu recuo, sob a proteção do keynesianismo du-rante os anos 1930-1960, renovação que eliminou a alter-nativa comunista e que valorizou a fruição individual dosbens e dos serviços.

Buscas de causalidade como estas são sempre decep-cionantes. Supondo-se que se admita uma ou outra destashipóteses, resta explic~r a correlação das tendências refe-ridas com o declínio do poder 'unificador e legitimador dosgrandes relatos di especulaçãóe da emancipação.

O impacto que" por 'um lado, a retomada e a pros-peridade capitalista 'e, por outro lado, o avanço descon-certame das técnicas podem ter sobre o estatuto do saberé certamente compreensível. Mas é preciso primeiramenteresgatar os germes de "deslegitimação"122 e de niilismo queeram inerentes aos grandes relatos do século XIX para

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compreender como a ciência contemporânea podia ser sen-sível a estes impactos bem antes que eles acontecessem.

O dispositivo especulativo encerra inicialmente umaespécie de equívoco em relação ao saber. Ele mostra queeste não merece seu nome a não ser que se reponha (sereleve) hebt sich auf) na citação que ele faz dos seuspróprios enunciados no seio de um discurso de segundo,nível (autonímia) que os legitima. Isto significa que, emsua imediaticidade, o discurso denotativo que versa sobreum referente (um organismo vivo, uma propriedade quí-mica, um fenômeno físico, etc.) não sabe na verdade o queele acredita saber. A ciência positiva não é um saber. Ea especulação nutre-se da sua supressão. Deste modo, orelato especulativo hegeliano contém nele mesmo, e comoconfessa o próprio Hegel,123um ceticismo em relaçifo aoconhecimento positivo.

Uma ciência que não encontrou sua legitimidade nãoé uma ciência verdadeira; ela cai no nível o mais baixo, ode ideologia ou de instrumento de poder, se o discursoque deveria legitimá-Ia aparece ele mesmo como depen-dente de um saber pré-científico, da mesma categoria queum relato "vulgar". O que não deixa de acontecer se sevolta contra ele as regras do jogo da ciência que ele de-nuncia como empírica.

Considere-se o enunciado especulativo: um enuncia-do científico é um saber somente se for capaz de situar-senum processo universal de engendramento. A questão quesurge a seu respeito é a seguinte: seria este enunciado umsaber no sentido que ele determina? Ele não o será, a nãoser que possa situar-se num processo universal de engen-dramento. Ora, ele o pode. Basta-lhe pressupor que esteprocesso existe (a Vida do espírito) e que ele mesmo éuma de suas expressões. Esta pressuposição é mesmo in-dispensável ao jogo de linguagem especulativo. Se ela nãoé feita, a própria linguagem da legitimação não seria legí-

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tima, e estaria, com a clencia, imersa no non sense, pelomenos de acordo com o idealismo.

Mas pode-se compreender esta pressuposlÇao numsentido totalmente diferente, que nos aproxima da culturapós-moderna: ela define, dir-se-á na perspectiva que ado-tamos anteriormente, o grupo de regras que é preciso ad-mitir para jogar o jogo espeéulativo.124Tal apreciação supõeprimeiramente que se aceite como modo geral da lingua-gem de saber o das ciências "positivas". Em segundo lugar,que se considere que esta linguagem implica pressuposi-ções (formais e axiomáticas) que ela deve sempre explici-tar. Com outras palavras, Nietzsche afirma isto quandomostra que o "niilismo europeu" resulta da auto-aplicaçãoda exigência científica de verdade a esta própria exi-

A • 125gencla.Surge assim a idéia de perspectiva que não é distan-

te, pelo menos neste ponto, da dos jogos de linguagem.Tem-se aí um processo de deslegitimação cujo motor é aexigência de legitimação. A "crise" do saber científico,cujos sinais se multiplicam desde o fim do século XIX,não provém de uma proliferação fortuita das ciências, queseria ela mesma o efeito do progresso das técnicas e daexpansão do capitalismo. Ela procede da erosão interna doprincípio de legitimação do saber. Esta erosão opera nojogo especulativo, e é ela que, ao afrouxar a trama enci-clopédica na qual cada ciência devia encontrar seu lugar,deixa-as se emanciparem.

As delimitações clássicas dos diversos campos cientí-ficos passam ao mesmo tempo por um requestionamento:disciplinas desaparecem, invasões se produzem nas fron-teiras das ciências, de onde nascem novos campos. A hie-rarquia especulativa dos conhecimentos dá lugar a umarede imanente e, por assim dizer, "rasa", de investigaçõescujas respectivas fronteiras não cessam de se deslocar. Asantigas "faculdades" desmembram-se em institutos e fun-dações de todo tipo, as universidades perdem sua função

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de legitimação especulativa. Privadas da responsabilidadeda pesquisa que o relato especulativo abafa, elas se limi-tam a transmitir os saberes julgados estabelecidos e asse-guram, pela didática, mais a reprodução dos professoresque a dos cientistas. É neste estado que Nietzsche as en-contra e as condena.126

Quanto ao outro procedimento de legitimação, o queresulta na Aufklarung, o dispositivo da emancipação, seupoderio intrínseco de erosão não é menor do que aqueleque opera no discurso especulativo. Mas ele se refere aum outro aspecto. Sua característica é a de fundamentar alegitimidade da ciência, a verdade, sobre a autonomia dosinterlocutores engajados na prática ética, social e política.Ora, esta legitimação, como vimos, constitui de imediatoum problema: entre um enunciado denotativo de valor cog-nitivo e um enunciado prescritivo de valor prático, a dife-rença é de pertinência, portanto de competência. Nadaprova que, se um enunciado que descreve uma realidadeé verdadeiro, o enunciado prescritivo, que terá necessa-riamente por efeito modificá-Ia, seja justo.

Considere-se uma porta fechada. Entre A porta estáfechada e Abra a porta não existe conseqüência no sentidoda lógica proposiciona1. Os dois enunciados referem-se adois conjuntos de regras autônomas, que determinam per-tinências diferentes e, por conseguinte, competências dife-rentes. Aqui, o resultado desta divisão da razão em cog-nitiva ou teorética, de um lado, e prática, do outro, tempor efeito atacar a legitimidade do discurso de ciência, nãodiretamente, mas indiretamente, revelando que ele é umjogo de linguagem dotado de suas regras próprias (cujascondições a priori do conhecimento são em Kant um pri-meiro esboço), porém sem nenhuma vocação para regu-lamentar o jogo prático (nem estético, aliás). Ele é assimposto em paridade com os outros.

Esta "deslegitimação", por pouco que a acompanhe-mos, e se ampliarmos o seu alcance, o que Wittgenstein

faz à sua maneira, e o que fazem, cada um a seu modo,pensadores como Martin Buber e Emmanuel Levinas,127abre caminho a uma corrente importante da pós-moderni-dade: a ciência joga o seu próprio jogo, ela não pode legi-timar os outros jogos de linguagem. Por exemplo: escapa-lhe o da prescrição. Mas antes de tudo ela não pode maisse legitimar a si mesma como o supunha a especulação.

Nesta disseminação dos jogos de linguagem, é o pró-prio sujeito social que parece dissolver-se. O vínculo socialé de linguagem (langagier), mas ele não é constituído deuma única fibra. É uma tecitura onde se cruzam pelo me-nos dois tipos, na realidade um número indeterminado, dejogos de linguagem que obedecem a regras diferentes.Wittgenstein escreve: "Nossa linguagem pode ser consi-derada como uma velha cidade: uma rede de ruelas e pr;l-ças, de casas novas e velhas, e de casas dimensionadas àsnovas épocas; e isto tudo cercado por uma quantidade denovos subúrbios com ruas retas e regulares e com casasuniformes.,,128 E, para mostrar que realmente o princípiode unitotalidade, ou da síntese sob a autoridade de ummetadiscurso de saber, é inaplicável, ele faz a "cidade" dalinguagem passar pelo velho paradoxo do sorita, pergun-tando: "A partir de quantas casas ou ruas uma cidade co-meça a ser uma cidade? ,,129

Novas linguagens vêm acrescentar-se às antigas, for-mando os subúrbios da velha cidade, "o simbolismo quí-mico, a notação infinitesimal" .130Trinta e cinco anos após,pode-se acrescentar a isto as linguagens-máquinas, as ma-trizes de teoria dos jogos, as novas notações musicais, asnotações das lógicas não denotativas (lógicas do tempo,lógicas deônticas, lógicas modais), a linguagem do códigogenético, os gráficos de estruturas fonológicas, etc.

Pode-se retirar desta explosão uma impressão pessi-mista.: ninguém fala todas essas línguas, elas não possuemuma metalíngua-universal, o projeto do sistema-sujeito éum fracasso, o da emancipação nada tem a ver com a ciên-

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cia, está-se mergulhado no pOSltlvlSmO de tal ou qual co-nhecimento particular, os sábios tornaram-se cientistas, asreduzidas tarefas de pesquisa tornaram-se tarefas fragmen-tárias que ninguém domina; 131e, do seu lado, a filosofiaespeculativa ou humanista nada mais tem a fazer senãoromper com suas funções de legitimação,132o que explicaa crise que ela sofre onde ainda pretende assumi-Ias, ousua redução ao estudo das lógicas ou das histórias dasidéias, quando conformando-se com a realidade, renunciou'I f -133aque as unçoes.

Este pessimismo é o que alimentou a geração do iní-cio do século em Viena: os artistas, Musil, Kraus, Hof-mannsthal, Loos, Schonberg, Bloch, mas também os filó-sofos Mach e Wittgenstein.134 Sem dúvida eles desenvol-veram o mais possível a consciência e a responsabilidadeteórica e artística da deslegitimação. Pode-se dizer hojeque este trabalho de luto foi consumado. Não se deve re-começá-Io. A força de Wittgenstein consistiu em não colo-car-se ao lado do positivismo que o Círculo de Viena de-senvolvia135e de traçar em sua investigação dos jogos delinguagem a perspectiva de um outro tipo de legitimaçãoque não fosse o desempenho. É com ela que õ mundo pó,,-moderno mantém relação. A própria nostalgia do relatoperdido desapareceu para a maioria das pessoas. De formaalguma segue-se a isto que elas estejam destinadas à bar-bárie. O que as impede disso é que elás sabem que a legi-timação não pode vir de outro lugar senão de sua práticade linguagem e de sua interação comunicacional. Face aqualquer outra crença, a ciência que ironit:;a (sourit danssa barbe) ensinou-lhes a dura sobriedade do realismo.l36

121. Ver a nota 1. Alguns aspectos científicos do pós-modernismo são ar-rolados em I. Hassan, "Culture, Ill,determinacy. and Immanence:Margins of the (Postmodern) Age", Humanities in Society 1. (hiver1978), 51-85.

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122.

123.

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CI. Mueller emprega a expressão "a process of delegitimation" emThe Politics of Communication, loco cit., 164."Caminho oa dúvida ( ... ), caminho do desespero ( ... ), ceticismo",escreve Hegel no Prefácio da Fenomenologia do Espírito, para des-crever o deito da pulsão especulativa sobre o conhecimento natural.

Com receio de sobrecarregar a exposição, deixamos para um estudoulterior o exame deste conjunto de regras.Nietzsche, "Der europaische Nihilismus" (ms N VII 3); "Der Nihilis-mus, ein normaler Zustand" (ms W II 1); "Kritik dem Nihilismus"(ms W VII 3); "Zum Plane" (ms W II 1), in Nietzsches Werke kri-tische Gesamtausgabe, VII, 1 & 2 (1887-1889), Berlin, de Gruyter,1970. Estes textos são objeto de um comentário de K. Ryjik, Nietzsche,Ie manuscrit de Lenzer Heide, datilog., Departamento de Fi)osofia,Universidade de Paris VIII (Vincennes).

126. "Sur I'avenir de nos établissements d'enseigment" (1872), t.L Backes,in F. Nietzsche, Écrits posthumes 1870-1873, GaIlimard, 1975.

127. M. Buber, Te et Tu, Aubier, 1938; ido DiaIogisches Leben, Zürich,Müller, 1947. E. Levinas, Totalité et Infini. La Have, Nijhoff, 1961;id., "Martin Buber und die Erkenntnistheorie (1958}", in Divers,Philosophen des 20 Tahrhunderts, Stuttgart, Kohlhammer, 1963; t.f."Martin Buber et Ia théorie de Ia connaissance", Noms propres, Mont-peIlier, Fata Morgana, 1976.

128. Investigations phílosophiques, Ioc cit., § 18. CL trad. de José CarIosBruni, in Os Pensadores, Abril Cultural, p. 18.

129. Ibid.130. Ibid.131. Veja por exemplo "La taylorisation de Ia recherche" in {Auto}eri-

tique de Ia science, Ioe cil., 291-293. E sobretudo D. J. de Solla Price(LittIe Science, Big Science, N.Y. Columbia U.P., 1963), que subli-nha a c1ivagem entre um pequeno número de pesquisadores de pro-dução elevada (avaliada em número de publicações) e uma grandemassa de pesquisadores de fraca produtividade. O número destesúltimos cresce o dobro do número dos primeiros, embora este sóaumente verdadeiramente a cada vinte anos, aproximadamente. Priccconclui que a ciência considerada como entidade social é undemo-cratic (59) e que the eminent scientistestá cem anos na dianteiraem relação ao the minimal one (56). (Em inglês, no original.)

132. Ver J. T. Desanti, "SUl' le rapport traditionnel des sciences et de Iaphilosophie", La Philosophie sílencieuse, ou critique des phílosophiesde Ia science, Seuil, 1975.

133. A reclassificação da filosofia universitária no conjunto das ciênciashumanas é sob este aspecto de uma importância que excede emmuito os cuidados da profissão. Nós não acreditamos que a filosofiacomo trabalho de legitimaçãoesteja condenada; mas é possível queela não possa cumpri-l o, üu pelo menos desenvolvê-Io, senão revendoseus vínculos com a instituição universitária. A propósito, ver oPreâmbulo ao Projet d'un institut polytechnique de phiIosophie, Dé-partement de philosophie, Université de Paris VIII (Vincennes), 1979.

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Ver A. Janik & St. Toulmin, Wittgenstein's Vienna, N.Y., Simon &Shuster,.1973. J. Piel ed., "Vienne début d'un siecle", Critique, 339-340 (aout-septembre 1975).Ver J. Habermas, "Dogmatisme, raison et décision: théorie et pra-tique dans une civilisation scientifisée" (1963), Théorie et PratiquelI, loco cit., 95."La science sourit dans sa barbe" é o título de um capítulo deL'homme sans qualités, de Musi!; citado e comentado por J. Bouve-resse, "La problématique du sujet ... ", loco cit.

A PESQUISA E SUA LEGITIMAÇÃOPELO DESEMPENHO

VOLTEMOS à ciência e examinemos de início a pragmá-tica da pesquisa. Ela é hoje afetada em suas regulaçõesessenciais por duas modificações importantes: o enrique-cimento das argumentações e a complicação da adminis-tração das provas.

Aristóteles, Descartes, Stuart Míll, entre outros, su-cessivamente tentaram fixar regras pelas quais um enun-ciado com valor denotativo pode obter a adesão do desti-natário.137 A pesquisa científica não tem grande considera-ção por estes métodos. Ela pode usar e usa linguagens,como se disse, cujas propriedades demonstrativas parecemdesafios à razão dos clássicos. Bachelard fez-lhe um balan-ço; ele já está ultrapassado.138

O uso destas linguagens, contudo, não é qualquer um.Ele está submetido a uma condição que se pode dizer prag-mática, a de formular suas próprias regras e de perguntarao destinatário se ele as aceita. Satisfazendo esta condi-ção, define-se uma axiomática, a qual compreende a defi·nição dos símbolos que serão empregados na linguagemproposta, a forma que deverão respeitar as expressõesdesta linguagem para poderem ser aceitas (expressões bemformadas), e as operações que serão permitidas sobre estasexpressões, e que definem os axiomas propriamente ditos.1l9

Mas como se sabe o que deve conter ou o que con-tém uma axiomática? As condições que foram enumeradassão formais. Deve existir uma metalíngua determinante se

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uma linguagem satisfaz às condições formais de uma axlO-mática: esta metalíngua é a da lógica.

Deve-se fazer aqui uma observação. Que se comecepor fixar a axiomática para dela retirar em seguida osenunciados que são aceitáveis, ou que, ao contrário, o cien-tista comece por estabelecer os fatos e por enunciá-Ios, eque ele busque em seguida descobrir a axiomática da lin-guagem da qual se serviu para enunciá-Ios, não constituiuma alternativa lógica, mas somente empírica. Ela tem cer-tamente uma grande importância para o pesquisador, etambém para o filósofo, mas a questão da validação dosenunciados apresenta-se paralelamente nos dois casos.140

Uma questão mais pertinente para a legitimação é aseguinte: por meio de que critérios o lógico define as pro-priedades exigidas por uma axiomática? Existe um modelode uma língua científica? Este modelo é único? É verifi-cável? As propriedades em geral exigidas pela sintaxe deum sistema formaF41 são a consistência (por exemplo, umsistema não consistente em relação à negação admitiria nelemesmo, paralelamente, uma proposição e seu contrário),a completude sintática (o sistema perde sua consistênciacaso um axioma lhe seja acrescentado), a decidibilidade(existe um procedimento efetivo que permite decidir seuma proposição qualquer pertence ou não ao sistema), ea independência dos axiomas uns em relação aos outros.Ora, Güdel estabeleceu de maneira efetiva a existência, nosistema aritmético, de uma proposição que não é nem de-monstrável nem refutável no sistema; donde se segue queo sistema aritmético não satisfaz à condição da comple-tude.142

Como se pode generalizar esta propriedade, é precisoentão reconhecer que existem limitações internas aos for-malismos.143 Estas limitações significam que, para o lógico,a metalíngua utilizada para descrever uma linguagem arti-ficial (axiomática) é a "língua natural", ou "língua coti-diana"; esta língua é universal, visto que todas as outras

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línguas deixam-se nela traduzir; mas ela não é consistenteem relação à negação: permite a formação de paradoxos.l44

Neste sentido, a questão da legitimação do sabercoloca-se de outro modo. Quando se declara que um enun-ciado de caráter denotativo é verdadeiro, pressupõe-se queo sistema axiomático no qual ele é decidível e demonstrá-vel foi formulado, que é conhecido dos interlocutores eaceito por eles como tão formalmente satisfatório quantopossível. É neste espírito que se desenvolveu, por exem-plo, a matemática do grupo de Bourbaki.145 Mas, observa-ções análogas podem ser feitas para as outras ciências:elas devem seu estatuto à existência de uma linguagemcujas regras de funcionamento não podem ser demonstra-das, mas são consensuais entre os experts. Estas regras sãoexigências pelo menos para algumas das ciências. A exi-gência é uma modalidade da prescrição.

A argumentação exigível para a aceitação de umenunciado científico está assim subordinada a uma "pri-meira" aceitação (na realidade, constantemente renovadaem virtude do princípio de recursividade) das regras quefixam os meios da argumentação. Daí, duas propriedadesnotáveis deste saber: a fkxibilidade dos seus meios, istoé, a multiplicidade de suas. linguagens; seu caráter de jogopragmático, a aceitabilidade dos "lances" que lhe são fei-tos (a introdução de novas proposições) dependendo deum contrato realizado entre os participantes. Daí tambéma diferença entre dois tipos de "progresso" no saber: um,correspondendo a um novo lance (nova argumentação) noquadro das regras estabelecidas, o segundo à invenção de

. d d' ~novas regras e, aSSIm, a uma mu ança· e Jogo.A esta nova disposição corresponde evidentemente um

deslocamento maior da idéia da razão. O princípio de umametalinguagem universal é substituído pelo da pluralidadede sistemas formais e axiomáticos capazes de argumentarenunciados denotativos, sendo estes sistemas descritos nu-ma metalíngua universal mas -não consistente. O que pas-

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sava por paradoxo e mesmo por paralogismo no saber daciência clássica e moderna pode encontrar em algum dessessistemas uma força de convicção nova e obter o assenti-mento da comunidade dos experts.147 O método pelos jo-gos de linguagem que seguimos aqui adota modestamenteesta corrente de pensamento.

Somos levados a uma direção inteiramente diversapelo outro aspecto importante da pesquisa que diz respeitoà administração das provas. Esta é, em princípio, umaparte da argumentação destinada a fazer aceitar um novoenunciado como o testemunho ou a prova material, nocaso da retórica judiciária.148Mas ela suscita um problemaespecial: é com ela que o referente (a "realidade") é con-vocado e citado no debate entre os cientistas.

Dissemos que a questão da prova constitui um pro-blema, no sentido de que seria preciso provar a prova.Pode-se pelo menos publicar os meios da prova, de manei-ra que os outros cientistas possam assegurar-se do resul-tado repetindo o processo que conduziu a ela. Aconteceque administrar uma prova é fazer constatar .um fato. Maso que é uma constatação? O registro do fato pela vista,pelo ouvido, por um órgão dos sentidos?149Os sentidos en-ganam, e são limitados em extensão, em poder discrimi-nador.

Aqui intervêm as técnicas. Elas são inicialmente pró-teses de órgãos ou de sistemas fisiológicos humanos quetêm por função receber dados ou agir sobre o contexto.1'o

Elas obedecem a um princípio, o da otimização das per-formances: aumento do output (informações ou modifica-ções obtidas), diminuição do in put (energia despendida)para obtê-las.15l São estes, pois, os jogos cuja pertinêncianão é nem o verdadeiro, nem o justo, nem o belo, etc.,mas o eficiente: um "lance" técnico é "bom" quando ébem-sucedido e/ou quando ele despende menos. que umoutro.

Esta definição da competência técnica é tardia. Asinvenções realizam-se por muito tempo intempestivamente,por ocasião de pesquisas ao acaso ou que interessam maisou tanto às artes (technai) que ao saber: os gregos clássi-cos, por exemplo, não estabelecem uma relação evidenteentre este último e as técnicas.152 Nos séculos XVI e xvn,os trabalhos dos "perspectivistas" emanam ainda da curio-sidade e da inovação artística/53 e isto até o fim do séculoXVIII.I54 E pode-se afirmar que ainda em nossos dias asatividades "selvagens" de invenção técnica, por vezes se-melhantes a devaneios anárquicos, continuam fora das ne-cessidades da argumentação científica.lSS

No entanto, a necessidade de administrar a provase faz ressentir mais vivamente à medida que a pragmáticado saber científico toma o lugar dos saberes tradicionaisou revelados. Já ao final do Discurso, Descartes solicitacréditos de laboratório. O problema é então exposto: osaparelhos que otimizam as performances do corpo humanovisando administrar a prova exigem um suplemento de des-pesa. Portanto, nada de prova e de verificação de enun-ciados, e nada de verdade, sem dinheiro. Os jogos de lin-guagem científica vão tornar-se jogos de ricos, onde osmais ricos têm mais chances de ter razão. Traça-se umaequação entre riqueza, eficiência, verdade.

O que se produz ao final do século XVIII, quandoda primeira revolução industrial, é a descoberta da recí-proca: não há técnica sem riqueza, mas não há riqueza semtécnica. Um dispositivo técnico exige um investimento;mas visto que otimiza a performance à qual é aplicado,pode assim otimizar a mais-valia que resulta desta melhorperformance. Basta que esta mais-valia seja realizada, querdizer, que o produto da performance seja vendido. E pode-se bloquear o sistema da seguinte maneira: uma parte doproduto desta venda é absorvida pelo fundo de pesquisadestinado a melhorar ainda mais a performance. É neste

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momento preciso que a ciência torna-se uma força de pro-dução, isto é, um momento na circulação do capital.

É mais o desejo de enriquecimento que o de saberque impõe de início aos técnicos o imperativo da melhoriadas performances e de realização dos produtos. A conjun-ção "orgânica" da técnica com o lucro precede a sua jun-ção com a ciência. As técnicas não assumem importânciano saber contemporâneo senão pela mediação do espíritode desempenho generalizado. Mesmo hoje, a subordinaçãodo progresso do saber ao do investimento tecnológico nãoé imediata.l56

Mas o capitalismo vem trazer sua solução ao proble-ma científico do crédito de pesquisa: diretamente, finan-ciando os departamentos de pesquisa nas empresas, ondeos imperativos de desempenho e de recomercializaçãoorientam com prioridade os estudos voltados para as "apli-cações"; indiretamente, pela criação de fundações de pes-quisa privadas, estatais ou mistas, que concedem créditossobre programas a departamentos universitários, laborató-rios de pesquisa ou grupos independentes de pesquisado-res, sem esperar do resultado dos seus trabalhos um lucroimediato, mas erigindo em princípio que é preciso finan-ciar pesquisas a fundo perdido durante um certo tempopara·aumentar as chances de se obter uma inovação deci-siva e, portanto, muito rentável.1S7Os Estados-nações, so-bretudo em seu episódio keynesiano, seguem a mesma re-gra: pesquisa aplicada, pesquisa fundamental. Eles cola-boram com as empresas por meio de agências de todo otipo.158As normas de organização do trabalho que preva-lecem nas empresas penetram nos laboratórios de estudosaplicados: hierarquia, decisão do trabalho, formação deequipes, estimativa de rendimentos individuais e coletivos,elaboração de programas vendáveis, procura de cliente,

159 O d ."" detc. s centros e pesqmsa pura pa ecem menos, mastambém eles beneficiam~se de créditos menores.

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A administração da prova, que em princípio não ésenão uma parte da argumentação destinada a obter o con-sentimento dos destinatários da mensagem científica, passaassim a ser controlada por um outro jogo de linguagemonde o que está em questão não é a verdade mas o de-sempenho, ou seja a melhor relação input/output. O Es-tado e/ou a empresa abandona o relato de legitimaçãoidealista ou humanista para justificar a nova disputa: nodiscurso dos financiadores de hoje, a única disputa con-fiável é o poder. Não se compram cientistas, técnicos e apa-relhos para saber a verdade, mas para aumentar o poder.

A questão é saber em que pode consistir o discursodo poder, e se ele pode constituir uma legitimação. O quea primeira vista parece impedi-Io é a distinção feita pelatradição entre a força e o direito, entre a força e a sabe-doria, isto é, entre o que é forte, o que é justo e o queé verdadeiro. Foi a esta incomensurabilidade que nos refe-rimos anteriormente nos termos da teoria dos jogos delinguagem, distinguindo o jogo denotativo, onde a perti-nência dá-se no nível de verdadeiro/falso, o jogo prescri-tivo, que é da alçada do justo/injusto, e o jogo técnico,cujo critério é eficiente/ineficiente. A "força" não parecerelacionar-se senão com este último jogo, que é o da téc-nica. Faz-se exceção do caso em que ela opera por meiodo terror. Este caso encontra-se fora do jogo de lingua-gem, já que a eficácia da força procede então inteiramenteda ameaça de eliminar o parceiro, e não de um melhor"lance" que o seu. Cada vez que a eficiência, isto é, a ob-tenção do efeito visado, tem por motor um "Diga ou façaisto, senão não falarás mais", entra-se no terror, destrói-seo vínculo social.

Mas é verdade que o desempenho, aumentando a ca-pacidade de administrar a prova, aumenta a de ter razão:o critério técnico introduzido brutalmente no saber cien-tífico não deixa de ter influência sobre o critério de ver-

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dade. o mesmo poderia ser dito da relação entre justiçae desempenho: as chances de que uma ordem seja consi-derada como justa aumentariam com as chances dela serexecutada, e estas com o desempenho do prescritor. Éassim que Luhmann acredita constatar nas sociedades pós-industriais a substituição da normatividade das leis pelaeficiência mensurável de procedimentos.l60 O "controle docontexto", isto é, a melhoria das performances realizadascontra os parceiros que constituem este último (seja estea "natureza" ou os homens) po'deria valer como uma espé-cie de legitimação.161 Seria uma legitimação pelo fato.

O horizonte deste procedimento é o seguinte: sendoa "realidade" que fornece as provas para a argumentaçãocientífica e os resultados para as prescrições e as promessasde ordem jurídica, ética e política, pode-se vir a ser senhorde ambas tornando-se senhor da "realidade", o que as téc-nicas permitem. Reforçando-as, "reforça-se" a realidade,conseqüentemente, as chances de ser justo e de ter razão.E, reciprocamente, reforça-se tanto as técnicas de que sepode dispor do saber científico e da autoridade decisória.

Assim toma forma a legitimação pelo poder. Este nãoé somente o bom desempenho, mas também a boa verifi-cação e o bom veredito. O poder legítima a ciência e odireito por sua eficiência, e esta por aqueles. Ele se auto-legitima como parece fazê-Io um sistema regulado sobrea otimização de suas performances.162 Ora, é precisamenteeste controle sobre o contexto que deve fornecer a infor-matização generalizada. A eficácia de um enunciado, sejaele denotativo ou prescritivo, aumenta na proporção dasinformações de que se dispõe relativas ao seu referente.Assim, o crescimento do poder e sua autolegitimação passaatualmente pela produção, a memorização, a acessibilidadee a operacionalidade das informações.

A relação entre ciência e técnica inverte-se. A com-plexidade das argumentações parece, então, interessante,sobretudo porque ela obriga a sofisticar os meios de pro-

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var, beneficiando, assim, o desempenho. A repartlçao dosfundos de pesquisa pelos Estados, empresas e sociedadesmistas obedece a esta lógica do aumento de poder. Ossetores da pesquisa que não podem pleitear sua contribui-ção, mesmo indireta, à otimização das performances dosistema, são abandonados pelos fluxos de créditos e fada-dos à obsolescência. O critério de bom desempenho é ex-plicitamente invocado pelas administrações para justificar

d· I d . 163a recusa e apOIar este ou aque e centro e pesquisas.

137. Aristóteles nos Analíticos (- 330 aproximadamente). Descartes nas.Ref!,uiae ad directionem ingenii (cerca de 1628) e os Principes de iaphilosophie (1644), Stuart Mill no Systeme áe iogique inductive eldéductive (1843).

138. G. Bachelard, Le rationalisme appliqué, P.U.F., 1949; M. Serres, "Laréforme et les sept péchés", L'Arc 42 (n.o spécial Bachelard), 1970.

139. D. Hilbert. Grundiagen der Geometrie, 1899; N. Bourbaki "L'ar-chitecture des mathématiques", in Le Liónnais ed .. Les grands cou-rants de ia pensée mathématique, Hermann, 1948; R. Blanché, L'axio-matique, P.U.F., 1955.

140. Ver Blanché, op. cit., capo V.141. Seguimos aqui R. Martin, Logique contemporaÍlle ct forl7lalisatiol1,

P.U.F., 1964, 33-41 e 122 sq.142. K. Gõdel, "Ueber formal unentscheidbare Satze der Principia Ma-

thematica und 'verwandter Systeme". Monatschrift für Mathematikund Physik 38 (1931). Para uma exposição acessível ao leigo do teo-rema de Gõdel, ver D. Lacombe, "Les idées actueIles SUl' Ia structuredes mathématiques", in Divers, Notion de structure et structure de iaconnaissance, Albin-Michel, 1957, 39-160.

143. J. Ladriere, Les limitations internes des formalismes, Louvain & Pa-ris, 1957.

144. A. Tarski, Logique, sémantique, métamathématique I, Armand-Colin,1972. J. P. Desc~s & Z. Guent.::heva-Desc1es, "Métalangue, métalan·gage, .métalinguistique", Documents de travail 60-61, Università diUrbino (janvier-février 1977) ..

145. Les éiéments des mathématiques, Hermann, .1940 sq. Os pontos departida longínquos deste trabalho encontram-~e nas primeiras tenta-tivas de demonstração de certos "postulados" da geometria euclidiana.Ver L. Brunchvicg, Les étapes de Ia philosophie mathématique,P.U.F., 3.' ed., 1947.

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146.

147.

Th. Kuhn, The Structure ... , loco citoEncontrar-se-á uma classificação dos paradoxos lógico-matemáticosem F. P. Hamsey, The Foundations of Mathemaiics and Other Logi-cal Essays, N.Y., Harcourt, Brace & Co., 1931.

Ver Aristóteles, Retórica lI, 1393 a sq.f. o !?roblema. do testemunho e da fonte histórica principalmente: ofato e conhecido por dele se ouvir falar ou de visu? A distinção apa-rece em Heródoto. Ver FI'. Hartog, "Hérodote rapsode et arpenteur"Hérodote 9 (décembre 1977), 56-65. 'A. Gehlen, "Die Technik in der Sichtweise der Anthropologic" A 11-

thropologische Forschung, Hamburg, 1961. .A. Leroi-Gourhan, "Milieu et tcchniques", Albin-Michel, 1945; id ..Le geste et la parole I, Techn!que et lcmgage, Albin-Michel, 1964.J. P. Vernant, Mythe et pellsée chez les Grecs, Maspero, 1965, so-bretud? a seção 4: "Le travaíl ct Ia pcnsée technique".J. I3aitrusaitis, Alwmorphoses, ou magie artificielle des eflets meroveilleux, O. Perrin, 1969.L. Munford, Technics and civilization, N.Y., 1934; t.f. Montanier.Tecnique et civilisation, Seuil, 1950. B. Gille, Histoire eles TecniquesGaIlimard (Plêiade), 1978. 'Um exemplo impressionante foi estudado por M. L. Mulkay & D. O.Edge, "Cognitive, Tecnical and Social Factors in the Growth ofRadio-astronomy", Social Science Information (1973), 25·65: utili-zação dos radioamadores para verificar algumas implicações da teoriada relatividade.Mulkay desenvolve um modelo flexível de inde:->cndência relativadas. técn!cas e d? saber científico: "The Model of Branching", TheSOClOl?glcal Revlew XXXII) (1976), 509-526. H. Brooks, presidentcdo SClence and Public Com'mittee da National Academy of Sciences,c.o-autor do "RapP?rt Brooks" (O.C.D.E., juin 1971), fazendo a crí-tIca do modo de mvestimento na R. & D. no curso dos anos 60,declarava: "Um dos efeitos .da corrida à lua foi aumentar o custoda inovação tecnológica até esta tornar-se simplesmente demasiadocara (. .. ). A_pes,!u~sa é propriamente uma atividade a longo termo:uma aceleraçao raplda ou um retardamento implicam despesas nãodeclaradas e numerosas incompetências. A produção intelectual não~odc ultrapas~ar u~, certo ritmo" ("Les f.tats-Unis ont-ils une poli·tique de Ia sClence~ , La recherche 14, jui1let 1971, 611). Em marçode 1972, ~. ,~. Davld Jr., conselheiro científico da Casa Branca, quclançou a Idel~ de uma Research Applied to National Needs (R.A.N.N.), c.onclu}~ no ~esmo ~e.ntido: estratégia ampla c flexível paraa pesquisa, tatlca maiS restntIva para o desenvolvimento (La recher-che 21, mars 1972,211).Est~ foi um.a das condições exigi das por Lazarsfeld para a sua acci-taçao ?e cnar o que será o Mass Communication Research Center,cm Prmceton, em 1937. Isto não se realizou sem tensões. Os indus·triais de rádio recusarám investir no projeto. Dizia-se dc Lazarsfeldque ele lançava as coisas mas não acabava nada. Ele mesmo diziaa Morrison: 1 usually put thinks together allel hopeel they workeel.

148.

149.

Citado por D. Morrison, "The Beginning of Modern Mass Communi·cation Research", Archives européennes de sociologie XIX, 2 (1978).347-359.Nos Estados Unidos, o montante dos fundos consagrados pelo Es-tado federal a R. & D. igualou com o dos capitais privados no cursodo ano de 1965; a partir de então, ele o ultrapassou (O.C.D.F., 1965).Nisbet, op. cit., capo 5, faz uma descrição amarga da penetração dohigher capitalism na universidade sob a forma de centros de pesquisaindependentes dos departamentos. As relações sociais nos centrosabalam a tradição acadêmica. Ver também em (Auto)critique de Iascience, loc. cit., os capítulos: "Le prolétariat scientifique", "Les cher-cheurs", "La crise des mandarins".N. Luhmann, Legitimation elurch Verfahren, Neuwied, Luchterhand,1969.Cl. Mueller, comentando Luhmann, escreve: "Nas sociedades indus-triais desenvolvidas, a legitimação legal-racional é substituída poruma legitimação tecnocrática, que não atribui nenhuma importância(significance) às crenças dos cidadãos nem à própria 1T'0ralidade,"(The Politics of Communication, loco cit., 135). Vcr uma bibliografiasobre a questão tecnocrática em Habermas, Théorie et pratique 11,loc. cit" 135-136.Uma análise lingüística do controle da verdadc é dada por G. Fau-connier, "Comment contrôler Ia vérité? Remarques ilIustrées par desassertions dangereuses et pernicieuses en tout geme", Actes ele Iarecherche en sciences sociales 25 (janvier 1979), 1-22.Foi assim que se exigiu em 1970 do University Grants Committeebritânico "exercer um papel mais positivo no domínio da produti-vidade, da especialização,' da concentração dos temas e do controledos prédios limitando os custos destes últimos" (The Politics ofEducation: E, Boyle & A. Crosland parlent à M. Kogan, Penguin ofEducation Special, 1971-). Isto pode parecer contraditório com de-clarações como as de Brooks, anteriormente citadas (nota 156). Mas,1) a "estratégia" pode ser liberal e a "tática" autoritária, o que afir-ma, aliás, Edwards; 2) a responsabilidade no seio das hierarquiasdos poderes públicos é freqüentemente compreendida no sentido maiscstrito, que é a capacidade de corresponder ao desempenho calculá-vel de um projeto; 3) os poderes públicos não estão ao abrigo daspressões de grupos privados cujo critério de desempenho é imedia-tamente restritivo. Se as chances de inovação na pesquisa escapamao cálculo, o interesse público parece ser o de ajudar toda pesquisa,em outras condições que não a da eficácia estimável a termo.

BIBLIOTECA CENTRAL

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ximosanos, aumentará: todas as disciplinas relacionadascom a formação "telemática" (informáticos, cibernéticos,lingüistas, matemáticos, lógicos .. '.) deveriam ser reco-nhecidas como prioritárias em matéria de ensino. E istona medida em que a multiplicação destes experts deveriaacelerar os progressos da pesquisa em outros setores doconhecimento, como já se viu para a medicina e a biologia.

Por outro lado, o ensino superior, sempre na mesmahipótese geral, deverá continuar a fornecer ao sistema so-tial as competências correspondentes às suas exigênciaspróprias, que são a de manter sua coesão interna. Ante-riormente, esta tarefa comportava a formação e a difusãode um modelo geral de vida, que legitimava ordinariamen-te o discurso da emancipação. No contexto da deslegitima-ção, as universidades e as instituições de ensino superiorsão de agora em diante solicitadas a formar competências,e não mais ideais: tantos médicos, tantos professores detal ou qual disciplina, tantos engenheiros, administrado-res, etc. A transmissão dos saberes não aparece mais comodestinada a formar uma elite capaz de guiar a nação emsua emancipação. Ela fornece ao sistema os jogadores capa-zes de assegurar convenientemente seu papel junto aospostos pragmáticos de que necessitam as instituições.l65

Se os fins do ensino superior são funcionais, quemsão os seus destinatários? O estudante já mudou e deverámudar ainda. Ele não é mais um jovem egresso das "eli-tes liberais"l66 e influenciado de perto ou de longe pelagrande tarefa do progresso social compreendido comoemancipação. Neste sentido, a universidade "democrática",sem exame de seleção .(vestibular), pouco dispendiosa parao estudante e a sociedade, se se calcula o custo-estudanteper. capita, mas acolhendo numerosas inscrições ,167e cujomodelo era o do humanismo emancipacionista, revela-sehoje pouco eficiente.168De fato, o ensino superior já estáafetado por uma transformação de importância simulta-neamente dirigida por medidas administrativas e por uma

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o ENSINO E SUA LEGITIMAÇÁOPELO DESEMPENHO

QUANTO à outra vertente do saber, a da sua transmis-são, isto é, o ensino, parece fácil descrever a maneira pelaqual a prevalência do critério de desempenho vem afetá-Ia.

Admitindo-se a idéia de conhecimentos aceitos aquestão de sua transmissão subdivide-se pragmaticam~ntenuma série de questões: quem transmite? o que é transmi-tido? a quem? com base em quê? e de que forma? comque, efeito? 164Uma política universitária é formada por umconjunto coerente de respostas a estas questões;

No momento em que o critério de pertinência é odesempenho do sistema social suposto, isto é, quando seadota a perspectiva da teoria dos sistemas, transforma-seo ensino superior num sub-sistema do sistema social eaplica-se o mesmo critério de desempenho à solução' decada um destes problemas.

O efeito a se obter é a contribuição ótima do ensinosuperior ao melhor desempenho do sistema social. Ele de-verá então formar as competências que são indispensáveisa este último. Elas são de duas espécies. Umas são desti~n~das m~is particularmente a encarar a competição mun-dIal. VarIam segundo as "especialidades" respectivas queos Estados-nações ou as grandes instituições de formaçãopodem vender sobre o mercado mundial. Se nossa hipóteseg~ral for verdadeira, a demanda de experts, quadros supe-rlOr~s e q~a?:os médios dos setores de vanguarda desig-nados no InICIOdeste estudo, que são o desafio dos pr6-

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o novo caminho tomado pela transmissão do sabernão prossegue sem conflitos. Pois, de um lado, enquantoé do interesse do sistema, e portanto de seus "decisores",de encorajar a promoção profissional, já que ela não podesenão melhorar as performances do conjunto, por outrolado, tanto a experimentação sobre os discursos, as insti-tuições e os valores, acompanhada por inevitáveis "desor-dens" no curriculum, o controle dos conhecimentos e apedagogia, sem falar de recaídas sociopolíticas, mostra-sepouco operacional e se vê recusar qualquer crédito emnome da seriedade do sistema. Contudo, o que se delineiaaí é uma via de saída fora do funcionalismo tanto menosnegligenciável porque foi o funcionalismo que a traçou.172

Mas pode-se calcular que a responsabilidade seja confiadaàs redes extra-universitárias.I73

De qualquer modo, o princípio de desempenho, mes-mo se não permite decidir claramente em todos os casossobre a política a seguir, tem por conseqüência global asubordinação das instituições do ensino superior aos po-deres constituídos. A partir do momento em que o sabernão tem mais seu fim em si mesmo como realização daidéia ou como emancipação dos homens, sua transmissãoescapa à responsabilidade exclusiva dos mestres e dos es-tudantes. A idéia de "franquia universitária" é hoje deuma outra época. As "autonomias" reconhecidas às uni-versidades após a crise do final dos anos 60 são de poucopeso perto do fato evidente de que os conselhos de' pro-fessores quase não participam da decisão sobre o orça-mento que chega à sua instituição;174 eles têm apenas opoder de repartir o montante que lhes é concedido, e ain-da assim somente no final de seu percurso.175

. Agora, o que se transmite nos ensinos superiores?Tratando-se de profissionalização, e atendo-se a um pontode vista estritamente funcional, o essencial do transmissí-vel é constituído por um estoque organizado de conheci-mentos. A aplicação de novas técnicas a este estoque pode

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demanda social pouco controlada surgindo dos 'novos usuá-rios, e que tende a ordenar suas funções em duas grandesespécies de serviços. .

Por sua função de profissionalização, o ensino supe-rior endereça-se ainda a jovens egressos das elites liberaisàs quais é transmitida a competência que a profissão julganecessária; vêm juntar-se a isto, por uma via ou por outra(por exemplo, os institutos tecnológicos), mas segundo omesmo modelo didático, os d~stinatários dos novos sabe-res ligados às novas técnicas e tecnologias que são igual-mente jovens ainda não "ativos".

Fora destas duas categorias de estudantes que repro-duzem a "intelligentsia profissional" e a "intelligentsia téc-nica" /69 os outros jovens presentes à universidade são emsua maioria desempregados não contabilizados nas estatís-ticas de demanda de emprego. Com efeito, seu número ex-cede o fixado em relação às 'perspectivas profissionais cor-respondentes às disciplinas nas quais se encontram (letrase ciências humanas). Eles pertencem, na realidade, malgra-do sua idade, à nova categoria dos destinatários da trans-missão do saber.

Pois, ao lado desta função profissionalizante, a uni-versidade começa ou deveria começar a desempenhar umnovo papel no quadro da melhoria das performances do. t d' I 170 F d . .SISema, o a reCl.cagem permanente. ora as UnIVerSI-

dades, departamentos ou instituições de vocação profissio-nal, o saber não é e não será mais transmitido em blocoe de uma vez por todas a jovens antes de sua entrada navida ativa; ele é e será transmitido à la carte a adultosjá ativos ou esperando sê-Io, em vista da melhoria de suacompetência e de suá promoção, mas também em vista daaquisição de informações, de linguagens e de jogos de lin-guagem que lhes permitam alargar o horizonte de suavida profissional e de entrosar experiência técnica eética.17l

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ter uma incidência considerável sobre o suporte comuni-cacional. Não parece indispensável que este seja um cursoproferido de viva voz por um professor diante de estu-dantes mudos, sendo o tempo para perguntas transferiQ.opara as seções de "trabalhos" dirigidas por um assistente.Na medida em que os conhecimentos são traduzíveis emlinguagem informática, e enquanto o professor tradicionalé assimilável a uma memória, a didática pode ser confiadaa máquinas articulando 'as memórias clássicas (bibliotecas,etc.) bem como os bancos de dados a. terminais inteligentescolocados à disposição dos estudantes.

A pedagogia não sofrerá necessariamente com isto,pois será preciso apesar de tudo ensinar alguma coisa aosestudantes: não os conteúdos, mas o uso dos terminais,isto é, de novas linguagens, por um lado, e, por outro,um manejo mais refinado deste jogo de linguagem que éa pergunta: onde endereçar a questão, isto é, qual a me-mória pertinente para o que se quer saber? Como formulá-Ia para evitar os equívocos, etc.176Nesta perspectiva, umaformação elementar em informática e particularmente emtelemática deveria fazer parte obrigatoriamente de umapropedêutica superior, do mesmo modo que a aquisiçãoda prática corrente de uma língua estrangeira, porexemplo.177

É somente na perspectiva de grandes relatos de legi-timação - vida do espírito e/ou emancipação da huma-nidade - que a substituição parcial dos professores pormáquinas pode parecer deficiente, e mesmo intolerável.Mas é provável que estes relatos já não constituam maisa causa principal do interesse pelo saber. Se esta causa éo poder, este aspecto da didática clássica deixa de ser per-tinente. A questão, explícita ou não, apresentada peloestudante profissionalizante, pelo Estado ou pela institui-ção de ensino superior não é mais: isto é verdadeir.o?, mas:para que serve isto? No contexto da mercantilização dosaber, esta última questão significa comumente: isto é ven-92

dável? E, no contexto do aumento do poder: isto é eficaz?Ora, parece dever ser bem vendável a disposição de umacompetência atuante nas condições acima descritas, e elaé eficaz por definição. O que deixa de sê-Io é a compe-tência segundo outros critérios, como o verdadeiro/falso,o justo/injusto, etc. e, evidentemente, o fraco desempe-nho em geral.

A perspectiva de um vasto mercado de competênciasoperacionais está aberta. Os detentores desta espécie desaber são e serão objeto de ofertas e mesmo motivo dedisputa de políticas de sedução.178Deste ponto de vista,não é o fim do saber que se anuncia, e sim o contrário.A enciclopédia de amanhã são os bancos de dados. Elesexcedem a capacidade de cada usuário. Eles são a "natu-reza" para o homem pós-moderno.l79

Entretanto, notar-se-á que a didática não consiste so-mente na transmissão de informação, e que a competência,mesmo atuante, não se resume em se ter uma boa memó-ria de dados ou numa boa capacidade de acesso a memó-rias-máquinas. É uma banalidade sublinhar a importânciada capacidade de atualizar os dados pertinentes para o pro-blema a resolver 'iaqui e agora" e de ordená-Ios numaestratégia eficiente.

À medida que o jogo está na informação incom-pleta, a vantagem cabe àquele que sabe e pode obter umsuplemento de informação. Este é o caso, por definição,de um estudante em situação de aprender. Mas, nos jogosde informação completa,180o melhor desempenho não podeconsistir, por hipótese, na aquisição de um tal suplemento.Ela resulta de um novo arranjo dos dados, que constituempropriamente um "lance". Este novo arranjo obtém-se or-dinariamente mediante a conexão de séries de dados tidosaté então como independentes.181 Pode-se chamar imagina-ção esta capacidade de articular em conjunto o que assimnão estava. A velocidade é uma de suas propriedades.182

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Ora, é permitido representar o mundo do saber pós-moderno como regido por um jogo de informação com-pleta, no sentido de que os dados são em princípio acessí-veis a todos os experts: não existe segredo científico. Oaumento de eficiência, de competência igual, na produçãodo saber, e não mais em sua aquisição, depende então final·mente desta "imaginação", que permite seja realizar umnovo lance, seja mudar as regras do jogo.

Se o ensino deve assegurar não somente a reprodu-ção das competências, como também seu progresso, seriapreciso em conseqüência que a transmissão do saber nãofosse limitada à de informações, mas que ela comporte aaprendizagem de todos os procedimentos capazes de me-lhorar a capacidade de conectar campos que a organizaçãotradicional dos saberes isola ciosamente. A palavra de or-dem da interdisciplinariedade, difundida sobretudo após acrise de 68, mas preconizada bem antes, parece seguir estadireção. Ela chocou-se contra os feudalismos universitários,diz-se. Ela chocou-se com muito mais.

No modelo humboldtiano de universidade, cada ciên-cia ocupa seu lugar num sistema dominado pela especula-ção. A invasão de uma ciência no campo de uma outra nãopode provocar senão confusões, "ruídos", no sistema. Ascolaborações não podem se realizar senão no nível espe-culativo, na cabeça dos filósofos.

Ao ,contrário, a idéia da interdisciplinaridade per-tence propriamente à época da deslegitimação e ao seu·empirismo apressado. A relação com o saber não é a darealização da vida do espírito ou da emancipação da hu-manidade; é dos utilizadores de um instrumental concei-tual e material complexo e dos beneficiários de suas per-formances. Eles não dispõem de uma metalinguagem nem deum metarrelato para formular-lhe a finalidade e o bomuso. Mas têm o brain storming para reforçar-lhe as per-formances.

A valorização do trabalho em equipe pertence a estaprevalência do critério do desempenho no saber. Pois parao que se considera como verdadeiro ou se prescreve comojusto, o número não quer dizer nada; a não ser se justiçae verdade sejam pensadas em termos de êxito mais prová-vel. Com efeito, as performances em geral são melhoradaspelo trabalho em equipe, sob condições que as ciênciassociais tornaram precisas há muito tempo.183Na verdade,elas alcançaram sucesso em relação ao desempenho no qua-dro de um modelo dado, isto é, na execução de uma tare-fa; a melhoria parece menos certa quando se trata de "ima-ginar" novos modelos, isto é, quanto a concepção. Ao que

~ 1 1 b' 184 M .parece, tem-se a guns exemp os so re Isto. as contmuadifícil separar o que corresponde ao dispositivo em equipee o que se deve ao gênio dos participantes.'

Observar-se-á que esta orientação concerne mais àprodução do saber (pesquisa) que à sua transmissão. Éabstrato, e provavelmente nefasto, separá-los completa-mente, mesmo no quadro do funcionalismo e do profissio-nalismo. No entanto, a solução, para a qual se orientamde fato as instituições do saber em todo o mundo, con-siste em dissociar esses dois aspectos da didática, o dareprodução "simples" e o da reprodução "ampliada", dis-tinguindo entidades de toda natureza, sejam estas insti-tuições, reagrupamentos de disciplinas, alguns dos quaisvotados à seleção e à reprodução de competências profis-sionais, e outras à promoção e à "embalagem" de espí-ritos "imaginativos". Os canais de transmissão colocadosà disposição dos primeiros podecio ser simplificados egeneralizados; os segundos têm direito aos pequenos gru-pos que funcionam num igualitarismo aristocrático.185 Es-tes últimos podem fazer parte ou não oficialmente de uni-versidades, isto pouco importa.

Mas o que parece certo, é que nos dois casos adeslegitimação e. a prevalência do critério do desempenhosoam como a hora final da era do Professor: ele não é

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mais competente que as redes de memotlas para trans-mitir o saber estabelecido; e ele não é mais competenteque as equipes interdisciplinares para imaginar novos lan-ces ou novos jogos.

170. t o que M. Rioux e J. Dofny indicam sob a rubrica "Formação cultu-ral": J. Dofny & M. Rioux, "Inventaire et bilan de quelquesexpérien-ces d'intervention de l'université", in L'universit~ dans son milieu:action et responsabilité (Colóquio da A.U.P.E.L.F.), Universidade deMontreal, 1971, 155-162. Os autores fazem a crítica do que eles cha-mam dos dois tipos de universidade da América do Norte: os liberalart colleges, onde ensino e pesquisa são inteiramente dissociados da de-manda social, e a multiversity, pronta a fornecer todo ensino, de quea comunidade aceita assumir o custo. Sobre esta última fórmula, verC. Kerr, The Uses of the University. With a Po§tscript - 1972 -Cambridge (Ma), Harvard U.P., 1972. Num sentido análogo, massem o intervencionismo da universidade na sociedade que Dofny eRioux preconizam, ver a descrição da universidade futura. dada porM. Alliot durante o mesmo colóquio, "Structures optimales de I'ins-titution universitaire", idib., 141-154. M. Alliot conclui: "Acredita-mos em estruturas, quando no futuro deveria haver o mínimo deestrutura possível." Esta é a voca~ão do Centro experimental, depoisUniversidade de Paris VIII (Vincennes), declarada por ocasião de suafundação, em 1968. Ver a este respeito o dossiê Vincennes ou ledésir d'apprendre, Alain Moreau, 1979.

171. O signatário se faz aqui a testemunha da eX;Jeriência de um grandenúmero de departamentos de Vincennes.

172. A lei de orientação do ensino superior de 12 de novembro de 1968inclui a formação permanente (entendida de maneira profissionali-zante) entre as missões do ensino superior: este "deve estar abertoaos antigos estudantes bem como às pessoas que não tiveram a pososibilidade de prosseguir nos estudos a fim de Ihes permitir, segundosuas capaci~ades, melhorar suas chances de promoção ou mudar suaatividade profissional."

173 .. Numa entrevista à Télé-sept-;ours 981 (17 mars 1979), o ministrofrancês da Educação, que havia recomendado oficialmente a sérieHolocausto, transmitida no canal 2 (França), aos alunos do ensinopúblico (iniciativa sem precedente), decl~ra que a tentativa do setoreducativo de se criar um instrumento audiovisual autônomo emper-rou e que "a primeira das tarefas educativas é a de ensinar às crian·ças a escolherem seus programas" na TV.

174. Na Grã-Bretanha, onde a participação do Estado nas despesas emcapital e em funcionamento das universidades passou de 30 a 80%entre 1920 a 1960, foi o University Grants Committee, vinculado aoministério do Estado para a ciência e as universidades, que, apósexame das necessidades e dos planos de desenvolvimento apresenta-dos pelas universidades, distribuiu entre estas a subvenção anual.Nos Estados Unidos, os trustes são todo-poderosos.

175. Quer dizer, na França, entre os departamentos, para as despesasde funcionamento e de equipamento. As remunerações não são desua alçada, salvo para os Iicenciaàos. O financiamento de projetos,de novas experiências, etc., é custeado pelo "pacote" (verba) peda-gógico que cabe à universidade.

176. M. McLuhan, D'oeil à oreille, Denoel-Gonthier, 1977; P. Antoine,"Comment s'informer?", Pro;et 124 (avril 1978), 395-413.

Durante os semmanos de Princeton Radio Research Center. dirigidospor Lazersfeld em 1939-1940. Lasweel definiu o processo de comu-nicação pela fórmula: Who says lvhat to whom in what channelwith what effect? Ver O. Morrison. art. citoO que Parsons define como "ativismo instrumental" elogiando-o aponto de confundi-Io com o "conhecimento racionar': "A orientaçãopara o conhecimento racional é implícita na cultura comum doativismo instrumental. mas ela não. se torna mais ou menos explícitae não é muito apreciada senão nas categorias sociais as mais instruí-das que a utilizam mais evidentemente em suas atividades profissio-nais." (T. Parsons & G. M. Platt. "Considerations on the AmericanAcademic System". IHinerva VI [été 1968]. 507; citado por A.Touraine, Université et société ... , loco cit .. 146).O que Mueller chama professional intelligentsia, opondo-a à techni-cal intelligentsia. Seguindo J. K. Galbraith, descreve a inquietaçãoe a resistência da primeira em face da legitimação tecnocrática (op.cit., 172-177).No início dos anos 1970-1971. na classe de idade dos 19 anos, aproporção dos inscritos no ensino superior era de 30 a 40% noCanadá, Estados Unidos, União Soviética e Iugoslávia; em torno de20% na Alemanha, França, Grã-Bretanha, Japão e Países Baixos. Nes-tes países, tinha duplicado ou triplicado em relação às taxas de 1959.Segundo a mesma fonte (M. Oeveze. Histoire contemporaine del'université Paris Sedes, 1976, 439-440), a relação população estu-dante/pop~lação 'total passou entre 1950 e 1970 de aproximada-mente 4% para aproximadamente 10% na Europa ocidental, de 6.1para 21.3 no Canadá, de 15.1 para 32.5 nos Estados Unidos.Na França, de 1968 a 1975, a receita total dos ensinos superiores(sem o C.N.R.S.) passou (em milhões de francos correntes) de 3.015para 5.454', ou seja, de aproximadamente 0.55% para 0.39% doP.N.B. Os aumentos observados em cifras absolutas interessam ascategorias: remunerações, funcionamento, bolsas; a categoria sub:venções para pesquisa permanente sensivelmente estagnada (Deveze,op. cit., 447-450). Nos anos 70, E. E. David declarava que o Ph.D.não era mais necessário. a não ser para o decênio anterior (art. cit.,212).Segundo a terminologia de Cl. Mueller. op. cito

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177 . Sabe-se que o uso de terminais inteligentes é ensinado aos estudantesno Japão. No Canadá, os centros universitários e colegiais isoladosusam-os correntemente.

178. Foi a política seguida pelos centros de pesquisa americanos desdeantes da Segunda Guerra Mundial.

179. Nora e Minc escrevem (op. cit., 16): "O principal desafio, nos pró-ximos decênios, não está mais, para os grupos mais avançados dahumanidade, na capacidade de dominar a matéria. Esta já foi domi-nada. Ele reside na dificuldade de construir a rede dos laços quefazem progredir juntas a informação e a organização."

180. A. Rapoport, Fights, Games and Debates, Ann Arbor, Uno of Mi-chigan Press, 1960; d. Lathébeaudiere, Combats, débats et jeux, Du-nod, 1967.

181. É o Branching Model de Mulkay (ver nota 151). G. Deleuze analisouo evento em termos de crescimento de séries em Logique du sel1S,Minuit, 1968, e em Dijjérel1ce et répétitiol1, P.U.F., 1968.

182. O tempo é uma variável que entra na determinação 'da unidade depotência em dinâmica. Ver também P. Virilio, Vitesse et politique.Galílée, 1976.

183. J. L. Moreno, Who shall Survive? (1934), N.Y., Beacon, 2: ed., 1953;t.f. Maucorps & Lesage, in J. L. Moreno, FOl1demel1ts de Ia socio-logie, t. V, "Perspectives de l'avenir: qui survivra?", P.U.F., 1954.

184. The Mass Communication Research Cel1ter (Princeton), The Mel1talResearch Institute (PaIo Alto), The Massachusetts Il1stitute oj Tech-nology (Boston), Il1stitut jür Sozialjorschul1g (Frankfurt), entre osmais célebres. Uma parte da argumentação de C. Kerr em favor doque ele chama o Ideopolis basea-se no princípio do ganho em inven-tividade obtido pelas pesquisas coletivas (op. cit., 91 sq.).

185. D. J. de Sol1a Price (Little Science, Big Sciel1ce, loc. cit.) tenta cons·tituir a ciência da ciência. Ele estabelece leis (estatísticas) da ciênciatomada como objeto social. Assinalamos a lei da clivagem não demo-crática na nota 131. Uma outra lei, a dos "colégios invisíveis", des-creve o efeito que resulta da própria multiplicação das publicaçõese da saturacão dos canais de informacão nas instituicões científicas:os "aristocr~tas" do saber tendem por' reação a estab'eIe.cer redes es-táveis de contatos interpessoais agrupando no máximo uma centenade membros cooptados. Sobre estes "colégios", D. Crane dá umainterpretação- sociométrica em Il1visible Colleges, Chicago & Londres.The Uno of Chicago P., 1972. Ver Lécuyer, art. cito

A CI~NCIA PÓS-MODERNA COMO PESQUISADE INSTABILIDADE

AFIRMOU-SE anteriormente que a pragmatlca da pes-quisa científica, sobretudo em seu aspecto de pesquisa deargumentações novas, trazia para o primeiro plano a in-venção de "lances" novos e mesmo de novas regras dejogos de linguagem. Importa agora sublinhar este aspecto,que é decisivo no estado atual do saber científico. Desteúltimo poder-se-ia dizer, analogicamente, que ele está embusca de "caminhos de saída da crise", considerando-secomo crise o determinismo. O determinismo é a hipótesesobre a qual repousa a legitimação pelo desempenho: defi·nindo-se este por uma relação input / output, deve-se su-por que o sistema no qual faz entrar o input encontra-senum estado estável; ele obedece a uma "trajetória" re-gular através da qual pode-se estabelecer a função contínuae derivável que permitirá antecipar convenientemente ooutput.

Esta é a "filosofia" positivista da eficiência. Opondo-lhe aqui alguns exemplos evidentes, procura-se facilitar 'adiscussão final da legitimação. Trata-se em suma de mos-trar em alguns casos típicos que a pragmática do sabercientífico pós-moderno tem, nela mesma, pouca afinidadecom a busca do desempenho.

A expansão da ciência não se faz graças ao positi-vismo da eficiência. É o contrário: trabalhar na prova épesquisar e inventar o contra-exemplo, isto é, o ininte-ligível; trabalhar na argumentação é pesquisar o "para-

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doxo" e legitimá-Io com novas regras do jogo de raciocí-IIÍO. Nos dois casos, a eficiência não é visada por si mesma,ela vem por acréscimo, por vezes tarde, quando os finan-ciadores se interessam enfim pelo caso.l86Mas, o que nãopode deixar de vir e voltar com uma nova teoria, umanova hipótese, um novo enunciado, uma nova observa-ção, é a questão da legitimidade. Pois é a própria ciênciaque a si mesma levanta esta. questão, e não a filosofiaà ciência.

O que está ultrapassado não é perguntar-se o queé verdadeiro e o que é justo, e sim considerar-se a ciênciacomo positivista e condenada a este conhecimento ilegi-timado, a este meio-saber de acordo com os idealistasalemães. A questão: O que vale o seu argumento) o quevale a sua prova? faz de tal modo parte da pragmática dosaber científico que é ela, que assegura a metamorfosedo destinatário do arguméiÍto e da prova em questão emdestinador de um novo argumento e de uma nova prova,donde a simultânea renovação dos discursos e das gera-ções científicas. A ciência se desenvolve, e ninguém con-testa que ela se desenvolve, desenvolvendo esta questão.E esta mesma questão, desenvolvendo-se, conduz à ques-tão, isto é, à metaquestão ou questão da legitimidade:O que vale o seu "o que vale"?'87

Como já se disse, o traço surpreendente do saberpós-moderno é a imanência a si mesmo, mas explícita, dodiscurso sobre as regras que o legitimam.'88 O que pôdepassar ao final do século XIX. por perda de legitimidadee decadência no "pragmatismo" filosófico ou no positi-vismo lógico não foi senão um episódio, por meio do qualo saber ergueu-se pela inclusão no discurso filosófico dodiscurso sobre a validação de enunciados com valor comoleis. Viu-se que esta inclusão não é uma operação simples,ela dá lugar a "paradoxos" assumidos como eminentementesérios e a "limitações" no alcance do saber que são, defato, modificações de sua natureza.

100

A pesquisa metamatemática que se desenvolve atéchegar ao teorema de Godel é um verdadeiro paradigmadesta mudança de natureza.189Mas a transformação da di-nâmica não é um exemplo menos importante do novoespírito científico, e ela nos interessa particularmente por-que obriga a corrigir uma noção que já vimos, e que égrandemente introduzida na discussão da performance, par-ticularmente em matéria de teoria social: a noção de sistema.

A idéia de performance implica a de sistema comestabilidade firme, porque repousa sobre o princípio deuma relação, a relação sempre calculável em princípio en-tre calor e trabalho, entre fonte quente e fonte fria, entreinput e output. É uma idéia que vem da termodinâmica.Ela está associada à representação de uma evolução pre-visível das performances do sistema, sob a condição quese lhe conheçam todas as variáveis. Esta condição é clara-mente expressa a título de limite pela ficção do "demônio"de Laplace:'90 de posse de todas as variáveis que deter-minam o estado do universo em um instante t) ele podeprever o seu estado no instante t' > t. Esta suposição ésustentada pelo princípio de que os sistemas físicos, in-clusive o sistema dos sistemas que é o universo, obede-cem a regularidades, que por conseguinte sua evoluçãodelineia uma trajetória previsível e dá lugar a funçõescontínuas "normais" (e à futurologia ... ).

Com a mecânica quântica e a física atômica, a ex-tensão deste princípio deve ser limitada. E isto de doismodos, cujas respectivas implicações não têm o mesmo al-cance. Primeiramente, a definição do estado inicial de umsistema, isto é, de todas as variáveis independentes, se eladevesse ser efetiva, exigiria uma despesa de energia nomínimo equivalente àquela que consome o sistema a serdefinido. Uma versão leiga desta impossibilidâde de fatode efetuar a medida completa de um estado do sistema édada por uma observação de Borges: um imperador querestabelecer um mapa perfeitamente preciso do império. O

-tOl

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resultado é a ruína do país: a população inteira consagrad . , f' 191to a a sua energla a cartogra la.

Com o argumento de Brillouin,192a idéia (ou a ideolo-gia) do controle perfeito de um sistema, que deve per-mitir melhorar suas performances, mostra-se inconsistenteem relação à contradição: ela faz cair o desempenho quedeclara elevar. Esta inconsistência explica em particular afraqueza das burocracias estatais e sócio-econômicas: elassufocam os sistemas ou ,os subsistemas sob seu controle,e asfixiam-se ao mesm6 tempo que a si mesmas (feedbacknegativo). O interesse de uma tal explicação é que ela nãotem necessidade de recorrer a uma outra legitimação a nãoser a do sistema - por exemplo, a da liberdade dos agen-tes humanos que as levanta con.tra uma autoridade exces-siva. Admitindo-se que a sociedade seja um sistema, seucontrole, que implica a definição precisa do seu estadoinicial, não pode ser efetivo, porque esta definição nãopode ser efetuada.

Além disso esta limitação não coloca em causa senãpa efetividade de um saber preciso e do poder que deleresulta. Sua possibilidade de princípio permanece intacta.O determinismo clássico continua a constituir o limite,excessivamente caro, mas concebível, do conhecimento dossistemas.193

A teoria quântica e a microfísica obrigam a uma re-visão muito radical da idéia de trajetória contínua e pre-visível. A busca da precisão não se choca com um limitedevido ao seu custo, mas à natureza da matéria. Não éverdade que a incerteza, isto é,' a ausência de controle,diminua à medidà que a precisão aumente: ela aumentatambém. Jean Perrin propõe o exemplo da medida dadensidade verdadeira (quociente m'assa/volume) do arcontido numa esfera. Ela varia sensivelmente quando ovolume da esfera passa de 1.000m3 a lcm3

; ela varia muitopouco de lcm3 a l/l.ooome de mm\ mas já se pode obser-var neste intervalo o aparecimento de variações de densi-

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dade da ordem do milhar, que se produzem irregularmente.À medida que o volume da esfera se contrai, a impor-tância destas variações aumenta: para um volume da or-dem de l/lome de mícron cúbico, as variações atingem aordem do milésimo; para l/loome de mícron cúbico, elassão da ordem da quinta parte.

Diminuindo ainda mais o volume, atinge-se a ordemdo raio molecular. Se a esférula encontra-se no vazio en-tre duas moléculas de ar, a densidade verdadeira do aré nula. Contudo, na proporção de uma vez sobre mil, apro-ximadamente, o centro da esférula "cairá" no interior deuma molécula, e a densidade média neste ponto é entãocomparável ao que se chama de densidade verdadeira dogás. Se se desce a dimensões intra-atômicas, a esférula temtodas as chances de se encontrar no vazio, novamente comdensidade nula. Uma vez em um milhão de casos, no en-tanto, seu centro pode se encontrar situado num corpús-culo ou no núcleo do átomo, e então a densidade tornar-se-á muitos milhões de vezes superior à da água. "Se aesférula se contrair ainda mais ( ... ), provavelmente adensidade média retomará logo e será nula, como a den-sidade verdadeira, salvo em certas posições muito rarasonde ela atingirá valores colossalmente mais elevados queos precedentes."I94

O conhecimento relativo à densidade do ar abrangeportanto uma multiplicidade de enunciados que são total-mente incompatíveis entre si, e não se tornam compatí-veis a não ser que sejam relativizados em relação à escalaescolhida pelo enunciador. Por outro lado, em determi-nadas escalas, o enunciado desta medida não se resumenuma asserção simples, mas numa asserção modalizad~ dotipo: é plausível que a densidade seja igual a zero, masnão exclui que ela seja da ordem de 10", sendo n muitoelevado.

Aqui, a relação do enunciado do cientista com "oque diz" a "natureza" parece originar-se de um jogo de

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informação não completa; A modalização do enunciado doprimeiro exprime o fato que o enunciado efetivo, singular(o token) que proferirá a segunda não é previsível. O queé calculável é a chance ~e que est~ enunciado diga isto enão aquilo. No nível microfísico, uma "melhor" infor-mação, isto é, com maior capacidade de desempenho, nãopode ser obtida. A questão não é a de conhecer o que é oadversário (a "natureza"), e sim saber que jogo ele joga.Einstein se revoltava com a idéia de que "Deus joga da-d ,,195 E~ . . b 1os. , no entanto, um Jogo que' permite esta e ecerregularidades estatísticas "suficientes" (tanto pior para aimagem que se tinha do supremo Determinante). Se elejogava bridge, os "acasos primários" que a ciência encon-tra deveriam ser imputados não mais à indiferença dodado em relação às suas faces, mas à astúcia, isto é, a umaescolha ela mesma deixada ao acaso entre várias estraté-

• , • 196glas puras pOSSlvelS.Em geral, admite-se que a nat)Jreza é um adversário

indiferente, mas não astuto, e distingue-se as ciências danatureza e as ciências do homem com base nesta dife-rença.197Isto significa em termos pragmáticos que a "natu-reza" no primeiro caso é o referente, mudo, mas tão cons-tante quanto um dado lançado um grande número devezes, a respeito do qual os cientistas trocam os enun-ciados denotativos que são os lances que eles fazem unsaos outros, enquanto no segundo caso, sendo o homem oreferente, é também um parceiro que, falando, desenvolveuma estratégia, inclusive mista, diante da do cientista: oacaso com o qual este se choca então não é de objeto oude indiferença, mas de comportamento ou de estratégia,198isto é, agonístico.

Dir-se-á que estes problemas concernem a microfí-sica, e que eles permitem o estabelecimento de funçõescontínuas suficientemente semelhantes para permitir umaboa previsão probabilista da evolução dos sistemas. Assim,os teóricos do sistema, que são também os da legitimação104

pela performance, acreditam ter reencontrado seus direi-tos. Todavia, vê-se delinear na matemática contemporâneauma corrente .que põe novamente em causa a medida pre-cisa e a previsão de comportamentos de objetos segundoa escala humana.

Mandelbrot col~ca suas pesquisas sob a autoridadedo texto de Perrin que comentamos. Mas amplia-lhe oalcance numa perspectiva inesperada. "As funções de deri-vada, escreve ele, são as mais simples, as mais fáceis detratar, são no entanto a exceção; ou, se se prefere umalinguagem geométrica, as curvas que não têm tangentesão a regra, e as curvas bem regulares, tais como o cír-culo, são casos interessantes, mas muito especiais."l99

A constatação não tem um simples interesse de curio-sidade abstrata, ela vale para a maioria dos dados experi-mentais: os contornos de uma bolha de água de sabãosalgado apresentam tais infractuosidades que é impossívelpara o olho fixar uma tangente em algum ponto de suasuperfície. O modelo é dado aqui pelo movimento brownia-no, e sabe-se que uma de suas propriedades é de que ovetor do deslocamento da partícula a partir de um pontoé isótropo, isto é, que todas as direções possíveis são igual-mente prováveis.

Mas reaparece o mesmo problema na escala habitualse, por exemplo, se quiser medir com precisão a costa daBretanha, a superfície da Lua coberta de crateras, a dis-tribuição da matéria estelar, as "rajadas" de ruídos numaligação telefônica, as turbulências em geral, a forma dasnuvens, enfim, a maioria dos contornos e das distribuiçõesdas coisas que não sofreram a uniformização imposta pelamão dos homens.

Mandelbrot mostra que a figura apresentada por estegênero de dados as aproxima de curvas correspondentesàs funções contínuas não deriváveis. Um modelo simpli-ficado seria a curva de Von Koch;2ooela possui uma homo-tetia interna; pode-se mostrar formalmente que a dimen-

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são de homotetia sobre a qual ela é construída não é uminteiro mas o log 4 / Jog 3. Tem-se o direito de dizerque tal curva situa-se num espaço cujo "número de di-mensões" está entre 1 e 2, e que ela é portanto intuiti-vamente intermediária entre linha e superfície. É porquesua dimensão pertinente de homotetia é uma fração queMandelbrot chama estes objetos de objetos fractais.

Os trabalhos de René Thom201 seguem um sentidoanálogo. Eles interrogam diretamente a noção de sistemaestável, que é pressuposta no determinismo laplaciano emesmo probabilista.

Thom estabelece a linguagem matemática que permitedescrever como descontinuidades podem se produzir for-malmente em fenômenos determinados e dar lugar a for-mas inesperadas: esta linguagem constitui a teoria dita dascatástrofes.

Seja a agressividade como variável de estado de um·cão; ela cresce na função direta de sua raiva, variável decontrole.202Supondo que esta seja mensurável, chegandoa determinado limite, traduz-se em ataque. O medo, se-gunda variável de controle, terá o efeito inverso, e, che-gando a determinado limite, se traduzirá pela fuga. Semraiva nem medo, a conduta do cão é neutra (vértice dacurva de Gauss). Mas, se as duas variáveis de controlecrescem juntas, as duas serão aproximadas ao .mesmo· tem-po: a conduta do cão torna-se imprev~sível, ela pode pas-sar bruscamente do ataque à fuga, e inversamente. Osistema é chamado instável: as variáveis de controle va-riam continuamente, e as de estado, descontinuamente.

Thom mostra que se pode escrever a equação destainstabilidade e desenhar o gráfico (tridimensional, já queexistem duas variáveis de controle e uma de estado) quedetermina todos os movimentos do ponto representandoo comportamento do cão, e entre eles a passagem bruscade um comportamento a outro. Esta equação caracteriza

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um tipo de catástrofe, que é determinado pelo número devariáveis de controle e de variáveis de estado (aqui 2 + 1).

A discussão sobre os sistemas estáveis ou instáveis,sobre o determinismo ou não, encontra aqui uma saída,que Thom formula em um postulado: "O caráter maisou menos determinado de um processo é determinado peloestado local deste processo. ,,203O determinismo é uma es-pécie de funcionamento que é ele mesmo determinado:a natureza realiza em qualquer circunstância a morfologialocal menos complexa, que seja portanto compatível comos dados iniciais 10cais.204Mas é possível, e é mesmo maisfreqüente, que estes dados impeçam a estabilização de umaforma. Pois elas estão freqüentemente em conflito: "Omodelo das catástrofes reduz todo o processo causativo aum único, cuja justificação intuitiva não apresenta pro-blemas: o conflito, pai de todas as coisas, segundo Berá-clito.,,20s Existem mais chances de que as variáveis decontrole sejam incompatíveis que o contrário. Não exis-tem assim senão "ilhas de determinismo". O antagonismocatastrófico é a regra, no sentido próprio: existem as re-gras da agonística geral das séries, que se definem pelonúmero de variáveis em jogo.

Pode-se encontrar uma repercussão (atenuada, é ver-dade) dos trabalhos de Thom nas pesquisas da escola dePaIo Alto, notadamente na aplicação da paradoxologia aoestudo da esquizofrenia, que é conhecida com o nome deDouble Bind Theory.206 Apenas daremos aqui notícia destaaproximação. Ela permite compreender a extensão destaspesquisas centradas sobre as singularídades e as "inco-mensurabilidades" até o domínio da pragmática das difi-culdades mais cotidianas.

A idéia que se tira destas pesquisas (e de muitasoutras) é de que a preeminência da função contínua dederivada como paradigma do conhecimento e da previsãoestá em vias de desaparecer. Interessando-se pelos inde-cidíveis, nos limites da precisão do controle, pelos quanta,

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pelos conflitos de informação não completa, pelos "fracta",pelas catástrofes, pelos paradoxos paradigmáticos, a ciên-cia pós-moderna torna a teoria de sua própria evoluçãodescontínua, catastrófica, não retificável, paradoxal. Mudao sentido da palavra saber e diz como esta mudança podese fazer, Produz, não o conhecido, mas o desconhecido,E sugere um modelo· de legitimação que não é de modoalgum o da melhor performance, mas o da diferença com-

d'd I ' 207preen I a como para ogla,Como diz muito bem um especialista da teoria dos

jogos, cujos trabalhos seguem a mesma direção: "Ondeestá então a utilidade desta teoria? Achamos que a teoriados jogos, como toda teoria elaborada, é útil no sentidod I 'd" ,,208 P P B M d 209e que e a gera I elas. or sua parte, . , e awardizia que "ter idéias é o supremo êxito para um cientista",que não existe "método científico,,21o e que um cientistaé em princípio alguém que "conta histórias", cabendo.Aihesimplesmente verificá-Ias.

186. B. Mandelbrot (Les objets fructals. Forme, hasard et dimension,Flammarion, 1975) apresenta num A;1êndice (172-183) "esboços bio·gráficos" de pesquisadores em matemáticas e em física reconhecidostardiamente ou que ficaram desconhecidÇJs por causa da estranhezade suas idéias e malgrado a fecundidade de suas descobertas.

187. Um exemplo célebre é dado pela discussão sobre o determinismodesencadeada pela mecânica quântica. Ver, por exemplo, a apresen-tação da correspondência entre M. Bom e A. Einstein (1916-1955)por J. M, Lévy-Leblond, "Le grand débat"de Ia mécanique quan-tique", La recherche 20 (février 1972~, 137-144. A história das ciên-cias humanas há um século está repleta destas passagens do discursoantropológico ao nível de metalinguagem.

188. I. Hassan dá uma "imagem" do que ele chama immanence in "Cul·ture, Indeterminacy, and Immanence", loc. cito

189. Ver nota 142.190. P. S. Laplace, Exposition du systeme du monde, I & n, 1796.191. Do rigor da ciência, Histoire de l'infamie, Monaco, Rocher, 1951. A

nota em questão é atribuída por Borges a Suarez Miranda, Viajes de

Varones Prudentes IV, 14, Lerida, 1658. O resumo dado aqui é emparte infiel.A própria informação custa energia, a neguentropia que ela cons-titui suscita a entropia. M. Serres faz freqüentemente referência aeste argumento, por exemplo em Hermes IIl. La traduction, Minuit,1974, 92.Seguimos aqui I. Prigogine & I. Stengers, "La dynamique, de Leibnizà Lucrece", Critique 380 (n.o spécial Serres) (janvier 1979),49.J. Perrin, Les atomes (1913), P.U.F., 1970, 14-22. O texto foi colocadopor Mandelbrot como Introdução aos Objets fractals, loc. citoCitado por W. Heisenberg, Physis and beyond, N.Y., 1971.Numa comunicacão à Academia de ciências (dezembro de 1921),Borel sugeria qu~ "nos jogos onde a melhor maneira de jogar nãocxiste" (jogos de informação incompleta), "pode-se perguntar se nãoé possível, na falta de um código escolhido uma vez por todas, jogarde uma maneira vantajosa variando o seu jogo." É: a partir destadistinção que Von Neumann mostra que esta probabilização da de-cisão é ela mesma em certas condições "a melhor maneira de jogar".Ver G. Th. Guilbaud, Eleménts de Ia théorie mathématique des jeux,Dunod, 1968, 17-21. E J. P. Séris, La théorie des jeux, P.U.F., 1974(compilação de textos). Os artistas "pós-modernos" empregam corren-temente estes conceitos; ver por exemplo J. Cage, Silence, e A Yearfrom Monday, Middletown (Conn.), Wesleyan U.P., 1961 e 1967.I. Epstein, "Jogos", Ciência e Filosofia, Revista Interdisciplinar,Universidade de São Paulo, 1 (1979)."A probabilidade reaparece aqui não mais como ;Jrincípio constitu-tivo de uma estrutura de objeto, mas como princípio regulador deuma estrutura de comportamento" (G. G. Granger, Pensée formelleet sciences de l'homme, Aubier-Montaigne, 1960, 142). A idéia deque os deuses jogam, digamos, bridge, seria antes uma hipótese gregapré-platônica.Op. cit., 4.Curva contínua não retificável à homotetia interna. Ela é descritapor Mandelbrot, op. cit., 30. Foi estabelecida por H. von Koch em1904. Ver Objets fractals. bibliografia.Modeles mathématiques de Ia morphogenese, 10/18, 1974. Uma ex-posição acessível ao leigo sobre a teoria das catástrofes é dada porK. Pomian, "Catastrophes et déterminisme", Libre 4 (1978), Payol.115-136.O exemplo é tomado por Pomian de E. C. Zeemann, "The Geometryof Catastrophe", Times Literary Supplement (10, december 1971).R. Thom, Stabilité structurelle et morphogenese. Essai d'une théoriegénérale des modeles, Reading (Mass.), Benjamin. 1972. 25. Citadopor Pomian, loc, cit., 134.R. Thom. Modeles mathématiques .... loc. cit .. 24.

Ibid., 25.Ver sobretudo Watzlawick et aI.. op. cit .. capo VI.

195.

196.

199.

200.

204.205.206.

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"É preciso distinguir as condições da produção do saber científicodo saber que é produzido ( ... ). Existem duas etapas constitutivasda démarche científica -, tornar desconhecido o conhecido, depoisreorganizar este desconhecido num metassistema simbólico indepen-dente ( ... ). A especificidade da ciência se deve à sua imprevisibili-dade" (Ph. Breton, Pandore 3, avril, 1979, 10).A. Rapoport, Théoire des jeux à deux personnes, Lf. Renard, Dunod,1969, 159.P. B. Medawar, The Art of the Soluble, Londres, Methuen, 6.' ed.1967, notadamente os capítulos intitulados "Two Conceptions ofScience" e "Hypothesis and lmagination".P. Feyerabend, Against Method, Londres, N.L.B., 1975, explica istoapoiando-se no exemplo de Galileu, e considera "anarquismo" ou'"dadaísmo" epistemológico contra Popper e Lakatos.

CONVENHAMOS que os dados do problema da legi.timação do saber, estejam hoje suficientemente desemba-raçados para o nosso propósito. O recurso aos grandesrelatos está excluído; não seria o caso, portanto, de re·correr nem à dialética do Espírito nem mesmo à emanocipação da humanidade para a validação do discurso cien-tífico pós-moderno. Mas, como vimos, o "pequeno relato"continua a ser a forma por excelência usada pela invençãoimaginativa, e antes de tudo pela ciência.2u Por outro lado,o princípio do consenso como critério de validação tam-bém parece insuficiente. Ou ele é o assentimento dos ho-mens, enquanto inteligências conhecedoras e vontades li-vres, obtido por meio do diálogo - e é sob esta formaque se encontra elaborado por Habermas, embora estaconcepção repouse sobre a validade do relato da emanci·pação -, ou então ele é manipulado pelo sistema comouma de suas componentes visando manter e melhorar suasperformances.212 Ele constitui o objeto de procedimentosadministrativos, no sentido de Luhmann. Não vale, então,a não ser como meio para o verdadeiro fim, o que legi-tima o sistema, o poder.

O problema é portanto o de saber se é possível umalegitimação que se valesse apenas da paralogia. É precisodistinguir o que é propriamente paralogia do que é ino-vação: esta é comandada ou pelo menos utilizada pelosistema para melhorar sua eficiência; aquela é um lance,

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de importância muitas vezes desconhecida de imediato,feito na pragmática dos saberes. Que, na realidade, umase transforma na outra, é freqüente, mas não necessário,e não necessariamente inoportuno para a hipótese.

Se se parte da descrição da pragmática científica(seção 7), a ênfase deve ser colocada de agora em diantesobre o dissentimento. O consenso é um horizonte, jamaisele é atingido. As pesquisas que se fazem sob a égide deum paradigma213 tendem a estabilizá-Io; elas são como aexploração de uma "idéia" tecnológica, econômica, artís-tica. Isto não é nada. Mas admira-se que venha semprealguém para desarranjar a ordem da "razão". É precisosupor um poder que desestabilize as capacidades de ex-plicar e que se manifeste pela regulamentação de novasnormas de inteligência ou, se se prefere, pela proposiçãode novas regras para o jogo de linguagem científico, queirão circunscrever um novo campo de pesquisa. É, nocomportamento científico, o mesmo processo que Thomchama morfogênese. Ele próprio não é sem regras (existemcategorias de catástrofes) mas sua determinação é semprelocal. Transposta à discussão científica e colocada numaperspectiva de tempo, esta propriedade implica a impre-visibilidade das "descobertas". Em relação a um ideal detransparência, ela é um fator de formação de opacidades,que relega o momento do consenso para mais tarde.214

Esta preparação revela claramente que a teoria dossistemas e o tipo de legitimação que ela propõe não têmnenhuma base científica: nem a própria ciência funcionaem sua pragmática segundo o paradigma do sistema admi-tido por esta teoria, nem a sociedade pode ser descritasegundo este paradigma nos termos da ciência contem-porânea.

Examinemos a este respeito dois pontos da argumen-tação de Luhmann. O sistema não pode funcionar senãoreduzindo, por um lado, a complexidade; por outro lado,ele deve suscitar a adaptação das aspirações individuais

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aos seus próprios fins.215 A redução da complexidade éexigida pela competência do sistema quanto ao poder. Setodas as mensagens pudessem circular livremente entre to-dos os indivíduos, a quantidade de informações a se levarem conta para fazer as escolhas pertinentes retardaria con-sideravelmente o prazo da decisão e, portanto, o desem-penho. A velocidade é, com efeito, uma componente dopoder do conjunto.

Objetar-se-á que é preciso levar em conta estas opi-niões moleculares, se não se quer correr o risco das per-turbações graves. Luhmann responde, e é este o segundoponto, que é possível dirigir as aspirações individuais porum processo de "quase-aprendizagem", "livre de toda per-turbação", a fim de que elas se tornem compatíveis comas decisões do sistema. Estas últimas não têm que res-peitar as aspirações que devem visar estas decisões, pelomenos seus efeitos. Os procedimentos administrativos fa-rão os indivíduos "querer" o que é preciso ao sistema paraser eficiente.216 Vê-se de que utilidade as técnicas tele-máticas podem e poderão ser nesta perspectiva.

Não se trata de negar toda força de persuasão à idéiade que o controle e a dominação do contexto valem em simesmos mais que sua ausência. O critério do desempenhotem "vantàgens". Exclui em princípio a adesão a um dis-curso metafísico, requer o abandono de fábulas, exige es-píritos claros e vontades frias, coloca o cálculo das intera-ções no lugar da definição de essências, faz com que os"jogadores" assumam a responsabilidade não somente dosenunciados que eles propõem, mas também das regras àsquais eles os submetem para torná-Ios aceitáveis. Colocaem plena luz as funções pragmáticas do saber na medidaem que elas pareçam se dispor sob o critério de eficiência:pragmáticas da ,argumentação, da administração da prova,da transmissão do conhecido, da aprendizagem por ima-ginação.

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Contribui também para elevar todos os jogos de lin-guagem, mesmo se eles não provêm do saber canônico, aoconhecimento de si mesmos, tende a fazer oscilar o dis-curso cotidiano numa espécie de metadiscurso: os enun-ciados comuns manifestam uma propensão a se citarem asi mesmos e as diversas posições pragmáticas a se refe-rirem indiretamente à mensagem aliás atualizada que asconcerne.217Pode sugerir que os problemas de comunicaçãointerna que a comunidade científica encontra em seu tra-balho para desfazer e refazer suas linguagens são de umanatureza comparável aos da coletividade social quando,privada da cultura dos relatos, deve colocar à prova suacomunicação consigo mesma e a partir daí interrogar-sesobre a natureza da legitimidade das decisões tomadas emseu nome.

Com o risco de escandalizar, o sistema pode relacio-nar a dureza entre as suas vantagens. No quadro do cri-tério de poder, uma exigência (isto é, uma forma da pres-crição) não se legitima pelo fato de proceder do sofri-mento de uma necessidade não satisfeita. O direito nãoresulta do sofrimento e sim do fato de que o tratamentodeste torna o sistema mais eficiente. As necessidades dosmais desfavorecidos não devem por princípio servir deregulador ao sistema, visto que, sendo já conhecida a ma-neira de satisfazê-Ias, esta satisfação não pode melhorarsuas performances, mas somente tornar pesadas suas des-pesas. A única contra-indicação é de que a não-satisfaçãopode desestabilizar o conjunto. Ele é contrário à força dese regulamentar sobre a fraqueza. Mas é próprio do sis-tema suscitar demandas novas que deverão contribuir paraa redefinição das normas de "vida:.'.218Neste sentido, osistema apresenta-se como a máquina de vanguarda atraindoa humanidade, desumanizando-a, para tornar a huma-nizá-Ia em outro nível de capacidade normativa. Os tecno-cratas declaram não poder fiar-se no que a sociedade de-clara serem suas necessidades. Eles "sabem" que ela mesma

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não pode conhecê-Ias já que estas não são variáveis inde-pendentes das novas tecnologias.219Eis aí o orgulho dosdecisores, e sua cegueira.

Este "orgulho" significa que eles se identificam como sistema social concebido como uma totalidade em buscade uma unidade com o maior desempenho possível. Apragmática científica nos ensina precisamente que estaidentificação é impossível: em princípio, nenhum cientistaencarna o s,aber e negligencia as "necessidades" de umapesquisa ou as aspirações de um pesquisador sob pretextode que eles não são úteis para a "ciência" como totali-dade. A resposta normal do pesquisador às demandas é,antes, a seguinte: É preciso ver, conte sua história.22oEmprincípio ainda, ele não prejulga que o caso já seja regu-lado, nem que "a ciência" sofrerá em seu poder se o reexa-minar. Dá-se mesmo o inverso.

Naturalmente, não acontece sempre assim na reali-dade. Não se considera o cientista cujo "lance" foi ne-gligenciado ou reprimido, por vezes durante decênios, por-que ele desestabilizava muito violentamente posições adqui-ridas não somente na hierarquia universitária e científica,mas na problemática.221 Quanto mais um "lance" é forte,mais fácil é recusar-lhe o consenso mínimo, justamenteporque ele muda as regras do jogo sobre as quais haviaconsenso. Mas, quando a instituição de saber funcionadesta maneira, ela se conduz como um poder ordinário,cujo comportamento é regulado em homeostasia.

.Este comportamento é terrorista, como o é o dosistema descrito por Luhmann. Entende-se por terror aeficiência oriunda da eliminação ou da ameaça de elimi-nação de um parceiro fora do jogo, de linguagem que sejogava com ele. Ele se calará ou dará seu assentimentonão porque ele é refutado, mas ameaçado de ser privadode jogar (existem muitas espécies de privação). A arro-gância dos decisores, em princípio sem equivalente nas

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clencias, volta a exercer este terror. Ele diz: Adaptai vos-sas aspirações aos nossos fins, senão ... 222

Mesmo a permissividade em relação aos diversos jo-gos é colocada sob a condição de desempenho. A rede-finição das normas de vida consiste na melhoria da com-petência do sistema em matéria de poder. Isto é parti-cularmente evidente com a introdução das tecnologias tele-máticas: os tecnocratas vêem nelas a promessa de umaliberalização e de um enriquecimento das interações entrelocutóres, mas o efeito interessante é que isto resultaráem novas tensões no sistema, que melhorarão suas per-formances.223

Na medida em que é diversificante, a ciência em suapragmática oferece o antimodelo do sistema estável. Re-tém-se um enunciado a partir do momento em que elecomporta a diferença com o que é sabido e quando é argu-mentável e provável. Ela é um modelo de "sistema aber-to,,224no qual a pertinência do enunciado está em que"gera as idéias", isto é, outros enunciados e outras regrasde jogo. Não existe na ciência uma metalíngua geral naqual todas as outras podem ser transcritas e avaliadas. Éisto que impede a identificação com o sistema e, pensandobem, o terror. A clivagem entre decisores e executantes,se ela existe na comunidade científica (e existe), pertenceao sistema sócio-econômico, não à pragmática científica.Ela é um dos principais obstáculos ao desenvolvimentoda imaginação dos saberes.

A questão da legitimação generalizada torna-se a se-guinte: qual é a relação entre o antimodelo oferecido pelapragmática científica e a sociedade? É ele aplicável às imen-sas camadas de matéria de linguagem (langagiere) queformam as sociedades? Ou permanece ele limitado ao jogodo conhecimento? E, neste caso, que papel joga ele comrelação ao vínculo social? Ideal inacessível de comunidadeaberta? Componente indispensável do subconjunto dos de-cisores, aceitando para a sociedade o critério de desem-

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penho que reJelta para si mesmo? Ou, ao contrário, re-cusa .de cooperação com os poderes e ingresso na contra-cultura, com o risco da extinção de toda possibilidade depesquisa por falta de créditos?225

Desde o início deste estudo sublinhamos a diferençanão somente formal, mas pragmática, que separa os diver-sos jogos de linguagem, notadamente denotativos ou deconhecimento, e prescritivos ou de ação. A pragmáticacientífica está centrada sobre os enunciados denotativos,daí resultando instituições de conhecimento (institutos,centros, universidades, ete.). Mas seu desenvolvimento pós-moderno coloca em primeiro plano um "fato" decisivo: éque mesmo a discussão de enunciados denotativos exigeregras. Ora, as regras não são enunciados denotativos, masprescritivos, que é melhor chamar metaprescritivos paraevitar confusões (eles prescrevem o que devem ser os lan-ces dos jogos de linguagem para ser admissíveis). A ati-vidade diversificante, ou de imaginação, ou de paralogiana pragmática científica atual, tem por função revelarestes tnetaprescritivos (os "pressupostos")226 e de pedirpara que os parceiros aceitem outros. A única legitimaçãoque ao final das contas torna aceitável esta démarche, se-ria a de que produzirá idéias, isto é, novos enunciados.

A pragmática social não tem a "simplicidade" quepossui a das ciências. É um monstro formado pela im-bricação de um emaranhado de classes de enunciados (de-notativos, prescritivos, performativos, técnicos, avaliati-vos, etc.) heteromorfos. Não existe nenhuma razão de sepensar que se possa determinar metaprescrições comunsa todos estes jogos de linguagem e que um consenso revi-sável, como aquele que reina por um momento na comu-nidade científica, possa abarcar o conjunto das metapres-crições que regulem o conjunto dos enunciados que cir-culam na coletividade. É ao abandono desta crença quehoje se relaciona o declínio dos relatos de legitimação, se-jam eles tradicionais ou "modernos" (emancipação da hu-

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manidade, devir da Idéia). É igualmente a perda destacrença que a ideologia do "sistema" vem simultaneamentesuprir por sua pretensão totalizante e exprimir pelo cionismo do seu critério de desempenho.

Por esta razão, não parece possível, nem mesmo pru-dente, orientar, como faz Habernas, a elaboração do pro-blema da legitimação no sentido da busca de um consensouniversal227 em meio ao que ele chama o Diskurs isto é) ,o diálogo das argumentações.Z28

Trata-se, com efeito, de '~upor duas coisas. A primeiraé que todos os locutores podem entrar num acordo sobreregras ou metaprescrições válidas universalmente para to-dos os jogos de linguagem, quando está claro que estes sãoheteromorfos e resultam de regras pragmáticas heterogêneas.

A segunda suposição é que a finalidade do diálogoé o consenso. Mas mostramos, analisando a pragmáticacientífica, que o consenso não é senão um estado das dis-cussões e não o seu fim. Este é antes a paralogia. O quedesaparece com esta dupla constatação (heterogeneidadedas regras, busca do dissentimento), é uma crença queanima ainda a pesquisa de Habermas, a saber, que a hu-manidade como sujeito coletivo (universal) procura suaemancipação comum por meio da regularização dos "lan-ces" permitidos em todos os jogos de linguagem, e que alegitimidade de um enunciado qualquer reside em suacontribuição a esta emancipação.229

Compreende-se bem qual é a função deste recursona argumentação de Habermas contra Luhmann. O Diskursé o último obstáculo oposto à teoria do sistema estável.A causa é boa, mas os argumentos não o são.230 O con-senso tornou-se um valor ultrapassado, e suspeito. A jus-tiça, porém, não o é. É preciso então chegar a uma idéiae a uma prática da justiça que não seja relacionada à doconsenso.

O reconhecimento da heterogeneidade dos jogos delinguagem é um primeiro passo nesta direção. Ela im-118

plica evidentemente a renúncia ao terror, que supõe etenta realizar sua isomorfia. O segundo é o princípio que,se existe consenso sobre as regras que definem cada jogoe os "lances" que aí são feitos, este consenso deve serlocal, isto é, obtido por participantes atuais e sujeito auma eventual anulação. Orienta-se então para as multi-plicidades de metaargumentações versando sobre metapres-critivos e limitadas no espaço-tempo.

Esta orientação corresponde à evolução das intera-ções sociais, onde o contrato temporário suplanta de fatoa instituição permanente de matérias profissionais, afeti-vas, sexuais, culturais, familiares e internacionais; comonos negócios políticos. A evolução é, assim, equívoca:o contrato temporário é favorecido pelo sistema por causade sua grande flexibilidade, de seu menor custo, e daefervescência de motivações que o acompanha, sendo quetodos estes esforços con~ribuem para uma' melhor opera-tividade. De qualquer modo, a questão não é propor umaalternativa "pura" ao sistema: todos nós sabem,os, nestefinal dos anos 70, que ela será semelhante ao própriosistema. Devemos nos alegrar que a tendência ao contratotemporário seja equívoca: ela não pertence à exclusiva fina-lidade do sistema mas este a tolera, e ela evidencia emseu seio uma outra finalidade, a do conhecimento dos jo-gos de linguagem como tais e da decisão de assumir aresponsabilidade de suas regras e de seus efeitos, sendoo principal destes o que revalida a adoção destas, a pes-quisa da paralogia.

Quanto à informatização das sociedades, vê-se enfimcomo ela afeta esta problemática. Ela pode tornar-se oinstrumento "sonhado" de controle e de regulamentaçãodo sistema do mercado, abrangendo até o próprio saber,e exclusivamente regido pelo princípio de desempenho.Ela comporta então inevitavelmente o terror. Pode tam-bém servir os grupos de discussão sobre os metaprescriti-vos dando-Ihes as informações de que eles carecem ordi-

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naríamente para decidir em conhecimento de causa. Alinha a seguir para fazê-Ia bifurcar neste último sentidoé bastante simples em princípio: é a de que o públicotenha aces!>olivremente às memórias e aos bancos de da-dos.231 Os jogos de linguagem serão então jogos de infor·mação completa no momento considerado. Mas eles serãotambém jogos de soma não nula e, nesse sentido, as dis-cussões não correrão o risco de se fixar jamais sobre posi-ções de equilíbrio mínimos, por esgotamento das disputas.Pois as disputas serão então constituídas por conhecimen-tos (ou informações) e a reserva de conhecimentos, queé a reserva da língua em enunciados possíveis, é inesgo-tável. Uma política se delineia na qual serão igualmenterespeitados o desejo de justiça e o que se relaciona aodesconhecido.

se for capaz de construir novas aspirações nos outros sistemas exis-tentes, quer sc trate de pessoas ou de sistema sociais." (Legitimationdurch Verfahren, loco cit., 35).

216. Encontra-se uma articulação desta hipótese nos estudos mais antigmde D. Reinman. The Lonely Crowd, Cambridge (Mass.), Yale D.P.,1950, t,f. La foule solitaire, Arthaud, 1964; de W. H. Whyte, TheOrganizatioll\full, N.Y., Simon & Schuster, 1956, d. L'homme del'organisatioll. I'lon, 1959; de Marcuse, One Dimensional Man, Bos-ton, Reacon. 1%6, t,f. Wittig, L'homme unidimensionel, Minuit, 1968.

217. J. Rey-Debovc (op. cit., 228 sq.) nota a multiplicação dos vestígiosde discurso indireto ou de conotação autonímica na língua cotidianacontemporânea. Ora, lembra ele, "o discurso indireto não é confiá-vel".

218. Ora, como diz G. Canguilhem, "o homem não é verdadeiramentesão a não ser quando é capaz de muitas normas, quando é mais quenormal ("Li:: normal et le patologique" [1951], La connaissance deIa vie, Hachette, 1952, 210).

219. E. E. David (art. cit.) nota que a sociedade não pode saber senãodas necessidades que experimenta no estado atual de seu meio tec-nológico. É próprio da ciência fundamental descobrir propriedadesdesconhecidas que vão remodelar o meio técnico e criar necessidadesimprevisíveis. Ele cita a utilização do material sólido como amplifi-cador e o desenvolvimento da física dos sólidos. A crítica desta "regu-lamentação negativa" das interações sociais e das necessidades peloobjeto técnico contemporâneo é feita por R. Jaulin, "Le mythe tech-nologique", Revue de l'entreprise 26 (n.o spécial "L'ethnotechnologie",mars 1979), 49-55. O autor cita A. G. Haudricourt, "La technologiecultureIle, essai de méthodologie", in B. GilIe, Histoire des techniques,loco cito

220. Medawar (op. cit., 151-152) opõe o estilo escrito e o estilo oral doscientistas. O primeiro deve ser "indutivo" sob pena de não serlevado em consideração; do segundo, ele relaciona uma lista deexpressões correntemente entendidas nos laboratórios, como: Myresults don't make a story yet. E conclui: "Scientists are buildingexplanatory structures, telling stories ( ... )."

221. Para um exem~lo célebre, ver L. S. Feuer, The Conflit of Genera-tions (1969), ti Alexandre, Einstein et le conflit des générations, Bru-xelas, Complexe, 1979. Como sublinha Moscovici no seu prefácio àtraducão francesa, "a Relatividade nasceu numa 'academia' nadaacadê~ica, formada por amigos dos quais nenhum era físico, masapel1as engenheiros e filósofos amadores."

222. É o paradoxo de OrweIl. O burocrata fala: "Nós não nos contenta-mos com uma obediência negativa, nem mesmo com a mais abjetasubmissão. Quando finalmente vocês se renderem a nós, isto deveser resultado de sua própria vontade." (1984, N.Y., Harcourt &Brace, 1949; t,f. GaIlimard, 1950, 368.) O paradoxo se exprimiria emjogo de linguagem por um: Seja livre, ou ainda, Queira o que vocêquer. Ele é analisado por Watzlawick et ai., op. cit., 203-207. Versobre estes paradoxos J. M. Salall,skis, "Geneses 'actuelles' et gene-ses 'sérieIles' de l'inconsistant et de I'hétérogene", Critique 379 (dé-cembre, 1978), 1155-1173.

211. Não foi possível no quadro deste estudo analisar a forma que tomao retorno do relato nos discursos de legitimação tais que: o sistemá-tico aberto, a localidade, o antimétodo, e em geral tudo o que nósagrupamos aqui sob o nome de paralogia.

212. Nora e Mine atribuem por exemplo à "intensidade do consenso so-cial" que eles consideram próprios à sociedade japonesa os sucessosque este país obtém em matéria de informática (op. cit., 4). Escre-vem eles em sua conclusão: "A sociedade à qual ela [a dinâmicade uma informatização social extensa] conduz é frágil: construídapara favorecer a elaboração.; de um consenso, supõe sua existênciae bloqueia-se, se não consegue adquiri-Io" (op. cit., 125). Y. Stourdzé,arf. cit., insiste sobre o fato de que a tendência atual a desregular,desestabilizar e enfraquecer as administrações, nutre-se da perda deconfiança da sociedade na eficiência do Estado.

213. No sentido de Kuhn, op. cito214. Pomian, art. cit., mostra que esta espécie de funcionamento (por ca-

tástrofe) não provém de modo algum da dialética hegeliana.215. "A legitimação das decisões implica fundamentalmente um pro-

cesso afetivo de aprendizagem que seja livre de toda perturbação.É um aspecto da questão geral: Como as aspirações mudam, comoo subsistema político e administrativo pode reestruturar as aspiraçõesda sociedade graças às decisões, quando ele mesmo não é senãoum subsistema? Este segmento não terá uma ação eficaz, a não ser

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223. Ver a descrição das tensões que não deixará de criar a informatiza-ção de massa na sociedade francesa segundo N~ra e Minc (op. cit.,Apresentação) .

224. Ver nota 181. Cf. em Watzlawick et al., op. cit., 117-148, a discussãodos sistemas abertos. O conceito de sistemático aberto constitui o ob·jeto de um estudo de J. M. Salanskis, Le systématique ouvert, 1978.

225. Após a separação da Igreja e do Estado, Feyerabend (op. cit.) re-clama no mesmo espírito "leigo", a da ciência e do Estado. Mas ea da Ciência e do Dinheiro?

226. É pelo menos uma das maneiras de compreender este termo que per-tence à problemática de O. Ducrot, op. cito

227. Raison et légitimité, loco cit., passim, sobretudo 23-24: "A linguagemfunciona como um transformador: ( ... ) os conhecimentos pessoaistransformam-se em enunciados, as necessidades e' os sentimentos emexpectativas normativas (comandos ou valores). Esta transformaçãoestabelece a diferença importante que separa a subjetividade da in·tenção, do querer, do prazer e da dor, de um lado, e as expressõese as normas que não têm uma pretensão à universalidade, por outrolado. Universalidade quer dizer objetividade do conhecimento e le-gitimidade das normas em vigor. Esta objetividade e esta legitimi-dade asseguram a comunidade (Gemeinsamkeit) essencial à consti-tuição do mundo vivido social." Vê-se que a problemática circuns-crita desta maneira, bloqueando a questão da legitimidade sobre umtipo de resposta, a universalidade, de um lado pressunõe a iden-tidade das legitimações para o sujeito do conhecimento ee para osujeito da ação, cpntrariamente à crítica kantiana que dissociavaa universalidade conceitual, apropriada ao primeiro, da universali-dade ideal (a "natureza supra-sensível") que serve de horizonte aosegundo; e, por outro lado, ela mantém o consenso (Gemeinschaft)como único horizonte possível à vida da humanidade.

228. Ibid., 22, e nota do tradutor. A subordinação dos metaprescritivosda prescrição, isto é, da normalização das leis, ao Diskurs, é explícita,por exemplo 146: "A pretensão normativa à validade é ela mesmacognitiva no sentido de que ela supõe sempre que ela poderia seradmitida numa discussão racional."

229. G. Kortian, in Métacritique, Minuit, 1979, Parte V, faz o examecrítico deste aspecto aufkZ,ürer do pensamento de Habermas. Vertambém do mesmo autor, "Le discours philosophique et son objet",Critique, 1979.

230. Ver J. Poulain, art. cit., nota 28; e, para uma discussão mais geralda pragmática de Searle e de Gehlen, J. Poulain, "Pragmatique de Iaparole et pragmatique de Ia vie", Phi zéro, 7,1 (septembre 1978), Uni-versité de Montréal, 5-50.

231. Ver Tricot et aI., lnformatique et libertés, Rapport au gouvernement,La Documentation française, 1975. L. Joinet, "Les 'pieges libertici-des' de l'informatique", Le Monde diplomatique 300 (mars 1979):estas armadilhas são "a aplicação da técnica dos 'perfis sociais' àgestão de massa das populações; a lógica de segurança que produza automatização da sociedade." Ver também os dossi& e as aná-lises reunidas em lnterférences 1 e 2 (hiver 1974, printemps 1975),

cujo tema é a formação de redes populares de comunicaçãomultimédia: sobre os radioamadores (e notadamente sobre o seupapel em Quebec, por ocasião do affaire do F.L.O. em outubrode 1970, e do "Front commun" em maio de 1972); sobre as rádioscomunitárias nos Estados Unidos e no Canadá; sobre o impacto dainformática nos condições do trabalho redacional na imprensa;sobre as rádios-piratas (antes do seu desenvolvimento na Itália);sobre os fichários administrativos, sobre o monopólio IBM, sobrea sabotagem informática. A municipalidade de Yverdon (Cantão deVaud), após ter votado a compra de um computador (operacional,em 1981) estabeleceu um certo número de regras:· competência ex-clusiva do conselho municipal para d'ecidir que dados são coletados,a quem e sob que condições eles são comunicados; acessibilidade detodos os dados a todo cidadão sobre sua solicitação (contra paga-mento); direito de todo cidadão de tomar conhecimento dos dadosde sua ficha (cinco centenas), de corrigi-Ias, de formular a seu res-peito uma reclamação ao conselho municipal e eventualmente aoConselho do Estado; direito de todo cidadão de saber (a pedido)que dados a seu respeito são comunicados, e a quem (La semainemedia 18, 1 mars 1979, 9).


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