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X SEL – Seminário de Estudos Literários
UNESP – Campus de Assis
ISSN: 2179-4871
www.assis.unesp.br/sel
MANOEL DE BARROS E ONDJAKI: PALAVRAS LÚDICAS, IDENTIDADES CULTURAIS
Hérica Aparecida Jorge da Cunha Pinheiro (Mestranda – UNEMAT/MT – CAPES)
RESUMO: Em Materiais para Confecção de um Espanador de Tristezas, do poeta angolano Ondjaki, e Livro sobre Nada, do brasileiro Manoel de Barros, há uma identificação no que tange ao ofício com a palavra poética, matéria prima da criação literária. Na perspectiva dos estudos comparados de solidariedade do macrossistema de literaturas em língua portuguesa, propostos por Benjamin Abdala Júnior, pretende-se fazer uma análise da ludicidade da linguagem nas obras citadas, não somente do que as identificam, mas principalmente do que as singularizam, do que faz fortalecer a cultura de cada país. Ao partirem para um exame do processo de criação e reinvenção da linguagem, Manoel de Barros e Ondjaki refletem sobre ela um caráter singular ao inserir a cultura angolana e brasileira na expressão literária em língua portuguesa, em que tornam originais a forma de ver, sentir, e interpretar, fundando um universo com marcas próprias de sua gente e sua história, com as imagens e expressões de seus respectivos países, suas culturas e suas identidades. PALAVRAS-CHAVE: ludicidade; matéria da poesia; palavra poética; Manoel de Barros; Ondjaki.
Todas as coisas preciosas que se encontram na terra, o ouro, os diamantes, as pedras que serão lapidadas estão disseminadas, semeadas avarentamente escondidas em uma quantidade de rocha ou de areia, onde o acaso às vezes faz com que sejam descobertas. Essas riquezas nada seriam sem o trabalho humano que as retira da noite maciça em que dormiam, que as monta, modifica, organiza em enfeites. Esses fragmentos de metal engastados em matéria disforme, esses cristais de aparência esquisita devem adquirir todo seu brilho através do trabalho inteligente. É um trabalho dessa natureza que realiza o verdadeiro poeta (VALERY, 1999, p. 207).
Para Octávio Paz “O poema é um objeto feito da linguagem, dos ritmos, das crenças e
das obsessões deste ou daquele poeta, desta ou daquela sociedade” (PAZ, 1974, p. 11). Deste
modo, abrem-se possibilidades para reflexões sobre o poema e o papel do poeta enquanto
porta-voz da cultura e ideologia de seu país.
Manoel de Barros e Ondjaki fazem poesia pelo meio comum a ambos, a língua
portuguesa, e através dela constroem a palavra poética de acordo com aspectos sócio-culturais
denominadores de suas nacionalidades. A respeito da capacidade da palavra, lê-se em Bakhtin:
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A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. Na realidade toda palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não seja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social (BAKHTIN,1988, p. 36).
O processo criativo com a linguagem é constante em toda poética de Manoel de
Barros, e Livro sobre Nada, publicado em 1996, é um exemplar digno desse artifício, anunciado
não só no título como na divisão da obra: “Arte de infantilizar formigas”; “Desejar ser”; “O livro
sobre nada”; “Os outros: o melhor de mim sou Eles”.
Já Ondjaki, que publicou em 2009 seu terceiro livro de poemas, Materiais para
Confecção de um Espanador de Tristezas, dividido em duas partes (“A noite seres” e “Imitação
de madrugada”), também prima pela magnitude da invenção e reinvenção da linguagem.
Palavra-brinquedo
No pretexto do Livro sobre Nada está clara a capacidade lúdica da palavra poética
para fazer coisas desúteis, tê-las como brinquedo, assim também é na obra de Ondjaki, que quer
espantar a tristeza com um desobjeto, um espanador constituído de materiais que aludem ao
processo de artesanato verbal:
[...] Mas o nada do meu livro é nada mesmo. É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo, etc etc. O que eu queria era fazer brinquedo com palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora (BARROS, 1996, p.7).
[...] tinha aprendido que era muito importante criar desobjectos. Certa tarde, envolto em tristezas, quis recusar o cinzento. Não munido de nenhum artefacto alegre, inventei um espanador de tristezas. Era de difícil manejo – mas funcionava (ONDJAKI, 2009, p.7).
Observa-se que o processo de criação idealiza e transfigura uma linguagem que
desvela imagens inusitadas, buscando novas dimensões linguísticas. Para isto, requer uma
ilogicidade de sentidos, não na concepção da poesia, mas na compreensão, a fim de que esta
não seja conceitual, de modo que se liberte do padrão rígido da norma culta e saia do lugar
comum para fortalecer a palavra poética. Segundo o próprio Manoel de Barros, “o que sustenta a
encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo” (BARROS, 1996, p. 68). E para Ondjaki as
lógicas devem ser sacudidas:
dedos quietos que crescem pela rua
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brincadeiras de amor pêndulo solto de sonhos lógicas sacudidas olhar de só-assim modos de chegar como sementes manobras de artesão contra o ego desafio do “eu” nudez da pele de mãos e (sob os teus olhos) invenção de um sólido espanador de tristezas. (ONDJAKI, 2009, p. 39).
Desse modo, ao ultrapassar os limites da lógica, cria-se uma nova maneira de
apreender, a capacidade lúdica da palavra é constituída e recria o universo ao relacionar
homem, mundo e linguagem:
As coisas tinham para nós uma desutilidade poética. Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber. A gente inventou um truque pra fabricar brinquedos com palavras. O truque era só virar bocó... (BARROS, 1996, p.11)
em cima do que foi olhado pela poesia estendo o meu luando empresto o meu corpo ao chão e adormeço (ONDJAKI, 2009, p.16)
Para Ramires e Marinho1 “o ilógico, o absurdo, o não-senso tem como função desvelar
algo que existe em estado latente no universo, mas que não se pode exprimir com palavras;
trata-se de desvelar o indizível, o incognoscível” (MARINHO, 2002, p. 35). A ludicidade da
linguagem está em um modo de dizer o que não há como explicar, como constata-se nos
poemas abaixo:
uma borboleta acordou a manhã e a manhã ficou lilás. a manhã contaminou o imbondeiro de lilás e o imbondeiro quis ser uma borboleta. só as raízes do imbondeiro não aceitaram a brincadeira. as raízes são muito terra-a-terra - são uma cauda teimosa. a borboleta fugiu.
1MARINHO, Marcelo; RAMIRES, Emanuela M. G. Caramujo-Flor, de Joel Pizzini, e a obra poética de Manoel de Barros: perspectivas comparatistas. In. Coleção Centro-Oeste de Estudos e Pesquisas - Manoel de Barros: O Brejo e o Solfejo – Marcelo Marinho e colaboradores, 2002.
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a manhã aqueceu – derretendo o lilás.
e foi então: o imbondeiro* pôs no mundo múcuas tristes. *no úcua, os imbondeiros tristes vertem lágrimas lilases. isto tem o seu quê de borboletismo... (ONDJAKI, 2009, p.36)
Depois de ter entrado para rã, para árvore, para pedra - meu avô começou a dar germínios. Queria ter filhos com uma árvore. Sonhava de pegar um casal de lobisomem para ir vender na cidade. Meu avô ampliava a solidão. No fim da tarde, nossa mãe aparecia nos fundos do quintal: Meus filhos, o dia já envelheceu*, entrem pra dentro. Um lagarto atravessou meu olho e entrou para o mato. Se diz que o lagarto entrou nas folhas, que folhou. *Aí a nossa mãe de entidade pessoal ao dia. Ela deu ser ao dia. E ele envelheceu como um homem envelhece. Talvez fosse a maneira que a mãe encontrou para aumentar as pessoas daquele lugar que era lacuna de gente. (BARROS, 1996, p.21)
Raízes da poesia
O que está no cerne da constituição da poesia é a relação que os poetas tem com o
mundo que os cerca, ou seja, de onde nasce a matéria poética que faz com que cada um seja
singular na sua composição, e que segundo Octávio Paz torna possível a existência do poema:
Um poema puro seria aquele em que as palavras abandonassem seus significados particulares e suas referências a isto ou aquilo, para significar somente o ato de poetizar – exigência que acarretaria o seu desaparecimento, pois as palavras não são outra coisa que significados de isto ou daquilo, isto é, de objetos relativos e históricos. Um poema puro não poderia ser composto de palavras e seria, literalmente, indizível. Ao mesmo tempo, um poema que não lutasse contra a natureza das palavras, obrigando-as a ir mais além de si mesmas e de seus significados relativos, um poema que não tentasse fazê-las dizer o indizível, permaneceria uma simples manipulação verbal. O que caracteriza o poema é sua necessária dependência da palavra tanto como sua luta por transcendê-la. Esta circunstância permite uma indagação sobre a sua natureza como algo único e irredutível e, simultaneamente, considerá-lo como uma expressão social inseparável de outras manifestações históricas. O poema, ser de palavras, vai mais além das palavras e a história não esgota o sentido do poema; mas o poema não terá sentido – e nem se quer existência – sem a história, sem a comunidade que o alimenta e à qual alimenta (PAZ, 1974, p. 51-2).
Nascido em Luanda dois anos após a independência de Angola, período em que o
sentimento de angolinidade é absoluto para afirmação dos valores culturais, Ondjaki é o mais
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jovem integrante dos escritores africanos de língua portuguesa. A propósito, escreve Vera
Maquêa:
Ondjaki é filho da independência de Angola; nasce em Luanda em 1977 e encontra um mundo em franca transformação no movimento geral da modernização e da economia de mercado; dá-se com uma tradição literária da qual fazem parte muitos escritores como Manuel Rui, Pepetela, Paula Tavares, Luandino Vieira. Ou seja, quando Ondjaki publica seus primeiros livros, já existe uma Literatura Angolana consolidada (MAQUÊA, 2010, p.70).
O trabalho com a linguagem, admitindo sobre ela elementos linguísticos da cultura
angolana, sobretudo expressões que reforçam as línguas autóctones, como o quimbundo2,
destaca-se em sua obra: “Quando olhei o céu do lubango inundado de estrelas lindas, o meu
coração lembrou joãovêncio, suas estrelas amorosas. Todo um mukulusu literário me inundou as
veias” (ONDJAKI, 2009, p. 24). A respeito, Laura Cavalcante Padilha afirma:
Na África colonizada por Portugal, muito embora o português seja realmente a “língua oficial”, uma grande parte da população não a fala e há um grupo muito expressivo de antigos falantes que a tem como língua segunda, tangido apenas pela imposição do processo assimilatório (PADILHA, 2005, p. 84).
Sobre a cultura bantu,de onde incide o quimbundo, Raul Altuna aponta:
Os bantus não intelectualizaram a palavra. Para eles a palavra e a pessoa, que a pronuncia, estão unidas. Nela a pessoa comunica-se, translada-se, prolonga-se. A palavra é a própria realidade invisível exteriorizada, traduz a experiência vital do homem em comunhão com as coisas exteriores. É expressão duma força e de uma energia interior, um sinal de influência vital. [...] o bantu mima a palavra, depositária da sabedoria ancestral, “vida” que corre pelas gerações. O bantu vive falando. O silêncio não é bantu. Conversar, narrar, ou trocar notícias e impressões constituem um dos prazeres mais agradáveis (ALTUNA, 1974, p. 28-29).
Mediante a uma inventiva pesquisa de redescoberta da palavra, Ondjaki elabora uma
linguagem que reflete a cultura angolana. No entanto, é fundamental enfatizar que as temáticas
mais recorrentes na literatura pós-independência, como a denúncia da opressão e discriminação
advinda do sistema colonial, a resistência, e a luta, temas tão eivados no sentimento de mágoa e
utopia do povo angolano, não constam em sua poesia, não de maneira direta. O poeta lança um
novo olhar para Angola, um olhar encantado que é notável em seu poema intitulado “Escrevo a
palavra Luanda”:
veio a melodia e me soprou a noite pelas entranhas adentro – eu era um peixe-lua solto nos
2 O quimbundo é uma das línguas da cultura etnolinguística bantofaladana região central de Angola.
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acordes dessa viola tonta. Sorri com os dedos da mão. quase matei um mosquito que passava (mosquito tem quantas vidas...?) a cidade está a dormir a esta hora (acidade sonha...?) todas pessoas muitas todas estórias bonitas amanhã vão acontecer de novo (a beleza das estórias, gasta?) luanda és uma palavra deitada nascicatizes de uma guerreira bela. (ONDJAKI, 2009, p. 42)
Manoel de Barrosnasceu no Beco da Marinha, beira do Rio Cuiabá em 1916, sua
infância no Pantanal com os pequenos seres, pequenas coisas, o apego ao telúrico,ao mundo
vegetal, valem de material para acriação de sua palavra poética, como diz Isaac Newton:
A natureza pantaneira está presente em grande parte dos seus livros, todavia, não se trata apenas de uma natureza paisagística ou fotográfica mas, sobretudo, metafórica. Dentre os seres que habitam o Pantanal, ele elege não apenas os belos espécimes, mas, no meio de aves, rios, aldeias surgem seres despropositados como lesma, caramujo, formiga, rã, lagartixa e olhares de ave que entortam o horizonte. (RAMOS, 2010, p. 92)
Caracterizado por Orlando Antunes Batista3 como poeta do lodo e do ludo, é
reconhecido por seu artesanato verbal e linguagem inovadora que expõe a relação do homem
com a natureza constituída de seres pequenos ligados a terra, sobretudo a natureza metafórica:
O pai morava no fim de um lugar. Aqui é lacuna de gente – ele falou: Só quase que tem bicho andorinha e árvore. Quem aperta o botão do amanhecer é o aranquã. Um dia apareceu por lá um doutor formado: cheio de suspensórios e ademanes. Na beira dos brejos gaviões-caranguejos comiam caranguejos. E era mesma a distância entre as rãs e a relva. A gente brincava com terra. O doutor apareceu. Disse: Precisam de tomaranqui- lostomina. Perto de nós sempre havia uma espera de rolinhas. O doutor espantou as rolinhas. (BARROS, 1996, p. 13)
3 Orlando Antunes Batista é autor do livro: O lodo e o ludo em Manoel de Barros.
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Alcestre de Castro (apud MAGALHÃES, 2001, p. 149), a respeito do processo de
criação de seus poemas escreve: “São uma fantasia geométrica de um artista que coloca o
sentimento em forma cômica cortando, abruptamente, uma ideia com uma sugestão difusa e
incompreensível”. Para Hilda Magalhães(MAGALHÃES, 2001, p. 150), “o estilo de Manoel de
Barros se sustenta num violento e radical processo de metaforização, do qual nasce o poema,
bizarro, inesperado, insólito.”:
Formiga é um ser tão pequeno que não agüenta nem neblina. Bernardo me ensinou: Para infantilizar formi- gas é só pingar um pouquinho de água no coração delas. Achei fácil. (BARROS, 1996, p. 29)
A grandeza do ínfimo
O processo de metaforização dito por Hilda Magalhães, em que amplia
semanticamente as palavras redimensionando a capacidade de significação do material poético,
constituído de ínfimos elementos ligados a terra, não ocorre somente na poesia manoelina. Em
Materiais Para Confecção de um Espanador de Tristezas também há um universo povoado de
pequenos seres:
um dia vou contracenar com um gafanhoto, um pirilampo, umgambozino um grilo e uma andorinha aqui na minha varanda dos vasos bonitos. se o chet aceitar tocar trompe- te, eu vou ser a assistência toda – o xaxualhar dos olhos ouvintes. (ONDJAKI, 2009, p.40)
Dentre essas criaturas, destaca-se os gambozinos,seres imaginários que segundo a
superstição popular angolana vivem no campo. A ideia que faz-se destes seres varia conforme a
imaginação de cada um, e nos poemas de Ondjaki (ONDJAKI, 2009, p. 65) “são seres que
iluminam pedaços de poesia”. De qualquer maneira, este pequeno ser é capaz de enfocar com
mais intensidade a capacidade lúdica da linguagem poética.
No processo de ampliação semântica das palavras, também constata-sea
confabulação dos poemas com objetos sem utilidades: lixo, sucata, coisas imprestáveis,
absolutamente insignificantes, que para os poetas são preciosidades para criar poesia,
emMateriais para Confecção de um Espanador de Tristezas(ONDJAKI, 2009, p.46): “uma ponte
linda – composta de delicados objetos abandonados dividia as duas margens da lixeira”, e em
Livro Sobre Nada (BARROS, 1996, p. 57):“Também as latrinas desprezadas que servem para ter
grilos dentro – elas podem um dia milagrar violetas... Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!”.
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Escrever com infância
Boa parte da linguagem lúdica dos poemas é conduzida pela recuperação infantil sobre
o universo, ou seja, é a infância, em sua volta simbólicaao passado e suainocência, que aciona o
fio condutor da ludicidade da palavra. O mundo da criança serve de pretexto poético em que
correm o “rio de infância da aldeia cheia de cubatas”, e o “rio inventado por bugrinha”:
segui a lesma. a baba dela parecia um rio de infância perdido no tempo. Escorreguei no tempo. nesse rio havia um jacaré. A fileira enorme de dentes lembrou-me uma aldeia cheia de cubatas (talvez a aldeia de ynari); adormeci na aldeia. ouvi um barulho – era a lesma a sorrir. o sorriso fez-me lembrar um velho muito velho que escrevia poemas. Os poemas eram restos de lixo que ele colecionava no quarto ou no coração da mãos. abracei o velho. Quase que eu esborrachava a lesma. (ONDJAKI, 2009, p.13)
...Como dizer: Eu pendurei um bentevi no sol... O que disse Bugrinha: Por dentro de nossa casa passava um rio inventado. O que nosso avô falou: O olho do gafanhoto é sem princípios. Mano Preto perguntava: Será que fizeram o beija-flor diminuído só para ele voar parado? As distâncias somavam a gente pra menos. O pai campeava campeava. A mãe fazia velas. Meu irmão cangava sapos. Bugrinha batia com uma vara no corpo do sapo e ele Virava uma pedra. Fazia de conta? Ela era acrescentada de graças concluídas. (BARROS, 1996, p. 11)
Fazer poemas, buscando os limites do que pode ser dito por termos resgatados da
infância e modificados através dos processos de formação e derivação, para inventar e
reinventar palavras é uma atitude libertária perfeitamente possível dentro do universo lúdico.
Outra questão inerente à ludicidade da linguagem é a metapoesia, pois o manejo com
a matéria do poema institui-se na palavra, deste modo, o que o poeta diz e o que suas
construções poéticas dizem configura-se na principal artéria do intuito poético de Manoel de
Barros, fabricar brinquedos com palavras: “Hoje completei 10 anos. Fabriquei um brinquedo com
palavras. Minha mãe gostou. É assim: De noite o silêncio estica os lírios” (BARROS, 1996, p.
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33), e Ondjaki em criar desobjetos: “se eu soubesse manejar a palavra etecetera pedia licença à
noite e terminava este poema assim: etestrelas...!” (ONDJAKI, 2009, p. 24).
Perspectivas comparatistas
Haja vista confluências e divergências entre Manoel de Barros e Ondjaki, a
comparação entre eles, rechaçando o conceito de influência que subordina uma literatura à outra
e estabelece uma relação de superioridade entre elas, faz-se valer por meio dos estudos de
solidariedade como perspectiva comparativa, propostos por Benjamin Abdala Júnior em
“Necessidade e Solidariedade nos Estudos de Literatura Comparada”4 que coloca as literaturas
pertencentes ao macrossistema de língua portuguesa no mesmo nível de igualdade:
Em termos de literatura comparada, o mesmo impulso nos leva a enfatizar estudos pelos paralelos – um conceito mais amplo que o geográfico e que envolve simetrias socioculturais... Em lugar de um comparatismo da necessidade que vem da circulação norte/sul, vamos promover, pois, o comparatismo da solidariedade, buscando o que existe de próprio e comum em nossas culturas (ABDALA, 2003, p. 66).
Para Benjamin Abdala “o que une Brasil e Angola, além da língua, são as condições
ecológicas” (ABDALA, 1989, p. 105), ou seja, uma ecologia cultural resultada da imposição
colonial e do escravismo, que criou uma situação que vem sendo historicamente resgatada em
favor de um estatuto democrático e humanístico.
Vale salientar que a consolidação dos sistemas literários dos países africanos de
língua oficial portuguesa é recente, e em Angola, a leitura de autores brasileiros foi fundamental
para a iniciação desse processo, em que também auxiliou a Geração de 505. Segundo Tânia
Macedo:
[...] tornou-se necessário estabelecer o diálogo com outro universo cultural, que não o estreito mundo colonial e salazarista,e a interlocução escolhida foi a produção cultural brasileira, o que, em última instância, propiciou a dinamização das reflexões sobre os caminhos da sua própria produção literária. O Modernismo brasileiro, com o seu caráter de ruptura em 1922, mas,principalmente o projeto ideológico de 1930, apresentava, para os angolanos as credenciais fundamentais para o diálogo (MACEDO, 2009, p.18).
4ABDALA, JR, Benjamin. Necessidade e Solidariedade nos Estudos de Literatura Comparada. In: De vôos e ilhas - literatura e comunitarismo. Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial, 2003, p.65-76. 5 “em Angola, a constituição de uma literatura nacional consolidou-se nos fins dos anos 1940, mais precisamente em 1948, graças ao Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, sob o lema de “Vamos descobrir Angola!”, e os seus esforços (entre os quais a publicação da Antologia dos novos poetas de Angola – 1950 e da revista Mensagem – Voz dos Naturais de Angola) que se consolida o sistema literário Angolano”. (MACEDO, 2009, p.17)
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Em Angola, a “Geração de 50”, que se organizou em torno do brado “Vamos descobrir
Angola”, foi fundamental ao processo de consciência coletiva para expressão de valores
necessários à construção de uma identidade e autonomia cultural e política. Essa geração
visualizava sua maneira de ser no Brasil, pois conservava em perspectiva a literatura brasileira,
ou seja, um bom modelo a ser seguido: as similaridades ideológicas faziam do Brasil um
exemplo.
De acordo com Antonio Candido6, a respeito da literatura comparada, a produção
literária brasileira esteve por muito tempo vinculada aos exemplos externos, sendo que vários
estudiosos direcionavam suas análises a critérios de valor. Com isso houve um trabalho de
comparatismo difuso e espontâneo sem muitos critérios desde a época do romantismo, em que
os brasileiros afirmavam que nossa literatura era diferente da literatura de Portugal. Assim a
literatura dos “colonizados” passou a mostrar-se original, colocando-se de forma igualitária ao
lado da europeia e contribuindo ao universo cultural.
Portanto, da mesma forma que ocorre com a literatura brasileira, pode-se estudar a
literatura angolana sob o viés da literatura comparada, pois além da situação histórica e cultural
semelhante a que o Brasil enfrentou e que Angola ainda enfrenta, numa constante busca por
uma literatura independente, apresenta-se, sobretudo, os diálogos culturais que essas literaturas
proporcionam. A propósito, Benjamin Abdala pontua:
[...] ao comparar as literaturas dos países de língua oficial portuguesa, devemos estar atentos à principal característica que envolve essas literaturas e que as coloca dentro de um macrossistema, ou seja, dentro de uma mesma área de contato: a tradição histórico-cultural comum entre essas produções literárias, que possibilita um olhar sobre nossas culturas a partir de um ponto de vista próprio. (ABDALA, 2003, p.103)
Quando preconiza que o comparatismo da ordem da solidariedade deve levar a uma
circulação mais intensa de nossos repertórios culturais, Benjamin Abdala indica que o escritor é
um patrimônio cultural em que a sociedade através dele se inscreve, assim os textos veiculados
são objetos de apreensão e de transformação em cada país:
Ninguém cria do nada. Há a matéria da tradição literária que o escritor absorve e metamorfoseia nos processos endoculturativos, desde a apreensão “mais espontânea” dos pequenos “causos” populares, ditos populares, canções, etc., da chamada oralitura (“literatura” oral) até os textos “mais auto-reflexivos” da literatura erudita. Ocorre, nesse sentido, uma apropriação “natural” das articulações literárias sem que o próprio futuro
6 CANDIDO, Antonio. Literatura comparada. In: Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 211.
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escritor se aperceba de sua situação de ser social e de “porta-voz” de um patrimônio cultural coletivo. Quando o escritor escreve, pode julgar que o texto é apenas seu, não tendo consciência de que na verdade é a sociedade que se inscreve através dele. (ABDALA, 1989, p.112)
Breves considerações finais
Nenhuma literatura é paradigmática, ou seja, uma forma superior cultural que coloca as
outras literaturas como dependentes. Manoel de Barros e Ondjaki interagem, principalmente no
que se refere à reflexão sobre o caráter singular da linguagem, aproximam-se pelo ofício
artesanal da palavra poética, mas afastam-se quando Ondjaki efetua o cruzamento da língua
portuguesa com línguas autóctones provenientes da cultura banto, em que remete-se a imagens
particulares de Angola, assim como Manoel de Barros trabalha o seu mundo pantaneiro em
poemas, e segundo Isaac Newton “é esse fazendeiro de poemas que encontrou a lavra, voou
fora da asa e se apresenta como um autêntico encantador de palavras” (RAMOS, 2010, p. 92).
Ondjaki é o representante de uma geração que nasceu em um país independente, mas
tem a consciência de que ainda há muito para construir, e não nega suas referências. Assim, é
possível afirmar que o poeta prima por uma práxis que, relacionada com a forma de apreensão
ideológica, reconheça os valores angolanos, como línguas, cultura e condições existenciais.
Ao partirem para um exame do processo de criação e reinvenção da linguagem no seu
ledo ludismo da língua, em que refletem sobre o caráter singular da palavra poética, Ondjaki e
Manoel de Barros inserem a cultura angolana e brasileira na expressão literária em língua
portuguesa, e tornam-se originais na forma de ver, sentir, e interpretar, pois fundam um universo
com marcas próprias de sua gente e sua história, com as imagens e expressões de seus
respectivos países, suas culturas e suas identidades.
Referências bibliográficas
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