— Todos compreendem a gravidade da situação?
— perguntou a professora, enquanto olhava, um a um,
para os seus alunos. — Vamos então perceber como
podemos resolver e prevenir este problema.
Tudo começara numa tarde demasiado quente de
abril. A aula de Educação Física, o momento preferido do
Luís, começara logo com corrida em volta do recreio. As
gotas de suor escorriam-lhe pela cara, mas ele mantinha-
-se dentro do seu fato de treino azul-escuro, o mesmo que
usara para as aulas no inverno.
A professora Susana sugerira a todos que se desemba-
raçassem da roupa em excesso, mas o Luís fora o único a
ignorar esta frase. E, durante alguns minutos, a professora
não insistiu. Contudo, quando a franja morena se colou à
testa do rapaz, Susana já não podia deixar de estranhar.
Segurando-o com ternura pelo braço, para poder ajudá-lo
a despir a parte de cima do fato de treino, viu-se perante
uma expressão de dor e de medo. As mãos do Luís segu-
ravam as mangas para baixo, e a professora tinha a certeza
de que o simples facto de lhe segurar no braço causava dor
ao rapaz.
Os outros miúdos continuavam um novo jogo sem
reparar nesta cena paralela que se desenrolava junto da
árvore. O Xavier gritava ordens feito tonto, e os colegas
corriam a cumpri-las. A Teresinha fazia muitas perguntas,
como sempre, e permitia assim ao Francisco recuperar
nessas pausas o fôlego que o peso a mais lhe tirava.
Consciente do que podia encontrar, a professora
Susana levantou com cuidado a camisola azul-escura
e cerrou os dentes em silêncio — uma marca, também
ela azul-escura, preenchia o antebraço do Luís, e podia
adivinhar-se o que escondia a outra manga, as calças e
a camisola.
Luís sentiu o coração a bater tão forte que uma
ligeira tontura o fez vacilar. O pavor estava alojado
no seu olhar. Susana pensou: onde estava o Luís que
conhecia tão bem? Não o reconhecia, parecia agora um
miúdo frágil, em pânico.
— Senta-te à sombra, Luís. Vamos inventar uma
mentira daquelas que se podem dizer, só por agora…
Estás… estás maldisposto, compreendido?
O Luís acenou que sim e sentou-se com alguma difi-
culdade no banco ao pé da árvore. Os olhos seguiam a
professora, que regressava para junto dos outros como
se nada tivesse acontecido. Pela primeira vez, naquela
semana, sentiu-se acompanhado…
A campainha tocara já para o intervalo da manhã, e o
4º C correu a lavar cara e mãos antes de agarrar no lanche
trazido de casa. Os pacotes de leite esperavam alinhados
perto do refeitório. Susana pegou num deles e dirigiu-se
para o banco perto da árvore. Sabia que o Luís estaria ali
à sua espera. Teve ainda tempo para segredar, sem que
o rapaz percebesse, à sua amiga e professora da turma,
Isabel, que o Luís talvez não voltasse depois do intervalo.
Conhecendo Susana há muito tempo, Isabel percebeu, de
imediato, que um assunto maior que a Matemática ou a
Língua Portuguesa se havia atravessado na vida do Luís.
Susana sentou-se ao lado dele, entregando-lhe o leite.
— Queres que te vá buscar mais alguma coisa?
— Não tenho fome, obrigada — respondeu o rapaz, de
olhos postos no chão.
— Quero contar-te uma coisa — começou Susana, pas-
sando-lhe um braço sobre os ombros. — Posso?
O Luís acenou que sim, enquanto o pacote de leite
permanecia fechado e esquecido nas suas mãos. E a pro-
fessora contou.
— Quando eu era pequena, para poder ir à escola, pas-
sava a semana em casa de uns tios que moravam na cidade.
Foi assim que os meus pais resolveram o problema de não
haver escola na minha aldeia. A minha tia era uma mulher
muito calada, triste. Mãe de dois gémeos da minha idade
punha-nos, aos três, à frente de tudo. Nada para ela era mais
importante que nós, vivia para nós…
Luís não comentava. Mantinha-se a observar o chão, en-
quanto sentia aquele abraço protetor que o acalmava.
— O meu tio… bom, o meu tio era um homem bruto, que
bebia muito e perdia muitas vezes a noção do que fazia. Se
algum de nós se portava mal, logo o cinto saía do seu sítio e
vinha aterrar nas nossas costas, pernas, onde calhasse. Só
parava quando a minha tia se metia entre nós e o cinto. Nós
fugíamos, como podes calcular, mas tenho a certeza de que
a minha tia nunca fugiu. O corpo dela estava muitas vezes
negro, mas nunca a ouvi dizer um ai…
Uma lágrima traiçoeira escapou-se pela cara abaixo, e o
Luís limpou-a com a manga.
— Quando finalmente tive coragem de contar aos meus
pais, estalou uma grande confusão. O meu tio negou tudo,
mas não pôde fazer nada quando a polícia apareceu e ajudou
a minha tia e os filhos a mudarem-se para nossa casa.
Interrompemos a escola, mas o meu pai dizia que isso se
remediava, o resto é que não.
— E ele?