1
SISTEMA DE PROTEO SOCIAL BRASILEIRO: MODELO, DILEMAS E DESAFIOS
Maria Carmelita Yazbek1
Estas reflexes colocam em questo alguns dos dilemas, desafios e perspectivas que se
apresentam para as polticas de Proteo Social brasileiras, neste incio de sculo XXI,
com nfase nas aes voltadas ao enfrentamento da desigualdade social e da pobreza,
nos atuais cenrios e tendncias de transformaes societrias que caracterizam o
capitalismo contemporneo, especialmente em sua periferia.
Em uma rpida introduo histrica e conceitual, cabe inicialmente assinalar que, de
uma forma geral, no encontramos sociedades humanas que no tenham
desenvolvido alguma forma de proteo aos seus membros mais vulnerveis. Seja de
modo mais simples, atravs de instituies no especializadas e plurifuncionais, como
a famlia, por exemplo, ou com altos nveis de sofisticao organizacional e de
especializao, diferentes formas de proteo social emergem e percorrem o tempo e
o espao das sociedades como processo recorrente e universal.
Para Giovanni (1998:10) constituem sistemas de proteo social as formas s vezes
mais, s vezes menos institucionalizadas que as sociedades constituem para proteger
parte ou o conjunto de seus membros. Tais sistemas decorrem de certas vicissitudes da
vida natural ou social, tais como a velhice, a doena, o infortnio e as privaes.
Apesar das variaes histricas e culturais, preciso no perder de vista que nos
primrdios da industrializao, quando a questo social2 se explicita pela primeira vez,
que se transformam radicalmente os mecanismos de proteo social dos indivduos,
1 Doutora em Servio Social pela PUC-SP, Professora no Programa de Estudos Ps-Graduados em Servio Social da
PUC-SP 2 A expresso questo social surge, na Europa Ocidental na terceira dcada do sculo XIX (1830) para dar conta
do fenmeno do pauperismo que caracteriza a emergente classe trabalhadora. Robert Castel (2000) assinala alguns
autores como E. Burete e A.Villeneuve-Bargemont que a utilizam. Do ponto de vista histrico a questo social
vincula-se estreitamente explorao do trabalho. Sua gnese pode ser situada na segunda metade do sculo XIX
quando os trabalhadores reagem essa explorao.
2
desenvolvidos at ento, principalmente pelas famlias, ordens religiosas e
comunidades, por meio de regimes de obrigaes pessoais3.
Para Sposati, (2009:21) o sentido de Proteo supe antes de tudo, um carter
preservacionista e de defesa da vida, dos direitos humanos e sociais e da dignidade
humana.
Como sabemos, no incio da Revoluo Industrial, especialmente na Inglaterra, mas
tambm na Frana, vai ocorrer uma pauperizao massiva dos primeiros trabalhadores
das concentraes industriais. Sem dvida, o empobrecimento desse primeiro
proletariado, na Europa Ocidental, vai ser uma caracterstica imediata do iniciante
processo de industrializao e traz consigo um enorme custo social. Trata-se de uma
superpopulao predominantemente urbana, flutuante, miservel, cortada de seus
vnculos rurais, que mora precariamente em ruelas miserveis enfrentando problemas
de toda ordem conforme possvel constatar em estudos sobre as primeiras cidades
industriais do sculo XIX.4 Nesse contexto, de grandes problemas urbanos, emergem
novas formas de sociabilidade, resultantes da expanso de relaes impessoais, da
explorao intensiva da fora de trabalho, da acelerao de seu tempo e ritmo, com a
reduo do perodo de repouso.
Aos poucos, esse primeiro proletariado vai se organizando como classe trabalhadora
(em sindicatos e partidos proletrios), como movimento operrio, com suas lutas,
reivindicando e alcanando melhores condies de trabalho e proteo social. Atravs
de sua ao organizada, os trabalhadores e suas famlias ascendem esfera pblica,
colocando suas reivindicaes na agenda poltica e colocando em evidncia que a sua
pobreza era resultante da forma de estruturao da emergente sociedade capitalista.
As desigualdades sociais no apenas so reconhecidas, como reclamam a interveno
dos poderes polticos na regulao pblica das condies de vida e trabalho desses
3 bom lembrar que a assistncia aos pobres nas sociedades pr- capitalistas era em geral acompanhada de medidas disciplinares repressivas e objetivavam manter a ordem social e punir a vagabundagem. Destacam - se, no perodo que
antecedeu a Revoluo Industrial as leis inglesas Leis dos Pobres que datam do sculo XIV constituam um conjunto de regulaes sociais assumidas pelo Estado, a partir da constatao de que a caridade crist no dava conta
de conter possveis desordens que poderiam advir da lenta substituio da ordem feudal pela capitalista, seguida de
generalizada misria, desabrigos e epidemias (Pereira, 2008: 62) 4 Ver a esse respeito o trabalho de Maria Stella M. Bresciani: Londres e Paris no Sculo XIX: o Espetculo da
pobreza. So Paulo, Brasiliense, 2004 (10 reimpresso da 1 edio de 1982).
3
trabalhadores. Nesse contexto, e com o desenvolvimento da industrializao e
urbanizao so institucionalizados no mbito do Estado mecanismos complementares
ao aparato familiar, religioso e comunitrio de proteo social, at ento vigente,
configurando a emergncia da Poltica Social nas sociedades industrializadas.
As lutas por direitos sociais forjam o avano de democracias liberais levando o Estado
a envolver-se progressivamente, numa abordagem pblica da questo, constituindo
novos mecanismos de interveno nas relaes sociais como legislaes laborais, e
outros esquemas de proteo social. O que se deseja assinalar que de modo geral, as
abordagens estatais da questo social se estruturam a partir da forma de organizao
da sociedade capitalista e dos conflitos e contradies que permeiam o processo de
acumulao, e das formas pelas quais as sociedades organizaram respostas para
enfrentar as questes geradas pelas desigualdades sociais, econmicas, culturais e
polticas. (Chiachio, 2006:13)
Robert Castel (2000) vai afirmar que a partir do reconhecimento, do valor do
trabalho e da organizao da sociedade salarial que vai se constituir a moderna
Seguridade Social, com garantias contra os principais riscos da existncia como, por
exemplo, a doena, a velhice sem peclio, acidentes e contingncias.
Obviamente, essa construo vai se efetivar em longo processo e vai se expressar em
diferentes tendncias que vo do predomnio do pensamento liberal de meados do
sculo XIX, at a 3 dcada do sculo XX quando emergem as perspectivas keynesianas
e social democratas que propem um Estado intervencionista no campo social e
econmico, como demonstraram Behring & Boschetti (2006).
Ampliam-se a partir da as instituies destinadas Proteo Social, especialmente nas
sociedades capitalistas europias, particularmente a partir das trs primeiras dcadas
do sculo passado.
O trao mais marcante e fundamental destas configuraes o fato dos
servios de proteo social5 serem implantados e geridos pelo Estado. (...) Assumida
pelo Estado (e reconhecida pela sociedade) como funo legal e legtima, a proteo
5 Grifo nosso
4
social se institucionaliza e toma formas concretas atravs de polticas de carter social.
importante frisar que estas polticas integram um campo prprio de relaes que
envolvem, alm da participao de instituies especializadas, outros agentes e
processos extremamente complexos, sempre permeados pela incerteza. (Giovanni,
1998: 11)
Trata-se da interveno do Estado no processo de reproduo e distribuio da
riqueza, para garantir o bem estar dos cidados. Assim sendo, o Sistema protetivo de
uma sociedade permite aos cidados acessar recursos, bens e servios sociais
necessrios, sob mltiplos aspectos e dimenses da vida: social, econmico, cultural,
poltico, ambiental entre outros. E dessa forma que as polticas pblicas voltam-se
para a realizao de direitos, necessidades e potencialidades dos cidados de um
Estado. Assim sendo conforme Jaccoud, a proteo social pode ser definida como um
conjunto de iniciativas pblicas ou estatalmente reguladas para a proviso de servios
e benefcios sociais visando a enfrentar situaes de risco social ou de privaes
sociais. (Jaccoud, 2009:58)
Para Castel (2005: 92), a proteo social condio para construir uma sociedade de
semelhantes: um tipo de formao social no meio da qual ningum excludo Para o
autor ser protegido do ponto de vista social dispor , de direito, das condies sociais
mnimas para ter independncia.
No sculo XX, a partir da crise econmica de 1929, e seguindo as idias de Keynes6,
que defendeu uma maior interveno do Estado na regulao das relaes econmicas
e sociais, ampliam-se as polticas sociais e tem incio assim a experincia histrica de
um Estado intervencionista que vai efetivar um pacto entre interesses do capital e dos
trabalhadores: o chamado consenso ps- guerra. Ou seja,
(...) os modernos sistemas de proteo social no sculo XX surgiram para
atenuar as diferenas sociais criadas pelo livre funcionamento dos mercados e causa
da produo de desigualdades. (...) A forma criada para proteger os cidados desses
6 O modelo keynesiano o conjunto de contribuies de J. M. Keynes, no mbito da economia e da interveno do
Estado como agente essencialmente regulador. Sua influncia seria decisiva para a constituio de um novo modelo
de Estado que viria a designar-se, aps a 2 Guerra de estado Providncia ou de Bem Estar.
5
movimentos de produo de desigualdades e de insegurana social foi a assuno pelo
Estado, principalmente aps a Segunda Guerra Mundial, do financiamento e proviso
de um grande nmero de bens e servios que os cidados no poderiam acessar nica
e exclusivamente pela renda obtida pelo trabalho, ou quando sem trabalho
necessitassem desses bens. (Viana, 2008: 647)
Nessa perspectiva as polticas keynesianas buscam gerar pleno emprego, criar polticas
e servios sociais tendo em vista a criao de demanda e a ampliao do mercado de
consumo.
Nesse sentido o Estado de Bem Estar Social,
com suas polticas; seu aparato institucional, suas justificaes tericas e
ideolgicas e seu acervo tcnico profissional parte integral do sistema capitalista.
Isso que dizer que ele, como um complexo moderno de proteo social, ancorado nos
conceitos de seguridade e cidadania social (...) tem a ver com os rumos adotados pelo
sistema capitalista, que deixou de ser liberal, nos anos de 1940, por uma questo de
sobrevivncia, para ser temporariamente regulado (Pereira: 2008:87) 7
Aps a 2 Guerra Mundial o Estado de Bem Estar Social consolida-se no continente
europeu. O Plano Beveridge (1942) na Inglaterra serviu de base para o sistema de
proteo social britnico e de vrios pases europeus. A base desse sistema foi a noo
de Seguridade Social entendida como um conjunto de programas de proteo contra a
doena, o desemprego, a morte do provedor da famlia, a velhice, a dependncia por
algum tipo de deficincia, os acidentes ou contingncias.8
O Plano9, assim resumia seus objetivos:
O Plano de Seguridade Social (...) fundamentalmente um meio de
redistribuir a renda, priorizando as necessidades mais urgentes e fazendo o melhor uso
possvel dos recursos disponveis (que) s pode ser levado a cabo por uma concentrada
determinao da democracia britnica para libertar-se de uma vez por todas do
7 Pereira (2008) aborda o Welfare State como umfenmeno histrico especfico no qual a Poltica Social se tornou um meio possvel e legitimado de concretizao de direitos sociais de cidadania. 8 Antes, no final do sculo XIX (em 1883) Otto Von Bismark criara na Alemanha o Seguro Social.
9 Social Insurance and Allied Services, Report by Sir Willian Berverigde. Presented to Parliament by Command of
His Magesty, November, 1942.
6
escndalo da indigncia fsica para a qual no existe justificativa nem econmica nem
moral (...). A preveno da misria, a diminuio e o alvio das enfermidades objetivo
especial dos servios sociais constituem de fato, interesse comum a todos os
cidados.
Em sntese, o Estado de Bem Estar Social, apesar de se expressar em diferentes
modelos e regimes10, caracterizou-se de modo geral, pela responsabilidade do Estado
pelo bem estar de seus membros. Trata-se de manter um padro mnimo de vida para
todos os cidados, como questo de direito social, atravs de um conjunto de servios
provisionados pelo Estado, em dinheiro ou em espcie. (Silva, 2004: 56). Trata-se da
interveno do Estado no processo de reproduo e distribuio da riqueza, para
garantir o bem estar dos cidados.
Conforme Vianna (1998) o conceito de Estado de Bem-Estar Social tem incorporada a
idia de que a sociedade se solidariza quando o indivduo no consegue suprir seu
sustento.
Mais precisamente, o risco a que qualquer cidado, em princpio, est
sujeito - de no conseguir prover seu prprio sustento e cair na misria - deixa de ser
problema meramente individual, dele cidado, e passa a constituir uma
responsabilidade social pblica. O Estado de bem-estar assume a proteo social como
direito de todos os cidados porque a coletividade decidiu pela incompatibilidade
entre destituio e desenvolvimento (1998:11)
Cabe assinalar o carter histrico e poltico dos sistemas de proteo social que no
so apenas respostas automticas s necessidades de diferentes sociedades, mas
representam formas histricas de consenso poltico, de sucessivas e interminveis
pactuaes que, considerando as diferenas no interior das sociedades, buscam
incessantemente responder a pelo menos trs questes: quem ser protegido? Como
ser protegido? Quanto de Proteo? (Silva, Yazbek, Giovanni, 2008:16) nesse
sentido que se pode compreender que o surgimento do modelo de proteo 10
Para aprofundamento sobre a natureza, caractersticas, finalidades e Regimes de Bem Estar Social ler
SILVA, Ademir Alves da. A gesto da Seguridade Social brasileira: entre a Poltica Pblica e o
Mercado. So Paulo, Cortez, 2008
7
universal representado pela seguridade social no substituiu o modelo anterior do
seguro social
Para Mishra (1990) esse Estado Social, supe alto e estvel nvel de emprego, servios
sociais universais como sade, educao, segurana social, habitao e um conjunto
de servios pessoais alm de uma rede de segurana de assistncia social.
A partir dos anos 70 do sculo XX, porm, surgem persistentes dvidas quanto
viabilidade econmica de um Estado de Bem Estar universalista, com influncia
beveridgiana e keynesiana. A crise econmica dos anos 1970, o choque do petrleo,
e as reestruturaes do processo de acumulao do capital globalizado, entre as quais
se destacam as inovaes tecnolgicas e informacionais, que alteraram as relaes de
trabalho, gerando desemprego, como resultado da eliminao de postos de trabalho,
so implementadas ao longo das dcadas subseqentes. O aumento da inflao, a
reduo do crescimento econmico, a elevada interveno do Estado na vida
econmica caracterizam esse perodo.
As modificaes do emprego estrutural, a segmentao dos trabalhadores em
estruturas ocupacionais cada vez mais complexas e a expanso dos servios trazem
desestabilizao da ordem do trabalho, sua precarizao e insegurana ordem do
mercado e assim sendo, o sistema de protees e garantias que se vincularam ao
emprego inicia um processo de alteraes, assumindo novas caractersticas.
Para Castel, a instabilidade do emprego vai substituir a estabilidade do emprego
como regime dominante da organizao do trabalho (...) e este sem dvida o desafio
mais grave que se apresenta hoje. Talvez mais grave que o desemprego. (Castel,
2000:249-250) Essa situao coloca o trabalho em condio de grande vulnerabilidade,
exatamente pela ruptura entre trabalho e proteo social. Para o autor o aumento do
desemprego, encontra-se acompanhado do aumento da pobreza, que se amplia com
trabalhadores excludos do mercado formal de trabalho.
Outros autores ao analisar esse ponto de inflexo nas relaes capitalistas trazem
anlises explicativas do desemprego sob a tica do fim do trabalho. Um exemplo
8
significativo nessa direo o trabalho de Gorz (1987) Adeus ao Proletariado11 que
problematizou o desemprego como expresso do esgotamento da sociedade do
trabalho.
Outros fatores, particularmente nos pases de capitalismo avanado, assim como as
mudanas demogrficas (envelhecimento e alterao nos padres familiares), a
intensificao dos movimentos migratrios, vm atuando no agravamento do quadro.
Nessas condies histricas, de reorganizao econmica e poltica da maioria dos
pases capitalistas, de emergncia de novas manifestaes e expresses da Questo
Social, alteram-se as experincias contemporneas dos sistemas de proteo social. O
Estado, como instituio reguladora dessas relaes passa tambm por
transformaes importantes. Uma delas a perspectiva de reduo de sua ao
reguladora na esfera social. Para Robert Castel (1998: 422-33), em uma sociedade que
cada vez mais se desagrega, em termos de solidariedade social, entre as mudanas na
interveno do Estado est a emergncia das denominadas polticas de insero 12,
que obedecem a uma lgica de focalizao e de discriminao positiva focalizando os
programas sociais nos segmentos mais empobrecidos da populao (os vlidos
invalidados pela conjuntura). Estas polticas, alm de corrigirem as falhas do
mercado constituem instrumentos estratgicos para a promoo da redistribuio da
riqueza social mediante a incluso social por diversas vias, como a proviso de bens e
servios, proviso de benefcios monetrios e cobertura de necessidades sociais, entre
outras.
Nessa conjuntura ressurgem processos de (re)mercantilizao de direitos sociais e
fortalece-se a defesa da tese de que cada indivduo responsvel por seu bem estar.
Assim o Estado passa defesa de alternativas que envolvem a famlia, as organizaes
11
Trata-se do livro: Adeus ao Proletariado para alm do socialismo. Rio de janeiro, Forense Universitria, 1987. 12
Castel (1997: 27- 28) reconhece que as polticas de Insero apresentam o mrito incontestvel de no se resignar ao abandono definitivo de novas populaes colocadas pela crise em situao de inutilidade
social. [...] mas so estratgias limitadas no tempo, a fim de ajudar a passar o mau momento da crise
esperando a retomada de regulaes melhor adaptadas ao novo cenrio econmico [...].
Com o passar dos anos, no entanto, as avaliaes que se podem fazer, hoje, dessas polticas mostram que essas situaes foram instaladas e que o provisrio se tornou um regime permanente.
9
sociais e a comunidade em geral. Ressurgem argumentos de ordem moral
contrapondo-se aos sistemas de excessiva proteo social, que gerariam
dependncia e no resolveriam os problemas dos inadaptados vida social. Assim
sendo, as propostas neoliberais em relao ao papel do Estado na esfera da Proteo
Social so propostas reducionistas, voltadas apenas para
situaes extremas, portanto com alto grau de seletividade e direcionadas aos
estritamente pobres atravs de uma ao humanitria coletiva, e no como uma
poltica dirigida justia e igualdade. Ou seja: uma poltica social que passa a ser
pensada apenas para complementar o que no se conseguiu via mercado ou ainda
atravs de recursos familiares e/ou da comunidade (Shons, 1995:2).
Por outro lado, recolocam-se em cena prticas filantrpicas e de benemerncia,
ganhando relevncia o nonprofit sector como expresso da transferncia sociedade
de respostas s seqelas da questo social. Observa-se a emergncia de polticas de
insero focalizadas e seletivas para as populaes mais pobres (os invalidados pela
conjuntura), em detrimento de polticas universalizadas para todos os cidados. (Cf
Yazbek, 2008:88) O Estado apela s parcerias com o setor privado (entidades sociais,
organizaes no governamentais, associaes voluntrias e fundaes empresariais
entre outras) num processo de construo de um sistema misto de Proteo Social que
se caracteriza pela interseco do pblico com o privado13.
Apesar do importante papel que os mecanismos pblicos de Proteo Social
continuam a desempenhar nesse processo, o sistema misto traz consigo uma nova
filosofia e uma requalificao das intervenes do setor privado (Terceiro Setor) e de
seus agentes, no Bem Estar Social.
Cabe lembrar que, a perspectiva universalizadora, a profissionalidade e a interveno
especializada como "modelo de ao competente" que se tornaram componentes
13
Como demonstrado no incio do texto, a participao da sociedade civil no enfrentamento s mazelas
da questo social to antiga quanto o prprio sistema que a origina, contudo, o fenmeno explicitado diz
respeito a uma construo histrica especfica, onde a transferncia das responsabilidades estatais pelo
enfrentamento das expresses da questo social passa a ser vertente estruturante do novo modo de
acumulao: o neoliberalismo. Nesse sentido importante consultar: Montao, Carlos. Terceiro Setor e
questo social crtica ao padro emergente de interveno social, So Paulo: Cortez, 2003(2.ed), e,
Behring, Elaine Rossetti. Brasil em contra-reforma desestruturao do Estado e perda de direitos. So
Paulo: Cortez, 2003.
10
fundamentais das polticas de bem estar no Welfare contemporneo, so
questionadas nesse processo que questiona estes componentes e valoriza a
colaborao entre solidariedade e profissionalidade, aspecto que "parecia
irreconciliable com los parmetros del Estado de Bienestar" abrindo "novas
perspectivas para la articulacin de lo pblico y lo privado" (Roca, 1992: 115)
bom lembrar tambm que a filantropia neste contexto se apresenta com novas
faces estratgicas e com um discurso atualizado na defesa da qualidade dos bens e
servios oferecidos, parecendo ganhar atualidade uma perspectiva "modernizadora",
sobretudo na dimenso gestionria de um nmero crescente de instituies do campo
filantrpico. Os conceitos de amor ao prximo, de benemerncia e de assistencialismo,
passam a fazer parte da tradio de uma "antiga filantropia" que vai defrontar-se com
a "moderna filantropia" solidria do Terceiro Setor.
Na contemporaneidade, sobretudo os pases do espao europeu enfrentam, no sem
resistncias, mudanas, em seus sistemas protetivos. Como afirma Robert Castel o
edifcio de protees montado no quadro da sociedade salarial fissurou-se, e que ele
continua a esboroar-se sob golpes trazidos pela hegemonia crescente do mercado.
(Castel, 2005:93)
1 - A Proteo Social no Brasil
No caso brasileiro, a experincia colonial e a escravido prolongada colocaram
historicamente, para os trabalhadores a responsabilidade por sua prpria
sobrevivncia. Desse modo, at fins do sculo XIX, ganharam corpo obras sociais e
filantrpicas, aes de ordens religiosas e redes de solidariedade e familiares (famlias
extensas de vrios tipos) que deram lugar a prticas sociais ligadas sobrevivncia sem
o recurso ao mercado 14
14 A respeito ver: COSTA, Suely Gomes da. Pau para toda obra. Reproduo da Fora de Trabalho e do Padro
Natural de Pobreza, Brasil, sculo XVI a XIX. Comunicao apresentada no I Seminrio dos Pases do Cone Sul
sobre Polticas Sociais, Propostas e Prticas. ICWS, Porto Alegre, 1990.
- WANDERLEY, Luiz Eduardo W. A questo social no contexto da globalizao: o caso latino-americano e
caribenho. In Desigualdade e Questo Social. So Paulo, Educ. 2008 (3 edio)
11
De modo geral o padro de desenvolvimento do sistema de proteo social brasileiro
assim como dos pases latino-americanos, foi bem diverso daquele observado nos
pases europeus, pois as peculiaridades da sociedade brasileira, de sua formao
histrica e de suas dificuldades em adiar permanentemente a modernidade
democrtica, pesaram fortemente nesse processo. Assim sendo, o acesso a bens e
servios sociais e caracterizou-se por ser desigual, heterogneo e fragmentado.
Com a emergncia do processo de industrializao no pas temos: - de um lado, a
incorporao por parte da fbrica, de alguns mecanismos na esfera da reproduo
social, como criao de vilas operrias recriando velhos mecanismos de proteo e
dependncia. Servios de apoio material e social prestados em torno da fbrica iro
ensaiar a superao da lgica do trabalho por conta prpria, aprimorar a cultura do
trabalho e fornecer elementos para uma nova socializao dos trabalhadores. (COSTA,
1993: 50) De outro lado, observa-se os primrdios da construo de um sistema de
proteo social no Brasil, que tem incio em 1923 com a Lei Eloi Chaves, uma legislao
precursora de um sistema protetivo na esfera pblica, com as Caixas de Aposentadorias
e Penses (CAPs).
Mas, na primeira metade dos anos de 1930, que a questo social se inscreve no
pensamento dominante como legtima, expressando o processo de formao e
desenvolvimento da classe operria e de seu ingresso no cenrio poltico da sociedade,
exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado
(Iamamoto, 1995; 77 10 ed.) Durante essa dcada so criados os Institutos de
Aposentadorias e Penses (IAPs) na lgica do seguro social.
A partir de 1930 observa-se o surgimento de um conjunto de iniciativas tanto no
mbito da criao de rgos gestores de polticas sociais como na formulao de uma
legislao trabalhista. neste perodo que situamos a Consolidao das Leis do
Trabalho (CLT 1943), o Salrio Mnimo, a valorizao da sade do trabalhador e outras
medidas de cunho social, embora com carter controlador e paternalista.
Com essas medidas, o Estado objetivava manter a estabilidade, administrando a
questo social, buscando diminuir desigualdades e garantir alguns direitos sociais,
12
embora o pas no tenha alcanado a institucionalidade de um Estado de Bem Estar
Social.
Em sntese, o Estado brasileiro desenvolvendo acordos de interesse do capital e dos
trabalhadores nos mais diversos setores da vida nacional, opta, pela via do Seguro
Social. O sistema de proteo nesse perodo seletivo e distante de um padro
universalista. Considerada legtima pelo Estado, a questo social circunscreve um
terreno de disputa pelos bens socialmente construdos e est na base das primeiras
polticas sociais no pas. A partir do Estado Novo (Getlio Vargas - 1937-1945) as
polticas sociais se desenvolvem, de forma crescente como resposta s necessidades
do processo de industrializao. (Yazbek, 2008: 89/90)
Para responder s presses das novas foras sociais urbanas o Estado desenvolve
esforos reformadores e neste cenrio, o sistema protetivo brasileiro, se dualiza: de
um lado, desenvolve-se fortemente apoiado na capacidade contributiva dos
trabalhadores, particularmente do mercado formal de trabalho, e de outro vai destinar
aos mais pobres, trabalhadores de um mercado informal, um "modelo de regulao
pela benemerncia" (Sposati, 1994; 8).15
Assim, pela legislao trabalhista, a classe trabalhadora tem garantidos alguns direitos
bsicos como: a regulamentao da jornada de trabalho, o repouso remunerado, as
frias, o trabalho feminino e dos menores.16
Para o trabalhador pobre, sem carteira assinada ou desempregado, restam as obras
sociais e filantrpicas que se mantm atravs de uma rede burocrtica e clientelista,
fortemente apoiada pela filantropia e desenvolvida por meio de iniciativas
15
Em 1942 o governo brasileiro cria a Legio Brasileira de Assistncia (LBA) com a finalidade de prestar servios
sociais s famlias dos expedicionrios brasileiros. Terminada a Guerra, a LBA se volta para a Assistncia
maternidade e infncia e j nesse momento se inicia a poltica de convnios com as "benemritas" instituies
sociais, e, que est na raiz da relao simbitica que a emergente Assistncia Social brasileira vai estabelecer com a
Filantropia e com a benemerncia. Assistncia Social, Filantropia e Benemerncia tem sido tratadas no Brasil como irms siamesas, substitutas umas da outras (Mestriner: 2001:14). O carter dessa relao nunca foi claro e a histrica inexistncia de fronteiras entre o pblico e o privado na constituio da sociedade brasileira vai compor a tessitura
bsica dessa relao que continuamente repe tradies clientelistas e assistencialistas seculares. 16
Entre 1930 e 1937 so criadas instituies prestadoras de servio sociais como o Departamento de Assistncia Social do Estado de So Paulo, subordinado Secretaria de Justia e Negcios Interiores, ao qual coube a
estruturao dos Servios Sociais de Menores, desvalidos, trabalhadores e egressos de Reformatrios, Penitencirias
e Hospitais, e Consultoria Jurdica do Servio Social.
13
institucionalizadas em organizaes sem fins lucrativos. O isolamento dos
desajustados em espaos educativos e corretivos constitua estratgia segura para a
manuteno pacfica da parte sadia da sociedade. (Adorno, 1990:9) Portanto, o que
se observa que historicamente a Proteo Social brasileira vai se estruturando, parte
vinculada proteo ao trabalho formal e parte acoplada ao conjunto de iniciativas
benemerentes e filantrpicas da sociedade civil.
A insero seletiva no sistema protetivo, segundo critrios de mrito vai basear-se
numa lgica de benemerncia, dependente e caracterizada pela insuficincia e
precariedade, moldando a cultura de que para os pobres qualquer coisa basta.
Dessa forma o Estado no apenas incentiva a benemerncia, mas passa a ser
responsvel por ela, regulando-a atravs do CNSS (criado em 1938) mantendo a
ateno aos pobres sem a definio de uma poltica, no acompanhando os ganhos
trabalhistas e previdencirios, restritos a poucas categorias. (cf. Mestriner, 2001)
Portanto, o que se observa que historicamente a Proteo Social no pas vai se
estruturando acoplada ao conjunto de iniciativas benemerentes e filantrpicas da
sociedade civil.
A partir de 1937, com a implantao da ditadura Vargas no pas, o Estado (Estado
Novo) amplia suas medidas de proteo ao trabalhador, ao mesmo tempo em que
intervm no movimento sindical atravs de uma legislao que objetivava o controle
rigoroso das organizaes dos trabalhadores.
Em 1945 o pas volta ao regime democrtico, conservando caractersticas do
populismo do perodo ditatorial de Vargas (1937-1945). Neste quadro, se verifica a
emergncia de novas foras sociais na vida nacional. Cresce a populao urbana
formada pelo proletariado industrial e tambm por trabalhadores braais no
integrados ao setor industrial, empregados dos servios pblicos, operrios de
pequenas oficinas e do setor tercirio, trabalhadores por conta prpria, entre outros.
Crescem presses sobre o Estado para ampliao de servios sociais.
14
A dcada de 1950 teve como caracterstica o investimento estatal em polticas
desenvolvimentistas e a busca do crescimento econmico. A interveno planejada do
Estado nos processos voltados ao desenvolvimento social e econmico impulsionou a
criao e a expanso de novas empresas estatais. A ideologia desenvolvimentista
apoiava-se na tese de que o atraso dos pases do Terceiro Mundo era conseqncia de
seu precrio sistema industrial e de suas insuficincias tecnolgicas.
O incio da dcada de 1960 acirra as contradies do capitalismo perifrico trazendo
consigo o golpe militar e a instalao do Estado autoritrio. A opo pelo crescimento
econmico acelerado, a partir de fontes de investimento externas, como base do
desenvolvimento, abriu o pas ao capital monopolista. O Estado amplia seu nvel de
interveno, tornando-se o eixo poltico da recomposio do poder burgus, com a
implantao de novas estratgias de desenvolvimento concentradoras de capital,
intensificando o nvel de explorao da classe operria. A desigualdade social se
acentua em um clima repressivo e autoritrio. Nesse contexto desenvolvimentista as
instituies sociais direcionam seus programas para uma poltica de integrao
participativa dos mais pobres no processo de desenvolvimento nacional.
Com a expanso do capitalismo monopolista ocorrem mudanas, que vo se efetivar
durante as dcadas de 1960 e 1970, no sentido de expanso e modernizao do
sistema de proteo social do pas. Trata-se de um processo de modernizao
conservadora, pois essas mudanas no significaram uma ruptura com os padres
meritocrticos prevalecentes at ento, mas nesse perodo, por exemplo, o INPS
incorporou novos segurados, expandiu a assistncia mdica previdenciria e criou em
1974 a Renda Mensal Vitalcia (RMV) para idosos e invlidos com baixa renda. Ainda
nesse perodo houve a criao de novos mecanismos de poupana compulsria atravs
do Fundo de Garantia por Tempo de Servio FGTS e posteriormente o PIS/ PASEP.
Foram criados tambm: o Programa de Assistncia ao Trabalhador Rural (Pro Rural), o
Sistema Financeiro de Habitao, os Centros Sociais Urbanos, o Programa de
Interiorizao de Ao de Sade e Saneamento no Nordeste (PIASS), o Programa de
Financiamento de Lotes Urbanizados (PROFILURB) entre outros, alm do Ministrio da
15
Previdncia e Assistncia Social (MPAS) que incluiu no novo sistema a Legio Brasileira
de Assistncia - LBA e a Fundao Nacional de Bem Estar do Menor FUNABEM.
Dessa forma, a questo social durante o regime militar, passa a ser tratada atravs do
binmio Represso / Assistncia, subordinada aos preceitos da segurana nacional e
das exigncias da acumulao monopolista (Cf. Iamamoto: 1982: 85).
A partir de meados de 1970 observa-se um avano organizativo da sociedade civil,
especialmente dos movimentos sociais na luta pela redemocratizao e pela retomada
do Estado Democrtico de Direito. O movimento sindical crescentemente se fortalece
e aos poucos renascem organizaes populares e associaes comunitrias vinculadas
a setores progressistas da Igreja Catlica. Esses movimentos sociais demonstram um
nvel de conscincia e capacidade de organizao em comunidades eclesiais de base
(CEBs), sindicatos, organizaes profissionais liberais, meios universitrios, Igreja e
imprensa. Expressam-se em greves, reivindicaes coletivas, movimentos contra a
carestia, movimento por eleio direta para a Presidncia da Repblica, pelo respeito a
direitos humanos, entre vrios outros.
Na esteira desse processo, as foras oposicionistas foram pontilhando uma
extensa agenda poltica, econmica e social de mudanas. Na primeira metade dos
anos 80, j era possvel identificar os contornos de um amplo projeto de reforma de
cunho nacional, democrtico, desenvolvimentista e redistributivo. A construo de um
efetivo Estado Social, universal e equnime, era um dos cernes desse projeto.
(Fagnani, 2005:88)
A Assemblia Nacional Constituinte17, concentrou esforos na direo de ampliar a
interveno social do Estado garantindo e criando mecanismos de viabilizao de
direitos civis, polticos e sociais.
Assim sendo, com a Constituio de 1988 so colocadas novas bases para o atual
Sistema de Proteo Social brasileiro com o reconhecimento de direitos sociais das
classes subalternizadas em nossa sociedade. Trata-se de uma profunda inflexo,
trazendo a ampliao do campo da proteo social e dos direitos sociais, ou como
afirmou Sposati (2009): ao afianar direitos humanos e sociais como responsabilidade
17 Convocada pela EC n 26, de 1985 e instalada no dia 1 de fevereiro de 1987.
16
pblica e estatal, essa Constituio operou, ainda que conceitualmente, fundamentais
mudanas, pois acrescentou na agenda pblica um conjunto de necessidades at
ento consideradas de mbito pessoal ou individual.
A noo de Seguridade supe que os cidados tenham acesso a um conjunto de
direitos e seguranas que cubram, reduzam ou previnam situaes de risco e de
vulnerabilidades sociais. Assim sendo, a Seguridade brasileira emerge como um
sistema de cobertura de diferentes contingncias sociais que podem alcanar a
populao em seu ciclo de vida, sua trajetria laboral e em situaes de renda
insuficiente. Trata-se de uma cobertura social que no depende do custeio individual
direto. Destaca-se nessa cobertura a Assistncia Social como expresso plenamente
inovadora, no mbito da Proteo Social no contributiva, pelo reconhecimento de
direitos de seus usurios nos marcos jurdicos da cidadania. Nesse sentido, amplia o
processo civilizatrio da sociedade brasileira. Trata-se de uma mudana qualitativa na
concepo de proteo que at ento vigorou no pas. (Sposati, 2009: 19)
Alguns aspectos, entre outros devem ser destacados entre as inovaes
constitucionais em relao ao sistema protetivo brasileiro onde est inserido o
Benefcio de Prestao Continuada (BPC) (artigo 203 da Constituio): a centralidade
da responsabilidade do Estado na regulao, normatizao, proposio e
implementao das polticas pblicas no mbito da proteo social; a proposta de
descentralizao e participao da sociedade nas decises democrticas relacionadas
ao controle das polticas sociais.
A perspectiva de articular e integrar polticas tambm emerge nesse contexto.18 Para
estudo do IPEA 19 a Constituio de 1988 redesenha de forma radical o sistema
brasileiro de Proteo Social, afastando-o do modelo meritocrtico- conservador e
18 Um exemplo dessa perspectiva o pargrafo nico do artigo 2 da LOAS Lei 8.742 (Lei Orgnica da Assistncia Social, de 7 de dezembro de 1993) que afirma: A assistncia social realiza-se de forma integrada s polticas setoriais, visando ao enfrentamento da pobreza, garantia dos mnimos sociais, ao provimento de condies
para atender contingncias sociais e universalizao dos direitos sociais. 19 Ver CASTRO, Jorge Abraho e RIBEIRO, Jos Aparecido. As Polticas Sociais e a Constituio de 1988:
Conquistas e Desafios. In Polticas Sociais: Acompanhamento e Anlise: Vinte Anos da Constituio federal.
Braslia, IPEA, v. 17, 2009.
17
aproximando-o do modelo redistributivista, voltado para a proteo de toda a
sociedade, dos riscos impostos pela economia de mercado.
necessrio, porm ressaltar o fato de que a Constituio Brasileira promulgada em
uma conjuntura dramtica, dominada pelo crescimento da pobreza e da desigualdade
social no pas, que v crescer sua situao de endividamento (que cresce 61% nos
anos 80); que se insere em um momento histrico de ruptura do pacto keynesiano,
pois a articulao: trabalho, direitos e proteo social pblica que configurou os
padres de regulao scio estatal do Welfare State, cuja institucionalidade sequer
alcanamos est em mudana. (no mundo europeu)
Na raiz dessas modificaes est a indagao sobre a compatibilidade (ou no) entre
Direitos, Polticas Sociais e as relaes que se estabelecem entre Estado, sociedade e
mercado nos novos marcos da acumulao capitalista,
Ou seja, na contra mo das transformaes que ocorrem na ordem econmica
internacional, tensionada pela consolidao do modelo neoliberal, pelas estratgias de
mundializao e financeirizao do capital, com a sua direo privatizadora e
focalizadora das polticas sociais, enfrentando a rearticulao do bloco conservador
com a eleio de Fernando Collor que busca de diversas formas obstruir a realizao
dos novos direitos constitucionais (cf. IPEA, 2009) que devemos situar o incio do
processo de construo da Seguridade Social brasileira, sem dvida a base do novo
Sistema de Proteo Social no pas. A Seguridade abriga trs polticas de Proteo:
sade, previdncia e assistncia social.
O que se constata, que no pas, a via da insegurana e vulnerabilizao do trabalho
conviveu com a eroso do sistema pblico de proteo social, caracterizada por uma
perspectiva de retrao dos investimentos pblicos no campo social e pela crescente
subordinao das polticas sociais s polticas de ajuste da economia, com suas
restries aos gastos pblicos e sua perspectiva privatizadora e refilantropizadora20.
20 A categoria refilantropizao uma categoria que temos utilizado desde incio dos anos 1990 para designar uma das principais estratgias de implementao do neoliberalismo nos pases de capitalismo perifrico. Consiste em
liberar o Estado de suas responsabilidades no enfrentamento das expresses da questo social transferindo-as
sociedade civil que incentivada a reorganizar-se e modernizar-se atravs de novos mecanismos de gesto social para
suas entidades e organizaes amparadas por uma nova legislao na rea, agora denominada de Terceiro Setor.
18
Trata-se de um contexto em que a Seguridade Social brasileira enfrenta profundos
paradoxos. Pois, se de um lado o Estado brasileiro aponta constitucionalmente para o
reconhecimento de direitos, por outro se insere num contexto de ajustamento a essa
nova ordem capitalista internacional onde o social subordina-se s polticas de
estabilizao da economia com suas restries aos gastos pblicos e sua perspectiva
privatizadora.21
Em sntese, se a Constituio Federal cria uma nova arquitetura institucional e
tico/poltica para a Proteo Social brasileira, tambm objeto de esvaziamentos e
desqualificaes em seu processo de implantao no pas. Contexto em que ocorre a
despolitizao e a refilantropizao do enfrentamento da questo social brasileira.
A busca da estabilizao da economia e do equilbrio oramentrio e fiscal a partir do
Plano Real leva, no perodo dos governos de FHC (1995-1998 e 1999- 2002) a
resultados pouco favorveis para a Proteo Social na esfera pblica estatal. O
ambiente de desacertos e tenses entre a adequao ao ambiente neoliberal e as
reformas sociais exigidas constitucionalmente
Aos poucos, o Sistema protetivo vai se adensando e ganhando visibilidade
especialmente no mbito da Proteo Social no contributiva
Nesse contexto, as entidades tradicionais iro deparar-se com a emergncia de uma nova gerao de entidades, que
amparadas no voluntarismo, atendem aos apelos do Estado para se responsabilizar pela questo social. 21 Com o impeachment de Collor o processo de regulamentao das propostas constitucionais para a rea social
retomado (governo Itamar Franco), mas com a posse do presidente Fernando Henrique Cardoso e a Medida
Provisria n 813 de 01/01/1995, mantm-se a direo neoliberal para a poltica social. Esta medida, que extingue o
Ministrio do Bem Estar Social, a Legio Brasileira de Assistncia LBA e o Centro Brasileiro para a Infncia e Adolescncia CBIA sem uma proposta clara de reordenamento de seus servios, fragmenta as aes da assistncia social em vrios Ministrios e traz a idia de que o Estado no deve ser mais o grande patrocinador do bem estar social, cabendo sociedade (famlia, comunidades, associaes voluntrias) e iniciativa privada empresarial,
pondervel parcela de participao no processo de proviso social. (Pereira, 1995: 147) Na Medida, que se faz "margem" da LOAS, o governo apresenta o Programa Comunidade Solidria como a
principal estratgia de enfrentamento da pobreza no pas. Como ao social paralela, o Programa, de grande apelo
simblico, enfatiza aes focalizadas em "bolses de pobreza", direcionadas apenas aos indigentes, aos mais pobres
entre os pobres e
"longe de ser fato episdico ou perfumaria de primeira dama, opera como uma espcie de alicate que desmonta
as possibilidades de formulao da Assistncia Social como poltica pblica regida pelos princpios universais dos
direitos e da cidadania: implode prescries constitucionais que viabilizariam integrar a assistncia Social em um
sistema de Seguridade Social, passa por cima dos instrumentos previstos na LOAS, desconsidera direitos
conquistados e esvazia as mediaes democrticas construdas." (Telles, 1998:19)
19
A criao do Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome em 2004 que
unificou a poltica de combate Fome com as Polticas de Transferncia de Renda e de
Assistncia Social foi um significativo passo na direo de unificar um conjunto de
iniciativas da Proteo Social brasileira.
Um exame das caractersticas da Proteo Social brasileira neste incio de milnio,
privilegiando a anlise de aes emblemticas no campo do enfrentamento da
pobreza e da desigualdade, desenvolvidas, sobretudo no mbito do Ministrio de
Desenvolvimento Social e Combate Fome MDS, particularmente na rea da
Assistncia Social, da Segurana Alimentar e da Transferncia de Renda, vai nos
mostrar um processo de consolidao das aes protetivas no pas.
Sem dvida, nos anos recentes, Programas de Transferncia de Renda, com destaque
para o Programa Bolsa Famlia, a implementao do Sistema Nacional de Segurana
Alimentar e Nutricional (SISAN) e a formulao da Poltica Nacional de Assistncia
Social com a criao do Sistema nico de Assistncia Social, alcanaram grande
centralidade no Sistema Brasileiro de Proteo Social.
Assistncia Social
Em outubro de 2004, atendendo ao cumprimento das deliberaes da IV Conferncia
Nacional de Assistncia, realizada em Braslia em dezembro de 2003, o CNAS
Conselho Nacional de Assistncia Social aprovou, aps amplo debate coletivo, a
Poltica Nacional de Assistncia Social em vigor, que apresenta o (re) desenho desta
poltica, na perspectiva de implementao do SUAS Sistema nico de Assistncia
Social.
Nessa direo, a Poltica Nacional de Assistncia Social PNAS buscou incorporar as
demandas presentes na sociedade brasileira no que diz respeito efetivao da
assistncia social como direito de cidadania e responsabilidade do Estado.
Em 2010 o Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome investiu 40
bilhes de reais para operacionalizao de suas Polticas. Para o Fundo Nacional de
20
Assistncia Social o oramento foi de R$ 24.004.001.722,00 (vinte quatro bilhes,
quatro milhes, um mil e setecentos e vinte dois reais).
Esse investimento de 2010 se subdivide em despesas obrigatrias e despesas
discricionrias, sendo elas: a Assistncia Social como Poltica de Estado com seu
Sistema nico de Assistncia Social em funcionamento (com quase 7 mil Centros de
Referncia CRAS, implantados e co- financiados pelo MDS e seus 2000 Centros de
Referncia Especializada de Assistncia Social CREAS em fins de 2010); seus
principais benefcios, programas e servios so: Benefcio de Prestao Continuada
com 3.4 milhes de beneficirios (BPC); Programa de Ateno Integral s Famlias
(PAIF); Servios Socioeducativos para Adolescentes (Projovem Adolescente) que
atendeu em 2009 423 mil jovens entre 16 e 17 anos; Erradicao do Trabalho Infantil
(PETI) que atendeu 875 mil crianas e adolescentes em 2009; Combate Explorao
Sexual de Crianas e Adolescentes que atendeu 63 mil crianas e adolescentes no
mesmo ano.
O Sistema Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional (SISAN) vem
operacionalizando o Programa Fome Zero e seus equipamentos (para facilitar o acesso
alimentao e gua) Restaurantes Populares, Banco de Alimentos, Feiras, Mercados
Populares, Cozinhas Comunitrias e Cisternas); vem desenvolvendo Polticas de
distribuio de alimentos, educao nutricional, alimentao escolar e polticas com o
objetivo de fortalecer a agricultura familiar.
Nas reflexes que se seguem sero objeto de anlise mais especfica duas aes
emblemticas do MDS: a Poltica Nacional de Assistncia Social e os Programas de
Transferncia de Renda (Bolsa Famlia)
2.1 A Poltica Nacional de Assistncia Social PNAS, o Sistema nico de Assistncia
Social SUAS
Sem dvida, Assistncia Social, como poltica de Proteo Social, no contributiva,
inserida constitucionalmente na Seguridade Social brasileira, avanou muitssimo no
pas ao longo dos ltimos anos, nos quais foram e vem sendo implementados
21
mecanismos viabilizadores da construo de direitos sociais da populao usuria
dessa Poltica, conjunto em que se destacam a Poltica Nacional de Assistncia Social -
PNAS e do Sistema nico de Assistncia Social SUAS.
Este conjunto, sem dvida, vem criando uma nova arquitetura institucional, tica,
poltica e informacional para a Assistncia Social brasileira e a partir dessa arquitetura e
das mediaes que a tecem podemos efetivamente, realizar, na esfera pblica, direitos
concernentes Assistncia Social.
Nesta direo, o SUAS vem buscando incorporar as demandas presentes na sociedade
brasileira no que diz respeito efetivao da assistncia social como direito de
cidadania e responsabilidade do Estado. Tem como principal objetivo a gesto
integrada de aes descentralizadas e participativas de assistncia social no Brasil. Essa
gesto supe a articulao de servios, programas e benefcios bem como da ampliao
de seu financiamento e o estabelecimento de padres de qualidade e de custeio desses
servios; supe tambm a qualificao dos recursos humanos nele envolvidos; a clara
definio das relaes pblico/privado na construo da Rede socioassistencial; a
expanso e multiplicao dos mecanismos participativos, a democratizao dos
Conselhos e a construo de estratgias de resistncia cultura poltica conservadora;
e finalmente, exige que as provises assistenciais sejam prioritariamente pensadas no
mbito das garantias de cidadania sob vigilncia22 do Estado, cabendo a este a
universalizao da cobertura e garantia de direitos e de acesso para os servios,
programas e projetos sob sua responsabilidade.
No processo de construo do SUAS estamos nos defrontando com uma pesada
herana que marcou a histria dessa rea de Poltica Social e lhe atribuiu
historicamente caractersticas particulares dentro do contexto histrico da Proteo
Social dos cidados brasileiros.
22 Sempre a partir das diretrizes emanadas da sociedade.
22
Atualmente, estas caractersticas esto permeadas por valores e tendncias, tanto
conservadoras como emancipatrias. fundamental, todo o tempo, fortalecer
aquelas que operam a formulao da Assistncia Social como poltica pblica regida
pelos princpios universais dos direitos e da cidadania.
Obviamente h muito para ser realizado nesse campo e a luta pela construo
democrtica do Sistema, traz muitas exigncias, mas, sobretudo exige a gesto
competente da poltica, bem como dos interesses, demandas e necessidades da
populao usuria da Assistncia Social e dos recursos humanos que nela trabalham.
Para alcanar seus objetivos, a Poltica de Assistncia Social deve ser realizada de
forma integrada e articulada s demais polticas sociais setoriais, para atender s
demandas de seus usurios. Essa definio est na LOAS, que pressupe para a
assistncia social o provimento dos mnimos sociais, cuja garantia exige a realizao
de um conjunto articulado de aes, envolvendo a participao de diferentes polticas
pblicas e da sociedade civil. A LOAS afirma tambm, que o destinatrio da ao
social deve ser alcanvel pelas demais polticas pblicas. No podemos esquecer que
o sujeito alvo dessas polticas no se fragmenta por suas demandas e necessidades que
so muitas e heterogneas. Estamos tratando das condies de pobreza e
vulnerabilidade que afetam mltiplas dimenses de vida e de sobrevivncia dos
cidados e de suas famlias. O Estado o garantidor do cumprimento dos direitos,
responsvel pela formulao das polticas pblicas, expressando as relaes de foras
presentes no seu interior e fora dele. Evaldo Vieira em sua anlise da poltica social e
dos direitos sociais afirma: sem justia e sem direitos, a poltica social no passa de
ao tcnica, de medida burocrtica, de mobilizao controlada ou de controle da
poltica quando consegue traduzir-se nisto (Vieira, 2004:59)
2. 2 O Programa Bolsa Famlia
Os programas de transferncia monetria direta a indivduos ou a famlias
representam elemento central na constituio atual do Sistema Brasileiro de Proteo
23
Social, especialmente no mbito da Assistncia Social. (cf. Silva e Silva, Yazbek e
Giovanni 2008:101)
O Programa Bolsa Famlia criado em 2003 pelo governo federal considerado um eixo
estratgico para a integrao de polticas e aes no enfrentamento pobreza, no
acesso educao e no combate ao trabalho infantil. Foi criado tendo como
perspectiva unificar os Programas de Transferncia de Renda em vigncia no mbito
federal, a partir da constatao de seu funcionamento com programas concorrentes e
sobrepostos nos seus objetivos e no seu pblico alvo; da ausncia de uma
coordenao geral desses programas, gerando desperdcio de recursos; da ausncia de
planejamento gerencial dos mesmos e disperso de comando em diversos Ministrios,
alm de oramentos alocados insuficientes e do no alcance do pblico alvo conforme
os critrios de elegibilidade dos programas. Foram unificados: o Bolsa Escola, o Bolsa
Alimentao, o Auxlio Gs, o Carto Alimentao, o Programa de Erradicao do
Trabalho Infantil - PETI e o Agente Jovem.
Tendo como perspectiva a articulao da transferncia monetria e polticas
educacionais, de sade e de trabalho direcionadas a crianas, jovens e adultos de
famlias pobres, o Programa partiu de dois pressupostos: um de que a transferncia
monetria para famlias pobres possibilita essas famlias tirarem seus filhos da rua e de
trabalhos precoces e penosos, enviando-lhes escola, o que permitir interromper o
ciclo vicioso de reproduo da pobreza; o outro de que a articulao de uma
transferncia monetria com polticas e programas estruturantes, no campo da
educao, da sade e do trabalho, direcionados a famlias pobres, poder representar
uma poltica de enfrentamento pobreza e s desigualdades sociais e econmicas no
pas.
Atualmente (2009) o Programa chega populao a qual precisa chegar: so 12.5
milhes de famlias (cerca de 50 milhes de pessoas nos 5564 municpios brasileiros).
Seu oramento em 2009 alcanou 0.4 do PIB (11.4 bilhes). As ltimas PNADs revelam
uma questo essencial: os PTR no retiram os beneficirios do trabalho (79.1% dos
24
beneficirios tm vnculo com o trabalho). Inmeros estudos e pesquisas vm
demonstrando que os impactos desses programas assistenciais sobre as famlias mais
pobres, sobretudo no Nordeste incontestvel. Ele significa basicamente mais comida
na mesa dos miserveis e compra de produtos essenciais.23
Aes intersetoriais como carcaterstica do Sistema Protetivo brasileiro em
construo
Em seu desenvolvimento histrico, as polticas sociais pblicas (educao, assistncia
social, sade, habitao, cultura, lazer, trabalho, etc.) apresentam-se setorializadas e
desarticuladas, respondendo a uma forma de gesto com caractersticas
centralizadoras e hierarquizadas. Alm disto, percebe-se que cada rea da poltica
pblica tem uma rede prpria de instituies e/ou servios sociais que desenvolvem
um conjunto de atendimentos na rea, atravs de instituies estatais e filantrpicas
de forma paralela as demais polticas e muitas vezes atendendo aos mesmos usurios.
Esta forma de gesto da poltica pblica vem historicamente gerando fragmentao da
ateno s necessidades sociais e aes paralelas; alm de divergncias quanto aos
objetivos e papel de cada rea, prejudicando particularmente os usurios - sujeitos das
atenes dessas polticas.
Frente a este cenrio oportuno refletir sobre o desenvolvimento de estratgias de
gesto que viabilizem abordagens intersetoriais, talvez, o nico caminho possvel para
enfrentar situaes geradas por condies multicausais.
Nesse sentido a intersetorialidade transcende o carter especfico de cada Poltica e
potencializa as aes desenvolvidas por essas polticas. Tambm, amplia a
possibilidade de um atendimento integral aos cidados que dela se utilizam.
A Intersetorialidade supe tambm a articulao entre sujeitos de reas que tem suas
especificidades e diversidades e, portanto experincias particulares, para enfrentar
23 Ver por exemplo: O Bolsa Famlia no enfrentamento pobreza no Maranho e Piau. Maria Ozanira da Silva e
Silva (coordenadora) So Paulo, Cortez Editora, Teresina: Ed. Grfica da UFPI, 2008.; Ana Cristina de Souza Vieira.
Declnio da desigualdade no Brasil. InTrabalho e Direitos Sociais: bases para a discusso. Macei, UFAL,2008.
25
problemas complexos. uma nova forma de gesto de polticas pblicas que est
necessariamente relacionada ao enfrentamento de situaes concretas. Envolve,
portanto estruturao de elementos de gesto que materializem princpios e
diretrizes, a criao de espaos comunicativos, a capacidade de negociao e tambm
trabalhar os conflitos para que finalmente se possa chegar, com maior potncia, s
aes.
Para a Assistncia Social o desafio da intersetorialidade se coloca tanto na busca de
articulao das iniciativas pblicas como da sociedade na perspectiva da construo de
uma rede protetiva no mbito dessa poltica. Na rea da Assistncia Social a parceria
histrica com entidades beneficentes resultou em programas fragmentados, na maior
parte das vezes, desvinculados na realidade onde se instalavam, sem compromisso
com espao pblico, com programas seletivos e com gestes, quase sempre,
centralizadoras e pouco participativas. Essa forma de organizao criou um caldo de
cultura difcil de trabalhar, uma vez que os trabalhos realizados contriburam, em
muito, para a reiterao da subalternidade da populao usuria dos servios
assistenciais.
Para uma anlise dos desafios e possibilidades do Sistema de Proteo social brasileiro
nesta conjuntura, particularmente das polticas direcionadas reduo das
desigualdades sociais, necessrio retomar um conceito bsico para esse debate: o
carter pblico do sistema protetivo em construo.
Sem dvida, temos grandes desafios pela frente e apesar de sabermos que escapa s
polticas sociais, s suas capacidades, desenhos e objetivos reverter nveis to elevados
de desigualdade, como os encontrados no mundo atual, sabemos tambm que as
polticas sociais respondem s necessidades e direitos concretos de seus usurios e
fazem a diferena para uma sobrevivncia digna.
26
Dessa forma, a Poltica Social Pblica permite aos cidados acessar recursos, bens e
servios sociais direcionados ao atendimento de seus direitos e necessidades, sob
mltiplos aspectos e dimenses da vida: social, econmico, cultural, poltico,
ambiental entre outros.
DESAFIOS
1 - No podemos esquecer que dcadas de clientelismo consolidaram neste pas uma
cultura tuteladora que no tem favorecido o protagonismo nem a emancipao dos
usurios das Polticas Sociais e especialmente da Assistncia Social (os mais pobres) em
nossa sociedade. Ou seja, permanecem nas polticas de enfrentamento pobreza
brasileira concepes e prticas assistencialistas, clientelistas e patrimonialistas, alm
da ausncia de parmetros pblicos no reconhecimento de seus direitos, reiterando a
imensa fratura entre direitos e possibilidades efetivas de acesso s polticas sociais de
modo geral. Trata-se aqui do reconhecimento pblico e da construo dos direitos
sociais de uma parcela significativa da sociedade brasileira. Direitos que sendo
pblicos tm a universalidade como perspectiva, envolvem interesses coletivos
(interesses de uma classe social), tem visibilidade pblica, transparncia e exigem o
controle social, a participao e a democratizao (Raichelis, 2008). E aqui que
devemos localizar o significado de polticas democrticas de enfrentamento pobreza:
na disputa pelos sentidos da sociedade, na construo de parmetros capazes de deter
a privatizao do pblico, e na perspectiva de construir a hegemonia das classes que
vivem do trabalho em nossa sociedade. Isso a poltica social pode construir, deve
construir.
Esse , pois o primeiro desafio: construir a cultura do direito, superando essas
marcas. A proteo no pode ser o lugar do no direito e da no cidadania () lugar a
que o indivduo tem acesso, no por sua condio de cidadania, mas pela prova de que
dela est excludo (Telles, 2001:95)
2 - A nova institucionalidade das polticas sociais, que emerge no mbito do Sistema
de Proteo Social ps Constitucional, caracteriza-se, ainda, por uma expanso e
multiplicao dos mecanismos participativos, da sociedade organizada, dos
27
trabalhadores do setor e dos usurios dessas polticas. Esse o segundo desafio:
ampliar e fortalecer essa participao, especialmente dos usurios nesse processo.
3 Buscar construir a perspectiva de integrao da Seguridade Social no sistema
protetivo da sociedade brasileira e articular as polticas de enfrentamento pobreza
com polticas universais: necessria a conjugao adequada entre polticas
estruturais voltadas redistribuio de renda, crescimento da produo, gerao de
empregos, reforma agrria, entre outros e as intervenes de ordem emergncial.
Restringir-se a estas ltimas quando as polticas estruturais seguem gerando
desemprego, concentrando a renda e ampliando a pobreza, desperdiar recursos, e
no enfrentar a questo. Por outro lado tambm no admissvel o contrrio.
Subordinar a luta contra a fome conquista prvia de mudanas profundas nas
polticas estruturais representaria a quebra da solidariedade que dever imperativo
de todos perante os milhes cidados hoje condenados excluso social e
insuficincia alimentar.
5 - Avanar na perspectiva de universalizao da Poltica Social (Sade, Educao e
outras) buscando no restringir as polticas sociais funo de combate pobreza,
abandonando suas possibilidades na reduo das desigualdades sociais. Superar a
perspectiva que, atribui s polticas sociais um carter minimalista, focalizado em
situaes de extrema pobreza, o que as esvazia de seu potencial universalizante e
equnime.
Para concluir:
Sabemos que o desafio de construir Polticas Pblicas e especialmente Polticas no
campo da Proteo Social nesses tempos de crise e de transformaes no capitalismo e
na vida social no fcil.
Sabemos tambm que a extenso das protees um processo histrico de longa
durao, que funciona em grande parte de mos dadas com o desenvolvimento do
Estado e as exigncias da democracia, e sem dvida jamais esteve to presente como
28
hoje quando o direito a ser protegido [...] exprime uma necessidade inscrita no cerne
da condio do ser humano... (Castel, 2005: 89-90)
Como afirma Vieira: Sem justia e sem direitos, a poltica social no passa de ao
tcnica, de medida burocrtica, de mobilizao controlada ou de controle da poltica
quando consegue traduzir-se nisto. No existe direito sem sua realizao e sem suas
mediaes e a Poltica Social sem dvida mediao fundamental, nesse sentido. Se
entendermos que, no contexto de crise e na nova ordem das coisas, est em disputa,
uma direo para a sociedade brasileira, cabe interferir na construo dessa direo
onde a medida sejam os interesses das classes subalternas na sociedade. Cabe
construir sua hegemonia, criar uma cultura que torne indeclinveis seus interesses.
Para isso preciso enfrentar desafios e nos desvencilhar de certas determinaes e de
certos condicionamentos impostos pela realidade mesma em que estamos inseridos e
de algum modo limitados por ela. Estamos no olho do furaco. E, embora saibamos
que escapa s polticas sociais, s suas capacidades, desenhos e objetivos reverter
nveis to elevados de desigualdade, como os encontrados no Brasil, no podemos
duvidar das virtualidades possveis dessas polticas. Elas podem ser possibilidade de
construo de direitos e iniciativas de "contra-desmanche" de uma ordem injusta e
desigual
Referncias Bibliogrficas
BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em contra-reforma desestruturao do Estado e perda
de direitos. So Paulo: Cortez, 2003.
BEHRING & BOSCHETTI, Elaine Rossetti & Ivanete. Poltica Social fundamentos e
histria. So Paulo: Cortez, 2006
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questo social uma crnica do salrio. Petrpolis:
Rio de Janeiro: Vozes, 2000.
____________. A insegurana social: o que ser protegido?. Petrpolos: Rio de
Janeiro: Vozes, 2005.
IAMAMOTO & CARVALHO, Marilda Villela & Raul de. Relaes Sociais e Servio Social
no Brasil esboo de uma interpretao histrico-metodolgica. So Paulo: Cortez,
1982.
29
IPEA. Polticas Sociais acompanhamento e anlise. Braslia, 2009.
JACCOUD, Luciana de Barros. Proteo Social no Brasil: debates e desafios. In
Concepo e Gesto da Proteo Social no contributiva no Brasil. Braslia:
MDS/UNESCO, 2009.
MESTRINER, Maria Luiza. O Estado entre a Filantropia e a Assistncia Social. So Paulo:
Cortez, 2001.
MONTAO, Carlos. Terceiro Setor e questo social crtica ao padro emergente de
interveno social, So Paulo: Cortez, 2003(2.ed),
PEREIRA, Potyara A. P. Pereira. Poltica Social temas & questes. So Paulo: Cortez,
2008.
SILVA, Ademir Alves da. A gesto da seguridade social brasileira entre a poltica
pblica e o mercado. So Paulo: Cortez, 2004
SPOSATI, Aldaiza, 1994. Modelo brasileiro de proteo social no contributiva:
concepes fundantes. In Concepo e Gesto da Proteo Social no contributiva no
Brasil. Braslia: MDS/UNESCO, 2009.
VIEIRA, Evaldo. Os direitos e a poltica social. So Paulo: Cortez, 2004
Observao do Departamento de Benefcios Assistenciais da Secretaria Nacional de Assistncia Social do Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome (MDS): Haver complementao das referncias bibliogrficas pela autora.