UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
MARIANA FERRAZ DE ALBUQUERQUE
BREVE ESPAÇO ENTRE COR E SOMBRA:
LITERATURA E ARTES PLÁSTICAS
São Paulo
2010
MARIANA FERRAZ DE ALBUQUERQUE
BREVE ESPAÇO ENTRE COR E SOMBRA:
LITERATURA E ARTES PLÁSTICAS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientadora: Profa Dr
a Maria Luiza Guarnieri Atik
São Paulo
2010
A345b Albuquerque, Mariana Ferraz de Breve espaço entre cor e sombra: literatura e artes plásticas / Mariana Ferraz de Albuquerque - São Paulo, 2010 76 f. : il. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2008. Orientador: Profª.Drª. Maria Luiza Guarnieri Atik Referências bibliográficas: f. 74-76
1. Literatura comparada. 2. Artes plásticas. 3. Pintura. 4. Literatura. I. Título.
CDD 869.3
MARIANA FERRAZ DE ALBUQUERQUE
BREVE ESPAÇO ENTRE COR E SOMBRA:
LITERATURA E ARTES PLÁSTICAS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre em Letras.
Aprovada em agosto de 2010.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________
Profa Dr
a Maria Luiza Guarnieri Atik
Universidade Presbiteriana Mackenzie
___________________________________________________________________
Profa Dr
a Aurora Gedra Ruiz Alvarez
Universidade Presbiteriana Mackenzie
___________________________________________________________________
Profo Dr. Osvando J. de Morais
Universidade de Sorocaba
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo analisar o romance Breve espaço entre cor e sombra, de
Cristovão Tezza, seguindo os preceitos da literatura comparada. A obra transita entre a
literatura e as artes plásticas, tornando-se, portanto, imprescindível conceituar o que é arte,
entender os caminhos que ela vem percorrendo desde os primórdios e destacar algumas
marcas presentes nas obras de artistas da modernidade. Uma vez que o fio condutor do
romance gira em torno de uma falsa cabeça esculpida pelo italiano Amedeo Modigliani, por
meio dos pressupostos teóricos de Walter Benjamin, entender-se-ão questões como a
reprodutibilidade técnica e a reprodutibilidade manual. Sabido que os conceitos de arte
perpassam todo o romance, o presente estudo tem, como fontes de referência, as obras de
Mario Praz, Paulo Menezes, Jorge Coli, Alfredo Bosi e Aguinaldo Gonçalves. Analisar-se-ão
não somente os conceitos de arte, mas, também, as descrições das telas que correspondem aos
―quadros narrativos‖ presentes no romance, quadros estes que transformam as palavras em
imagens.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura Comparada; Artes Plásticas; Literatura; Pintura.
ABSTRACT
The present work aims to analyze the novel Breve espaço entre cor e sombra (Brief space
between color and shade) by Cristovão Tezza. The work transits between the literature and the
plastic arts, becoming, therefore, essential to conceptualize what art is, understand the paths
that it has been covering since early times and to highlight some present marks in the
modernity artists‘ artwork. Once the thread of the story revolves around a false head
sculptured by the Italian Amedeo Modigliani, through Walter Benjamin‘s theoretical
assumptions, questions as technical reproduction and manual reproduction will be understood.
Knowing that the concepts of art permeate the whole novel, the present work has, as reference
sources, the works of Mario Praz, Paulo Menezes, Jorge Coli, Alfredo Bosi and Aguinaldo
Gonçalves. It will be analyzed not only the concepts of art, but also, the description of the
paintings that correspond to the ―narrative paintings‖, present in the novel, paintings these that
transform the words into images.
KEYWORDS: Comparative Literature; Plastic arts; Literature; Painting.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1: ―A anunciação‖, de Martini, Simone (1333)....................................................... 14
Ilustração 2: ―Impressão, nascer do sol‖, de Monet, Claude (1872)........................................ 16
Ilustração 3: Foto do pintor Amedeo Modigliani .................................................................... 31
Ilustração 4: ―Cariátide‖, de Modigliani, Amedeo (1913)....................................................... 32
Ilustração 5: ―Cabeça de Pedra‖, de Modigliani, Amedeo (1911-12).................................... 33
Ilustração 6: ―Nu reclinado‖, de Modigliani, Amedeo (1917)................................................ 34
Ilustração 7: ―A primavera‖, Botticelli, Sandro (1478) ...........................................................42
Ilustração 8: ―O almoço na relva‖ – Manet, Edouard (1863)...................................................45
Ilustração 9: Foto do pintor Jackson Pollock ...........................................................................46
Ilustração 10: ―Composição em vermelho, amarelo e azul‖, de Mondrian, Piet (1937-
1942)……................................................................................................................................ 52
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 9
CAPÍTULO 1 – OS CAMINHOS PERCORRIDOS PELA ARTE ..................................13
1.1 O PINTOR E O MERCADO DE ARTE .......................................................................21
1.2 AS FALSIFICAÇÕES E AS MARCAS DAS OBRAS .................................................24
1.3 AMEDEO MODIGLIANI ...............................................................................................31
CAPÍTULO 2 – CRISTOVÃO TEZZA E SUA OBRA: BREVE ESPAÇO ENTRE COR
E SOMBRA ............................................................................................................................. 38
2.1 NARRATIVAS SOBRE TELAS ....................................................................................46
2.1.1 CRIANÇAS..............................................................................................................47
2.1.2 IMMOBILIS SAPIENTIA........................................................................................49
2.1.3 ESTUDO SOBRE MONDRIAN..............................................................................50
2.1.4 RÉQUIEM ..............................................................................................................53
2.2 ESTRUTURA NARRATIVA ..........................................................................................56
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................71
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................74
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INTRODUÇÃO
“Só a arte pode garantir a
sobrevivência da civilização”
(Cristovão Tezza)
As manifestações artísticas, também entendidas como obras de arte, expressam-se de
diferentes formas. Isso ocorre devido à evolução do homem, que encontra diferentes maneiras
de manifestar, expressar e expor seus pensamentos, ideias, anseios, desejos, descobertas,
medos, percepções e emoções.
A arte ajuda-nos a melhor entender momentos históricos, sociedades e culturas. O
produto estético pode utilizar-se de diferentes meios de expressão, tais como a ficção, a
pintura, a música, a escultura, o teatro, a dança, a fotografia, a arquitetura e o cinema. Além
disso, a arte pode ser fruto da inspiração de um indivíduo ou refletir as aspirações de um
grupo com o qual ele se identifica.
Arte, do latim ars, significa técnica e/ou habilidade. Técnica em produzir, habilidade
para produzir. No entanto, os conceitos sobre arte variam de cultura para cultura. Muitos
objetos, por exemplo, produzidos com finalidade prática por diferentes tribos indígenas
podem ser considerados objetos artísticos em outros contextos culturais.
A escolha do romance Breve espaço entre cor e sombra como foco desta dissertação
deve-se, justamente, ao interesse por esta temática, arte, bem como à admiração por Cristovão
Tezza, autor da referida obra literária. Diante de tantos bons romances, difícil foi escolher um
que fosse significativo; mas a leitura dessa obra, a identificação com sua temática, o debate
acerca da arte e, mais precisamente, a questão do que é autêntico em arte, levou-nos à pronta
decisão.
10
Os estudos de Mario Praz, Paulo Menezes, Alfredo Bosi, Jorge Coli e Aguinaldo
Gonçalves serão utilizados, neste trabalho, como fundamentação teórica, para uma melhor
compreensão dos diferentes conceitos sobre arte.
A partir desse aparato teórico, a dissertação tem, pois, por objetivo, analisar a
mencionada obra de Cristovão Tezza por meio de recortes do romance que explicitem tanto
reflexões sobre a arte, como nomes de pintores e suas marcas características, examinando,
ainda, os dilemas implícitos e/ou explícitos no processo criativo.
Diante dos objetivos propostos, no Capítulo 1, abre-se, efetivamente, a discussão sobre
a arte. Fazendo uso de textos teóricos sobre esse assunto, bem como de ilustrações de algumas
telas, pretendemos fazer um levantamento sobre como a arte se desenvolveu ao longo dos
séculos, fazendo, ainda, uma reflexão sobre conceitos e temáticas abordadas em diferentes
períodos.
Em seguida, a partir da seleção de determinados trechos do romance, faremos um
estudo das marcas peculiares e inerentes às obras de arte e/ou dos artistas. Inclusive, iremos
discutir, mesmo que brevemente, a relação entre o artista e o mercado de arte, bem como a
diferença entre reprodução e falsificação de uma obra de arte, reprodução técnica e
reprodução manual, discussão esta embasada na teoria de Walter Benjamin. Uma vez que a
trama da obra gira em torno da falsificação de uma suposta cabeça esculpida por Amedeo
Modigliani, focaremos nossa atenção na produção artística desse pintor e escultor italiano,
enfatizando as características que levam à identificação de suas obras.
Também no primeiro capítulo, outros artistas plásticos serão mencionados e estudados
à luz das teorias já citadas, já que o campo das artes permeia o texto de Cristovão Tezza.
Além disso, abordaremos os dilemas do processo criativo a partir de discursos reflexivos de
Richard Constantin sobre a arte e dos questionamentos e conflitos pessoais de Tato Simmone.
Veremos, assim, como cada uma dessas personagens define o que é arte.
11
No Capítulo 2, abordaremos, sucintamente, um resumo biográfico com algumas
informações sobre o autor em estudo, Cristovão Tezza, e retomaremos alguns elementos que
se tornaram marcas particulares desse romancista curitibano. Grande parte dos dados obtidos
foi extraída do site oficial do autor, onde há uma coletânea de artigos, entrevistas e textos
críticos sobre a obra completa de Tezza, uma vez que a biografia e a fortuna crítica acerca do
escritor ainda são escassas.
Em seguida, apresentaremos uma síntese do livro Breve espaço entre cor e sombra,
intercalando-a com alguns fragmentos do romance, e esboçaremos o perfil das personagens,
mais relevantes. Também enfocaremos o espaço e o tempo em que se desenvolvem as ações
da trama narrativa, além do que, discutiremos sobre a questão da hibridização no romance, a
qual, segundo Bakhtin (1988, p. 159-161), pode ocorrer, no romance, de diferentes formas:
por meio da estilização, da paródia ou pela introdução de gêneros intercalados – diários,
relatos de viagem, cartas, biografias.
A introdução de gêneros no romance de Tezza que será analisado, mais
especificamente, a inserção da ―epístola‖ e de narrativas sobre telas, será o foco da análise
deste segundo capítulo. Quanto à inserção do discurso epistolar ao longo da trama narrativa, é
importante destacar que cada fragmento da carta da crítica italiana delineia, paulatinamente,
elementos físicos, atitudes e aspectos da sensibilidade do protagonista Tato Simmone.
Já as narrativas sobre telas não se caracterizam como comentários, sendo, na verdade,
uma exposição de episódios imaginários em que as telas foram inspiradas: Crianças,
Immobilis Sapientia, Estudo sobre Mondrian e Réquiem.
Quanto às narrativas oníricas, ou ―quadros narrativos‖, é importante destacar que não
temos a reprodução das telas no corpo do romance, e sim uma narrativa de cunho imagético.
Utilizando-nos dos textos de Aguinaldo Gonçalves e Mario Praz, procuraremos apreender
como se estabelece essa relação entre a linguagem verbal e a linguagem não verbal.
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O nosso objetivo não é tratar das questões relativas às distinções entre os gêneros
fixadas ao longo da história, mas, sim, analisar como Tezza renova o gênero romanesco
tradicional ao desarticular a lógica da narrativa tradicional pela introdução de gêneros
intercalados, verificando, por conseguinte, em que medida se dá o diálogo com o mundo das
artes plásticas.
Breve espaço entre cor e sombra é uma reflexão sobre a arte da composição, sobre as
relações humanas e a própria vida. É uma viagem pelo mundo das cores, da criatividade. É
enveredar pelo mundo dos pintores, de Pollock a Volpi, de Bruegel a Chirico, de Bacon a
Giacometti. É repensar a arte no universo literário.
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CAPÍTULO 1 – OS CAMINHOS PERCORRIDOS PELA ARTE
“A pintura é poesia muda, e a poesia, pintura que fala”
(Simônides de Céos)
A arte surgiu há cerca de 25 mil anos, quando o homem de Neanderthal evoluiu para o
homem de Cro-Magnon. Essa evolução possibilitou ao homem o aumento de sua inteligência,
fazendo aflorar neles a imaginação e a habilidade de criar imagens esculpidas e pintadas:
―Entre 25.000 a.C. e 1.400 d.C., a história da arte não é uma história de evolução do primitivo
para o sofisticado, nem do simples para o complexo – mas uma história das formas variadas
que a imaginação assumiu na pintura, na escultura e na arquitetura‖ (STRICKLAND, 2003, p.
02).
A arte rupestre é a primeira forma de expressão artística da história da humanidade.
Fazendo uso, principalmente, da terra vermelha e do carvão, o ancestral humano retratava
símbolos de animais, bisões, veados, cavalos, bois, mamutes e pessoas, com o intuito de
controlar a força da natureza. Os símbolos desenhados eram imbuídos de significações
sobrenaturais e poderes mágicos:
As imagens para os antigos tinham um papel fundamental na luta contra o tempo. Os
animais gravados nas cavernas davam a quem os desenhava a capacidade mágica de sua
posse e controle. Ligadas ao ritual, as imagens presentificavam um ser em uma relação
direta com os homens. O desenvolvimento temporal das sociedades vai marcar a separação
gradativa das artes plásticas de sua função mágica. Na Idade Média, sua utilização pela
Igreja fazia com que o temor pelos castigos dos pecados e os ensinamentos de Deus fossem
transmitidos mais pelas imagens do que aprendidos pelas falas. Sua emancipação dos
rituais vai acelerando os momentos de sua exposição. A imagem sagrada que antes era para
ser vista apenas pelo sacerdote e pelos espíritos, vai perdendo espaço para a imagem que
tem como objetivo primordial ser vista por todos (MENEZES, 1997, p. 39).
A arte perde a conotação mística que tinha anteriormente, porque a capacidade
intelectual do homem se desenvolve, possibilitando-lhe, assim, um grande aumento de
criatividade, não apenas no âmbito das artes. A partir do momento em que se processam
14
mudanças no ser humano, nasce a civilização ocidental e é, primeiramente, por meio dos
gregos e romanos que a arte vem a tornar-se uma forma de humanismo.
Já no período denominado Idade Média, que se estende do século V ao XV, a Igreja
Católica assume o poder de controlar toda e qualquer produção cultural e científica. Assim,
como seu objetivo era propagar o cristianismo, grande parte das obras artísticas apresentava
um cunho religioso. Um exemplo disso é que, como muitos homens não sabiam ler, a
utilização das imagens propiciava que os ensinamentos da Bíblia fossem repassados mais
rapidamente.
Segundo Strickland (2003, p. 24), a arte tornou-se serva da Igreja: os nus foram
proibidos, as imagens de corpos vestidos não retratavam a real anatomia corpórea e a pintura
servia apenas para conduzir o homem à
salvação e à vida eterna. Além disso, a
pintura servia para retratar determinadas
passagens do Evangelho. A tela de Martini,
por exemplo, representa o momento em
que, de acordo com o evangelho de Lucas,
o Arcanjo Gabriel anuncia à Virgem Maria
que ela fora a escolhida para ser a mãe de
Jesus Cristo. A Anunciação, assim como
tantas outras telas, foi feita sob
encomenda, para ornamentar a Catedral de
Siena, o que demonstra que a Igreja Católica era suficientemente rica para pagar os trabalhos
dos artistas.
O Renascimento, por sua vez, foi o período que emergiu após a Idade Média, tendo
início na Itália e se estendendo pelo resto da Europa. Essa transição ocorreu porque os
Ilustração 1:
“A anunciação” – Martini, Simone (1333)
Têmpera sobre madeira
184x210cm
Galeria Uffizi (Florença, Itália)
15
renascentistas viram, nas tradições greco-romanas, um modelo de perfeição que lhes
proporcionaram compreender e dominar a anatomia humana para, consequentemente,
reproduzir, com realismo, as formas da natureza. Essa informação, associada à descoberta de
novos continentes e ao poder de contestação da Reforma Protestante frente à Igreja Católica,
(STRICKLAND, 2003, p. 32) demonstra que a ideia de Deus como Ser Supremo foi
substituída pela ideia de que o ser humano é esse ser supremo.
A separação entre Igreja, Estado e sociedade civil deu aos homens, pela primeira vez, a
capacidade de ver o outro como um igual e, portanto, a todos como indivíduos e cidadãos.
As sociedades passaram a se questionar sobre o seu passado e futuro, a tematizar sua
temporalidade e historicidade, buscando compreender as razões de sua história e as
possibilidades de sua alteridade. Ideias, perspectivas e propostas seculares que permeavam
a constituição e a fruição de obras artísticas começaram a ser questionadas, ainda que
vagarosamente (MENEZES, 1997, p. 21).
Uma contribuição importante para a pintura na época da Renascença diz respeito à
descoberta da perspectiva, cuja ilusão de profundidade em uma superfície plana possibilitava
retratar a realidade de modo mais natural.
É, no entanto, apenas por meio da invenção da fotografia, que transformações
ocorreram na pintura, principalmente no que diz respeito à representação. De acordo com
Menezes (ibidem, p. 35), no início, surgiram algumas reações contra a fotografia, pois as
imagens causavam estranheza e desorganização nos esquemas pelos quais as pessoas
decifravam as representações. No entanto, são irrefutáveis seus benefícios à pintura:
Sua capacidade de criar o duplo quase perfeito é sem dúvida a contribuição mais importante
para as artes plásticas em termos de percepção visual. Isso acabou por liberar a pintura
definitivamente de quaisquer pressupostos realistas e, com ele, da máxima de Millet: Le
beau c’est le vrai. Libertou a pintura do fantasma platônico de ser eternamente imitação das
aparências: ―A câmara transformou o naturalismo direto em lugar-comum‖ (idem, ibidem,
p. 45).
A influência da fotografia e a captação de movimentos rápidos fizeram, portanto,
surgir o período pós-renascentista, conhecido como Impressionismo. Desse modo, se, na
Idade Média e no Renascimento, as imagens expressavam, respectivamente, a visão de Deus e
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a visão da natureza, no Impressionismo, elas representavam o espírito do homem, ou melhor,
suas sensações e seus símbolos (MENEZES, 1997, p. 46). O nome desse movimento,
deflagrado no século XIX, deriva de uma tela de Claude Monet, Impressão, nascer do sol, de
onde podemos destacar as seguintes características da pintura impressionista: o gosto pela
natureza morta, as variações das cores como decorrência do efeito da luz e as pinceladas
rápidas e curtas.
Em 1874, durante uma exposição
realizada no Salão dos Recusados, Louis
Leroy, crítico de arte, inspirado nessa tela
de Monet, chamou pejorativamente de
impressionistas todos os demais pintores
que seguiam a mesma linha de pintura de
Monet – alcunha que esses mesmos
pintores acabaram adotando para si.1
Segundo Menezes (ibidem, p. 48),
o Impressionismo surgiu como movimento em 1874, data da primeira exposição do grupo,
mas as manifestações de rejeição dos críticos e do público já haviam começado em 1863. A
Academia Francesa era quem decidia o que deveria ser considerado bom ou não em pintura.
Muitas das obras recusadas tiveram a chance de ser julgadas pelo público durante uma
exposição realizada no famoso Salão dos Recusados, que ficava ao lado do salão oficial, e o
público preferia concordar com a opinião renomada da crítica que ia contra aqueles pintores.
Estavam no Salão dos Recusados: Manet, Pissarro, Jongkind, Whistler, Renoir, Monet,
Degas, Cézanne, entre outros.
1 Sobre esse assunto, ver ―O lago das ninfeias‖ (Claude Monet). Bravo! 100 obras essenciais da pintura
mundial. São Paulo, n. 7, p. 26-27, out. 2008.
Ilustração 2:
“Impressão, nascer do sol” – Monet, Claude (1872)
Óleo sobre tela
48x63cm
Museu Marmottan (Paris, França)
17
O impressionismo, conforme já mencionamos, surge de fato em 1874, quando um
grupo de pintores se reúne para pintar ao ar livre. Devido às recusas do salão oficial, esses
artistas decidem fazer uma exposição conjunta que será, definitivamente, o marco do
nascimento do impressionismo. Foram, ao todo, oito exposições que, nem sempre, contaram
com a presença de todos os membros do grupo, pois, algumas vezes, eles conseguiram que
seus trabalhos fossem aceitos para participar do salão oficial.
Cada vez mais, o público visitava a exposição dos recusados, transformando-a em um
dos mais concorridos eventos parisienses. O Salão dos Recusados tornou-se, posteriormente,
conhecido como Salão dos Independentes. No fim da década de 80, o movimento
impressionista foi bem aceito pelo público e pela crítica em geral e, na década de 90, os
artistas conseguiram atingir o sucesso comercial. Aos poucos, porém, ocorreu a dispersão do
grupo.
O advento da fotografia e a proposta do impressionismo revolucionaram a pintura,
dando início às novas tendências de arte do século XX:
O século XX constitui um grande desafio para a compreensão daquilo que se designa arte.
Após séculos e séculos de relativa estabilidade, explode, de repente, uma séria de
movimentos artísticos, com as mais variadas propostas, fato que costuma desorientar o
observador incauto. Começando por suaves modificações no decorrer do século XIX,
assistiremos, na virada do novo século, a transformações bruscas e radicais. Essas
mudanças vão colocar em questão, de maneira definitiva, a própria natureza da arte
(MENEZES, 1997, p. 15).
As palavras de Menezes são reforçadas pelas de Praz (1982, p. 187), que versa sobre
as mudanças ocasionadas pela chegada da fotografia:
Enquanto na primeira parte do século XIX os pintores estavam encharcados de literatura, e
os escritores tentavam emular os pintores, o impacto do Impressionismo fez com que a
Pintura não mais fosse buscar inspiração à Literatura, e sim à fotografia. A Pintura levou
avante a sugestão e entregou-se a uma série de experimentos que foram adotados pelas
outras Artes. Podemos talvez dizer que quando a Arquitetura era um guia, comportava-se
como uma virgem sábia, ao passo que a Pintura, nos últimos cem anos, tem-se mostrado
uma virgem louca, a julgar pelo atual estado das Artes.
18
A arte no século XX concedeu o livre arbítrio aos pintores quanto à escolha da
temática e quanto à liberdade de expressão; além disso, libertou a pintura de qualquer regra e
formas já consolidadas pela tradição.
Soma-se a esse momento de nova visão da arte o aparecimento das Vanguardas
Europeias. São elas: o Futurismo, o Dadaísmo, o Cubismo, o Surrealismo e o Expressionismo.
Como bem assinala Gilberto Mendonça Teles (1972, p. 10-11):
De um modo geral, todos esses movimentos estavam sob o signo da desorganização do
universo artístico de sua época. A diferença é que uns, como o futurismo e o dadaísmo,
queriam a destruição do passado e a negação total dos valores estéticos presentes; e outros,
como o expressionismo e o cubismo viam na destruição a possibilidade de construção de
uma nova ordem superior. No fundo eram, portanto, tendências organizadoras de uma nova
estrutura estética e social.
Por outro lado, como afirma Menezes (1997, p. 264), é necessário que acompanhemos
mais de perto o processo de transmutação do objeto de arte. Se, no século XIX, a pintura era a
janela para o mundo, após o fim do espaço cúbico, a pintura é apenas uma pintura. Com as
colagens cubistas, o que antes era objeto passa a ser processo. A nova arte preocupa-se com o
processo, e não com o objeto final, processo este que implica na passagem da arte ao
figurativo e ao abstrato.
Com o passar dos anos, o campo das artes foi se modernizando, pois acompanhava as
mudanças históricas, tais como o avanço da tecnologia e o processo de industrialização. É por
intermédio das obras de Marcel Duchamp, pintor e escultor francês, que a modernidade
finalmente se instaura nas artes plásticas. Ainda de acordo com as afirmações de Menezes
(ibidem, p. 265):
Ao enviar sua Fonte (urinol) para uma exposição, Duchamp acabou provocando a ruptura
definitiva que marca, a nosso ver, a entrada de uma nova época, a nossa modernidade
visual. Esse ato, aparentemente desconexo, é pleno de significados. [...] Após essa ―obra‖, o
que está em jogo não é mais nem a obra, nem o processo artístico. É o próprio ato. E, se a
arte é um ato, nada mais pode definir o que é arte.
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Seguindo o caminho do precursor Duchamp, emergiu o pop art – arte pop –
movimento de arte contemporânea centralizado nos Estados Unidos, sobretudo em Nova
York, em forma de crítica à sociedade capitalista-consumista. Roy Fox Lichtenstein, Andy
Warhol, Claes Oldenburg e James Rosenquist foram os nomes que surgiram como destaque
desse período.
Como assinalamos anteriormente, em Breve espaço entre cor e sombra, os
comentários da personagem Richard Constantin sobre a arte em geral e sobre os artistas
perpassam todo o romance. Ao analisar um quadro de Tato Simmone, ele tece,
concomitantemente, as seguintes considerações sobre arte contemporânea americana:
Os americanos são bons nisso, é verdade, mas na segunda olhada o quadro já parece uma
propaganda antiga da Ford, apropriado para uma exposição de cartazes. Os americanos
parecem dizer: Olhe, mãe, como eu sei pintar bem! Eu também sei fazer! Lichtenstein se
salva, é claro, mas ele não se entrega, só comenta; aliás, esse pessoal, Oldenburg, Warhol,
toda a pintura pop de uma piada só é o realismo socialista dos Estados Unidos, uma chatice
cheia de mensagens edificantes mal-disfarçadas (TEZZA, 1998, p. 28).
Do ponto de vista histórico, podemos dizer que o caminho percorrido pela arte é
conhecido, mas, diante das muitas mudanças e transformações, torna-se extremamente difícil,
senão impossível, conseguir conceituá-la:
Se perguntarmos hoje a um homem de cultura mediana o que ele entende por arte, é
provável que na sua resposta apareçam imagens de grandes clássicos da Renascença, um
Leonardo da Vinci, um Rafael, um Michelangelo: arte lembra-lhe objetos consagrados pelo
tempo, e que se destinam a provocar sentimentos vários e, entre estes, um, difícil de
precisar: o sentimento do belo (BOSI, 2008, p. 07).
Assim sendo, é mais simples conceituar arte por meio de exemplos, ou mais
especificamente, citando nomes de obras e/ou autores, do que chegar a uma definição comum.
Definir o que é arte é um processo árduo, porque a ideia de arte não é só um fenômeno social,
mas, também, cultural e histórico:
Ora, é importante ter em mente que a ideia de arte não é própria a todas as culturas e que a
nossa possui uma maneira muito específica de concebê-la. Quando nos referimos à arte
africana, quando dizemos arte Ekoi, Batshioko ou Wobé, remetemos a esculturas, máscaras
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realizadas por tribos africanas na Nigéria, Angola ou da Costa do Marfim: isto é,
selecionamos algumas manifestações materiais dessas tribos e damos a elas uma
denominação desconhecida dos homens que a produziram. Esses objetos culturais não são
para os Ekoi, Batshioko, Wobé, objetos de arte. Para eles, não teria sentido conservá-los em
museu, rastrear constantes estilísticas ou compor análises formais, como nós fazemos,
porque são instrumentos de culto, de rituais, de magia, de encantação. Para elas não são
arte. Para nós, sim (COLI, 2006, p. 66).
Dessa forma, pode-se perceber que o conceito de arte é bastante amplo, diferindo de
uma cultura para outra: o que para nós é arte, para os outros pode ser um mero objeto de
trabalho de uso diário. É relevante observar também a questão histórica: o que hoje é
considerado uma obra de arte, poderia não o ter sido no passado e vice-versa, devido a
questões de conflitos estéticos, incongruências de estilos e atribuição ou não de valores às
obras.
Retomando o que foi apontado sobre o movimento impressionista, Cézanne, por
exemplo, foi o único pintor daquele grupo que teve suas obras recusadas em todas as vezes
que tentou participar do Salão Anual de Paris. Coli (ibidem, p. 20) acrescenta que o valor de
Cézanne foi tardiamente reconhecido, não por falta de talento, mas por um conflito existente
entre os critérios estabelecidos e a obra que ele produzia.
O Salão de Paris, durante algumas décadas, era quem declarava o que era ou não
considerado arte, sendo os impressionistas os responsáveis por romper com os paradigmas até
então reconhecidos e impostos pelos membros dessa instituição. Atualmente, quem define o
que é arte é a crítica, assim como os museus e os historiadores:
A crítica, portanto, tem o poder não só de atribuir o estatuto de arte a um objeto, mas de o
classificar numa ordem de excelências, segundo critérios próprios. Existe mesmo uma
noção em nossa cultura que designa a posição máxima de uma obra de arte nessa ordem: o
conceito de obra-prima (idem, ibidem, p. 15).
É a crítica, pois, que institui se um objeto é ou não arte, atribuindo-lhe, pois, um valor.
Nem sempre existe uma unanimidade dentre os membros da crítica, mas o consenso geral é
suficiente para reconhecer e tachar uma obra como arte.
21
1.1 – O PINTOR E O MERCADO DE ARTE
Falar de arte implica falar do artista. E mais do que isso, falar da relação do artista
com o mundo comercial. Indubitavelmente, durante o processo de criação, o pintor precisa
pensar em alguns aspectos: focar no seu estilo, dando o seu toque pessoal à obra, ter
originalidade, não obstante projetar o lucro sob a venda da peça.
O crescimento do mercado artístico acompanhou o processo histórico das artes
plásticas. O comércio de artes, a princípio, era financiado pela Igreja, passando,
posteriormente, a nobreza e a burguesia a encomendar trabalhos de artistas para decorar o
interior de suas residências. Nos tempos atuais, o artista é um profissional liberal que
depende, fundamentalmente para sobreviver, de sua produção individual e do mercado.
Nascer pintor ou ser um pintor é mais uma questão intrínseca do que uma escolha. No
romance, a titulação, assim como a aparente inutilidade da arte, são vistas, aos olhos do
marchand Constantin, da seguinte maneira:
Ninguém pede para você pintar, como ninguém pede que você escreva; o mundo quer é
advogados, médicos, engenheiros, porteiros, empregadas domésticas, encanadores. Na
esmagadora maioria das vezes um eletricista é mais útil que Shakespeare. Portanto, essa é a
primeira regra, principalmente nestas décadas liberais: não vá reclamar ao governo a sua
fatia se alguma coisa não deu certo; prefira o diabo, que não tem nada a ver com a
eternidade, esse assunto chatíssimo, mas entende tudo de vaidade, que é a face mais visível
da arte (TEZZA, 1998, p. 25).
Uma vez que a arte não é um produto de consumo qualquer, fez-se necessário, no
decorrer dos anos, entrar em cena uma pessoa que intermediasse o produto até o consumidor,
e assim surgiu o mediador, também conhecido como intermediário. São esses os responsáveis
pelo comércio das artes.
Muitas vezes conhecido na figura do marchand – palavra francesa que designa o
agenciador de obras de arte –, o comerciante de arte tem a função de divulgar a obra do artista
e de levá-la da mão do artista até a mão certa (os possíveis compradores). O aval do
22
marchand é, ou deveria ser, o atestado garantido de qualidade, autenticidade e segurança na
procedência. A valorização e o reconhecimento do pintor, escultor ou de qualquer que seja
sua ocupação artística, surgem nesse encontro de mãos propiciado pelo comerciante de arte.
Na avassaladora maioria dos casos, a destreza do mediador torna-o capacitado a
descobrir verdadeiros achados, ―perdidos‖ pelo tempo ou ―esquecidos‖ sob a poeira de um
quartinho qualquer. Ele possui o domínio de reconhecer e assim triplicar, senão quadriplicar
ou mais, o valor de uma dada obra e revelá-la ao público. Na obra de Cristovão Tezza, o
próprio marchand Constantin se encarrega do julgamento de sua profissão:
— Outras telas estão só de passagem. Afinal, eu sou essa figura odiada no mundo inteiro, o
intermediário. Mas tenho muitas preciosidades, é verdade. Esse pequeno quadro, por
exemplo – [...] – este é de Rouault, Georges Rouault. Comprei em Malta (na verdade,
troquei, mas isso é uma outra história) do próprio Kennedy Toomey, o romancista [...], que
por sua vez havia comprado a preço de banana do famoso Keynes, o economista. Uma
longa história, e engraçada! (TEZZA, 1998, p. 241).
O valor de uma obra de arte depende, exclusivamente, da oscilação do mercado, sendo
relevante levar em consideração o peso do que fora antes consagrado. Quem há de negar, nos
dias atuais, o valor de um Picasso, de um Giacometti, de um Braque? Sobre isso, ainda o
mesmo Constantin coloca:
Quem, por exemplo – e os olhos dele corriam atrás de um exemplo, até acharem A fuga,
mais sombrio ainda na sombra do ateliê – quem compraria esse quadro para pendurar na
sala? Na história tem sido assim: quem compraria um Munch antes que ele fosse um
Munch? É como trazer a mais completa desesperança para dentro de casa. O inferno fica
bem na Igreja, protegido diretamente pela mão de Deus, aquele pé-direito de quarenta
metros, aquelas costas largas, aquelas ressurreições todas, todos os dias (idem, ibidem, p.
168).
Mas, retirando o peso atribuído ao nome do pintor e focando na questão econômica,
questiona-se:
[...] qual o valor correto de uma obra de arte? Adam Smith, o pai do liberalismo econômico,
dizia que ganhar dinheiro com a arte é submeter o talento à ―prostituição pública‖, e por
isso o artista merece ser regiamente pago. Jean-Jacques Rousseau, filósofo iluminista,
achava que toda obra de arte é superfaturada porque está a serviço do desejo dos ricos fúteis
de serem invejados. Francis Pacheco, o pintor espanhol que ensinou Diego Velázquez a
pintar, escreveu um tratado dizendo que o custo de produção de uma obra de arte decorre
―do gênio e da perfeição da forma‖ (PETRY, 2010, p. 56).
23
Nem sempre o valor artístico corresponde ao valor projetado pelo mercado. Nem
sempre o valor atribuído em um determinado período condiz com o atribuído no período
seguinte, como, por exemplo, ocorreu no caso dos impressionistas.
Em Breve espaço entre cor e sombra, a ambição de um jovem pintor em se tornar
grande, que é coibido pelo estranhamento de ter escolhido sua profissão sob os olhos alheios,
que é julgado incessantemente por um mentor, Aníbal, e cujo talento fora inibido pelo
dinheiro provido de sua mãe, tumultua sua cabeça. No extrato abaixo, o protagonista sintetiza
essa surpresa da sociedade mediante a inusitada carreira exercida por ele:
A estranheza dele diante do meu avental colorido. Ele sempre faz a mesma pergunta – vai
pintar, e não vai trabalhar. Na cabeça dele, é inconcebível que alguém viva de pintar
quadros (ou, pior ainda, a pintar quadros). Ainda mais quadros como os meus, que não têm
pé nem cabeça, ou, quando os têm, estão no lugar errado, uma confusão descosturada de
imagens. Às vezes ele me visita de passagem no ateliê, como quem dá uma chegada rápida
no zoológico. Eu sempre me sinto mal, invadido, mas não há o que fazer. Às vezes são as
crianças mais pobres da vizinhança, que se amontoam na janela dos fundos, aos uivos e
gritos, para desaparecerem em seguida atrás do muro (TEZZA, 1998, p. 65).
Anos antes, Marc Chagall, pintor e gravurista judeu, sofrera com a mesma estranheza.
As pessoas não entediam nem o que era ser pintor, nem a finalidade de ser pintor. O próprio
Chagall questionava-se sobre sua difícil opção (apud WALTHER, 2006, p. 7):
Teria de encontrar uma profissão diferente, uma ocupação que não me obrigasse a
abandonar o céu e as estrelas e que me permitisse encontrar a finalidade da minha própria
vida. Sim, isso era, precisamente, o que eu procurava. Todavia, na minha terra natal, ainda
nunca ninguém, antes de mim, tinha pronunciado as palavras: <Arte, artista>. <O que é isso
de uma artista?>, perguntava eu.
Face ao exposto, a obra de arte e o mercado, quando harmonizados, representam
grande valia a ambas as partes, principalmente ao legado herdado pela humanidade. O
produto artístico é, sim, único porque:
[...] seja engenhoso ou nobre ou belo ou douto ou original ou sincero ou idealístico ou útil
ou educativo – pois pode incorporar qualquer uma dessas qualidades – [...] é o único objeto
material do universo dotado de harmonia interna. Todos os outros objetos foram afeiçoados
a partir de fora, e quando se lhes retira o molde, desmoronam. A obra de arte mantém-se
por si própria, como nada mais se mantém. Realiza algo que tem sido amiúde prometido
24
pela sociedade, mas sempre de maneira enganosa. A Atenas da antiguidade ficou em ruínas
– mas a Antígona subsiste. A Roma da Renascença deu em confusão – mas o teto da Capela
Sistina foi pintado. Jaime I acabou em palpos de aranha – mas houve Macbeth. Luís XIV
também – mas houve Fedra (PRAZ, 1982, p. 01).
1.2 – AS FALSIFICAÇÕES E AS MARCAS DAS OBRAS
Com o desenvolvimento do mercado no âmbito artístico, surgiu o problema da
veracidade das obras de arte. Como detectar se a autoria de uma determinada obra é, de fato,
de quem a assinou? A problemática em relação às questões da reprodutibilidade técnica,
reprodutibilidade manual e autenticidade são temas recorrentes desde muito antes da
contemporaneidade que acompanham o processo histórico desde a Idade Média.
A questão da falsificação de uma obra de arte é também um tema constante no
romance de Tezza. Vejamos, pois, um diálogo entre o protagonista Tato e Ariadne, filha do
colecionador Richard Constantin:
— Lindo, não? Mas isso é só uma cópia. O original está em Roma. [...]
— Muito bonito. Nenhuma diferença, parece, entre o original e a cópia.
— Nenhuma. E mais uma vez – de novo a palma branca no meu braço – a literatura se
antecipou. O livro pode ser reproduzido aos milhões, mas o texto é sempre infalsificável. Já
nas artes plásticas... Veja – e ela pôs a mão de novo no corpo de Giacometti – é lindo, mas
é uma cópia, o que muda tudo. O meu pai não é um colecionador muito criterioso nesse
aspecto. O meu pai parece meio burro, às vezes (TEZZA, 1998, p. 211).
Segundo Walter Benjamin (1994, p. 166-167), ―em sua essência, a obra de arte sempre
foi reprodutível‖. O que os homens faziam sempre foi imitado por outros homens ―para a
difusão das obras‖, e por terceiros interessados tão-somente no lucro. Em contraponto, a
reprodução técnica das obras de arte trata-se de um processo novo que vem se desenvolvendo
ao longo da história. Foi através da xilogravura que o ―desenho tornou-se pela primeira vez
tecnicamente reprodutível‖, antes mesmo que a imprensa reproduzisse tecnicamente a palavra
escrita. A litografia, procedimento cujo escrito ou desenho é reproduzido por meio de uma
matriz de pedra ou de metal, ―permitiu às artes gráficas colocar no mercado suas produções
25
não somente em massa, como já acontecia antes, mas, também, sob a forma de criações
novas‖. Foi assim que as artes gráficas começaram a poder ilustrar a vida cotidiana e a situar-
se no mesmo nível da imprensa. A litografia ainda estava no seu início, quando foi
ultrapassada pela fotografia. Dessa forma, os olhos tornaram-se mais importantes que as
mãos, acelerando o processo de reprodução das imagens.
Quanto à autenticidade da obra de arte, Walter Benjamin (1994, p. 168) ressalta que,
mesmo diante da reprodução mais perfeita, um elemento encontra-se ausente: ―o aqui e agora
da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra‖. É justamente nessa
existência única que se desdobra a história da obra, que compreende as transformações ―que
ela sofreu, com a passagem do tempo, em sua estrutura física‖. A obra original só pode ser
investigada por análises químicas e/ou físicas; já a análise da reprodução deve partir do lugar
onde se encontra o original. É ―o aqui e agora do original‖ que define sua autenticidade e que
mantêm o objeto ―sempre igual e idêntico a si mesmo‖. A reprodução manual é geralmente
considerada uma falsificação, já a reprodução técnica não. A reprodução técnica, além de ter
maior autonomia que a reprodução manual, pode aproximar o indivíduo da obra.
A autenticidade da obra é, de acordo com Benjamin (ibidem, p. 168), a quintessência,
o mais puro e essencial, a origem, desde sua duração material até seu testemunho histórico;
com o desaparecimento deste, desaparece também o peso tradicional, a autoridade da
reprodução que, por ser técnica, substitui a existência única da obra por uma existência serial.
É importante ter em mente que o homem pós-moderno vive em um mundo globalizado
que está em permanente estado de mudança, tendo a mídia como a instituição que rege a
ordem e dita as regras. Uma marca característica desse mundo globalizado é a maneira ampla
e generalizada de a cultura ser difundida, o que, consequentemente, torna comum a
reprodução das obras de arte. O afã de trazer para mais perto as obras de arte, de torná-la
acessível à massa, ao público comum, encontrou, na reprodução técnica, essa acessibilidade:
26
Fazer as coisas ―ficarem mais próximas‖ é uma preocupação tão apaixonada das massas
modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua
reprodutibilidade. Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, de tão
perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua reprodução (BENJAMIN,
1994, p. 170).
Todo artista, seja ele pintor, escultor, escritor, compositor, está sujeito a falsificações
de impostores que se fazem passar por eles, copiando-lhes o estilo e replicando suas marcas.
Nos dias de hoje, as falsificações parecem ser tão sofisticadas, que fica cada vez mais fácil
enganar os olhos dos especialistas e, por conseguinte, cada vez mais difícil comprovar a
autenticidade da autoria. De acordo com Coli (2006, p. 84):
As falsificações possuem um grande fascínio. A habilidade em enganar, o poder do
ilusionismo, a perícia na imitação, fazem do falsário um personagem maroto, capaz de
prodígios desabituais, capaz de rir nas barbas dos especialistas e que merece, de certo
modo, nosso respeito cúmplice.
Ironicamente, a habilidade do falsificador torna-o também um artista, apesar de este
estar cometendo um ato ilícito. A cópia bem feita é capaz de enganar a perícia e de atestar a
autoria, atribuindo autenticidade ao simulacro. Aliás, convém ressaltar que reprodução difere
de falsificação. Considere-se que o termo ―falsificação‖ aqui utilizado abrange a questão do
ilícito, do ilegal, da cópia perfeita que pode confundir os peritos em relação à autenticidade da
obra. É o que atesta o caso da lendária história dos seis quadros de Vermeer, pintados pelo
holandês Van Meergeren:
No começo, não se quis acreditar. Peritos, críticos, especialistas, conservadores, todos eram
unânimes em afirmar a autenticidade dos quadros, dizendo que Van Meergeren, premido
pela situação, tentava uma saída menos comprometedora. Mas Van Meergeren, na prisão,
pede telas e tintas. E na prisão produz um Vermeer espantosamente ―autêntico‖ (idem,
ibidem, p. 85).
Van Meergeren pintou algumas telas, utilizando as características próprias do pintor
Jan Vermeer, para fazer se passar por este, prática esta que acabou por enganar os críticos,
que atestaram a autenticidade das obras. A falsificação só foi comprovada após o próprio
falsificador ter provado diante do júri o que fizera.
27
Em Breve espaço entre cor e sombra, novamente a questão da falsificação vem à tona.
Ariadne, em seu diálogo com Tato, faz uma alusão ao episódio do falso Vermeer:
— É por isso que a literatura é mais bonita, mais intensa, mais exigente. Na literatura, o
lixo é imediatamente reconhecível. Não há como confundir Sidney Sheldon com
Shakespeare. Já uma sopa Campbell‘s, com um catálogo competente e olhado de um certo
jeito, parece Botticelli. São mil exemplos: um falso Vermeer correu mundo até que o
próprio falsário se denunciou; uma estátua forjada de Modigliani, aliás horrorosa, enganou
os melhores críticos da Itália. Agora, experimente falsificar Cervantes! (TEZZA, 1998, p.
208).
No caso das obras de arte, tanto as falsificações, quanto os erros de atribuição de
autorias são casos de estudo no presente momento do mundo artístico. Preocupados com a
originalidade das obras, museus, críticos de arte e especialistas, com o auxílio de cientistas,
procuram saídas tecnológicas para desmascarar eventuais alterações nas obras de arte:
falsificação da obra, falsificação de autoria ou transformações decorrentes da ação do tempo.
São ações como essas – submeter as obras do acervo à análise dos especialistas – que
o museu de Londres (National Gallery) está fazendo, para checar sua autenticidade:
O departamento científico do museu, fundado em 1934 e atualmente na vanguarda na
análise dos materiais e técnicas da pintura, desenvolveu uma câmara de raios
infravermelhos com um sensor móvel, batizada de Osiris, que permite um estudo em
profundidade dos quadros na busca de detalhes que corroborem ou desmintam determinada
autoria ou datação. Os raios X, o infravermelhos, a microscopia eletrônica, a espectrometria
de massas e outras técnicas ―não invasoras‖ proporcionam aos especialistas informações
valiosíssimas sobre os pigmentos, lacas e demais materiais utilizados, assim como sobre as
práticas dos pintores e a transformação que as obras de arte sofrem inevitavelmente com a
passagem do tempo (RÁBAGO, 2010).2
Não fosse isso o bastante, há outro fator decisivo nos estudos desmistificadores das
falsificações que é a questão concernente ao tempo. Praz (1982, p. 33) afirma que não são
apenas os processos modernos com seus raios-X, ensaios químicos e lâmpadas de quartzo que
são capazes de detectar a idade dos materiais das obras de arte, apesar de serem estas grandes
2 RÁBAGO, Joaquín. Museu de Londres dedica exposição a falsificações e erros de atribuição. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u721697.shtml>. Acesso em 19 abr. 2010.
28
invenções. Há um fator muito mais simples e infalível que é a interpretação do autor, ou seja,
o ponto de vista do autor naquele momento específico. Como destaca Praz (1982, p. 32):
Toda estimativa estética representa o encontro de duas sensibilidades, a sensibilidade do
autor da obra e a do intérprete. Aquilo a que chamamos interpretação é, por outras palavras,
o resultado da filtragem da expressão de outrem pela nossa própria personalidade. [...].
Pelo fato de a interpretação de uma obra de arte consistir de dois elementos, o original
propiciado pelo artista do passado e o outro que lhe é acrescentado pelo intérprete ulterior,
tem-se de esperar até que este último elemento pertença também ao passado a fim de poder
vê-lo aflorar, como aconteceria com um palimpsesto ou um manuscrito escrito com tinta
simpática.
E, a seguir, o crítico acrescenta (ibidem, p. 34): ―Ora, o imitador de uma obra de arte
cristaliza a interpretação e o gosto da época que está trabalhando. Com o passar dos anos, o
segundo dos dois elementos a que fiz referência é salientado e exposto‖.
Quanto ao falsificador, Mario Praz (ibidem, p. 35) salienta que a sua técnica pode
atingir a perfeição na arte de imitar um determinado artista, entretanto:
[...] mesmo que consiga produzir um quadro que não seja simples montagem de
pormenores copiados desta ou daquela velha tela, mas uma recriação dentro daquilo que ele
considera o espírito do artista remoto – pois bem, mesmo supondo tudo isso, haverá sempre
um elemento a traí-lo: sua própria idéia de beleza, isto é, o seu gosto, o qual trará
fatalmente a marca da época do falsificador.
Podemos afirmar que um olhar rápido detecta traços do pintor. Um olhar atento,
contudo, detecta marcas identitárias da obra. Já um olhar sobre a biografia do pintor pode
revelar outros traços característicos, permitindo ao especialista descobrir outras marcas
implícitas no conjunto da obra. Portanto, cabe ao especialista um trabalho meticuloso no
exame das técnicas e do estilo do artista para conferir veracidade a um determinado produto
estético.
As marcas identitárias são traços peculiares que permeiam a obra de um determinado
artista. As manchas de cor de Claude Monet, o senso dramático de Giotto, os ―Méxicos‖ de
Diego Rivera, a delicadeza de Renoir, o onirismo de Dalí, o dourado de Klimt, a variedade
representativa de Goya, as cores de Khalo, as figuras rotundas de Botero, os pontos e linhas
29
de Miró, os ícones de Warhol, o fundo obscuro de Caravaggio são exemplos de como as
marcas revelam a identidade do artista. Dessa maneira, ao deparar-se com a pintura e a
estatuária de Modigliani, é quase impossível ao especialista não reconhecer a autoria dessas
criações.
No romance de Tezza (1998, p. 176), o próprio protagonista afirma ser impossível não
reconhecer uma obra de Modigliani: ―Estou acompanhando, mãe. Pela sua descrição, é
impossível confundir essa cabeça com qualquer outra. Estou vendo na minha frente a cabeça
de Modigliani‖. Por seus traços estilísticos, Tato identifica a cabeça esculpida, que está à sua
frente, como sendo uma obra de Modigliani. Não sendo, pois, um perito, Tato atesta
erroneamente que a cópia é verdadeira.
A amiga italiana de Tato, que era uma crítica de arte, também atestou que a cabeça de
Modigliani era verdadeira. Inconformada diante de seu equívoco, mesmo sabendo que,
anteriormente, o renomado crítico de arte, Carlo Argan, também cometera erro similar, ela
desabafa:
Como eu pude cair em tão ridícula armadilha? Isso depois do vexame nacional de 82,
quando até Argan, o nosso grande Argan (e ele é mesmo grande, merecidamente),
reconheceu aqueles arremedos do Fosso Reale de Livorno como legítimos Modigliani.
Bem, a minha cabeça era infinitamente melhor (se bem que eu devia desconfiar daqueles
ombros falsos, puramente de apoio) (idem, ibidem, p. 165).
Por sua vez, Isaura, mãe de Tato e marchand em Nova York, a quem, posteriormente,
a escultura acabou sendo destinada, também confirma que a tal cabeça era de autoria do
artista Modigliani. De forma detalhada, ressaltando as marcas do artista, Isaura descreve a
cabeça de pedra para que o filho a recupere:
Eu quero que você descubra onde ele guarda uma estátua de Modigliani. Uma cabeça de
pedra. Uma linda cabeça de 1913, com linhas geométricas típicas da estatuária negra, mas
afiliada como um bronze de Brancusi. É uma peça pequena, de meio metro de altura. Tem o
mesmo pescoço da pintura de Modigliani, longo, mas absolutamente vertical, sem aquela
típica inclinação de Madonna dos quadros dele. [...] A face, a face é como uma lança, e a
ponta está no queixo. Uma forma limpa e econômica. Um nariz comprido se divide, bem no
30
alto, em dois olhos cegos e simétricos. A testa praticamente cai para trás, onde os cabelos se
avolumam, de maneira um pouco tosca, talvez inacabados. [...] E para não restar dúvida,
tem um outro detalhe, também inconfundível – continuou minha mãe. — Na parte de trás
há alguns sinais cabalísticos, uma lua minguante e uma estrela de David. Basta correr o
dedo que você sente as marcas (TEZZA, 1998, p. 175).
Apesar das duas mulheres terem atestado veracidade, o marchand Constantin sabia
que a cabeça de Modigliani era falsa e adquiriu-a mesmo assim, como nos comprovam as
palavras de sua filha Ariadne:
— E a cabeça é uma réplica, então? Até que é bonitinha.
— Não é uma réplica. Não existe outra igual. É simplesmente falsa. O engraçado é que o
meu pai sabia que era falsa, quando trouxe de Nova York. Vai entender o velho! Você se dá
bem com o teu pai? (idem, ibidem, p. 253).
Ainda que o leitor dessa narrativa não saiba quem foi Modigliani, poderia alegar que a
cabeça, devido às características destacadas nessa descrição, pertence a esse pintor, pois
muitas de suas cabeças apresentam essas marcas especificadas por Isaura. Aliás, essa
discussão entre as personagens acerca das marcas identitárias de pintores e escritores é
recorrente no romance de Tezza, mas é a voz do marchand Richard Constantin, a quem,
posteriormente, a peça de Modigliani acaba sendo destinada, que sempre se impõe em relação
às outras personagens-críticos. Podemos depreender do fragmento abaixo transcrito, qual é o
seu critério de avaliação crítica:
— Não se surpreenda; as obras de arte também obedecem às leis do DNA. Um pedaço
contém potencialmente todo o resto. – Ele parou, segurando meu ombro e olhando para o
alto, numa sequência programada de gestos que eu começava a entender como a senha de
alguma revelação descoberta naquele momento: — Eu acho que isso acontece com todas as
artes. Na literatura, por exemplo. Kafka tinha o costume de não acabar os livros; não
precisava. A parte contém previamente o todo. Já Dostoiévski, esse não tinha a menos
ideia, pela manhã, do que escreveria à tarde – e no entanto, também nele o DNA é visível
em cada linha (idem, ibidem, p. 19).
Isto é, o DNA, ou melhor, os traços e as marcas, depois de identificadas, tornam-se
perceptíveis em toda a obra do artista. O estilo leva à identificação do pintor. Praz (1982, p.
25) salienta que, assim como acontece com a arte, quando a escrita cursiva é ensinada, ela
sofre influências características do estilo da época em vigor, mas a personalidade de quem a
31
escreve, caso seja pertinente, não deixa de transparecer. Artistas menores revelam, com mais
clareza, os elementos comuns a uma época, entretanto qualquer artista, por mais original que
seja, deixa de refletir seus traços. Assim como, na caligrafia, fala-se de ductus, ou mão, ou
estilo de escrever, na caligrafia e em toda forma de criação artística, fala-se em uma
expressão, algo espremido ou tirado do indivíduo.
Portanto, não importa a época e/ou as diferentes expressões artísticas, o estilo, as
marcas dos artistas são intrínsecas e vêm à tona em suas obras, mesmo que
inconscientemente.
1.3 – AMEDEO MODIGLIANI
Amedeo Clemente Modigliani nasceu em
1884 na Itália e morreu no ano de 1920 em Paris,
cidade onde viveu. Pintor, escultor, quarto filho
de uma família judaica e integrado à vida
intelectual parisiense, Modigliani conseguiu criar
um traço próprio e marcante para suas obras.
Tanto seus retratos e nus, quanto sua
própria história de vida, tornaram-se fonte de
inspiração para que vários escritores consagrados
criassem seus romances, peças de teatro e filmes. E Cristovão Tezza foi um que fez uso dessa
imagem mitológica que permeia o nome e as obras de Modigliani para construir seu romance
Breve espaço entre cor e sombra.
Ilustração 3:
Foto do pintor Amedeo Modigliani
32
Tanto a pintura, como as esculturas de Modigliani possuem traços em comum. Uma
das marcas mais características diz respeito ao pescoço alongado das representações da figura
humana. As esculturas parecem ser rostos retirados de quadros, desenhados e redesenhados
em pedra. Aliás, as esculturas de Modigliani foram extremamente úteis para sua pintura, pois
foi por meio delas que o pintor italiano alcançou as formas, a linearidade e a abstração que
constituem sua linguagem pictórica. Modigliani, à parte as cabeças de pedra, também se
interessava por outro grupo de obras. Ele chegou a recorrer à Antiguidade, desenhando
cariátides3, para desenvolver seu estilo, que se configura por formas arredondadas e linhas
fluidas.
Já as esculturas possuem duas fortes
influências, uma da arte africana e cambojana,
principalmente no desenho dos olhos, e a outra das
esculturas de Brancusi. Segundo afirma Krystof
(2007, p. 28):
É, no entanto, surpreendente que logo desde o
início este principiante tenha sido capaz de conferir
uma unidade estilística às suas peças escultóricas.
Cada cabeça pode ser imediatamente identificada
como tendo sido cinzelada por Modigliani.
A semelhança das obras futuras de
Modigliani com as do escultor romeno Constantin
Brancusi ocorre no momento em que o protagonista,
Tato, põe as mãos na escultura e afirma:
3 Suporte arquitetônico, originário da Grécia antiga, que se apresentava, segundo Houaiss (2001), quase sempre,
a forma de uma estátua feminina, cuja função era sustentar um entablamento.
Ilustração 4:
“Cariátide” – Modigliani, Amedeo (1913)
Lápis e aquarela
33,5x27,3cm
33
Apalpo a testa curta que nasce de olhos orientais
levemente riscados na pedra, testa onde há
ranhuras de mechas que numa súbita queda para
trás formam um volume bruto e áspero de
cabelos, mas também acolhedor às palmas que
apalpam com a delicadeza dos cegos. E dali
minhas mãos descem pelo longo pescoço de uma
simplicidade completa, uma perfeita vertical; a
escultura, simétrica, não tem ainda aquela ligeira
inclinação fora de prumo dos pássaros de
Brancusi, que serão uma das marcas da pintura de
Modigliani. (TEZZA, 1998, p. 252).
Outros traços marcantes da obra
de Modigliani dizem respeito ao fato de
suas figuras longilíneas apresentarem
pescoços bastante longos e rostos com
olhos, bocas e narizes bem definidos,
mas sem detalhes minuciosos. Há também a presença de linhas pretas, bem demarcadas, com
um sombreado escuro percorrendo o entorno dos corpos. Essas são as marcas de Amedeo
Modigliani e que ainda podem ser ilustradas pelo discurso de Tato, quando ele se refere ao
perfil de uma das personagens (―a vampira‖): ―Ela espichou o pescoço – de Modigliani,
pensei, admirando aquele desenho com o olho que me restava [...]‖ (idem, ibidem, p. 127).
Quanto à temática das telas de Modigliani, Floriano Martins (2000) destaca que o
pintor ―tinha uma exacerbada preocupação com o humano, e buscava sua expressão
justamente onde melhor poderia encontrá-la: no olhar, nos rostos, nos retratos [...]‖, para, em
seguida, acrescentar: ―Não pintava nus, e sim pessoas despidas de suas máscaras sociais. O nu
propiciava uma revelação do corpo, tão ocultado quanto o sentimento. Modigliani captava
com exímia facilidade a expressão ulterior de cada modelo seu, tendo retratado alguns várias
vezes‖4.
4 MARTINS, Floriano. Amedeo Modigliani: dolorosos direitos da beleza. 2000. Disponível em:
<www.revista.agulha.nom.br/ag2modigliani.htm>. Acesso em: 26 abr. 2010.
Ilustração 5:
“Cabeça de Pedra” – Modigliani, Amedeo (1911-12)
Calcário 71,1x16,5x23,5cm
Philadelphia Museum of Art (Filadélfia, Estados Unidos)
34
Quanto à sua paleta, predominam, sobretudo, as cores marrom, amarelo, vermelho, laranja e
azul. Krystof (2007, p. 69), por sua vez, destaca outros aspectos da pintura de Modigliani:
A simplificação e a abstração são os principais
instrumentos criativos de Modigliani. À parte alguns
breves apontamentos sobre o espaço que rodeia o
modelo – o esboço de um sofá, de uma almofada ou
de um lençol de linho branco – não há nada que
desvie o olhar dos corpos jovens e róseos. A
economia de utilização da cor (normalmente, o
característico tom adamascado da carne do nu
contrasta apenas com um ou dois outros tons) ilustra
a intensa concentração nas exigências formais. As
formas estilizadas do corpo feminino dispõem, assim,
de todo o espaço de que necessitam para a sua plena
revelação. As figuras femininas expõem-se de tal
modo ao espectador, chegando por vezes a assumir
uma postura tal, que se tem a sensação de que se
projectam para fora da tela. Por vezes, os olhos muito
abertos parecem olhá-lo frontalmente, e outras, têm
os olhos fechados como se estivessem adormecidas.
Modigliani não é o único artista a ser retratado em Breve espaço entre cor e sombra;
outros cinquenta e oito nomes de pintores e/ou escultores, tais como Paul Cézanne, Gustave
Doré, Claude Monet, Rafael Sanzio, Sol Lewitt, Pierre-Auguste Renoir, Constantin Brancusi
são mencionados ao longo da narrativa.
Por meio do discurso das personagens, o leitor depara-se, muitas vezes, não só com os
nomes de pintores consagrados, mas, também, com aspectos relativos ao processo criativo,
estilos e temáticas.
Richard Constantin, em diferentes momentos da narrativa, aparece como um crítico
mordaz. Para ele, o artista ―não tem escrúpulos‖, e sim ―caráter‖, que é aquilo que transparece
naquilo que ele realiza ou cria. Os artistas não têm amigos: ―eles são um impulso brutalmente
narcisista que, para nascer, pisa no que está ao seu lado‖ (TEZZA, 1998, p. 22). Para
Constantin, ―A vaidade é a face mais visível da arte‖ e também mais visível a alguns artistas,
que, graças a seu talento ou ao destino, foram reconhecidos:
Ilustração 6:
“Nu reclinado” – Modigliani, Amedeo (1917)
Óleo sobre tela
60x92cm
Coleção de Gianni Mattili (Milão, Itália)
35
Picasso, com alguma pequena variação de azares do destino, restaria como um dos mais
ridículos e hilariantes ―modernos‖, mais um personagem do imenso anedotário cubista, ao
lado de Juan Gris e Torres Campalans. Van Gogh, esse errado clássico, seria unicamente
personagem da ciência médica do fim do século XIX, incluído e tipificado como um
exemplo cristalino de demências. Sem talento, a história dos grandes pintores seria uma
sucessão de puxa-sacos, calhordas, ladrões, estupradores, loucos varridos, vagabundos,
presunçosos, monstros de egoísmo e covardia, lambendo a sola, de quatro, do primeiro rei,
príncipe ou papa que aparecesse pela frente. Não muito diferente do resto das pessoas, é
verdade – mas é que eles, os artistas, em algum momento de suas vidas entraram na fila da
eternidade, às vezes forçando espaço com o ombro, a cotoveladas. O preço é alto, para
quem tem a dimensão da grandeza; para quem não tem, bem, daí é tudo pequeno mesmo e
nada faz diferença (TEZZA, 1998, p. 26).
Em outro momento, Constantin revela a Tato que adquiriu de seu mestre Aníbal uma
tela de sua autoria. E embora o crítico elogie a concepção do quadro, imediatamente ressalta
que ―a sua realização é falha‖, destacando alguns aspectos:
O menino voando é um pasticho; depois de Chagall, ninguém mais consegue voar com
naturalidade. – Aqui ele de novo olhou para os céus, a senha de alguma descoberta. –
Tiepolo! Tiepolo também sabia voar. Mas naquele tempo era mais fácil, eles acreditavam
em anjos. Voltando ao teu quadro: cada criança ali tem uma marca registrada, do Botero
(aquela menininha gordinha) ao Picasso (o garoto de duas cabeças); mas o que poderia ser
uma citação, digamos, elegante, se transformou numa colagem preguiçosa, numa
brincadeira pretensiosa. O quadro perde o rumo; você não teve técnica para sustentar o
projeto (idem, ibidem, p. 29).
A crítica inesperada de Constantin surpreende Tato que se sente fascinado pelas
palavras do crítico. O único pensamento que lhe ocorre é que Constantin iria se desmentir em
seu próximo quadro.
Ainda sob os efeitos das palavras proferidas pelo marchand, Tato, ao chegar à sua
casa, recebe a notícia de que ela fora arrombada e, mesmo diante dessa invasão surpresa, põe-
se diante de seus bicos de pena, que ―forram a parede‖, e tece uma reflexão íntima sobre quem
ele é e como ele enxerga a si mesmo enquanto pintor:
Sou fundamentalmente um desenhista. O mundo para mim é um emaranhado infinito de
linhas, são elas que definem os objetos, os seres as ideias, mais do que qualquer outra coisa.
Mais do que a cor, por exemplo. Mais do que o volume. Há uma matemática no desenho; o
traço é a realização mais completa da abstração, não da abstração pura, que não existe (para
que ela existisse – e eu começava a contestar meu mestre antes mesmo de me tornar seu
discípulo – teríamos de imaginar um ser sem memória, sem passado, sem futuro e sem
paredes, um sopro transparente pousando nada sobre coisa nenhuma; é muita ausência
ocupando a mesma falta de espaço), mas das ideias que fazemos das coisas, porque,
simplificando um pouco (ou abstraindo), as coisas são a ideia que fazemos delas – mas, a
essa altura, sinto o desespero e o desejo escapista de desenhar (pintar, que, para mim, é o
36
mais complexo desenho do mundo). [...] há uma falha no meu caráter que, me deixando
sempre sozinho, até à custa da morte, como hoje, me impede o prazer da solidão (exceto no
momento exato da pintura, daí meu amor pelos quadros intermináveis, que se arrastam
meses a fio, que nunca estão prontos, e que mesmo depois de prontos, como meu único
presente ao Aníbal, continuam se transformando). E minha frieza, que se confunde às vezes
com bonomia, parece que mais se enrijece ao longo do tempo, e no entanto talvez eu seja
uma pessoa que... (TEZZA, 1998, p. 41).
Nesse extrato, é possível perceber dois aspectos interessantes sobre o protagonista. O
primeiro é que, após a perda do seu ex-mentor, ele transpõe imediatamente em Constantin a
figura de um novo mestre, pois Tato, ao longo do romance, não somente enfatiza a
importância de ter um mestre em sua vida, como também destaca o fato de não conseguir
viver sem um mestre: ―jamais consegui viver sem um mestre, sem alguém que me aponte um
caminho e me diga quem sou. Alguém que me desenhe um corredor para eu atravessar, ou um
muro para eu pular‖ (idem, ibidem, p.67).
Após ser nomeado mestre, Constantin reafirma a Tato que este é ―fundamentalmente
um desenhista‖:
— Belo traço. Você é descendente direto dos pintores desenhistas, por assim dizer; aqueles
para quem a linha é a fronteira da cor, de Boticcelli a Modigliani, por exemplo. É a minha
especial predileção, embora na minha posição eu nunca deva falar nesses termos... – e ele
sorriu; havia sempre alguma coisa simpática na pose de Mr. Richard, como quem brinca
com a própria importância (idem, ibidem, p. 154).
O segundo aspecto é o motivo pelo qual, talvez, Tato não consiga terminar suas telas.
Na verdade, seu sentimento de posse é tão exacerbado por elas, que ele prefere não acabá-las,
não precisando, assim, se desfazer delas. Percebe-se, neste fragmento, as consequências
oriundas de seu ―amor pelos quadros‖: ―Eu pagaria dez vezes isso para recuperar meu quadro.
Acho que nunca vou ser um grande artista. Detesto me desfazer dos meus trabalhos (idem,
ibidem, p. 27).
Através desses extratos retirados do romance Breve espaço entre cor e sombra, bem
como por meio de textos teóricos, pôde-se compreender os caminhos percorridos pela arte
desde seu princípio, ou melhor, foi possível compreender sua história de cerca de 25 mil anos.
37
Esse percurso, por seu turno, proporcionou que se acompanhassem as mudanças no mundo da
arte ocasionadas pelo tempo, pelo desenvolvimento histórico e social da humanidade.
A industrialização e a modernidade trouxeram a fotografia, que mudou os conceitos
previamente delineados pela arte, fazendo com que a chegada do século XX se instaurasse
como o período das quebras de formas e regras solidificadas.
Observamos a sintonia, ou a falta desta, entre o pintor e o mercado de arte,
acompanhamos também questões que preocupam os especialistas em artes até o presente
momento, como, por exemplo, o caso das falsificações das obras de arte. É de suma
importância conhecer e identificar as marcas dos artistas, para facilitar, ou melhor, para dar
mais propriedade a teses levantadas quando se tratam de falsificações.
Uma vez que o romance em estudo gira em torno de uma cabeça supostamente
esculpida por Amedeo Modigliani, fez-se preciso conhecê-lo um pouco mais a fundo. Dito
que sua escultura e sua pintura apresentam traços bastante característicos, a identificação de
suas obras é, portanto, imediata.
Além das obras do italiano Modigliani serem mencionadas no romance, outros nomes
de pintores e /ou escultores estão presentes na trama narrativa, possibilitando-nos apreender o
diálogo contínuo entre a pintura e o texto literário. O paralelo entre a literatura e as questões
concernentes às artes plásticas foi abordado nos diálogos e nas reflexões que compõem Breve
espaço entre cor e sombra, de Tezza.
Agora, faz-se necessário, no próximo capítulo, detalhar aspectos mais estruturais do
autor e da narrativa, levando-se sempre em consideração a comparação entre a linguagem
verbal e a linguagem não verbal que permeiam a obra.
38
CAPÍTULO 2 – CRISTOVÃO TEZZA E SUA OBRA:
BREVE ESPAÇO ENTRE COR E SOMBRA
“Você quer fazer pintura? Antes de tudo, terá de cortar sua
língua, porque sua decisão lhe tira o direito
de se exprimir senão com os seus pincéis”
(Henri Matisse)
Cristovão Tezza nasceu em Lages, Santa Catarina, e vive atualmente em Curitiba.
Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo e professor universitário da
Universidade Federal do Paraná, seu nome é referência na literatura brasileira contemporânea.
Tezza possui um número respeitável de obras publicadas, tais como romances, contos,
crônicas e textos críticos. Entre suas obras ficcionais de destaque estão: Uma noite em
Curitiba (1995), A suavidade do vento (2003), O fotógrafo (2004), O filho eterno (2007),
Trapo (2007), O fantasma da infância (2007) e Breve espaço entre cor e sombra. Este último
romance, que compõe o corpus deste trabalho, corresponde a seu 11° livro, escrito em 1998,
publicado pela editora Rocco e vencedor do Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro na categoria romance.
Breve espaço entre cor e sombra retoma elementos que se tornaram marcas do autor,
tais como a solidão e a timidez das personagens principais, bem como a predileção por
narrativas urbanas, ambientadas, mais precisamente, em Curitiba. Aliás, as referências a essa
cidade – ruas, praças, parques e pontos turísticos – permeiam o romance do início ao fim:
[...] você só não vai ser o maior pintor do mundo se você não quiser. Ahahaha! Bem, pelo
menos do Brasil. Ou do Paraná. Quem sabe de Curitiba. Isso: o maior pintor de Curitiba.
Na pior das hipóteses você pode ser o maior pintor do seu bairro. Ou da rua Mateus Leme,
que é comprida. Você pode ser o maior pintor do pedaço (TEZZA, 1998, p. 136).
39
Segundo Tezza (apud XAVIER, s/d)5, utilizar Curitiba como espaço geográfico e
nomear suas ruas e lugares, transmite segurança, naturalidade e realidade. O leitor pode não
conhecer a Rua Mateus Leme, mas sente que o autor está falando de uma rua concreta.
— Eu levo você em casa. Onde você mora?
— Mateus Leme, perto do Shopping. Mas eu posso... (TEZZA, 1998, p. 28).
Quanto à solidão e à timidez das personagens, pode-se afirmar que Curitiba instiga-
lhes a solidão, o que é visível ao longo de sua obra: assim acontece com o poeta Trapo, do
romance homônimo, com o professor e escritor Matôzo de A suavidade do vento, com o
professor Rennon de Uma noite em Curitiba e com o pintor Eduardo Simmone em Breve
espaço entre cor e sombra (SÁ, 1998)6. Tezza retrata seus protagonistas com perfil
introspectivo, pois acredita que o curitibano, ou o fato de viver em Curitiba, incita a solidão:
Curitiba é uma cidade que não tem carnaval, o que acho ótimo (risos)! Aí já diferencia
bastante de todo o resto do Brasil. É uma cidade extremamente organizada. As pessoas têm
espírito de organização muito germânico. É também uma cidade bastante solitária. As
pessoas são mais frias e as relações são muito mais profundas. Aqui se tem poucos amigos,
mas que são para a vida inteira. É um tipo diferente de cidade e que literariamente acho
ótimo. Como não se tem nada pra fazer, vou escrever meus livros. É uma cidade que chama
pra dentro de casa (SANTOS, 2003)7.
A cidade de Curitiba não é o único fator que aflora os sentimentos de solidão e timidez
retratados pelas personagens de Tezza. O autor, por se tratar de um escritor contemporâneo,
evidencia marcas do seu tempo, da contemporaneidade, em suas obras. Ambos os sentimentos
ditos acima são inerentes ao sujeito pós-moderno: a solidão, sentimento atemporal na história
da humanidade, e a timidez podem ser confundidas com a questão do isolamento social. Ou
seja, o homem contemporâneo, em sua maioria, vive em grandes centros urbanos, diante de
5 XAVIER, Valêncio. A vampira de Curitiba. s/d. Disponível em:
<http://www.cristovaotezza.com.br/entrevistas/p_980405.htm>. Acesso em: 17 out. 2009. 6 SÁ, Sérgio de. Breve espaço entre sombra e fama. 1998. Disponível em:
<http://www.cristovaotezza.com.br/critica/ficcao/f_breve/p_98_jun.htm>. Acesso em: 17 out. 2009. 7 SANTOS, Márcio Renato dos. Curitiba está inteira no que escrevo. 2003. Disponível em:
<http://www.cristovaotezza.com.br/entrevistas/p_030903.htm>. Acesso em: 17 out. 2009.
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um sistema de capitalismo exacerbado, o que o faz se isolar. Desse modo, mesmo diante de
milhões de pessoas, o sujeito tende a ficar só, a sentir-se só.
[...] O grande desafio é viver sozinho; viver com os outros não é desafio nenhum. O difícil
é viver sozinho. A maior liberdade possível é a capacidade de solidão. Eu sempre quis viver
sozinho. Eu acho que vivo sozinho (TEZZA, 1998, p. 65).
Ela está certa: não tenho lógica. Talvez eu devesse explicar o que eu nem entendo: é que
sou tímido, Dora. E um tímido que quer aparecer. Esses são os piores, os tímidos que usam
gravata-borboleta. [...] De qualquer forma, não daríamos certo. Nem minha mãe aguentou
viver comigo (idem, ibidem, p. 75).
Evitar vínculos, não sentir a necessidade de criar laços talvez seja uma desculpa ou um
modo de proteção, uma barreira que o protagonista criou para isolar-se do mundo para
impedir que venha sofrer eventuais decepções. Quiçá pelo seu histórico familiar e pela
conturbada relação com seu ex-mestre, para Tato é mais fácil viver sozinho do que arriscar os
pormenores de uma vida compartilhada:
A Débora era loura ou morena? Esqueci completamente, de acordo com a regra: jamais
repetir uma mulher dos classificados. Não crie vínculos. Aliás, outro dos conselhos da
minha mãe que segui à risca: Não crie vínculos profundos com ninguém, meu filho; com
ninguém. Não vale a pena. Nunca vale a pena. Você não precisa de ninguém (idem,
ibidem, p. 172).
O ponto de partida do autor, para elaborar Breve espaço entre cor e sombra, foi criar
uma história que tinha como foco, uma escultura, cuja autoria fora atribuída a Modigliani.
Tezza decidiu pesquisar mais sobre o pintor italiano. Viajou, então, para Livorno, na Itália,
cidade natal de Modigliani, descobrindo, afinal, que o que tinha imaginado acontecera de fato.
Em 1984, enquanto a prefeitura local dragava um fosso (Fosso Reale) em busca de cabeças de
pedra que tivessem sido jogadas por Modigliani, anos antes, alguns estudantes souberam
dessa busca lendária e esculpiram algumas cabeças, jogando-as ao fosso. Em entrevista para a
Folha do Paraná, Tezza (apud LEITE, 1998)8 afirma:
8 LEITE, Zeca Corrêa. No espaço estreito das relações humanas. 1998. Disponível em:
<http://www.cristovaotezza.com.br/critica/ficcao/f_breve/p_98_abr_folhapr.htm>. Acesso em: 17 out. 2009.
41
Tem uma cabeça de pedra de Modigliani que atravessa o livro todo. Ela sai de Roma, vai
para Nova York e vem parar em Curitiba. Há muitos anos li numa biografia de Modigliani
que quando jovem teria jogado no Fosso Reale, em Livorno, na Itália, umas estátuas de
pedra que ele não teria gostado. E foi para Paris. Isso ficou como uma espécie de lenda nas
artes plásticas. Por muitos anos alimentei a ideia de fazer uma dessas cabeças aparecer em
Curitiba. Aí, no começo do ano passado, fui à Itália especificamente para pesquisar a
matéria do livro e descobri coisas curiosíssimas. Por exemplo, Modigliani nunca jogou
cabeças de pedra no fosso. Foram estudantes que jogaram as peças falsas. Na Itália
transformou-se em comoção nacional a discussão sobre aquelas cabeças, porque grandes
críticos de arte disseram que eram verdadeiras.
As pesquisas sobre arte foram além da obra de Modigliani. Desde jovem, Tezza é
apaixonado por artes plásticas. No ano de 1997, quando começou a esboçar o romance Breve
espaço entre cor e sombra, intensificou suas leituras sobre pintura e fez, inclusive, um curso
teórico e prático sobre esse assunto. Na sua juventude, também se dedicou ao estudo da
pintura por influência de seu mestre, o diretor de teatro Wilson Rio Apa:
Tezza tornou-se um copista esforçado – e até hoje tem, na sala de seu apartamento, uma
cópia de Figura Decorativa sobre Fundo Ornamental, do francês Henri Matisse, obra
guardada no Museu de Arte Moderna de Paris, onde Tezza a viu pela primeira vez, em
1975. Ele copiou a tela de Matisse, quando tinha apenas 18 anos de idade, e deu-a de
presente à mãe [...]. Jamais teve, porém, a veleidade de torna-se pintor. A experiência como
copista, contudo, deixou marcas interessantes em sua literatura (CASTELLO, 1998)9.
Os estudos sobre pintura, especialmente a experiência como copista, profissão que
requer habilidade para reproduzir obras de outros artistas, sejam elas livros, desenhos,
pinturas e/ou esculturas, deixaram marcas na literatura de Tezza, conforme o próprio
romancista aponta: ―Meus livros são muito imagísticos. Eu escrevo o que vejo, e vejo as cenas
quando as escrevo‖ (apud idem, ibidem)10
.
A influência do copismo e a seleção cuidadosa das palavras tornam o texto de Tezza
bastante ilustrativo. O uso frequente das cores e formas, as descrições minuciosas e o
comparativo feito com as escolas e obras de arte elucidam ainda mais as cenas descritas. É
9 CASTELLO, José. Tezza discute utilidade da arte em romance denso. 1998. Disponível em:
<http://www.cristovaotezza.com.br/critica/ficcao/f_breve/p_98_ago.htm>. Acesso em: 17 out. 2009. 10
Idem, ibidem. Disponível em: <http://www.cristovaotezza.com.br/critica/ficcao/f_breve/p_98_ago.htm>.
Acesso em: 17 out. 2009.
42
possível visualizar, com exatidão, os detalhes que foram observados ou imaginados pelo
protagonista:
Fixei meus olhos agora secos – e já distantes do universo soturno daquela manhã, já
impacientes, querendo fugir de uma vez por todas, querendo recomeçar – fixei na menina
que havia lançado a flor ao meu amigo Marsotti. Toda de preto – uma saia longa que quase
chegava ao dorso dos pés que, lado a lado, surgiam de um par de sapatos simples também
pretos – percebi que ela fixava os olhos em mim, aquele tipo de investigação de alguém que
está desesperadamente tentando se lembrar quem você é; ela está prestes a cumprimentar
uma pessoa que já viu muitas vezes, e, sem nenhuma explicação, o nome escapa,
fulminante como um gato amarelo sumindo da vista para nunca mais. Esse era o olhar dela,
investigante, talvez surpreso, de uma intensidade tão curiosa que ela nem se dava conta de
que fitar alguém assim não convém, ainda mais quando... – mas ela se deu conta, súbito
acordada, e voltou os olhos para o caixão num golpe envergonhado de cabeça, ao mesmo
tempo em que o rubor – essa cor antiga – cobria-lhe as duas maçãs do rosto com a
prontidão de uma sensitiva. Ela cruzou as mãos na cintura, sem mover os pés, e inclinou
levemente a cabeça, como uma figura angelical da Renascença (TEZZA, 1998, p. 11).
Caso o leitor, por ventura, seja conhecedor das artes plásticas, é possível que ele
associe alguns trechos da narrativa de Tezza com obras de arte preexistentes. O fragmento
acima, por exemplo, remete-nos a uma tela renascentista. O movimento e a leveza corpórea
que o protagonista descreve, nas duas últimas linhas, são semelhantes aos movimentos da
imagem captada por Botticelli:
Ilustração 7
“A Primavera” – Botticelli, Sandro (1478) Têmpera sobre madeira
205x315cm
Galeria Uffizi (Florença, Itália)
Segundo Aguinaldo Gonçalves (1989, p. 177), os estudos comparativos entre a
Literatura e as Artes Plásticas são inúmeros e deveras complexos.
43
Ao longo da História da Arte, sempre existiram trabalhos de pintores ou de poetas que se
realizaram com ―inspiração‖ ou a partir da captação de temas ou de motivos formais
extraídos da arte vizinha e produzindo efeitos expressivos, muitas vezes, de alto valor
artístico. O fenômeno que não é menos merecedor do interesse crítico da Estética
Comparada reside nos casos das ―ilustrações‖ das mais variadas naturezas, tanto naquele
[...] em que um artista plástico ilustra o texto literário, quanto [...] em que o escritor é
também pintor e compõe sua obra a partir da associação dos dois códigos.
A questão das analogias entre pintura e poesia tem origem na Antiguidade, sendo
retomada no Renascimento; ―daí toma feições variadas, quer sob o ponto de vista criador,
quer sob o ponto de vista teórico, ao longo de toda a história moderna da literatura e da arte‖
(GONÇALVES, 1989, p. 177). Ao longo dos séculos XVI, XVII, XVIII, as abordagens
comparativas entre literatura e artes plásticas foram extremamente polêmicas, porém ―o
assunto manteve-se em aparente trégua durante o século XIX e foi retomado no século XX,
com intensidade espantosa‖ (idem, ibidem, p. 177).
Entretanto, constata-se que todos os estudos que objetivaram estabelecer as relações
entre as duas artes – seja indicando o grau de plasticidade existente no poema, seja indicando
a existência de elementos poéticos na pintura – ocorreram dentro das variadas interpretações
da Poética de Aristóteles, dos conceitos de mímesis que nortearam o pensamento clássico.
Duas outras ideias atuaram como forças impulsionadoras: uma da Antiguidade Clássica, que
consiste na máxima de Simônides: ―a pintura é poesia muda, e a poesia, pintura que fala‖. A
outra, extraída da Arte poética de Horácio, acarretou em forçosas aproximações entre a poesia
e as artes visuais. Interpretada da maneira que melhor convinha aos críticos, ut pictura poesis
tornou-se um emblema e conduziu diversas polêmicas naquele período (idem, ibidem, p. 179).
Aguinaldo Gonçalves (1994, p. 27), em seu Laokoon Revisitado, acrescenta:
Ut pictura poesis, interpretada da maneira que melhor convinha às ideias dos críticos,
tornou-se um emblema e conduziu várias polêmicas naquele período. A teoria contida nesta
frase operou em direções complementares entre as artes da pintura e poesia, no sentido de
uma influência literária sobre a pintura e uma apreciação da pintura em termos literários.
Como o dominante desse período era o processo imitativo, acreditava-se que os modelos
para as duas artes deveriam ser encontrados nos clássicos, e assim sugeriam os temas
históricos e heroicos que envolviam a natureza humana, ideal ou heroica. A apreciação das
obras se baseava nesses elementos temáticos, além do rigor formal de imitação que deveria
44
respeitar, o mais possível, as várias técnicas utilizadas pela arte clássica. Do final do século
XVII até a realização da Crítica do Juízo, de Kant, isto é, num período de cem anos,
desencadeou-se um verdadeiro movimento de teorização sobre o processo de criação e
sobre a natureza da obra de arte.
Como podemos depreender, a aproximação entre as artes visuais e verbais não deve
limitar-se ao tema; é preciso buscar as constituições básicas, pois cada uma delas, literatura e
pintura, possui estruturas internas distintas, embora, muitas vezes os elementos compositivos
de uma arte possam corresponder aos de uma outra arte. Como afirma Étienne Souriau (1983)
em A correspondência das artes: elementos de estética comparada, o parentesco entre as
artes é evidente, pois os artistas, independentemente do modo de expressão, são levitas de um
mesmo templo.
Há vários momentos onde é possível correlacionar a descrição imagística do
protagonista com imagens visuais ou quadros. Podemos tomar, como exemplo, o momento do
enterro de Aníbal, momento este em que Tato conhece o marchand Richard Constantin,
descrevendo-o mentalmente.
O homem da voz – da minha altura, de uma elegância convencional coberta por uma bela
capa preta meio que solta sobre os ombros, faltando-lhe talvez apenas a cartola e a
bengala para habitar o parque de Manet – fez um ―não‖ agastado de cabeça, não perca
tempo com bobagens, eu estou falando de pintura, da essência da arte, e enquanto a mão
esquerda ajeitava a capa sobre o ombro, a direita coçava a barba grisalha, curta e bem
cuidada (TEZZA, 1998, p. 12, grifo nosso).
Utilizando o próprio Manet, mencionado no extrato, podemos recorrer a uma de suas
telas para ilustrar, com forma e cores, as palavras de Tato. Para descrever Constantin, o
protagonista compara-o a figuras masculinas, ressaltando o vestuário e o gestual. Tal
descrição poderia nos remeter à tela ―O almoço na relva‖, de Manet.
45
Ilustração 8
“O almoço na relva” – Manet, Edouard (1863)
Óleo sobre tela
208x264cm
Museu de Orsay (Paris, França)
Como assinalamos anteriormente, são citados, ao longo da narrativa, inúmeros artistas
plásticos, com objetivos diversos: conceituação de arte; comparação entre estilos semelhantes
ou dessemelhantes; procedimentos técnicos ou cotação das obras no mercado. Uma cena que
merece destaque se refere a quando o narrador Tato relembra as palavras de seu antigo
mestre, Aníbal Marsotti:
É impossível alguém pintar assim. E ainda usa avental, cuja frente de fundo branco passa a
ser, depois de algum tempo, um projeto-obra de Pollock. Uma pena que você lave o
avental. Você devia guardar, um por dia, para uma exposição bombástica. E o Biba,
cheirando pó no vidro desta mesma mesa do ateliê, passava a criar títulos para a minha
exposição. Intervenções proletárias: o avental e o girassol. De Giotto a Pollock: uma
leitura pragmática. Sangue, suor e tinta. [...] Aventuras, aventais, aventosas de Tato
Simmone: a íris do dia-a-dia. Nas mãos de Constantin [...] você assombrava a bienal com
[...] seus aventais (TEZZA, 1998, p. 66-67).
A menção ao pintor expressionista abstrato Jackson Pollock permite-nos apreender
que os respingos de tinta no avental branco de Tato tinham, para o antigo mestre, um maior
valor comercial nas mãos de um bom marchand do que as telas sempre inacabadas do seu
discípulo.
46
Ilustração 9:
Foto do pintor Jackson Pollock
2.1 – NARRATIVAS SOBRE TELAS
Como assinalamos anteriormente, a trama narrativa é intercalada pelas narrativas
sobre telas, as quais se configuram como exposições de episódios imaginários nos quais as
telas de Tato Simmone foram inspiradas.
Segundo Tezza, em entrevista para Ferraz (1998)11
: ―O único modo de eu apresentar
os quadros de Tato ao leitor, sem usar a fotografia ou a descrição pura e simples, seria
transformá-los em sintaxe pelos sinais de pontuação, porque na verdade só há frases nominais,
sempre as mesmas duas ou três‖.
Os quadros são, por ordem de aparecimento na obra, os seguintes: Crianças (TEZZA,
1998, p. 31-34); Immobilis Sapientia (p. 93-98); Estudo sobre Mondrian (p. 128-129) e,
finalmente, Réquiem (p. 178-179):
Breve espaço entre cor e sombra abre ainda espaço para a inserção de outras linguagens,
que se manifestam em quatro trechos intitulados como os quadros de Tato Simmone. O
primeiro deles — ―Crianças‖ — surge logo após a verborragia teórica de Constantin e bem
pode ser uma resposta pelo avesso. Porém, mais correto talvez seja atribuir-lhe a função de
11
FERRAZ, Heitor. Vidas paralelas. 1998. Disponível em:
<http://www.cristovaotezza.com.br/critica/ficcao/f_breve/p_98_abr.htm>. Acesso em: 17 out. 2009.
47
presentifica [sic] a obra pictórica de Tato, ao mesmo tempo em que tematiza a
impossibilidade de transpor a contento uma linguagem artística para outra (BERNARDI,
1998)12
.
Os ―quadros narrativos‖ em momento algum são mostrados ao leitor que, por seu
turno, conhece as obras de Tato mediante as diferentes técnicas narrativas utilizadas pelo
próprio pintor, Tato Simmone. São relatos oníricos, não havendo um narrador onisciente, nem
um observador olhando de fora, descrevendo a tela; o que há é o quadro, em si, contando sua
história. A figura desenhada/retratada na tela ganha vida e descreve não apenas o que está ao
seu redor, mas, também, a história, as ações, as personagens, a movimentação que permeia a
tela.
2.1.1 – CRIANÇAS
Crianças trata-se de um óleo sobre tela que mede 1,74 m por 0,81 m. Essa enorme tela
fora presenteada a Aníbal Marsotti por Tato, mas, conforme indicado, podemos apreender, no
subtítulo da página 31 do romance, que hoje ela pertence ao acervo de Richard Constantin.
Tato, que, até então, não desconfiara que o amigo pudesse cometer tamanha infidelidade,
descobre que o ex-mestre não só vendera o quadro a Constantin, como tirara a sua dedicatória.
— Comprei do Aníbal.
Senti o frio da traição do amigo morto, que continuava a me agredir. Talvez
Constantin estivesse mentindo. Talvez ele me confundisse com alguém, o que seria uma
graça – nenhuma precipitação.
— Mas que quadro? O senhor quer dizer um desenho? Às vezes...
— Não. Uma tela mesmo. Crianças. Um óleo imenso de quase dois metros (TEZZA,
1998, p. 22).
[...] — É que, afinal, a dedicatória foi escrita a óleo, na face da tela, e ocupa um palmo do
canto esquerdo. Era um presente absolutamente pessoal. Toda a concepção de tela nasceu
de uma longa conversa nossa [...] (idem, ibidem, p. 27).
12
BERNARDI, Rosse Marye. O espaço do suspense: uma leitura de Breve espaço entre cor e sombra, romance
de Cristovão Tezza. 1998. Disponível em:
<http://www.cristovaotezza.com.br/critica/ficcao/f_breve/p_98_jul_revletras.htm>. Acesso em: 17 out. 2009.
48
Como o nome da tela já indica, há, nessa narrativa, a presença constante de crianças e
de elementos do imaginário infantil (balão, trenzinhos, cambalhotas, toco de lápis, velinhas...)
do início ao fim. O nome Crianças está relacionado intrinsecamente ao enredo ou ao tema do
quadro.
Isso: crianças! Muitas crianças tagarelando, pequenos vultos escondidos, duendes,
fantasminhas, recortes de carne e vento.
[...]
[...] Vi uma criança fingindo-se de tonta: ficava de pé simulando muita dificuldade. De
tempos em tempos, sentava-se e girava as pernas como ponteiros de relógio, e batia palmas
(TEZZA, 1998, p. 31).
A narrativa assemelha-se a uma história infantil fantástica; há uma criança voando e
dando piruetas no ar, há outra cujos dedos são velas de soprar. Além disso, a narrativa não é
apenas uma descrição estática do momento captado pelo artista, havendo, pois, movimento,
diálogos, como se o quadro tomasse vida, se movesse e contasse sua própria história. A
narrativa é, certamente, tão bem articulada, que se pode visualizar a tela mesmo sem vê-la.
Passou cuidadosamente a mão no meu rosto, como quem recolhe uma flor exótica, e disse:
— Ele espeta.
— Mentiroso!
— Deixa eu ver! (idem, ibidem, p. 32).
Constantin, com exceção do ex-mestre falecido, é um dos únicos que conhece a tela de
Tato e que, consequentemente, revela, com propriedade, suas impressões acerca de Crianças:
[...] Você tem um mundo próprio, mas ainda não tem linguagem. A pincelada, quando
acerta, brilha: o carro esmagado no centro da tela é brilhante, uma figura de mestre; eu sei o
quanto é difícil botar um automóvel num quadro. Um carro é um objeto desengonçado,
horroroso, sem saída, e os grandes artistas tendem a ignorá-lo. Você conhece algum
automóvel pintado por Picasso? [...] Pois bem: o teu carro esmagado é ótimo, ele de certa
forma dá a dimensão do quadro e é o eixo espacial, impossível não olhar para ele, tudo
converge para ele, no truque das velhas e boas linhas da perspectiva antiga. Mas você é um
pintor preguiçoso, Tato; você pintou o carro e ficou com preguiça de fazer o resto (idem,
ibidem, p. 28).
— Mas o desenho é mesmo fundamental! Percebe-se no teu quadro das crianças esse
predomínio da linha, o gosto pela nitidez. Mas, é claro, você ainda parecia um tanto sem
rumo. Chegar à própria linguagem é um caminho comprido (idem, ibidem, p. 155).
49
O discurso do marchand aponta elementos intrínsecos, características do estilo de Tato
enquanto pintor, fazendo uso de um vocabulário que pertence ao mundo das artes para dar
maior credibilidade às suas impressões. Ele também relaciona, exemplifica a técnica e as
ideias de Tato com as de outros pintores renomados.
2.1.2 – IMMOBILIS SAPIENTIA
O título dessa segunda tela chama a atenção, primeiramente, por ser escrita em latim:
Immobilis Sapientia significa ―sabedoria imóvel‖. Trata-se de um políptico13
inacabado,
conforme indica a descrição, um óleo sobre tela de 47 cm por 90 cm, cada peça, que faz parte
da coleção particular do pintor. Por estar inacabado, ou ao invés de haver quatro, há três telas.
A narrativa, assim como o número de telas, está dividida em três partes, todas também
escritas em latim: Principium et ordo (Começo e ordem); Immobilis Sapientia (Sabedoria
Imóvel); Ipsius circuli / principium et fins / universum musica est (mesmo círculo / começo e
fim / música é universo).
O nome do quadro coincide também como o momento em que o pintor está
atravessando, uma crise de imaginação, de criatividade que já dura um ano e que não lhe
permite terminar o políptico: ―Eu estava, de fato, vivendo uma crise renitente de imaginação,
pintando o mesmo quadro há quase um ano, sob o título sugestivo de Immobilis Sapientia.
Mas menti, porque eu não posso sofrer crise de imaginação‖ (TEZZA, 1998, p. 18).
O personagem-narrador, ao se transportar de uma tela à outra, depara-se com uma
porta, em que estava escrito o nome da tela. Ele avança em direção à porta, abre-a e entra na
tela seguinte. O mesmo fato ocorre três vezes: ―Afinal encontrei uma porta, onde li a
inscrição: Immobilis Sapientia. Consegui virar uma chave enorme com as duas mãos,
empurrei a porta e entrei‖ (idem, ibidem, p. 95).
13
Conjunto de quatro ou mais quadros independentes entre si, mas subordinados a um só tema, segundo Houaiss
(2001).
50
O personagem-narrador percorre as três telas como se caminhasse de uma à outra, o
que nos leva a acreditar que ele está não apenas descrevendo o que vê retratado em cada tela,
como também está vendo o que está pintado em cada uma delas. Pela descrição, o local em
que ele se encontra, assemelha-se ao espaço de uma época remota, talvez a Grécia Antiga,
devido a características expostas na narrativa, tais como: colunas, esculturas/estátuas cegas,
roupas brancas, palcos de pedra.
Como não poderia deixar de ser, na visita em que Constantin faz ao ateliê de Tato, ao
se deparar com Immobilis Sapientia, o marchand exprime, mais uma vez, suas impressões
referentes à obra que agora está diante dele:
Não contaminar a lembrança de Richard Constantin olhando atentamente Immobilis
Sapientia e dizendo: Você cortejou o kitsch de uma forma irresponsável e no entanto não
chegou nele. Essa tela é um absurdo completo, mas não tem excessos. O menino parece um
anjo de Rafael; a paisagem é chiaresca; as inscrições em latim (— Você sabe latim? –
Não, era o Marsotti que sabia; ele foi seminarista.) estão ótimas, sobre esse perfeito
mármore rachado; você também tem muita técnica, e isso é um perigo, tão cedo assim,
porque estimula a soberba. É uma pintura desenraizada, que em cada linha parece
imitação de alguma coisa, mas a coisa imitada não está imediatamente visível. Você
compreende? É como se o mundo real não afetasse você. Você está fugindo; em qualquer
outra arte, talvez, isso seria inaceitável; na pintura, não. E este quadro aqui, está
inacabado? – e ele puxou Réquiem para a luz (TEZZA, 1998, p. 167).
2.1.3 – ESTUDO SOBRE MONDRIAN
O terceiro ―quadro narrativo‖, cujo nome faz uma referência ao pintor Mondrian, é o
mais distinto dos três outros quadros de Tato. Estudo sobre Mondrian é um acrílico sobre
madeira, mede 36 cm por 41,5 cm e faz parte da coleção particular do pintor: ―[...] recolhi um
pequeno quadro, um velho estudo de cores em tinta acrílica, uma imitação de Mondrian de
três anos antes‖ (idem, ibidem, p. 151).
Como o próprio título indica, o conteúdo da narrativa é uma referência à obra de Piet
Mondrian. O texto é a repetição da oposição entre a cor branca e a linha negra com uma única
menção à cor vermelha; tal oposição nos remete ao título do romance: cor/sombra.
51
Percebe-se, ao longo dessa narrativa, que o pintor faz uso de cores que são marcas da
pintura do modernista holandês: o branco, o preto e o vermelho. A narrativa constrói-se por
meio da repetição dessas cores, sendo-lhe acrescentados, ainda, os artigos definidos ―a‖ e/ou
―o‖ e os substantivos ―linha‖, ―reta‖ e ―cor‖. A repetição é tão exaustiva que, ao longo de sete
parágrafos, uma única palavra/frase é repetida inúmeras vezes, respectivamente, na ordem ―a
cor branca – a linha reta negra – a cor branca – a linha reta negra‖, como podemos observar
no sétimo e último parágrafo: ―A cor branca, a cor branca, a cor branca, a cor branca, a cor
branca, a cor branca, a cor branca (a cor branca), a cor branca: a cor branca. A cor: branca. A
cor branca – a cor branca. A cor branca‖ (TEZZA, 1998, p. 129).
Tal qual o nome da tela de Tato indica e a técnica narrativa por ele utilizada para
descrevê-la, a obra de Mondrian, em sua fase mais conhecida, é caracterizada pela repetição
de linhas e cores, dessa forma: uma tela branca com linhas horizontais e verticais pretas,
formando quadrados e/ou retângulos, sendo alguns desses preenchidos por cores primárias
como o azul, o vermelho e o amarelo.
Para Mondrian, as linhas verticais representavam vitalidade e as horizontais, tranquilidade.
O ponto de cruzamento de duas linhas era o ponto de ―equilíbrio dinâmico‖. Em seus
quadros, típicos de seu estilo, o pintor se restringiu às linhas negras formando retângulos.
Ele usava apenas as cores primárias – vermelho, azul e amarelo – e três não-cores: branco,
preto e cinza. Calculando cuidadosamente a colocação desses elementos, Mondrian fazia
um contraponto de ritmos para conseguir um ―equilíbrio de opostos desiguais, mas
equivalentes‖. Embora a grade dos quadros pareça similar, cada uma delas é precisa e
diferentemente calibrada (STRICKLAND, 2003, p. 145).
Sobre as cores, a tela Estudo sobre Mondrian e o processo criativo de Tato, ―o agora
mestre Constantin‖, quando no ateliê do pintor, lança a sua análise:
— Você tem razão, Tato. Nada é mais camaleônico, por assim dizer, que a cor. – E depois
de concentrar os olhos alguns segundos no meu exercício, como se aguardasse a mudança
de tom sob a nova luz, ele me devolveu a pequena tela, parece que satisfeito com o
resultado. — Só por esse Mondrian fake, vejo que você de fato entende a pintura como uma
construção puramente mental (TEZZA, 1998, p. 151).
52
Em seu romance A suavidade do vento (2003), Tezza demonstra, mais uma vez, sua
afinidade com as artes plásticas, referindo-se a Mondrian para enfatizar seu tão conhecido
estilo, marcado pela identidade visual peculiar e pelo traço único.
Havia nuvens no céu, mas hoje o que interessava era só o verde e este estava bem-
comportado. Percebeu que não era exatamente uma linha reta que separava o azul do verde.
Havia pequeníssimas farpas invadindo o território alheio, de baixo para cima (verde), de
cima para baixo (azul). Poderia ignorá-las. Mas daí...
Lembrou-se num estalo de um pintor que pitava aquilo: Mondrian. Correu para um
caixote de livros, atropelando monstros que se metiam entre as pernas, atrás da pequena
enciclopédia. MONDRIAN, Piet. Pulou datas e informações irrelevantes. Seu estilo
rigorosamente geométrico tinha por princípio os ângulos retos e a utilização das três cores
primárias: azul, amarelo e vermelho. Por azar a enciclopédia não trazia nenhuma
ilustração. Isso não ajudava muito (TEZZA, 2003, p. 145-146).
Ilustração 10
“Composição em vermelho, amarelo e azul” (1837-42)
Óleo sobre tela
72,5x69cm
Galeria Tate (Londres, Inglaterra)
A dicotomia presente no título da obra de Tezza, Breve espaço entre cor e sombra,
representada pela cor e pela sombra, dialoga com a tela Estudo sobre Mondrian, como bem
assinala Lacerda:
Neste, chamado ―Estudo sobre Mondrian‖, num lance de prosa experimental, ou concreta,
ou o que outro nome se queira dar, Tezza repete infinitamente a oposição entre a cor branca
e a linha negra. A oposição fundamental do livro, entre razão e sentimento, e que no título
53
vem expressa por meio da cor e da sombra, aqui e no tocante aos retratos da italiana, surge
na oposição entre a linha e a cor (LACERDA, 1998)14
.
Entende-se que essa dicotomia entre cor e sombra, razão e sentimento, está presente na
obra de Tezza em questão, de diferentes maneiras e em diferentes momentos: nas idas e
vindas do tempo passado, com a presença do falecido mestre atormentando a vida presente de
Tato, em forma de flashbacks; nas atitudes do protagonista tentando ser racional, como quanto
à questão de não se apegar a terceiros; na carta emocional da italiana.
2.1.4 – RÉQUIEM
O quarto e último ―quadro narrativo‖ do romance é o óleo sobre tela intitulado
Réquiem, que mede 90 cm por 45 cm. A tela encontra-se inacabada, possui detalhes
restaurados sobre madeira e faz parte da coleção particular de Tato:
Resolvi pintar, prosseguir meu inacabável Réquiem, uma viagem sem volta e quase que só
azul e verde, uma cor fria e outra quente, numa imagem praticamente sem linhas, o que
contraria tudo que sei fazer, mas eu insisto. Minha vantagem é esta: não tenho a mínima
pressa. Réquiem é, também, uma espécie de birra: quando minha mãe viu a primeira
tentativa, há mais de um ano, torceu a cara instantaneamente: Um lixo. Jogue isso fora
(TEZZA, 1998, p. 56).
Réquiem, segundo significado denotativo da palavra, indica: uma prece, uma oração
religiosa para os mortos. Tal qual o seu significado, essa última obra apresenta um homem
que, sofrendo, aparenta estar apenas aguardando a extrema unção.
De cunho depressivo, a narrativa é composta por frases curtas, o que coincide com o
ritmo curto da respiração do narrador da tela, talvez ocasionada pela falta de força devido à
declaração: ―Sou doente. Respiro com dificuldade‖, reiterada algumas linhas abaixo: ―Eu sou
doente‖ (idem, ibidem, p. 178).
14
LACERDA, Rodrigo. A cabeça esculpida. 1998. Disponível em:
<http://www.cristovaotezza.com.br/critica/ficcao/f_breve/p_98_abr_folha1104.htm>. Acesso em: 29 mar. 2010.
54
Assim como a doença desconhecida pelos leitores, a solidão desse homem à beira da
morte só não é total porque há a presença de sua mãe ―de cabeça enorme‖, com a qual o
narrador da tela afirma ter sonhado. Em seu sonho, a mãe era um ―polvo rosado muito
grande‖ (TEZZA, 1998, p. 178). O sonho parece ter ocorrido tão-somente devido aos delírios
febris do moribundo.
Em outro momento da narrativa, Tato Simmone confirma o teor depressivo da tela
Réquiem:
O que pintar? Dois quadros em andamento e um projeto, este já com a tela montada e
algumas linhas em carvão. Réquiem me dá um certo medo: é a coisa mais depressiva que eu
já tentei pintar na vida. Aníbal nunca parou um minuto para contemplá-lo. Milhões de
pessoas já pintaram isso aí melhor que você. É como pintar a Santa Ceia. Até o Dali se
fodeu. Já a série de esboços de Immobilis Sapientia interessou-o mais. Parece um
casamento entre De Chirico e o Abaporu, um teorema tropical. Pode resultar num
pasticho, parecido com incêndios na floresta que vendem na rua, mas pode dar também
alguma coisa antropofágica. Afinal ele cedia, invejoso: Mas você é detalhista, e tem
paciência oriental, vai ficar bonito. E como eu nunca acreditei: Sem brincadeira. Sério.
Dessa vez é verdade (idem, ibidem, p. 67).
A reflexão do pintor vem enxertada com os comentários críticos de Marsotti, cujo
olhar negativista sobre o Réquiem e o Immobilis Sapientia pintados por Tato faz-lhe redobrar
as atenções sobre o tipo de mestre que poderia ser Marsotti. Mais adiante, abordaremos, com
mais detalhes, a análise de Marsotti enquanto mestre.
Logo no início, a narrativa de Réquiem apresenta uma certa coerência. É possível
compreender o fio narrativo, mas, poucas linhas depois, perde-se o nexo e as frases parecem
não mais fazer sentido, parecendo meras frases soltas. Esse ―quadro narrativo‖ é o único em
que, de fato, não se pode visualizar o que está pintado na tela. A imaginação corre solta e não
direciona o leitor a uma imagem específica que foi capturada pelo pintor. Todavia, conforme
a filha do marchand afirma, em uma das partes finais do romance, em um diálogo travado
com Tato sobre arte, a pintura não precisa, necessariamente, fazer sentido. Ou seja:
— Pela exigência. A literatura precisa ser verossímil, as coisas têm de ter pé e cabeça. A
pintura, não. Na pintura, você pode botar chifre em cabeça de cavalo, que fica bonito. Pode
botar o cavalo com chifre em cima de um banquinho de três pernas, feitas de vidro. E
55
equilibrar o banquinho no nariz comprido de um mágico com cinco cabeças, sendo cada
uma delas uma carta de baralho. O mágico pode estar sentado no telhado de uma choupana,
que repousa numa nuvem, que chove canivete – e ela ria, fascinada pela própria sequência
de imagens (TEZZA, 1998, p. 208).
Em acréscimo a isto, concluímos com as palavras de Leonardo da Vinci, que a
inverossimilhança na arte é aceita e permitida porque:
[...] o pintor é senhor de todas as coisas que podem ocorrer ao pensamento do homem, por
essa razão se ele tiver o desejo de ver belezas que o encantam, ele é senhor para criá-las, e
se quiser ver coisas monstruosas que aterrorizam ou que sejam risíveis ou realmente dignas
de piedade, ele é senhor e criador. E se quiser criar paisagens e desertos, lugares
sombreados ou frescos nas épocas quentes, ele os representa; e assim também lugares
quentes nas épocas frias. Se quiser vales, ele os simula; se quiser dos altos cumes dos
montes descobrir grandes planícies e se quiser depois delas ver o horizonte do mar, ele é
senhor deles; e também da mesma forma se dos baixos vales quiser ver os altos montes ou
dos altos montes os baixos vales e as praias. E de fato tudo que existe no universo em
essência, presença ou imaginação, ele os tem primeiro na mente, e então nas mãos, e estas
têm tanta excelência que, num dado momento, geram uma harmonia de proporções que o
olhar abarca como a própria realidade (da VINCI apud LICHTENSTEIN, 2004, p. 47).
O diálogo entre Ariadne e Tato Simmone é, sem dúvidas, um dos momentos mais
instigantes do romance, muito próximo ao seu final. Mais comumente chamada de Adne, ela é
uma das quatro filhas de Constantin e dona Sara; ela é considerada pela mãe, ―uma gênia em
línguas, fala inglês, francês, espanhol, italiano, aprende tudo. Mas não entende nada de
pintura. Não tem paciência, para desgosto do Constantin‖ (TEZZA, 1998, p. 192). Ariadne
recebe a incumbência de ciceronear Tato, mostrando a casa, as obras pertencentes à família.
E, assim, nesse percurso, a pedido do pai, ela indicará onde está a cabeça de Modigliani.
Ariadne, em suas posições, tende a refutar o que fora dito por seu pai, pelo ―prazer
gratuito, quase biológico, de dizer o contrário‖ (idem, ibidem, p. 208). Apesar de,
aparentemente, não dominar muito o assunto sobre as artes plásticas, o que poderia ser
confirmado pelas palavras da mãe acima citadas, Adne apresenta coerência em suas
colocações, chegando mesmo a impressionar Tato. Ela alega que a convivência com o pai
aflorou os seus conhecimentos artísticos:
— Para quem não entende nada de pintura, segundo a tua mãe, o que você diz...
Ela riu, faceira:
56
— Ora, Tato! A pintura é o único assunto do meu pai! Pintura e dinheiro! Eu estou só
repetindo o que ouço, não se impressione tanto – e ela deu a sua risada saborosa (TEZZA,
1998, p. 208).
A filha do marchand estimula a discussão com o pintor quando coloca que ―ler é
melhor do que ver‖. Tato rebate dizendo que ―ler é ver‖ e Ariadne complementa sua frase
primeira, contestando a resposta de Tato, quando diz que ―os cegos leem um livro, mas não
veem um quadro‖ (idem, ibidem, p. 206). Esse seu ponto de vista nos direciona ao aforismo,
anteriormente tratado, ―a pintura é poesia muda, e a poesia, pintura que fala‖.
Coincidentemente, segundo à mitologia grega, Ariadne, filha do rei Minos, rei de
Creta, foi responsável por salvar Teseu do labirinto, entregando-lhe um novelo. À medida
que o fio se desenrolava, o caminho de volta ia sendo indicado. Assim como a da mitologia, a
Ariadne do romance de Tezza conduz Tato para que o mesmo alcance o seu objetivo.
A certeza de Tato, durante o percurso, é revelada pela frase: ―eu sei que Ariadne me
levará até ela, quadro a quadro‖ (idem, ibidem, p. 197), o que se consumou no momento do
grande e esperado encontro entre Tato e a cabeça de Modigliani, enfim:
Um espaço curto; uma torre justa – e afinal Ariadne encontrou o interruptor da luz, atrás da
porta que ela fechou atrás de nós. De algum lugar veio uma luz vaga e amarela. E ali estava
a cabeça de Modigliani. Sem pompa, colocada torta, ao acaso, sobre uma cômoda velha,
como quem largasse um objeto, apressado, porque tem algo mais importante a fazer (idem,
ibidem, p. 251).
2.2 – ESTRUTURA NARRATIVA
Tezza também foi leitor voraz de romances policiais, mas o que o instigava não era o
fato de escrever uma intriga policial, e sim manter a tensão na narrativa. No romance em
questão, Tezza mantêm a tensão constante e o ritmo de suspense por meio da intercalação das
tramas narrativas. O suspense no romance está presente desde o início da narrativa por meio
de pequenas pistas – muitas enganosas – intercaladas com a história da cabeça falsa do
57
italiano Modigliani. A tensão intensifica-se ainda mais a partir da última parte da trama,
quando as histórias intercaladas se entrecruzam.
O paralelismo de narrativas é também mais uma marca da obra de Tezza; seus
romances são reconhecidos pela alternância de capítulos, ou seja, por duas histórias paralelas
que acabam por encontrar-se. Em algumas de suas obras, esse entrecruzar de narrativas é
construído pela técnica epistolar. Entende-se por gênero epistolar, segundo o dicionário de
Carlos Ceia15
:
Composição datada e escrita por um indivíduo ou em nome de um grupo com o objectivo
de ser recebida por um destinatário. O termo tem uso antigo e constitui modo literário
importante a partir do conjunto de textos do Novo Testamento que ficaram conhecidos por
epístolas. Neste sentido, distingue-se uma epístola de uma carta comum, pois não se destina
à simples comunicação de factos de natureza pessoal ou familiar, aproximando-se mais da
crónica histórica que procura relatar acontecimentos do passado. A utilização do termo
alarga-se, depois, a todo o tipo de correspondência privada ou oficial, literária ou filosófica,
religiosa ou política, pelo que a partir desta generalização se torna difícil estabelecer com
rigor a diferença entre uma epístola e uma carta.
Para Bakhtin (1988, p. 159-161), a hibridização decorre tanto da introdução de
gêneros intercalados, tais como diários, relatos de viagens, cartas, biografias, como da
estilização ou da paródia. E, na trama narrativa em análise, a inserção da epístola e de
narrativas sobre telas caracteriza o hibridismo.
Conforme posto, em Breve espaço entre cor e sombra, há duas narrativas distintas: a
de Eduardo Simmone, vulgo Tato, e a de uma mulher italiana, narrativa esta que pode ser lida
por meio de uma carta destinada ao protagonista. Assim sendo:
No contraponto do discurso de Tato com sua ideologia da angústia e solidão, temos a carta
da italiana, igualmente verossímil e consistente em termos ideológicos. Seu longo e
pungente discurso epistolar, intercalando a narrativa do pintor – um servindo ao outro (pela
própria inserção) como elemento do suspense. Os dois discursos diferem tanto sintática
quanto ideologicamente, enfatizando oposições que se marcam pelos do homem e da
mulher, pela geração, pela distância temporal e espacial e por diferentes sistemas de
valores. No entanto, estas oposições concretizadas em dois pontos de vista sobre o mundo
15
CEIA, Carlos. E-Dicionário de Termos Literários. 2005. Disponível em: <http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/>.
Acesso em: 17 mar. 2010.
58
acabam por se iluminar mutuamente, um possibilitando a melhor compreensão do outro
(BERNARDI, 1998)16
.
O discurso de Tato, essencialmente de voz masculina, é repleto de reflexões sobre a
inutilidade da arte e as confusas relações familiares e sociais, especialmente o relacionamento
com a mãe e com seu ex-mentor, Aníbal. Em contraponto, o discurso da italiana, marcado
pela voz feminina e europeia, vai, pouco a pouco, revelando traços da personalidade de Tato:
É curioso e extremamente poético o jogo que se estabelece entre eles. Nas palavras da
italiana, o perfil de Tato vai ficando cada vez mais nítido e rico em detalhes. Ao contrário,
nos desenhos que Tato lhe enviara, as linhas vão se esmaecendo e, no final, a italiana pouco
se reconhecesse (FERREIRA, 1998)17
.
A italiana, uma crítica de arte de 40 anos, em seu discurso confessional, expõe sua
visão feminina de mundo, sua fragilidade, medos e anseios; seu discurso é construído
mediante desenhos-carta que Tato lhe enviara ao longo de um ano de correspondências. Seu
discurso epistolar abrange sessenta e uma páginas de um total de duzentas e sessenta e seis
que compõe o romance integral. A epístola é dividida em nove partes, cortando a narrativa de
Tato em iguais nove momentos.
Ela inicia a carta avisando, de antemão, que a sua intenção é falar sobre sua vida:
―Tato, meu querido: Esta é a última carta que escrevo a você e não quero deixar nenhuma
lacuna. Você sabe tão pouco de mim (na verdade, não sabe nada), e isso me incomoda‖
(TEZZA, 1998, p. 44). E ainda, em diversos trechos, enfatiza o escopo dessa carta: ―Eu estava
(acostume-se: vou falar muito de mim mesma nessa carta; eu preciso falar tudo, e como eu
não acredito em psicanálise e não tenho exatamente intimidade com mais ninguém, escolhi
você para me ouvir, uma primeira e última vez)‖ (idem, ibidem, p. 47).
16
BERNARDI, Rosse Marye. O espaço do suspense: uma leitura de Breve espaço entre cor e sombra, romance
de Cristovão Tezza. 1998. Disponível em:
<http://www.cristovaotezza.com.br/critica/ficcao/f_breve/p_98_jul_revletras.htm>. Acesso em: 17 out. 2009. 17
FERREIRA, José Guilherme R. Tezza expõe dilemas da representação. 1998. Disponível em:
<http://www.cristovaotezza.com.br/critica/ficcao/f_breve/p_98_abr_tardesp.htm>. Acesso em: 17 out. 2009.
59
Nas últimas linhas, na despedida final da carta, a italiana, por fim, sente-se ―esvaziada
como num fim de chuva‖ (TEZZA, 1998, p. 237), por tanto ter falado e desabafado sobre si
mesma. Em reforço ao desabafo desesperado dessa mulher de 40 anos, a personagem Tato
Simmone vai sendo construída, pouco a pouco, por meio de sua voz, da voz epistolar, e das
vozes de outras personagens:
O personagem Tato não se caracteriza por um caráter ou por um espaço social definido e é
articulado narrativamente pelo discurso do outro. Sua imagem é delineada por vozes
circundantes que não o determinam como um pintor medíocre nem como um gênio
sufocado pelo mestre, mas pelas suas dificuldades de enfrentamento da realidade
(MORAES, 2001, p. 122)18
.
Breve espaço entre cor e sombra gira em torno da falsa cabeça de Modigliani e tem,
por intenção, trabalhar a temática no terreno das artes plásticas. A escultura de Modigliani,
uma cabeça de pedra, viaja de Roma a Nova York, de Nova York ao Brasil, e no Brasil, mais
precisamente em Curitiba, ela termina sua saga.
Tanto Isaura, mãe de Tato, quanto a amiga italiana atribuíram autenticidade à cabeça
de Modigliani. Ambas alegaram que a cabeça era verdadeira, fazendo, assim, a peça
escultórica chegar às mãos e ao acervo de Richard Constantin. A Tato ficou a incumbência de
recuperar a peça supostamente falsa, salvando, assim, a reputação da mãe e da amiga italiana.
Em um dos flashbacks do romance, Tato relembra o diálogo que teve com a mãe,
quando esta lhe pede que roube a cabeça de Modigliani, devolvendo, pois, sua teoria do
porquê da aproximação de Constantin e do porquê do marchand ter comprado uma cabeça
falsa; mas é claro que isso não passa de suposições, pois a intenção verdadeira não é exposta
na narrativa:
Comecei imediatamente a desenvolver uma teoria conspiratória: Richard Constantin sabe
que eu sou filho de dona Isaura, e se aproximou de mim com a intenção de me fazer parte
18
MORAES, Taiza Mara Rauen. Plurilinguismo em: Breve espaço entre cor e sombra de Cristovão Tezza. 2001.
Disponível em: <www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras/article/download/219/217>. Acesso em: 29 abr.
2010.
60
da chantagem, de algum modo que eu não conseguia descobrir. Mas por que a senhora não
devolveu o dinheiro e pegou a maldita cabeça de volta? Ele não quer o dinheiro que ele
pagou. Ele quer muito mais que isso. Ele quer uma indenização, a forma mais sofisticada de
extorsão – e num processo em um tribunal americano, não brasileiro. Bem, mas a senhora
sabia que a cabeça era falsa? É claro que não! Como você pode pensar uma coisa dessas
da sua mãe? Há o testemunho de Torres Capalans, citado por Max Aub! Além disso, depois
do vexame mundial de Livorno, com aquelas cabeças falsas e horríveis jogadas por
brincalhões no fosso da cidade para corresponder à lenda de que Modigliani teria
arremessado esculturas na água ao se definir pela pintura, quem iria se aventurar a falsificá-
lo novamente? Bem, talvez justamente por isso. É um álibi e tanto. Mas é uma bela cabeça!
É um trabalho de gênio! Veja e comprove! Há diferença? (TEZZA, 1998, p. 197).
A cabeça detém um simbolismo um tanto quanto interessante. Além de ser uma cabeça
sem corpo, mesmo assim ela se desloca de um lugar a outro, de uma mão à outra, e representa
um símbolo de poder dentro do romance. O poder de rotular de falsário a pessoa que a passou
adiante e de conferir a quem a possui a faculdade de revelar a identidade de quem a vendeu,
destruindo-lhe, dessa maneira, a reputação.
A italiana, por sua vez, lança suas angústias, quando, em alguns momentos, tece, na
carta destinada a Tato, comentários sobre a felicidade que sentiu quando seu ex-marido,
Domenico, vendeu a cabeça e o embaraço que isso lhe acarretou posteriormente, visto ela ter
tomado consciência de que havia repassado uma cabeça falsa. Esses dois momentos revelados
pela italiana são ilustrados pelas seguintes passagens:
Ele estava muito feliz pela cabeça de Modigliani que eu passei adiante (TEZZA, 1998, p.
107).
Tinha vendido, muito bem vendido aliás, três álbuns de fotografias do século passado, e
mais uma partitura original de Puccini. Um bom dinheiro para um longo tempo. E mais
aquela maldita cabeça de pedra do meu marido – do ex-marido, faz dois dias que não somos
mais nada, nem nunca fomos casados mesmo, para um francês intermediário, que aceitou
Modigliani sem perguntar muito, porque (os olhos dele diziam) já tinha um comprador, um
comprador que perguntaria menos ainda. (Essa foi, digamos, a parte insegura: eu nunca
gostei daquela cabeça; no mínimo Domenico deveria ter dito a verdade para mim, antes de
fazê-la queimar na minha mão.) (idem, ibidem, p. 83).
[...] emprestar o meu prestígio para vender uma cabeça falsa de Modigliani no mercado de
Nova York, talvez ambas as vergonhas, e a vergonha é o mais corrosivo, destruidor, mortal
dos sentimentos (idem, ibidem, p. 236).
Para Chevalier (2008, p. 151), a cabeça simboliza o ardor do princípio ativo e abrange
a autoridade de governar e instruir. No mundo Celta, a cabeça é objeto de várias práticas e
61
crenças, sendo seu costume principal a guerra, em que os gauleses cortavam a cabeça de seus
inimigos vencidos para levarem-na, triunfalmente, consigo. A cabeça simbolizava, dessa
forma, a força e o valor do guerreiro adversário, sendo incorporada pelo vencedor.
Em Breve espaço entre cor e sombra, pode-se aplicar esse simbolismo da cabeça ao
―vencedor‖, nesse caso, Richard Constantin. Ele é quem carrega a cabeça triunfalmente, a
qual, apesar de se tratar de uma cabeça teoricamente esculpida por Modigliani, representa
também a cabeça de suas ―rivais‖ que a repassaram, acarretando, assim, a morte delas, ou
melhor, o suicídio profissional delas.
Mas é Tato quem, por fim, consegue capturar a cabeça de Modigliani e, como quem
segura um grande prêmio, momentos depois da vitória, desabafa: ―Soltei o cinto de segurança,
estiquei minhas pernas o quanto pude e fechei o olho bom, pensando no meu troféu: a falsa
cabeça de Modigliani‖ (TEZZA, 1998, p. 264).
O romance inicia-se com o enterro de Aníbal Marsotti, o Biba, ―um dos mais refinados
coloristas do país‖ (idem, ibidem, p. 08), que era pintor e ex-mestre do protagonista Eduardo
Simmone, o Tato, que tem 28 anos e que mora sozinho em uma casa-ateliê, em Curitiba: ―Um
ateliê de 250 m². Como se não bastasse, um apartamento, dos antigos, de 184 m², num
segundo e último andar, sem síndico e sem vizinho‖ (idem, ibidem, p. 36). Apesar de ser
pintor, Tato nunca fez uma exposição. Vendeu um único quadro – à sua própria mãe, que o
esqueceu, ou melhor, que ―deixou a compra para trás, cheia de pó no ateliê do filho‖ (idem,
ibidem, p. 15). Aliás, ele é sustentado por ela, que é uma marchand residente em Nova York.
Mesmo morto, as lembranças de Biba, as lembranças das palavras de Biba,
acompanham Tato na trajetória do romance. Ele, o tutor, aparece de forma rude, severa e com
duras críticas sobre o trabalho de Tato, tanto que, antes de seu falecimento, o discípulo afasta-
se dele por não o aguentar mais:
Eu me afastei porque eu estava cansado de ser espancado pela sua língua. Que eu seria
sempre um nada. Que a minha pintura era suja e descritiva, de um figurativismo rastaquera.
62
Que na melhor das hipóteses a minha obra serviria como mural de presidiário. Que eu devia
esquecer tudo e começar tudo de novo. (Agora, quem sabe ele tenha razão?) Que eu estava
descobrindo as vantagens da roda. Mas o pior de tudo: eu não tenho desculpa, porque sou
rico. De artista pobre, perdoa-se tudo, principalmente a mediocridade. Mas, aos ricos, o
Reino da Justiça. [...] Foda-se Tato Simmone. Você nunca vai ser um verdadeiro artista. Eu
falo isso para o seu bem (TEZZA, 1998, p. 08).
Mesmo se afastando em ―legítima defesa‖, Tato reconhece o valor e o que seu ex-
mestre representou em sua carreira como pintor, demonstrando gratidão e respeito à sua
figura: ―Tudo que eu sei de pintura (e talvez até o fato de eu levar a pintura a sério – o meu
Destino, para ser grandiloquente, o fato de que eu não posso mais parar de pintar até a morte,
e essa condenação soa como um soluço para Aníbal, o último), tudo eu devo a ele‖ (idem,
ibidem, p. 09).
As críticas de Aníbal aparentam, algumas vezes, ser construtivas, como se fossem
tentativas de fazer deslanchar o crescimento profissional de Tato, mas, em outros momentos,
parecem destrutivas, invejosas e ciumentas. Mas, assim como é de interesse do marchand,
Aníbal, enquanto mestre, procura também, de alguma forma, obter qualquer lucro em cima de
Tato:
Lembrei dos meses e meses de sessão de desenho sob orientação de Aníbal, que rasgava um
atrás do outro, com uma fúria de diretor de teatro na véspera da grande estréia, que jamais
haveria: Um lixo! Você nunca vai aprender a desenhar! Olhe esse braço! Tudo bem que ele
seja três vezes maior que o outro, desde que se equilibre; mas esse arrasta o quadro pela
ribanceira. Uma merda. O olho de quem vê cai para a direita como uma pedra. Ponha
alguma coisa do outro lado. Do outro lado havia uma carreira de cocaína, mas só depois
que eu terminasse quinze desenhos. Me dê esse aqui. Esse está bom. Eu vendo pra você.
Meio a meio. Tudo bem? (idem, ibidem, p. 102).
É no enterro do ex-mestre que entra em cena a figura enigmática de Richard
Constantin, ―um senhor de uns cinquenta, sessenta anos. Conservadão. Magro. Elegante‖
(idem, ibidem, p. 174), que tanto pode ser um marchand e um colecionador erudito de grande
sabedoria artística, quanto um vigarista. Constantin aproxima-se de Tato com intuito ainda
desconhecido, sendo, por meio da voz do protagonista que se conhece um pouco dessa figura:
63
— Um marchand que conheci no enterro do Biba. Tem um carro japonês, que ele dirige
mal, e sabe tudo sobre pintura. Um mestre. Melhor ainda: conhece meus quadros. Pelo
menos um deles (TEZZA, 1998, p. 39).
Constantin, eis o nome! O quase lendário Richard Constantin (mas ele já não tinha
desaparecido?), uma mistura de marchand e de pirata que há algum tempo habitou o
imaginário magro das artes plásticas da cidade, é como a visita de uma velha senhora que
há de nos redimir a todos: nas conversas de bar, tanto seria o falsificador que passou três,
quatro, às vezes nove anos numa cadeia de Paris por traficar Picassos que ele mesmo
pintava, quanto o Midas capaz de transformar um pintor de paredes num assombro de
bienal, em geral com vida curta porém lucrativa – para ele (idem, ibidem, p. 14).
Richard Constantin, além de ser colecionador de artes e de possuir um vasto acervo
pessoal, aparenta querer agenciar o jovem pintor, afinal, essa é a intenção de qualquer
marchand, descobrir novos talentos, obter participação nos lucros e construir, assim, um
nome. O protagonista, ao perceber a intenção da aproximação de Constantin, revela: ―Ele
finalmente sorriu, um sorriso discreto – aquilo era um enterro – mas generoso e reconfortante;
transformou-se em mãos estendidas, quase num abraço comovido, como quem encontra,
afinal, o seu bem mais precioso: um grande artista‖ (idem, ibidem, p. 14).
A preocupação de Constantin com o pupilo, excluindo o interesse pelo valor comercial
de suas telas, difere da de Aníbal Marsotti, sendo ambas percebidas por meio de seus
respectivos discursos. Enquanto o segundo teme a insignificância do artista, a mediocridade
do pintor, o primeiro visa tão-somente o lucro com as obras de arte. A respeito disso,
acrescenta-se:
Ao diálogo direto subjaz uma intenção pragmática, o marchand diferentemente do professor
não se interessava pelo processo mas pelo produto acabado e pelos resultados comerciais de
futuras transações no mercado de arte. Constantin representa uma voz inserida no contexto
da indústria cultural diferentemente de Marsotti que avaliava a obra de arte a partir de
processos individuais (MORAES, 2001, p. 125)19
.
19
MORAES, Taiza Mara Rauen. Plurilinguismo em: Breve espaço entre cor e sombra de Cristovão Tezza. 2001.
Disponível em: <www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras/article/download/219/217>. Acesso em: 29 abr.
2010.
64
Os diálogos revelam o profissionalismo comercial e persuasivo de Constantin contra a
sensibilidade artística de Marsotti. Percebe-se, pela voz do marchand, suas impressões sobre
o falecido mestre, cuja prática artística supera a teoria:
Nunca conheci alguém tão incapaz de falar sobre pintura quanto ele. Era um intuitivo em
estado bruto. De um lado, isso ajuda bastante um pintor, a ignorância, o gosto pela magia
negra, pelos horóscopos, por todo esse lixo medieval que sobrevive per omnia secula
seculorum. Quem apenas vê, aceita qualquer coisa: mundo é uma imagem. Mas, por outro
lado, isso limita, porque o intuitivo não consegue pensar. Você, que conheceu o Aníbal de
perto, sabe disso. Um bloco imóvel de pedra. Nenhum lampejo maior de inteligência.
Quando só pinta, é suportável; às vezes, bom; quem sabe, muito bom, aqui e ali (TEZZA,
1998, p. 20).
Tato também reconhece, no falecido mestre, o grande artista que fora, mas cuja
decadência o fez se entregar às drogas e, por conseguinte, arruinar sua carreira e sua vida:
―Ele foi um grande artista. Nos últimos anos não fez mais nada que prestasse. Começou a
produzir em série uma imitação kitsch dele mesmo, vagabunda e baratíssima, para conseguir
dinheiro fácil e comprar cocaína. Lixo em cima de lixo‖ (idem, ibidem, p. 111).
Não obstante, através de outras vozes – as quais conhecem a reputação de Constantin
enquanto marchand e enquanto pessoa física, caso este da vampira –, adjetiva-se a
personalidade dele: ―Esse sujeito é um ladrão, falsificador de quadros, contrabandista, um
estelionatário processado em quatro países; e só veio para em Curitiba para se esconder. –
Abaixou a voz, a última carta: — E é chantagista. Tome cuidado‖ (idem, ibidem, p. 115).
Para além disso, é Ariadne, uma das filhas de Constantin, quem o descreve enquanto
colecionador e quem, ao comentar sobre o acervo que o mesmo possui, leva-nos a perceber
que tipo de profissional ele é: ―— Meu pai gosta de revezar os quadros da sala. Mas, é claro,
os melhores, ou os verdadeiros – e ela riu, divertindo-se com a brincadeira – ele prefere
deixar mais tempo aqui. Esse Monet nunca desceu. O falso Modigliani faz tempo que não vai
para a sala, não sei por quê‖ (idem, ibidem, p. 252).
65
Ainda no enterro, entra em cena a figura da vampira, que é amiga de Aníbal e cujo
nome não é revelado. A partir desse encontro, ela tenta tornar-se também amiga de Tato. E
agora é Constantin quem revela a Tato suas impressões sobre a tal vampira, alertando-o:
Há um mês estava pendurada no pescoço do Aníbal (desculpe-me falar desse modo, mas é
verdade), sugando até a última gota do sangue e do talento dele. Agora que ele morreu, ela
está momentaneamente sem ar. É visível o desconforto dela, a inanição. Você percebeu?
Trata-se de uma vampira. Ela agora vai se jogar em você com todas as unhas. Mas nem sei
por que estou falando disso. É claro que você já percebeu o que ela quer (TEZZA, 1998, p.
17).
Apesar da coincidência do codinome remeter diretamente a outro escritor, o também
coincidentemente curitibano, Dalton Trevisan, Tezza faz uso da palavra vampira no sentido
figurativo da palavra, o que extingue qualquer vínculo com o contista Trevisan. É válido
ressaltar que essa reminiscência é devida ao fato de Trevisan, além de ter publicado um livro
de contos intitulado O Vampiro de Curitiba (1965), ter também recebido o codinome de ―O
vampiro de Curitiba‖ por sua personalidade retraída e sua vida reclusa, sendo, pois, avesso a
entrevistas e aparições públicas. Dessa forma, o fato de o nome vampiresco aparecer na obra é
apenas uma coincidência, e não uma referência a Dalton Trevisan. A vampira de Tezza é uma
mulher que se aproveita, que suga o sangue das vítimas, metaforicamente falando.
É justamente a ―vítima‖ Tato Simmone quem brinca com o nome e com o significado
da palavra atribuído à personagem da vampira: ―[...] uma vampira interessada em me ver, só
para sugar até a última gota do meu sangue‖ (idem, ibidem, p. 23).
Por meio dessas personagens e de mais uma amiga de Tato, a fiel e gorda Dora, que
está sempre presente na vida do amigo, e também por meio de alguns telefonemas
inoportunos do pai, o romance vai sendo articulado. Tato descreve essas personagens,
respectivamente, da seguinte maneira:
Ela (Dora) é quase alguém da família para mim, o que é ao mesmo tempo confortável (uma
boa família está sempre à mão, em caso de desespero) e incômodo (por melhor que seja, a
família é uma condenação até o último degrau, no término dos tempos — ela é mais durável
que a mais duradoura das obras de arte) (idem, ibidem, p. 38).
66
Meu pai só não está na cadeia porque minha mãe – que levou um tiro bêbado na coxa, na
última discussão – preferiu deixá-lo solto, mas sem nada. Afinal, o dinheiro sempre foi dela
mesmo. Um acordo que ele aceitou por ser um homem substancialmente bom: tamanha
culpa, tentativa de homicídio, merecia essa pena severa, a pior de todas, a miséria, que ele
aceitou batendo no peito a sua dor e largando a bebida por quarenta dias (TEZZA, 1998, p.
60).
A ação concentra-se nos poucos dias que sucedem o velório. São exatamente três dias.
Do enterro que ocorre na quinta-feira a uma festa que acontece no sábado. No ínterim da
narrativa, na sexta-feira, Tato convida Constantin a visitar sua casa-ateliê para este analisar
seus quadros. O protagonista é quem enfatiza as datas e externa as expectativas criadas em
torno de cada uma delas: ―— Mas é disso mesmo. Um tapa-olho. De pirata. Amanhã tenho
um encontro com um marchand muito importante que pode salvar minha vida e eu não quero
aparecer com um olho roxo. Sábado tenho uma festa que não posso perder‖ (idem, ibidem, p.
133). Em outro trecho, essa mesma questão também pode ser observada:
Acertamos às duas da tarde, quando o ateliê está no seu ponto ótimo de luz, se o dia estiver
claro. [...] Não só ao mestre de amanhã, mas também à vampira de hoje, que, em me
sugando o sangue, haverá de frestar minhas telas mais secretas; também ela recomeça hoje,
uma quinta-feira luminosa que Deus resolve passar a limpo um pequeno trecho de sua obra
– suprime Biba com uma pincelada e nos dedica, aos que restaram, alguma atenção quase
entusiasmada (idem, ibidem, p. 78).
É durante a festa, a qual ocorrerá na residência de Richard Constantin, que o pintor
poderá não apenas apreciar a coleção do marchand, como também realizar a tarefa que sua
mãe lhe solicitara, isto é, sair de lá, escondido, com a suposta cabeça de Modigliani em mãos.
Leia-se: furtar a cabeça de Modigliani. Com esse convite, Constantin assina sua sentença, ou
melhor, a sentença da cabeça: ―— Não se esqueça de sábado à noite! Espero você!‖ (idem,
ibidem, p. 35)
Para isso, Tato pede a ajuda de sua nova amiga, a vampira, que, mesmo sem entender
direito o propósito do roubo, decide ajudá-lo. Os dois vão juntos à festa e Tato explica-lhe
como pôr o plano em prática:
67
— Eu quero roubar uma cabeça de Modigliani, uma estátua de pedra, da casa do
Constantin. Eu nem sei se ela está de fato aí. Preciso descobrir. Minha ideia é trazer a
cabeça para cá, daqui levar até o muro e jogar naquele terreno. Levar a cabeça pela entrada
da frente é impossível. Por aqui é difícil, mas com sorte dá. Se eu consigo passar pela
cozinha, por exemplo. Em seguida, vamos de carro até a outra rua, eu desço, atravesso o
terreno, pego a estátua, e nós fugimos. Que tal? (TEZZA, 1998, p. 220).
A narrativa dura poucos dias, mas, ao mesmo tempo, a carta que a italiana escreve
relembra um dia inteiro vivenciado por eles, um ano atrás, ou seja, o dia em que ambos se
conheceram no Museu Metropolitan em Nova York. Apesar de ter se tratado de um único dia,
percebemos, por meio da narrativa da italiana, que esse dia lhe deixou marcas profundas,
marcas que ela tem carregado durante doze meses. A quantidade de detalhes que a italiana
relembra, desse primeiro e único encontro, mostra a importância que esse dia teve em sua
vida:
Não leve a mal esse meu jeito de dizer as coisas. Como essa é a minha última carta, eu não
quero deixar nada para trás, nem para depois. E você nem pode imaginar como eu tenho a
memória saturada de você, cada pedaço dela. A impressão que eu tenho é que eu não fiz
outra coisa nesses dozes meses (e sete dias) senão recompor e restaurar, peça por peça, o
mosaico do nosso encontro. Eu sei de tudo sobre ele. Fiz até um mapa, seguindo nossos
passos. Calculei distâncias. Fiz um cronograma do tempo e do espaço, baseando-me em três
referências: a hora em que você chegou (9:21h) – eu conferi no exato momento em que
você descia do táxi, porque o Metropolitan só abre às 9:30h e havia mais gente esperando –
e a hora da quitação do hotel, que tenho impressa comigo, e a despedida no aeroporto, com
aquela hora oficial e assustadora piscando atropelada em toda parte. Sei o momento em que
estivemos mais próximos: no abraço de despedida, o momento em que, afinal
decididamente, você me apertou além do razoável, mas por quatro segundos apenas, e o
momento em que estivemos mais longe (no hotel, quando você ficou na fila do check out
guardando meu lugar no meio daquela horda de turistas enquanto eu corria ao 12° andar do
hotel para pegar minha bagagem antes que eu perdesse o avião, o que, lembrando bem,
chegou a ser meu não tão secreto desejo (idem, ibidem, p. 45).
Os detalhamentos não se ativeram apenas às lembranças pontuais daquelas horas no
museu, conforme reitera a italiana: ―Há muito mais para contar, nessa catarse epistolar‖
(idem, ibidem, p. 143). Nas sessenta e uma páginas – que aparecem alternadas, iniciando na
de número quarenta e quatro e findando na de número duzentos e trinta e sete –, os atributos
físicos e aspectos da personalidade do protagonista ressaltam, transparecendo o ponto de vista
da italiana.
68
Ela o delineia como um homem ―sério‖, ―infinitamente triste‖ e ―silencioso mesmo
nas cartas‖. Ela diz que o mesmo possui ―autodomínio‖, é ―organizado‖, ―gentil‖, ―distante‖ e
de ―prometedora leveza‖; que fisicamente falando, ele tem ―a curva da testa e o nariz reto, um
pouco maior do que seria o padrão convencional‖, ―dedos tão longos‖, ―o olhar do tipo que
não se cansa, vivo e delicado, contínuo e renovante‖, ―uma pessoa povoada‖, ―uma espécie
delicada de ausência‖ (TEZZA, 1998, p. 45-86 ).
E ainda complementa, mostrando a sensibilidade do pintor, de forma mais poética,
moldando-o como ―uma delicada peça de porcelana na minha memória – toco você com
cuidado, com o cuidado (e a força) com que segurei teu braço para que você não caísse‖
(idem, ibidem, p. 223), ―alguém do ramo das artes, das belas artes‖ (idem, ibidem, p. 71), um
sujeito que ―mais parece um pintor que conta histórias que um pintor que pinta quadros‖
(idem, ibidem, p. 45).
Sobre mais ―parecer um pintor que conta histórias‖, o que é devido aos ―quadros
narrativos‖ presentes no romance, acrescenta Moraes (2010, p. 123)20
: ―Tato Simmone é
avaliado pela voz da italiana em sua carta ‗como um pintor que conta histórias‘ posição
confirmada pelo leitor, pois as narrativas de seus quadros, também estão intercaladas no
romance‖.
Inconteste é a afirmação de que o pintor é também um narrador. Diferentemente do
escritor, o pintor:
[...] deve saber narrar com o pincel. [...], pintar consiste em transpor uma sequência
narrativa, e portanto temporal, para o espaço de visibilidade que é a do quadro; em
descobrir os meios de representar fielmente uma história respeitando um certo número de
exigências próprias à composição pictórica (LICHTENSTEIN, 2005, p. 13).
Apesar de seus meios de expressão serem diferentes, o pintor e o poeta:
20
MORAES, Taiza Mara Rauen. Plurilinguismo em: Breve espaço entre cor e sombra de Cristovão Tezza. 2001.
Disponível em: <www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras/article/download/219/217>. Acesso em: 29 abr.
2010.
69
[...] têm em comum um gosto e uma mensagem [...], o pintor usa desenho, cor e forma,
juntamente com as percepções de prado, céu, casa ou catedral, para dar forma ao deleite e
ao mistério que estão no próprio centro de nossa experiência terrestre. O poeta narra
ocorrências de energia e movimento, vinculando entre si as forças naturais dentro e fora do
homem, e exprime a solene quietude existente no coração das coisas (PRAZ, 1982, p. 60-
61).
Em resposta às cartas enviadas pela italiana, Tato envia-lhe desenhos, retratos, cujos
traços vão esfacelando com o passar do tempo. São desenhos do rosto da italiana sob o olhar
do pintor, treze ou quatorze ―fotogramas que se movem não no espaço, mas no avesso do
tempo: a fotografia que, de tanto sol, vai se apagando até a completa ausência de memória‖
(TEZZA, 1998, p. 69).
Dessa forma, por conhecer o traçado de Tato, a italiana julga-o como:
[...] um grande desenhista. Eu me senti inteira no teu primeiro desenho, o que veio com a
primeira carta, aquela meia dúzia de linhas nervosas e exatas em papel grain canson em
que a força da sugestão se somava ao detalhe absolutamente preciso dos olhos, dos lábios,
da ideia da sombra, da curva limpa da minha testa e acima de tudo da intrigante expressão
de quem quer saber quem você é, afinal – eu estava completa no teu traço, feita naquela
mesma madrugada, com o bilhete em torno, as palavras escritas como que prolongando o
desenho, o mesmo bico-de-pena, educadas, corretas e distantes – uma cópia a limpo de
você mesmo, me chamando de ―amiga‖ e encerrando (desculpe) com aquele horrível ―best
wishes from‖ de algum cartão comprado às dúzias. Mas eu não me importei com esse
detalhe. Tudo isso circundado por uma maravilhosa moldura com flores e folhas, traços de
uma paciência bordada noite adentro de que, tão leves, não se percebe o trabalho, como as
ondas de um mar japonês (idem, ibidem, p. 69).
E complementa:
Eu sei que você é um desenhista magnífico e delicado, e que se eu não tomar alguma
providência eu vou perder os teus traços – os teus traços sobre mim, cada vez mais
sintéticos e mais perfeitos, mas cujo destino é, afinal, a página totalmente em branco (idem,
ibidem, p. 144).
Certamente a curiosidade do leitor é aguçada pela não exposição dos quadros de Tato.
Apesar das críticas e das ponderações feitas ao longo de Breve espaço entre cor e sombra, o
leitor não pode avaliar pessoalmente o pintor, tendo que contentar-se com as narrativas do
mesmo. ―É engraçado: as pessoas não costumam entrar na casa dos outros sem convite, mas
vão logo dizendo, sem cerimônia, o que pensam do quadro que você pintou, como se você
70
fosse um pavilhão público, um corredor de hospital, um banco de ônibus, um guichê‖
(TEZZA, 1998, p. 123).
Apesar de conhecê-lo, em decorrência de seu perfil traçado e ilustrado pelas vozes das
demais personagens, compactuar com a opinião de Aníbal Marsotti, de Richard Constantin ou
de quem quer que seja sobre a qualidade e valia das obras de Tato Simmone é praticamente
impossível.
71
CONSIDERAÇÕES FINAIS
"A pintura não foi feita para enfeitar paredes. A pintura é uma arma, é a defesa
contra o inimigo"
(Pablo Picasso)
Sinuoso foi o caminho percorrido pela história da arte. A cada parada, a bagagem
torna-se mais extensa e mais pesada. As experiências adquiridas pelo trajeto, por vezes
deixam cicatrizes na arte. Os momentos vivenciados jamais foram apagados, quando muito
documentados em registros.
Desde o princípio, a evolução da arte acompanhou pari passu a evolução da
humanidade, levando em consideração os aspectos religiosos, sociais, culturais e econômicos.
A arte e o homem caminham lado a lado.
Em sua narrativa, o autor de Breve espaço entre cor e sombra, propõe uma reflexão
sobre diversos aspectos circundantes à temática das artes plásticas. Permeados de elementos
condizentes ao mundo, principalmente, dos pintores e dos escultores, Tezza nos leva a uma
viagem pelas cores, pincéis, formas, bronzes, macetas e ponteiros. Temos então a junção da
literatura e das artes plásticas em um mesmo romance.
A história da arte, o pintor, o mercado de arte, as falsificações, as reproduções e as
marcas intrínsecas condizentes a cada artista são os temas abordados no Capítulo 1. Esses
temas são também motivos de interesse e, por conseguinte, motivos de estudo até os dias
atuais.
Falar de arte, julgar, criticar, avaliar uma obra é uma tarefa difícil, pois requer além de
conhecimento teórico, propriedade e reconhecimento público. Essa função cabe aos críticos,
estudiosos de arte, especialistas e, em alguns casos, aos marchands.
72
Dessa forma, para analisarmos a obra em estudo, foi preciso utilizar textos teóricos, de
artes e literatura, fragmentos do romance e algumas telas, esculturas e fotografias para
ilustrarmos com mais precisão as ideias difundidas por Cristovão Tezza.
Breve espaço entre cor e sombra não se trata apenas de uma narrativa em que se tenta
descobrir a verdade sobre uma cabeça esculpida por Amedeo Modigliani. Breve espaço entre
cor e sombra não se trata apenas dos três dias vivenciados pelo pintor Tato Simmone. Breve
espaço entre cor e sombra é uma instigante discussão sobre a arte, mostrando-nos como ela e
a literatura dialogam entre si.
O poeta expressa-se fazendo uso de seu lápis, o pintor, de seu pincel. O poeta dá vida
às palavras, o pintor, às cores. Apesar da distinção do meio, ambos, de uma forma ou de outra,
comunicam-se, expressando seus sentimentos e ideias por meio de palavras e/ou de imagens,
por meio da linguagem verbal e da não verbal.
Acontece que, nesse romance em específico, deparamo-nos com um pintor que,
genialmente, ao invés de nos mostrar suas telas, narra-as para nós, o que chamamos de
―quadros narrativos‖. Como não há uma imagem precisa, pontual, cabe então ao leitor
interpretar, imaginar e lançar uma avaliação pessoal acerca das obras. As telas constroem-se
na cabeça dos leitores, podendo variar, de acordo com a leitura e a imaginação de cada um.
Dessa forma, voltamos ao tão conhecido axioma: ut pictura poesis.
Os estudos condizentes as relações de proximidade e distanciamento entre a literatura
e a pintura e/ou a escultura ressoam tempos longínquos, mas, no entanto, são temas
recorrentes da atualidade. Além disso, a riqueza da temática permite que esse estudo seja
passível de um aprofundamento futuro. Finalizando com as palavras de Vicente do Rego
Monteiro (apud AYALA, 2003, p. 59-65) ―[...] creio que pintar é uma linguagem, um meio de
comunicação tão velho como o mundo. / Tenho um grande respeito pelo espaço. O espaço
73
para o artista é como o oceano para o marinheiro. Pode ser vida e morte. / É preciso viver,
pintar e ter paciência. Só acredito no poeta que morre pela sua poesia‖.
74
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
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