MATAR OCULTAR ESQUECER – O DESAPARECIMENTO
FORÇADO COMO DISPOSITIVO NECROPOLITICO1.
Yann Gomes dos Santos (PPGHDL – FFLCH/USP)2
A memória dos ditadores.
Jair Bolsonaro, na época deputado, em frente ao seu gabinete. Foto: reprodução internet.
1 Texto apresentado no 44º Encontro Anual da ANPOCS - GT23 - Memória Social e Sociedade: os desafios
contemporâneos. 2 Especialização em Direitos Humanos, Diversidade e violência pela UFABC. Doutorando em Humanidades,
Direitos e outras legitimidades pela FFLCH/USP.
E-mail: [email protected]
Jair Bolsonaro, ainda como deputado, em comemoração dos 50 anos do golpe militar de 1964.
A memória dos Familiares de mortos e desaparecidos políticos.
Caminhada do Silêncio - Ibirapuera São Paulo - 31.03.18 Foto: Edilson Dantas
Caminhada do Silêncio - Ibirapuera São Paulo - 31.03.18 Foto: Edilson Dantas
O retorno do recalcado – conflito de memórias
Avenida Paulista 31/03/2019 - Fotos: Jardiel Carvalho/Folha Express. - Militantes pró e contra o golpe de 1964
brigam na Av. paulista.
Avenida Paulista 31/03/2019 - Fotos: Jardiel Carvalho/Folha Express
Impossível apurar, impossível nomear – cristalizando discursos oficiais.
Monumento em Homenagem aos mortos e desaparecidos da Ditadura Militar - Ricardo Ohtake, Fotos próprias
com destaque para texto.
Profanações – subvertendo dispositivos.
Cemitério de Perus em São Paulo-SP, monumento colocado próximo ao local onde foi descoberta a vala de
Perus. Foto: reprodução internet.
Escrevo esse texto com base nas imagens que mostrei acima. A partir delas, penso na
relação entre esquecimento, memória e as políticas do fazer morrer em situações onde se tenta
apagar o rastro com a destruição do corpo. Proponho, então, uma reflexão sobre o
Desaparecimento Forçado, um tipo de crime que se disseminou no Brasil no período da
Ditadura Militar.
Opto por um percurso que vai desde entender as formas do esquecer até o estudo acerca
do dispositivo necropolítico “Desaparecimento forçado”, que tem como efeitos a manipulação
da memória e o soterramento do traço para retirar da esfera comum a existência de formas de
vidas diferentes da “civilizada” e “racional”, ou melhor, da “patriota”, da “família com deus
pela liberdade”.
O rastro: Lembrar - Esquecer
O esquecimento, na maior parte dos casos, é indesejável e visto como fraqueza que põe
em xeque a confiabilidade da memória e do testemunho por subsequente. Ricoeur (2007) fala
que isso acontece porque se confunde a memória com a rememoração – capacidade de se
remeter a fatos. Ao mesmo tempo, a memória total é indesejada, causa horror, pois seria
impossível viver se lembrássemos de cada dor, cada angústia, cada trauma, sendo o
esquecimento necessário para viver o presente, pois, como elucida Gagneban (2006), “o trauma
é ferida aberta na Alma, ou no corpo, por acontecimentos violentos, recalcados ou não, mas que
não conseguem ser elaborados simbolicamente, em particular sob a forma de palavra, pelo
sujeito.” (GAGNEBIN, 2006, p.110).
Ricoeur (2007) argumenta ainda que só existe memória com o esquecimento. Destarte,
é numa ação de interação entre os dois que construímos nossas memórias, nossas imagens para
lembrar. Quando se trata de memória coletiva, resta destacar que essa interação se dá por
distanciamento e proximidade do lembrado, e que, é no exercício de rememorar que notamos o
esquecimento para lembrar novamente, a ausência de algo então faz possível sua
presentificação. O esquecimento opera uma tarefa de seleção, de leitura ou encobrimento de
rastros. Então, se o esquecimento é tão polissêmico, é preciso pontuar a diferença entre as
formas do esquecer.
O autor sistematiza memória e esquecimento, apontando que existe uma forma de
esquecimento que se configura como a amnésia – que consiste na subtração/apagamento do
rastro, da imagem, do registro, no intuito de impedir e manipular a memória. Já o esquecimento,
enquanto manifesto ou de reserva - que tem relação com a elaboração/ perlaboração, permite
que sigamos a vida, sem reviver todas as nossas dores todos os dias (não lembro agora o que
aconteceu, mas posso lembrar).
Então temos ao menos duas grandes formas de tratar o esquecimento, como violência
contra a memória, que visa barrar a lembrança ou esconder os traços para que não se saiba e
um outro tipo, ou um esquecimento de reserva, feliz, que podemos acessar quando necessário
mas que não me impede a vida no presente por estar preso em uma repetição do passado. Como
aponta Gagnebin (2006),
Há um esquecer natural, feliz, necessário à vida, dizia NietzcheNietzsche. Mas existem
também outras formas de esquecimento, duvidosas: não saber, saber mais não querer
saber, fazer de conta que não se sabe, denegar, recalcar E por que os alemães dos anos
50 e 60 desejavam tanto esquecer, segundo Adorno?Porque o peso do passado era tão
forte que não se podia mais viver no presente; esse peso era insuportável porque era
feito não apenas do sofrimento indizível das vítimas, mas também, e antes de tudo, da
culpa dos algozes. (GAGNEBIN, 2006, p.101).
Como vemos na fala da filósofa, a vida no presente está intrinsecamente ligada a como
lidamos com eventos passados, por isso a importância de entender o esquecimento. No texto
“Conto e Cura”, Walter Benjamin ilustra, através do exemplo de uma mãe que consola o filho
em dor, como opera esse esquecimento feliz. No exemplo, a mãe, ao contar uma história ao
filho, faz com que ele esqueça a dor. Para Benjamin (2012), “a cura (se dá) através da narrativa”
(BENJAMIN, 2012, p.276), onde o relato é o próprio início do processo de cura. Vemos, então,
que o esquecimento feliz passa pela possibilidade de uma narrativa, de poder contar sobre e não
de impedir saber sobre. O momento traumático fica então no passado, mas sem que seja
ocultado.
No entanto, como falamos, é preciso distinguir o esquecimento feliz e a amnésia, que é
uma perturbação ou imposição que veta o lembrar. Paul Ricoeur (2008), analisando duas
figuras jurídicas que visam a supressão da punibilidade, irá contrapor o Perdão, oriundo de uma
elaboração, com o esquecimento que pode decorrer de uma Anistia.
Em “O Justo” ele define a Anistia como “amnésia institucional” (RICOEUR 2008).
Segundo o filósofo, existe uma diferença marcante entre as figuras jurídicas Anistia e Perdão.
A primeira propõe uma forma de esquecimento que leva à amnésia por tomar o evento delituoso
como se não tivesse acontecido, por sua vez, o perdão seria o oposto, pois requer a memória,
ou seja, o evento delituoso não só é conhecido como é exigência para o perdão conhecê-lo para
que haja a elaboração. Gagnebin (2010) faz uma análise e aplicação desse conceito para o caso
da Lei de Anistia brasileira que se coloca como principal empecilho para a elaboração do
período da Ditadura Militar.
Para a autora, a lei de Anistia visa criar uma conciliação forçada, com a narrativa de um
país hospitaleiro e festivo e, assim, esconder as violações de direitos ocorridas durante a
ditadura, colocando um ponto final, buscando silenciar a busca por verdade. Éneste aspecto,
que se fala de uma amnésia que foi imposta de forma institucional.
Contrariando essa tentativa autoritária, é a partir da busca dos rastros que a disputa de
narrativas sobre o período da ditadura militar no Brasil se firma. Na busca pela verdade sobre
os desaparecidos políticos temos o maior exemplo de tentativa de soterrar rastros (corpos e
documento). Gagnenbin (2006) explica que a reflexão sobre a memória utiliza tão
frequentemente a imagem – o conceito de rastro, pois “a memória vive essa tensão entre
presença e ausência, presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas,
também, presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente.
Riqueza da memória certamente, mas também fragilidade da memória e do rastro. (Gagnenbin,
2006. p. 44).
Essa fragilidade do rastro enseja uma busca atenta e vigilante e é por isso que se faz
necessário entender os mecanismos de violência contra a memória.
Matar. Ocultar. Esquecer – o dispositivo necropolítico
Para entender essa tensão entre narrativas, faço a análise do desaparecimento forçado, a
partir da Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas. Aprovada pela
assembleia geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), em 1994, define-se por
desaparecimento forçado:
A privação da liberdade de uma ou mais pessoas, por qualquer forma, cometida por
agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas que atuem com a autorização,
com o apoio ou com a anuência do Estado, seguida da falta de informação ou da
negativa de se reconhecer dita privação da liberdade ou de se informar o paradeiro da
pessoa, impedindo assim o exercício dos recursos legais e das garantias processuais
pertinentes. (OEA, 1994)
O desaparecimento forçado é, assim, um mecanismo que retira da pessoa a liberdade
sem fornecer informações, ou tornar público esse ato. É uma prisão que acontece de forma
escusa e oculta, como num sequestro, impedindo que se acesse direitos e garantias processuais.
É uma prisão que não se assume, é feita de forma secreta, gerando incertezas e instabilidade
bem como a vulnerabilidade de quem é capturado dessa forma, que fica sujeitado a qualquer
tipo de ação abusiva e contra sua vida.
O desaparecimento forçado foi utilizado de forma ampla no Brasil, muitos opositores
do regime militar ou “inimigos de Estado” eram sequestrados e levados de forma forçada a
lugares como a Casa do Terror, Granjas, Porões de delegacias, entre outros lugares preparados
para executar práticas de tortura ou execução sumária.
A execução sumária, arbitrária ou extrajudicial podem ser definidas como:
todo e qualquer homicídio praticado por forças de segurança do Estado (policiais,
militares, agentes penitenciários, guardas municipais) ou similares (grupos de
extermínio, justiceiros), sem que a vítima tenha tido a oportunidade de exercer o direito
de defesa num processo legal regular, ou, embora respondendo a um processo legal, a
vítima seja executada antes do seu julgamento ou com algum vício processual; ou,
ainda, embora respondendo a um processo legal, a vítima seja executada sem que lhe
tenha sido atribuída uma pena capital legal. (PIOVESAN et.al, 2001, p.16).
Percebemos então que se trata de um homicídio realizado com a finalidade de eliminar
a vítima, realizado por ação do Estado e seus agentes, sem que tenha sido imputada pena ou
garantia de direito de defesa. É um matar sem perguntar, matar sem dar o direito de se defender,
é um assassinato com intuito de aniquilação.
A execução sumária se enquadra numa lógica necropoítica de eliminação de um inimigo
interno que é visto como outro com o qual é impossível conviver e, portanto, precisa ser
aniquilado, seguindo a lógica de dispêndio do excesso.
Culminado com essa prática, estava a ocultação de cadáver. O Decreto Lei nº 2.848 de
07 de dezembro de 1940 que deu texto ao art. 211 do Código Penal Brasileiro e tipificou a
conduta de “Destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele”. Aqueles que não resistiam a
sessões de tortura ou que era sumariamente assassinados pelos militares, muitas vezes não
tinham seus corpos devolvidos as famílias. Na verdade, a ocultação de cadáver tem o intuito de
apagar o crime e, por isso, esta é uma prática muitas vezes associada com o desaparecimento
forçado. Primeiro, era feito o desaparecimento forçado, e, uma vez que a pessoa estava sob o
domínio do Estado ou de milícias, sem as garantias legais ou divulgação desse ato, não se podia
saber ou ter a certeza se o indivíduo ou o corpo estava sob custódia do Estado, restando mais
“fácil” sumir com o corpo, ou melhor, assassinar e depois ocultar o cadáver a fim de negar o
crime.
E é por essa razão que verificamos nessa prática cumulada de Desaparecimento Forçado,
Execução sumária e Ocultação de Cadáver um dispositivo necropolítico por excelência.
A necropolítica, como explica Mmbembe, se caracteriza pela fragmentação do
território, a perda do monopólio da violência e a formação de grupos com interesses conflitivos,
a disposição de aparatos tecnológicos que possibilitam destruição em massa para subjugar e
matam seus inimigos (destroem pessoas), e o necropoder age embaralhando a fronteira entre
resistência e suicídio, sacrifício e redenção, mártir e liberdade. São políticas de morte e
inimizade que fundam a “soberania” num mundo de morte.
Sobre o dispositivo, Agamben (2014, p.32) delineia o termo dispositivo “no uso comum
como no foucaultiano, parece remeter a um conjunto de práticas e mecanismos (ao mesmo
tempo linguísticos e não linguísticos, jurídicos, técnicos e militares) que têm o objetivo de fazer
frente a uma urgência de obter um efeito mais ou menos imediato.” (AGAMBEN, 2014, p.32).
No caso do dispositivo que analisamos e está baseado na tríade: desaparecimento
forçado, execução sumária e ocultação de cadáver, o efeito imediato é a eliminação, que deve
servir para silenciar imediatamente o contestante, menos imediato é seu efeito de apagar o
nome, que se pretende como efeito perpetuo: eliminar o sujeito da vida social, como uma
tentativa de apagar um traço, não deixar rastros. E, por isso, que o desaparecimento forçado se
culmina com a destruição de outro corpo, o documento, que pode dar provas do crime.
Ainda, o dispositivo “nomeia aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura
atividade de governo sem nenhum fundamento no ser. Por isso os dispositivos devem sempre
implicar um processo de subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito”. (AGAMBEN,
2014, p.37).
O desaparecimento busca a eliminação do sujeito “inimigo de Estado”, produzido pela
exceção de forma autoritária - fragmentando a coesão social através da criação do inimigo
interno. Essa eliminação visa o apagamento do contraditório, do questionamento, da outra
possibilidade de vida, da contestação. Sua eficiência se pretende justamente na premissa de que
“Sem corpo, não há crime”, sem corpo não há prova do crime, Sem corpo não há traço, não há
vestígio. Esse dispositivo necropolítico visa apagar o corpo, impedir o sepultamento e destruir
a memória do nome.
O que pretendíamos com a formulação de nossa hipótese era delinear o dispositivo pelo
qual se implementava uma política de morte no Brasil que visava a uniformização dos
indivíduos, criar uma “coesão social”, por meio da eliminação dos indesejáveis e, com essa
uniformização, garantir uma narrativa única sobre a nação e sua construção, ocultando o
contraditório ou suas próprias táticas. Ao ocultar, ou tentar apagar o rastro, esse dispositivo
necropolítico pretendia o crime perfeito, que não seria possível nomear por não ser possível
enxergar o rastro de morte fundante do poder.
Outra característica que vemos presente durante a ditadura, de forma análoga, são a
lógica do martírio e a lógica da sobrevivência (Mbembe, 2018). No contexto da guerra fria que
a ditadura brasileira era situada, se considerava necessário que fosse eliminado o indivíduo
comunista para assegurar a vida, era um questão de eliminar esse terror para sobreviver, o que
gerava uma satisfação, um alívio na eliminação desse outro que “me possibilita viver”. Por
outro lado, percebemos a lógica do martírio na resistência. Tendo apenas seus corpos e, às
vezes, armas precárias, os insurgentes não se conformavam com a vida sem liberdade, sem
igualdade e sem direitos. Colocavam-se então em oposição ao regime e assumiam a condição
de luta sendo tachados de subversivo na tentativa de liberdade. No contexto em que se
colocavam, diante do poder bélico do regime, eles assumiam o risco da morte por tomar
consciência de que é melhor “perder a vida lutando” do que viver sob a opressão.
Dessa forma, o dispositivo necropolítico capturava esse eros e transformava em
thanatos. Qualquer insurgente está motivado por leis que divergem do decreto de exceção. Sua
ação é movida por eros e hybris mas não exclui o logos. O desejo de liberdade se convertia em
eminencia de morte. Ao capturar esse corpo que busca liberdade o dispositivo realiza o processo
de desubjetivação do sujeito “militante” e o transforma num espectro, numa ausência – o
desaparecido.
Através desse dispositivo, se perpetua o soterramento do rastro, impedindo saber o que
aconteceu e apurar os crimes que foram cometidos tanto pelo Estado como por outros agentes
com a conivência do Estado. A consequência eminente desse artifício sobre a memória é
perpetuar um discurso de que as mortes (as que se conseguiu ter noticia) no período ditatorial
foram “excessos” contra “terroristas” numa guerra contra o “terror”.
Como não se tem acesso aos corpos (documentos e remanescentes humanos) a premissa
do “sem corpo, sem crime” se consolida nos “baixos números” de mortes apurados,
cristalizando o discurso de uma “ditablanda” no Brasil.
Outra consequência é que as políticas de memória no país operam sobre a premissa do
“impossível apurar” 3, alegada a impossibilidade de acesso aos documentos e restringindo o
campo de busca aos casos conhecidos que ficam cristalizados na metodologia de apuração do
“Caso Emblemático”, uma metodologia adotada pelas Comissões da Verdade que escolhem
casos para ilustrar o que aconteceu no período, são casos onde a apuração foi possível de forma
inconteste, demostrando a ação do Estado e sua relação com essas mortes.
Ainda, a partir dessa solidificação sobre o passado, como impossível apurar, prevalece
o “pacto de esquecimento” positivado com a lei de Anistia, que ao comparar os crimes de
Estado com os “crimes” dos perseguidos políticos, resolver passar uma borracha sobre o
conflito dissimulando a finalidade de possibilitar a vida no presente. Mas será que é possível
apagar rastro e viver no esquecimento? O conflito sem elaboração não está resolvido, o
recalcado volta então com a mesma força para a esfera pública.
Os conflitos de narrativas sobre esse passado recente voltam com cada vez mais força,
como quando o presidente em exercício Jair Bolsonaro, reafirma sua postura de comemorar o
dia 31 de maio4, data que marca o golpe militar no Brasil, como dia da “revolução que salvou
3 No monumento aos mortos e desaparecidos políticos da ditadura militar no parque do Ibirapuera em São Paulo-
SP consta a seguinte frase: “impossível incluir todos os nomes de milhares de trabalhadores rurais, indígenas,
vítimas dos esquadrões da morte e outras pessoas também brutalmente executadas naquele período e que
permanecem desconhecidos”. 4 Para detalhes sobre o caso acessar a reportagem em: < https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-determina-que-
militares-celebrem-golpe-de-64-23549592> Acesso em 02 de julho de 2019.
o país” ao mesmo tempo em que os familiares de mortos e desaparecidos fazem atos5 para
relembrar os crimes da ditadura e exigir verdade e justiça. O presidente nega os crimes e louva
o passado delituoso que, em sua opinião, “deveria ter matado muito mais” e, ainda, critica a
busca dos familiares pelos remanescentes humanos, pois, segundo Bolsonaro6, quem “busca
osso é cachorro”.
Dessa forma, o dispositivo necropolítico - desaparecimento forçado, visa perpetuar a
narrativa única, manipulada, que contribui para a imposição de uma ideologia sobre história e
memória nacional, sendo ela uma violência contra o lembrar, principalmente nos aspectos do
luto e do reconhecimento social que ele acarreta. Como Afirma Butler (2015), saber quais vidas
são passiveis de luto indica quais vidas são consideradas como vidas.
E é pelo clamor dos familiares de mortos e desaparecidos que a busca continua e,
subvertendo o dispositivo, cunharam o termo “Desaparecido Político”, por não se conformarem
em ter seus familiares como um desaparecido sem motivação conhecida. Essas famílias exigem
que o Estado reconheça os crimes, preservando a memória de seus entes queridos, não como
terroristas, mas como perseguidos do regime, como aqueles que lutaram contra a ditadura em
favor da liberdade. Azevedo explica como o termo desaparecido político surge na esfera pública
e seus motivos:
Os primeiros esforços em torno da construção de sentidos para o “desaparecimento
político” vieram dos setores de oposição à Ditadura e passaram pela tentativa de defini-
lo como parte de um conjunto de crimes perpetrados pela repressão política que
deveriam ser reconhecidos como “terrorismo de Estado”. O desaparecimento teria um
papel fundamental na caracterização da Ditadura como um regime autoritário
excepcional[...]O desaparecimento é, por um lado, inserido em uma história de
“violência política” associada à trajetória de períodos discricionários na época
republicana. Entendendo “política”, numa acepção restrita, como disputa direta pelo
poder e, consequentemente, “repressão” como um movimento contra grupos
organizados em torno deste propósito: militantes, oposicionistas, inimigos do
regime.[...] Por outro lado, o desaparecimento se converte em marca da
excepcionalidade da Ditadura, que é identificada não propriamente no exercício da
violência para assegurar o poder, mas na criação de uma “figura misteriosa” cercada de
ausências (de corpo, de nome, de informação) e incertezas (onde está? Morreu? Como?
Quem é responsável?). (AZEVEDO, 2016. p.70-71)
5 No dia 30/03/2019 familiares, amigos, entidades da sociedade civil organizada, entre outros, fizeram ato na
delegacia onde operava o DOI-CODI na rua Tutoia em São Paulo. Além de lembrar dos mortos e desaparecidos,
afirmavam a luta para que o local se torne um memorial da ditadura e reafirma o combate a tortura e tratamentos
degradantes. Mais informações no link: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/03/30/manifestantes-
fazem-ato-contra-ditadura-militar-na-zona-sul-de-sp.ghtml> acesso em 3 de julho de 2019. No dia 31.03.2019 foi
feita a “caminhada do silêncio” no Parque do Ibirapuera em São Paulo, organizada por entidades dos familiares de
mortos e desaparecidos políticos. 6 Informação disponível em: < https://www.brasildefato.com.br/2019/04/22/bolsonaro-encerra-grupos-responsaveis-por-identificar-ossadas-de-vitimas-da-ditadura/> Acesso em 25.jul.2019.
Mas por que era necessário diferenciar esse desaparecimento? A legislação brasileira já
previa a figura do “ausente” que servia para operacionalizar questões burocráticas e relativas a
direitos em casos de desaparecimento, mas essa figura não comtemplava a especificidade do
desaparecimento forçado das vítimas da ditadura. Azevedo (2016) faz um estudo de como o
grupo de familiares de mortos e desaparecidos cunhou o termo “desaparecido político” para
contemplar uma narrativa que explicitasse o caráter político e a violência de Estado inerentes
ao caso, recusando utilizar a figura do “ausente”, que não reconhece causa para o
desaparecimento, em sua pesquisa entendemos a necessidade do nomear e especificar esse
crime, como fica evidente no trecho que analisa as entrevistas de sua pesquisa de campo:
Para Elisabeth Silveira e Silva do GTNM/RJ, a figura jurídica “ausência” não
diferenciaria os casos da grande variedade de ocorrências cotidianamente classificadas
como “desaparecimentos”. Entre outras possibilidades: sequestro ou perda de crianças;
fugas de adolescentes; adultos vítimas de acidentes, ou que saem de casa para tarefas
cotidianas e, pelos mais variados e desconhecidos motivos, nunca mais retornam; ou
ainda casos diretamente relacionados à violência urbana. Os estudos antropológicos e
sociológicos que tomam como objeto tais fenômenos (por exemplo,FERREIRA, 2011;
ARAÚJO, 2012; OLIVEIRA, 2007) atentam para a diversidade de acontecimentos
organizados sob o termo “desaparecimento” e, consequentemente, para as imprecisões
que ele carrega. Um fenômeno que, a princípio, não poderia ser associado à existência
de um crime que o tenha originado. (AZEVEDO, 2016, p.73)
Ainda no trabalho de Azevedo (2016) encontramos um trecho de seu material de campo,
uma entrevista, que resume o sentimento dos familiares frente ao instituto jurídico da
“ausência” e o iminente apagamento dos crimes de estado que essa atribuição e gera, pois uma
vez que esse instituto não reconhecer um crime que gerou o desaparecimento, ele ocultaria
totalmente a narrativa de luta dos opositores da ditadura e negaria as graves violações de direitos
cometidas pelo Estado, para entender melhor, extraímos um trecho da pesquisa:
Se você quisesse poderia na justiça, como qualquer pessoa que desaparece por mais de
5 anos. Qualquer situação. [Por exemplo,] você tá casada, o cara some 5 anos e ninguém
acha. Você pode ir na justiça e pedir o atestado de presunção de morte, né? Pra você
resgatar a sua vida, pra fazer inventário, pra requisitar uma pensão ou dar baixa no nome
dele em algum negócio. Enfim, a questão legal. Qualquer pessoa que desaparece 5 anos,
você pode fazer isso. Era isso que eles queriam que fizesse. Não era isso que a gente
queria, porque isso não era verdade. Então, eu acho que nenhuma família pediu ou
aceitou. Provavelmente alguma fez, mas eu não tenho conhecimento. (...) Mas eu acho
que foi pouquíssimos. Eu não tenho conhecimento. Não sei de ninguém que fez, porque
não era essa a verdade. Eles não estavam desaparecidos porque, sei lá, foi atropelado
em algum lugare ninguém achou e foi enterrado como indigente, como em alguns casos
acontece. Não é essa a situação e todo mundo sabia muito bem que não era. Minha mãe
poderia fazer: meu irmão tava desaparecido, procurou em tudo quanto era lugar. Mas
ela não ia fazer isso, porque ela sabia que não foi isso que aconteceu. Jamais ela ia fazer
isso (Entrevista com Elizabeth Silveira e Silva, Rio de Janeiro, 18 de dezembro 2013
in: AZEVEDO, 2016, p.73).
Na fala de Elizabeth entendemos que a recusa a atribuição da figura do “ausente”
impulsionou o debate e a necessidade de um dar nome e denunciar a conduta do Estado e
combater o discurso do Estado ou a tentativa de “silêncio” militar, e nessa luta surge a Lei de
Mortos e Desaparecidos Políticos entre outras políticas de memória e reparação. Ainda, as
famílias buscavam não só o reconhecimento dos crimes de Estado, mas os corpos de seus entes
para realização de ritos fúnebre. No clamor dos familiares percebemos que o luto se transforma
em luta e opera resistências ao dispositivo, causando profanações, aberturas num contexto de
continuidade da luta de seus entes.
A disputa não acabou e, em alguns momentos, a necessidade de silêncio parece que
impõe o esquecimento. Mas a memória opera de várias formas, ela está latente, e uma hora o
traço fica nítido, forma a imagem e fica impossível ignorá-lo. A vala de Perus é um exemplo
de como o traço resiste e uma hora submerge, trazendo as lembranças, as provas, os corpos.
E esses corpos lembram a luta e o desejo de quem empreende no ato de pensar que o
mundo pode e deve ser diferente. Resgatar a memória é resgatar e tornar possível esses desejos
de vida e de liberdade, pois a necropolítica em seu gerenciamento da morte, tenta suprimir a
diversidade, excluindo outras formas de vida. Fundindo a sociedade tornando a todos apáticos,
necrófilos. Não podemos nos esquecer do eros motivador da revolta, que mesmo com a certeza
de morte não se imobiliza. Assim, conscientes de sua condenação, muitos preferiram/preferem
lutar por meios múltiplos do que se submeter à imposição de um único modo de ver e viver,
preferiram uma vida qualificada do que uma vida quantificada. Como bem traduziram as
palavras de Tito de Alencar Lima, o frei Tito, torturado entre 1969 e 1970 no Brasil, que
constam no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (2014, p. 390), “é melhor morrer
do que perder a vida”.
Referências:
AZEVEDO, Desirée de Lemos. A única luta que se perde é aquela que se abandona:
Etnografia entre familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil. 2016. 1 recurso
online (351 p.). Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas, Campinas, SP. Disponível em:
<http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/305070>. Acesso em: 30 ago. 2018.
AGAMBEN, Giorgio. O amigo & O que é um dispositivo? Chapecó-SC: Argos, 2014.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II- Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 2014.
Brasil, Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Promulga a
Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, disponível
em: https://goo.gl/Kp9Twu (acesso em: 5 de janeiro de 2017).
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto. Rio de Janeiro:
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GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.
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SAFATLE, Vladimir (org.). O que resta da Ditadura: A exceção brasileira. São Paulo:
Boitempo, 2010.
LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses "Sobre o conceito
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PIOVESAN, Flávia et al. Execuções sumárias, arbitrárias ou extrajudiciais: uma aproximação
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RELATÓRIO FINAL DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Disponível em <
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TELES, Edson Luìs de Almeida. Brasil e África do Sul: os paradoxos da democracia. Memória
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São Paulo.
MBEMBE, Achile. Necropolítica. São Paulo: N-1, 2018.