Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP
Marina Sala
O papel das redes sociais no contexto atual de pós-verdade
Mestrado em Tecnologias da Inteligência e Design Digital - TIDD
São Paulo
2019
Marina Sala
O papel das redes sociais no contexto atual de pós-verdade
Mestrado em Tecnologias da Inteligência e Design Digital - TIDD
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital sob a orientação do professor Dr. Marcus Vinicius Fainer Bastos.
São Paulo
2019
Banca Examinadora:
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À todas as mulheres que não se julgam
capazes de suas próprias conquistas.
Não desistam.
Esta pesquisa teve o suporte da CAPES / PROSUC (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior / Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições Comunitárias de Ensino Superior), mediante concessão de bolsa de Mestrado, modalidade II, objeto do processo n°88887.207130/2018-00, o que permitiu a realização do curso de Mestrado e a conclusão da Dissertação que consolida a pesquisa realizada durante o programa.
AGRADECIMENTOS
Agradeço o Prof. Dr. Sergio Basbaum por ter respondido meu email e me
recebido de braços abertos no TIDD na metade de 2016 para me orientar acerca do
programa e formas de ingresso. Talvez ele não saiba, mas naquele dia eu passei
de uma mulher cheia de dúvidas para uma cheia de certezas , pois ele deu o
empurrão que eu precisava para seguir em frente com a ideia do meu projeto.
Gratifico também o Prof. Dr. Nelson Brissac pelas aulas maravilhosas, onde
nos induzia a reflexão do que estamos fazendo nesse mundão; ao Prof. Dr. Hermes
Renato por ter contribuído tanto para que eu compreendesse essa tal semiótica, e
por tantas trocas de ideias sobre o assunto; à Profa. Dra. Pollyana Ferrari pela
importantíssima participação e contribuição na minha qualificação, e por ter
difundido sua publicação, que foi de grande contribuição para a realização desta
pesquisa.
Agradeço, de coração, a todos os colegas do TIDD pelas palavras de
incentivo, indicações de artigos que pudessem contribuir para a pesquisa uns dos
outros, dicas valiosíssimas e pelos cafés na lanchonete; à minha grande amiga
Heloisa, que me ajudou com a revisão do pré-projeto, e à Ana pela cuidadosa
revisão final.
Não esquecendo de agradecer igualmente, à fabulosa, Profa. Dra. Lúcia
Santaella por ter iniciado esse programa maravilhoso e cativante que é o TIDD, por
ter aclarado as obras de Charles Peirce, e por ser uma referência tão inspiradora
para tantas outras mulheres que batalham constantemente por um espaço no
mundo acadêmico.
À importantíssima Edna Conti, pela cooperação e companhia durante essa
jornada emocionante. Obrigada por repetir tantas vezes a mesma coisa sem perder
a paciência, pela amizade e pelo carinho.
À CAPES e a PUC pelo privilégio e concessão da bolsa de estudos que
viabilizou a realização da pesquisa que se apresenta a seguir.
Obrigada ao meu marido Igor, por sempre acreditar infinitamente na minha
capacidade, até quando eu mesma não acreditava, e assim me encorajar a aprender
coisas novas e buscar novas conquistas tendo o céu como limite. Aos meus gatos,
por terem me feito companhia quando estava perdida entre os livros e letras. E por
fim, agradeço principalmente aos meus pais, Carminha e Zé, por terem sido a base
disso tudo me ensinando o valor do conhecimento, sendo ele a única coisa que
nunca ninguém poderá tirar de mim.
Vocês foram essenciais. Muito obrigada.
RESUMO
Em 2016, o departamento da universidade de Oxford, responsável pela
elaboração de dicionários, elegeu "pós-verdade" como o termo do ano para a língua
inglesa1, com a seguinte definição: "é um substantivo que se relaciona ou denota
circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião
pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais".
Isso é um dos indicadores de que a pós-verdade tem ganhado proporções
cada vez maiores. Como resultado, surge a hipótese de que o principal facilitador é
a capacidade de propagação de conteúdo que a internet, e em especial as redes
sociais, proporcionam. Parece que o mundo tem sido permeado por estes conteúdos
emocionais, e não há muito o que questionar a respeito da atualidade do fenômeno.
Entretanto, algumas reflexões serão necessárias para compreender como a
ausência dessa influência aconteceu em outras épocas e como todo esse conjunto
de acontecimentos anteciparam aspectos do que hoje vem sendo chamado de pós-
verdade.
Nós nos desenvolvemos ao longo das nossas vidas com base nos valores
impostos pela sociedade, valores estes que determinam regras através da cultura,
que é definida por Clifford Geertz (1989) em A Interpretação das Culturas, como uma trama de significados que envolve o homem ao mesmo tempo em que ele a
cria, "uma ciência interpretativa, à procura do significado".
Apesar de ser recente, o conceito de pós-verdade indica uma ambiguidade
que pode ser identificada em acontecimentos anteriores à sua criação. Esta
pesquisa pretende investigar de forma mais sistemática o surgimento do termo, e até
que ponto ele pode ser aplicado a fatos mais antigos ou apenas ao contexto recente
em que aparece. Por este motivo, os conceitos de verdade e mentira deverão ser
abordados, na forma como foram estudados pela filosofia e campos afins.
Este e outros pontos de vista serão discutidos, elegendo como recorte uma análise
do papel exercido pelas redes sociais nesse universo.
Palavras chave: pós-verdade, redes sociais, comunicação, internet.
1 https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-year-2016
ABSTRACT
In 2016, the department of Oxford University responsible for dictionary
development compositions, chose “post-truth” as the English language word of the
year2 — an adjective defined as “relating to or denoting circumstances in which
objective facts are less influential in shaping public opinion than appeals to emotion
and personal belief.”
This is one the indicators that post-truth has grown in proportions. As a result,
it can be hypothesized that the main facilitator is the ability to propagate content that
the internet, and especially social networks, provide. It seems that the world has
been permeated by these types of emotional content, and there is not much to ask
about the actuality of the phenomenon. However, some reflections will be necessary
to understand how the absence of this influence occurred in other periods of time and
how all these sets of events anticipated aspects of what is now called “post-truth”.
We have developed ourselves throughout our lives on the values imposed by
society — values that determine rules through culture, which is defined by Clifford
Geertz (1989) in The Interpretation of Cultures, as a web of meanings involving man
at the same time as he creates it, “an interpretive science, in search of meaning.”
Although recent, the concept of post-truth insinuates an ambiguity that can be
identified prior to its creation. This research aims to investigate more systematically
the inception of this word, and to what extent it can be applied to older facts or if it
can only be used in reference to the recent context in which it appears. For this
reason, the concepts of truth and lies must be addressed as they have been studied
by philosophy and related fields.
This and other points of views will be discussed, choosing how to analyse the
role played by social networks in this universe.
Keywords: post-truth, social network, communication, internet.
2 https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-year-2016
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura A
Figura B
Figura C
Figura D
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 12
2 CONTEXTUALIZANDO AS REDES SOCIAIS E A PÓS-VERDADE 18
2.1 Internet e Facebook 18
2.2 Verdade e mentira 20
2.3 Pós-verdade 26
3 UMA INTRODUÇÃO À SEMIÓTICA PEIRCEANA 33
3.1 Ciências normativas 34
3.2 Primeiridade, secundidade e terceiridade 38
3.3 A teoria Peirceana da percepção 40
4 UMA INTERPRETAÇÃO DO PROCESSO DE COMUNICAÇÃO QUE GERA A PÓS-VERDADE ATRAVÉS DA SEMIÓTICA 47
4.1 As mudanças na maneira de enxergar a comunicação 47
4.2 A percepção aplicada na comunicação 49
4.3 Impactos no nosso comportamento 58
5 PESQUISA DE PERCEPÇÃO 63
5.1 Estatísticas da pesquisa 63
5.2 Análise das respostas 68
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 70
12
1 INTRODUÇÃO
As redes sociais, como ferramenta de compartilhamento de notícias
potencializam a propagação da pós-verdade ao redor do mundo. Neste texto vamos
discutir o problema a partir do Brasil por meio de alguns exemplos e padrões
comportamentais, e um dos indicadores da questão é o esforço do Facebook no
último ano em educar o usuário a pesquisar as fontes1, e em algoritmos e recursos
que ajudam os usuários a identificarem e denunciarem notícias falsas2.
Neste estudo serão analisados os impactos enxergados no comportamento
das pessoas com a influência da internet - ambiente que nos permite transitar entre
receptores e emissores em ciclos ininterruptos - através de discussões sobre a
relatividade dos conceitos de verdade e mentira, para entender como chegamos ao
novo conceito de pós-verdade, numa tentativa de ao final interpretar os motivos da
força que o comportamento atrelado a pós-verdade vem ganhando nos meios
digitais.
Após contextualizar e explorar o conceito de pós-verdade, será discutido o
papel da Internet e das redes sociais, com ênfase no Facebook como ferramenta de
potencialização de propagação da pós-verdade, apesar de plataformas como o
Twitter ou o WhatsApp também contribuírem para a proliferação de informações
inverídicas entre seus usuários. A preocupação corrente sobre seu uso no Brasil
corrobora esta percepção.
Ao se fazer uma busca na internet com o termo são encontrados diversos
resultados, mas para mostrar a força da evidência do assunto basta citar grandes
veículos de comunicação falando sobre o assunto, como a capa da revista Veja,
Edição 2565, em 17/01/2018 e a matéria exibida no Fantástico em 25/02/2018, além
das matérias sendo publicadas na Carta Capital e na Folha de São Paulo. Até
mesmo a redação do Enem 2018 teve como tema a "manipulação do
comportamento do usuário pelo controle de dados na internet".
O termo pós-verdade é bastante recente, por isso ainda não há uma
bibliografia especializada sobre o assunto. Por este motivo, esta pesquisa tem entre
seus desafios construir um ponto de vista acadêmico, buscando apoio em temas
relacionados que permitem entender o dilema da pós-verdade a partir de questões
relacionadas ao campo da comunicação, da filosofia e da linguagem. Isto explica o 1 https://www.facebook.com/help/www/188118808357379?helpref=platform_switcher&ref=platform_switcher 2 https://br.newsroom.fb.com/news/2016/12/combatendo-noticias-falsas-e-boatos/
13
recurso, durante este projeto, a autores que não tratam diretamente do assunto, mas
permitem estabelecer este contexto relevante, como é o caso de Nietzsche, Keyes e
Santaella.
Nietzsche é conhecido por seus textos críticos sobre diversos assuntos, e os
escolhidos para incorporar essa indagação são os que trazem ideias sobre a relação
da verdade com a cultura contemporânea. O que tem alguma relação com o trabalho
de Keyes no livro A era da pós-verdade, mas de uma maneira mais leve e
comparada com fatos do dia a dia. Já o trabalho de Santaella é inserido com o
propósito de elucidar o fenômeno da percepção humana sobre as notícias por meio
da semiótica Peirceana, que será usada como pano de fundo conceitual para discutir
a pós-verdade.
Todavia, para além destes autores e temas que servem como uma conjuntura
mais ampla em torno do tema, já existem algumas pesquisas que permitem formular
o embasamento para justificar a importância de discutir o assunto. Por exemplo, um
estudo3 da Universidade Stanford indicou que 80% dos jovens participantes não
conseguiram identificar diferenças entre chamadas de notícias e conteúdos
patrocinados, apesar de o portal explicitar quando uma reportagem havia sido
comprada por anunciantes. Dentre as atividades realizadas na Internet investigadas pela TIC Domicílios,
as que envolvem comunicação seguem como as mais citadas: destaque para envio
de mensagens instantâneas com 85% (sendo um dos meios o chat do Facebook) e 77% dos participantes descrevem utilizar redes sociais4 como a principal atividade
na internet. Uma rede social é um ambiente composto por pessoas, conectadas por
um ou vários tipos de relações, que partilham valores, gostos e objetivos com
porosidade, possibilitando relacionamentos horizontais e não hierárquicos entre os
participantes.
Com base no conceito descrito acima, o Facebook5 é entendido como uma
rede social e não um veículo de comunicação. Devido a popularização, a ferramenta
3 http://stanford.io/2gGjag7 4 "Na Internet, as redes sociais são comunidades virtuais em que os usuários criam perfis para interagir e compartilhar informações. As mais utilizadas no Brasil são Facebook e Twitter." (Pesquisa Comitê Gestor da Internet - GCI: TIC domicílios 2015). 5 "Nossa missão é dar às pessoas o poder de compartilhar e fazer do mundo um lugar mais aberto e conectado. As pessoas usam o Facebook para manter contato com amigos e parentes, descobrir o que está acontecendo no mundo e compartilhar e expressar o que é importante para elas" (Facebook, 2016).
14
passou a ser utilizada para compartilhar informações do dia a dia com a sua rede de
amigos, além de funcionar muito bem como uma curadoria de conteúdo. Conforme
o estudo feito em 2016 pelo Pew Research Center, 62% dos americanos usam
redes sociais, sendo que 66% optam pelo Facebook como uma forma de acessar
notícias que acabam por serem pré selecionadas por pessoas do seu ciclo de
amizade tornando assim a busca em outros meios desnecessária. Sendo assim
toma-se como base que o comportamento do brasileiro, levando em conta os dados
de alta audiência do Facebook no Brasil, tenham um comportamento semelhante.
O Brasil está no topo do ranking de países que mais consomem notícias pelo Facebook, com 70% dos usuários ativos (Reuters, 2015) buscando informação toda semana, prioritariamente, pela rede social. Nesse sentido, o tempo economizado no carregamento de notícias dentro do Facebook é uma questão de performance, ou seja, a função da ferramenta está completamente atrelada à usabilidade (FERRARI, 2016: 116).
As notícias vão sendo compartilhadas no mural do Facebook, onde uma quantidade considerável de usuários não chega nem a acessar o conteúdo da
matéria, tomando como verdade apenas a chamada do informe e no fim achando
exaustivo o aprofundamento em tais informações.
Analisar esse tipo de comportamento nos remete ao conceito de ansiedade de informação, discutido no livro homônimo de Richard Saul Wurman, que apesar de escrito em 1991 permanece relevante atualmente. Wurman define ansiedade de
informação como:
Resultado da distância cada vez maior entre o que compreendemos e o que achamos que deveríamos compreender. É o buraco negro que existe entre dados e conhecimento, e ocorre quando a informação não nos diz o que queremos ou precisamos saber (WURMAN, 1991: 38).
Wurman cita exemplos de situações cotidianas para que o leitor faça um auto
diagnóstico se está ou não sofrendo de ansiedade de informação, e parece mesmo
muito difícil alguém com menos de 50 anos não estar passando por isso nos dias de
hoje. A citação abaixo tem uma relação interessante com o conceito da pós-verdade,
que será abordado em breve.
Nosso canais de percepção estão entrando em curto-circuito. Possuímos uma capacidade limitada de transmitir e processar imagens, o que significa
15
que nossa percepção do mundo é inevitavelmente distorcida por ser seletiva; não podemos notar tudo. E quanto mais imagens tivermos de defrontar, tanto mais distorcida será nossa visão de mundo (WURMAN, 1991: 41).
Ao serem impactados por notícias que possam ser suspeitas, os usuários do
Facebook, acabam por não desconfiar do conteúdo e priorizam considerar a pessoa
que está compartilhando do que o material ou a fonte da notícia. É este o fato
emocional a que a definição do dicionário Stanford se refere ao definir a pós-verdade: às pessoas próximas transmitem ao leitor a confiança que tem naquele
relacionamento para o escopo da confiabilidade da notícia; a relação interpessoal se
torna mais importante que a credibilidade jornalística.
Na publicação de Ralph Keyes (2011) sobre a era da pós-verdade, o autor se
utiliza de um indicador comportamental no qual as pessoas mentem menos no seu
círculo de convivência por medo de serem descobertas, sendo o Facebook formado
justamente por esse círculo de rostos conhecidos, onde nesse contexto a análise
parece não ter efeito. O estudo vai tentar entender o porquê dessa mudança de
comportamento.
O hábito de passar notícias para a frente sem serem lidas até o final e/ou sem
serem analisadas a fundo existe, pois o volume de informação disponível no feed de
notícias é inversamente proporcional ao tempo livre de qualquer usuário da
ferramenta, e esse comportamento chegou em um nível tão frequente que o próprio
Facebook tem disponibilizado informações sobre esse tema para conscientizar os
usuários a fazerem uma análise das fontes e informações antes de compartilhar a
notícia.
Uma proposição do artigo da Ivana Bentes para a revista Cult sintetiza muito
bem a pós-verdade, "A pós-verdade é a informação que buscamos para satisfazer
nossas crenças e desejos" (2016), pois essa comodidade que o Facebook proporciona também facilita a disseminação de informações que buscamos para
satisfazer nossos desejos. Esse estudo foi inspirado na observação desse
comportamento.
Um outro dado relevante, de acordo com uma pesquisa feita pelo INAF, é de que praticamente 30% da população brasileira atualmente é considerada analfabeta
funcional, conceito que é definido como "a pessoa que mesmo sabendo ler e
escrever algo simples, não tem as competências necessárias para satisfazer as
16
demandas do seu dia a dia e viabilizar o seu desenvolvimento pessoal e
profissional"6, tendo a pesquisa assim destacado a dificuldade para interpretar textos
e identificar ironias nos mesmos.
E apesar de não serem capazes de discernir conteúdos escritos, eles
(anlfabetos funcionais) usam ativamente as redes sociais segundo a pesquisa do
INAF, sendo 86% o WhatsApp, 72% o Facebook e 31% o Instagram, visto que a taxa de compartilhamento de textos nas redes entre o alfabetizado e o analfabeto
funcional é praticamente a mesma, respectivamente 82% e 84%. Ou seja,
praticamente um terço da população do Brasil estaria mais sujeita a desinformação.
Por outro lado, o assunto fake news está tão evidente nas mídias atuais, que talvez
essa conscientização já tivesse sido iniciada, pois em relação a uma expectativa de
uma educação pública de qualidade no país, onde infelizmente não há muita
esperança, já que não existem muitos elementos que possam evidenciar uma
melhora nas últimas décadas, e sim somente de decadência e desvalorização do
professor.
Uma tecnologia que também contribui para que o fenômeno da pós-verdade
se intensifique nas redes sociais é o algoritmo do Facebook que analisa o comportamento dos utilizadores de acordo com os perfis que mais interagem, e
privilegia conteúdos que possam ter mais relevância no feed de notícias. Esse tipo
de seleção segmentada de conteúdo tem seu valor, pois caso contrário seríamos
atingidos por uma quantidade enorme de conteúdo que ocasionaria um
desenvolvimento maior de ansiedade da informação, e ao mesmo tempo
desinteresse na ferramenta, pois com tão pouco tempo disponível em nossas vidas
agitadas nós, utilizadores, queremos cada vez mais conteúdo direcionado aos
nossos gostos.
Claro que isso também é algo importante no modelo de negócio do Facebook,
pois quanto mais eles sabem sobre seus usufruidores, mais propaganda eles
conseguem segmentar para os perfis. Mas a questão é que esse tipo de tecnologia
acaba favorecendo o fenômeno das bolhas, que é muito bem discutido no livro da
Pollyana Ferrari Como sair das bolhas, que será aprofundado mais a frente. Devido aos estudos trazidos acima sobre comportamento dos usuários do
Facebook, podemos deduzir que atualmente no Brasil, o Facebook potencializa a
6 https://ipm.org.br/inaf
17
propagação da pós-verdade, além de vários outros indicadores dessa suspeita,
como a quantidade de notícias que têm sido publicadas com esse tipo de tema
tornando-o assim um assunto de conhecimento geral.
Para atingir os objetivos apresentados nesta introdução, será necessário
fazer um estudo exploratório por meio de uma pesquisa bibliográfica, além de uma
análise dos dados no Facebook, em especial as pesquisas do Pew Research Center, assim como aplicação de pesquisa com os usuários para tentar interpretar a
percepção da veracidade do conteúdo de suas redes sociais, processo cada vez
mais comum neste momento que tem sido tratado como a era da pós-verdade.
As redes sociais ainda são muito recentes, e o amadurecimento do uso de
novas tecnologias e o entendimento do mesmo na sociedade leva tempo. Teremos
que aprender usando, e se habituando à nova realidade, que com a popularização
dos smartphones nos últimos anos só tende a ganhar cada vez mais força.
O capítulo da dissertação seguido da introdução, é uma contextualização
sobre redes sociais e alguns comportamentos observados em relação a elas. Num
segundo momento, são trazidos diversos significados de mentira e verdade com
apoio na filosofia numa tentativa de interpretá-los, além de uma introdução ao
conceito do termo pós-verdade, e um pouco do que já foi estudado sobre isso até
então.
No capítulo seguinte, temos uma introdução sobre os conceitos da semiótica
Peirceana, essenciais para na sequência trazer a teoria da percepção, e assim
propor um cruzamento dessa teoria com o fenômeno da pós-verdade interpretado a
partir das notícias compartilhadas nas redes sociais.
No quarto capítulo, temos uma discussão sobre as mudanças na maneira de
enxergar a comunicação em relação a pós-verdade pela semiótica, e quais impactos
acontecem no nosso comportamento. E por fim no capítulo final, será descrito o
teste de percepção que julgamos necessárias para a validação das hipóteses que
foram sendo definidas ao longo deste estudo, seguido do relato da aplicação dos
testes e seus resultados, para só então concluir essa investigação.
18
2 CONTEXTUALIZANDO AS REDES SOCIAIS E A PÓS-VERDADE
O tema desta pesquisa engloba vários assuntos que, quando combinados,
geram algumas discussões. Por este motivo, esse capítulo de contextualização foi
organizado em três partes. A primeira é sobre a Internet e a rede social Facebook, desenvolvida com base em alguns artigos e pesquisas sobre ambos os tópicos, por
serem conteúdos que já foram estudados de alguma maneira no universo
acadêmico.
A segunda parte é sobre os conceitos de verdade e mentira sendo analisados
com um olhar crítico à cultura se apoiando na filosofia de Nietzsche, e trazendo
também o ponto de vista da semiótica Peirceana para construir uma visão mais
panorâmica sobre conceitos tão complexos.
E na terceira parte são trazidos insumos sobre a ideia de pós-verdade, e
como ela se comporta no mundo da internet, com base no livro The Post-truth Era (KEYES, 2011) e em artigos publicados em jornais e revistas.
2.1 Internet e Facebook
Os temas dentro deste universo que julgamos relevantes para explorar aqui
foram a credibilidade da própria internet como meio de informação e pesquisas
sobre como as pessoas se comportam utilizando a ferramenta Facebook. O artigo "Percepções da credibilidade da informação na Internet"7
(FLANAGIN, METZGER, 2000), apesar de ser relativamente antigo, dá um
panorama geral interessante sobre a percepção dos usuários sobre a credibilidade
da internet.
O artigo aborda a enorme quantidade de conteúdo que a Internet proporciona,
e o quanto os usuários a usam como fonte de pesquisa; e as dificuldades que
envolvem avaliar a credibilidade dos conteúdos encontrados. O autor compara os
processos de pré-publicação de meios impressos, que são bem criteriosos, aos da
internet, que não seguem um padrão estabelecido, pois em veículos de
comunicação existe uma etapa de checagem, que muitas comunidades, blogs ou
fóruns de discussão, não seguem. A ideia da liberdade de informação que a Internet
possibilita como meio também é citada, contudo como esse costume pode trazer o 7 Original do inglês: Perceptions of Internet Information Credibility.
19
potencial para erro e exploração, em especial com as ferramentas grátis de
publicação.
A pesquisa propôs avaliar até que ponto essas preocupações têm
fundamento, onde o estudo dá início na exploração desse tema tão importante que é
a percepção dos usuários sobre a credibilidade da internet como um meio de
pesquisa e informação. Essa indagação traz informações mais generalistas sobre a
internet, entretanto é essencial para afunilar mais as buscas em cima do recorte das
redes sociais.
O artigo da revista Elsevier "O viés positivo e decepção pró-social no
Facebook"8 (HANCOCK & SPOTWOOD, 2016) trata de um experimento feito com
diversos usuários em 3 níveis, para medir o quanto os internautas contam pequenas
mentiras socialmente pelo Facebook para não deixar um colega chateado, e tenta interpretar os motivos das pessoas se comportarem educadamente nas interações
públicas, e terem comportamentos sem censura nas interações privadas.
O trabalho conclui que a preocupação com uma reação positiva dos colegas
os leva a publicar mensagens tendenciosamente positivas uns sobre os outros no
Facebook. As mentiras pró-sociais também foram detectadas com mais freqüência nestas situações, principalmente em mensagens públicas.
O artigo "Curtir, compartilhar, comentar: trabalho de face, conversação e
redes sociais no Facebook" (RECUERO, 2014) traz um estudo com a finalidade de
entender a conversação nas redes sociais; no que implicam os comportamentos
curtir, comentar e compartilhar dentro do Facebook; e a maneira como eles afetam a convivência das pessoas em sociedade.
A conversação que antes acontecia em situações privadas, tornou-se pública
dentro das redes sociais. Toda interação feita pelo Facebook fica registrada, e isso influencia no comportamento dos usuários. As decisões de usar o botão curtir são
percebidas como "forma de tomar parte da conversação sem precisar elaborar uma
resposta" (RECUERO, 2014), ou seja, o usuário passa a ter seu nome vinculado
àquela publicação, mas sem expor opinião em profundidade, o que é menos
arriscado do que escrever um comentário.
Se por um lado, um dos grandes valores de capital social encontrados no Facebook é aquele de proporcionar uma maior facilidade de manutenção e
8 No original, The positivity bias and prosocial deception on facebook.
20
acesso as [SIC] conexões sociais (Ellison et al., 2007); por outro, parece ser justamente a busca por esse valor que, ao fazer com que práticas associativas emerjam cada vez mais, cria contextos conflitantes e tensos de interação que parecem impactar a decisão de participar ou não de forma mais ativa da conversação (RECUERO, 2014: 117).
O uso do botão compartilhar foi justificado como uma maneira de disseminar
algo interessante para a rede de amigos, e olhando pelo lado social é uma maneira
de reforçar a reputação de quem compartilhou inicialmente. Mas o comentário é que
envolve um nível maior de engajamento com o assunto ou discussão, e ao mesmo
tempo um risco para a reputação social, pois além de ser visível para o autor da
postagem inicial, é visível para toda a rede de amigos (amigos, e os amigos dos
amigos) que o Facebook proporciona pela hiperconexão9:
Backstrom et al. (2012), recentemente, publicaram um trabalho onde explicitam que a distância social entre quaisquer dois perfis no Facebook é bem menor do que se esperava, em torno de 3,74 (o que significa que duas pessoas estão conectadas, em média, por outras duas pessoas no Facebook) (RECUERO, 2014: 117).
Os artigos selecionados foram importantes para introduzir o assunto Internet
do ponto de vista da análise de credibilidade e entender um pouco melhor como as
pessoas utilizam os recursos do Facebook do ponto de vista comportamental
perante as expectativas da sua rede de contatos.
De maneira geral, os usuários tendem a ser mais gentis uns com os outros
nas redes sociais, levando em consideração que outros colegas estão assistindo
àquela interação pública. O botão compartilhar pode ser considerada a principal
maneira de dividir com os amigos uma notícia de interesse geral, reforçando a
reputação de quem compartilhou primeiro. Sobre curtidas e comentários, elas
favorecem os usuários que gostam de ter o nome vinculado à uma publicação, como
uma maneira de expor sua opinião sobre o assunto sem muito esforço.
2.2 Verdade e mentira
Os conceitos de verdade e mentira como aparecem na cultura ocidental serão
apoiados na filosofia de Nietzsche como forma de exploração nessa segunda parte.
9 Termo usado para alta conectividade, que no universo da internet tem relação com link/hyperlink.
21
Para nós é muito natural que estas concepções já estejam estabelecidas,
então exploraremos alguns autores que buscam em seus estudos diferentes
maneiras de desconstruir as ideias que conhecemos para enxergá-las de outras
perspectivas. E também, para dar apoio na interpretação do ponto de vista
cultural/filosófico trabalharemos conceitos da semiótica. Uma maneira cronológica
de introduzir o tema seria por meio da linguagem, assunto que voltará a ser citado
em outros momentos deste texto.
No capítulo “O que significa a estrutura aristotélica da linguagem?” da
publicação Ideograma de Haroldo de Campos (2000), o autor fala sobre a relação entre a estrutura aristotélica da linguagem e o pensamento humano, já que a
linguagem foi inventada pelo próprio homem, e por intermédio dela foi definido um
nome para cada coisa, sendo assim o que não tem um nome fica fora do padrão.
Algo não ter um nome nos traz uma sensação de desconhecido, mesmo sendo
conhecido, pois os indivíduos são inclinadas a se ajustar ao nome e não às próprias
coisas.
Um sistema de signos convencionais não constitui, entretanto, uma "linguagem" enquanto não é interiorizado (como dizem os psiquiatras) pelos membros de um grupo social. Por conseguinte, uma língua não é apenas um sistema de signos: é também todo o repertório de reações semânticas produzidas pelos signos nos que falam e compreendem a língua (CAMPOS, 2000: 230).
Os valores (verdade e mentira) que serão tratados aqui foram sendo
determinados conforme o crescimento da relação da sociedade e da linguagem.
Pela ótica de Nietzsche, o valor do verdadeiro na linguagem foi dado para
torná-la superior e assim, valorizá-la para que fosse respeitada. Essa superioridade
é reforçada no capítulo Postulados da linguística, em Mil Platôs: “ A linguagem não é a vida, ela dá ordens a (SIC) vida” (DELEUZE & GUATARI, 1995: 12).
Nietzsche diz que a linguagem é "produto do conhecimento e do sentido da
verdade" (NIETZSCHE, 2007: 30) e trouxe a reflexão de que "então a linguagem é a
expressão adequada de todas as verdades?" (NIETZSCHE, 2007: 30), que nos faz
pensar de diversos ângulos sobre como não é a linguagem que determina a
realidade, e sim a realidade do contexto.
A fim de esclarecer melhor as bases desses conceitos, percorramos o artigo
"Sobre o conceito de verdade em Nietzsche" de perspectiva filosófica, que sintetiza
22
a criação da verdade como algo necessário, algo que precisamos dar valor para que
seja real. Mas por outro ponto de vista, não necessariamente a verdade representa o
correto, pois às vezes acreditamos no que queremos e não nos fatos a nossa frente.
Ela serve como um fio condutor para a ilusão e “a necessidade de acreditar em algo
inventado”.
Se a verdade é criada, então ela é uma espécie de erro. Uma verdade é apenas um erro mais aceito pela moral, talvez por ser um erro necessário. [...]. É impossível viver sem representações valorativas e lógicas, neste sentido, a vontade de verdade, isto é, a busca e valorização da verdade acima da ilusão, seria uma forma de autopreservação e possuiria uma função reguladora. [...]. Contudo, a transformação da invenção (erro) em verdade reside na necessidade de se acreditar em algo inventado como se fosse uma verdade absoluta, somente assim se poderia acreditar em um erro. Esta necessidade é uma necessidade vital (CAMARGO, 2008: 96).
Partindo da perspectiva da semiótica Peirceana, os termos não
necessariamente significam o que esperamos. A citação abaixo da obra O método
anticartesiano de C. S. Peirce da Lucia Santaella introduz a questão, de forma que, inclusive, reflete bastante o conceito de pós-verdade que será apresentado no
próximo trecho.
A simples introdução de termos tais como "verdade" ou "conhecimento objetivo" não nos fornece, de saída, e por passe de mágica, critérios objetivos para julgar quais crenças são verdadeiras e quais são falsas. Nosso estado de alerta em relação à falsidade só emerge quando descobrimos que aquilo que era tomado como verdadeiro entra em conflito com uma nova crença (SANTAELLA, 2004: 66).
Como forma de complementar essa perspectiva, trouxemos o artigo "Potência
do falso: o jogo entre verdade e falsidade" (CARVALHO, 2012). O texto também
trata do tema com base na visão de Nietzsche, além de incluir o ponto de vista de
Deleuze e Derrida. É um estudo sobre os conceitos, bastante complexos, de como
viver em sociedade nos desvirtua a nem sempre falar a verdade, pois temos muitas
obrigações sociais que nos favorecem a mentir, como citado a seguir “O instinto de
verdade é um instinto de sobrevivência. Para que a organização social possa
continuar, surge uma obrigação moral em relação à verdade” (CARVALHO, 2012:
157).
Para Nietzsche a formação dos conceitos na linguagem acontece quando o
23
não-igual se iguala: mesmo que as coisas após conceituadas (nomeadas) não sejam
exatamente umas iguais às outras, o conceito da palavra determina que aquele
objeto remete àquela palavra.
Falando ainda sobre verdade e mentira, é entendido que entre estes
conceitos a linha é tênue e quase que indiscernível, e essa linha chega até a ser
comparada ao erro na citação: “Escolhemos esquecer que, em nossa busca pela
verdade, o recurso mais próximo tem sido a mentira, pois, se a verdade foi criada
por nós mesmos, ela pode ser mais um erro como tantos outros” (CARVALHO,
2012: 157).
No artigo "Potências do Falso: o jogo entre a verdade e a falsidade", o autor
recorre à Machado para explicar que este considera "uma obrigação moral mentir
segundo uma convenção estabelecida" (Carvalho, 2012), que se relaciona com a
pesquisa citada no trecho anterior sobre internet e Facebook, em que os usuários afirmam ter preocupação com a reação dos colegas sobre as mensagens
publicadas, e isso os leva a preferir publicar mensagens tendenciosamente positivas
uns sobre os outros.
Repensar o assunto pelas ideias discutidas por Deleuze no livro Nietzsche e a Filosofia, no capítulo "Conceito de verdade", reforça que tais concepções não se sustentam sem as atitudes do homem. Ele introduz o assunto supondo que o que
separa o homem da verdade são seus interesses e sua estupidez, que o homem
nem sempre busca a verdade.
A citação abaixo, além de reforçar isso, mostra como esses conceitos já
foram questionados desde que foram criados:
Nietzsche aceita o problema no terreno em que é colocado: não se trata para ele de pôr em dúvida a vontade de verdade, não se trata de lembrar uma vez mais que os homens de fato não amam a verdade, Nietzsche pergunta o que significa a verdade como conceito, que forças e que vontade qualificadas esse conceito pressupõe de direito. Nietzsche não critica as falsas pretensões à verdade, mas a própria verdade e a verdade como ideal (DELEUZE, 1976: 45).
Deleuze afirma que "o conceito de verdade qualifica o mundo como verídico"
(DELEUZE, 1976: 45), e traz a hipótese de o homem não querer se deixar enganar e
isso tornar mais fácil encobrir seus próprios erros:
24
O homem que não quer enganar quer um mundo melhor e uma vida melhor; todas as suas razões para não enganar são razões morais. E sempre esbarramos com o virtudismo10 daquele que quer o verdadeiro; uma das suas ocupações favoritas é a distribuição dos erros, ele torna responsável, nega a inocência, acusa e julga a vida, denuncia a aparência (DELEUZE, 1976: 46).
Dando continuidade a essa discussão, em "Sobre verdade e mentira no
sentido extra-moral", Nietzsche traz o tema da verdade e da mentira analisando a
capacidade do homem de enganar os demais, justamente mediante a linguagem,
pois segundo ele é "onde aparece pela primeira vez o contraste entre verdade e
mentira" (NIETZSCHE, 2007: 29). Nietzsche se aprofunda na interpretação da
linguagem como definidora da verdade:
Num sentido semelhantemente limitado, o homem também quer apenas a verdade. Ele quer as consequências agradáveis da verdade, que conservam a vida; frente ao puro conhecimento sem consequências ele é indiferente, frente às verdades possivelmente prejudiciais e destruidoras ele se indispõe com hostilidade, inclusive. E mais até: como ficam aquelas convenções da linguagem? São talvez produtos do conhecimento, do sentido da verdade: as designações e as coisas se recobrem? Então a linguagem é a expressão adequada de todas as realidades? (NIETZSCHE, 2007: 30).
Ao trazer para o texto uma perspectiva com base no pragmatismo, com
objetivo de complementar e não contrapor a visão tradicionalmente filosófica, vemos
novamente a perspectiva da semiótica Peirceana. Recorremos ao trecho relacionado
à mentira da teoria da semiótica de Umberto Eco, citada no livro Imagem (Lucia
Santaella e Winfried Nöth), onde eles sugerem que se algo não pode ser usado para
mentir, ele não consegue ser usado para dizer nada.
Um signo é tudo que pode ser tomado como substituto significante de algo mais. Esse algo mais não tem que necessariamente existir ou necessariamente estar em algum lugar no momento em que um signo o substitui. Assim, a semiótica é em princípio a disciplina que estuda tudo que pode ser utilizado com o objetivo de mentir. Se algo não pode ser usado para mentir, inversamente, não pode ser utilizado para dizer a verdade: não pode ser utilizado de fato, para dizer nada (SANTAELLA apud ECO, 1997: 196).
10 Acredita-se que esse termo foi adaptado pelo tradutor por não ter encontrado uma maneira de expressar na língua portuguesa o sentido da palavra na língua original do texto.
25
A citação acima promove uma reflexão sobre a falta de capacidade das
imagens dizerem verdades ou mentiras, pois na maioria dos casos seu potencial
semiótico pode ser parte de algo verdadeiro ou falso, mas por si só, na maioria das
vezes, não consegue se definir, e esse pode ser justamente o problema atual da
pós-verdade. E ainda,
Quando muito arraigada devido à repetição ininterrupta do mesmo, a unilateralidade de uma visão acaba por gerar crenças fixas, amortecidas por hábitos inflexíveis de pensamento, que dão abrigo à formação de seitas cegas a tudo aquilo que está fora da bolha circundante (SANTAELLA, 2018: 15).
Neste contexto, faz sentido retomar o conceito de ansiedade de informação,
conforme a definição de Wurman (1991) apresentada na introdução desta pesquisa.
No mesmo livro, o autor amplia a definição de maneira que vamos reproduzir, para
aproximar o assunto anterior desta discussão sobre os conceitos filosóficos de
verdade, como resultado da diferença entre o que achamos que deveríamos saber e
o que de fato sabemos.
Estamos lidando com essa ansiedade de informação, que está
extremamente presente em tudo o que fazemos, e nos questionamos se é por esse
motivo que lemos textos muitas vezes por entre imagens? Principalmente no
Facebook, onde as imagens ajudam tanto a impulsionar um conteúdo. Wurman diz que não precisamos saber tudo, e sim onde encontrar as
informações, mas vivendo a era da pós-verdade como podemos fazer isso? Quais
são as fontes confiáveis? Como lidar com critérios de confiabilidade em situações de
edição compartilhada, como em enciclopédias online e outros tipo de site em que o
crivo editorial é substituído pelo zelo comunitário? Essas discussões serão
desenvolvidas nos próximos capítulos.
Para reforçar o quanto a teoria acima se encaixa no nosso momento atual,
cujo excesso de informação nos leva à ansiedade, e os conceitos de viver em rede
social e/ou sociedade nos fazem mentir socialmente, trazemos uma citação do livro
A assinatura das coisas (1992). No capítulo "Signo de todas as coisas", Santaella
refere-se novamente à semiótica de Peirce, em relação à quantidade de informação
disponível e o quanto nós, como espectadores e humanos, conseguimos absorver e
assimilar.
26
O aspecto que o mundo apresenta sob uma inspeção semiótica parece estar caminhando numa direção que confirma a doutrina peirceana do sinequismo. Essa doutrina propõe que "assim como os signos e as ideias tendem a se espalhar continuamente (CP 6.104), a mente também se espalha continuamente, e todas as mentes se misturam umas às outras" (CP 1.170) (SANTAELLA, 1992: 46).
Numa tentativa de concluir esse trecho, chegamos ao impasse de que o que
é verdade ou mentira acaba muitas vezes sendo definido pelas ideologias pessoais
do homem, o que não é necessariamente algo problemático, manipulador, ou até
mesmo consciente, mas a conclusão de que nosso pensamento acontece dentro
dos limites possíveis impostos por nós ou pela sociedade, em relação a cultura,
experiências e educação. A maneira com que percebemos os fatos é que nos levam a estas conclusões.
Mas como a complexidade dos conceitos nos traz infinitas variáveis, não
podemos resumir somente a isso, pois a visão acima não se encaixa em toda e
qualquer situação. Em determinados casos em que existe um fato
comprovadamente incontornável, o cenário pode ser diferente. Por exemplo, por
mais que o sentido da morte mude em diferentes culturas, que algumas pessoas
creiam em vida depois da morte e outras a neguem, resta o fato de que em certo
momento, se um organismo vivo tem as funções vitais interrompidas está
comprovada a morte.
2.3 Pós-verdade
Para abordar o assunto pós-verdade a obra A era da pós-verdade: desonestidade e decepção na vida contemporânea11 do Ralph Keyes (2011), foi
o primeiro livro a ser publicado sobre o assunto, e até o presente momento, um dos
únicos.
Mas antes, é relevante trazer uma citação de Santaella (2018) sobre o termo,
onde,
[...] o prefixo "pós" não mais significa apenas "depois de um evento ou situação específica" como, por exemplo, na expressão "pós-guerra", mas também implica "um tempo em que um conceito se tornou irrelevante ou
11 Traduzido do original "The Post-truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life".
27
sem importância", como foi o caso de pós-nacional, em 1945 (ibid) (SANTAELLA, 2018: 49).
Keyes introduz o assunto trazendo a reflexão de que a mentira cresce
conforme os humanos crescem também, e que de certa forma todos nós mentimos
em diferentes níveis ao longo de nossas vidas.
O escritor chama a atenção para uma observação à nossa linguagem
coloquial, onde são encontradas muitas expressões que abordam a força da
mentira, como "pra te falar a verdade" ou "eu não vou mentir pra você", o que
complementa a ideia apresentada no trecho anterior sobre a linguagem ter poderes
sobre a verdade.
Estas expressões que reforçam a mentira na nossa língua é um dos
indicadores trazidos no livro sobre a suspeita de que estamos mentindo cada vez
mais, e a seguinte dúvida é levantada: era mais difícil contar mentiras antigamente,
ou sofriam-se mais consequências?
Apresentando um contraponto, a sociedade moderna também acumulou
conhecimentos que desmistificam grandes equívocos do passado, por exemplo a
suposição de que a terra era plana e ocupava o centro do Universo. Deste ponto de
vista, hoje sumiram algumas das grandes "mentiras" culturais, que provavelmente
perduraram apesar dos maiores esforços e melhores intenções empreendidos para
entender o mundo. A produção de conhecimento contemporâneo começou a ficar
mais atenta aos limites da ciência. Qual seria então a problemática atual da pós-
verdade? Seria o excesso ou a falta de informação?
Keyes diz que não foi encontrada nenhuma comprovação científica disso,
mas que ¾ dos participantes de uma pesquisa feita pelo Pew Research Center concordam que as pessoas não são mais tão honestas como elas costumavam ser
antigamente. Levando em conta que o volume de informação devido à internet é
muito maior do que antigamente, poderíamos considerar que proporcionalmente a
quantidade de mentiras também é maior.
São apresentados vários exemplos de situações relacionadas à vida em
comunidade e como esta pode favorecer para que as pessoas sejam honestas. Isto
ocorre por medo de como o restante da comunidade pode reagir à descoberta de
uma mentira, visto que existe uma tendência comportamental a mentir mais para
quem temos menos contato. Tal costume foi observado pela pesquisa realizada
pela consultoria Ideia Big Data, encomendada pela Revista Veja (Edição 2565 -
28
17/01/2018), mostrando que 83% dos entrevistados temem compartilhar notícias
falsas em suas redes sociais.
Todavia um outro ponto trazido por Keyes (2004) faz um paralelo com o
hábito nas redes sociais, onde ele diz que nossa essência como seres humanos é
predisposta a acreditar em tudo que nos dizem, uma vez que, se não fosse assim, a
sociedade entraria em colapso. E de fato, dando continuidade aos dados da
pesquisa da Ideia Big Data, 63% dos participantes afirmam não se preocupar em
checar a veracidade dos fatos ainda que a maioria tenha receio de compartilhar uma
notícia falsa.
Esse tipo de comportamento pode ser comparado a um fenômeno psicológico
chamado "viés da confirmação", explicado no mesmo artigo da Revista Veja por
Shyam Sundar, diretor do laboratório de pesquisa em mídias sociais da
Universidade do Estado da Pensilvânia:
Temos uma tendência inata a acreditar em informações que confirmam ou correspondem melhor às nossas crenças e concepções. Da mesma forma, temos uma propensão a descartar tudo o que contradiz nossa visão de mundo. Isso acontece porque buscamos satisfazer determinadas necessidades perceptivas em vez de avaliar objetivamente a veracidade das informações (Sundar, 2018).
Keyes indica que uma vez que essa credibilidade seja perdida torna-se muito
difícil recuperá-la, pois a nossa sociedade não é muito tolerante em relação a isso.
Entretanto essa percepção não parece se encaixar ao cenário político atual do
Brasil, pois mesmo muitos políticos estarem envolvidos em mentiras comprovadas
seus eleitores parecem continuar leais. Poderia esse conceito ser inserido em outras
sociedades ou até mesmo em outros contextos?
É trazida então uma citação de Popper que critica alguns princípios da
sociedade de uma maneira até cômica, dizendo que o homem se apropria de tudo
que ele mesmo inventou.
O momento em que a linguagem se tornou humana teve uma relação muito próxima ao momento em que o homem inventou a história, um mito para justificar um erro que ele cometeu (KEYES apud POPPER, 2004: cap. 2 pág. 4 de 27).12
12 Tradução do original: "the moment when language became human was very closely related to the moment when a men invented a story, a myth in order to excuse a mistake he had made".
29
A partir daí Keyes passa pelos mais variados temas do cotidiano onde podem
ser enxergadas possíveis inverdades, como a importância de viver em coletividade e
como esta pode estabelecer uma relação sincera entre homens, pois quando a
relação é mais íntima passa-se a ser mais difícil mentir sem gerar desconfianças. É
vista também a desonestidade situacional onde o indivíduo passa a tentar tirar uma
vantagem em determinados tipos de situações, e novamente, somente onde não é
muito conhecido ou não exista um histórico comportamental a seu respeito. Em sua
obra, o autor apresenta os principais motivos para contar mentiras, sendo os mais
citados: insegurança, prazer de enganar, diversão, aventura e proteção. E aponta
também uma percepção de que as mulheres mentem mais em situações sociais e
os homens mais em benefício próprio. E que o principal motivo para mentir em
contextos de relacionamentos amorosos é o sexo.
Mas de todos os pontos de vista de Keyes, o mais relevante para esta
pesquisa é o que envolve a citação: “Dilemas que uma vez foram avaliados em
termos morais, agora são avaliados terapeuticamente. Questões ética se tornaram
de saúde emocional (KEYES, 2004: cap. 8 pág. 2 de 31).13
É discutido que mentir é sintomático em diversos distúrbios emocionais, e que
nestes casos a desonestidade é tratada como parte de alguma patologia mais
ampla, e traz a conclusão de John Forrester, autor de vários livros de psicanálise e
historiador da Universidade de Cambridge: "O analista é profissionalmente
desinteressado na diferença entre verdade e mentira" (KEYES apud FORRESTER,
2004: cap. 8 pág. 3 de 31)14.
São descritas percepções, como pessoas não gostarem de ser julgadas como
mentirosas e por isso preferirem dizer “eu não fui honesto” do que falar “eu menti".
Keyes conclui que perante a sociedade a palavra "mentira" tem mais peso; e
baseado nisso traz vários outros exemplos destes diferentes pesos das palavras,
sugerindo que por isso pode ter surgido a necessidade de criar outras palavras para
nos referirmos aos diversos tipos de inverdade com intensidades diferentes.
Diante do problema da representação discutido antes, a ideia de que há um
"fato real" submetido ao crivo da honestidade não se sustenta, pois o conceito de
representação leva ao problema da legitimidade do ponto-de-vista, e em casos 13 Tradução livre, do original: "Dilemmas that were once assessed on moral grounds now get evaluated therapeutically. Ethical issues become ones of emotional health." 14 Tradução livre, do original: "The analyst is professionally disinterested in the difference between truth and lies."
30
limites, quando os interesses em disputa são irreconciliáveis, onde fica o limite do
que é um fato real?
Tentar definir quais são os critérios utilizados para definir a necessidade de
contar uma mentira em determinada situação é algo praticamente impossível, dado
que os seres humanos são diferentes uns dos outros, e mesmo existindo uma ética
por trás da sociedade, cada um tem uma relação tão específica com ela, que não se
chega a uma resposta. Mas tentando considerar situações limite: por exemplo, num
caso de alguém que negue ou oculte o fato de que cometeu um crime político.
Talvez seus motivos tenham sido legítimos, talvez surjam duas leituras do
acontecimento que o façam ser herói ou criminoso conforme o ponto-de-vista. Mas
isto não exclui a existência do crime propriamente dito.
Concluir que uma atividade está errada não significa que não nos envolvemos nela. Nós somos humanos. Há momentos em que simplesmente não conseguimos lidar com as consequências de dizer a verdade (KEYES, 2004: cap. 16 pág. 5 de 28)15.
Santaella reforça isso discutindo os conceitos de dúvida e de crença, ao dizer
que "a investigação é realizada por homens vivos, de carne e osso, em interação
constante com o mundo real" (SANTAELLA, 2004: 67). A complexidade dos nossos
pensamentos têm um peso grande neste momento, pois toda a carga emocional e
educacional que acumulamos ao longo da vida nos faz perceber de maneiras
diferentes a situações parecidas.
Na visão de Keyes, se ainda existe algum herói contra a falta de honestidade,
é a mídia impressa. Ele indica o jornal como o meio de comunicação que ainda tem
mais credibilidade para a população, contudo, pelo livro ter sido escrito em 2004 isso
é um tanto justificável, pois até então o principal meio de acesso à internet ainda era
por computadores fixos, e é perceptível que com a chegada dos dispositivos
portáteis como notebooks, e posteriormente com os smartphones e tablets, a visão e
o papel destes dois meios foi se transformando.
Para compor o pensamento, ele diz que a falta de honestidade está mais
presente do que nunca em nossa sociedade, e a internet dá mais força para este
comportamento.
15 Tradução livre, do original: "Concluding that an activity is wrong doesn't mean we won't engage in it. We are human. There are times when we just can't deal with the consequences of telling the truth."
31
O escritor reforça que a mentira sempre existiu em todas as sociedades, por
todo o tempo, a questão é quanto a sociedade ainda encoraja isso. E conclui que
nada te faz mais querer dizer a verdade do que estar conectado a pessoas que
querem a mesma coisa de você, pessoas essas que você viu ontem e vai ver
amanhã. Dizer a verdade faz com que os laços humanos se fortaleçam cada vez
mais. Outro ponto que vai contra os acontecimentos que observamos atualmente
nas redes sociais, como é reforçado na citação a seguir: "A capacidade de ouvir a
verdade requer tanto esforço quanto a capacidade de dizer a verdade. Ambas são
adquiridas" (KEYES 2004, cap. 16 pág. 27 de 28).16
Podemos citar ainda outra linha deste mesmo assunto o livro de Pollyana
Ferrari (2018), que se aprofunda nas bolhas da pós-verdade a partir do período em
que os blogs e as redes sociais colaboraram com a proliferação de notícias falsas
pelo barateamento de produção de distribuição. Na citação abaixo ela tenta definir
as possíveis combinações para caracterização de uma notícia falsa:
[...] as notícias falsas são, na verdade, uma variedade de desinformações que pode variar entre a correta utilização de dados manipulados, a utilização errada de dados verdadeiros, a incorreta utilização de dados falsos e outras combinações possíveis (FERRARI, 2018: 44).
Já na tentativa de definir o que seriam as bolhas neste contexto, no sentido
figurado, a bolha é uma área de convivência que proporciona o isolamento de quem
se encontra dentro da bolha para quem está do lado de fora, podendo ser
interpretado como seres em realidades adversas. Aqui apresento um trecho de uma
citação da Lucia Santaella que compõe o prefácio do livro, interessantíssima para
detalhar melhor tais comportamentos.
Quando filtra para fora, as pessoas, dentro da bolha, decidem o que querem enviar para os outros fora da bolha. O fluxo informacional para dentro da bolha baseia-se em requisições e necessidade de informação. Bolhas podem ser criadas quanto quer que sejam necessárias para uma comunidade ou para uso global (SANTAELLA in FERRARI, 2018: 19).
A autora trata, ao longo do livro, de pesquisar e esclarecer acerca das
notícias falsas e que estas não são fruto da tecnologia, já que existem relatos da
16 Tradução livre do original: "A capacity to hear the truth is at least as demanding as a capacity to tell the truth. Both are acquired skill."
32
Roma antiga que envolvem registros de notícias comprovadamente falsas. A internet
só ajuda a disseminar com a maior velocidade o que já vivenciamos até então.
É importante esclarecer que essa pesquisa não se aprofunda no campo
jornalístico e não instrui a cerca de identificar ou evitar a proliferação de notícias
falsas (ou como tem sido chamadas popularmente, as fake news) visto que além da
Prof. Dra. Pollyana Ferrari ter seguido esse rumo em sua pesquisa e ter uma vasta
experiência na área acadêmica e jornalística, nos intriga mais tentar interpretar por
qual razão as pessoas fecham os olhos para os fatos e se inclinam a acreditar e
colaborar com a disseminação de determinadas notícias (a exata aplicação do
conceito da pós-verdade no comportamento diário). Esse comportamento acaba por
seguir o mesmo excerto acima sobre as bolhas, pois tal hábito não surgiu com a
tecnologia, ele só se intensificou por hoje termos acesso a muito mais informação,
mas é claro que o fenômeno das bolhas tem colaborado intensamente para isso.
Para finalizar este trecho, exponho uma citação da nova obra da Lucia
Santaella "A pós-verdade é verdadeira ou falsa?" sobre a mudança na cultura da
informação no universo digital, que sintetiza bem a discussão até esse momento:
Isso não significa negar que estamos vivendo em bolhas filtradas, nas quais impera a homofilia. Esta leva à aceitação automática apenas daquilo que funciona como espelho de nós mesmos o que produz a impressão equivocada, tida como legítima, de que nossas ideias são as corretas e aquelas que predominam. Embora haja uma tendência do ser humano para buscar e escolher aquilo que mais sintoniza com suas crenças, desde a era da cultura de massas, cujo império hegemônico dominou até os anos 1970, passamos a sofrer os impactos de uma mudança de escala no acesso à informação (SANTAELLA, 2018: 22).
A seguir serão exprimidos os conceitos da semiótica Peirceana para partir a
um entendimento mais profundo acerca dos avanços tecnológicos e de como a
percepção humana acabaram por influenciar na maneira como nos comunicamos.
33
3 UMA INTRODUÇÃO À SEMIÓTICA PEIRCEANA
Para compreendermos como a percepção se constrói ao se observar uma
notícia nas redes sociais, é necessária uma introdução, mesmo que resumida, das
ideias de Peirce, que, além de se dedicar a consolidar uma filosofia que é um
método científico, foi escolhido por ter uma visão epistemológica da percepção que
encontra-se alinhada com o que é esperado para a pesquisa em questão, com a
intenção de dar uniformidade ao capítulo.
A Teoria Semiótica trata do estudo dos signos. Mas se fosse possível explicar
isso em poucas palavras, Lúcia Santaella não teria dedicado sua vida de pesquisa a
decifrar o pensamento de Charles Sanders Peirce. Para ele, segundo Santaella,
A semiótica é a ciência que tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de significação e de sentido (SANTAELLA, 1983: 13).
Aprofundando um pouco mais este assunto, destacamos outra citação que
sintetiza melhor o principal fundamento da semiótica.
A semiótica é, assim, a doutrina de todos os tipos possíveis de signos sobre a qual se funda a teoria dos métodos de investigação utilizados por uma inteligência científica. Dela decorre o pragmatismo, ou método para se determinar o significado dos conceitos intelectuais, e sobre ela está alicerçada a metafísica ou teoria da realidade, que não pode se expressar a não ser através da mediação dos signos (SANTAELLA, 1998: 34).
Até certo momento desse projeto a semiótica não pareceu ser uma escolha
óbvia como fio condutor de algumas reflexões, mas acabou por contribuir como um
novo ponto de vista de como se dá essa percepção.
A questão da percepção sempre despertou enorme interesse. Isso tem se intensificado desde o século XIX, com as alterações que o mundo moderno veio, cada vez mais, imprimindo sobre as faculdades perceptivas e cognitivas humanas o que não escapou à atenção de filósofos, antropólogos, teóricos da cultura, psicólogos, etc. Coadjuvantes fundamentais dessas alterações têm sido as mídias tecno-visuais, tecno-sonoras, corpo-técnicas, desde a fotografia e o gramofone até as complexas urdiduras dos fluxos das linguagens hipermidiáticas que povoam as redes digitais fixas e móveis de comunicação e que costumo chamar de linguagens líquidas (Santaella, 2007) (SANTAELLA, 2012: 1).
34
A trama é muito densa e, além de muita dedicação ao assunto, também é
preciso tempo para começar a absorver os principais conceitos da Semiótica
Peirceana e para que as ideias comecem a fazer sentido em nossos pensamentos.
De fato, esta introdução busca trazer elementos para que a compressão dos tópicos
que envolvem a semiótica possam ser entendidos e também para que possamos
justificar algumas escolhas e a importância delas para esta pesquisa, sem a
necessidade de se aprofundar extensivamente neste assunto.
O pensamento científico, filosófico, lógico e semiótico de Peirce é tão vasto, multifacetado, os assuntos que aborda são tão heteróclitos e interconectados que uma apresentação breve desse pensamento, mantendo alguma fidelidade às suas propostas é tarefa quase impossível (SANTAELLA, 2001: 30).
Consequentemente, este capítulo foi estruturado com objetivo de
contextualizar o leitor sobre as ciências normativas, sendo a base necessária para
se chegar nos fundamentos da semiótica, para sequencialmente introduzir os
conceitos da tríade de Peirce e assim avançar para a teoria da percepção. Por fim,
no capítulo seguinte abordar a percepção semiótica relacionando-a ao conceito de
pós-verdade.
3.1 Ciências normativas
A arquitetura do pensamento de Peirce é estruturada de acordo com o
esquema a seguir onde mostra que o pensamento começa na Matemática, em
seguida passa pela Filosofia, que por sua vez, tem como um de seus primeiros fundamentos a Fenomenologia que é tida como a base de tudo, e este esquema
termina nas Ciências Especiais. Para representar este esquema, foi incluído no
apêndice A um quadro de representação da Lucia Santaella.
Portanto, comecemos pela Filosofia que é "uma quase ciência que tem por
função fornecer o fundamento observacional para o restante das disciplinas
filosóficas" (SANTAELLA, 2001: 35).
Para Peirce, a observação dos fenômenos deve-se munir de três faculdades
(categorias fenomenológicas). A primeiridade é tudo que está presente em nossa
consciência (mente interpretante), num determinado instante. É um fenômeno
momentâneo que não pode ser capturado, pois quando falamos dele ou sobre ele,
35
ele já passou. Podemos fazer referência ao presente, no entanto, não podemos
capturá-lo. Quando pensamos sobre o presente, já estamos em um outro momento.
A primeiridade é um sentimento de qualidade, é o que é livre, é o acaso.
Já a secundidade se encontra em um mundo real, reativo, em um mundo
sensual, independente do pensamento que se caracteriza pela ação e reação. Os
fatos são externos a nós e os objetos são coisas reais (mesmo um sentimento como
a saudade). O fato de estarmos vivos implica que nossa consciência reage às coisas
do mundo. Esta reação sempre está associada à uma ação. Existir é estar numa
relação; é resistir; e reagir; é ocupar um tempo e um espaço determinado; é
confrontar-se com outros corpos.
A terceiridade é uma lei, uma regra que aproxima um primeiro (objeto) de um
segundo (o signo que o representa) numa síntese intelectual que corresponde a um
pensamento (interpretante). Assim, a semiótica é baseada em uma tríade, que pode
ser analisada pelas categorias fenomenológicas do pensamento elaborado pelo
método semiótico proposto por Peirce.
A partir da definição das categorias fenomenológicas, observemos agora as
ciências normativas que "são assim chamadas pois estão voltadas para a
compreensão dos fins, das normas e ideais que guiam o sentimento, a conduta e o
pensamento humano" (SANTAELLA, 2001: 36).
Santaella explica que as ciências normativas não estudam os fenômenos em
si, mas sim como nós humanos lidamos, interpretamos e agimos sobre eles. Dentro
das ciências normativas existem três áreas baseadas nas categorias
fenomenológicas que iremos detalhar, de acordo com a visão de Peirce, sendo elas
a estética, a ética e a lógica ou semiótica.
A estética para Peirce, não é somente a representação ideológica do belo,
mas sim o estado das coisas dignas de nossa admiração. Santaella detalha como
"São metas ou ideais que descobrimos porque nos sentimos atraídos por eles,
empenhando-nos na sua realização concreta" (SANTAELLA, 2001: 38), se
identificando com a primeiridade. Já a ética que costuma ser comumente definida
como "doutrina do bem e do mal", para Peirce também teve um significado mais
amplo, de acordo com a citação a seguir:
[...] o problema fundamental da ética está voltado para aquilo que estamos deliberadamente preparados para aceitar como afirmação do que queremos
36
fazer, do que temos em mira, do que buscamos. Para onde a força de nossa vontade deve ser dirigida? (SANTAELLA, 2001: 38).
O trecho citado acima tem relação com o conceito de verdade, e é
interessante imaginar atualmente quais influências vivemos em relação a direção
dessa força. O campo de alguns discursos, como a ciência e o jornalismo, como
consequência da tecnologia, estão mais desautorizados, tanto que a força de nossa
vontade passa a ser dirigida para conteúdos questionáveis sem que todavia
tenhamos necessariamente repertório para questioná-los. O quanto isso influencia
na nossa ética?
Para reproduzir o pensamento de Peirce sobre o significado da lógica ou
semiótica, é importante trazer antes a definição de signo como,
[...] qualquer coisa de qualquer espécie, podendo estar no universo físico ou no mundo do pensamento, que [...] leva alguma outra coisa, chamada signo interpretante, a ser determinada por uma relação correspondente com a mesma idéia, coisa existente ou lei (MS 774:4) (SANTAELLA, 2001: 39).
E sobre lógica ou semiótica,
Para Peirce a lógica tem dois sentidos: um mais estreito e o outro mais vasto. No primeiro, lógica é a ciência das condições necessárias para se atingir a verdade. No sentido mais amplo, é a ciência das leis necessárias do pensamento (SANTAELLA, 2001: 39).
A lógica, por ser uma ciência normativa, representa o meio "de relacionar os
fenômenos ao ser humano de acordo com um fim", e por ser a terceira das ciências
normativas ela entrega pensamentos consistentes com o ideal lógico e o cultivo da
razão.
Entretanto se a Lógica é "a ciência das condições necessárias para se atingir
a verdade", então o estudo da pós-verdade se encaixa nele, mas neste momento
parecemos estar vendo as leis necessárias do pensamento mudarem a ponto de
desafiar a lógica, gerando assim raciocínios em que o signo não representa de
forma justa seu objeto. É uma espécie de dissonância cognitiva que faz com que o
signo coincida com o objeto ao mesmo tempo que esta relação é "ilógica".
Entendemos nesse ponto que a lógica, nesse contexto, representa a
construção, ou conexão de uma relação do pensamento humano com os
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fenômenos. É definida pela segunda ciência sendo a ética (o que queremos fazer?)
tendo início na estética (pelo que somos atraídos?), sendo ela mesma a terceira (de
que maneira nós nos utilizamos disso?). Portanto,
As características mais profundas das ciências normativas só poderiam ser encontradas na estética. Por lidar com o ideal em si, cuja mera materialização adensa a atenção da ética e da lógica, a estética deveria conter o coração, a alma e o espírito das ciências normativas. Essa era a tarefa que sua estética filosófica e científica deveria se prestar a enfrentar. (SANTAELLA, 1994: 122).
A partir deste excerto começamos a compreender como a estética, ética e
lógica ou semiótica representam, respectivamente, a primeiridade, secundidade e
terceiridade. A semiótica tem seus próprios pilares essenciais que serão tratados a
seguir, sendo eles a gramática especulativa, lógica crítica e retórica especulativa,
conforme a classificação das ciências do pensamento de Peirce.
A gramática especulativa estuda a fisiologia dos signos numa tentativa de
definir o que constitui ou caracteriza um signo e suas classes. Ela está para a
semiótica como a fenomenologia está para a filosofia. A lógica crítica começa onde a
gramática especulativa termina, sendo a função dela "[...] investigar as condições de
verdade das inferências lógicas, [...]" (SANTAELLA, 2001: 41). E a partir disso foi
determinado que existem três tipos de argumentos que têm como base os três tipos
raciocínio: o abdutivo, o indutivo e o dedutivo, melhor explicados na citação a seguir.
A lógica crítica foi assim desenvolvida como uma teoria unificada da abdução, indução e dedução. Enquanto a abdução é o quase raciocínio, lampejo da descoberta, responsável pelo nascimento das hipóteses, a dedução extrai as consequências lógicas da hipótese e a indução testa sua validade (SANTAELLA, 2001: 41).
Os tipos de raciocínios descritos acima não são utilizados somente nas
ciências, mas também no nosso dia a dia, pois o pensamento humano segue esse
processo continuamente. E a retórica especulativa trata de entender a eficácia
comunicativa dos signos através da semiótica. A figura A da lista de ilustrações é uma representação gráfica das conexões enxergadas ao longo da pesquisa.
Em resumo, o signo é mediação, "é um primeiro que põe um segundo, seu
objeto, numa relação com um terceiro, seu interpretante" (1998: 37) e, assim, o
signo é classificado como primeiridade, o objeto como secundidade e o interpretante
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que corresponde à terceiridade nas categorias fenomenológicas. Chega, portanto, o
momento de se aprofundar um pouco mais nos conceitos de primeiridade,
secundidade e terceiridade.
3.2 Primeiridade, secundidade e terceiridade
Observar o quanto nossas vidas são cíclicas pode ser um bom exercício para
imaginar como é possível utilizar este conceito de ciclos; como sendo espaços de
tempo durante o qual ocorre e se completa um fenômeno ou fato; para interpretar do
que é composta as nossas vidas de alguma maneira. A semiótica de Peirce pode
representar esses ciclos, dado que ela pode ser empregada em qualquer contexto
para interpretações em diversos âmbitos, que são separados em três momentos.
A primeiridade é da ordem das coisas que têm qualidades evanescentes,
inefáveis, como que se escapassem entre os dedos ao mesmo tempo que produzem
sentido. Pode ser dado como um exemplo (com base na estética) algo que está na
nossa visão periférica, pois costumam existir muitos elementos a nossa volta mas
não reparamos em nenhum deles com individualidade e sim como um todo, pois é
algo passageiro aos nossos olhos. A secundidade (com base na ética) pode ser
entendida como o momento em que alguma das muitas coisas que foram vistas
naquela visão periférica nos chamaram atenção de alguma maneira, e então nos
demos conta de que aquilo foi percebido, algo que ação e reação, que quando for
interpretado e passará a ter sentido. Mas por qual razão aquilo chamou atenção? O
que nos fez dar o salto da primeiridade para a secundidade?
Essa transição da primeiridade para a secundidade é difícil de ser
identificada, pois a mudança é muito sutil. Após a tentativa de explicar por meio de
exemplos, vejamos uma citação de Santaella do livro O que é semiótica para conceituar com mais fundamento.
Primeiridade é a categoria que dá à experiência sua qualidade distintiva, seu frescor, originalidade irrepetível e liberdade. Não a liberdade em relação a uma determinação física, pois que isso seria uma proposição metafísica, mas liberdade em relação a qualquer elemento segundo. O azul de um certo céu, sem o céu, a mera e simples qualidade do azul, que poderia também estar nos seus olhos, só o azul, é aquilo que é tal qual é, independente de qualquer outra coisa. Mas, ao mesmo tempo, primeiridade é um componente do segundo. Secundidade é aquilo que dá à experiência seu caráter factual, de luta e confronto. Ação e reação ainda em nível de
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binariedade pura, sem o governo da camada mediadora da intencionalidade, razão ou lei (SANTAELLA, 1983: 50).
E o salto para terceiridade (com base na lógica) pode ser entendido como
quando absorvemos aquilo e utilizamos de alguma maneira, sempre construindo ou
atrelando algo, gerando assim um novo signo. É nela que reproduzimos nossas
próprias interpretações e percepções alcançadas na segunda categoria, ou
secundidade. Recorrendo à continuidade da citação anterior:
Finalmente, terceiridade, que aproxima um primeiro e um segundo numa síntese intelectual, corresponde à camada de inteligibilidade, ou pensamento em signos, através da qual representamos e interpretamos o mundo. Por exemplo: o azul, simples e positivo azul, é um primeiro. O céu, como lugar e tempo, aqui e agora, onde se encarna o azul, é um segundo. A síntese intelectual, elaboração cognitiva — o azul no céu, ou o azul do céu —, é um terceiro. Algumas das idéias de terceiridade que, devido à sua importância na filosofia e na ciência, requerem estudo atento são: generalidade, infinitude, continuidade, difusão, crescimento e inteligência. Mas a mais simples idéia de terceiridade é aquela de um signo ou representação. E esta diz respeito ao modo, o mais proeminente, com que nós, seres simbólicos, estamos postos no mundo (SANTAELLA, 1983: 51).
O intermédio que os signos possibilitam é essencial para distinguir o que
percebemos, o que assimilamos e o que de fato foi percebido no final. Essa citação
conclui bem o porquê dessa necessidade, na visão de Peirce:
Juntamente com a tese de que não há pensamento sem signos, ele também defendeu a tese de que não há pensamento, linguagem ou raciocínio que possa se desenvolver apenas por meio de símbolos, nem mesmo o raciocínio puramente matemático, dedutivo. Há sempre uma mistura de signos que é constitutiva de todo pensamento. Portanto, para compreender os raciocínios que são empregados nos métodos científicos é necessário estudar todos os tipos possíveis de signos, suas misturas e o modo com os signos crescem e evoluem. A semiótica Peirceana, concebida como lógica num sentido amplo, nasceu dessa necessidade (SANTAELLA, 2001: 32).
Aplicando os conceitos descritos acima de primeiridade, secundidade e
terceiridade e relacionando-os ao contexto das redes sociais, eles poderiam
ser/estar respectivamente ao navegarmos pela timeline até alguma notícia
específica nos despertar a secundidade, para então a consumirmos atingindo assim
a terceiridade, e este ciclo continuar se repetindo constantemente. Com suas
definições discutidas, é possível introduzir a teoria da percepção.
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3.3 A teoria Peirceana da percepção
Para abordar a percepção, recorremos à publicação A percepção: uma teoria semiótica, de Lúcia Santaella (1998), que continuará a introduzir a semiótica que estamos abordando, mas agora no viés da percepção.
As teorias da percepção surgiram de uma necessidade do homem de tentar
interpretar mais profundamente a maneira como nós humanos percebemos os fatos
e o mundo. De maneira geral, ela foi estudada com foco muito maior nos aspectos
visuais, o que parece ser uma escolha natural, sendo esse um dos sentidos cuja
capacidade de absorção e processamento é mais complexo e simultâneo. Contudo,
nesse processo de percepção é preciso considerar os demais sentidos, como
também todo um repertório cognitivo, elementos do nosso inconsciente além de
diversos outros fatores.
Quando se fala em percepção e processo cognitivo no contexto do pensamento peirceano, deve ser levado em conta que Peirce não era um racionalista. Para ele, a percepção envolve também elementos não cognitivos, assim como envolve elementos inconscientes (SANTAELLA, 1998: 16).
Santaella informa que muito antes do surgimento de outras teorias e
especulações, Peirce havia apresentado uma teoria da percepção capaz de
demonstrar a conexão entre a sensação e a mente, pois a teoria que será elucidada
no desenvolvimento desse capítulo consegue traduzir para o pensador a relação
entre a percepção e o conhecimento, formando assim uma relação legítima.
Entretanto se, esta relação acontecer de forma não consistente, pode-se dizer que
houve uma relação imprecisa e que a realidade pode vir a corrigir esta percepção.
Uma das características da semiótica Peirceana é esta semiose contínua, que
sempre ajusta e detalha o mundo existente, fazendo com que os signos cresçam
exponencialmente.
Questiona-se então se ao filtrar a relação entre signo e objeto essa percepção
pode se manter constante, proporcionando relações mais consistentes que se
aproximem da verdade.
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Com o surgimento de um novo campo de interesses na percepção, trazido pelo cognitivismo, o papel que a teoria peirceana pode desempenhar, nesse contexto, é insubstituível, visto que nenhuma teoria está tão preparada quanto a sua, em termos lógicos, ontológicos e epistemológicos, para enfrentar as questões relativas à percepção (SANTAELLA, 1998: 15).
Essa abordagem nos faz refletir sobre o quão significativo é o papel da
percepção no surgimento dos signos (e da linguagem) e a relação intrínsseca dessa
concepção com a semiótica. Iniciadas nossas reflexões a partir da teoria em si,
temos que:
A bem da verdade, a maior parte do processo perceptivo está irremediavelmente fora de nosso controle. Só alcançamos controle sobre a percepção no momento em que o percepto é interpretado. Apenas então é que se podem fazer experimentos perceptivos, só então a percepção pode ser testada, criticada, modificada, etc. O processo interno, entretanto, anterior ao interpretativo, não pode ser objeto de experimentação, visto que está sujeito a vicissitudes sobre as quais não temos domínio consciente (SANTAELLA, 1998: 17).
Essa abordagem sobre o controle da percepção será discutida a seguir, e no
próximo capítulo faremos um exercício de interpretação da percepção pelo uso das
redes sociais. Deste modo, retomando a percepção por Santaella, onde explicita que
Peirce conseguiu esclarecer alguns impasses identificados em sua teoria dos signos
mediante o aprofundamento na teoria da percepção, "especialmente concernentes
às ligações da linguagem com a realidade" (Santaella, 1998: 18).
As principais teorias da percepção existentes até hoje, são diádicas (mente-
exterior), mas Peirce conseguiu exibir a percepção de forma triádica, que é a base
de seu pensamento. O linguista determina três componentes para o processo
perceptivo. Para ele, por Santaella, "perceber é estar diante de algo, no ato de estar,
enquanto acontece" (1998: 19).
Embora triádica, no entanto, a percepção está, sem dúvida, sob a dominância da secundidade, ou segunda categoria fenomenológica, isto é, categoria da dualidade, do confronto, da ação e reação, da interação, surpresa, conflito, etc. Assim sendo, a percepção está para Peirce no mesmo paradigma da ação e da memória (SANTAELLA, 1998: 19).
De fato, a percepção está sob a dominância da secundidade, por ser a
categoria da ação e da reação, a categoria da interação no geral, e essa relação que
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entre a ação e a memória, será resgatada mais adiante. Já, o primeiro dos três
componentes descritos acima é o percepto, que nada mais é do que algo que existe
no mundo fora de nossa consciência. Um elemento ao ser notado primariamente
entre outras coisas, pode ser identificado como algo que conhecemos, ou
comparado a algo semelhante ao que previamente já tenhamos observado. Se tal
elemento é insistente em existir, a percepção passa a ser ajustada o tempo todo e
isso faz com que o consenso provisório que se tem sobre a verdade passa a ser a
todo tempo aprimorado. Conforme exista mais signos, há mais conhecimento sobre
o mundo, e mais condição de estabelecer relações consistentes entre signos e
objetos. Assim, observemos a definição de Peirce para o percepto, que para ele:
[...] o percepto é aquilo que tem realidade própria no mundo que está fora de nossa consciência e que é apreendido pela consciência no ato perceptivo (SANTAELLA, 1998: 54).
Santaella diz que o percepto age sobre nós, mas não apresenta uma razão
específica. Simplesmente nos damos conta de que ele está lá. Assim como a
primeiridade, ele é exterior a nós. As coisas que têm realidade própria no mundo
precisam ser representadas de forma justa, na melhor das capacidades das pessoas
naquele determinado momento da história. A verdade pode ser pensada como um
esforço constante de representar da melhor maneira possível a realidade própria
que as coisas têm no mundo, e a pós-verdade uma percepção diferente disso.