Modelos de análise epistêmica dos processos democráticos:
as funções dos grupos sociais e suas implicações em uma política deliberativa
Aline Isaia Splettstösser1
Resumo: Com o aporte da epistemologia social, esse trabalho pretende reforçar as funções e o
poder das instituições como base para a consolidação da democracia. Para tal análise,
ancoramo-nos na investigação de Anderson (2006) para apresentar as bases conceituais do
Teorema do Júri de Condorcet, do Teorema da ‘Diversidade supera a Aptidão’, e do Modelo
Experimentalista de Dewey como instrumentos que pretendem assegurar alguns dos critérios
constitutivos da democracia, a contar os recursos disponíveis aos processos decisórios dos
cidadãos, como o direito ao voto, a manutenção da liberdade de expressão em todos os meios
e formas de comunicação, bem como a garantia do espaço para a crítica e reavaliação das
políticas públicas. Tendo em vista que o modelo deliberativo de Dewey é o que melhor se
aproxima da potencialização de democracias complexas e que, portanto, valorizam interesses
assimétricos, confirmamos que sua fundamentação depende da salvaguarda da diversidade
epistêmica dos grupos sociais. E, para aprofundarmo-nos nesse tema, sublinhamos os
trabalhos de Westlund (2003), Richardson (1997) e Manin (1987) na defesa de práticas
coletivas que sustentam a cultura da interação, o respeito à diversidade e a autonomia de cada
cidadão diante das experiências do dissenso.
Palavras-chave: Condorcet – deliberação – democracia – Dewey – diversidade
1. Relação epistemologia social e intenções da democracia
O conceito de epistemologia social concebe articulações com a ciência política quando
é capaz de fornecer investigações acerca do debate sobre intencionalidade e agências
coletivas, bem como promover análises sobre os valores epistêmicos capazes de serem
produzidos e/ou compartilhados por um grupo social.
Há quatro pilares dos estudos da epistemologia social que podem ser diretamente
aplicados às pesquisas sobre processos democráticos, que tratam: (a) das opções a partir das
quais os agentes ou os sistemas epistêmicos fazem suas escolhas; (b) da caracterização dos
agentes e das organizações as quais esses sistemas estão condicionados; (c) das fontes de
evidência que sustentarão a promoção de suas escolhas doxásticas; (d) dos tipos de resultados
ou normas epistêmicas usadas nessas avaliações propostas2.
Dessa forma, convém esclarecer que nosso trabalho não se desdobra sobre as
mudanças ideológicas ou as descrições explanatórias, tão bem evidenciadas pela Sociologia,
acerca da legitimação dos processos democráticos. Nosso intuito é o de avaliar criticamente as
_______________
1 Doutoranda em Filosofia no Programa de Pós Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul. Bolsista Capes/Prosup/Proex. Contato: [email protected]. Fone (51) 3273 1359 2 Ao estabelecer os fundamentos da epistemologia social, Goldman inclui como escopo desse estudo as
investigações acerca da democracia. Para maior detalhamento sobre os parâmetros e os fundamentos da ES, vide
GOLDMAN, A. “A guide to social epistemology”. In: GOLDMAN, A. e WHITCOMB, D. Social Epistemology:
essencial readings. Oxford: Oxford University Press, 2011, pp. 11-37.
normatizações estabelecidas por modelos fundantes ou alternativos de democracia, levando
em consideração os perfis e os mecanismos de influências intelectuais propostos pela
sociedade em suas mais diversas organizações, e prevendo a autorização e o empoderamento
de arranjos sociais que sejam capazes de estabelecer critérios epistemológicos relevantes para
a consolidação de processos decisórios institucionais.
Para Anderson (2006), os objetivos da epistemologia da democracia são: exibir as
funções epistêmicas que constituem as instituições democráticas; revelar méritos e deméritos
epistêmicos dessas instituições; promover direções que ampliem seu poder epistêmico;
encontrar um modelo de democracia que demonstre a habilidade de tomar vantagem da
diversidade epistêmica dos indivíduos.
É importante ter em mente que a democracia é um tema aplicado, de esforço
necessariamente coletivo, de interesse atual, que permite verificar a aplicabilidade e, portanto,
o valor instrumental aclamado pela epistemologia social. Sem a devida organização das
instituições, recebendo e trocando informações, engajando-se e participando de debates e
ações de interesse público, a democracia não acontece. Por isso, interessa-nos investigar tanto
a formação de crenças e processos de aceitação, quanto as atitudes deliberativas dos vários
agentes epistêmicos em seus acordos por interesses comuns bem justificados.
Antes de entrarmos na apresentação propriamente dita dos três modelos de análise
epistêmica dos processos democráticos, devemos salientar quais são as principais normas
democráticas que devem fundamentar as relações institucionais. Entre elas, estão o discurso
livre, o movimento para discordâncias e debates, o feedback3, a função de responsabilização
para garantir direitos e deveres coletivos, a aprendizagem baseada a partir das experiências de
diversos agentes epistêmicos, os espaços de concretização de políticas públicas deliberativas.
Essas políticas públicas, por sua vez, devem ser capazes de legitimar e regulamentar ações de
interesse público comum. Entretanto, não desconsideramos que a legitimação da democracia,
ainda que represente um valor coletivo, não esteja ligado direta ou indiretamente as ações
individuais e de interesses particulares dos cidadãos4.
_______________
3 Optamos por manter o conceito de feedback utilizado por Anderson (2006) por acreditar que no contexto
democrático ele mereça uma definição que se sobreponha a uma tradução literal, que se refere a ‘comentários,
respostas ou opiniões’. Assim, pretendemos esboçá-lo como: ‘um processo experiencial que aglutina opiniões
testáveis, permite que se faça de reclamações a proposições, reconstruções e renovações de ações deliberativas’;
isto é, como ‘plataforma de retroalimentação de um processo de tomada de decisão ampla’. 4 Nesses casos, o papel do Estado passa a ser o de regulamentar e fiscalizar, através da legislação vigente, as
ações individuais que não venham a interferir na autonomia democrática coletiva. Fica claro que, nas
democracias contemporâneas, há um espaço alargado para a garantia à liberdade e aos interesses privados do
indivíduo; afinal, o próprio respeito à diversidade já é considerado como um exercício democrático por
excelência.
De fato, nesse estudo, trataremos de processos de ‘interesses públicos genuínos’ e que,
para tal, devem estar necessariamente submetidos à negociação e articulação de diversos
pontos de vista em prol de uma visão pluralista e de compromisso conjunto, e que aceite três
condições básicas de fundamentação: (a) cidadãos, individualmente, devem estar dispostos a
modificar suas concepções acerca dos interesses públicos; (b) essas modificações devem
responder às razões oferecidas pelos demais cidadãos; (c) cidadãos devem se comprometer
abertamente em agir em conformidade com essa visão modificada sobre essa plataforma de
interesses públicos5.
Essas condições, por sua vez, devem ser constantemente avaliadas, já que a
democracia deliberativa prevê um movimento dinâmico de opiniões, intenções e ações dos
cidadãos, ou seja, a sociedade passa a ser agente ativo das tomadas de decisões públicas e dos
movimentos de poder.
Portanto, para estabelecer o quadro de articulação que nos interessa, relativa a uma
democracia deliberativa, ainda precisamos considerar que nossas análises tratarão da fusão
relacional entre povo e Estado. Essa fusão deve ser evidenciada, pelo menos, em dois
momentos substanciais da vida pública: o primeiro corresponde à discussão e as formas livres
de expressão de pensamento, que articula as propostas coletivas; o segundo é delineado pelas
eleições periódicas, que trazem o voto como ratificação dessas propostas articuladas
socialmente.
A partir de então, temos estabelecidos os agentes epistêmicos e as principais condições
fundantes de uma democracia deliberativa, e podemos nos aprofundar nas análises dos três
modelos específicos de processos decisórios democráticos.
2. Três modelos de processos democráticos
Seguindo as mesmas diretrizes da apresentação de Anderson, utilizadas em seu artigo
Epistemologia da democracia (2006), investigaremos três modelos de organização
institucional epistêmica aplicados diretamente aos processos de decisões públicas. São eles: o
Teorema do Júri de Condorcet, o Teorema da “Diversidade supera a Aptidão”6, e o Modelo
experimentalista de Dewey.
O Teorema do Júri de Condorcet foi criado pelo Marquês de Condorcet em 1785,
na tentativa de estabelecer valor diante de processos decisórios, mais especificamente,
_______________
5 Sobre as condições de preparação para uma democracia deliberativa, vide RICHARDSON, 1997, p.376. 6 O termo original utilizado pela autora é “Diversity Trumps Ability Theorem” ou DTA, e os teóricos apontados
por Anderson (2006) como defensores dessa visão são Page (2006) e Surowiecki (2004).
abordando um modelo para um sistema de votação que privilegie a vontade da maioria do
povo nas decisões coletivas. Ele pressupõe que haja um grupo de votantes independentes (e
que não votem estrategicamente), diante de duas opções de voto para atingirem uma decisão,
com julgamentos intencionais em prol de uma solução ‘p’. Dessa forma, o teorema explica:
(a) se ‘p’ é maior que a escolha de 50% dos votantes, quanto mais eleitores, maior será a
chance da decisão ser correta; (b) se ‘p’ é menor que a escolha de 50% dos votantes, quanto
mais eleitores, maior será a probabilidade da decisão ser incorreta (e, portanto, seria
conveniente consultar apenas um participante, ou um grupo menor); (c) quando ‘p’ for
produzido por um empate, ou exatamente 50% de voto para cada bloco de decisão, o número
de indivíduos consultados nesse processo será irrelevante (CONDORCET, 1995).
Embora a teoria de Condorcet sirva de base para uma parcela substancial de trabalhos
relacionados aos estudos da democracia, focando-se nos processos eletivos, quando tratamos
da aparente igualdade de valor dos votos diante de uma eleição, podemos prever algumas
dificuldades em uma análise epistêmica. Para Anderson (2006), o tratamento dos votantes
com homogeneidade epistêmica falha quando aplicado a sociedades complexas e assimétricas,
onde indivíduos diferenciam-se por inúmeros fatores relevantes, tais como: possuírem
diversas localizações geográficas de habitação e/ou produção, classes sociais, graus de
instrução, interesses profissionais e culturais, questões de gênero, raça, idade. Isso não
significa argumentar em defesa do privilégio de priorizar certos votantes, apenas enfatiza que
um sistema democrático baseado exclusivamente no momento de uma eleição acaba por
desconsiderar atitudes deliberativas originais e alternativas que não podem ser propostas a
despeito de uma eleição como um movimento limitado: “nós precisamos de um modelo de
democracia em que o seu sucesso epistêmico seja produto da sua capacidade de tirar proveito
da diversidade epistêmica de todos os indivíduos” (ANDERSON, 2006, p.11, tradução nossa).
Ao estipular a vontade da maioria sempre com poder absoluto, o Teorema do Júri de
Condorcet ignora virtualmente sua falibilidade diante de alguns dos resultados de
determinados processos decisórios, o que é verificado quando há a necessidade de que
determinadas decisões públicas devam ser tomadas a despeito de seus índices de popularidade
e/ou por antecipação aos movimentos sociais. Exemplo disso ocorre quando o Governo não é
capaz de criar leis que a maioria do povo ainda desconsidera como prioridade, ou que podem
vir a gerar consequências graves caso o Estado não interfira com urgência: é o caso de
algumas leis em defesa ao meio ambiente, que promovem a vida e o bem-estar dos cidadãos,
mas que eventualmente podem determinar resistências a mudanças de comportamento.
Outro problema apontado na análise do Teorema do Júri de Condorcet diz respeito à
sua premissa de que os eleitores deverão votar sempre de forma independente. Ora, isso afasta
a hipótese de que votantes são influenciados por inúmeros aspectos até tomarem uma decisão.
Quando tratamos de votações constitutivas, isto é, que relacionam grandezas de interesses, o
resultado das eleições não são acidentais, ou apenas somas isoladas; pelo contrário, os
processos decisórios passam por debates públicos, jogos de opiniões e pressões formais e
informais, sem esquecer da força dos meios de comunicação de massa e das redes sociais. Ou
seja, uma eleição eficaz começa muito antes da imposição do voto, e deve estar fundada desde
a criação das plataformas de interesse coletivo. Assim, notamos que o Teorema de Condorcet
acaba por reduzir as funções democráticas em representações políticas pontuais, o que afasta
as possibilidades de fazer uso substancial das propriedades epistêmicas dos agentes sociais
diante de processos decisórios públicos.
No intuito de aprofundar nossa investigação, distribuindo o poder dos agentes
epistêmicos com maior eficácia diante de um processo democrático, analisaremos um
segundo modelo de aplicação a processos decisórios, o Teorema da “Diversidade supera a
Aptidão”. Esse teorema determina que: (a) quando temos um problema coletivo a ser
resolvido que não possa ser contemplado por soluções isoladas ou individuais; (b) que as
soluções levantadas para esse problema sejam passíveis de convergir para um conjunto finito
de resoluções; (c) que essas resoluções sejam epistemicamente diversas, ou seja, nem todas as
soluções são excelentes ou apropriadas; (d) devemos considerar que grupos aleatórios de bons
solucionadores de problemas (indivíduos atuantes e esclarecidos em diversos temas sociais)
podem vir a superar as soluções de um grupo menor de especialistas, ou indivíduos aptos a se
destacarem em determinado conhecimento específico ou técnico. Por isso, esse teorema
defende que a diversidade epistêmica pode triunfar, ou apontar melhores decisões, sobre as
quais fariam os indivíduos com habilidades distintivas, direcionadas a um foco mais restrito,
ainda que incisivo, de avaliação.
Há alguns benefícios nesse modelo que são perfeitamente apropriados à aplicação das
reinvindicações democráticas, e refere-se ao fato de que ele incentiva a participação de toda a
sociedade nas resoluções de problemas coletivos, promovendo a organização dos cidadãos em
associações com um número gerenciável de indivíduos interessados em atacar propostas
conjuntas. Isso propicia a criação e o fomento de agendas, plataformas e debates direcionados
a questões produtivas, heterogêneas e relevantes, o que se traduz num salto qualitativo aos
processos que apenas consideram as virtudes quantitativas da agregação de votos.
O Teorema da “Diversidade supera a Aptidão” sobrepõe-se às tecnocracias e
autocracias, atacando os Governos gerenciados por especialistas e movidos por soluções
exclusivamente técnicas, que nem sempre se aproximam da complexidade das realidades
sociais e dos anseios de uma sociedade livre e atuante. Entretanto, o presente teorema falha
no que diz respeito à inclusão universal dos cidadãos diante de processos decisórios; afinal,
quando damos voz a uma seleção determinada de grupos sociais (ainda que abrangente),
podemos estar abrindo portas para a representatividade de vários interesses particulares (ou, o
que é pior, desconsiderar que alguns grupos possam ser manipulados por representantes mais
perspicazes), e não exatamente de interesse público genuíno.
Assim, o Teorema da “Diversidade supera a Aptidão” é um modelo democrático que
valoriza a diversidade epistêmica como valor instrumental apenas potencialmente, e não
universalmente. Ao focar seus esforços nas estratégias de comunicação entre os cidadãos e
desses para com o Governo, ele prevê a autonomia e a liberdade dos indivíduos em manipular
e direcionar um bom fluxo de informações prioritárias, mas ainda não trata da continuidade e
do aprimoramento dessas conquistas sociais, desconsiderando os mecanismos de avaliação,
ou de feedback democráticos, no que diz respeito às consequências dessas reinvindicações
coletivas.
Para aprofundar esse tema, passamos a abordar o terceiro e mais completo modelo
epistêmico democrático, baseado na abordagem de valor utilitário do pensamento de John
Dewey, expoente da filosofia do final do século XIX. Trata-se de um modelo
experimentalista, pois enfatiza que os processos de decisões de organizações públicas são
exercícios diários de cooperação coletiva. Para Dewey (1954), a democracia caracteriza-se
pelo uso da inteligência social para resolver problemas de interesse prático. Há que se
registrar que seu arcabouço investigativo alerta para o reconhecimento abrangente do termo
democracia. Para o filósofo, a democracia é um processo de relacionamento humano que,
necessariamente, conecta duas variáveis: a primeira refere-se a uma ideia de uma conduta
social compartilhada e que deve impregnar todos os modelos de associação humana, e a
segunda representa um mecanismo para assegurar os canais de operação dessa sociedade,
representado por um sistema de governo e suas políticas públicas.
Dessa forma, temos como evidência de que são justamente as funções exercidas pelos
grupos sociais as bases para a criação de um ambiente democrático
que consiste em ter uma participação responsável de acordo com a capacidade de
formar e dirigir as atividades dos grupos a que se pertence, e em participar de acordo
com a necessidade dos valores que sustentam esses grupos. Do ponto de vista dos
grupos, isso demanda a emancipação das potencialidades de cada um de seus
membros em harmonia com os interesses e bens que lhes são comuns (DEWEY,
1954, p.147, tradução nossa).
Ou seja, a democracia exige a manutenção de valores epistêmicos coletivos relevantes,
aqueles que consideram indivíduos agindo a partir das responsabilidades com as quais
acarretarão em boas consequências para o grupo, ainda que isso envolva abrir mão de
interesses particulares. Os agentes epistêmicos dos grupos em uma sociedade democrática, à
vista disso, devem necessariamente agir como cidadãos,
com uma conduta enriquecida por sua participação na vida familiar, em associações
econômicas, científicas e artísticas; [...] com a plenitude de uma personalidade
integrada e, portanto, possível de responsabilizar-se por realizações [...] e respostas
que consolidem diferentes grupos sociais (DEWEY, 1954, p.148, tradução nossa).
O modelo democrático de Dewey nos mostra, em comparação ao Modelo do Júri de
Condorcet e ao Teorema da “Diversidade supera a Aptidão”, ser o único que contempla as
três características constitutivas do processo democrático, ao prever: a análise profunda da
diversidade dos interesses sociais (entre todos os estratos sociais e suas prioridades, ainda que
assimétricas); o espaço aberto ao debate (entre todos os cidadãos e entre a sociedade e os
representantes do Governo); e a garantia de feedback, ou seja, de renovação constante desse
processo. O dinamismo desse modelo será, então, garantido por eleições periódicas, pela
liberdade de imprensa e de expressão do pensamento, pela agilidade no encaminhamento de
petições ao Governo, pelas sondagens constantes de opinião pública, protestos e debates.
Para Dewey (1981), nenhuma lei ou estatuto valem ser propagados se, na vida prática,
eles não passarem pelo crivo de um método científico de experimentação, o que, no caso da
democracia, deverá aproximar-se da consolidação dos métodos de deliberação. Isso significa
ensaiar propostas – ainda que imaginárias ou insurgentes – para os processos de participação
pública. Dá-se início a uma deliberação desde o levantamento dos problemas prioritários ou
emergentes de interesse público, passando-se para uma investigação de quais as informações
são relevantes para resolver esse problema, e de quem detém essas informações, e, reunidas as
prováveis saídas para elencar as soluções mais viáveis ou adequadas, traça-se caminhos para
aplicar novas políticas públicas, considerando os obstáculos e as futuras reações favoráveis e
desfavoráveis dessas novas decisões. O estágio seguinte da deliberação refere-se a uma
experimentação das reformas políticas, revelando os impactos das mesmas na sociedade
(observando que algumas ações ou novas leis podem acarretar em desdobramentos de
problemas conexos maiores). Parte-se, então, para a avaliação desses resultados. Em posse da
confirmação parcial ou não dessas políticas-teste revisa-se as decisões anteriormente
propostas, e ajusta-se o processo até alcançar um resultado satisfatório.
Certamente, notamos que é um processo em constante abertura ao diálogo, o que
permite ajustá-lo as mudanças que a própria sociedade sofre ao longo dos tempos. Dessa
forma, as respostas públicas de maior ou menor adesão às novas políticas implementadas,
expressas em debates ou nas eleições, passam a ser tratadas como evidências para a
manutenção ou ruptura das políticas em andamento: a saber, a deliberação prevê o
enriquecimento das propriedades do pacto epistêmico democrático a fim de dar maior
sustentação às tomadas de decisões doxásticas favoráveis às ações de interesse público.
No entanto, para que um processo deliberativo se estabeleça com tamanha eficácia, ele
deve assumir compromissos e fomentar competências específicas de todos os grupos sociais
envolvidos. A primeira característica basilar desse processo é que ele permita a inclusão
universal na proposição de soluções, afinal, o fato de existirem cidadãos com modos de vida e
conhecimentos diferentes numa mesma sociedade, aponta para que também haja diferentes
formas de observar, solucionar, experienciar, conceber e avaliar os mesmos ou variados
problemas. Outro ponto fundamental será a manutenção do hábito para o debate, que deverá
ser gerenciado a fim de corporificar e facilitar a legitimação de plataformas que devem
necessariamente incorporar tudo o que tiver impacto significativo e sistemático em
determinado grupo, o que reforça o controle para a eliminação de visões estreitas, limitadas e
dogmáticas dentro de cada organização social. Outro fator importante é dar visibilidade e
continuidade aos debates coletivos, ou seja, ampliar e compartilhar as decisões coletivas tanto
entre seus membros ativos, quanto entre toda a sociedade e os representantes do Estado,
requerendo que as organizações tenham acesso constante e disponível a canais ágeis e
confiáveis de comunicação.
Mas o que consideramos a maior competência e, portanto, condição necessária para
que o modelo de Dewey possa ser atingido com qualidade epistêmica, refere-se a uma
obrigatoriedade de sustentação de uma cultura proativa de interação e respeito entre todos os
membros da sociedade civil. Aqui tratamos da tolerância à diversidade, enfatizando a
liberdade de crença, expressão e comunicação, e a escuta atenta e leal diante dos desacordos.
Afinal, como enfatiza Dewey, “o respeito à diversidade não é somente um direito dos
indivíduos, mas é um meio de enriquecer nossas próprias experiências de vida, e é condição
inerente para o modo de vida democrático” (DEWEY, 1981, p.231, tradução nossa).
Assim, reafirmamos que o poder epistêmico dos arranjos sociais democráticos não
deve ser apenas garantido legalmente, mas refletido e vivenciado culturalmente. Anderson
exemplifica essa condição relembrando os acontecimentos da Europa pós-comunismo. Em
sua argumentação, sustenta que, nos períodos seguintes ao afastamento de sociedades
expostas a regimes totalitários, o foco das atenções dos democratas nem sempre se restringe
ou prioriza a criação de arranjos constitucionais, pelo contrário, a maior preocupação nesses
momentos é a de propiciar à sociedade civil um ambiente que possa fortalecer sua capacidade
de organização de forma participativa e independente, afastando, na medida do possível, o
medo a represálias e aos rastros de doutrinas sectaristas7.
Ao reforçar que os debates democráticos devem refletir a complexidade dos interesses
de todos os membros da sociedade, enquanto representantes de intenções coletivas, acabamos
por introduzir outro problema para nossa análise epistemológica, que questiona: como
construir tomadas de decisões doxásticas coletivas diante de um modelo que nos exige
respeito à autonomia e à diversidade de cada cidadão individualmente, considerando o papel
da autoridade, da coerção e dos desacordos que também estarão presentes nessas negociações
sociais? É o que debateremos no ponto a seguir, apontando as consequências entre optar por
arranjos de consenso ou dissenso diante de processos decisórios democráticos.
3. Diversidade epistêmica como valor de sociedades democráticas
A diversidade epistêmica enquanto valor para a formação de sociedades democráticas
é uma condição que se manifesta a favor da normatização do dissenso entre os agentes
envolvidos durante todos os estágios dos processos deliberativos, assim como Dewey os
propôs em seu modelo experimentalista. A diversidade garante tanto a manifestação livre do
pensamento pluralista de forças contrárias como plataforma de soluções para ações públicas,
quanto prevê espaço para escolhas autônomas em processos de votação, reservando-se o
direito de expor as políticas governamentais recorrentes frente a diversas formas de opinião.
Garantir as normas do dissenso exige fomentar uma sociedade constantemente aberta
ao diálogo, que mantenha canais acessíveis de comunicação entre todos os estratos sociais,
bem como todo tipo de reivindicação institucional. Além disso, exige que todos os grupos
sociais possam expressar publicamente seus desacordos, e que essas discordâncias sejam
escrutinadas nas mais diversas facetas. É aqui que se mostra a democracia como um modelo
organizacional dos mais complexos, pois ela exige o dissenso não apenas entre as diversas
instituições que compõem uma sociedade mais ampla, mas também dentro de cada pequeno
grupo, em que cidadãos, ainda que mantenham interesses e reivindicações associativas,
possuem visões particulares diante do mesmo problema. Temos, então, dois níveis de
‘exploração’ de desacordos (entre cidadãos enquanto membros de um grupo, e entre grupos
_______________
7 ANDERSON, E. “The epistemology of democracy”. In: Episteme v.3 (1-2), 2006, p.15.
enquanto representação coletiva conjunta) e, ambos, não devem ser acomodados em prol de
um consenso, pois o que nos interessa aqui é manter o maior número de objeções em um
debate, para que as respostas do mesmo sejam enriquecidas e multiplicadas.
Para Manin (1987), a democracia que caminha para o consenso não é apenas mais
fraca, mas perigosa. Pois, quando exigimos que todos os membros de um grupo concordem
com as mesmas decisões, podemos levar a minoria a uma pressão indevida, ou chegar até
mesmo a coerção. Além disso, o consenso suprime a ventilação e a capacidade de avaliar
novas alternativas individuais para contribuir com o grupo: “o mérito epistêmico da
deliberação coletiva repousa sobre a crítica mútua. E essa é uma forte razão para dar lugar de
destaque para os prós e os contras numa concepção sólida de deliberação” (MANIN, 2005,
p.16, tradução nossa).
O debate democrático não pode temer obstáculos e objeções, pois essas são as suas
molas propulsoras. Quanto mais ideias contrárias ou suplementares aquelas pré-estabelecidas
pelo poder e as normas públicas vigentes, tanto mais as novas deliberações serão melhores
justificadas. Contudo, isso não significa impor objeções pelo simples fato de desestabilizar o
poder, e sim, empreender um espírito experimental em prol de avanços sociais. Essa prática
que garante a voz de uma minoria institucionalizada é chamada por Manin (1987) de
‘oposição leal’, e possui as seguintes atribuições: exercitar a capacidade de experimentação,
revisar as decisões com base em outros parâmetros e consequências analisadas, testar outras
alternativas e soluções, participar e observar atentamente de todos os processos deliberativos
vigentes. Assim, a diversidade epistêmica fomenta uma condição necessária, embora não
suficiente, para estruturar os modelos democráticos, já que suas propriedades devem agrupar-
se as propriedades do dissenso e de seu espaço para o desacordo.
Levantaremos mais dois problemas específicos sobre como manter os dissensos diante
de posições coletivas conjuntas. O primeiro problema refere-se ao grau de importância que
damos as informações e ao conhecimento de cada agente pertencente a determinado grupo, e
o segundo problema refere-se à autonomia de cada agente, principalmente quando esses são
assolados por lideranças centralizadoras.
No que tange ao primeiro problema, relembramos que não devemos fazer distinções
entre opiniões de cada cidadão, no sentido de menosprezar ou eliminar do debate
determinados grupos em prol de um raciocínio coletivo. Tampouco, não podemos anular a
existência de que na sociedade haja indivíduos com uma capacidade especial de argumentar e
aprofundar questões específicas, sejam elas oriundas de estudos técnicos ou não. Referimo-
nos aos especialistas, que podem compor grupos sociais ou serem chamados a esclarecer e
fortalecer argumentos de interesse de determinado público. Enquanto uma das condições da
democracia desvela-se como compromisso com a disseminação de informação, é preciso
salientar que a inclusão de especialistas em um debate coletivo é benéfica e não deve causar
constrangimento ou abafar nenhum dos membros desse grupo. A solução para um convívio
saudável e exploratório nos é apontada por Richardson (2012), ao lembrar que um grupo não
pode ser nem dependente, nem surdo, aos argumentos dos especialistas. Diante de uma
decisão coletiva, o ideal é que tanto posições leigas quanto especializadas possam sobrepor-se
como uma ‘malha’, formando um tecido novo e resistente de argumentação.
Nosso segundo problema, que deve ser enfrentado para uma orientação que caminha
positivamente para o dissenso, refere-se ao fato de que, pela própria condição da natureza
humana, há uma discrepância entre a forma e o conteúdo com os quais cada cidadão se
manifesta, variando de acordo com suas habilidades e interesses, ou graus de envolvimento,
com os temas tratados por um grupo ao qual ele pertença. Quando verificamos a existência de
lideranças muito fortes ou centralizadoras, é possível que o ambiente propicie casos
recorrentes de submissão ou subordinação diante de processos decisórios. Para que membros
de um grupo não se acomodem ou descomprometam-se com as articulações conjuntas, faz-se
necessário que seja garantida a autonomia de cada agente epistêmico envolvido.
É importante salientar que numa ação conjunta em prol de um corpo coletivo de
proposições é possível manter crenças individuais contraditórias à decisão conjunta, mantendo
essa autonomia. Westlund (2013) chama de ‘autonomia resistente’ aquela que, em
determinado momento da negociação social, será exigida uma ação voluntária individual em
prol da legitimação de uma autoridade coletiva. Chamamos esse processo de deferência, que
pode ser entendido como “um poder normativo que é exercido quando agentes transferem
critérios deliberativos para outros [...] aceitando razões independentes. [...] É fundamentado
em todos os agentes participantes do processo com autoridade moral igual ou autônoma”
(WESTLUND, 2013, p.455, tradução nossa).
Para o referido autor (2003, 2013), só um agente autônomo é capaz de contribuir
significativamente para a formação da consistência de deliberações coletivas. Nesse sentido,
reforçamos o fato de que a análise das propriedades dos modelos epistêmicos da democracia
deve necessariamente conduzir para um caráter aberto, dinâmico, interativo e que, sobretudo,
permita o dissenso e a autonomia argumentativa de cada cidadão. Muito mais do que
sistematizar um modelo de organização social, a democracia, assim, passa a ser vista como
um exercício de troca de compromissos sociais e de experiências humanas.
4. Considerações finais
A epistemologia da democracia trata de evidenciar os valores epistêmicos necessários
para a organização de agências coletivas capazes de moverem-se em processos deliberativos
de interesse público, dentro de um ambiente complexo e, por vezes, assimétrico. Para que um
modelo democrático atinja valor epistêmico relevante, uma de suas principais condições é a
garantia da diversidade epistêmica, acompanhada da autonomia e do compromisso de cada
cidadão em agir e participar ativamente em prol de um corpo social acordado.
O Teorema do Júri de Condorcet, embora aponte a importância dos processos de
votação num sistema democrático, desconsidera a falibilidade de uma decisão da maioria,
esquecendo que estratégias deliberativas melhores fundamentadas podem surgir de grupos
minoritários. O Teorema da “Diversidade supera a Aptidão” já suporta reivindicações
democráticas diversas, mas ainda não sustenta instrumentalmente a inclusão universal de
todos os cidadãos nos processos decisórios de interesse público. Interesses genuínos, portanto,
e de constante renovação, só poderão ser enriquecidos a partir de modelos deliberativos
experimentais. É o caso da proposta de Dewey, que sustenta, em todas as fases do exercício
democrático, o poder de uma avaliação dinâmica, alicerçada numa cultura de interação e
responsabilização de cada cidadão perante as construções de convívio social.
Referências bibliográficas:
ANDERSON, E. “The epistemology of democracy”. In: Episteme v.3 (1-2), 2006, pp.8-22.
CONDORCET, M. J. A. N. d. C., “An Essay on the Application of Analysis to the Probability
of Decisions Rendered by a Plurality of Votes”. In: McLean, I. e Urken, A. Classics of Social
Choice. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1995, pp.91-112.
DEWEY, J. Creative Democracy. In: BOYDSTON, J.A. The Later Works of John Dewey,
1925–1953, vol. 14. Carbondale, IL: Southern Illinois University Press, 1981, pp.224-230
________ . The public and its problems. Atenas: Swallow, 1954.
GOLDMAN, A. “A guide to social epistemology”. In: GOLDMAN, A. e WHITCOMB, D.
Social Epistemology.Oxford: OUP, 2011, pp. 11-37.
MANIN, B. “On Legitimacy and Political Deliberation”. In: Political Theory v.15, 1987,
p.338–68.
________ . “Deliberation: why we should focus on debate rather than discussion”. Paper for
the Program in Ethics and Public Affairs Seminar. Princeton University Oct. 13th, 2005.
Disponível em: http://www.princeton.edu/csdp/events/Manin101305/Manin101305.pdf
Acesso em: 10.05.14
RICHARDSON, H. “Democratic Intentions”. In: BOHMAN, J. e REHG, W. Deliberative
Democracy. Cambridge, MA: MIT Press, 1997, pp.349-382.
________ . “Relying on Experts as we reason together”. In: Kennedy Institute of Ethics
Journal, v.22, n.2. Jun. 2012, pp.91-110.
WESTLUND, A. “Deference as a normative power”. In: Philosophical Studies, v.166:3,
dec.2013, pp.455-474.
________ . “Selflessness and Responsibility for Self: Is Deference Compatible With
Autonomy?” In: Philosophical Review v.112:4, 2003, pp.483–523.