CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES
CURSO DE DIREITO
A INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO CRIME
DE SUPRESSÃO OU REDUÇÃO DE TRIBUTOS FEDERAIS
Felipe Fauri
Lajeado, junho de 2013
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Felipe Fauri
A INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO CRIME
DE SUPRESSÃO OU REDUÇÃO DE TRIBUTOS FEDERAIS
Monografia apresentada na disciplina de Trabalho de Curso II – Monografia, do curso de graduação em Direito, do Centro Universitário UNIVATES, como parte da exigência para a obtenção do título de Bacharel em Direito.
Orientadora: Prof.ª Ms. Elisabete Cristina Barreto Müller
Lajeado, junho de 2013
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Felipe Fauri
A INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO CRIME
DE SUPRESSÃO OU REDUÇÃO DE TRIBUTOS FEDERAIS
A Banca examinadora abaixo aprova a Monografia apresentada na disciplina de Trabalho de
Curso II – Monografia, do curso de graduação em Direito, do Centro Universitário Univates,
como parte da exigência para a obtenção do grau de Bacharel em Direito:
Prof.ª Ms. Elisabete Cristina Barreto Müller – orientadora Centro Universitário Univates Prof. Dr. Fulano de Tal Centro Universitário Univates Sra. Beltrana de Tal (Nome da entidade/Instituição etc. a que pertence)
Lajeado, XX de junho de 2013
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“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe
de caminhar.” (Eduardo Galeano)
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RESUMO
Em 1964, Claus Roxin, jurista alemão, apresentou à comunidade jurídica um princípio que atuaria como auxiliar interpretativo dos tipos penais. Cuida-se do princípio da insignificância, cuja função é a de excluir a atuação do Direito Penal em fatos formalmente típicos, antijurídicos e culpáveis, mas que são insignificantes em relação ao bem jurídico tutelado e, portanto, atípicos na análise conglobada do tipo penal. A presente monografia objetiva realizar uma análise sobre a incidência desse princípio no crime de supressão ou redução de tributos federais, a fim de investigar o(s) parâmetro(s) desenvolvido(s) pela doutrina e jurisprudência para aplicá-lo nesse delito. Trata-se de pesquisa qualitativa, realizada por meio de método dedutivo e de procedimento técnico bibliográfico e documental. Dessa forma, as reflexões partem de noções gerais de Direito Penal, especialmente quanto à sua missão de assegurar a coexistência humana, ou de prover a segurança jurídica, por meio da tutela de bens jurídicos, e aos conceitos de crime, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Em seguida, faz um estudo do crime de supressão ou redução de tributos, previsto no artigo 1.º da Lei n.º 8.137/1990. Antes, contudo, são analisadas noções introdutórias de Direito Tributário. Depois, demonstra-se que o bem jurídico tutelado pelo referido delito é a ordem tributária, na expressão de patrimônio fiscal ou coletivo, e descrevem-se os elementos do tipo, a consumação e a tentativa. Finalmente, são descritos a função dos princípios e, sobretudo, o princípio da insignificância, com os necessários aprofundamentos. Na sequência, examinam-se doutrina e jurisprudência para verificar o(s) parâmetro(s) utilizado(s) para aquilatar a incidência do indigitado princípio no crime de supressão ou redução de tributos federais. Nesse sentido, conclui-se que há uma consideração majoritariamente acrítica do princípio da insignificância pela doutrina e, especialmente, pela jurisprudência, que o vinculam a um juízo de fato, qual seja, o valor mínimo para que se proceda ao ajuizamento do executivo fiscal, enquanto que para outros delitos são considerados outros parâmetros, violando, assim, o conceito de isonomia. Em razão disso, acredita-se que os critérios a serem utilizados, entre outros, para aferir a insignificância no crime em apreço, são os seguintes: ausência de periculosidade social da ação, mínima ofensividade da conduta, reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada, entre outros no caso concreto, porquanto tais critérios podem – e devem – ser considerados na interpretação da maioria dos tipos penais.
Palavras-chave: Direito Penal. Crime de supressão ou redução de tributos federais. (A)Tipicidade penal. Princípio da insignificância.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 7
2 NOÇÕES GERAIS SOBRE DIREITO PENAL ....................................................... 11
2.1 Finalidade do Direito Penal .............................................................................. 11
2.1.1 Tutela de bens jurídicos ................................................................................ 13
2.1.2 A pena como função de prover a segurança jurídica ................................. 17
2.2 Conceitos de crime ........................................................................................... 19
2.2.1 Sistema bipartido de crime ........................................................................... 20
2.2.2 Sistema tripartido de crime ........................................................................... 21
2.3 Tipicidade .......................................................................................................... 22
2.3.1 A tipicidade conglobante ............................................................................... 24
2.3.2 Tipo ativo doloso ............................................................................................ 26
2.3.3 Tipo omissivo doloso .................................................................................... 29
2.4 Antijuridicidade ................................................................................................. 31
2.5 Culpabilidade ..................................................................................................... 33
2.5.1 Imputabilidade ................................................................................................ 35
2.5.2 Possibilidade de conhecimento da antijuridicidade ................................... 36
2.5.3 Exigibilidade de conduta diversa.................................................................. 37
3 O CRIME DE SUPRESSÃO OU REDUÇÃO DE TRIBUTOS (ART. 1.º DA LEI N.º 8.137/1990) ............................................................................................................... 39
3.1 Noções gerais de Direito Tributário................................................................. 40
3.1.1 O tributo e suas espécies .............................................................................. 40
3.1.2 Obrigação tributária ....................................................................................... 44
3.1.3 Crédito tributário ............................................................................................ 45
3.2 Conceito do tipo penal de supressão ou redução de tributos ...................... 46
3.3 Bem jurídico tutelado ........................................................................................ 48
3.4 Elementos do tipo ............................................................................................. 51
3.4.1 Tipo objetivo ................................................................................................... 52
3.4.2 Tipo subjetivo ................................................................................................. 58
3.5 Consumação e tentativa ................................................................................... 58
4 A INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO CRIME DE SUPRESSÃO OU REDUÇÃO DE TRIBUTOS FEDERAIS ...................................... 61
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4.1 A função dos princípios .................................................................................... 62
4.2 O princípio da insignificância .......................................................................... 65
4.2.1 Fundamentos .................................................................................................. 67
4.2.2 Critérios para aplicação ................................................................................. 70
4.2.3 Consequência ................................................................................................. 73
4.3 A incidência do princípio da insignificância no crime de supressão ou redução de tributos federais .................................................................................. 76
4.3.1 Visão doutrinária ............................................................................................ 76
4.3.2 Visão jurisprudencial ..................................................................................... 79
5 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 93
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 99
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1 INTRODUÇÃO
Tratar sobre um tema de Direito Penal exige reflexão, responsabilidade e,
mormente, muito cuidado, já que não se está abordando mais um aspecto jurídico
do Direito, senão uma questão cujas consequências repercutem em uma das
maiores conquistas da sociedade moderna: o status libertatis.
Por isso, a análise da incidência de diversos princípios nesse campo tem
assumido especial relevo na comunidade jurídica, porquanto eles delimitam e
informam a interpretação, o alcance e a aplicação das normas penais, enfim,
orientam a manifestação do exercício do jus puniendi.
Nesse contexto, o princípio da insignificância tem sido largamente aplicado
pelos intérpretes da lei penal no intuito de restringir a incidência do Direito Penal em
fatos que, embora típicos, antijurídicos e culpáveis do ponto de vista formal, são
insignificantes, prestigiando, com isso, o caráter subsidiário e fragmentário daquele
ramo do Direito Público. Com razão, condutas que não provocam prejuízos capitais
ou perigo de lesão aos bens jurídicos tutelados não podem sofrer a sanção penal.
A par disso, os crimes de natureza tributária, em sua maior parte integrantes
do rol daqueles denominados de “colarinho branco”, também são objetos de
minuciosas investigações realizadas por juristas, tendo em vista a magnitude de
suas consequências à sociedade. Afinal, a prática de sonegar o pagamento de
tributos não só atinge a esfera patrimonial estatal, que deixa de arrecadá-lo, mas
também a coletividade, da qual é subtraída a eficiência e, sobretudo, a prestação de
serviços públicos. Como é cediço, sem receitas, o Estado não dispõe de recursos
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suficientes para atingir seus misteres constitucionais, a exemplo da prestação da
educação, saúde e segurança à população.
E os tributos que mais oneram a sociedade brasileira são, sem dúvida, os de
competência da União, pois neles estão abrangidos não só os impostos federais,
como também as inúmeras taxas e contribuições sociais. Apesar disso, são
imprescindíveis à manutenção estatal, conforme visto acima. Justifica-se o tema,
então, por razões jurídica e social.
O motivo jurídico advém dos aspectos penais que circundam a relação
jurídico-tributária entre o fisco e o contribuinte, notadamente a relevância para o
Direito Penal da prática de suprimir ou reduzir tributos federais. Afinal, segundo
modernas doutrinas jurídicas, o poder punitivo estatal deve ser subsidiário e
fragmentário, não podendo ser exercido em situações nas quais não há lesão ou
perigo dela a bem jurídico tutelado. Além disso, não se pode descartar as situações
práticas que decorrem do reconhecimento efetivo de crime bagatelar, pois, por
exemplo, ao se ter bem definido o(s) parâmetro(s) da insignificância, um advogado
consegue facilmente obstar o andamento de um inquérito policial instaurado para
apurar aquele tipo de crime, resguardando os direitos individuais de seu cliente.
Ademais, as consequências do reconhecimento da insignificância nesse tipo
de crime espraiam-se por toda a coletividade, na medida em que o Estado
demonstra para esta que a sonegação de tributos não é uma prática relevante a
merecer sanção penal, porém outras condutas que atingem bens patrimoniais
privados, que apresentam algumas semelhanças com aquela da sonegação, são
penalmente repreendidas. Daí decorre a razão social, porquanto se cria nos
cidadãos, habituados com a cultura do crime, o senso comum da impunidade.
Nesse panorama, propõe-se o trabalho, como objetivo geral, a perscrutar a
incidência do princípio da insignificância no crime de supressão ou redução de
tributos federais, previsto no artigo 1.º da Lei n.º 8.137/1990, O tema direciona-se a
responder ao seguinte problema: qual(is) o(s) parâmetro(s) desenvolvido(s) pela
doutrina e jurisprudência para aplicar o princípio da insignificância na conduta típica
de suprimir ou reduzir tributos federais?
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Uma possível hipótese para essa questão é a adoção dos seguintes critérios,
pois utilizados para aferir a insignificância de outras condutas típicas: ausência de
periculosidade social da ação, mínima ofensividade da conduta, reduzidíssimo grau
de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica
provocada.
De outro giro, a pesquisa, no que tange ao modo de abordagem, será
qualitativa, pois o que se procura atingir é a identificação da natureza e do alcance
do tema a ser investigado, bem assim as interpretações possíveis para o fenômeno
jurídico em análise. Para obter a finalidade desejada pelo estudo, será empregado o
método dedutivo, cuja operacionalização se dará por meio de procedimentos
técnicos baseados na doutrina, legislação e jurisprudência, relacionados,
inicialmente, a noções gerais de Direito Penal, passando pelo crime de supressão
ou redução de tributos, para se analisar, a final, a incidência do princípio da
insignificância nesse delito, segundo visões doutrinária e jurisprudencial.
Nesse passo, no primeiro capítulo de desenvolvimento deste trabalho serão
descritas noções gerais de Direito Penal, já que o tema predominantemente é
oriundo dessa área jurídica. Abordar-se-á, assim, a finalidade do Direito Penal,
conferindo-se especial atenção à noção de bem jurídico. Na sequência, serão
descritos conceitos de crime, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, com os
necessários aprofundamentos. De igual sorte, será analisada, em especial, a
questão da tipicidade conglobante e sua importância na interpretação do tipo legal.
Adiante, no segundo capítulo, será examinado o crime de supressão ou
redução de tributos, previsto no artigo 1.º da Lei n.º 8.137/1990, que integra o rol
dos crimes contra a ordem tributária. Antes de descrever os principais conceitos
desse delito, entretanto, faz-se necessário discorrer sobre algumas breves noções
de Direito Tributário, especialmente quanto aos tributos e suas espécies, obrigação
tributária e crédito tributário, porquanto o crime em estudo está relacionado a uma
relação jurídico-tributária. Ao depois, serão descritos o conceito do tipo penal
previsto no artigo 1.º da Lei n.º 8.137/1990, o bem jurídico tutelado por ele, os
elementos que integram o tipo e sua consumação ou tentativa.
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No último capítulo, por fim, far-se-á a análise doutrinária e jurisprudencial
sobre a incidência do princípio da insignificância no crime de supressão ou redução
de tributos federais. Primeiramente, será verificada a função dos princípios em
nosso ordenamento jurídico e, em seguida, será descrito o princípio da
insignificância, apresentando sua origem, os fundamentos, critérios para aplicação e
a consequência de sua incidência no caso concreto. Analisadas essas premissas,
proceder-se-á, enfim, à verificação na doutrina e na jurisprudência dos parâmetros
adotados para aferir a insignificância no delito em exame.
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2 NOÇÕES GERAIS SOBRE DIREITO PENAL
Direito Penal é o ramo do Direito Público interno que se ocupa em
estabelecer um arcabouço de normas jurídicas relacionadas com os fatos de
natureza criminal, de modo a regular o exercício do jus puniendi pelo Estado,
mediante prévia descrição de infrações penais definidas em lei, e as medidas
aplicáveis a quem as viola.
Porém, para uma melhor compreensão do que vem a ser, da sua função e de
como se materializa na prática, torna-se necessário examinar alguns conceitos
dessa importante área jurídica.
Dito isso, descrever-se-ão, no presente capítulo, noções gerais sobre Direito
Penal, especialmente quanto à sua finalidade, aos conceitos de crime, tipicidade,
antijuridicidade e de culpabilidade.
2.1 Finalidade do Direito Penal
O Direito constitui um instrumento de viabilização da existência humana,
assegurando a cada homem a possibilidade de encontrar-se com seu “ser”, isto é,
de escolher o que quer ser e chegar a ser. Entretanto, essa “existência humana não
pode haver senão na forma de coexistência, de existir com outros que também
existem, já que não se pode ter consciência do ‘eu’ quando não há um ‘tu’ de quem
distinguir-se” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004, p. 92).
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Nessa linha, a introdução de uma ordem político-normativa (Estado
constitucional) cumpre papel determinante para assegurar as relações
interpessoais, de modo a impedir uma guerra de todos contra todos (guerra civil).
Isso se torna possível a partir do estabelecimento de sanções jurídicas a quem viola
as regras básicas de convívio, necessárias para permitir que o homem se
autorrealize no âmbito das relações humanas.
Trata-se, aí, da função de segurança jurídica, que se exterioriza através da
proteção de bens jurídicos ou direitos.
Portanto, concluem Zaffaroni e Pierangeli (2004, p. 92) que “a função de
garantia de coexistência se cumprirá na medida em que se garanta a cada um a
possibilidade de dispor – de usar – o que considere necessário para sua
autorrealização”.
Tais autores, outrossim, anotam que da expressão Direito Penal exsurgem
duas entidades distintas: o conjunto de leis penais ou legislação penal; e o sistema
de interpretação desta legislação, isto é, o saber do direito penal.
Sendo assim, para esses estudiosos, o Direito Penal, entendido como
legislação penal, é o conjunto de leis que traduzem normas com o objetivo de tutelar
bens jurídicos, cuja violação se chama delito. Aspira, em razão disso, a que tenha
como consequência a essa violação uma coerção jurídica particularmente grave,
especial em relação às demais existentes no ordenamento jurídico, reproduzida na
forma de pena.
Já no segundo sentido, que se traduz no saber do direito penal (ou ciência
jurídico-penal), este interpreta o concernente à legislação penal, dando lugar a um
sistema de compreensão. Seu horizonte de projeção, por sua vez, como objeto
desse sistema, é a pretensão de regular condutas humanas por meio de
cominações.
O saber penal, dessa maneira, deve ser um saber comprometido com os
direitos humanos, que faça diminuir os níveis de marginalização mediante uma
integração comunitária dos setores marginalizados e da consequente diminuição
dos níveis de injustiça em suas estruturas de poder. O saber penal, portanto,
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consoante muito bem salientam Zaffaroni e Pierangeli (2004), deve ser instrumento
de integração e não de marginalização.
Isso revela que o Direito Penal (legislação penal) não pode ser interpretado
como um objeto que se esgota em si mesmo, e sim como um objeto que se realiza,
com caráter programático. Faz-se necessário, então, reconhecer que ele sempre
“aspira”, “procura”, “tende”, mas não realiza magicamente, já que a realização será
alcançada mediante uma interpretação adequada que, sob uma dada tradição
(momento histórico-cultural), proponha à jurisprudência soluções concretas e
coerentes com o próprio objetivo do Direito Penal: proteção de bens jurídicos
mediante uma intervenção mínima e mais racional (ZAFFARONI e PIERANGELI,
2004).
O Direito Penal de uma ordem política-normativa contemporânea, nesse
contexto, que se pauta por princípios de cidadania, dignidade da pessoa humana,
liberdade e igualdade, tal qual é o nosso Estado Social e Democrático de Direito,
não pode ter outro fim senão o da proteção de bens jurídicos que lhe são caros.
2.1.1 Tutela de bens jurídicos
Feldens (2005, p. 44) afirma “que passados quase dois séculos de contínua
reflexão, a teoria do bem jurídico mantém-se como um elemento essencial na
formatação do Direito Penal contemporâneo”. A evolução dessa teoria de bem
jurídico, por necessidade de adaptação às sucessivas mudanças de paradigmas
verificadas na teoria do Estado e do Direito, bem como às crescentes mudanças
sociais de nosso tempo, não teve o condão de despi-la daquilo que se enraizou
como legado de um Direito Penal de feição liberal: a afirmação de um Direito Penal
de tutela de bens jurídicos como modelo de um ordenamento jurídico laico,
democrático e pluralista, comprometido com o reconhecimento e proteção de
direitos.
Desse modo, a noção de bem jurídico segue desempenhando um papel
inquestionavelmente preponderante no Direito Penal contemporâneo, operando
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como fator crucial na diagramação de fontes e limites do jus puniendi. Como
consequência, o bem jurídico torna-se, além de elemento edificado pela dogmática
jurídico-penal, um ente estruturante e informador da política criminal do Estado, cuja
legitimidade passa a estar condicionada a um modelo de crime como ofensa a bens
jurídicos (FELDENS, 2005).
É a partir desse momento, então, que o conceito de bem jurídico desponta
como um conceito material e, portanto, com conteúdo definido ou definível, a exigir
do legislador que a tutela penal se oriente à proteção de bens jurídicos, como
requisito de legitimidade do Direito Penal. E o modelo de crime que se destine a
cumprir a tutela de bens jurídicos há de encontrar respaldo na Constituição
(FELDENS, 2005).
O Direito Penal, pois, cumprirá sua função à medida que se direcione a proibir
unicamente condutas que lesionem ou exponham a perigo bens jurídicos
amalgamados na Constituição Federal de 1988 (CF/88). Este é o ponto exclusivo de
partida na seleção de tais bens ou direitos. Vida, liberdade e propriedade (art. 5.º,
caput, da CF/88) são exemplos de bens jurídicos constitucionais.
Feldens (2005, p. 38), nesse passo, anota que “o discurso de legitimação do
Direito Penal é, antes de qualquer coisa, o discurso sobre sua adaptação material à
Constituição”. Ambos compartem uma relação axiológica-normativa por meio da
qual a Constituição, ao tempo em que permite o desenvolvimento da dogmática
penal a partir de estruturas valorativas que lhes sejam próprias, impõe, em
contrapartida, limites materiais instransponíveis ao legislador penal.
Assim, a validade de um Direito Penal passaria pela conformação entre os
bens jurídicos protegidos com os valores ligados expressa ou implicitamente à carta
constitucional; hipótese a garantir-lhes dignidade jurídico-penal. Sempre haverá
meios (links constitucionais) que permitam, ainda que de forma remota, conectar o
bem jurídico penalmente protegido a algum princípio constitucional, face à amplitude
axiológica e cultural da Constituição (FELDENS, 2005). Logicamente, essa
necessidade de referência ao texto constitucional há de ser fundamentada, já que
uma simples análise (senso comum) apontaria que todo bem jurídico nele estaria
“positivado”.
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Por outro lado, tendo em vista existir na CF/88 um feixe de bens jurídicos ou
direitos, que, conforme a classificação operada, se traduzem nas dimensões ou
gerações de direitos, há de se verificar quais deles estão a merecer a tutela penal.
Na senda evolutiva dos fatos sociais, o sistema jurídico adapta-se,
paulatinamente, a novas ordens de direitos, afastando-se de uma concepção
obsoleta de que reconhecia como tais apenas aqueles bens ou interesses de índole
individual, denominados de primeira dimensão (FELDENS, 2005). Dessa forma, a
partir do reconhecimento dos direitos sociais, de segunda dimensão, até ulteriores
direitos coletivos e difusos, de terceira dimensão, a ordem política-normativa deve
garantir-lhes uma proteção efetiva. Para tanto, torna-se imperioso efetivá-los por
meio de uma intervenção ativa do Estado.
Ao Direito Penal, nesse panorama, é reservada uma missão de
inquestionável relevância para assegurar tais direitos, especialmente no tocante
àqueles que se mostram vitais para o hígido funcionamento de um Estado Social e
Democrático de Direito, como “ordem econômica”, “ordem tributária”, “regularidade
do sistema financeiro”, por exemplo, que, incorporados à Constituição, se espraiam
para além do interesse público stricto sensu, pois deles são dependentes, ainda que
de forma mediata, os sujeitos sociais. Afinal, ataques a bens jurídicos que compõe a
segunda e terceira dimensões de direitos não deixam de repercutir no patrimônio
jurídico de cada cidadão (FELDENS, 2005).
Já não há mais espaço, em pleno século XXI, para se operar com um Direito
Penal do século XVIII cuja finalidade, basicamente, era direcionada à proteção da
propriedade privada, “fazendo com que a clientela da justiça criminal se fizesse
representada pela classe baixa, circunstância essa, aliás, que perdura até os dias
atuais” (FELDENS, 2005, p. 55).
Faz-se necessário reconhecer, então, concordando com o autor, novos
valores gerados em face das novas necessidades (individuais e sociais),
estendendo a proteção a outras categorias de bens jurídicos hoje reconhecidas na
Constituição, especialmente quando sua violação possa representar, mesmo que
indiretamente, lesão similar – ou até superior – àquela verificada contra bens
jurídicos individuais, cuja proteção penal jamais fora questionada.
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Irretocável, nesse ponto, é a lição do doutrinador:
Em essência, o que se busca com essa contextualização do Direito Penal no ambiente socioevolutivo contemporâneo é advertir para o fato de que lesões indesejadas a bens jurídicos tradicionais – como a vida, a saúde, a dignidade humana, etc. – podem decorrer de ataques que não necessariamente lhe sejam diretos, mas que nem por isso deixam de atingi-los severamente. Tomemos, apenas a título de exemplo, as variadas hipóteses de crimes ambientais, como a contaminação indiscriminada do ar e da água, isso sem cogitarmos das repercussões econômico-financeiras no plano das políticas públicas – com efeitos, portanto, sobre a vida particular de cada cidadão, notadamente aquele menos favorecido – decorrente de ações delituosas dessa natureza. Tudo a significar que o legislador, ao erigir determinados bens jurídicos coletivos à categoria de objetividades jurídico-penais não está procedendo a uma ‘artificiosa criação de bens jurídicos sem conteúdo’, porquanto são ‘tão reais e referíveis à pessoa como os tradicionais bens jurídicos individuais’ (FELDENS, 2005, p. 59).
De igual sorte, Roxin (2008), ao tempo em que reconhece a importância do
Direito Penal como “instituição social” que garante ao indivíduo os pressupostos
para desenvolver a sua personalidade, dá ênfase à necessidade de incriminação,
em uma sociedade moderna, de bens jurídicos coletivos. Entretanto, o notável
penalista alemão adverte que, por ser ele um “mal necessário”, a sua finalidade, de
garantir a coexistência, está condicionada a um pressuposto limitador: a pena só
pode ser aplicada quando se revelar insuficiente a adoção de outra medida menos
gravosa.
Em outras palavras, o renomado jurista sintetiza que o Direito Penal é
desnecessário quando se pode assegurar a coexistência pacífica através do direito
civil, de uma proibição de direito administrativo ou por outros meios extrajurídicos. A
sua função de proteção dos bens jurídicos, portanto, dar-se-ia apenas de forma
subsidiária.
Daí decorre um postulado muito importante para o Direito Penal
contemporâneo: a afirmação de sua fragmentariedade ou subsidiariedade. Mas,
verificada a proteção deficiente dos bens jurídicos por outros meios, não restam
dúvidas que o ordenamento jurídico lhe confere legitimidade por meio da própria
Constituição, conforme visto acima. E o que o diferencia dos demais ramos do
direito, nesse aspecto, é a imposição de uma sanção grave ao violador da norma: a
pena.
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Nesse sentido, Zaffaroni e Pierangeli (2004, p. 99) explicam, com
propriedade, que “o direito penal tem, como caráter diferenciador, o de procurar
cumprir a função de prover a segurança jurídica mediante a coerção penal”. Esta,
por sua vez, se distingue das demais sanções jurídicas, porque “almeja assumir um
caráter especificamente preventivo ou particularmente reparador” (p. 99).
Concebida a pena, então, como consequência pela prática de uma conduta
proibida pelo Direito Penal, teria sentido dizer que a finalidade deste difere do
objetivo daquela? Absolutamente não.
Se o Direito Penal em um Estado Social e Democrático de Direito tem por
objetivo cumprir a função de segurança jurídica, tutelando bens jurídicos, a
finalidade da pena, que é a sanção infligida a quem viola a conduta proibida, só
pode ser a de prover essa tutela de direitos (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004).
Coisa distinta é o modo pelo qual a pena irá cumprir sua função, que pode
materializar-se desde a mera retribuição ao mal praticado, concepção de há muito
ultrapassada, até a forma de prevenção de futuras condutas proibidas.
2.1.2 A pena como função de prover a segurança jurídica
É quase unânime, na dogmática jurídico-penal, que a pena se justifica por
sua necessidade. É visualizada como um mal que deve ser imposto a uma pessoa
por causa da prática de um delito. Sem ela, não seria possível a convivência na
sociedade de nossos dias (BITENCOURT, 2004).
Consoante visto, “a pena não pode perseguir outro objetivo que não seja o
que persegue a lei penal e o direito penal em geral: a segurança jurídica”
(ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004, p. 102). A pena deve aspirar a prover a tutela de
bens jurídicos, com a finalidade de prevenir futuras condutas delitivas. Sem
embargo, os estudiosos antes mencionados advertem que “a pena segue sendo
pena, porque para ressocializar é necessária a privação de alguns bens jurídicos, o
que sempre terá um conteúdo penoso para quem o sofre” (p. 102).
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Não há consenso na doutrina, todavia, quanto às teorias de prevenção da
pena, se deve adotar-se a teoria de prevenção geral ou especial.
Zaffaroni e Pierangeli (2004) entendem que a pena deve almejar uma
prevenção especial, de modo a diminuir a vulnerabilidade do criminalizado frente ao
próprio sistema penal. Nesse caso, a pena faria que o criminalizado tomasse
consciência da conduta praticada, levando-o a “mostrar a cara” perante o controle
social institucionalizado e a ser tomado como exemplo do que não se deve fazer. No
entanto, os autores não descartam a possibilidade de a pena, como prevenção
especial, cumprir socialmente uma função de prevenção geral, ainda que de forma
eventual.
Já Roxin (2008) perfilha entendimento de que a pena deve possuir aspectos
preventivos especiais e gerais, no sentido de que aqueles se traduzem na
ressocialização do criminoso e estes no reestabelecimento da paz social, para que a
conduta delituosa não seja imitada. Trata-se de uma teoria de prevenção geral
positiva limitadora (BITENCOURT, 2004).
De toda a sorte, faz-se mister assinalar que a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica (Decreto n.º 678, de 6 de
novembro de 1992), ao qual o Brasil aderiu, estabelece, em seu artigo 5.º, § 6.º, que
“as penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a
readaptação social dos condenados”.
Para finalizar, Roxin (2008) expõe que o Direito Penal do futuro se tornará
cada vez mais um instrumento de direcionamento social (gesellschaftliches
Steuerungsinstrument) totalmente secularizado e, assim, realizará uma síntese entre
a garantia da paz, o sustento da existência e a defesa de direitos. A pena, nessa
perspectiva, deixaria de ser o único meio de punição e seria substituída pela
utilização de novas sanções menos limitadoras de liberdade.
Delimitada, portanto, a finalidade do Direito Penal – cuja essência,
recapitulando, consiste na tutela de bens jurídicos por meio da coerção penal –,
analisar-se-á, na sequência, o que a dogmática jurídico-penal se ocupa de explicar,
ou seja, os conceitos de crime e seus respectivos atributos e caracteres.
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2.2 Conceitos de crime
O nosso ordenamento jurídico realiza uma classificação dicotômica de
infração penal, fornecendo conceito de crime e de contravenção. É o que se extrai
do artigo 1.º da Lei de Introdução do Código Penal (Decreto-lei n.º 3.914, de 9 de
dezembro de 1941):
Art. 1º. Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.
Entretanto, acentua Bitencourt (2004) não existir diferença ontológica entre
crime (ou delito) e contravenção, motivo pelo qual o fundamento da distinção é
puramente político-criminal, e o critério é simplesmente quantitativo, com base na
sanção escolhida (pena privativa de liberdade e prisão simples).
Em realidade, tal conceito legal de crime é insuficiente para fins científicos, já
que não há descrição de sua essência. Por isso, há de se verificar os conceitos de
crime que a dogmática jurídico-penal ao longo da história tratou de desenvolvê-los.
Pois bem. Ensina Santos (2002) que as definições de crime podem ter
natureza real, material, formal ou analítica, segundo a origem, os efeitos, ou os
caracteres da realidade retratada.
Desse modo, definições reais explicariam a origem do fato delituoso em um
determinado contexto histórico e social, contribuindo sobremaneira para o estudo da
criminologia (SANTOS, 2002).
Em seu enfoque material, o crime é toda ação ou omissão a lesão de bens
jurídicos, contrariando valores ou interesses do corpo social, a exigir sua proibição
com ameaça de pena (SANTOS, 2002; BITENCOURT, 2004). Através dessa
definição compreender-se-ia a gravidade do dano social produzido pelo delito,
possibilitando ao legislador a formulação de novas políticas criminais.
20
Na acepção formal, por sua vez, o delito seria toda a conduta comissiva ou
omissiva proibida por lei, sob ameaça de pena (BITENCOURT, 2004). Tratar-se-ia,
pois, de mera subsunção do fato ao tipo legal.
Verificada a insuficiência dos conceitos material e formal para permitir à
dogmática penal uma detalhada análise estrutural dos elementos do fato punível,
nesse contexto, fez-se necessária a adoção de um conceito analítico de crime
(BITENCOURT, 2004).
Historia esse último doutrinador que a elaboração do conceito analítico se
iniciou com Carmignani, em 1833, apesar de encontrar antecedentes em Deciano,
em 1551, e Bohemero, em 1732. Embora obscura a definição de seus elementos
estruturais, que se depuraram ao longo do tempo, o conceito analítico de crime
passou a defini-lo como ação típica, antijurídica e culpável.
Por outro canto, a dogmática penal contemporânea, admitindo de modo
praticamente unânime a estruturação analítica de crime, coincide na adoção de
duas categorias elementares do fato punível: o tipo de injusto e a culpabilidade.
Dessa forma, o injusto desdobra-se nos conceitos de ação, de tipicidade e de
antijuricidade; enquanto que o elemento culpabilidade é constituído pelos conceitos
de capacidade penal ou imputabilidade, de conhecimento da antijuridicidade (real ou
potencial) e de exigibilidade de conduta diversa (SANTOS, 2002).
Apesar disso, aponta Santos (2002) que existe um ponto de discordância no
aspecto do injusto, responsável pela existência dos sistemas bipartido e tripartido de
crime: a relação entre os conceitos de tipo legal e de antijuridicidade.
2.2.1 Sistema bipartido de crime
O sistema bipartido de crime propõe uma unidade conceitual de tipicidade e
antijuridicidade, como elementos integrantes do tipo de injusto, ao lado da
culpabilidade. Assim, o tipo legal é a descrição da lesão de bens jurídicos e a
21
antijuridicidade é um juízo de valoração do comportamento naquele descrito,
formando um único conceito: o tipo de injusto.
A partir dessa estrutura, desenvolveu-se a teoria dos elementos negativos do
tipo, segundo a qual tipo legal e antijuridicidade são, respectivamente, as dimensões
de descrição e de valoração do conceito de tipo de injusto. Desse modo, as causas
de justificação funcionariam como fundamentos negativos do injusto, enquanto que
o tipo legal descreveria as características positivas dele (SANTOS, 2002).
Nesse passo, o tipo de injusto de homicídio, p. ex., deveria ser lido da
seguinte forma: matar alguém, exceto em legítima defesa, em estado de
necessidade, etc. Daí que, com base nesse sistema, “um homicídio em legítima
defesa seria uma ação atípica e não uma ação típica justificada” (SANTOS, 2002, p.
3).
2.2.2 Sistema tripartido de crime
De acordo com o sistema tripartido de delito, o qual, aliás, consoante acentua
Santos (2002), é dominante na dogmática contemporânea, há uma autonomia entre
a tipicidade e a antijuridicidade no âmbito do injusto, sob o fundamento de ambas
realizarem funções político-criminais independentes.
Dessa forma, explica o estudioso supracitado que o tipo legal descreve ações
proibidas sob ameaça de pena, como corolário do princípio da legalidade. Já a
antijuridicidade define preceitos permissivos que eliminam a contradição da ação
típica com o ordenamento jurídico. Portanto, no exemplo antes mencionado, matar
alguém em legítima defesa não é uma ação atípica, mas uma ação típica justificada.
Do contrário, não haveria como diferenciar comportamentos justificados, que devem
ser suportados, e comportamentos atípicos, os quais podem variar desde condutas
insignificantes até comportamentos antijurídicos.
Na linha do sistema tripartido, de outro giro, surgiu a moderna teoria finalista
de ação, desenvolvida por Hans Welzel, penalista alemão, na década de 1930, a
partir de estudos iniciados por Hellmuth Von Weber e Alexander Graf zu Dohna já
22
nos fins dos anos de 1920 (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004). Segundo ela, a ação
final consiste na proposição do fim, na escolha dos meios necessários e na
realização da ação no mundo real. Esse conceito introduziu o dolo e a culpa à
estrutura do tipo, deixando à culpabilidade apenas o aspecto da reprovabilidade
(SANTOS, 2002).
Era uma ruptura ao clássico modelo “objetivo-subjetivo” de delito de
Liszt/Beling, que, com base numa teoria causalista, o entendia como uma conduta
objetiva sem conteúdo que causava um resultado, enquanto que o aspecto subjetivo
(dolo e culpa) residia puramente na culpabilidade (ZAFFARONI; PIERANGELI,
2004).
Conforme Santos (2002), o modelo finalista de crime difundiu-se na doutrina
e jurisprudência contemporâneas, influenciando diretamente algumas legislações
modernas, como a reforma penal alemã, de 1975, e a nova parte geral do Código
Penal Brasileiro (Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940).
Destaca-se, por fim, algumas consequências trazidas por esse modelo final
de ação:
[...] a) a inclusão do dolo (sem a consciência da ilicitude) e da culpa nos tipos de injustos (doloso ou culposo); b) o conceito pessoal de injusto – leva em consideração os elementos pessoais (relativos ao autor): o desvalor pessoal da ação do agente, que se manifesta pelo dolo de tipo (desvalor doloso; tipo de injusto doloso) ou pela culpa (desvalor culposo; tipo de injusto culposo). E ao desvalor da ação corresponde um desvalor do resultado, consistente na lesão ou perigo de lesão do bem jurídico tutelado; c) a culpabilidade puramente normativa. (BITENCOURT, 2004, p. 204)
Adota-se, pois, no presente trabalho o sistema tripartido de crime, cuja
estratificação – ação típica, antijurídica e culpável – (ZAFFARONI; PIERANGELI,
2004) permite uma melhor compreensão do objeto deste estudo.
2.3 Tipicidade
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5.º, inciso XXXIX, consagrou o
princípio da reserva legal, estabelecendo a garantia individual de que não haverá
23
crimes e penas sem prévia previsão legal, identificada na vetusta expressão latina
nullum crimen, nulla poena sine lege.
Cabe à lei, portanto, a assaz tarefa de conceituar e descrever os tipos penais
com todos os seus elementos. É o tipo legal que realiza e garante o sobredito
princípio (PRADO, 2011).
Como assevera Jakobs (2008), o conceito de tipo foi extraído do
desenvolvimento da teoria do corpus delicti. Esta teoria identificava o corpus delicti
como sendo sinais externos de um crime que legitimavam medidas persecutórias
especiais (“inquisição especial”). Corpus delicti era, pois, um conceito de
acontecimento concreto que foi retirado do campo processual para o material, sob a
forma de relevância jurídico-material. Porém, foi apenas no início do século XX que
o conceito de tipo foi dogmaticamente ativado, quando Beling o estabeleceu como
ente autônomo do crime, anterior à antijuridicidade e à culpabilidade. O tipo
(Tatbestand), então, é entendido como síntese dos elementos que demonstram qual
crime se trata tipicamente como “tipo do crime” (Vebrechenstyp).
Nos dias atuais, a partir da teoria finalista da ação concebida por Welzel na
década de 1930, trabalha-se com um conceito complexo de tipo, no qual contém
aspectos objetivo e subjetivo, no marco de um sistema tripartido de delito (tipicidade,
antijuridicidade e culpabilidade) (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004).
Alguns autores utilizam a terminologia tipo de injusto (Unrechtstypus) para
distinguir de tipo legal (Tatbestand). Toledo (2010, p. 134 e ss.) afirma que “a noção
de tipo de injusto se constrói com os elementos essenciais do tipo legal,
necessariamente constante de lei escrita, mas contém, além desses elementos, a
nota de ilicitude do fato”. Desse modo, a ação típica e antijurídica formaria o
conceito de injusto (Unrecht). Nada obstante, sua essência é a mesma da simples
denominação de tipo, porque ilicitude e tipicidade são elementos distintos (TOLEDO,
2010; SANTOS, 2002).
Nesse quadrante, o tipo é gerado pelo interesse do legislador no ente que
valora – que, como visto, deve possuir coloração constitucional -, enunciando uma
norma para tutelá-lo, a qual se manifesta em um tipo legal que a ela agrega a tutela
penal (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004). Em outras palavras, é criado com a
24
finalidade de proteção de bens jurídicos, os quais constituem o núcleo de toda
construção normativa e típica penal e devem, por isso, ter substrato constitucional
(PRADO, 2011; FELDENS, 2005).
O tipo, todavia, com a tipicidade não se confunde.
A tipicidade, segundo Zaffaroni e Pierangeli (2004), é a característica que tem
uma conduta pela razão de estar subsumida a um tipo penal. Comprova-se-a
comparando a conduta particular (concreta) com a individualização daquela
hipoteticamente prevista no tipo (abstrata), para verificar se há uma adequação
típica (juízo de tipicidade). A tipicidade, pois, é uma característica basilar do injusto
penal, porquanto atribui a um injusto esse caráter específico (PRADO, 2011).
Anote-se, nada obstante, que a tipicidade não se esgota apenas na mera
subsunção de um fato a um modelo previsto no tipo legal. São necessárias, mais do
que isso, a antinormatividade da conduta e a afetação do bem jurídico tutelado,
formando um conceito de tipicidade conglobante, que, ao lado da tipicidade legal,
resulta na tipicidade penal (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004).
2.3.1 A tipicidade conglobante
Quando o legislador seleciona um bem jurídico plasmado na constituição para
lhe dar uma proteção penal, diz-se que há uma valoração desse bem e seu
resultado dá lugar a uma norma. Ato sequente, com base nela elabora-se um tipo
penal e o bem jurídico passa a ser penalmente tutelado (ZAFFARONI;
PIERANGELI, 2004).
Para se ter uma melhor compreensão, reproduz-se o exemplo que dão os
sobreditos doutrinadores:
O legislador encontra-se diante do ente “vida humana” e tem interesse em tutelá-la, porque a valora (a considera positiva, boa, necessária, digna de respeito, etc.). Este interesse jurídico em tutelar o ente “vida humana” deve ser traduzido em uma norma; quando se pergunta “como tutelá-lo?”, a única resposta é: “proibindo matar”. Esta é a norma proibitiva “não matarás”. Esta norma deve ser expressa em leis e, com isto, a vida humana se revelará como um bem jurídico. Assim, a vida humana é um bem jurídico à luz das
25
disposições constitucionais, civis (art. 948 do CC/2002) etc. Sem embargo, pode ser que não se contente com esta manifestação da norma e requeira também uma tutela penal, ao menos para certas formas de lesão ao bem. É aí, então, quando o legislador elabora o tipo penal que o bem jurídico vida humana passa a ser um bem jurídico-penalmente tutelado (art. 121 do CP). (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004, p. 432).
Assim, destacam que a conduta penalmente típica deve, primeiro, estar
prevista em um tipo legal; segundo, ser antinormativa; e, por fim, causadora de uma
lesão ao bem jurídico protegido. E isso se verifica a partir de uma investigação do
alcance da norma que está anteposta ao tipo e da afetação do ente tutelado,
resultando numa visão conglobada de tipicidade.
Fica claro, pois, no entendimento dos autores, ser a afetação do bem jurídico
um requisito da tipicidade penal, mas não da tipicidade legal, que apenas a limita.
Se a norma tem sua razão de ser na tutela de bens jurídicos, não pode incluir em
seu âmbito de proibição condutas que não os afetem.
Afinal, pode acontecer que o tipo legal se tenha configurado e, no entanto, o
bem jurídico não tenha sido atingido. Neste caso, não se cogita a existência de
crime, pois, do contrário, desvirtuaria a própria finalidade do Direito Penal: a de
proteção de bens jurídicos.
Zaffaroni e Pierangeli (2004, p. 533), ademais, ensinam que a afetação do
bem jurídico pode dar-se de duas formas, quais sejam, por dano ou lesão e por
perigo:
Há dano ou lesão quando a relação de disponibilidade entre o sujeito e o ente foi realmente afetada, isto é, quando, efetivamente, impediu-se a disposição, seja de forma permanente (como ocorre no homicídio) ou transitória. Há afetação do bem jurídico por perigo quando a tipicidade requer apenas que essa relação tenha sido colocada em perigo. Estas duas formas de afetação dão lugar a uma classificação dos tipos penais em tipos de dano e tipos de perigo.
Conclui-se, do exposto, que o juízo de tipicidade não é um mero juízo de
tipicidade legal, mas, antes, de tipicidade penal, que somente se verifica depois de
comprovada a tipicidade conglobante, como corretivo da tipicidade legal
(ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004).
26
Conceituada a tipicidade penal, passa-se, doravante, a descrever apenas as
formas de tipo doloso, a fim de bem delimitar a estrutura típica do crime de
supressão ou redução de tributos que se verificará no próximo capítulo.
2.3.2 Tipo ativo doloso
Partindo-se de uma concepção complexa de tipo, o tipo doloso ativo
apresenta dois aspectos, quais sejam, um objetivo e outro subjetivo, significando
que “a lei, mediante o tipo, individualiza condutas atendendo a circunstâncias que
ocorrem no mundo exterior e a circunstâncias que se encontram no interior,
pertencentes ao psiquismo do autor” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004, p. 446).
O tipo doloso implica sempre a causação de um resultado (aspecto externo) e
a vontade de causá-lo (aspecto interno). O aspecto externo do tipo doloso, isto é, a
alteração produzida no mundo físico, denomina-se tipo objetivo. Ao aspecto interno,
ou seja, à vontade de causar o resultado, atribui-se a denominação de tipo
subjetivo. De toda sorte, essa divisão é meramente didática, pois que “não há
nenhuma oposição entre o subjetivo e o objetivo, que formam parte de um contexto
único e indissolúvel” (PRADO, 2011, p. 400).
Nesse panorama, o tipo objetivo representa a exteriorização da vontade que
concretiza o tipo subjetivo. O fundamento material de todo crime é a concretização
da vontade num fato externo, que contenha, ao menos, um nexo causal. Isso se dá
através de uma causação de um resultado, posto que não há conduta sem resultado
(ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004).
O nosso Código Penal adota a teoria da conditio sine qua non, materializada
no artigo 13, caput, parte final, do CP, e que considera causa “a ação ou omissão
sem a qual o resultado não teria ocorrido”. Embora essa teoria possa imputar um
resultado a qualquer pessoa que seja condição para a ocorrência de um fato (p. ex.,
pai e mãe de um homicida), Zaffaroni e Pierangeli (2004, p. 449) explicam que “sua
admissão não acarreta qualquer problema, porque a relevância penal da
causalidade se encontra limitada, dentro da própria categoria do tipo, pelo tipo
27
subjetivo, isto é, pelo querer do resultado”. Logo, somente é relevante a causalidade
material dirigida pela vontade a um fim.
De mais a mais, o tipo objetivo também é composto de um núcleo, no qual
contém o verbo que remete a uma ação ou omissão, e de elementos secundários ou
complementares, como, por exemplo, os sujeitos ativo e passivo, e elementos
descritivos e normativos (PRADO, 2011).
Nessa linha, sujeito ativo é o autor da conduta típica. É autor quem pratica
pessoalmente a conduta típica, ainda que utilize outro que não realiza a conduta
como mero instrumento físico (autoria direta ou imediata); ou quem se vale de
terceiro para realizar a conduta, o qual age sem dolo, atipicamente ou
justificadamente (autoria indireta ou mediata). Sujeito passivo, por sua vez, é o
titular do bem jurídico tutelado, que pode ou não sofrer a conduta (ZAFFARONI;
PIERANGELI, 2004).
Elementos descritivos ou objetivos propriamente ditos, a seu turno, “são
aqueles cuja identificação ressai de uma simples verificação sensorial” (PRADO,
2011, p. 401). São objetos, seres ou atos perceptíveis através dos sentidos (p. ex.,
alguém, animal vivo, mercadoria).
Elementos normativos, de outro giro, dizem respeito a certo dado ou realidade
da ordem jurídica, possuindo os mais diversos conteúdos, que são compreendidos
quando conexos ao mundo das normas. Dividem-se em elementos normativos
jurídicos, que são preenchidos por meio de conceitos jurídicos ou referentes à
norma jurídica (i. e., cheque, imposto); e elementos normativos extrajurídicos ou
empírico-culturais, que são juízos de valor fundado na experiência ou nos costumes
sociais (i. e., ato obsceno, dignidade) (PRADO, 2011).
Do exposto, depreende-se que o tipo objetivo se realiza mediante a
realização da ação prevista no núcleo do tipo, na qual deve conter implicitamente os
elementos complementares porventura existentes, que produz um resultado.
O tipo subjetivo, de seu turno, abrange todos os aspectos subjetivos ou
internos da conduta proibida que, concretamente, produzem o tipo objetivo. É, por
isso, constituído de um elemento subjetivo geral – o dolo -, que, por vezes, é
28
acompanhado de elementos subjetivos específicos ou distintos do dolo. Como
acentua Bitencourt (2004, p. 255), “os elementos subjetivos assumem
transcendental importância na definição da conduta típica. É através do animus
agendi que se consegue identificar e qualificar a atividade comportamental do
agente”.
O dolo, nesse contexto, é o epicentro do tipo subjetivo. É o querer dirigido à
realização do tipo objetivo. Nosso Código Penal, em seu artigo 18, inciso I,
conceitua o dolo no sentido de que “o agente quis o resultado, ou assumiu o risco de
produzi-lo”.
Zaffaroni e Pierangeli (2004, p. 458) conceituam-no como “a vontade
realizadora do tipo objetivo, guiada pelo conhecimento deste no caso concreto”.
Dessa forma, o dolo apresenta um aspecto de conhecimento ou cognoscitivo e um
aspecto de querer ou volitivo.
O aspecto cognoscitivo do dolo abarca o conhecimento dos elementos
requeridos no tipo objetivo. Esse conhecimento deve ser sempre efetivo e
atualizável, pois o dolo pressupõe que o autor tenha previsto o curso causal e a
produção do resultado típico. Sem esta previsão, não há de se cogitar em dolo
(ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004).
Já o aspecto volitivo se traduz no “querer” ou “assumir o risco de produção do
resultado” (art. 18, I, do CP). Tratam-se do dolo direto e do dolo eventual. O dolo
direto é aquele em que o autor quer diretamente a produção do resultado típico, seja
como o fim diretamente querido (dolo direto de primeiro grau), seja como
consequência de um meio empregado para obter esse fim (dolo direto de segundo
grau). O dolo eventual caracteriza-se, no nível intelectual, pelo fato de o autor levar
a sério a possível produção do resultado típico e, no nível da atitude emocional, por
conformar-se com a eventual produção desse resultado, aceitando-a (SANTOS,
2002).
Por outro lado, no tipo subjetivo podem conter eventualmente os elementos
subjetivos específicos ou distintos do dolo. Esses elementos não integram o dolo e
nem com ele se confundem, pois, se o dolo é o querer do resultado típico, somente
compõe o tipo quando forem diferentes da simples finalidade de realizar o tipo
29
objetivo (BITENCOURT, 2004). Podem, nesse sentido, ter duas naturezas distintas:
uns são ultraintencionais, particulares direcionamentos da vontade que vão mais
além do mero querer a produção do resultado típico; outros são particulares
disposições internas do autor (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004).
Portanto, em resumo do que foi exposto, o tipo ativo doloso é composto pelos
tipos objetivo e subjetivo, que, em uma união indissolúvel, representam uma
atividade finalista que produz determinado resultado, identificado necessariamente
pela ofensa (dano ou perigo) a um bem jurídico tutelado pela norma penal
(BITENCOURT, 2004).
2.3.3 Tipo omissivo doloso
Enquanto os tipos ativos individualizam a conduta proibida por meio de
descrições de um ou mais verbo e de eventuais elementos secundários, os tipos
omissivos, ao revés, descrevem a conduta devida, resultando proibida, por
conseguinte, qualquer outra que dela se afaste (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004).
Nas preciosas palavras de Santos (2002, p. 111-112):
Ação e omissão são conceitos contraditórios que, segundo repetida lição de RADBRUCH, relacionam-se como A e não-A: se A significa realizar uma ação proibida, não-A significa omitir a realização de uma ação mandada. A contradição entre ação e omissão assume forma plástica em ENGISCH, que define ação como emprego de energia em determinada direção, e omissão de ação como não emprego de energia em determinada direção. Desse modo, a ação seria uma realidade empírica conhecível pelos sentidos; a omissão da ação não seria uma realidade empírica, mas uma expectativa frustrada de ação, somente conhecível por um juízo de valor. Nesse sentido, omitir uma ação não significa, simplesmente, não fazer nada, mas não fazer algo determinado pelo direito.
Desse modo, no ordenamento jurídico há normas que podem ser enunciadas
proibitivamente ou preceptivamente para fins de proteção dos bens jurídicos.
Enquanto no enunciado proibitivo se proíbe a realização de uma ação
individualizada por um verbo, no enunciado preceptivo se proíbe qualquer outra
ação que não aquela individualizada pelo verbo no sentido de fazer algo
(ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004).
30
Tais enunciados preceptivos dão lugar aos chamados tipos de omissão
própria e tipos de omissão imprópria ou comissivos por omissão. Estes
correspondem aos tipos de resultado e têm por fundamento a posição de garantidor
do bem jurídico atribuída a determinados indivíduos, que implementa um dever
jurídico especial de agir, cuja lesão implica em responsabilidade pelo resultado,
como se fosse cometido por ação. Aqueles, inversamente, correspondem aos tipos
de simples atividade e se fundam na solidariedade humana, ensejando um dever
jurídico geral de agir, cuja lesão acarreta responsabilidade penal dolosa pela
omissão da ação mandada (SANTOS, 2002).
Ademais, os tipos omissivos apresentam, assim como nos ativos, elementos
objetivo e subjetivo, porém com caracteres distintos.
No aspecto objetivo do tipo omissivo, a realidade determinante do dever de
agir é a situação de perigo para o bem jurídico ou uma situação típica, que pode
estar explícita no tipo legal, no caso da omissão própria, ou implícita no resultado
descrito o tipo legal, no caso da omissão imprópria (SANTOS, 2002).
Além disso, exige-se que a conduta devida seja concreta e fisicamente
possível, pois o direito não pode exigir o impossível. Afinal, “não há conduta devida
de auxílio quando não existe possibilidade de prestá-lo” (ZAFFARONI;
PIERANGELI, 2004, p. 512). O nosso Código Penal consagra esse requisito em seu
artigo 13, § 2.º, no sentido de que “a omissão é penalmente relevante quando o
omitente devia e podia agir para evitar o resultado”.
O tipo objetivo omissivo reclama, outrossim, um nexo de evitação do
resultado, isto é, uma probabilidade muito grande de que a conduta devida teria
interrompido o processo causal do resultado típico. Esse nexo de evitação,
conforme ensinam Zaffaroni e Pierangeli (2004), é estabelecido por um processo de
raciocínio mental: se se imaginar a conduta devida e o resultado desaparecer,
haverá o nexo de evitação; se, do contrário, o resultado permanecer, não existirá um
nexo de evitação.
De outra banda, na omissão imprópria há um elemento específico do tipo
objetivo que a distingue da omissão própria: a posição de garantidor daquele que
tem o dever jurídico de agir para impedir o resultado. Logo, o autor na omissão
31
imprópria só pode encontrar-se dentro de um determinado círculo, pelo que a não-
evitação do resultado por ação mandada equivale à produção deste mesmo
resultado por ação proibida.
Santos (2002) afirma que a presença real do garantidor do bem jurídico
resulta em duplo significado concreto: primeiro, o titular do bem jurídico garantido
permite-se a exposições de perigo que, de outro modo, as evitaria; segundo, as
demais pessoas podem confiar na ação efetiva do garantidor bem jurídico e, por
isso, estão liberadas do dever jurídico de impedir o resultado.
A legislação brasileira adotou um critério formal para definir a posição de
garantidor no artigo 13, § 2.º, do CP, ao estabelecer que “o dever de agir incumbe a
quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra
forma, assumiu a responsabilidade de evitar o resultado; c) com seu comportamento
anterior, criou o risco da ocorrência do resultado”.
No que tange ao aspecto subjetivo do tipo omissivo doloso, por outro canto, o
dolo requer o efetivo conhecimento da situação típica e a previsão da causalidade.
Quando se tratar de uma omissão imprópria, requer ainda que o autor conheça a
qualidade que o coloque na posição de garantidor, bem como “o conhecimento de
que lhe é possível impedir a produção do resultado” (ZAFFARONI; PIERANGELI,
2004, p. 516).
Destarte, realizada a análise da tipicidade e de seus elementos, passa-se a
descrever a antijuridicidade e a culpabilidade, eis que elementos integrantes do
modelo analítico de crime.
2.4 Antijuridicidade
Ilicitude ou antijuridicidade são termos empregados como sinônimos. Alguns
autores preferem a primeira à segunda expressão, porquanto a reforma do Código
Penal em 1984, ao dar nova redação à Parte Geral, adotou o termo ilicitude,
abandonando a expressão antijuridicidade que compunha a Parte Geral do CP em
1940.
32
Toledo (2010) anota que a opção pelo termo antijuridicidade por nossos
penalistas, influenciados por autores espanhóis e italianos, não é muito feliz, na
medida em que, com base na lição de Carnelutti, há uma contradição entre o delito
ser um fato e um ato jurídico e, ao mesmo, um fato ou ato antijurídico. Assim, afirma
ter o legislador de 1984 contribuído para afastar “o equívoco linguístico que parece
ter sido fruto de importação de uma tradução pouco precisa da palavra composta
alemã Rechtswidrigkeit, que significa, literalmente, contrariedade ao direito (não ao
jurídico)” (TOLEDO, 2010, p. 160).
Nada obstante os argumentos notáveis desse jurista, adota-se a expressão
antijuridicidade, primeiro, porque é empregada como sinônimo de ilicitude
(TOLEDO, 2010), e, segundo, se mantém atualizada à moderna dogmática jurídico-
penal contemporânea (BITENCOURT, 2004).
Dito isso, antijuridicidade pode ser conceituada como contradição entre a
ação humana e o ordenamento jurídico no conjunto de suas proibições e
permissões; estas entendidas como causas de justificação, aquelas como
descrições de ações ou omissões proibidas pelos tipos penais. O conceito de
antijuridicidade, pois, é o oposto ao de juridicidade (SANTOS, 2002).
Nesse sentido, um fato humano – qualquer que seja – será ilícito sempre que
estiver em contrariedade à ordem jurídica. E isso ocorre tanto pelo fazer o proibido,
quanto o não fazer o que determina esse mesmo ordenamento. A antijuridicidade é,
assim, a propriedade de certos comportamentos humanos, seja sob a forma de
ação, seja sob a forma de omissão, de se oporem ao ordenamento jurídico
(TOLEDO, 2010).
A antijuridicidade integra o conceito de injusto, pois este engloba toda e
qualquer ação típica e antijurídica, ainda que não seja culpável. A distinção entre
injusto e antijuridicidade, obtempera Toledo (2010), tem importância para o Direito
Penal, na medida em que aquele pode ser diferenciado qualitativa e
quantitativamente, enquanto esta não comporta diferenciações materiais ou
escalonamento. Assim, um homicídio, i. e., não seria mais antijurídico do que um
furto, mas é evidente que se distinguem qualitativa e quantitativamente no âmbito do
injusto.
33
De outro vértice, faz-se necessário distinguir antijuridicidade de
antinormatividade.
A antinormatividade surge com a realização da conduta descrita no tipo de
uma norma proibitiva, que caracteriza a contradição entre aquela e a exigência
desta. Em resumo, “a tipicidade penal implica a contrariedade com a ordem
normativa” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004, p. 437).
A antijuridicidade pressupõe a antinormatividade, mas esta não é suficiente
para configurar aquela, pois a antinormatividade pode ser neutralizada por um
preceito permissivo ou uma causa de justificação que ampare a conduta. Decorre
daí que “a tipicidade atua como um indício da antijuridicidade, como um desvalor
provisório, que deve ser configurado mediante a comprovação das causas de
justificação” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004, p. 437).
As causas de justificação ou preceitos permissivos – também denominados
de tipos permissivos – estão previstas no artigo 23 e incisos do Código Penal:
Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: I - em estado de necessidade; II - em legítima defesa; III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.
Esses tipos permissivos, entretanto, não serão objetos de análise neste
trabalho.
Nesse panorama, uma vez descritos os elementos que compõe o injusto,
quais sejam, tipicidade e antijuridicidade, passa-se ao último plano da estrutura
analítica de crime: a culpabilidade.
2.5 Culpabilidade
No contexto de um modelo finalista de delito – crime como ação ou omissão
típica, antijurídica e culpável – a doutrina contemporânea adota um conceito
normativo de culpabilidade, segundo o qual “um injusto, isto é, uma conduta típica e
antijurídica, é culpável quando é reprovável ao autor a realização desta conduta
34
porque não se motivou na norma, sendo-lhe exigível, nas circunstâncias em que
agiu, que nela se motivasse” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004, p. 437).
Esse atual conceito de culpabilidade, afirma Santos (2002), é o produto
inacabado de mais de um século de controvérsia sobre sua estrutura, que se iniciou
com o conceito psicológico do século XIX, evoluiu para o psicológico-normativo no
início do século XX, transformou-se em conceito normativo puro durante esse último
século e, na passagem para o século XXI, parece imerso em crise. O estudioso
assinala que novas propostas conceituais indicam essa crise, como a teoria da
responsabilidade normativa de Roxin, que procura integrar o conceito de
culpabilidade com o de prevenção (ou necessidade preventiva da pena), como
categoria capaz de dar conta de situações de exculpação.
De toda sorte, é certo que a culpabilidade constitui o fundamento e o limite da
pena, conformando o motivo decisivo para sua aplicação. Se o princípio da
culpabilidade (nullum crimen sine culpa), por um lado, (re)afirma que não pode haver
delito se não for ao menos culposo, por outro, reclama uma condição de
reprovabilidade para que o injusto seja culpável. Assim, “a culpabilidade somente
pode ser edificada sobre a base antropológica da autodeterminação”, isto é,
considerando o homem como um ente capaz de autodeterminar-se (ZAFFARONI;
PIERANGELI, 2004, p. 576).
Trata-se de uma culpabilidade pelo fato individual (Einzeltatschuld) – ou
Direito Penal de fato (Tatstrafrecht), que repousa sobre a conduta típica e ilícita do
autor, e não uma culpabilidade pela conduta de vida (Lebensführungsschuld) do
autor ou de seu caráter – ou Direito Penal do autor (Täterstrafrecht) (PRADO, 2011;
TOLEDO, 2010). Essa última forma de culpabilidade, aliás, como afirmam Zaffaroni
e Pierangeli (2004, p. 579) “é o mais claro expediente para burlar a vigência do
princípio da reserva legal e estender a culpabilidade em função de uma actio inmoral
in causa”. Neste caso, o Direito Penal passaria a cumprir qualquer outra função
(defesa da raça ariana, da ditadura do proletariado, etc.) exceto a de segurança
jurídica.
Nesse panorama, a culpabilidade (Schuld), entendida como reprovabilidade,
reclama, para estar presente, que se tenha exigido do sujeito a possibilidade de
35
compreender a antijuridicidade de sua conduta, e que as circunstâncias em que agiu
não lhe tenham reduzido o âmbito de autodeterminação além de um limite mínimo.
Quando esse limite mínimo não é alcançado, por não se poder exigir do sujeito a
compreensão da antijuridicidade, seja pela falta de capacidade psíquica suficiente,
seja por encontrar-se em um estado de erro acerca da antijuridicidade, a
culpabilidade é excluída (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004).
À vista disso, tem-se como elementos da culpabilidade a imputabilidade, a
possibilidade de conhecimento da antijuridicidade e a exigibilidade de conduta
diversa.
2.5.1 Imputabilidade
É imputável o sujeito que possui a plena capacidade (estado ou condição) de
culpabilidade, entendida como capacidade de entender e de querer, e, por
conseguinte, de responsabilidade criminal (PRADO, 2011). É um atributo jurídico de
indivíduos cujos níveis de desenvolvimento biológico e normalidade psíquica os
autorizam a compreender a natureza proibida de suas ações e de orientar o
comportamento de acordo com essa compreensão (SANTOS, 2002).
Disso decorre que a imputabilidade possui dois aspectos, quais sejam, um
cognoscitivo ou intelectivo, traduzido na capacidade de compreender a ilicitude do
fato; e outro volitivo, no sentido de poder determinar a vontade conforme essa
compreensão (PRADO, 2011).
O Código Penal, em sede de exclusão de imputabilidade, adota um sistema
biopsicológico ou misto, que atende tanto às bases biológicas que conduzem à
inimputabilidade – como é o caso dos menores de 18 anos (art. 27 do CP e art. 228
da CF/88) – quanto às suas consequências na vida psicológica ou anímica do
agente – por exemplo, os portadores de doença mental que são “inteiramente
incapazes de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com
esse entendimento” (art. 26, caput, do CP) (PRADO, 2011).
36
2.5.2 Possibilidade de conhecimento da antijuridicidade
Para que exsurja a reprovabilidade pela prática de um injusto (ação ou
omissão típica e antijurídica), do autor se exige, além da imputabilidade, uma
possibilidade exigível de conhecimento e compreensão da antijuridicidade
(ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004). Trata-se, então, da possibilidade de o agente
poder reconhecer o caráter ilícito de sua ação, que se identifica por uma consciência
potencial – e não real – da ilicitude (PRADO, 2011).
Nesse sentido, a legislação penal brasileira adotou esse entendimento,
especialmente nos arts. 21 e 26 do CP, ao exigir apenas a possibilidade de
conhecimento da ilicitude, e não o efetivo entendimento dela. O que se requer,
dessa maneira, é uma “valoração paralela do profano”, a qual é uma “possibilidade
de conhecimento análogo ao efetivamente requerido a respeito dos elementos
normativos dos tipos legais” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004, p. 590). Estes
autores, contudo, advertem que, como não se pode exigir de todos o mesmo grau
de compreensão da antijuridicidade, quanto maior for o esforço do autor para
internalizar essa compreensão, menor será a reprovabilidade, e vice-versa.
Ademais, o conhecimento potencial da ilicitude, ressalte-se, não se refere às
leis penais, bastando, apenas, que o agente, ao menos, tenha podido saber que sua
conduta contraria o ordenamento jurídico (PRADO, 2011). A ausência da
consciência potencial, aliás, dá lugar ao erro de proibição, que, se inevitável, é
causa excludente de culpabilidade (art. 21 do CP), mas do qual não se ocupará este
trabalho.
Portanto, o agente só age culpavelmente quando conhece ou pode conhecer
a antijuridicidade de seu comportamento.
37
2.5.3 Exigibilidade de conduta diversa
A inexigibilidade de comportamento diverso surge na dogmática jurídico-penal
mediante trabalhos de Freudenthal, correlacionada ao conceito normativo de
culpabilidade do início do século XX, mas de início é rejeitada como fundamento
supralegal de exculpação. No entanto, “Eberhard Schmidt sugere, em 1949, a
necessidade de despertar o problema da inexigibilidade do sonho de bela
adormecida” (SANTOS, 2002, p. 216), com o que mais recentemente são retomadas
as propostas de inexigibilidade “como cláusula geral de exculpação supralegal, ora
deduzida do princípio da culpabilidade, ora do princípio de justiça do Estado de
Direito” (p. 216). Na atualidade, a doutrina não lhe nega autonomia, ainda que sob
fundamentos distintos (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004).
A exigibilidade de conduta diversa, nesse contexto, representa o terceiro
estágio do juízo de reprovação de culpabilidade e funda-se na normalidade das
circunstâncias do fato. Com a confirmação da imputabilidade e da potencial
consciência da antijuridicidade, faz-se necessário que ao autor se tenha exigido
comportamento diverso, dentro de uma perspectiva circunstancial normal, para que
a ordem jurídica estabeleça a censura da culpabilidade. Do contrário, se as
circunstâncias de realização do injusto forem anormais, estas podem constituir
situações de exculpação que excluem o juízo de exigibilidade de comportamento
diverso (SANTOS, 2002).
De efeito, os motivos que conduziriam a situações de exculpação, como
hipóteses de inexigibilidade de comportamento diverso, seriam:
Primeiro, as situações de exculpação são hipóteses de redução de capacidade de comportamento conforme à norma, sob vários fundamentos: circunstâncias externas podem reduzir a livre determinação da vontade; o instinto de conservação em situações adversas pode afetar a capacidade de agir conforme ao direito; pressões psíquicas excepcionais podem excluir a culpabilidade da lesão da norma; segundo, as situações de exculpação constituem hipóteses de dupla redução da culpabilidade: redução da culpabilidade representada pela pressão psíquica do acontecimento concreto; redução da culpabilidade determinada pela redução do injusto: a lesão de um bem jurídico tem por fundamento a proteção de outro bem jurídico; por último, as situações de exculpação configuram casos de desnecessidade de prevenção geral ou especial, segundo a teoria dos fins da pena (SANTOS, 2002, p. 218).
38
Assim, a ideia de inexigibilidade de comportamento diverso fundamenta
situações de exculpação que vão desde a coação moral irresistível e obediência
hierárquica (art. 22 do CP) ao estado de necessidade exculpante.
Destarte, analisadas noções gerais de Direito Penal que interessam à
pesquisa, descrever-se-á, no capítulo sequente, o crime de supressão ou redução
de tributos (artigo 1.º da Lei n.º 8.137, de 27 de dezembro de 1990), conferindo
especial atenção ao seu conceito, bem jurídico tutelado e elementos do tipo, além
de noções gerais de Direito Tributário e de tributos federais.
39
3 O CRIME DE SUPRESSÃO OU REDUÇÃO DE TRIBUTOS (ART. 1.º
DA LEI N.º 8.137/1990)
A preocupação com o patrimônio fiscal, entendido como bem jurídico coletivo
de acordo com o primeiro capítulo, tornou-se uma necessidade dos atuais Estados
Sociais e Democráticos de Direito, a exemplo do Brasil. Isso porque a concreção de
direitos sociais, coletivos e difusos, e, sobretudo, a promoção de uma sociedade
livre, justa e solidária, com diminuição de desigualdades sociais, pressupõe a
existência de recursos suficientes no atual contexto da economia global para realizar
esses misteres.
Entretanto, na mesma medida de atuação da política fiscal, cresceram as
condutas desviantes direcionadas a fraudar o pagamento de tributos. O patrimônio
coletivo, então, acabava sendo dilapidado por interesses egoísticos. Em razão
disso, o legislador brasileiro, verificando a insuficiência da esfera cível e
administrativa para conferir proteção ao bem jurídico em tela, criou a Lei 8.137, de
27 de dezembro de 1990, que definiu os crimes contra a ordem tributária,
econômica e contra as relações de consumo, e previu, especificamente, a conduta
típica de “supressão ou redução de tributos”. Contudo, faz-se necessário realizar
uma análise acurada dos elementos e caracteres que compõem esse tipo penal.
Nesse panorama, o objetivo deste capítulo será apontar os principais
aspectos do crime de supressão ou redução de tributos.
40
3.1 Noções gerais de Direito Tributário
Antes de adentrar as especificidades do tipo penal, é preciso descrever
algumas breves noções de Direito Tributário, já que a existência do crime de
supressão ou redução de tributos pressupõe uma relação jurídico-tributária.
Conforme assinala Ichihara (2005, p. 611), “na interpretação e aplicação dos
tipos penais, rotulados como sendo crimes contra a ordem tributária, os mesmos
devem ser analisados à luz dos fatos e dos princípios e regras de Direito Tributário,
que são de fundamental importância”.
Assim, analisar-se-ão, de modo sucinto, conceitos de tributo, obrigação
tributária e crédito tributário.
3.1.1 O tributo e suas espécies
De efeito, dispõe o artigo 3.º da Lei n.º 5.172, de 25 de outubro de 1966
(Código Tributário Nacional), ser o tributo “toda prestação pecuniária compulsória,
em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato
ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente
vinculada”.
Carvalho (2005, p. 25) anota que por prestação pecuniária compulsória “quer
dizer o comportamento obrigatório de uma prestação em dinheiro, afastando-se, de
plano, qualquer cogitação inerente às prestações voluntárias”. Em consequência,
sua efetivação independe da vontade do sujeito passivo, que deve realizá-la,
mesmo contra seu interesse. Conclui, então, o mencionado doutrinador que, uma
vez “concretizado o fato previsto na norma jurídica, nasce, automática e
infalivelmente, o elo mediante o qual alguém ficará adstrito ao comportamento
obrigatório de uma prestação pecuniária”.
Outra particularidade do tributo é que o fato desencadeador do nascimento
da obrigação tributária não deve ser uma sanção por um ato ilícito. Carvalho (2005)
41
explica ser essa característica sumamente relevante para a compreensão de tributo,
pois se separa, com nitidez, a relação jurídica do tributo da relação atinente às
penalidades pelo descumprimento de deveres tributários.
Ademais, a exigência de ser somente instituído por meio de lei traduz a fiel
observância do princípio da legalidade, previsto no artigo 5.º, inciso II, da
Constituição Federal de 1988, do qual é corolário o da estrita legalidade em matéria
tributária, também com previsão no artigo 150, inciso I, do texto constitucional. Logo,
o primado da legalidade, que se irradia por todos os segmentos da ordem político-
normativa, representa uma garantia aos cidadãos de não serem compelidos ao
pagamento de tributos que não sejam instituídos mediante lei (CARVALHO, 2005).
Por fim, o tributo é cobrado mediante atividade administrativa plenamente
vinculada, o que significa ser o procedimento de arrecadação um ato administrativo
vinculado, não comportando, pois, discricionariedade no momento de sua cobrança,
salvo em hipóteses previstas expressamente na legislação (CARVALHO, 2005).
Todavia, essa descrição abstrata do que vem a ser tributo, conforme adverte
Carvalho (2005), não é suficiente para que se conheça sua planta fundamental, isto
é, sua natureza jurídica específica. Criticando o artigo 4.º do CTN, o citado jurista
aponta que apenas a consideração do fato gerador não revela a natureza jurídica do
tributo, já que não seria possível diferenciar impostos de taxas, por exemplo. Por
isso, afirma que, no direito brasileiro, “o tipo tributário se acha integrado pela
associação lógica e harmônica da hipótese de incidência e da base de cálculo”
(CARVALHO, 2005, p. 29), conforme diretriz constitucional. Assim, o binômio
hipótese de incidência/base de cálculo, adequadamente identificado, revela a
natureza própria do tributo.
Dessa forma, dessume-se que tributo não se confunde com imposto. Este é
espécie daquele. Portanto, tributo é gênero, do qual são espécies os impostos,
taxas, contribuição de melhoria, contribuições sociais e empréstimos compulsórios.
Embora essa classificação, também denominada de teoria quinquipartite, não seja
pacífica na doutrina (MACHADO, 2010), adota-se-a neste trabalho, porquanto está
em consonância com a Constituição (CARVALHO, 2005).
42
Dito isso, imposto é o tributo que tem por hipótese de incidência, confirmada
por uma base de cálculo, um fato alheio a qualquer atuação estatal, consoante
prevê o artigo 16 do CTN. Têm os impostos um regime jurídico-constitucional
peculiar, visto que o constituinte repartiu, de forma taxativa, a competência para
instituí-los entre as pessoas políticas de direito público interno – União, Estados,
Distrito Federal e Municípios (CARVALHO, 2005).
Taxas, por sua vez, são tributos que se caracterizam por exteriorizarem, na
hipótese da norma, a descrição de uma atuação estatal, direta e especificadamente
ao contribuinte. Subdividem-se em taxas cobradas pela prestação de serviços
públicos e taxas cobradas pelo exercício do poder de polícia, consoante previsão no
artigo 77 do CTN e artigo 145, inciso II, da Constituição Federal de 1988, e podem
ser instituídas por qualquer ente político, no âmbito de suas respectivas atribuições
(CARVALHO, 2005).
Já a contribuição de melhoria leva em conta uma obra pública que, uma vez
concretizada, acarreta uma valorização dos imóveis particulares circunscritos a ela.
Essa é a hipótese de incidência que dá lugar a tal espécie de tributo. Difere-se do
imposto porque depende de atividade estatal específica, e da taxa porque esta
pressupõe serviço público ou exercício regular do poder de polícia (MACHADO,
2010). De qualquer sorte, assinala Carvalho (2005) que há de se respeitar o
quantum patrimonial que a obra pública acresceu indiretamente ao imóvel, pois, do
contrário, a exação feriria o princípio da capacidade contributiva.
As contribuições sociais, a seu turno, também são espécies de tributos que
possuem, como peculiaridade, sua correspondente finalidade constitucionalmente
definida. Podem assumir características ora de imposto, ora de taxa. Ademais,
subdividem-se em contribuições de intervenção no domínio econômico, que se
caracteriza por ter um objetivo específico pelo órgão estatal de intervir em
determinado setor econômico e por aplicar os recursos arrecadados no
financiamento da intervenção que a justificou; contribuições de interesse de
categorias profissionais ou econômicas, com vistas a propiciar a organização de
determinada categoria profissional ou econômica, fornecendo-lhe recursos para a
sua manutenção; e contribuições de seguridade social, que têm por finalidade o
custeio da seguridade social e encontram, na Constituição, disciplina exaustiva de
43
suas hipóteses de incidência. Todas essas contribuições somente podem ser
instituídas pela União (art. 149, caput, da CF/88), com exceção das contribuições
que os Estados, Distrito Federal e Municípios podem cobrar de seus servidores,
para custeio, em benefício destes, de sistema próprio de previdência e assistência
sociais (art. 149, § 1.º, da CF/88). Anota-se, por fim, a contribuição destinada ao
custeio de iluminação pública, cuja criação a Constituição a outorgou aos municípios
(art. 149-A da CF/88) (MACHADO, 2010).
O empréstimo compulsório, neste deslinde, é tratado no artigo 148 da
Constituição Federal de 1988, que outorgou à União a competência para criá-lo
diante de “despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, guerra
externa ou sua iminência” (inciso I), ou “no caso de investimento público de caráter
urgente e de relevante interesse nacional” (inciso II). Assim, os recursos
provenientes da arrecadação deverão ser empregados exclusivamente na situação
que fundamentou a instituição do empréstimo compulsório (CARVALHO, 2005).
Esse, na essência, é o panorama dos tributos na nossa ordem político-
normativa.
A competência para instituir tributos, ademais, está expressamente delimitada
pela Constituição Federal de 1988, que a repartiu, formal e materialmente, entre
cada ente político, isto é, União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Logo, os
tributos federais são aqueles criados pela e em benefício da União, aqui entendida
como Administração Pública Federal lato sensu.
Sem pretender esgotar o assunto, ressalte-se que os tributos federais mais
comuns são: a) Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico sobre a
importação e comercialização de combustíveis (CIDE-Combustíveis); b)
Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS); c)
Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL); d) Contribuições Previdenciárias;
e) Contribuição do Programa de Integração Social (PIS/PASEP); f) Imposto de
Importação (II); g) Imposto de Exportação (IE); h) Imposto sobre a Renda (IR); i)
Imposto sobre Operações Financeiras (IOF); e j) Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI), consoante divulgado no sítio eletrônico da Receita Federal
(BRASIL, 2013, texto digital).
44
Conceituado o tributo e suas espécies, verificar-se-á, na sequência, a relação
tributária que exsurge da realização de um fato que se amolda a uma hipótese de
incidência prevista em um tipo tributário.
3.1.2 Obrigação tributária
Segundo Machado (2010), a relação entre o Estado e as pessoas sujeitas à
tributação não é simplesmente relação de poder, mas, ao contrário, uma relação
jurídica, de natureza obrigacional, que surge a partir da ocorrência de um fato
previsto em uma norma como capaz de produzir esse efeito.
A esse fato, ou melhor, “a uma situação definida em lei como necessária e
suficiente à sua ocorrência” (art. 114 do CTN), atribui-se a denominação de fato
gerador ou hipótese de incidência, que, uma vez ocorrido, faz nascer a obrigação
tributária. Esta, então, pode ser conceituada como “a relação jurídica em virtude da
qual o particular tem o dever de prestar dinheiro ao Estado, ou de fazer, não fazer
ou tolerar algo no interesse da arrecadação ou fiscalização dos tributos, e o Estado
tem o direito de constituir contra o particular um crédito” (MACHADO, 2010, p. 129).
A obrigação tributária, outrossim, pode ser principal ou acessória. Esta
consiste em obrigações de fazer, de não fazer ou tolerar alguma coisa – também
denominadas de deveres instrumentais ou acessórios (CARVALHO, 2005) – no
interesse da fiscalização ou da arrecadação dos tributos (art. 113, § 2.º, do CTN);
aquela em obrigação de dar uma prestação pecuniária ao Fisco (art. 113, § 1.º, do
CTN). Registre-se, além disso, que a inobservância da obrigação acessória redunda
em conversão desta em obrigação principal relativamente a penalidade pecuniária
(art. 113, § 3.º, do CTN).
De outra banda, os sujeitos da relação obrigacional dividem-se em sujeito
ativo e sujeito passivo.
De acordo com Carvalho (2005), o sujeito ativo, titular do direito subjetivo de
exigir a prestação pecuniária, no direito tributário brasileiro, pode ser tanto pessoa
jurídica pública ou privada, quanto pessoa física. Entre as pessoas jurídicas de
45
direito público, encontram-se aquelas investidas de capacidade política e, assim,
titulares da competência tributária (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e
outras que, sem possuir a competência tributária, estão credenciadas à titularidade
de direitos subjetivos. Entre as pessoas jurídicas de direito privado, sobressaem as
entidades paraestatais, que desempenham funções de grande interesse público.
Por derradeiro, a pessoa física poderia vir a ser sujeito ativo da obrigação, desde
que desempenhasse atividade exclusiva e de real interesse público.
Sujeito passivo da obrigação tributária, por sua vez, é a pessoa jurídica,
pública ou privada, ou pessoa física de quem se exige o cumprimento da prestação
pecuniária, no nexo obrigacional principal; ou um fazer, não fazer ou tolerar algo,
nas obrigações acessórias. Ainda, o artigo 121, parágrafo único, incisos I e II, do
CTN, dispõe que o sujeito passivo pode assumir feição de “contribuinte, quando
tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato
gerador”, ou “responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua
obrigação decorra de disposição expressa de lei” (CARVALHO, 2005).
No entanto, apenas a existência da obrigação tributária não autoriza o Estado
a exigir o pagamento do tributo. Para tanto, faz-se necessária a constituição do
crédito tributário (MACHADO, 2010).
3.1.3 Crédito tributário
Machado (2010) ressalta que obrigação e crédito tributários não se
confundem. O crédito decorre da obrigação tributária e tem a mesma natureza desta
(art. 139 do CTN). Didaticamente, obrigação tributária consistiria em uma obrigação
ilíquida no campo do Direito Civil. Já o crédito tributário corresponde a essa mesma
obrigação, porém depois de liquidada. E, para torná-la líquida e exigível, o Fisco
pratica um ato declaratório denominado juridicamente de lançamento.
O lançamento, nesse passo, é o procedimento administrativo pelo qual se
verifica a prática da hipótese de incidência da obrigação correspondente,
identificando seu sujeito passivo e determinando a matéria tributável, para, então,
46
calcular ou por outra forma definir o montante do crédito tributário, aplicando, se for
o caso, a penalidade cabível. Somente a autoridade administrativa competente pode
realizar o lançamento e, portanto, constituir o crédito tributário (MACHADO, 2010).
Saliente-se existir no Código Tributário Nacional três modalidades de
lançamento, quais sejam, lançamento de ofício, por declaração e por homologação.
Diz-se de ofício o lançamento quando realizado por iniciativa da autoridade
administrativa, nos casos em que a lei o determina. Por declaração é o lançamento
nos casos em que a lei impõe ao sujeito passivo a obrigação de prestar informações
de fatos à autoridade administrativa, para que esta calcule o valor do tributo e
realize o lançamento. Por derradeiro, “lançamento por homologação é aquele que
ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribui ao sujeito passivo o dever de fazer
a apuração do valor devido e antecipar o respectivo pagamento” (MACHADO, 2010,
p. 188).
Constituído o crédito tributário através do lançamento, nesse panorama,
aquele somente se modifica, ou se extingue, ou tem sua exigibilidade suspensa ou
excluída, nos casos previstos expressamente em lei. Em razão disso, não pode a
autoridade administrativa dispensar seu pagamento ou suas garantias, sob pena de
responsabilidade funcional (art. 141 do CTN), pois, conforme visto anteriormente, o
tributo há de ser cobrado mediante atividade administrativa plenamente vinculada
(MACHADO, 2010).
Neste deslinde, verificados os principais conceitos de Direito Tributário que
auxiliarão na compreensão do estudo do crime de supressão ou redução de tributos,
passa-se a analisar a estrutura desse tipo penal.
3.2 Conceito do tipo penal de supressão ou redução de tributos
A criminalização de condutas direcionadas à evasão tributária, com base em
meios fraudulentos e ilícitos, deve-se, em muito, às transformações políticas e
sociais do Estado (EISELE, 2002).
47
Afinal, à medida que o Estado de Direito deixa de realizar um papel de mera
abstenção – característico de um Estado Liberal que se propõe apenas a garantir
direitos de primeira dimensão – e passa a ter o dever de corrigir eventuais
distorções na sociedade e de concretizar materialmente valores supremos como
dignidade humana e igualdade – funções típicas de Estados Sociais –, advém a
necessidade de se buscar receitas em volume proporcional aos custos da atuação
(PRADO, 2013; EISELE, 2002).
Os tributos, nesse contexto, são a principal fonte de receita pública derivada e
caracterizam-se por distribuir o financiamento dos dispêndios estatais entre a
população, respeitadas a capacidade econômica de cada cidadão e outras garantias
previstas na Constituição (EISELE, 2002). De acordo com Machado (2010, p. 74),
embora se reconheça a função do tributo como arrecadação de recursos, no mundo
moderno ele “é largamente utilizado com o objetivo de interferir na economia
privada, estimulando atividades, setores econômicos ou regiões, desestimulando o
consumo de certos bens e produzindo, finalmente, os efeitos mais diversos na
economia”. São, portanto, imprescindíveis para a consecução dos objetivos de um
Estado Social e Democrático de Direito (PRADO, 2013).
Todavia, a partir do desenvolvimento da economia e do aumento do
consumismo na sociedade, cresceram sobejamente as práticas espúrias
direcionadas à supressão ou redução dos recursos necessários para a consecução
das finalidades estatais antes mencionadas. Por isso, percebeu-se a necessidade
de uma tipificação específica para a matéria, com o escopo de prevenir e reprimir
tais condutas, já que a seara extrapenal e as legislações penais anteriores se
mostraram insuficientes a atingir essa finalidade.
É criada, então, a Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, que definiu os
crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo,
revogando as legislações penais anteriores que versavam sobre a mesma matéria,
notadamente a Lei n.º 4.729/1965, a qual previa especificamente o crime de
sonegação fiscal (EISELE, 2002).
Embora a expressão “crime contra a ordem tributária” possa ser atribuída ao
delito previsto no artigo 1.º da Lei n.º 8.137/1990, sua amplitude linguística abarca
48
todos os delitos que atingem o bem jurídico “ordem tributária” – p. ex., artigo 337-A
do Código Penal e artigo 3.º da Lei n.º 8.137/1990 –, o que impede, pois, a adoção
dessa terminologia. Da mesma forma, a expressão genérica “sonegação fiscal” pode
ora referir-se ao delito previsto no artigo 1.º, ora ao disposto no artigo 2.º, inciso I,
ambos da Lei n.º 8.137/1990, porquanto esse último era previsto na revogada Lei n.º
4.729/65 (EISELE, 2002).
Em razão disso, prefere-se, na linha das lições de Machado (2009), a adoção
neste trabalho da terminologia crime de supressão ou redução de tributos, para se
reportar especificamente ao crime previsto no artigo 1.º, caput, da Lei 8.137/1990.
Advirta-se que, apesar de a redação do artigo 2.º da retromencionada lei
iniciar com a frase “constitui crime da mesma natureza”, o presente trabalho não o
analisará. Isso porque esse dispositivo contempla, segundo Machado (2009), crimes
formais em seus respectivos incisos, que não se confundem com o de supressão ou
redução de tributos.
Registre-se, por derradeiro, que o anteprojeto do Novo Código Penal sintetiza
os crimes contra a ordem tributária, dedicando-lhes capítulo exclusivo, e tipifica o
delito de “fraude fiscal ou previdenciária”, que abarca o crime supracitado.
Consoante justificava da comissão de juristas que o redigiu, entendeu-se de “propor
um novo conceito para crime tributário e previdenciário enfatizando a questão da
fraude para o fim de suprir ou reduzir tributo ou contribuição social, como elemento
fundamental do tipo” (ANTEPROJETO..., 2012, texto digital).
3.3 Bem jurídico tutelado
Embora não haja consenso na doutrina quanto ao bem jurídico tutelado pelo
crime previsto no artigo 1.º da Lei n.º 8.137/1990 (PRADO, 2013), uma (re)leitura
desse tipo penal à luz da Constituição demonstra ser a ordem tributária o
fundamento axiológico de cuja proteção há de se ocupar o Direito Penal nesse
campo (FERREIRA, 2002).
49
Dessa forma, a legitimidade constitucional para a tutela penal da ordem
tributária, como expressão de princípios e regras que informam a atividade tributária
e, sobretudo, como noção de patrimônio coletivo, radica na importância de se
proteger a política socioeconômica, como receita estatal, pois os recursos
arrecadados se destinam a assegurar a finalidade do Estado Social e Democrático
de Direito: a promoção de melhores condições de vida a todos os cidadãos
(PRADO, 2013).
Salomão (2001, p. 188), no mesmo sentido, assevera:
A arrecadação tributária, porém, entendida como instrumento de formação de receita pública e de consecução e implemento das metas socioeconômicas definidas na Constituição através da percepção dos tributos instituídos e cobrados em conformidade com as normas e valores constitucionais, um valor superindividual, com relevância constitucional e indiretamente reconduzível à pessoa humana, apto, portanto, a ser tutelado com o emprego da sanção penal, ou seja, sob o ângulo do merecimento da pena.
Para a autora retromencionada, nesse passo, a identificação do bem jurídico,
no seio do sistema constitucional tributário, é capaz de captar potencialidades
estáticas e dinâmicas do valor daquele sistema. Potencialidades estáticas,
prossegue a jurista, no sentido de proteção da parcela do patrimônio público,
representada pela receita tributária, cuja destinação socioeconômica já de antemão
está identificada. Potencialidades dinâmicas que remetem à noção de
extrafiscalidade da exação tributária, igualmente orientada pelas metas
socioeconômicas do Estado Social e Democrático de Direito. Desse modo, conclui a
autora que o bem jurídico tutelado nesses termos pelo crime de supressão ou
redução de tributos “está apto a exercer as funções de limite do ius puniendi e de
instrumento crítico do direito positivo” (p. 188).
Trata-se, assim, de bem jurídico supraindividual, de cariz institucional, a
merecer proteção através do Direito Penal para que se possa garantir o
cumprimento de prestações sociais de que o indivíduo necessita por parte do
Estado, consoante observa Eisele (2002), invocando as ponderações de Claus
Roxin.
Compartilhando do mesmo entendimento, mas com uma abordagem
diferente, Tórtima (2005) afirma ser o patrimônio e a verdade fiscal, da qual
50
depende a integridade do primeiro, bens de relevante valor a merecer tutela penal
através da criminalização de delitos fiscais, pois seu comprometimento implicaria
séria violação a direitos humanos.
Além disso, anota o retromencionado jurista ser a eticização do Direito Penal
Tributário, plasmado no dever moral de solidariedade social, um dado adquirido em
quase todos os quadrantes do mundo, pelo que o patrimônio tributário se apresenta
como bem jurídico de inestimável valor, necessitando de especial e reforçada tutela
por meio da lei penal. Bem por isso o Direito Alemão, por exemplo, através da
criação do delito tributário, tratou de conferir proteção ao bem jurídico patrimônio
fiscal, nos termos do §370 de sua Lei Tributária (Abgabenordnung) (TÓRTIMA,
2005).
Aliás, a noção de bem jurídico tal como acima exposta, isto é, no sentido de
universalização e generalidade, fez Roxin (2009, p. 19) afirmar que o “dever de
pagar impostos, detestado com frequência pelos cidadãos, não busca o
enriquecimento do Estado, mas o benefício do particular que está sujeito às
contribuições do Estado que estão financiadas precisamente através dos
gravames”. Por isso, conclui o citado jurista alemão que o Estado deve garantir, com
os instrumentos jurídico-penais, não somente as condições individuais para o bem-
estar social (vida, liberdade, propriedade, etc.), como também as instituições
estatais adequadas para esse fim.
Registre-se, ademais, que uma corrente minoritária defende ser o conjunto de
normas tributárias relacionadas ao poder de tributar o bem jurídico tutelado pelo
crime em estudo. Essa posição é perfilhada por Machado (2009), porém com a qual
não se pode concordar. E a razão é singela.
De efeito, a noção de bem jurídico defendida neste trabalho é aquela que,
primeiro, encontre respaldo constitucional (FELDENS, 2005) e, segundo, seja vital
para prover a segurança jurídica e assegurar a coexistência humana no Estado
Social e Democrático de Direito (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004). Em virtude
disso, não pode o Direito Penal tutelar “eficácia de normas tributárias” ou “poder de
tributar”, porque aí se estaria entregando sua missão à discricionariedade e à
arbitrariedade legislativa. É dizer, qualquer violação de uma regra instituída pelo
51
Estado poderia a vir a ser crime, o que é flagrantemente incompatível com a nossa
Constituição.
Advirta-se, por outro canto, que deve ser repelido de plano o argumento de
que o crime de supressão ou redução de tributos tutela a função arrecadatória do
Estado.
Consoante ensina Tórtima (2005), com espeque nas lições de Juarez
Tavares, a função, como atividade estatal, não se apresenta como bem jurídico,
seja no crime fiscal, seja em qualquer outra espécie de ilícito penal. Assim, deve ser
descartada a noção de bem jurídico como protetiva de funções que encerram
atividades administrativas estatais, referentes tanto ao controle de determinado
setor social, quanto ao de seu próprio organismo (TÓRTIMA, 2005). Em razão disso,
o crime em estudo visa evitar a fraude fiscal e não cobrar o crédito tributário
decorrente de uma evasão anteriormente verificada (EISELE, 2002).
Nesse panorama, resta claro que o crime previsto no artigo 1.º da Lei n.º
8.137/1990 se põe a tutelar a ordem tributária, como ampla expressão do patrimônio
da coletividade, ou seja, no sentido de conferir proteção ao Erário (PRADO, 2013;
TÓRTIMA, 2005; SALOMÃO, 2001), materializando autêntica tutela penal de
interesse difuso e coletivo (FERREIRA, 2002).
Delimitado, destarte, o bem jurídico tutelado pelo crime de supressão ou
redução de tributos, descrever-se-ão os elementos integrantes desse tipo penal no
subcapítulo seguinte.
3.4 Elementos do tipo
Dispõe o artigo 1.º da Lei n.º 8.137/1990, in verbis:
Art. 1°. Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
52
III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável; IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato; V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação. Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.
De acordo com Eisele (2002), o dispositivo acima transcrito descreve duas
modalidades típicas, ou seja, prevê duas espécies de crimes.
A primeira está tipificada no caput do artigo e seus incisos, assemelhando-se,
em parte, à que configura o crime de estelionato (art. 171 do CP). Porém, no crime
em estudo o objeto material sobre o qual recai a conduta é qualificado (tributo ou
contribuição social e acessório), há um sujeito passivo direto ou vítima imediata
(Estado em sentido lato) e o meio fraudulento esgota-se nas diversas condutas
previstas nos incisos do caput do dispositivo (EISELE, 2002).
A segunda modalidade típica está prevista no parágrafo único e caracteriza-
se por ser uma desobediência especial em relação à prevista no artigo 330 do
Código Penal, porém da qual não se ocupará este trabalho (EISELE, 2002).
Como todo tipo penal é composto por uma parte objetiva e outra subjetiva,
consoante já descrito no primeiro capítulo, na estrutura típica do crime de supressão
ou redução de tributos há, logicamente, elementos objetivo e subjetivo, doravante
denominados tipo objetivo e tipo subjetivo para fins didáticos.
3.4.1 Tipo objetivo
A conduta típica descrita no caput do dispositivo consiste em suprimir ou
reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório.
“Suprimir significa omitir, não cumprir a obrigação tributária devida, não
recolher o que deveria ter sido pago” (PRADO, 2013, p. 270). É, pois, uma conduta
omissiva que se caracteriza pelo completo inadimplemento de uma obrigação
53
tributária, deixando de entregar ao credor o objeto dessa obrigação. Em suma, é a
evasão total (EISELE, 2002).
Reduzir corresponde a diminuir o quantum de tributo a ser recolhido. “É a
inadimplência parcial ou incompleta da obrigação por parte do devedor” (PRADO,
2013, p. 271). Enfim, redução é a evasão parcial (EISELE, 2002).
Conforme observa Eisele (2002, p. 142), a diferença entre supressão e
redução é meramente quantitativa, “pois a natureza é a mesma em ambas as
hipóteses, variando apenas na extensão”.
De outro giro, as expressões tributo, contribuição social e qualquer acessório
são elementos normativos jurídicos. Estes elementos, apenas para relembrar o que
foi colocado no primeiro capítulo, são aqueles cujo conhecimento depende de uma
norma jurídica – no caso, norma jurídico-tributária.
Dessa forma, quanto a esse aspecto do tipo objetivo não há nada a
acrescentar, na medida em que o conceito de tributo e de acessório foi
suficientemente descrito em subcapítulo específico. Ressalte-se, contudo, a
advertência da doutrina no sentido de que as contribuições previdenciárias ou
destinadas à seguridade social são objetos materiais do crime de sonegação de
contribuição previdenciária, previsto no artigo 337-A do Código Penal, razão pela
qual através do critério da especialidade se resolve o conflito aparente de normas
entre o delito antes mencionado e o previsto no artigo 1.º da Lei n.º 8.137/1990
(EISELE, 2002; PRADO, 2013).
Sujeito ativo na figura típica em análise, por outro canto, pode ser qualquer
pessoa, não se lhe exigindo nenhuma qualificação especial. Será, geralmente, o
sujeito passivo da obrigação tributária, ou seja, o contribuinte ou responsável, que
são as pessoas legalmente obrigadas ao recolhimento do tributo. Portanto, essa
espécie delitiva não configura crime próprio, já que pode ser realizada por outra
pessoa que não integra a relação jurídico-tributária (EISELE, 2002; MACHADO,
2009).
54
São sujeitos passivos do delito, por sua vez, o Estado – Fazenda Pública da
União, dos Estados, Distrito Federal e Municípios – e, indiretamente, a sociedade –
neste caso, em decorrência do bem jurídico tutelado (PRADO, 2013).
De mais a mais, saliente-se que não basta a mera supressão ou redução do
tributo para configurar o crime em estudo, mas também a prática de comportamento
fraudulento anterior (EISELE, 2002). Assim, somente estará configurado o delito se
o agente praticar qualquer das condutas descritas nos incisos do dispositivo legal, e
desde que com a finalidade de “suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e
acessório” (FERREIRA, 2002).
Nesse passo, o inciso I – “omitir informação, ou prestar declaração falsa às
autoridades fazendárias” – assemelha-se à falsidade ideológica (artigo 299 do CP) e
prevê condutas omissiva e comissiva (FERREIRA, 2002).
Na forma omissiva, tem-se como figura típica a omissão de informação, no
sentido de ocultar, deixar de dizer ou escrever, não mencionar qualquer dado
considerado relevante para o Fisco, por ser gerador de uma obrigação tributária,
seja ela principal ou acessória (PRADO, 2013).
Na comissiva, ao contrário, o agente presta, transmite, comunica, fornece a
informação, mas ela é inverídica. Ou seja, faz declaração diversa da que devia ser
prestada (PRADO, 2013).
Nas duas hipóteses, entretanto, é indispensável que o sujeito ativo do delito
viole o dever jurídico de prestar informações verdadeiras às autoridades
fazendárias, expresso em norma jurídico-tributária, e que a falsidade seja capaz de
enganar ou que a informação omitida seja relevante, tendo por objeto dado
relacionado com a obrigação tributária, de modo a implicar a supressão ou redução
do tributo devido (PRADO, 2013; FERREIRA, 2002).
É de se ressaltar, ademais, que autoridade fazendária constitui outro
elemento normativo jurídico do tipo e é aquela legalmente investida de receber do
sujeito passivo da obrigação tributária as informações necessárias, como, por
exemplo, os auditores fiscais (PRADO, 2013).
55
No inciso II – “fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos,
ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei
fiscal” – tem-se como objetivo garantir aos livros fiscais a credibilidade necessária
quanto às informações neles consignadas, que devem retratar a veracidade dos
fatos referentes à atividade comercial, industrial ou ainda de prestação de serviços
(PRADO, 2013).
Inserir elementos é a conduta ativa de colocar, incluir, anotar, descrever,
redigir, consignar informações acerca de fatos, “que indiquem sua ocorrência (ou
não) ou suas características (como circunstâncias de tempo, modo, local, sujeito e
conteúdo, abrangendo quantidade, natureza, valor etc.)” (EISELE, 2002, p. 152). A
inexatidão dos elementos, com efeito, significa a contradição entre o fato real,
relevante na determinação do tributo, e o consignado, caracterizando a essência da
simulação (v. g., a denominada “nota vazada” ou “meia nota”, que consiste na
emissão de documento fiscal com a consignação de valores de operação inferiores
aos efetivamente praticados) (EISELE, 2002). Não abrange a interpretação do
significado jurídico do fato, pois não se pode obrigar o contribuinte a adotar postura
que lhe acarrete maior ônus tributário, sob ameaça de pena (MACHADO, 2009).
Omitir operação de qualquer natureza, a seu turno, é a conduta de índole
negativa consistente em não mencionar, não incluir o fato nos documentos ou livros
fiscais, de maneira a não ser registrado o fato gerador que faz surgir a obrigação
tributária, acarretando, por conseguinte, a supressão ou redução do tributo (PRADO,
2013).
Observa Eisele (2002) que a simples inserção de elementos inexatos ou
omissão de operações não são comportamentos suficientes para consubstanciar o
crime em estudo, sendo indispensável que tenham servido de meio fraudulento à
fiscalização tributária, e por meio deles o sujeito ativo tenha realizado a supressão
ou redução do tributo.
Ainda, o dispositivo alude a documentos ou livros exigidos pela lei fiscal, o
que denota tratar-se de lei penal em branco, razão pela qual se faz necessário, para
a complementação da conduta punível, recorrer à legislação tributária (PRADO,
2013).
56
Por outro canto, a conduta típica prevista no inciso III – “falsificar ou alterar
nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à
operação tributável” – consubstancia-se nos núcleos verbais falsificar ou alterar.
Consoante ensina Prado (2013, p. 275), “a falsificação pode-se dar mediante
contrafação (fabricação de uma cópia falsa similar a um modelo verdadeiro) ou
fabricação (formação de um documento falso ao qual não corresponda um
verdadeiro semelhante)”. Já a alteração traduz ideia de modificação, pelo
acréscimo, adulteração ou supressão, de partes do conteúdo do documento (i. e.,
rasura de valores, modificação de datas etc.), de modo a adulterar seu sentido
original, levando-o a exprimir fato diverso do que inicialmente atestava (PRADO,
2013).
Esse inciso, além disso, é estruturado de forma a possibilitar a utilização do
recurso denominado interpretação analógica para a concretização desse conteúdo.
Desse modo, indica mediante fórmula casuística exemplificativa os elementos nota
fiscal, fatura, duplicata ou nota de venda para, ao final, exprimir a cláusula genérica
ou qualquer outro documento relativo à operação tributável (EISELE, 2002).
No inciso IV – “elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que
saiba ou deva saber falso ou inexato” – o dispositivo alberga várias condutas que se
assemelham às da falsidade documental, material ou ideológica (arts. 297, 298 e
299, todos do CP), e às do uso de documento falso (art. 304 do CP) (EISELE,
2002). Neste contexto, elaborar é formar o documento, podendo concretizar-se
mediante contrafação, fabricação ou modificação, como, por exemplo, as
denominadas “notas frias”, que são notas fiscais impressas sem autorização do
Fisco, ou com duplicidade numérica (nota paralela) ou, ainda, mediante a utilização
de dados fictícios (EISELE, 2002). Distribuir ou fornecer é entregar o documento a
terceiro para que este o utilize, mediante contraprestação ou não. Emitir é expedir,
pôr em circulação. Utilizar é tirar proveito de, empregar com vantagem, servir-se
(PRADO, 2013).
O dispositivo alude, ainda, a documento, que pode ser conceituado como
todo o escrito pelo qual se representa um fato juridicamente relevante,
potencialmente destinado a servir como meio de prova, consoante anota Prado
(2013), com base nas lições de Nelson Hungria. Sua falsidade, então, “pode
57
decorrer tanto da irregularidade de sua elaboração, quanto da inexatidão de seu
conteúdo, seja em face de emissão indevida, seja em consequência de alteração
dos dados nele consignados” (EISELE, 2002, p. 156).
Derradeiramente, o inciso V – “negar ou deixar de fornecer, quando
obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou
prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a
legislação” – contempla, em sua primeira parte, as condutas de negar ou deixar de
fornecer.
Negar é não conceder, recusar, consistindo em uma manifestação clara de
dissentimento em relação a determinada obrigação ou afirmação com sentido
negativo. Deixar de fornecer, por sua vez, equivale a não entregar, abster-se de dar
alguma coisa a alguém, tratando-se de conduta omissiva. (PRADO, 2013). De toda
sorte, é evidente que o recusar equivale a deixar de fornecer, mas nem sempre
quem não fornece nega, razão pela qual Machado (2009) observa que a conduta de
negar é menos abrangente do que a de deixar de fornecer.
A obrigação de fornecer a nota fiscal decorre da legislação tributária (lei penal
em branco), tratando-se de um dever instrumental – ou obrigação tributária
acessória – que independe de solicitação do adquirente do produto ou do tomador
de serviços. Quando a legislação tributária estabelece a obrigatoriedade de sua
emissão, a nota fiscal não pode ser substituída por outro documento similar, emitido
a critério do sujeito, senão nas hipóteses expressamente previstas em tal conjunto
de normas, como é o caso dos cupons fiscais (EISELE, 2002). Além disso, faz-se
mister que a venda ou a prestação de serviços se realize efetivamente, “caso
contrário não há a obrigatoriedade do fornecimento da nota ou do documento
equivalente, desaparecendo a tipicidade pela falta de um de seus caracteres
objetivos” (PRADO, 2013, p. 278).
A parte final do dispositivo – fornecê-la em desacordo com a legislação –
alberga um comportamento de natureza comissiva, pelo que o agente entrega a
nota fiscal ou documento equivalente, porém os elementos necessários à perfeita
identificação da mercadoria ou do serviço, ou das partes envolvidas na operação,
não se fazem presentes (MACHADO, 2009).
58
Nesse panorama, analisados os elementos que compõe o tipo objetivo do
crime de supressão ou redução de tributos, há de se verificar seu elemento
subjetivo.
3.4.2 Tipo subjetivo
O elemento subjetivo que concretiza a tipicidade objetiva do crime de
supressão ou redução de tributos é, em regra, o dolo direto, pois a vontade do
sujeito passivo do delito se restringe à obtenção do resultado, isto é, à supressão ou
redução do tributo (PRADO, 2013).
Em consequência, não há necessidade de se perquirir a presença de um
elemento subjetivo distinto do dolo para configurar tal espécie delitiva (EISELE,
2002). Tampouco o tipo subjetivo admite a forma culposa, porquanto esta não foi
descrita expressamente no tipo penal (artigo 18, parágrafo único, do CP).
Por outro lado, no inciso IV são apontados, de forma expressa, tanto o dolo
direto (consciência de ser o documento falso e mesmo assim utilizá-lo para suprimir
ou reduzir tributo) como o eventual (o agente pouco importa em saber se o
documento é falso ou inexato e o utiliza, assumindo o risco) para configuração do
delito (PRADO, 2013).
3.5 Consumação e tentativa
A consumação do crime tipificado no artigo 1.º da Lei n.º 8.137/1990 ocorre
com a realização do resultado danoso ao bem jurídico, materializado na efetiva
supressão (evasão total) ou redução (evasão parcial) de tributo, ou contribuição
social e acessório, por meio de uma ou de várias condutas fraudulentas descritas
nos incisos do dispositivo em exame (EISELE, 2002; PRADO, 2013).
59
Trata-se, assim, de crime material ou de dano, que exige a presença do
resultado naturalístico para sua configuração. Sem ele, não há que se falar em
delito consumado (GOMES; BIANCHINI, 2005).
Eisele (2002) anota que o momento em que se consuma o crime de
supressão ou redução de tributos não é o da realização da conduta fraudulenta
antecedente, mas o da expiração do prazo para o recolhimento do tributo. Dessa
forma, ocorrido o resultado com a expiração do prazo para o recolhimento do tributo
o crime estará consumado. Eventuais atos posteriores, como a destinação do valor
evadido, referem-se à fase do exaurimento do crime, motivo pelo qual são
irrelevantes na esfera da tipicidade.
Gomes e Bianchini (2005), diversamente, explicam não resultar
perfectibilizado o delito sem que se verifique o efetivo dano fiscal. Assim, no que
concerne à supressão, impõe-se que o tributo seja devido. No caso da redução,
além de devido, há que se conhecer o valor pago a menor em relação àquele que
deveria ter sido recolhido pelo contribuinte.
Há de se ressaltar, nessa linha, que, na atualidade, a supressão ou redução
de tributos mediante a prática das condutas previstas nos incisos I a IV do
dispositivo supracitado somente se consuma após realizado o lançamento definitivo
do tributo. Essa é a posição consolidada do Supremo Tribunal Federal sobre esse
tema, que ensejou a publicação da Súmula Vinculante n.º 24.
Em outras palavras, sem adentrar o mérito da (in)constitucionalidade da
retromencionada súmula, se não se esgotar a discussão na esfera administrativa
acerca da exigibilidade do crédito tributário, não se tipifica o crime em apreço.
De outra banda, a tentativa afigura-se admissível na hipótese de realização
de qualquer das condutas fraudulentas elencadas nos incisos do dispositivo que
permitem o fracionamento dos atos executórios, sem que haja, no entanto, a
implementação do resultado por circunstâncias alheias à vontade do agente – p. ex.,
a intervenção do Fisco (EISELE, 2002; MACHADO, 2009). Diferentemente, as
condutas omissivas e as que não permitem o fracionamento, como, p. ex., as de
omitir informação (primeira parte do inciso I) e de deixar de fornecer (inciso V), não
admitem a tentativa.
60
De toda sorte, mesmo quando for admissível a tentativa em tese, esta
configurará, antes, o crime previsto no artigo 2.º da Lei n.º 8.137/1990, pois no
núcleo desse tipo foram descritas, de forma autônoma e subsidiária, as condutas
passíveis de caracterizar a tentativa do crime tipificado no artigo 1.º do citado
diploma legal. Logo, quando ocorrer a tentativa desse último delito, a tipicidade do
fato será estabelecida em relação àquele crime, devido à aplicação do critério da
subsidiariedade na solução do conflito aparente de normas (EISELE, 2002).
Ante o exposto, analisados esses conceitos indispensáveis, no capítulo final
descrever-se-á, primeiramente, a função dos princípios e, após, o princípio da
insignificância, para permitir a investigação na doutrina e na jurisprudência dos
parâmetros que balizam a incidência do indigitado princípio no crime de supressão
ou redução de tributos federais.
61
4 A INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO CRIME DE
SUPRESSÃO OU REDUÇÃO DE TRIBUTOS FEDERAIS
Embora controvertida sua origem histórica, é certo que se credita a Claus
Roxin o desenvolvimento teórico com maior notabilidade do princípio da
insignificância.
Já em 1964 o jurista tedesco trabalhou com a teoria do sobredito princípio.
Sua função, nesse passo, como regra auxiliar de interpretação do injusto penal,
seria a de restringir a atuação do Direito Penal em fatos que, embora típicos,
antijurídicos e culpáveis do ponto de vista formal, não causassem efetiva lesão ou
perigo dela ao bem jurídico.
Com ampla aceitação dogmática, tal princípio pode – e deve – incidir no crime
de supressão ou redução de tributos federais, informando e orientando o intérprete
da norma jurídica penal, em situações nas quais não há perigo ou dano ao bem
jurídico tutelado. Todavia, sabe-se que há divergências tanto na doutrina quanto na
jurisprudência acerca dos parâmetros utilizados para sua atuação.
À vista disso, neste último capítulo serão descritos, primeiramente, a função
dos princípios e o princípio da insignificância, para, na sequência, examinar
posições doutrinárias e decisões judiciais que tenham definido os parâmetros para
aplicá-lo no crime de supressão ou redução de tributos federais.
62
4.1 A função dos princípios
Hodiernamente, já não se nega a força normativa dos princípios. Por serem
imanentes aos textos constitucionais dos atuais Estados constitucionais de Direito, o
discurso acerca dos princípios deve espraiar-se por toda a sociedade e, sobretudo,
sobre os ofícios daqueles que atuam diretamente na concretização do Direito, para
que o ideal de justiça esteja sempre presente na realidade social.
Mas no curso da história nem sempre foi assim. Basta lembrar-se das
ideologias políticas que marcaram a primeira metade do século XX – nazismo, na
Alemanha, e fascismo, na Itália – cuja ascensão ao poder ocorreu dentro do quadro
da “legalidade” e em nome desta “legitimou-se” a prática de inúmeras barbáries. O
fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do positivismo jurídico, foram
responsáveis por uma das maiores atrocidades praticadas contra o ser humano na
época da Segunda Guerra Mundial. Para se ter uma ideia, “os principais acusados
de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas
da autoridade competente” (BARROSO, 2005, p. 12).
Por isso, a ideia de uma ordem político-normativa indiferente a valores éticos,
à noção de dignidade humana, já não tinha mais aceitação no pensamento
esclarecido do período pós-guerra. O fracasso político do positivismo, fruto de uma
crença exacerbada no poder de conhecimento científico, abriu caminho para novas
reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação (BARROSO,
2005).
A mudança de paradigma, nessa linha, foi capitaneada por Ronald Dworkin,
jurista anglo-saxão da Universidade de Harvard, que contribuiu sobremaneira para
“traçar e caracterizar o ângulo novo de normatividade definitiva reconhecida aos
princípios” (BONAVIDES, 2006, p. 265). A essa nova fase de interpretação e
compreensão do Direito atribuiu-se a denominação de pós-positivismo. Nela se
incluem “a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da
chamada nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais,
edificada sobre o fundamento da dignidade humana” (BARROSO, 2005, p. 12-13).
63
Parte de Dworkin, segundo Bonavides (2006), a teoria de que princípios são
direitos, com o que se abandona a doutrina positivista e se reconhece que tanto
princípios quanto regras positivamente estabelecidas têm caráter normativo. Daí
concluir-se que normas jurídicas ou são regras ou são princípios, sendo estes, no
entanto, razões decisivas àquelas (ALEXY, 2008).
Sem pretensão de finalizar o tema, faz-se mister esclarecer rapidamente a
diferença dogmática entre regras e princípios, para que se possa fornecer um
conceito a essa última categoria de normas.
De acordo com Barroso (2005, p. 15):
Regras são, normalmente, relatos objetivos, descritivos de determinadas condutas e aplicáveis a um conjunto delimitado de situações. Ocorrendo a hipótese prevista no seu relato, a regra deve incidir, pelo mecanismo tradicional de subsunção: enquadram-se os fatos na previsão abstrata e produz-se uma conclusão. A aplicação de uma regra se opera na modalidade tudo ou nada: ou ela regula a matéria em sua inteireza ou é descumprida. Na hipótese do conflito entre duas regras, só uma será válida e irá prevalecer. Princípios, por sua vez, contêm relatos com maior grau de abstração, não especificam a conduta a ser seguida e se aplicam a um conjunto amplo, por vezes indeterminado, de situações. Em uma ordem democrática, os princípios entram em tensão dialética, apontando direções diversas. Por essa razão, sua aplicação deverá se dar mediante ponderação: à vista do caso concreto, o intérprete irá aferir o peso que cada princípio deverá desempenhar na hipótese, mediante concessões recíprocas, e preservando o máximo de cada um, na medida do possível. Sua aplicação, portanto, não será no esquema tudo ou nada, mas graduada à vista das circunstâncias representadas por outras normas ou por situações de fato.
Conclui o citado estudioso, desse modo, que os princípios indicam valores a
serem preservados ou fins a serem alcançados, trazendo em si um conteúdo
axiológico ou uma decisão política.
Na mesma linha, Alexy (2008), desenvolvendo os trabalhos iniciados por
Dworkin (BARROSO, 2005), leciona que princípios são normas cuja função é
ordenar que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades
jurídicas e fáticas existentes. São, por conseguinte, segundo o jurista alemão,
verdadeiros mandamentos de otimização, que podem ser satisfeitos em graus
variados.
Diferem das regras na medida em que essas são normas que são sempre
satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então se deve fazer exatamente
64
aquilo que ela exige. Nada mais. Por isso, “as regras contêm determinações no
âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível” (ALEXY, 2008, p. 91). Logo,
para este autor, as regras são mandamentos de definição.
De outro ângulo, é necessário frisar que Ávila (2012), ancorado em excelente
doutrina, critica a tese largamente difundida de que os princípios só se aplicam na
ponderação. Essa teoria, inicialmente concebida nas obras de Dworkin e Alexy,
segundo explica o autor, foi recebida de maneira acrítica no Brasil, ensejando, como
de fato ocorreu, um “relativismo axiológico”: todos os princípios podem ser
afastados, inclusive os reputados fundamentais em um Estado Social e Democrático
de Direito, justamente por veicularem valores que não podem ser relegados. Em
razão disso, sustenta o doutrinador que a ponderação constitui apenas uma
característica contigente dos princípios.
Por isso, para Ávila (2012, p. 136), o elemento essencial dos princípios é o
alto grau de indeterminação estrutural; não no sentido de mera vagueza, mas na
noção específica de os princípios “não enumerarem exaustivamente os fatos em
presença dos quais produzem a consequência jurídica ou de demandarem a
concretização por outra norma, de modos diversos e alternativos”. Assim, conclui o
estudioso que os princípios devem ser entendidos como “normas que atribuem
fundamento a outras normas, por indicarem fins a serem promovidos, sem, no
entanto, preverem o meio para a sua realização” (p. 136).
Do exposto, pode-se afirmar, concordando com Bonavides (2006), que os
princípios encabeçam o ordenamento jurídico, guiam e fundamentam todas as
demais normas instituídas por ele, notadamente as regras. Além disso, tendem a
exercitar aquela função axiológica vazada em novos conceitos de sua relevância. Os
princípios, portanto, possuem funções, dentre outras, informativa e fundamentadora,
realizando a congruência, o equilíbrio e a essencialidade de um sistema jurídico
legítimo.
65
4.2 O princípio da insignificância
Tanto no direito brasileiro como no comparado, a via dogmática mais
apropriada para se alcançar o reconhecimento de um fato típico ínfimo ou de uma
conduta banal e sem relevância penal é constituída pelo chamado princípio da
insignificância ou de bagatela (GOMES, 2013, texto digital).
O princípio da insignificância é o que permite não processar condutas
socialmente irrelevantes, assegurando que essas não se transformem em uma sorte
de estigma para seus autores. Outrossim, por meio dele abre-se a porta para uma
revalorização do Direito Constitucional e a função da Administração da Justiça,
porquanto deixa de atender fatos mínimos para cumprir seu verdadeiro papel,
selecionando somente as condutas de alto conteúdo criminal. Não é um princípio de
Direito Processual, senão de Direito Penal (CORNEJO apud GOMES, 2013, texto
digital).
Para Greco (2009), tal princípio traduz um raciocínio minimalista, equilibrado,
pelo qual objetiva interpretar corretamente os textos legais, resultando em um
necessário Direito Penal do Equilíbrio.
Já Gomes (2013, texto digital) assevera correlacionar-se o indigitado princípio
com a nova posição do juiz no atual Estado Social e Democrático de Direito, cuja
função não mais está atrelada somente ao texto da lei – ou, como pretendeu
Montesquieu (2010, p. 175), “a boca que pronuncia as palavras da lei” – senão à
necessidade de se fazer justiça no caso concreto, conferindo proeminência aos
princípios e direitos fundamentais previstos na Constituição.
Para alguns autores, a origem desse princípio remontaria ao Direito Romano,
onde o pretor não cuidava, de modo geral, de causas ou delitos de bagatela, o que
deu lugar à máxima de minimis non curat praetor (ACKEL FILHO apud LOPES,
2000). Contudo, essa posição é fortemente criticada por Lopes (2000), que afirma
ser tal brocardo latino menos do que um princípio, um mero aforismo extrajurídico.
Por isso, esse último estudioso assevera ter o princípio da insignificância
surgido na Europa em virtude de problemas criminais relacionados ao patrimônio,
66
eis que, ao final da Segunda Guerra Mundial, a devastação sofrida pelo continente
acarretou graves problemas socioeconômicos e o aumento de subtrações de
pequena relevância. Daí a primeira nomenclatura doutrinária de criminalidade de
bagatela, ou, como preferem os alemães, bagatelldelikte.
Nessa mesma linha, Gomes (2013, texto digital) anota que após o segundo
confronto bélico mundial do século passado quem chamou atenção para o princípio
da insignificância foi, em primeiro lugar, Welzel (mesclando-o, entretanto, com o
princípio da adequação social), e, depois, Roxin. De todo modo, atribui-se a este
jurista alemão a primeira menção ao princípio da insignificância (das
Geringfügigkeitsprinzip), ocorrida no ano de 1964 (LOPES, 2000).
Roxin, com efeito, propôs uma solução mediante um recurso à interpretação
restritiva dos tipos penais, excluindo, desde logo, danos de pouca ou nenhuma
importância ao bem jurídico tutelado. Nas palavras do conspícuo jurista:
[...] hacen falta principios como el introducido por Welzel, de la adequación social, que nos es una característica del tipo, pero sí un auxiliar interpretativo para restringir el tenor literal que acoge también formas de conductas socialmente admisibles. A esto pertence además el llamado principio de la insignificancia, que permite en la mayoría de los tipos excluir desde un principio daños de poca importancia: maltrato no es cualquier tipo de daño de la integridad corporal, sino solamente uno relevante; análogamente deshonesto en el sentido del Código Penal es solo la acción sexual de una cierta importancia, injuriosa en una forma delictiva es solo la lesión grave a la pretensión social de respeto. Como ‘fuerza’ debe considerarse únicamente un obstáculo de cierta importancia. Igualmente también la amenaza debe ser ‘sensible’ para passar el umbral de la criminalidad. Si con estos planteamientos se organizara de nuevo consecuentemente la instrumentación de nuestra interpretación del tipo, se lograría, además de una mejor interpretación, una importante aportación para reducir la criminalidad en nuestro país (ROXIN apud TOLEDO, 2010, p. 133-134).
Segundo Lopes (2000), Roxin ampliou, mais tarde, a ideia de interpretação
restritiva, chamando a atenção para a fragmentariedade do Direito Penal, para que o
âmbito de punibilidade se restrinja ao indispensável à proteção de bens jurídicos.
De outra parte, conforme anota Zaffaroni (2004), Klaus Tiedemann também
fez referência à teoria da insignificância, chamando-a de princípio de bagatela
(Bagatellprinzip). Na concepção de Tiedemann, explica o estudioso, esse princípio
se fundamenta na proporcionalidade que deve vigorar entre o delito e a gravidade
da intervenção estatal. Trata-se, assim, de um princípio que somente é aplicável nos
casos concretos, considerando-o ora como uma questão de antijuridicidade material
67
e, por conseguinte, excludente da tipicidade, ora como um caso em que se
prescinde de pena.
De todo modo, convém ressaltar que em um Direito Penal cujo eixo central é
a exclusiva e subsidiária proteção de bens jurídicos andou bem Roxin em advogar,
com elementos teóricos consistentes, a existência de um princípio cuja atuação
permite ao intérprete da lei penal afastar do Direito Penal fatos de bagatela.
Realizada essa breve introdução, há de se descrever os fundamentos,
critérios e as consequências de aplicação do princípio da insignificância.
4.2.1 Fundamentos
Correlacionado a outros princípios constitucionais, o princípio da
insignificância se ajusta à equidade e à correta interpretação do direito. Pela
equidade, acolhe-se um sentimento de justiça, inspirado nos valores vigentes em
uma sociedade, excluindo do Direito Penal ações inexpressivas contra os valores
por ele tutelados. Pela correta interpretação do Direito, exige-se uma hermenêutica
constitucional para que se faça a necessária reflexão entre a conduta típica
praticada e os valores agasalhados na Constituição (LOPES, 2000).
Dessa forma, anota Lopes (2000, p. 56-57) que “nada parece mais natural
que se aceite o princípio da insignificância e que se busque uma forma de trazê-lo
para o sistema positivo como mecanismo receptor e divulgador do princípio da
igualdade dentro do Direito Penal”.
Por outro lado, também é certo que a fragmentariedade e a subsidiariedade
refletem no princípio da insignificância. Conforme já visto no primeiro capítulo, o
Direito Penal não tutela bens jurídicos que lhe são próprios e exclusivos. Ao
contrário, seleciona aqueles com coloração constitucional cuja proteção se mostra
insuficiente nos demais ramos do Direito. Porém, ao realizar essa seleção, o
legislador não dispõe de meios para evitar que condutas ínfimas não sejam
alcançadas pelo tipo penal (LOPES, 2000).
68
Logo, o princípio em estudo surge justamente para evitar situações dessa
espécie, atuando como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal. Conclui
o autor, dessa forma, citando Vico Mañas, que aquele princípio nada mais faz do
que revelar o caráter subsidiário e fragmentário do Direito Penal.
Para Roxin (apud GOMES, texto digital), a não incidência do Direito penal
sobre o fato insignificante resulta de “não ser socialmente danoso em sentido
material”. Sustenta esse autor, desse modo, a construção de um novo sistema
penal fundado na indivisibilidade entre Direito penal e Política criminal. Em razão
disso, o princípio da insignificância estaria inevitavelmente entrelaçado com os
postulados de Política Criminal (exclusiva proteção de bens jurídicos, intervenção
mínima, fragmentariedade, subsidiariedade, ofensividade, etc.). Portanto, a
penalização do bagatelldelikte, conclui o autor alemão, “geraria males muito mais
graves dos que os que tende evitar”.
O notável jurista tedesco, como se percebe, adverte que uma pena aplicada a
um fato insignificante seria demasiadamente excessiva àquele a que lei penal visava
proteger. Em suma, haveria uma desproporção entre a pena em abstrato e o fato
típico em concreto. Por isso, Feldens (2005) assevera que é o próprio Roxin a
afirmar que o princípio da proporcionalidade tem a aptidão de invalidar uma punição
de uma infração insignificante, pela proibição de excesso (Übermaßverbot, na
esteira da doutrina alemã), irrazoabilidade (juízo de manifest unreasonableness, na
doutrina inglesa) ou irracionalidade (juízo de irragionevolezza, na concepção
italiana).
Acolhendo as lições do doutrinador alemão, Feldens (2005, p. 191) explica
que:
Provavelmente não exista hipótese mais evidente de aplicação do princípio da proporcionalidade no âmbito do Direito Penal do que quando invocado o cognominado princípio da insignificância. Embora seguidamente reconduzido ao plano exclusivo da dogmática penal, a constatação acerca da insignificância jurídico-penal de uma conduta determinada não é senão a realização de um juízo concreto de desproporcionalidade que se realiza acerca da potencial incidência de uma medida legalmente prevista (a sanção penal) a uma situação de fato.
Para o citado estudioso, desse modo, diante de evidente descompasso entre
a ofensividade da conduta no caso concreto e a intrusão prevista no âmbito do
69
direito fundamental restringido (liberdade), não haveria proporcionalidade em
sentido estrito para aplicação da coerção jurídica (sanção). Conclui o autor, assim,
estar a insignificância atrelada à noção de desproporcionalidade, ou melhor, ao
princípio da proporcionalidade, decorrente da cláusula do Estado Social e
Democrático de Direito (art. 1.º da CF/88).
Dias (2007), no mesmo sentido, anota que a mera violação do bem jurídico-
penal, por si só, não basta para desencadear a intervenção penal, antes se
requerendo que esta seja indispensável à livre realização da personalidade de cada
indivíduo na comunidade. Reforçando a ideia de que o Direito Penal constitui a
ultima ratio da política social e possui natureza eminentemente subsidiária de
proteção de bens jurídicos, o jurista português ensina ser o princípio da
proporcionalidade o meio pelo qual se limita a intervenção penal.
Não discrepa dessa posição Zaffaroni (2004), para quem a insignificância
está intimamente ligada à função geral do ordenamento jurídico e do Direito Penal
em particular, e a proporcionalidade entre o delito e a reação penal:
[...] la ciencia jurídica no se halla hoy entre el positivismo jurídico y el positivismo peligrosista, como creemos haberlo demonstrado em el curso de esta obra. Tampoco creemos que sea um planteamiento ‘metajurídico’ ni sociológico, preguntarse cuál es el objeto que persigue todo el derecho penal, puesto que preguntarse por los preceptos em particular y omitir la pregunta por el conjunto equivale a mirar los árboles y descuidar el bosque. Tampoco nos parece ‘metajurídico’ comprobar que el mínimo de la pena del secuestro es un año de prisión y que es regla general un mínimo de equivalencia entre el injusto y la pena. Para nada estas preguntas caen en el justamente criticado argumento positivista de la ‘dañosidade social’ ni en un planteo jusnaturalista que descarte las penas por ‘injustas’ en el plano de un idealismo valorativo, sino que se limitan al análisis de la función general del orden jurídico positivo y del derecho penal en particular y a la regla incuestionada de la proporcionalidad entre la cuantía del delito y de la pena o reacción penal (p. 556).
E conclui o Ministro da Suprema Corte Argentina que a admissão do princípio
da insignificância, criticando posições contrárias, deriva da função de segurança
jurídica do Direito Penal:
En base a estos elementos claramente jurídicos, cuya negación solo puede ser hecha por quien propugne una aplicación mecânica e irracional de la ley penal, podemos llegar a la admisión del principio de insignificancia, sin que ello afecte la seguridad jurídica, sino todo lo contrario o sea, derivándolo precisamente de la función de seguridad jurídica del derecho penal y de las reglas que sigue su especial modo de proveer a ella. Justamente, creemos que no puede llamarse ‘seguridad jurídica’ a una aplicación mecânica y exegética de la ley penal, que en vez de ser republicana (esto es, racional),
70
se convierte en irracional, renunciando a preguntarse por el ‘para qué’ (el sentido) de la norma y del orden normativo, minimizando la función del bien jurídico y aproximándose peligrosamente al concepto de delito como pura lesión al deber, punto de vista desde el cual la ‘seguridad jurídica’ desaparece como objetivo de un Estado napoleônico. Es así que el rechazo del principio de insignificancia o de bagatela en nombre de la ‘seguridad jurídica’ es una falacia, porque, llamándola por su verdadera denominación, el rechazo se operaría en nombre de la realización incondicional de una voluntad irracional del Estado, que sería el único bien jurídico que ese derecho penal tutelaría (ZAFFARONI, 2004, p. 556-557).
Nesse panorama, conquanto se possa apontar vários fundamentos para a
aceitação do princípio da insignificância na dogmática jurídico-penal, sem dúvidas
aquele que possui maior solidez teórica e assento constitucional é o princípio da
proporcionalidade – ao qual, portanto, se vincula o da insignificância – consoante
antes mencionado por Feldens, Roxin, Dias e Zaffaroni.
Tecidas essas considerações, passa-se à análise dos critérios utilizados para
aplicação do princípio da insignificância.
4.2.2 Critérios para aplicação
Conforme relata Gomes (2013, texto digital), durante muitos anos não havia
uma doutrina ou jurisprudência bem definida sobre os requisitos válidos para a
incidência do princípio da insignificância.
Quiçá pelo fato de ambas sempre (re)afirmar que ofensas insignificantes aos
bens jurídicos não justificariam uma sanção jurídico-penal, olvidando, contudo, de
melhor esclarecer como se identificaria, com critérios consistentes, tais ofensas
bagatelares no caso concreto. Afinal, o que é uma ofensa insignificante?
Depois de vários julgados, entretanto, hoje já se pode dizer que o Supremo
Tribunal Federal (STF), em linhas gerais, acolhe os seguintes vetores: (a) ausência
de periculosidade social da ação; (b) a mínima ofensividade da conduta do agente;
(c) a inexpressividade da lesão jurídica causada; (d) e a falta de reprovabilidade da
conduta. Tais critérios foram sedimentados pelo Eminente Ministro Celso de Mello
no processo de Habeas Corpus n.º 84.412/SP, de cujo aresto foi relator, e que
71
serviu de paradigma para as demais decisões sobre a matéria na jurisprudência da
Suprema Corte Brasileira (GOMES, 2013, texto digital).
Analisando a decisão paradigmática em tela, Gomes (2013, texto digital)
afirma que três critérios apontados pelo STF tratam do desvalor da conduta ou da
ação e um versa sobre o desvalor do resultado jurídico.
Mas a dúvida que subsiste é saber se aqueles vetores devem ser analisados
conjuntamente, ou se podem ser verificados separadamente, para que se conclua
pela insignificância do fato típico.
Gomes (2013, texto digital), quanto a esse aspecto, é enfático em asseverar
que se deve distinguir a insignificância da conduta da do resultado. Assim, conforme
a posição do autor, quando uma conduta é indiscutivelmente insignificante, ainda
que o resultado seja relevante, não há como incidir o Direito Penal. De igual sorte,
se um resultado for ínfimo, afasta-se o Direito Penal, mesmo quando a conduta for
desvalorada. E, por fim, o estudioso arremata que pode ser insignificante tanto a
conduta quanto o resultado.
Para corroborar sua tese, o jurista apresenta três exemplos:
1. Numa inundação dolosa (muito grave), quem ajuda o autor do fato (intencional) com o derramamento de um copo d’água não pode ser punido como coautor. Um copo d’água que é agregado a 10 milhões de litros d’água não significa absolutamente nada. O desvalor da ação, nesse caso, é absolutamente indiscutível. Ainda que o delito (inundação) tenha sido devastador (tendo prejudicado dezenas de moradores e de propriedades vizinhas), a ação absolutamente ínfima do agente (copo d’água) afasta a incidência do Direito penal. 2. Quem subtrai uma cebola (ou um palito de fósforo) pratica uma conduta desvalorada (o ato de subtrair é altamente desvalorado), porém, o resultado jurídico é absolutamente ínfimo (falta, portanto, o desvalor do resultado, falta um ataque intolerável ao bem jurídico). Aqui estamos diante de um caso em que só o desvalor do resultado jurídico é ínfimo. Mesmo assim, não há como deixar de aplicar o princípio da insignificância, apesar do desvalor da ação. 3. Num acidente de trânsito em que o agente atua com culpa levíssima e, ademais, gera uma lesão totalmente insignificante, não há como afastar a incidência deste princípio. Neste caso temos a combinação de ambos os desvalores: da ação e do resultado. Nem a ação foi grave nem o resultado foi relevante. Nesse terceiro grupo também não há como deixar de aplicar o princípio da insignificância (GOMES, 2013, texto digital).
Com base nesses exemplos, desse modo, o autor assevera que os critérios
adotados pelo STF devem ser compreendidos no sentido de que a incidência do
indigitado princípio pode ocorrer quando há puro desvalor da ação ou puro desvalor
72
do resultado, ou a combinação de ambos. Acrescenta, ainda, que o fato deve ser
visto objetivamente e na medida de afetação do bem jurídico, prescindindo-se, pois,
da análise de eventuais antecedentes do agente, como reincidência, vida pregressa
etc. Contudo, não refuta a circunstância de que a multirreincidência ou reiteração
cumulativa afasta a insignificância, citando o exemplo de um gerente de banco que
desvia, diariamente, R$ 1,00 da conta de cada correntista e, ao final, aufere quantia
significativa.
Lopes (2000, p. 113), por outro lado, adverte ser necessário realizar uma
valoração global da ofensa, aliada sempre a um caráter rigorosamente normativo,
para evitar imprecisões conceituais do princípio da insignificância. Por isso, o autor
anota que “pode ser utilizado o parâmetro da nocividade social vinculada aos
critérios do desvalor da ação e desvalor do resultado e ao grau de lesividade e
ofensividade ao bem jurídico protegido pelo tipo penal”.
Aliás, a necessidade de análise global do fato concreto, no qual se inclui as
circunstâncias espaciais e temporais, a vítima, local etc., parece ser um critério com
o qual está de acordo a doutrina em geral.
Nesse sentido, Gomes (2013, texto digital) afirma que “para o
reconhecimento da insignificância e, em consequência, da infração bagatelar
própria, é muito importante a análise de cada caso concreto”. Cita, para reforçar
essa assertiva, o exemplo de que o furto de uma garrafa d’água, em princípio, é
absolutamente insignificante, porém para quem está no deserto do Saara não o é. E
finaliza asseverando não existir critérios apriorísticos concretos que definem o que é
insignificante.
Na mesma linha, Zaffaroni e Pierangeli (2004) também ensinam que a
insignificância não pode ser considerada à simples luz de sua consideração isolada,
mas, ao invés, à da finalidade geral que dá sentido à ordem político-normativa.
De todo modo, há de se ter sempre presente critérios sólidos para aplicar o
princípio da insignificância, exigindo-se do intérprete uma fundamentação adequada
para o caso concreto, sob pena de se cair em um subjetivismo perigoso que, ao
invés de reforçar a validez do princípio em tela, acaba por lesar a segurança jurídica
(PRADO, 2011).
73
Por fim, quanto à afetação do bem jurídico como requisito do princípio da
insignificância, dúvida poderia surgir no que concerne ao crime tentado. Toda
tentativa seria insignificante? A resposta a essa pergunta só pode ser negativa.
De efeito, a afetação do bem jurídico pode dar-se por dano ou por perigo,
conforme já explicado no primeiro capítulo. Em razão disso, o que cabe considerar,
para a aplicação do princípio da insignificância, não é o dano físico (o resultado
naturalístico), mas sim a lesão jurídica ou o perigo dela ao bem jurídico protegido.
Quem, por exemplo, tenta furtar um milhão de reais guardados em um cofre não
causa dano nenhum (cofre e dinheiro permanecem íntegros), porém o perigo de
lesão para o bem jurídico é evidente (GOMES, 2013, texto digital). Nesse caso, a
colocação em perigo para o bem jurídico – em uma forma de lesão menor dele – é
valorada ex ante (ROXIN, 2009).
Nesse panorama, depreende-se que os critérios propugnados pelo STF, no
Habeas Corpus n.º 84.412/SP, são os mais consistentes para realizar a aplicação
do princípio da insignificância. A eles acresça-se, ainda, a necessidade de se
verificar cada caso na circunstância concreta, a fim de se evitar que o mencionado
princípio não se torne mera retórica de legitimação de um arbítrio do intérprete, que,
nas palavras de Lopes (2000, p. 53), “tende a reproduzir escala de injustiça análoga
à praticada pelo sistema legal em sua dogmática”.
4.2.3 Consequência
A aplicação do princípio da insignificância no caso concreto – isto é, depois
de se haver concluído pela ausência de periculosidade social da ação, mínima
ofensividade da conduta, reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento
e inexpressividade da lesão jurídica provocada – afasta a tipicidade do fato
delituoso. Essa é a consequência jurídico-penal que advém do reconhecimento de
uma infração bagatelar, conforme a posição de Zaffaroni e Pierangeli (2004), Prado
(2011), Toledo (2010), Greco (2009), Roxin (2009), entre outros.
74
Uma corrente minoritária, entretanto, vincula a insignificância à
antijuridicidade, quer dizer, vê aquela como causa de exclusão da antijuridicidade
material. Nesse sentido, Gomes (2013, texto digital) relata que José Luís Guzmán
Dalbora vincula a lesão insignificante ao bem jurídico tutelado à teoria da
antijuridicidade, pelo que esta seria excluída pela aplicação do princípio da
insignificância.
Outra corrente, ademais, reconduz a insignificância para o âmbito das
eximentes da pena. Filia-se a essa posição, de acordo com Greco (2009), o
professor argentino Abel Cornejo. Para este jurista, ainda que os fatos formalmente
descritos nos tipos penais sejam ínfimos, não podem ser considerados atípicos;
entretanto, por serem insignificantes, não há necessidade de aplicação da pena
(CORNEJO apud GOMES, 2013, texto digital).
Nada obstante essas respeitáveis posições, a escassez de ofensividade a um
bem jurídico tutelado, conforme já antecipado, acarreta a atipicidade do fato.
Isso porque já se viu no primeiro capítulo que a tipicidade penal é composta
da tipicidade legal – conduta descrita abstratamente no tipo – mais a tipicidade
conglobante – norma anteposta ao tipo e bem jurídico tutelado.
Assim, no momento em que não há uma lesão significativa ou perigo dela
para o bem jurídico, exclui-se a tipicidade conglobante e, por consequência, a
própria tipicidade penal, pela análise conglobada do tipo legal, conforme as lições de
Zaffaroni e Pierangeli (2004).
Desse modo, se o princípio da insignificância exclui a tipicidade, e se esta
compõe o sistema tripartido de crime, não faz nenhum sentido investigar a
antijuridicidade e a culpabilidade de um fato penalmente atípico (GRECO, 2009).
Alguns autores, por outro lado, como Gomes (2013, texto digital) e Greco
(2009), afirmam que a aplicação do princípio da insignificância exclui a tipicidade
material. A decisão paradigmática do STF – Habeas Corpus n.º 84.412/SP –
também andou nesse sentido. Dessa forma, uma infração bagatelar, em que pese
se amoldar formalmente a um tipo legal, segundo esses estudiosos, seria
75
materialmente atípica. Operam, portanto, com os conceitos de tipicidade formal e
tipicidade material, que formam a tipicidade penal.
Greco (2009), em realidade, utiliza a teoria da tipicidade conglobante de
Zaffaroni para reforçar sua posição de que o princípio da insignificância exclui a
tipicidade. Já Gomes (2013, texto digital) explica coincidir o conceito de tipicidade
que perfilha com o do ilustre jurista argentino:
O conceito de tipicidade penal que nós acolhemos (o qual tem origem constitucional, pois é da Constituição que extraímos os valores, princípios e regras reitores do ordenamento jurídico, que orientam as finalidades do Direito penal, as quais, por sua vez, guiam o sentido das normas penais que, por seu turno, estruturam a teoria do delito e seus requisitos fundamentadores) (tipicidade penal = tipicidade formal + tipicidade material), em sua essência, coincide com o conceito de tipicidade conglobante de ZAFFARONI.
Logo, vislumbra-se que a tipicidade material nada mais é que a tipicidade
conglobante adotada neste trabalho, com a diferença, no entanto, de que a esta se
acresce a antinormatividade como exigência da tipicidade penal.
De outra banda, é de se ressaltar que, embora o fato insignificante não
constitua um ilícito penal, não deixa de ser um ilícito (civil, trabalhista, administrativo
etc.). Dessa forma, o princípio da insignificância exclui a responsabilidade penal do
agente, porém sobre ele podem recair todas as sanções jurídicas extrapenais
cabíveis. O que não se justifica, pois, conforme salienta Gomes (2013, texto digital),
“é a aplicação do Direito penal em fatos absolutamente destituídos de significado
penal”.
De tudo o que foi exposto, pode-se concluir que o princípio da insignificância
atua como fundamento de interpretação dos tipos penais, afastando a tipicidade
penal diante de circunstâncias de ínfima ofensividade ao bem jurídico tutelado.
Vincula-se, entre outros princípios e postulados de Política Criminal, ao princípio
constitucional da proporcionalidade, no qual encontra sua razão de ser. A sua
aplicação, por fim, estará condicionada à verificação de cada caso em concreto,
mediante a análise de certos vetores, tais como ausência de periculosidade social
da ação, mínima ofensividade da conduta, reduzidíssimo grau de reprovabilidade do
comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada.
76
Analisadas essas premissas indispensáveis, parte-se para a verificação na
doutrina e na jurisprudência da aplicação do princípio da insignificância no crime de
supressão ou redução de tributos federais.
4.3 A incidência do princípio da insignificância no crime de supressão ou
redução de tributos federais
A exclusão da tipicidade do crime de supressão ou redução de tributos
federais, ante a incidência do princípio da insignificância, é perfeitamente
admissível.
Isso porque o bem jurídico tutelado, conforme visto no segundo capítulo, é a
ordem tributária, na expressão do erário de cada ente político ao qual a Constituição
Federal de 1988 atribuiu a competência tributária – no caso do presente trabalho,
erário da União –, cuja mensuração é possível verificar-se em vários patamares
(ínfima, pouca, média ou alta ofensividade ao bem jurídico).
À vista disso, examinar-se-ão as posições doutrinárias e jurisprudenciais,
respectivamente, a respeito da aplicação do princípio da insignificância nesse
específico tipo de crime contra a ordem tributária.
4.3.1 Visão doutrinária
Machado (2009) preleciona que, tendo em vista ser o objeto jurídico protegido
pela tipificação do crime de supressão ou redução de tributos a ordem tributária –
cuja concepção defendida por ele já foi objeto de crítica no segundo capítulo –, se
poderia argumentar não excluir o delito o pequeno valor econômico do tributo
suprimido.
Contudo, o estudioso assevera que não se pode deixar de lado os aspectos
práticos das questões jurídicas, mormente quando há normas no sistema jurídico
77
dispensando o agente público de promover a cobrança de tributo em até
determinado valor. Por isso, para o autor, a insignificância estaria atrelada ao
montante de tributo cuja cobrança o sistema jurídico dispensa o agente público de
promovê-la.
Na mesma linha, Gomes (2013, texto digital) assevera ser o valor mínimo
exigido para que se proceda ao ajuizamento da execução fiscal o critério central que
governa o reconhecimento da insignificância no âmbito do Direito Penal Tributário.
Se o crédito tributário não ultrapassar o valor aceito para o ajuizamento da execução
fiscal, incluindo multa ou multas, há de se aplicar, segundo o autor, o princípio da
insignificância. E o argumento é o seguinte: “se até esse valor não vale a pena
propor a execução fiscal, com muito maior razão não tem sentido impor um castigo
penal”. Cita, para corroborar sua posição, os seguintes precedentes do STF: HC n.º
92.740/PR, de relatoria da Ministra Cármen Lúcia; e HC n.º 92.438/PR, cujo Relator
foi o Ministro Joaquim Barbosa.
Assim, para o autor, o que vale é o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais),
previsto no artigo 20 da Lei n.º 10.522/2002, para o efeito da incidência do princípio
da insignificância nos crimes contra a ordem tributária cujo sujeito passivo é a
União, de modo geral, e no crime de supressão ou redução de tributos federais, em
específico. Porém, com a entrada em vigor da Portaria n.º 75, de 22 de março de
2012, do Ministério da Fazenda, que alterou o quantum correspondente para o
ajuizamento da execução fiscal de dívida ativa perante a União, afirma que o novo
valor a ser considerado para efeitos da insignificância é o de R$ 20.000,00 (vinte mil
reais).
Gomes (2013, texto digital), além disso, faz a advertência de que o critério
válido para o crime de supressão ou redução de tributos, inclusive para os demais
crimes tributários, não é um critério geral do Direito Penal, utilizável em todas as
modalidades de crime. De acordo com o jurista, o crime tributário é muito peculiar e,
portanto, está regido por uma solução também muito particular. O valor do
ajuizamento da execução fiscal, em síntese, não é um parâmetro válido para outros
delitos. Para o delito de furto, por exemplo, conforme explica o autor, não
preponderaria o critério acima exposto.
78
No veio contrário, Gasperin (2011) assevera que, embora a doutrina e
jurisprudência se tenham inclinado a aceitar o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais)
como parâmetro para atribuir a pecha da insignificância aos crimes tributários
materiais, incluindo o previsto no artigo 1.º da Lei n.º 8.137/1990, tal raciocínio não
deveria ser aceito.
Isso porque, nas palavras do autor, tal patamar “de modo algum pode ser
considerado como um valor irrisório, ínfimo, irrelevante para o fim de balizar o
princípio da insignificância” (GASPERIN, 2011, p. 170). Por isso, o estudioso perfilha
o entendimento de que o valor de R$ 100,00 (cem reais), previsto no § 1º do art. 18
da Lei n. 10.522/2002, e adotado pelo Ministro Felix Fischer, no Recurso Especial
(REsp) n.º 685.135/PR, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), seria o mais razoável
para a aferição da insignificância nos crimes tributários materiais, pois nesse caso
há o cancelamento do débito inscrito na Dívida Ativa da União.
Entretanto, não deixa de admitir que “esse patamar até poderia ser elevado
pela adoção de uma posição intermediária, porém muito aquém de R$ 10.000,00
(dez mil reais)” (GASPERIN, 2011, p. 170).
Nesse sentido parece ser a posição de Eisele (2002), que argumenta não
bastar a consideração objetiva da relevância econômica, medida por determinado
valor, em relação à receita global do Estado, mas a necessidade de se verificar as
circunstâncias próprias de determinado fato. Desse modo, na visão do autor, devem
ser considerados, entre outros critérios, a quantidade de condutas típicas
praticadas, o valor evadido em face da capacidade contributiva do agente e a
repercussão socioeconômica do fato no local em que ocorreu.
Levando em conta tais parâmetros, segundo o jurista, a relevância social da
evasão seria avaliada conforme contextos econômicos próprios de cada fato e de
cada autor, conferindo-se, pois, igualdade substancial de tratamento entre autores
que praticam crimes contra a ordem tributária em circunstâncias socioeconômicas
distintas, conforme conclusão do autor.
Verificados esses parâmetros desenvolvidos pela doutrina, proceder-se-á, por
final, a uma análise de como os tribunais de nosso País estão acolhendo, nos casos
79
concretos, o princípio da insignificância no crime de supressão ou redução de
tributos federais.
4.3.2 Visão jurisprudencial
Antes de adentrar e expor as particularidades das decisões dos tribunais
sobre a incidência do princípio da insignificância no crime supracitado, é necessário
frisar, de antemão, que a pesquisa se limitará a examiná-las por amostragem,
porquanto seria extremamente difícil – para não dizer impossível – realizar a análise
de um extenso volume de precedentes jurisprudenciais no contexto deste trabalho.
Para tanto, foram utilizados os termos “insignificância” e/ou “ordem tributária”, com
referência ao artigo 1.º da Lei n.º 8.137/1990, para consultar a base de dados dos
respectivos sítios eletrônicos dos tribunais e, desse modo, selecionar o maior
número de decisões possíveis.
Dito isso, nesta primeira etapa, será verificada uma decisão de cada Tribunal
Regional Federal (TRF).
Nesse compasso, o aresto abaixo, do Tribunal Regional Federal da 1.ª
Região (TRF1), foi particularmente selecionado porque demonstra a mudança de
entendimento do Tribunal a respeito da incidência do princípio da insignificância no
crime de supressão ou redução de tributos. A sua ementa é a seguinte:
PENAL E PROCESSUAL PENAL - SONEGAÇÃO FISCAL - ART. 1º, IV, DA LEI 8.137/90 - USO DE DOCUMENTO FALSO - ART. 304 DO CÓDIGO PENAL - PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - TRIBUTO ILUDIDO DE VALOR IGUAL OU INFERIOR A R$ 10.000,00 - ARTS. 18, § 1º, E 20, § 1º, DA LEI 10.522/2002 - ATIPICIDADE DA CONDUTA - APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE - DELITO ÚNICO - REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. I - A 2ª Seção do TRF/1ª Região, na esteira da jurisprudência do egrégio STJ sobre a matéria, vinha decidindo que o valor previsto no art. 18, § 1º, da Lei 10.522/2002 é o parâmetro norteador da aplicação do princípio da insignificância ao crime de descaminho, por se cuidar de norma extintiva do crédito tributário. Quanto ao tributo iludido de valor superior a R$ 100,00 (cem reais) e igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais), entendia que - como determina o art. 20 e § 1.º, da Lei 10.522/2002 que a respectiva execução fiscal seja suspensa, sem baixa na distribuição, podendo ser reativada, quando os valores dos débitos consolidados ultrapassarem o limite indicado - não se tratava, pois, de extinção do crédito tributário, donde não se poder invocar tal dispositivo para regular o valor do débito caracterizador de matéria penalmente irrelevante, na forma da
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jurisprudência do colendo STJ sobre o assunto. II - Entretanto, ambas as Turmas do colendo STF, em acórdãos unânimes, firmaram posição no sentido de que "a análise quanto à incidência, ou não, do princípio da insignificância na espécie deve considerar o valor objetivamente fixado pela Administração Pública para o arquivamento, sem baixa na distribuição, dos autos das ações fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União (art. 20 da Lei n. 10.522/02), que hoje equivale à quantia de R$ 10.000,00, e não o valor relativo ao cancelamento do crédito fiscal (art. 18 da Lei n. 10.522/02), equivalente a R$ 100,00", inexistindo justa causa para a propositura da ação penal, quando o tributo iludido, no caso de crime de descaminho, não ultrapassa R$ 10.000,00, tal como previsto no aludido art. 20 da Lei 10.522/2002, em face da natureza subsidiária e fragmentária do Direito Penal, que só deve ser acionado quando os outros ramos do Direito não sejam suficientes para a proteção dos bens jurídicos envolvidos (HC 96.309-9/RS, Rel. Min. Cármen Lúcia, 1ª Turma do STF, unânime, julgado em 24/03/2009, DJe n. 75, divulgado em 23/04/2009 e publicado em 24/04/2009; HC 96.374-9/PR, Rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma do STF, unânime, julgado em 31/03/2009, DJe n. 75, divulgado em 23/04/2009 e publicado em 24/04/2009). III - Aplicação do entendimento do STF, consolidado sobre o crime de descaminho, ao delito de sonegação fiscal, uma vez que o referido limite de R$ 10.000,00 (art. 20 da Lei 10.522/2002) "incide em relação a todas as execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, dentre os quais figura o decorrente de sonegação de imposto de renda", conforme consignado no parecer da PRR/1ª Região. IV - In casu, sendo o valor do tributo iludido inferior a R$ 10.000,00 (art. 20 da Lei 10.522/2002), a conduta é atípica, em face do princípio da insignificância. V - "Ao fazer uso dos recibos objeto de contrafação perante a Receita Federal, a indiciada visou a fins exclusivamente fiscais, não havendo potencialidade lesiva para além do intuito de lesar a ordem tributária. Não existe razão, portanto, para não dar aplicação ao princípio da especialidade na hipótese, quanto mais tenha restado evidente que os fatos narrados orientam-se para a consecução do fim visado pelo agente, qual seja, a redução do tributo. Os recibos falsos também foram objeto de preocupação do legislador quando da elaboração da Lei nº 8.137/90, sendo intuitivo que a supressão ou redução de tributo - fato atribuído à recorrida - pode manifestar-se materialmente de diversas formas, arroladas nos incisos no art. 1º da referida lei penal, dentre elas a falsidade ideológica praticada na declaração feita ao Fisco, falsificação de documentos e o uso dos mesmos, e o estelionato, dentre outras." (RCCR 2007.38.15.000463-2/MG, Rel. convocado Juiz Federal César Fonseca, 3ª Turma do TRF/1ª Região, unânime, e-DJF1 de 07/03/2008, p. 123). VI - Com efeito, se, nos crimes contra a ordem tributária, a supressão ou redução do tributo, mediante a contrafação ou o uso do falsum, foram erigidos, pela Lei 8.137/90, em elementos constitutivos de outro ilícito, tem-se, na espécie, delito único, que é o de suprimir ou reduzir tributo, mediante aquelas ações referidas no art. 1º, IV, da mencionada Lei 8.137/90, afastando-se, na espécie, pelo princípio da especialidade, o crime previsto no art. 304 do Código Penal. VII - Ademais, a legislação do imposto de renda determina que o contribuinte que lançar deduções em sua declaração deverá estar de posse dos respectivos comprovantes para apresentação posterior à autoridade administrativa, quando solicitado. A simples entrega da declaração de ajuste anual, elaborada com base em recibos falsos, que não corresponderam à efetiva prestação de serviços, com a indicação do beneficiário no informe de rendimentos pagos, implica no uso dos respectivos recibos, para o fim de eliminação ou redução do tributo, dada a efetiva possibilidade de a Receita Federal averiguar as informações ali prestadas e intimar o contribuinte para a apresentação das provas das despesas declaradas. Assim, a apresentação, ao Fisco, dos recibos falsos, usados na anterior declaração de rendimentos anual, constitui mero exaurimento do crime contra a ordem tributária. VIII - Recurso improvido.
81
(TRF1 - RSE 0010805-49.2007.4.01.3800 / MG, Rel. DESEMBARGADORA FEDERAL ASSUSETE MAGALHÃES, TERCEIRA TURMA, JULGADO EM 20/10/2009, e-DJF1 p. 24 de 30/07/2010)
Como se percebe, o Tribunal até então perfilhava a posição de que o
princípio da insignificância somente incidiria quando o tributo federal suprimido ou
reduzido fosse inferior a R$ 100,00 (cem reais), porquanto esse valor de crédito
fiscal é cancelado, nos termos do artigo 18, § 1.º, da Lei n.º 10.522/2002. O valor
superior a esse patamar e inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais), ao contrário, não
era insignificante, já que nesse caso a execução fiscal apenas ficava suspensa,
conforme o disposto no artigo 20 do citado diploma legal. Todavia, a partir de
decisões do Supremo Tribunal Federal que adotou esse último parâmetro para
aplicar o princípio da insignificância no crime de descaminho, o TRF1, no acórdão
acima exposto, de relatoria da Desembargadora Assusete Magalhães, mudou seu
entendimento. Passou, então, a acolher o critério adotado pelo STF para aplicar o
indigitado princípio no crime previsto no artigo 1.º da Lei n.º 8.137/1990, uma vez
que aquele se refere a quaisquer débitos fiscais para com a União, inclusive os
oriundos desse crime.
Dessa feita, o caso ora tratado versava sobre a redução do imposto de renda,
no montante de R$ 4.532,68 (quatro mil, quinhentos e trinta e dois reais e sessenta
e oito centavos). Para tanto, o agente lançou deduções com despesas médicas
fictícias em sua declaração de imposto de renda de pessoa física, que culminou na
redução da base de cálculo e, por conseguinte, do tributo devido, configurando o
crime de supressão ou redução de tributos (art. 1.º, inciso IV, da Lei n.º 8.137/1990).
No entanto, o juízo de primeiro grau rejeitou a denúncia oferecida pelo Ministério
Público Federal (MPF), aplicando o princípio da insignificância, por entender ser
atípico materialmente o fato delituoso praticado. Embora o MPF tenha recorrido, o
TRF1 manteve a decisão do juízo a quo, na linha de argumentação anteriormente
descrita, isto é, de que é aplicável o princípio da insignificância quando o valor do
débito tributário decorrente do crime em tela for inferior a R$ 10.000,00 (dez mil
reais).
Na mesma linha, o Tribunal Regional Federal da 2.ª Região, no processo de
Apelação Criminal n.º 200651040025500/RJ, de relatoria da Desembargadora
82
Liliane Roriz, considerou o parâmetro de R$ 10.000,00 (dez mil reais) para aplicar o
princípio da insignificância no crime de supressão ou redução de tributos:
EMENTA: PENAL. PROCESSO PENAL. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICANCIA. NÃO CABIMENTO. I – Exige-se para a aplicação do princípio da insignificância, a presença das seguintes hipóteses: a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação realizada; c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; d) inexpressividade da lesão jurídica provocada. II - O bem juridicamente tutelado pela norma penal em questão é a integridade do erário público, visando resguardar, precipuamente, a Administração Pública em sua função fiscal, arrecadadora dos impostos devidos. III - De acordo com a jurisprudência mais recente das Cortes Superiores, a análise quanto à incidência, ou não, do princípio da insignificância na espécie deve considerar o valor objetivamente fixado pela Administração Pública para o arquivamento, sem baixa na distribuição, dos autos das ações fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União (art. 20 da Lei n. 10.522/02), que hoje equivale à quantia de R$ 10.000,00. IV - Deverá ser considerado o total do débito consolidado, na medida em que o dispositivo legal utilizado como parâmetro para se aferir a inexpressividade penal da conduta do crime em tela - artigo 20, da Lei 10.522/02 - se refere ao arquivamento, sem baixa na distribuição das execuções fiscais de débito inscritos como Dívida Ativa da União. V – Recurso provido para desconstituir a sentença e determinar o retorno dos autos à origem para o prosseguimento do feito. (TRF2 – Apelação Criminal - Processo: 200651040025500/RJ Decisão: 09/08/2011 Publicação: 16/08/2011 Relator(a): Desembargadora Federal LILIANE RORIZ Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA ESPECIALIZADA Documento: TRF-200259347)
Nesse aresto, o TRF2 deu provimento à apelação interposta pelo Ministério
Público Federal, que pedia a reforma da decisão do juízo a quo pela qual absolveu
sumariamente o réu N. N. T. da imputação do crime previsto no artigo 1.º, incisos I e
IV, da Lei n.º 8.137/1990, sob o argumento de que o fato era insignificante. No caso,
considerou-se que o critério para incidir o princípio da insignificância é o valor de R$
10.000,00 (dez mil reais), previsto no artigo 20 da Lei n.º 10.522/2002, no qual se
inclui o débito total inscrito em dívida ativa. Por isso, embora o réu tenha suprimido
R$ 6.159,56 (seis mil, cento e cinquenta e nove reais e cinquenta e seis centavos)
relativos ao imposto de renda da pessoa física, como o débito tributário consolidado
atingiu o montante de R$ 18.284,65 (dezoito mil, duzentos e oitenta e quatro reais e
sessenta e cinco centavos), a conduta delituosa era dotada de lesividade e,
portanto, na conclusão da Relatora, materialmente típica.
83
De outra banda, adotando o valor previsto na Portaria n.º 75, de 22 de março
de 2012, do Ministério da Fazenda, o Tribunal Regional Federal da 3.ª Região
(TRF3), na Apelação Criminal n.º 0006466-17.2007.4.03.6120, julgada pela Primeira
Turma, ponderou ser insignificante a supressão ou redução de tributos federais cujo
valor não ultrapasse R$ 20.000,00 (vinte mil reais):
EMENTA: PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. DÉBITO FISCAL INFERIOR A DEZ MIL REAIS. AUSÊNCIA DE LESIVIDADE A BEM JURÍDICO RELEVANTE. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. ATIPICIDADE FÁTICA. 1. Apelação da Defesa contra sentença que condenou o réu como incurso no artigo 1º, inciso I, da Lei 8.137/1990, à pena de 02 anos de reclusão. 2. Reconhecida a ausência de lesividade a bem jurídico relevante, aplica-se à espécie o princípio da insignificância. 3. A Lei 10.522/2002, em seu artigo 20, com a redação dada pela Lei nº 11.033/2004, afastou a execução de débitos fiscais de valor igual ou inferior a R$ 10.000,00, demonstrando a falta de interesse fiscal da Administração Publica relativo a tributos que não ultrapassem este limite monetário. a Portaria MF nº 75, de 22/03/2012, majorou o valor anteriormente fixado para R$ 20.000,00. 4. A incidência do princípio da insignificância leva à atipicidade fática. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça e da Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. 5. Apelo provido. (TRF 3ª Região, PRIMEIRA TURMA, ACR 0006466-17.2007.4.03.6120, Rel. JUIZ CONVOCADO MÁRCIO MESQUITA, julgado em 26/03/2013, e-DJF3 Judicial 1 DATA:04/04/2013)
De acordo com o teor da decisão, a defesa de S. C. B. L. apelou da decisão
de primeiro grau que o condenou às penas do crime previsto no artigo 1.º, inciso I,
da Lei n.º 8.137/1990, alegando ausência de dolo. Em suma, o agente inseriu
despesas fictícias com saúde, instrução e pagamento de pensão alimentícia em sua
declaração de imposto de renda, que redundou na redução desse tributo no valor de
R$ 10.859,78 (dez mil oitocentos e cinquenta e nove reais e setenta e oito
centavos). Porém, o Relator Márcio Mesquita, Juiz Federal convocado, considerou
atípica a conduta, por considerar não ter ocorrido lesividade ao bem jurídico.
Explicou que o valor previsto no artigo 20 da Lei n.º 10.522/2002, considerado como
parâmetro para aplicar o princípio da insignificância, foi majorado pela Portaria
Ministerial supracitada, pelo que a supressão ou redução de tributos federais aquém
de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), no entender do magistrado, deve ser tida por
atípica. Em razão disso, o TRF3 deu provimento à apelação de S. C. B. L. e
absolveu-o das imputações deduzidas pelo Ministério Público Federal.
84
O Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF4), da mesma forma, ao
rejeitar a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal contra agente detentor
de foro especial por prerrogativa de função, considerou o valor de R$ 20.000,00
(vinte mil reais) como parâmetro para aplicar o princípio da insignificância no crime
supressão ou redução de tributos federais. Tal decisão, nesse passo, restou assim
ementada:
PENAL E PROCESSO PENAL. RECEBIMENTO DE DENÚNCIA. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. LITISPENDÊNCIA PARCIAL. RECONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA INSIGIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA QUANTO AO AGENTE COM PRERROGATIVA DE FORO. DECLÍNIO DA COMPETÊNCIA. 1. Constatada a parcial litispendência, impõe-se a rejeição da denúncia no ponto, com fulcro no artigo 395, III, do Código de Processo Penal. 2. Nos crimes em que há elisão tributária, tais como os inscritos na Lei 8.137/90 e nos artigos 168-A e 337-A do Código Penal, incide o princípio da insignificância como excludente de tipicidade, quando a supressão das exações consistentes no valor consolidado - principal mais acessórios - não exceder o montante previsto no artigo 1º da Portaria MF 75, hoje correspondente a R$ 20.000,00 (vinte mil reais), patamar este considerado irrisório pela Administração Pública para efeito de processamento de execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União. 3. Considerando que denúncia foi rejeitada em relação ao agente que detém foro privilegiado, o qual já responde ao processo que ensejou o reconhecimento da litispendência, e que este e o presente feito se encontram em fase processuais consideravelmente distintas, deve esta nova persecução processar-se em primeiro grau, uma vez que não mais justificada a competência originária desta Corte. Precedentes. (TRF4, INQ 0034969-43.2010.404.0000, Quarta Seção, Relator Victor Luiz dos Santos Laus, Decisão em 12/11/2012, D.E. 19/11/2012)
Segundo a acusação formulada pelo MPF, o denunciado W. T., prefeito à
época do município de Porecatu/PR, teria inserido créditos inexistentes em
declarações de compensação apresentadas à Receita Federal, com o auxílio do
advogado E. L. P., suprimindo os tributos referentes ao imposto de renda da pessoa
jurídica e demais contribuições sociais devidas pela empresa da qual é
administrador, no período de 15 de abril de 2004 a 26 de janeiro de 2005. A Receita
Federal constatou a fraude e realizou lançamentos de ofício, em duas ações fiscais,
cujos valores redundaram em, respectivamente, R$ 10.969,84 (dez mil, novecentos
e sessenta e nove reais e oitenta e quatro centavos) e R$ 88.362,42 (oitenta e oito
mil, trezentos e sessenta e dois reais e quarenta e dois centavos). O MPF
denunciou ambos os investigados pelo crime previsto no artigo 1.º, incisos I e II, da
Lei n.º 8.137/1990, na forma do artigo 71 do Código Penal.
85
Nesse contexto, o Relator, ao analisar o cabimento da denúncia, constatou
haver litispendência com relação aos fatos que resultaram na ação fiscal de maior
valor e, por isso, rejeitou a denúncia nesse ponto. Além disso, como o montante de
tributos da outra ação fiscal não ultrapassava o valor de R$ 20.000,00 (vinte mil
reais), previsto na Portaria n.º 75, de 22 de março de 2012, do Ministério da
Fazenda, ponderou que o fato delituoso era materialmente atípico e, em razão
disso, rejeitou a denúncia. Na visão do Relator, referida Portaria Ministerial
aumentou o valor previsto no artigo 20 da Lei n.º 10.522/2002, motivo pelo qual o
valor do crédito tributário suprimido não acarretaria grave lesão ao bem jurídico.
Por outro canto, o Tribunal Regional Federal da 5.ª Região (TRF5), no
julgamento do Habeas Corpus n.º 4935/AL, impetrado pela Defensoria Pública da
União (DPU) em favor de W. F. O., objetivando o trancamento da ação penal por
atipicidade, aplicou o princípio da insignificância ao caso adotando o parâmetro de
R$ 10.000,00 (dez mil reais):
EMENTA: PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PLEITO DE TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CRÉDITO TRIBUTÁRIO INFERIOR A DEZ MIL REAIS. LEI N.º 10.522/2002. POSSIBILIDADE. CONCESSÃO DA ORDEM. - Não existindo interesse da Fazenda Pública em executar os valores devidos, não há porque considerar o fato como ilícito penal, em virtude da aplicação dos princípios da fragmentariedade, subsidiariedade e da intervenção mínima, que fazem do Direto Penal a ultima ratio. - Comprovado que o auto de infração lavrado em 30 de março de 2011, em razão da sonegação de IPI, apurou um crédito tributário no valor de R$ 4.881,96 (quatro mil, oitocentos e oitenta e um reais e noventa e seis centavos), bem abaixo, portanto, dos R$10.000,00 (dez mil reais) previstos na Lei 10.522/2002 com a redação alterada pela Lei 11.033/2004, conclui-se que não há mesmo justa causa para o prosseguimento da ação penal. Precedentes do TRF1, TRF3 e STJ. - "Aplicação do entendimento do STF, consolidado sobre o crime de descaminho, ao delito de sonegação fiscal, uma vez que o referido limite de R$ 10.000,00 (art. 20 da Lei 10.522/2002 "incide em relação a todas as execuções fiscais de débitos inscritos como Divida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, dentre os quais figura o decorrente de sonegação de imposto de renda" (TRF1, RSE 200738000109607, Terceira Turma, Rel. Des. Fed. Assusete Magalhães, e-DJF1 30/07/2010). - Ordem concedida para trancar a Ação Penal n.º 0002949-57.2012.4.05.8000. (TRF5 - PROCESSO: 00152862220124050000, HC4935/AL, RELATOR: DESEMBARGADOR FEDERAL FRANCISCO WILDO, Segunda Turma, JULGAMENTO: 12/03/2013, PUBLICAÇÃO: DJE 14/03/2013 - Página 331)
Nesses autos, o Desembargador Francisco Wildo acolheu os argumentos
deduzidos pela DPU, que afirmava ser materialmente atípica a conduta do paciente.
86
Segundo constou na decisão, embora W. F. O. tenha suprimido R$ 4.881,96 (quatro
mil, oitocentos e oitenta e um reais e noventa e seis centavos) referentes ao imposto
sobre produtos industrializados, tal valor era inferior àquele previsto no artigo 20 da
Lei n.º 10.522/2002, o qual é considerado pela Fazenda Pública para promover a
cobrança do débito tributário. Assim, concluiu o Relator que não haveria justa causa
para o prosseguimento da ação penal, pois, apesar de a conduta do réu ser
formalmente típica, ela é materialmente atípica, sendo indiferente para o Direito
Penal.
Visualizadas essas posições dos Tribunais Regionais Federais, pretende-se,
nesta segunda etapa, verificar decisões do Superior Tribunal de Justiça e do
Supremo Tribunal Federal a respeito do tema. Contudo, antecipa-se, desde já, que
não há decisão do Supremo com relação à análise do princípio da insignificância no
crime de supressão ou redução de tributos federais, por mais incrível que pareça
ser.
Já o STJ possui apenas uma decisão sobre essa temática, que foi proferida
no processo de Habeas Corpus n.º 175.930/PE, cuja ementa é a seguinte:
HABEAS CORPUS. PENAL. SONEGAÇÃO FISCAL (ART. 1º, INCISO I, C.C. ART. 12, INCISO I, DA LEI N.º 8.137/90). PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO FISCAL. CERCEAMENTO DE DEFESA. FALTA DE CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. OFENSA À SUMULA VINCULANTE N.º 24 DO STF. INEXISTÊNCIA. ILICITUDE DAS PROVAS NÃO CARACTERIZADA. SIGILO BANCÁRIO. EXTRAPOLAÇÃO DOS LIMITES DE ATUAÇÃO DO FISCO. MATÉRIA NÃO SUSCITADA NA IMPETRAÇÃO ORIGINÁRIA. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. INCURSÃO AO CAMPO PROBATÓRIO. MINISTÉRIO PÚBLICO. SIGILO FISCAL. QUEBRA INDEVIDA. INOCORRÊNCIA. EXISTÊNCIA DE REPRESENTAÇÃO PARA FINS PENAIS FEITA PELA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. DESCABIMENTO. IMPOSSIBILIDADE DE VALORAÇÃO ISOLADA DE UMA DAS CONDUTAS. ORDEM DENEGADA. 1. A responsabilidade pelo crédito tributário foi apurada, integralmente, no Procedimento Administrativo Fiscal n.º 19647.000943/2004-05, no qual figurou o Paciente como investigado e que conta com lançamento definitivo, o que afastada as alegações de desrespeito à Súmula Vinculante n.º 24 do Supremo Tribunal Federal e de cerceamento de defesa. 2. Nos termos da Lei Complementar n.º 105/2001, não constitui violação do sigilo bancário a requisição, pela autoridade fazendária, de informações referentes a movimentações financeiras, para fins de constituição de crédito tributário. Precedentes da Primeira Seção e das Turmas integrantes da Terceira Seção. 3. A tese de que o Fisco teria obtido dados que extrapolariam a permissão legal não foi suscitada na impetração originária, razão pela qual sua análise por esta Corte importaria supressão de instância. Ademais, ainda que assim não fosse, a questão demandaria uma minudente perscrutação do acervo probatório, providência incompatível com a via estreita do habeas corpus.
87
4. A denúncia oferecida pelo Ministério Público decorreu de representação para fins penais formulada pela Autoridade Fazendária junto ao Parquet (fl. 441), e não da requisição de informações fiscais pelo órgão ministerial, sponte própria, o que afasta a alegação de quebra ilegal do sigilo fiscal. 5. A omissão do recebimento de R$ 7.559,00, a título de pro labore, da empresa Colmeia Câmbio e Turismo Ltda., não foi valorada isoladamente na denúncia, mas integra o conjunto de ações supostamente perpetradas pelo Paciente que acabaram por culminar na sonegação de R$ 10.604.034,34, o que a afasta o pedido de aplicação do princípio da insignificância. 6. Ordem denegada. (STJ - HC 175930/PE, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 07/10/2010, DJe 03/11/2010)
Nesse caso concreto, W. J. P. L. foi denunciado pelo Ministério Público
Federal pela prática do delito previsto no artigo 1.º, inciso I, combinado com o artigo
12, inciso I, ambos da Lei n.º 8.137/1990, duas vezes, na forma do artigo 69 do
Código Penal. Em síntese, o paciente teria suprimido imposto de renda de pessoa
física nos exercícios fiscais de 2000 e 2001, mediante omissão fraudulenta de
recebimentos auferidos de pessoa jurídica, realizada através de “laranja”, ensejando
um crédito tributário de R$ 10.604.034,34 (dez milhões, seiscentos e quatro mil,
trinta e quatro reais e trinta e quatro centavos). Dentre os pedidos do writ, pretendeu
a aplicação do princípio da insignificância para fins de julgar atípica uma omissão de
rendimentos no valor de R$ 7.759,00 (sete mil, setecentos e cinquenta e nove
reais), pois esse montante era inferior ao previsto no artigo 20 da Lei n.º
10.522/2002, que trata do patamar mínimo exigido para o ajuizamento da execução
fiscal.
Todavia, a Relatora do Habeas Corpus, Ministra Laurita Vaz, em que pese
tenha reconhecido ser o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) o parâmetro para
aferir a insignificância, assinalou não ser possível considerar a ação de omitir
rendimentos inferiores a esse patamar de forma isolada. Por conseguinte, como
referida conduta integrou um conjunto de outras ações que culminaram na
sonegação de R$ 10.604.034,34 (dez milhões, seiscentos e quatro mil, trinta e
quatro reais e trinta e quatro centavos), afastou a incidência do princípio da
insignificância no caso tratado, o que foi acompanhada, por unanimidade, pelos
demais Ministros integrantes da Quinta Turma do STJ.
Nesse panorama, ao que se depreende das decisões do Judiciário, o
parâmetro adotado majoritariamente pela jurisprudência para aferir a insignificância
88
da conduta de suprimir ou reduzir tributos federais é o valor previsto no artigo 20 da
Lei n.º 10.522/2002, cujo texto assim dispõe:
Art. 20. Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais). § 1o Os autos de execução a que se refere este artigo serão reativados quando os valores dos débitos ultrapassarem os limites indicados. § 2o Serão extintas, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, as execuções que versem exclusivamente sobre honorários devidos à Fazenda Nacional de valor igual ou inferior a R$ 1.000,00 (mil reais). § 3o O disposto neste artigo não se aplica às execuções relativas à contribuição para o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. § 4o No caso de reunião de processos contra o mesmo devedor, na forma do art. 28 da Lei no 6.830, de 22 de setembro de 1980, para os fins de que trata o limite indicado no caput deste artigo, será considerada a soma dos débitos consolidados das inscrições reunidas.
Os Tribunais Regionais Federais da 3.ª e 4.ª Regiões, diversamente,
adotaram o critério pecuniário de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), sob o argumento de
que a Portaria n.º 75, do Ministério da Fazenda, teria aumentado o valor previsto no
dispositivo legal supracitado. Esse argumento, aliás, está em consonância com o
entendimento de Gomes (2013, texto digital), conforme anteriormente visto.
Nada obstante, com o devido respeito a essas respeitáveis posições, nenhum
desses parâmetros deveria ser utilizado para balizar a incidência do princípio da
insignificância no crime de supressão ou redução de tributos federais. E os
fundamentos são vários.
Primeiro, se princípios são mandamentos de otimização, como ensina Alexy
(2008), ou se princípios são normas que indicam fins a serem promovidos, sem,
contudo, enumerar fatos, na lição de Ávila (2012), jamais se poderá aceitar que o
princípio da insignificância permaneça vinculado exclusivamente a juízo de fato – no
caso, o valor para ajuizar execuções fiscais. Do contrário, não poderá ser tratado
como princípio, mas sim como um argumento objetivista que, a pretexto de conferir
objetividade no reconhecimento da insignificância, lhe retira a validade.
Segundo, o argumento central de que a supressão ou redução de tributos no
montante de até dez mil reais ou vinte mil reais deve ser considerada insignificante
externa-se no seguinte raciocínio: se esse patamar é considerado irrelevante para a
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Administração Pública Federal, que não ajuíza as execuções fiscais, mais
insignificante o é para o Direito Penal. Essa tese, no entanto, parte de premissas
equivocadas.
Ora, se a União, através da Procuradoria da Fazenda Nacional, não ajuíza as
execuções fiscais é porque, diante da conveniência e da oportunidade, mostra
desinteresse naquele momento em obter seu crédito. Isso fica claro na leitura dos
§§ 1.º e 4.º do artigo 20 da Lei n.º 10.522/2002, cuja regra determina o
prosseguimento da execução fiscal no caso de o débito tributário posteriormente
superar o patamar de dez mil reais.
Do contrário, levando-se à risca o raciocínio acima esposado, adverte
Gasperin (2011) que em todos os crimes com reflexo patrimonial – não só o fiscal –,
e cujas vítimas não demonstrarem interesse em pleitear a reparação no juízo cível,
também haverá de se reconhecer a insignificância. Assim, se no caso de um furto
ou de um estelionato, p. ex., a vítima não ingressar no juízo cível buscando
reparação, a conduta delituosa praticada será insignificante.
É de se ressaltar, por outro lado, que o Ministro Marco Aurélio, no processo
de Habeas Corpus n.º 100.986/PR, do Supremo Tribunal Federal, afastou o critério
da insignificância com base no artigo 20 da Lei n.º 10.522/2002:
Afasto a possibilidade de cogitar-se, na espécie, de atipicidade da conduta ante a insignificância do valor devido. Tenha-se presente que esta envolveu tributo não recolhido no importe de R$ 8.965,29. Mais do que isso, está-se diante da proteção da coisa pública, da administração tributária, não se podendo adotar postura conducente a levar à sonegação fiscal. A tanto equivale dizer-se que é atípica a conduta quando a sonegação, decorrente do descaminho, atinge substancial valor. Surge a problemática referente à Lei n.º 10.522/2002, considerada a redação imprimida pela Lei n.º 11.033/2004. Dá-se a extinção do crédito tributário quando não alcance o valor de cem reais – artigo 18, § 1.º, da Lei n.º 10.522/2002. Em se tratando de importância inferior a dez mil reais, enseja-se definição quanto à sequência imediata do executivo fiscal pelo Procurador da Fazenda. Concluindo de forma negativa, não há a extinção do débito, mas simples arquivamento, que não se mostra definitivo, do processo. Em síntese, caso ocorram outros débitos, o contribuinte pode vir a ter em curso a execução (BRASIL, 2011, texto digital).
Embora o caso tratasse do crime de descaminho (art. 334, caput, do CP), não
se pode perder de vista que o bem jurídico tutelado é o mesmo do crime de
supressão ou redução de tributos, pelo que a posição do eminente Ministro da
Suprema Corte é válida, de modo geral, para todos os crimes tributários. Saliente-se
90
que a Primeira Turma do STF denegou a ordem no caso em apreço, por maioria,
pelos votos do Relator, Ministro Marco Aurélio, da Ministra Cármen Lúcia e do
Ministro Luiz Fux, vencidos os Ministros Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski.
Terceiro, a circunstância de os Tribunais Regionais Federais da 3.ª e 4.ª
Regiões considerarem que a Portaria n.º 75, do Ministério da Fazenda, aumentou o
valor previsto no artigo da Lei n.º 10.522/2002 retrata aquilo que Streck (2013, texto
digital) denomina de “fenômeno de baixa constitucionalidade”. Afinal, desde quando
uma portaria tem o condão de alterar uma lei votada e aprovada pelo Parlamento?
Desde a vigência da CF/88, jamais. Daí porque as cortes mencionadas deveriam, ao
invés de considerar o ato normativo para aplicar o princípio da insignificância, ter
realizado o controle de constitucionalidade no caso concreto e afastado o teor da
portaria que conflita com a legislação.
Quarto, mesmo desconsiderando as razões até aqui expostas, não há como
conceber que os critérios utilizados para a aplicação do princípio da insignificância
sejam distintos em determinados casos. Desse modo, se, para a jurisprudência, é
insignificante a sonegação de dez mil reais ou de vinte mil reais, por entender não
existir ofensa ao bem jurídico tutelado, há de se reconhecer, com base no princípio
da isonomia, o mesmo critério para a incidência do indigitado princípio em outros
crimes cujo bem jurídico protegido seja semelhante, a exemplo do estelionato e do
furto, que tutelam, em linhas gerais, a propriedade ou patrimônio. Aliás, vale
recordar que o crime de supressão ou redução de tributos em muito se assemelha
com o de estelionato, consoante visto no segundo capítulo.
Contudo, paradoxalmente a jurisprudência inclina-se a não aplicar o princípio
da insignificância em casos de furto ou de estelionato contra a União, suas
autarquias e empresas públicas.
Prova disso é que na Apelação Criminal n.º 0000404-98.2007.404.7003/PR o
Tribunal Regional Federal da 4.ª Região negou o reconhecimento do princípio da
insignificância em um caso de estelionato contra União, consistente na percepção
indevida de R$ 45,00 por meio do programa Bolsa Família. Nesse aresto, o Relator,
Des. Márcio Antônio Rocha, consignou que “o bem jurídico é afetado não só na sua
esfera patrimonial, mas também em seu âmbito supraindividual”. E a conduta
91
praticada pelo réu, segundo o Relator, “importa lesão à própria estrutura social que
aquele patrimônio público encerra e promove” (BRASIL, 2012, texto digital).
Só que o mesmo Tribunal considerou, de forma isolada, a insignificância da
supressão de tributos realizada pelo ex-prócer de Porecatu/PR, no montante de R$
10.969,84 (dez mil, novecentos e sessenta e nove reais e oitenta e quatro
centavos), quando, na verdade, houve a supressão de aproximadamente cem mil
reais.
Essas idiossincrasias do sistema penal – e outras mais – são bem retratadas
por Streck (2012, texto digital), que, com emprego de uma dose de ironia que é
peculiar em seus textos, arremata:
[...] Sigo. Somos tão eficientes no combate à sonegação, por exemplo, que, pela Portaria do Ministério da Fazenda 75, os advogados públicos são proibidos de executar débitos inferiores a R$ 20 mil. Isso é que é eficiência. Aliás, recentemente o “Leão” se deu conta de que nos últimos cinco anos o Imposto de Renda sobre o 13o e 14o salário (sic) dos senadores não fora recolhido nem descontado daqueles abastados contracheques de suas Excelências. Qual a solução? O Senado da República saldará o débito! Quase como um pai indulgente (um pai-trimonialista!!!) que salda dívidas de bar do filho pródigo. Mas a verba é pública, cara pálida!! Enquanto isso, quando um Zé Mané furta, o sistema põe a mão rapidinho nele. Ao que sei, além de estarem arquivando execuções de até 20 mil, os juizados e tribunais pátrios estão estendendo a “boa nova” — com a concordância dos que defendem a res publica (e têm tantos) — para outros delitos, considerando que, agora, pela interpretação “oficial”, valores sonegados, contrabandeados e desviados de até R$ 20 mil são/serão considerados “insignificantes”. Isso é “bom” para apreendermos o conceito de isonomia: um patuleu furta coisas no valor de R$ 300 e a tese da insignificância é rechaçada com veemência; já um não-patuleu sonega tributos ou contrabandeia muambas no valor de R$ 11 mil e a tese da insignificância é bem-vinda. E vão me dizer que o julgamento do mensalão vai “arrumar” o país? Aliás, o que acham aqueles que combatem o projeto do Novo Código Penal do fato de que, em determinados crimes, a insignificância chegar ao “pequeno-valor-de-vinte-mil-pratas”? Para quem faz blague com o dispositivo do projeto do NCP que trata do “molestamento de cetáceos” — bom para fazer a plateia rir adoidada em palestras — por que não fazer blague com a Portaria 75 do Ministério da Fazenda que “introduz” um “novo” conceito para insignificância? Que tal? Não é de rolar de rir? Farfalhar? Ou, será que esse “novo-conceito-de-insignificância” beneficia determinada camada de acusados e por isso não é de bom alvitre fazer essa crítica? Desconfio que a teoria do bem jurídico em terrae brasilis também seja de conveniência. A propósito: estaria rindo o cidadão a quem o STJ negou a aplicação da insignificância em caso de 85 pratas? Bem feito. Deveria ter feito transações com “dólar-cabo”, modalidade que, como já se viu, não se enquadra em evasão de divisas... Ah, bom. O que os “manuais simplificadores” do Direito diriam disso? [...]
92
Em realidade, esse quadro vai ao encontro da lição de Zaffaroni e Pierangeli
(2004) sobre a questão da seletividade do sistema penal. Conforme salientam os
autores, “em boa medida, o sistema penal seleciona pessoas ou ações, como
também criminaliza a certas pessoas segundo sua classe e posição social. [...] Há
uma clara demonstração de que não somos todos igualmente “vulneráveis” ao
sistema penal” (p. 72-73).
De efeito, parece ter sentido a afirmação de Fischer (2006, p. 211), com
menção a Daniel Drey, no sentido de que “la ley es como una telaraña, atrapa a las
moscas y a los pequeños insectos, pero deja que los abejorros, rompiéndola, se
abran paso a través de ella”.
Da mesma forma, Barroso ([2006?], texto digital) chama a atenção para o fato
de que a classe dominante brasileira não pune seus parceiros:
Para si, a classe dominante brasileira reservou a apropriação privada do Estado e a imunidade trazida por uma cultura de absoluta impunidade para os crimes que pudesse cometer. No espaço público, tomava posse não nos cargos públicos, mas dos cargos públicos, de onde passava a favorecer parentes, amigos e aliados. Os crimes contra a Fazenda Pública, a improbidade administrativa, a fraude a licitações, os crimes contra a ordem tributária dão traço nas estatísticas das condenações penais no Brasil. A elite brasileira — nós, não eles, repita-se — não pune os seus parceiros, os seus iguais. Deseja uma polícia eficiente, que reprima com firmeza quem lhes ameaça o patrimônio, mas não hesita em corromper o primeiro servidor público que se opõe a seus interesses imediatos.
Portanto, definitivamente não se pode concordar com a vinculação do
princípio da insignificância ao valor previsto para o ajuizamento das execuções
fiscais, sobretudo quando esse parâmetro somente é utilizado no crime de
supressão ou redução de tributos federais. Se o saber penal deve ser instrumento
de integração e não de marginalização, conforme mencionado no primeiro capítulo e
com amparo nas lições de Zaffaroni e Pierangeli (2004), não se pode interpretar a
legislação penal de maneira a selecionar determinadas pessoas ou ações.
Mas, então, quais seriam os critérios para aplicar o princípio da insignificância
no crime de supressão ou redução de tributos federais? A resposta é simples:
ausência de periculosidade social da ação, mínima ofensividade da conduta,
reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da
lesão jurídica provocada, entre outros fatores a serem verificados no caso concreto,
já que tais parâmetros são e podem continuar a ser aplicados a qualquer crime.
93
5 CONCLUSÃO
Percorridas as trilhas delimitadas introdutoriamente, e exploradas no curso do
presente trabalho com a finalidade de procurar, ao máximo, desvendar algumas
riquezas da temática em exame, faz-se mister revelar, da maneira mais objetiva
possível, as conclusões a que se chegou a pesquisa.
O trabalho apresentado tratou, em linhas gerais, sobre o princípio da
insignificância e o crime de supressão ou redução de tributos, previsto no artigo 1.º
da Lei n.º 8.137/1990, com ênfase nos tributos de competência da União.
Por isso, no capítulo inaugural de desenvolvimento ocupou-se a monografia
em apresentar conceitos gerais de Direito Penal que tivessem pertinência à
compreensão do tema. Nesse sentido, demonstrou-se, primeiramente, que da
expressão Direito Penal exsurgem dois elementos: a legislação penal e o saber
penal; este interpretando aquela, para que o Direito Penal possibilite a redução das
desigualdades nas diferentes estruturas de poder e promova a integração social.
Sua finalidade, dessa forma, é a de prover a segurança jurídica, de maneira a
assegurar a coexistência humana, cuja manifestação se dá através da tutela de
bens jurídicos. Mais do que isso: a legitimidade ou validade do Direito Penal passa
por um modelo de proteção subsidiária de bens jurídicos com esteio na
Constituição, que traduzem as dimensões de direitos. À pena, nesse quadro, ao
assumir feição preventiva, é reservada a missão de materializar a finalidade do
Direito Penal.
94
Além disso, verificou-se que o sistema tripartido de delito, através do qual se
possibilitou o desenvolvimento da teoria finalista da ação, encampada pelo nosso
atual Código Penal, é dominante na dogmática jurídico-penal contemporânea. Na
concepção desse sistema, pois, crime é todo fato típico, antijurídico e culpável.
Assim, a ação humana delituosa – que ofende ou exponha a perigo algum bem
jurídico – dever ser descrita na lei (tipo); contrária ao ordenamento jurídico
(antijuridicidade); e, por fim, culpável – isto é, que o autor seja imputável, tenha
potencial consciência da ilicitude e que lhe tenha sido exigido comportamento
diverso – (culpabilidade).
A tipicidade penal, de mais a mais, que com o tipo não se confunde, é a
característica de uma conduta estar subsumida a um tipo penal. Corresponde à
tipicidade legal mais a tipicidade conglobante. Esta realiza a interpretação daquela
no sentido de verificar, primeiro, a antinormatividade da conduta e, segundo, a
existência de perigo ou lesão ao bem jurídico tutelado. Dessa forma, a tipicidade
conglobante realiza a correção da tipicidade legal, resultando na tipicidade penal.
Analisados esses conceitos, no segundo capítulo descreveu-se o crime de
supressão ou redução de tributos, previsto no artigo 1.º da Lei n.º 8.137/1990,
apresentando seus caracteres. Antes, contudo, pelo fato de que a existência do
delito retromencionado pressupõe uma relação jurídico-tributária, foram
conceituadas noções de tributo, obrigação tributária e crédito tributário. Nesse
aspecto, pode-se afirmar ser o tributo uma prestação pecuniária compulsória, cuja
natureza jurídica é verificada pelo binômio hipótese de incidência/base de cálculo.
Ademais, o sistema tributário nacional adotou, ressalvados os entendimentos
contrários, a classificação quinquipartite dos tributos, pelo que esses compreendem
os impostos, taxas, contribuição de melhoria, contribuições sociais e empréstimos
compulsórios. E os tributos federais são aqueles cuja instituição a Constituição
Federal outorgou à União. Após a prática do fato gerador, que se amolda a um tipo
tributário, nasce a obrigação tributária entre o sujeito passivo e o Fisco, que, no
entanto, ainda é ilíquida. Para torná-la líquida, a autoridade administrativa realiza o
lançamento, surgindo, então, o crédito tributário.
No que tange ao tipo penal em exame, embora a Lei n.º 8.137/1990 o
denomine de “crime contra a ordem tributária”, essa rotulação semântica é bastante
95
ambígua, pois pode referir-se a qualquer crime com conotação tributária. Por isso,
preferiu-se a adoção do termo “crime de supressão ou redução de tributos”, para
distingui-lo dos demais delitos, em especial do previsto no artigo 2.º da referida
legislação.
Dito isso, o crime em apreço tutela a ordem tributária; não no sentido de
proteger a finalidade arrecadatória do Estado, mas como expressão do patrimônio
fiscal necessário a promover serviços públicos eficientes e a concretizar direitos
fundamentais sociais. Quanto à estrutura do tipo penal em exame, ressalta-se que,
em seu aspecto objetivo, a supressão ou redução de tributos se caracteriza pelo
inadimplemento, parcial ou total, da obrigação tributária, mediante a prática de uma
ou mais condutas descritas nos incisos do artigo 1.º da Lei n.º 8.137/1990. No
aspecto subjetivo, o tipo somente admite a forma dolosa. A consumação, por outro
lado, ocorre com o dano fiscal, que somente se configura, no caso dos incisos I a IV
do mencionado dispositivo, após esgotada a discussão acerca da exigibilidade do
crédito na esfera administrativa, na esteira da Súmula Vinculante n.º 24. A tentativa
é, em tese, admissível; porém, como a maioria dos atos de execução configuram o
delito previsto no artigo 2.º da referida lei, subsiste essa figura delitiva, ante a
solução do conflito de normas pelo critério da subsidiariedade.
Como o objetivo do trabalho estava centrado na análise da incidência do
princípio da insignificância no crime de supressão ou redução de tributos federais,
no derradeiro capítulo, inicialmente, foram descritos a função dos princípios e, é
claro, o princípio da insignificância; ao depois, investigados os parâmetros de que se
valem doutrina e jurisprudência para aferir a insignificância da conduta de suprimir
ou reduzir tributos federais.
Nesse contexto, viu-se que os princípios são normas que atribuem
fundamentos a outras normas, notadamente as regras, e podem ser satisfeitos em
graus variados, segundo as possibilidades fáticas e jurídicas existentes. Sua função,
dessa feita, é a de realizar a congruência e o equilíbrio de um sistema jurídico
legítimo, informando e orientando a atuação do intérprete.
O princípio da insignificância, por sua vez, foi apresentado à comunidade
jurídica por Roxin, no ano de 1964, em um contexto histórico marcado pelo aumento
96
da criminalidade de bagatela na Europa e, especialmente, na Alemanha. Conforme
propugnou o notável jurista tedesco, referido princípio atua como um recurso para a
interpretação dos tipos penais, excluindo da área de incidência do Direito Penal
fatos ínfimos ou danos de pouca importância ao bem jurídico tutelado. Partindo
dessa perspectiva, revaloriza-se a interpretação constitucional e abre-se caminho
para a concreção do ideal de justiça.
Indigitado princípio, além disso, imbrica-se com os postulados da
fragmentariedade e subsidiariedade e, mormente, com o princípio constitucional da
proporcionalidade, atuando como excludente da tipicidade legal, pois o fato
insignificante é penalmente atípico à luz da análise conglobada da tipicidade. Para
aquilatar a insignificância, nessa linha, é imprescindível a utilização de critérios
sólidos, tais como ausência de periculosidade social da ação, mínima ofensividade
da conduta, reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e
inexpressividade da lesão jurídica provocada, a serem verificados nas circunstâncias
do caso concreto.
Após a exposição dessas premissas indispensáveis, partiu-se para a
verificação na doutrina e na jurisprudência dos parâmetros que autorizam a
incidência do princípio da insignificância no crime de supressão ou redução de
tributos federais. Nesse sentido, a doutrina inclina-se, de um lado, a propugnar
critérios como a quantidade de condutas típicas praticadas, o valor evadido em face
da capacidade contributiva do agente e a repercussão socioeconômica do fato no
local em que ocorreu; de outro, o parâmetro do valor mínimo para que se proceda
ao ajuizamento do executivo fiscal – dez mil reais, de acordo com o artigo 20 da Lei
n.º 10.522/2002, ou vinte mil reais, nos termos da Portaria n.º 75, de 22 de março de
2012, do Ministério da Fazenda –, porque até esse montante a Fazenda Nacional
não teria interesse em cobrar o crédito fiscal e, assim, o fato também seria
irrelevante para o Direito Penal.
Aliás, esse último critério é adotado de forma unânime pela jurisprudência dos
Tribunais Regionais Federais e pela do Superior Tribunal de Justiça. Há exemplos
como os arestos dos Tribunais Regionais Federais da 1.ª, 2.ª e 5.ª Regiões e do
STJ, que utilizaram o parâmetro de dez mil reais, e decisões dos Tribunais
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Regionais Federais da 3.ª e 4.ª Regiões, nas quais se mencionou o valor de vinte
mil reais, conforme demonstrado ao longo do último capítulo.
Diante da análise do problema proposto para este estudo – qual(is) o(s)
parâmetro(s) desenvolvido(s) pela doutrina e jurisprudência para aplicar o princípio
da insignificância na conduta típica de suprimir ou reduzir tributos federais? –, pode-
se concluir que a hipótese inicial levantada para tal questionamento é falsa, na
medida em que o critério utilizado amplamente para aplicar o princípio da
insignificância no crime de supressão ou redução de tributos federais é sui generis:
o valor mínimo estabelecido para o ajuizamento do executivo fiscal. Contudo, com o
devido respeito a essa posição, não se pode concordar com ela.
Ora, o princípio da insignificância, nos termos acima, não guarda nenhuma
semelhança com aquele propugnado por Roxin no sentido de excluir “danos de
pouca importância”, à exceção, por óbvio, do nome que lhe atribuíram. Isso porque
ele está sendo aplicado no delito acima referido de maneira acrítica pelos tribunais,
que o vinculam a um juízo de fato predisposto na legislação – artigo 20 da Lei n.º
10.522/2002 ou Portaria n.º 75 do Ministério da Fazenda –, subtraindo-lhe, dessa
forma, a qualidade de princípio.
Ademais, o argumento centrado na irrelevância penal de um valor que a
União o considera irrelevante para fins de execução fiscal parte de premissas
equivocadas. Uma coisa é o desinteresse em cobrar na esfera cível o montante do
tributo reduzido ou suprimido. Outra coisa é a lesão provocada ao bem jurídico
tutelado na esfera penal. Do contrário, se subsistir a validade daquele argumento,
todo crime patrimonial cuja vítima não ingressar no juízo cível postulando reparação
deverá ser considerado insignificante, a exemplo do furto e do estelionato.
Portanto, sustenta-se que os critérios a serem adotados para permitir a
incidência do princípio da insignificância no crime de supressão ou redução de
tributos federais deverão ser os mesmos utilizados nos demais crimes em geral, ou
seja: ausência de periculosidade social da ação, mínima ofensividade da conduta,
reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da
lesão jurídica provocada, entre outros no caso concreto.
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Caso ainda se considere insignificante a sonegação de dez mil ou vinte mil
reais, mesmo critério há de ser adotado em delitos que tutelam bens jurídicos
semelhantes, em respeito ao princípio da igualdade. Afinal, as leis penais não
podem ser iguais a “teias de aranha”, com a função de “pegar somente os pequenos
insetos”, mas, antes, devem ser interpretadas como instrumento de integração,
dirigindo-se à tutela da segurança jurídica em um Estado Social e Democrático de
Direito.
Nesse panorama, sem embargo de que seja retomado e pensado, o caminho
estabelecido no início chegou a seu termo. Não se tem a pretensão de que as
conclusões a que se chegou o presente trabalho sejam consideradas a melhor
solução para o problema enfrentado. Podem até não ser. Todavia, acredita-se que
sejam as mais razoáveis à luz da interpretação de um Direito Penal em
conformidade com a Constituição.
Por fim, poder-se-á dizer que a proposta é utópica. Mas, como bem salientou
Galeano, ainda que a utopia se distancie lá no horizonte, ela permite que o homem
continue a caminhar. O intérprete que tenha chegado até aqui, concordando ou não
com os fundamentos expostos, há de reconhecer: o autor atingiu seu objetivo.
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