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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA-UNEB

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS VII

COLEGIADO DE PEDAGOGIA

MEMÓRIA DE VELHOS

CRISTIANE BATISTA PINTO

SENHOR DO BONFIM - BA 2010

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA-UNEB

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS VII

COLEGIADO DE PEDAGOGIA

CRISTIANE BATISTA PINTO

MEMÓRIA DE VELHOS

Monografia apresentada ao Departamento

de Educação-Campus VII, da Universidade

do Estado da Bahia, como parte dos

requisitos para obtenção de graduação no

Curso de Pedagogia com Habilitação em

Educação Infantil e Séries Iniciais do Ensino

Fundamental.

Linha de Pesquisa: Memória, Cultura e

História da Educação.

Orientadora: Profª Drª Maria Glória da Paz

SENHOR DO BONFIM - BA 2010

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CRISTIANE BATISTA PINTO

MEMÓRIA DE VELHOS

Monografia apresentada ao Departamento de Educação-

Campus VII, da Universidade do Estado da Bahia, como parte

dos requisitos para obtenção de graduação no Curso de

Pedagogia com Habilitação em Educação Infantil e Séries

Iniciais do Ensino Fundamental.

Aprovada em 24 de março de 2010.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________

Profª Drª Maria Glória da Paz

Universidade do Estado da Bahia –UNEB

Orientadora

_____________________________________________________

Profª Ana Maria Campos

Universidade do Estado da Bahia – UNEB

Examinadora

____________________________________________________

Profª Beatriz Barros

Universidade do Estado da Bahia – UNEB

Examinadora

____________________________________________________

Profª Sandra Fabiana Almeida Franco

Universidade do Estado da Bahia – UNEB

Examinadora

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A Maria Amélia Pinto, minha mãe.

Com ela aprendi muitas coisas... Desaprendi muitas coisas também...

Somos cúmplices na vida.

A Raimundo Batista Pinto, meu pai.

Contador de estórias, cordelista...

Aprendi com ele o gosto pela palavra e

pelas coisas simples, como uma pedra colhida no rio,

como o perfume lilás da flor de setembro.

Aos meus irmãos: Tarcísio, Vágner, Jorbson, Wilton e Carolina

que têm me incentivado e apoiado em todas as horas.

A Rodrigo Gomes Wanderley,

porque compartilhamos prosaicamente de tudo,

mas, sobretudo, compartilhamos coisas

que se situam no reino do indizível,

tocadas apenas pela poesia.

Aos meus amigos: Jácia Pereira, Bruna Pamponet,

Mara Araújo, Priscila Pereira, Maísa Borges, Laryssa Andrade, Joana Dias,

Jaqueline Oliveira, Hilda Maria Vieira, Joel Porto, Ágda Solene Braga,

Márcia Xavier, Dan Loureiro, Fabiana Lima,

Jacira Souza e Ana Lúcia Barbosa.

E a você...

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AGRADECIMENTOS

À Universidade do Estado da Bahia – UNEB – Campus VII;

Ao Colegiado de Pedagogia do Campus VII;

Aos professores que contribuíram para a minha formação, nomeadamente Ana

Maria Campos, Beatriz Barros, Elizabete Santos, Fani Rehem, Gilberto Lima, Joanita

Moura, Maísa Lins, Norma Leite, Ozelito Cruz, Paulo Batista Machado, Rita Braz,

Rita Carneiro, Rubens Antonio da Silva Filho, Simone Wanderley, Suzzana Alice

Lima e, especialmente, à minha dedicada orientadora e parceira de tear, professora

Maria Glória da Paz;

Aos Servidores da UNEB – Campus VII;

Ao Centro Espírita Discípulos de Jesus;

Aos funcionários e voluntários do Lar dos Idosos Fabiano de Cristo, pela acolhida e

colaboração durante a realização dos trabalhos;

Aos velhos, sujeitos desta pesquisa: Edvalda Maria de Jesus, João Xavier Dias,

Joselita Roque da Silva e Raul Gomes, que, com suas vozes, compuseram este

trabalho;

A Jácia Pereira, Joel Porto, Priscila Pereira, Rodrigo Wanderley e Rubens Antonio

da Silva Filho pela colaboração técnica e pelo incentivo durante a realização deste

trabalho.

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EPÍGRAFE

“A história aqui tecida,

como uma renda, é feita de fios, nós,

laçadas, mas também de lacunas,

de buracos, que, no entanto,

fazem parte do próprio desenho,

são partes da própria trama”.

Michel Foucault

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RESUMO

Neste trabalho foram colhidas e analisadas memórias de velhos. Utilizamos a abordagem da História Oral como metodologia. Foram realizadas entrevistas com quatro depoentes, o Sr. João Xavier Dias, o Sr. Raul Gomes, a Srª Edvalda Maria de Jesus e a Srª Joselita Roque da Silva, moradores do Lar dos Idosos Fabiano de Cristo, localizado em Senhor do Bonfim, em março de 2009. Dentre as lembranças evocadas figuraram as referentes à família, destacando-se pais, irmãos e convivência, à infância, especialmente espaços, amigos e brincadeiras, e à escola, citadamente localização, professores, colegas, atividades de ensino, brincadeiras castigos e festas. Para a análise nos valemos especialmente das propostas de Halbwachs (2006), Bosi (1994) e Pollak (1989).

Palavras- chave: Memória, História Oral, Velhos.

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA HISTÓRICO PÁGINA

01 João Xavier Dias (1928) .............................................................. 30

02 Raul Gomes (1932) ..................................................................... 31

03 Edvalda Maria de Jesus (1936) .................................................. 32

04 Joselita Roque da Silva (1932) ................................................... 33

05 Fachada do Lar dos Idosos Fabiano de Cristo ........................... 39

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LISTA DE MAPAS

MAPA HISTÓRICO PÁGINA

01 Mapa do Território de Identidade 25- Piemonte Norte do

Itapicurú, Bahia, 2004...............................................................

............38

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LISTA DE ABREVIAÇÕES

CEDJ

Centro Espírita Discípulos de Jesus

CNAS

Conselho Nacional de Assistência Social

CNPJ

Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica

CPDOC Centro de Pesquisa e Documentação de História

Contemporânea do Brasil

CRAS

Centro de Referência de Assistência Social (Casa da Família)

GPS Publicidade

Giosvaldo Porto Silva (Proprietário)

IBGE

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

SEI

Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais

UNEB

Universidade do Estado da Bahia

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SUMÁRIO

1.INTRODUÇÃO........................................................................................................12

1.1.Tecendo as minhas lembranças: um encontro com a memória de velhos....12

1.2. Entrelaçando nós: História e Memória de Velhos.........................................17

2. A COSTURA: PONTO A PONTO..........................................................................22

2.1. A pesquisa....................................................................................................22

2.1.1.Os instrumentos......................................................................................23

2.2. As Fontes......................................................................................................29

2.2.1.Fontes orais ( e a biografia dos entrevistados)......................................29

2.2.2. Caracterização dos Depoentes.............................................................30

2.2.3. Fontes escritas......................................................................................35

2.3.Local da pesquisa: O Município de Senhor do Bonfim.................................38

2.3.1. A localização do município....................................................................38

2.3.2. O Asilo: O Lar dos Idosos Fabiano de Cristo.........................................39

3. CAPITULO I - A Família ......................................................................................42

3.1. Lembranças da Família................................................................................42

3.2. Os Pais.........................................................................................................43

3.3. Os Irmãos ...................................................................................................46

4. CAPITULO II - A Infância......................................................................................50

4.1. Lembranças da Infância...............................................................................50

4.2. A casa, o quintal, e os outros espaços revisitados.......................................51

4.3. As Brincadeiras............................................................................................53

4.4. Os Amigos....................................................................................................54

5. CAPITULO III- A Escola.......................................................................................56

5.1. Lembranças da Escola.................................................................................56

5.2. Os Professores.............................................................................................57

5.3. As Atividades de Ensino...............................................................................57

5.4. Os Castigos..................................................................................................58

5.5. Festas...........................................................................................................59

6. ARREMATE.......................................................................................................... .60

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................63

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FONTES ELETRÔNICAS..........................................................................................65

FONTES ORAIS........................................................................................................66

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1. INTRODUÇÃO

1.1. Tecendo as minhas lembranças: Um encontro com a memória

de velhos

Quando criança, no período de alfabetização, eu fui considerada, na então

Escola Nuclear Belarmino Pinto, em Itiúba, Bahia, uma menina inteligente, porém

muito inquieta, hiperativa, diriam hoje. É que D. Amélia, minha mãe, já havia me

alfabetizado em casa mesmo, usando uma cartilha antiga, um quadrado recortado

de papel de pão perfurado no meio, lápis, papel e as coisas do meu mundo, do meu

mundo de criança, a casa, o quintal, as pessoas, enfim... Por causa disso,

geralmente, concluía as atividades antes dos meus colegas. O problema é que,

respondendo as lições antes da turma, era inevitável que começasse a conversar, a

querer sair da carteira, da sala. Assim, acabava por atrapalhar o andamento da aula.

Contudo, a minha professora, D. Mariazinha Freitas, que costumava levar

para a sala de aula novelos e agulhas de tricô, percebera os meus olhares

cobiçosos e, em consenso com a minha mãe, resolveu, no intervalo das lições, me

ensinar a tecer. Os meus primeiros sapatinhos foram encomendados por minha avó

paterna. Ela havia me presenteado com um novelo vermelho belíssimo. Ainda

recordo do cheiro, da textura daquela lã. Fora mainha quem comprara as agulhas.

Não lembro se, por um tempo, fiquei mais quietinha. Mas que aprendi a tecer, ah

isso eu aprendi direitinho.

Por sua vez, com o meu pai, Seu Raimundo, cordelista, poeta, contador de

histórias, aprendi a ouvir. Os causos, as histórias populares da tradição oral, os

recitais de cordel da coleção do meu avô, com as cantigas e cantorias, onde seres,

personagens humanos e/ou não humanos, existiam. Misturadamente, por vezes, ou,

em outras ocasiões separadamente. Não dava pra saber o que era e o que não era

real, mas tudo era maravilhoso nas narrativas do meu pai. Ele ainda as reconta

algumas, para o divertimento da meninada da rua, sempre é convidado para

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participar de eventos nas escolas e na cidade de modo geral.

Ah... Infância. E, afinal, quem jamais se curou de sua infância? Mas esta é

outra história e talvez seja tecida em outra ocasião... Cabe dizer, agora, que foi ela,

a minha infância, que me trouxera aqui. Sim. Ela me guiara tal qual Teseu fora

guiado pelo novelo de Ariadne para fora de um labirinto. Porém, de modo inverso, eu

fora atraída por um casaco de tricô exposto numa arara, para ser vendido no Brechó

do Lar dos Idosos Fabiano de Cristo, para o labirinto de minhas reminiscências.

Sei que isto não explica a necessidade de voltar àquele casaco... Aquele que

meus olhos, numa mistura de surpresa e encanto, descobriram no Brechó... Mas

reitero que é necessário. Neste momento, basta saber que era lindo, incomum.

Porém, agora, racionalizando, penso que apenas o que resta de pueril em meus

olhos enxergara a beleza e intuíra a pureza do branco, que, pelo tempo, fora

amarelecido.

Entretanto, naquele instante, fui tomada por uma profusão de sentimentos

confusos, para mim desconhecidos, até então... Quem o tecera? Alguém doara?

Quanto custava? Perguntei, quase num tom exaltado. As vendedoras sorriam

benevolentemente... Não. Não sabiam o nome da tecelã ou tecelão e, sim, havia

sido doado e custava R$ 3,00. Achei esquisito e repeti, apenas para mim, franzindo

o cenho de modo cético: “R$3,00.”

Tinha ciência de que era roupa velha, usada por outrem, e que, para muitos,

isso deve, por certo, diminuir o valor das coisas. Eu não tinha tanta certeza.

Meticulosamente, comecei a examinar com os dedos o casaco. Apesar da qualidade

aparente da linha, da trama bem feita, pude detectar um furo na manga, perto do

punho esquerdo... Não pude disfarçar, com meio sorriso, o meu desencanto, até

porque, por experiência, sei que reparar é mais difícil que fazer.

Onde, além da memória, guardara as minhas agulhas? Poderia comprar

agulhas novas, adequadas? A lã também. Eu poderia comprá-la? Quantos anos

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haviam se passado? Duas décadas, talvez... Fiquei perdida num amaranhado de

pensamentos, segurando o casaco por mais um tempo, desolada. Uma das

vendedoras, a fim de me consolar, pontuou reticente: “Talvez D. Ermínia...” Olhou de

soslaio para a outra vendedora, que, num ar de complacência, arrematou: “É... Ela

tem as agulhas. Poderemos falar com ela.”.

Certas palavras e expressões são mágicas, polívocas. Realizam desejos,

abrem portas – “Abracadabra!” “Abre-te Sésamo!” - Inauguram tempos e espaços.

No meu caso, o tempo era de espera. Espera pelo reparo do casaco. Espera pelo

horário de visitas ao Lar dos Idosos Fabiano de Cristo. Quais as palavras que me

deixaram tão esperançosa? “D. Ermínia tem as agulhas”.

Contudo, não à toa, os gregos, em sua Mitologia, colocaram a Esperança

entre os males, reservados à Humanidade, guardados na Caixa de Pandora. Disso

eu não esquecera. Mas a Esperança, ao longo dos tempos, ganhara novos

significados... Restava saber qual deles estava a mim reservado.

E isso não tardou. Voltei à minha casa com a garantia de que reparariam o

casaco. Guardariam-no para mim e eu poderia conhecer não apenas D. Ermínia,

como os outros internos do referido Lar. Quando regressei ao Brechó, descobri que

o casaco havia sido vendido a alguém menos exigente e mais inteligente que eu

havia sido naquele dia - compreendi isto depois - pois quem o comprou, comprou-o

daquele modo, sem reparos. Oh... Esperança! Nesse dia, eu conheci uma das tuas

faces!

Bem... Porém era horário de visitas. Cheguei logo após a hora da refeição

vespertina e fora acolhida tanto pelos internos quanto funcionários/voluntários.

Sobre o Lar, adianto apenas que há espaço para vinte e cinco internos. Havia 20

idosos internados até o início de dezembro de 2008. Conheci a área comum e a ala

feminina. Apesar disto, alguns possuem quartos individuais. A maioria dos idosos, já

que tinha ingerido a refeição, estava dormindo. Eu não quis importuná-los, com

minha presença, naquele dia. Entretanto, conversei com os funcionários e algumas

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das internas. Certamente, em momento oportuno, voltarei a oferecer detalhes do

referido ambiente.

Estive lá outras vezes para visitá-los, ainda em dezembro do referido ano, três

ou quatro vezes... Por que? “Saber, eu não sei, mas desconfio de muita coisa...”,

diria Riobaldo, grande memorialista, personagem do “Grande Sertão: Veredas”, obra

de Guimarães Rosa. Mas e eu? Eu digo o que? Que nos gostamos uns dos outros,

talvez bastasse, mas não é toda a verdade, nem o fato de que a minha

relação/convivência com velhos é literalmente familiar. Já explico, em outros

parágrafos.

Prosseguindo, do lado materno, Morais, tive, durante a infância, a

oportunidade de morar com minha avó Joaninha e com tia Maria, zeladas por minha

mãe. Ambas faleceram quando eu estava na segunda infância. Meu avô um tempo

depois. Com este tive pouco contato direto, por ele ter se divorciado da minha avó

etc... Contudo, ainda hoje, estão presentes nas conversações em família e,

conseqüentemente, no meu imaginário.

Já do lado paterno é um amaranhado só. Muita gente e que vive muito. Difícil

é saber, em Itiúba, minha cidade natal, de quem não se é parente. Digo isto de

modo hiperbólico, é claro. Porém, um dos fatores pelos quais uma das minhas

famílias, Pinto, é reconhecida na cidade é a longevidade. Um exemplo, dentre

outros, a ser mencionado é o do meu avô Pedro Batista Pinto, conhecido como

“Piroca, do Lino”, vaqueiro e trovador, nascido em 1907 e falecido em 2007.

Por ser da família, e atender a outros requisitos como ter alguma experiência

com entrevistas, pois já trabalhava há três como locutora na GPS Publicidade, rádio

a fio, sob a direção do Sr. Giosvaldo Porto Silva, “Doutor”, fui convidada pelo Sr.

Humberto Pinto de Carvalho para participar de um projeto. Este consistia em

registrar oralmente, em fitas K7, com a finalidade de montar um acervo, as

memórias dos moradores mais velhos da cidade ou que tiveram alguma participação

relevante em fatos históricos, de modo geral.

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Em 1998, eu tinha 17 anos e contava com a boa vontade e entusiasmo do

meu pai, que ficou encarregado de me ajudar não apenas nos deslocamentos, já

que iríamos à moradia das pessoas, mas a colher o material de nossa pesquisa. Isto

considerando que ele conhecia e era conhecido de todos os prováveis entrevistados.

Aceitei a proposta imediatamente. Cheguei até a receber carta-roteiro e recursos

materiais encaminhados pelo Sr. Humberto, todavia, não pude realizá-la, por estar

cursando o Estágio Regencial do Curso de Magistério e não contar com

disponibilidade de tempo.

Quando aceitei a proposta tive a ousadia de crer que o contato com agulhas e

lãs pudesse aguçar não apenas meus olhos, meus dedos. Mas isso para todos os

meus sentidos para as delicadezas e também para asperezas de tramas outras,

para o manuseio de instrumentos outros, tendo em vista a complexidade da

narrativa de si e do outro enquanto sujeitos de um contexto social determinado. Ah,

juventude! Se não tive, de Aracne, a ousadia, também não tive a sua miserável sorte

de pobre aranha condenada aos limites à sua teia...

Confesso que, ao passar dos anos, meu desejo de realizar o projeto

desapareceu completamente, assim como outros desejos, mas surgiram outros e

ainda outros se tornaram mais intensos, como o desejo de ler e de escrever, por

exemplo. Mal de Infância? Talvez... Enfim, com justificativas, mas sem

ressentimento, devolvi o material que havia recebido ao remetente e comuniquei-lhe

que não mais realizaria a atividade.

Examinando cuidadosamente a minha tecitura, percebo que os furos e tons

amarelecidos fazem parte da história das nossas vidas. A maioria dos idosos

daquela lista já está morta. Meu querido avô, inclusive. Só agora percebo o que me

recusei a fazer... Adoraria ter em minhas mãos aquele casaco esburacado no punho

esquerdo e amarelecido pelo tempo, mas já não há casaco algum.

Se hoje escrevo, é porque reconheço que o entusiasmo pelo qual fui tomada

no Lar dos Idosos Fabiano de Cristo, ao conversar com aqueles velhos, é um

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sentimento que transpassa e vai além de sapatinhos e blusas de tricô que aprendera

a fazer quando era uma menina, uma menina tecelã.

É o mesmo entusiasmo que sentia ao ouvir as cantigas, os “causos”, as

histórias contadas por painho. Essas histórias que, misteriosamente, ainda ressoam

em minha mente, o que, de alguma forma, creio eu, vem preparando os meus

ouvidos para a diversidade de notas e intervalos que compõem a partitura das

vivências humanas...

Sei que a minha pena, por muitas vezes, seguirá vieses e improvisos,

obviamente, não lineares nem, ao menos, harmoniosos porque minha escritura sou

eu e também outros, sendo, num só instante, memória, presente e projeto. E, por

fim, que a escritura de minhas lembranças seja o primeiro acorde na tessitura da

memória dos já mencionados velhos.

Objetivamos, neste trabalho, colher e analisar memória de velhos, dito

especificamente, suas lembranças acerca da família, infância e escola. E

acreditamos em sua relevância, especialmente por dois aspectos. Pretende dar voz

a sujeitos silenciados historicamente, para que possam “descrever a si próprios”,

“inventar as narrativas que os definem como sujeitos da história” (COSTA, 2001,

p.50) e esperamos, ainda, que os resultados possam inspirar e, até mesmo,

subsidiar discussões em torno da referida temática.

1.2. Entrelaçando nós: história e memória de velhos

Tem sido árdua a tarefa no sentido de buscar uma definição da história

enquanto ciência. Le Goff (2003), em seu ensaio, se debruça sobre uma série de

definições e questionamentos do fazer do historiador que refletem os estágios

experienciados na construção dessa disciplina histórica, desde a Antiguidade aos

dias atuais. De acordo com o mencionado autor, etimologicamente:

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A palavra 'história' (em todas as línguas românicas e em inglês) vem do grego antigo historie, em dialeto jônico [Keuck, 1934]. Esta forma deriva da raiz indo-européia wid-, weid 'ver'. Daí o sânscrito vettas 'testemunha' e o grego histor 'testemunha' no sentido de 'aquele que vê'. Esta concepção da visão como fonte essencial de conhecimento leva-nos à idéia que histor 'aquele que vê' é também aquele que sabe; historein em grego antigo é 'procurar saber', 'informar-se'. Historie significa pois "procurar". É este o sentido da palavra em Heródoto, no início das suas Histórias, que são "investigações", "procuras" [cf. Benveniste, 1969, t. II, pp. 173-74; Hartog, 1980]. Ver, logo saber, é um primeiro problema. (LE GOFF, 2003, pg. 17)

Observamos que, nas línguas românicas e em algumas outras, a palavra

“história” apresenta dois, senão três, conceitos distintos. Na primeira, no intuito para

se constituir em ciência, a ciência histórica, tradicionalmente associada a Heródoto,

está à procura das ações realizadas pelos seres humanos. Na segunda, o objeto de

procura é o que os seres humanos realizaram, requerendo uma série de

acontecimentos, a narração desses acontecimentos. Ainda pode apresentar um

terceiro sentido, o da narração, que pode ser verdadeira ou falsa, puramente

imaginária (fábula) ou baseada na “realidade histórica”. Como num jogo de

espelhos, ao longo dos tempos, equívocos quanto à designação e uso do termo têm

sido mantidos. (LE GOFF, 2003).

Seguindo o viés cronológico, pontuamos que, no século XVIII, com o advento

do pensamento iluminista, emergiu uma concepção da história que supervaloriza a

racionalidade, propagando a crença, a partir da idéia de progresso, numa ciência

capaz de conduzir a verdades objetivas e absolutas. A Ciência foi estabelecida como

única forma de conhecimento. A memória, sendo constituída a partir da

subjetividade, sob essa perspectiva não mais é uma fonte confiável para a produção

do conhecimento científico. De posse desse estatuto, a história deixa de considerá-

la, a memória, fonte segura de conhecimento (FREITAS; BRAGA, 2006).

Em contrapartida, durante o século XIX, emergiram, prolificamente, inúmeras

definições de história derivadas de embates epistemológicos, teóricos e

metodológicos, travados por estudiosos, na tentativa de abarcar ou delimitar o objeto

dos Ciência, disciplina e afazeres do historiador. Este século é decisivo porque, além

de atualizar o método crítico dos documentos que interessam ao historiador, pelo

ensino e pelas publicações, difunde esse método, e divulga os seus resultados

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unindo história e erudição. Em resumo, para este período, “a obra do historiador é

uma forma de atividade simultaneamente poética, científica e filosófica” (LE GOFF,

2003, p. 37).

Pontuamos que, em decorrência de inúmeros fatores, a crença em um

progresso contínuo, linear, irrevogável, ainda na metade do século XX, mostrou-se

insustentável. Com a inauguração de um novo conceito de temporalidade, proposto

pelos Annales, apresentando olhares mais críticos sobre a história, a percepção de

que no universal também reside fragmentário, o tempo histórico encontra, com mais

refinamento, o tempo da memória. Possibilita, assim, uma transversalidade,

amparada em conceitos oriundos de outras ciências sociais como a Antropologia e a

Filosofia. Acrescente-se a isso as experiências individuais e coletivas que

contribuíram para a incorporação da noção de tempo múltiplo, vivido, relacional,

desse modo, a abertura para a contextualização, problematização de conceitos mais

amplos como mudanças culturais, transformações sociais, e indicaram ser o

factualismo insuficiente para a compreensão dos fenômenos históricos. ( LE GOFF,

2003).

Considerando que a História é ancorada na construção de referências de

grupos sociais diversos a respeito do passado e presente, respaldados nas tradições

e atados às mudanças culturais, não se pode pretender estabelecer os fatos como

efetivamente ocorreram. Isto tendo em vista que coexistem várias leituras possíveis

sobre o uso da memória para a interpretação histórica. Alertamos que, nas Ciências

Humanas, a memória não pode ser tida como um processo de caráter acessório,

parcial e limitado de lembrar fatos passados. Ao mesmo tempo em que a História

convive com uma insuficiente discussão historiográfica, notamos uma crescente

revalorização da memória tanto no âmbito individual quanto na esfera coletiva. E sua

relação com a história tem suscitado calorosas discussões teóricas por a memória

estar, de certo modo, imbricada nos objetivos e fundamentos do ofício do historiador.

(FREITAS; BRAGA, 2006).

A partir das contribuições oferecidas pela Ciência Histórica, ao longo do

tempo, foi possível, através de uma leitura racional da própria História, constatar-se

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a dinamicidade das estruturas por ela estudadas e a observância quanto à

rigorosidade metodológica na apreensão do objeto. Entretanto, o seu decurso gera

certa desconfiança quanto à adoção de um modelo de historicidade que se pretenda

universal e que ainda atente para as idiossincrasias e diversidades de

representações produzidas pelas Sociedades. (FREITAS; BRAGA, 2006).

Como resultado das transformações historiográficas, a Memória tem sido

entendida como um elo, uma ponte interrelacional com a História. Este intercâmbio

propicia, em contrapartida, a instrumentalização do discurso historiográfico, tornado

menos mecanicista, priorizando a subjetividade, emergindo o narrativo, o humano.

Em tempo, alertamos que, embora o estudo da memória possa ser abarcado

por uma diversidade de ciências como a Psicofisiologia, a Neurofisiologia, a Biologia,

a Psiquiatria etc.., “por sua propriedade de guardar informações”, nos remete,

“especialmente, às funções psíquicas, com as quais podemos atualizar impressões

ou informações passadas ou como representamos como passado”. (LE GOFF,

2003, p. 423) Neste trabalho, ocupamo-nos da memória tal qual ela aparece nas

Ciências Sociais / Humanas, de modo transdisciplinar, abordando tanto seus

aspectos individuais quanto coletivos. Dito isto, gostaríamos de tecer algumas

considerações sobre a velhice, tendo em vista que nosso trabalho versa a respeito

da memória de velhos.

O envelhecimento da população tem se tornado um fenômeno que afeta

países de todo o mundo indiscriminadamente. O aumento da expectativa e do tempo

de vida da população tem inspirado discussões acerca desse processo e suas

implicações. Isto atentando para questões relativas á qualidade de vida e com a

própria compreensão dos idosos sobre esse fenômeno.

Entendemos que o envelhecimento é um processo que, no plano individual,

implica múltiplas trajetórias de vida e, no plano coletivo, se constrói sob diferentes

influências de ordem sociocultural, tais como: acesso a oportunidades educacionais,

adoção de cuidados em saúde, e realização de ações que acompanham o curso da

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vida e se estendem às fases tardias da vida, como a velhice. (SIQUEIRA;

BOTELHO; COELHO, 2002).

Embora se constitua numa das maiores conquistas do século, chamamos

atenção para a falta de estrutura e política pública adequadas para lidar com as

mudanças decorrentes de tal crescimento demográfico, especialmente no âmbito do

trabalho, para a independência e autonomia funcional, saúde, urbanismo etc.., que

privilegiem o idoso. Além disto, lembramos que, freqüentemente, o processo de

envelhecimento tem sido simplificado, entendido a partir de representações e

estereótipos negativos, exclusivamente relacionado com as perdas e a inutilidade.

Em contrapartida, têm sido feitos estudos mostrando as experiências de

envelhecimento bem sucedido, onde grupos de convivência de idosos, clubes da

terceira idade dentre outros, possibilitam, coletivamente, a reconstrução das

representações do envelhecimento e da velhice. (VELOZ; NASCIMENTO-

SCHULZE; CAMARGO, 1999).

Por reconhecemos que a velhice contempla uma pluralidade de experiências

individuais e coletivas, admitimos a dificuldade de encerrá-la, simplesmente, num

conceito ou noção. O que fica para nós é a possibilidade de confrontar diferentes

experiências de envelhecimento, no intuito de determinar razões de suas diferenças

e similitudes.

Da experiência dos velhos emerge a essência de nossa Cultura. Eles, por

serem, em certa medida, guardiões do passado, representam o elo entre esse e o

presente. Pelo estudo da lembrança de idosos, nos é dada a possibilidade de

conhecer fatos ocorridos, bem como costumes, enfim, uma pluralidade de quadros

sociais e culturais determinados. “A memória dos velhos desdobra e alarga de tal

maneira os horizontes da cultura que faz crescer junto com ela o pesquisador e a

sociedade em que se insere” (BOSI, 2003, p.199)

Page 23: Monografia Cristiane Pedagogia 2010

23

2. A COSTURA: PONTO A PONTO.

2.1. A pesquisa

Optamos, neste trabalho, por estudar memória de velhos, definidos como

homens e mulheres com idade a partir de 60 anos, moradores do Lar dos Idosos

Fabiano de Cristo, em Senhor do Bonfim, no intuito de colhermos lembranças a

cerca de suas vivências. Aportamo-nos na História Oral por considerá-la apropriada

ao nosso objetivo, não só durante a colheita dos depoimentos, como também pela

possibilidade de estabelecer laços e de exercitar a escuta sensível das narrativas do

outro e, neste caso específico, um outro em idade avançada, longe do burburinho do

cotidiano. Nesta visão, ele vive numa espécie de exílio brando, onde vive tratado

com simplicidade e zelo, mas afastado de suas origens e do convívio familiar, num

momento da vida em que as incertezas e os medos, o que o torna mais carente

afetivamente. A História Oral:

Recupera aspectos individuais de cada sujeito, mas ao mesmo tempo ativa uma memória coletiva, pois, à medida que cada indivíduo conta a sua história, esta se mostra envolta em um contexto sócio-histórico que deve ser considerado. Portanto, apesar de a escolha do método se justificar pelo enfoque no sujeito, a análise dos relatos leva em consideração, [...], as questões sociais neles presentes. (OLIVEIRA, 2005, p. 94).

Considerando que a Memória é uma construção não apenas individual, mas

coletiva, neste labirinto que é a produção de saberes e conhecimentos, escolhemos,

através da História Oral, seguir os fios rememorativos oferecidos por nossos idosos,

em suas lembranças de família, de infância e escola.

E ainda acrescentamos que, de acordo com Thompson (1992), as pessoas

idosas podem ser especialmente beneficiadas com a História Oral, porque elas

freqüentemente são indivíduos “ignorados e fragilizados economicamente [e através

da história oral], podem adquirir dignidades e sentido de finalidade ao rememorarem

Page 24: Monografia Cristiane Pedagogia 2010

24

a própria vida e fornecerem informações valiosas a uma geração mais jovem” (p.

33).

2.1.1. Os instrumentos:

A entrevista:

Elegemos a entrevista como o instrumento precípuo da nossa pesquisa. Para

Thompson:

“o uso da voz humana, viva, pessoal, peculiar faz o passado surgir no presente de maneira extraordinariamente imediata. As palavras podem ser emitidas de maneira idiossincrática, mas por isso mesmo, são mais expressivas. Elas insuflam vida na história”. (THOMPSON, 1992, p.41)”.

Alberti (2008, p.101) descreve uma entrevista como, primeiramente, “uma

relação entre pessoas diferentes, com experiências diferentes e opiniões também

diferentes, que têm em comum o interesse por determinado tema, por determinados

acontecimentos e conjunturas do passado”. Começa no planejamento, passando

pela escolha dos depoentes e confecção do roteiro de questões propriamente dito.

Para tanto, é imprescindível que o pesquisador / entrevistador tenha o entendimento

de que “as pessoas são diferentes, cada uma tem suas próprias maneiras de ser e

de pensar e, diante de um gravador, podem ter as mais diversas reações”

(SANTOS; ARAÚJO, 2007, p. 197).

A carta cessão

Documento indispensável para garantir a legalidade do uso da entrevista, a

carta de cessão deve dispor tanto da gravação quanto do texto final, devendo

explicitar as possibilidades e limites para o eventual uso posterior do material

produzido. O controle e o uso (do todo ou parte do material) devem ser vinculados à

instituição que tem a guarda das gravações. (MEIHY; HOLANDA, 2007).

Page 25: Monografia Cristiane Pedagogia 2010

25

Conseguimos as assinaturas dos depoentes, escreveram com certa

dificuldade motora, mas de modo legível. Infelizmente não obtivemos as assinaturas

das duas depoentes. Uma esboçou o próprio nome, porém de maneira ilegível

porque segundo a mesma “ficou nervosa”. Tentou-se tranqüilizá-la, imprimindo mais

cópias e dizendo que poderia tentar o quanto quisesse, contudo depois de algumas

tentativas, ela perguntou: “Posso colocar o dedo? [...] É por causa das vistas”,

justificando a sua dificuldade em enxergar mal. Assentimos. Já a outra relatou que

freqüentou a escola, contudo não quis tentar assinar, disse: “não lembro mais de

nada, tem muito tempo”. Para resolver o impasse, usamos almofadas para carimbos

para colher as impressões digitais. Como testemunhas assinaram o Senhor João

Fernandes, presidente do Centro Espírita e Dona Nivanilda Dias da Silva,

funcionária do Lar. Ainda nessa fase fora necessário recorrer à Ata de Admissão à

procura da data exata da entrada dos depoentes no Lar, bem como de números de

RG ou CPF, para preencher os dados exigidos da carta de cessão.

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26

CESSÃO DE DIREITOS SOBRE DEPOIMENTO ORAL PARA A UNEB/CAMPUS

VII-SENHOR DO BONFIM

1.Pelo presente documento,.................................................................................... brasileiro (a)............................... (estado civil),............................................., (profissão), carteira de identidade nº............................................., emitida por...................................., CPF nº. ................................................, residente e domiciliado (a) em .................................................................................................... ............................................................................................................................. ..... cede e transfere neste ato, gratuitamente, em caráter universal e definitivo à UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA (UNEB) a totalidade dos seus direitos patrimoniais de autor sobre o depoimento oral prestado no dia........................, perante a pesquisadora ........................................................................................... 2. Na forma preconizada pela legislação nacional e pelas convenções internacionais de que o Brasil é signatário, o DEPOENTE, proprietário originário do depoimento de que trata este termo, terá, indefinidamente, o direito ao exercício pleno dos seus direitos morais sobre o referido depoimento, de sorte que sempre terá seu nome citado por ocasião de qualquer utilização. 3. Fica, pois, a UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA (UNEB) plenamente autorizada a utilizar o referido depoimento, no tido ou em parte, editado ou integral, inclusive cedendo seus direitos a terceiros, Brasil e/ou no exterior. Sendo esta forma legitima e eficaz que representa legalmente os nossos interesses, assinam o presente documento em 02 (duas) vias de igual teor e para um só efeito. .................................................................................... Assinatura legível do cedente TESTEMUNHAS: ____________________________ _____________________________ Nome legível Nome legível

CPF: CPF:

Page 27: Monografia Cristiane Pedagogia 2010

27

Após o recolhimento das assinaturas ou equivalente dos depoentes e

testemunhas, mediante carta cessão, conforme exposto nos parágrafos anteriores.

Fizemos uso de roteiros para as entrevistas, que foram organizados em um guia

contendo dois blocos.

O guia das entrevistas

BLOCO I – IDENTIFICAÇÃO DA FONTE:

No primeiro bloco foi utilizada uma ficha de identificação dos depoentes. Esta

etapa das entrevistas ocorreu sem transtorno significativo. Marcou-se com

antecedência a visita e, com a ajuda dos depoentes, recolheram-se dados para a

elaboração do quadro de identificação, necessários à caracterização dos mesmos.

Na oportunidade, fotografamo-los, mediante consentimento. Durante a

sessão, demonstraram desenvoltura e contentamento ao posarem e ao se

reconhecerem nas imagens da câmera digital. Ainda neste momento, aproveitamos

para testar, com os depoentes, pela primeira vez, o gravador e o microfone.

Surpreendentemente, foi um instante de descontração, em que acharam

interessantíssimo ouvir a própria voz, esboçando sorrisos e expressões de

admiração.

Optamos por um gravador de voz digital de memória flash, display LCD,

marca Nakashi, modelo PDR3-489, com peso 36 gramas e tamanho 105 x 30 x

19,5mm, que funciona com duas pilhas palito AAA, grava até 8:00h de conversação,

além de vir com microfone do tipo lapela e fones de ouvido o que tornou menos

complexa a posterior transcrição.

Page 28: Monografia Cristiane Pedagogia 2010

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ROTEIRO DE ENTREVISTA

Por ...........................................................................

Assunto: ................................................................................................................................ ........

1° BLOCO: Identificação dos entrevistados

Data:............................... horário do início:........................................................ Local:....................................................................................................................... ...... Nome:............................................................................................................................. Etnia:....................................................................................................................... ....... Idade:...................anos / data de nascimento:.......................................................... Posição no grupo familiar:.................................................................................. ............ Filiação:...................................................................................... ................................... Local de nascimento:.................................................................................................... Estado Civil: ................................................................................................................. N° de filhos:..............................(feminino) .............. (masculino)................................. Religião:........................................................................................ ................................ Escolaridade:.......................................................................

Page 29: Monografia Cristiane Pedagogia 2010

29

BLOCO II – AS QUESTÕES DO CORPO DA INVESTIGAÇÃO:

O segundo bloco de entrevistas foi agendado observando-se a escolha dos

administradores do Lar. Foi realizado no turno vespertino, atentando para o conforto

dos depoentes, já que no período matutino é feita a higienização do local além de

serem desenvolvidas outras atividades como higiene pessoal dos pacientes,

refeições e medicação. Chegamos após o almoço e, mais uma vez, testamos o

material técnico com cada um deles antes da colheita dos depoimentos.

O roteiro foi assim composto:

BLOCO II – As memórias

1. A FAMILIA

Fale sobre os seus pais. E os seus irmãos?

Como era o convívio com sua família?

2. A INFÂNCIA

O senhor (a) lembra como era a sua casa? E o quintal?

O senhor (a) lembra como era a sua rua?

Fale sobre os seus amigos.

Como eram que as crianças brincavam, e quais as brincadeiras?

3. A ESCOLA

Fale sobre os seus colegas.

Como eram os seus professores?

Onde se localizava a sua escola?

Quais eram as atividades de ensino?

Como eram as brincadeiras na escola?

Como eram as festas da escola e os castigos?

Page 30: Monografia Cristiane Pedagogia 2010

30

2. 2. As Fontes

2.2.1. Fontes orais:

De acordo com Benjamim (1994), sempre houve dois tipos de narrador. Um é

o que vem de fora e narra suas viagens. Outro é o que ficou e conhece sua terra,

seus conterrâneos cujo passado o habita. Suas experiências geram conhecimento

do qual tira o conselho. A arte da narração não está confinada nos livros, tendo veio

épico oral. O narrador tira o que narra da sua experiência, transformando em

experiência aos que o escutam. O, conhecendo seu ofício, tem como dom o

conselho, abarcando uma vida inteira. Há algo de sagrado na atmosfera que envolve

o narrador. Da experiência advém o dom da narrativa. Do sofrimento retira sempre

uma lição. A sua dignidade está em contá-la, sem temor, até o fim.

Como forma artesanal de comunicação, a narração objetiva transmitir o

acontecido em sua essência, tecendo, alcança o objeto e lhe confere uma nova

forma, uma boa forma. Contando a circunstância em que foi testemunha do

acontecido, começa a sua narrativa. Cada história contada está inscrita na sua

própria história. “O narrador é o homem que pode deixar a luz tênue de sua narração

consumir completamente a mecha de sua vida [...] O narrador é a figura na qual o

justo se encontra consigo mesmo” (Benjamim, 1994, p. 221).

Considerando que depoentes são narradores, não nos preocupamos

especialmente com amostragem, já que partimos de pressupostos qualitativos para

a escolha desses. Fomos guiados pelos objetivos da nossa pesquisa, tendo em vista

que o nosso trabalho consiste no estudo da memória de velhos, elegemos a velhice

como condição, pois acreditamos que o dom da narrativa surge das dores, das

vivências e do resultado extraído delas. Ancorados nesse recorte, elencamos dois

homens e duas mulheres, pertencentes à faixa etária igual ou superior a 60 anos,

critério cronológico estabelecido no Estatuto do Idoso1. Isto por entendermos que

1 Lei Federal nº. 8.42/94; 10.741/2003 (Estatuto do Idoso).

Page 31: Monografia Cristiane Pedagogia 2010

31

experiências diversificadas quanto ao gênero ampliariam e enriqueceriam o nosso

trabalho. Consideramos aspectos como as condições físicas e psicológicas dos

atores e ainda a disponibilidade real para participação nas entrevistas.

2.2.2.Caracterização dos Depoentes:

Fig 01: Senhor João Xavier Dias (1928): Foto de caracterização do depoente;

João Xavier Dias:

Brasileiro, filho de Anna Xavier Dias e Baldoíno Dias, natural de Pirajuí, São

Paulo, nasceu no dia 15 de outubro, tem 81 anos. Caçula de cinco filhos, dois

Disponível em: http://www.amperj.org.br/store/legislacao/codigos/idoso_L10741.pdf.

Page 32: Monografia Cristiane Pedagogia 2010

32

irmãos e duas irmãs. Aos seis meses, devido à morte do pai, a família voltou para a

Bahia, onde estudou até o terceiro ano primário. Afirma que, quando jovem,

trabalhou como balconista de farmácia, no Rio de Janeiro, como operário em uma

fábrica nitro-química, em São Miguel Paulista, e que, de volta à Bahia, “tomou conta

de quartos” na Caraíba Metais, em Jaguarari. É solteiro, não tem filhos, é católico,

aposentado, foi trazido ao Lar por um amigo no dia 21 de janeiro de 2008.

Fig. 02: Raul Gomes (1932): Foto de caracterização do depoente;

Raul Gomes:

Brasileiro, nascido em 18 de abril, em São Luiz do Quitunde, Alagoas, criado

em Maceió, capital do Estado, tem 77 anos. Caçula, num total de cinco, duas irmãs e

dois irmãos, filho de José Melquides Gomes e Augusta Cula, estudou até a quinta

Page 33: Monografia Cristiane Pedagogia 2010

33

série ginasial. Tem formação católica. Como profissão afirma ter sido sempre

viajante, representante de fábricas de doces, sem vínculo empregatício formal. É

aposentado. É solteiro, contudo afirma que tem duas filhas residentes em Juazeiro,

mas não mantêm contato. Ainda segundo o seu depoimento, elas não sabem onde

ele está. É morador do Lar desde 01 de junho de 2006.

Fig. 03: Edvalda Maria de Jesus (1936): Foto de identificação da depoente;

Edvalda Maria de Jesus:

Brasileira, natural de Saúde, Bahia, nascida em 10 de setembro, filha mais

velha de Adelina Josefa Maria de Jesus e de José Lopes da Silva, irmã de Joaquim,

Adolfo, Nilton, Euclides e Laura, tem 73 anos. Lavradora, não alfabetizada, é

católica, foi “casada no padre”. É viúva, pensionista, afirma ter tido nove filhos. Cinco

Page 34: Monografia Cristiane Pedagogia 2010

34

deles faleceram, já os outros vivem em São Paulo, Gildásio, Everaldo, Maria de

Lourdes, em Brasília, e Manoel que mora na Água Branca. Chegou ao Lar trazida

por um sobrinho, no dia 12 de abril de 2008.

Fig 04: Joselita Roque da Silva (1932): Foto de identificação da depoente;

Joselita Roque da Silva:

Filha de Tertuliano Luiz da Silva e Bárbara Francisca Dias, nasceu no dia 03

de julho de 1932, em Canavieiras, Município de Campo Formoso. Irmã mais velha

de dois irmãos, tem 77 anos. Estudou até a terceira série do primário. Viúva, era

doméstica, teve apenas um filho “de criação” que atualmente reside em Juazeiro, e

vem visitá-la “de vez em quando”. É aposentada. Foi trazida ao Lar por uma

Page 35: Monografia Cristiane Pedagogia 2010

35

sobrinha que também é sua afilhada, com quem morava numa casa junto com um

dos irmãos, também já idoso, em Senhor do Bonfim.

A coleta de depoimentos:

“A fim de produzir melhores condições para as entrevistas, o local escolhido é

fundamental. Deve-se, sempre que possível, deixar o colaborador decidir sobre onde

gostaria de gravar a entrevista.” (MEIHY; HOLANDA 2007). Seguimos

rigorosamente a esta orientação.

O primeiro a ser entrevistado foi Sr. João Dias, que escolheu o próprio quarto,

embora o quarto fosse coletivo. Os outros internos, pensamos, não causariam

problemas, e não causaram. Contudo, por uns instantes é possível ouvir a voz de

uma das enfermeiras falando com os pacientas a fim de dar-lhes a medicação e isto

provocou desconcentração na entrevista, mas apenas momentânea. O quarto era

arejado e o Sr. João conversou com desenvoltura e, apesar de dizer que não se

lembrava nada da infância, ofereceu testemunhos valiosos. Os três seguintes a

serem entrevistados foram Sr. Raul, D. Edvalda e D. Joselita, respectivamente, o

local escolhido foi a sala da diretoria. Nestes casos, alguns problemas surgiram,

como ser a sala quente, escura, apertada. Arranjou-se um jeito de acomodá-los

confortavelmente, mas não ligamos o ventilador para que não interferisse na

captação do áudio. Para a entrevista, fizemos uso de banquinhos, postando-se

abaixo do plano dos entrevistados. Resolveu-se parar de fazer anotações e passar a

apenas concentrar nos depoentes. A porta, que estava entreaberta, se abriu ainda

mais e, nas gravações é possível ouvir além de ruído dos internos conversando, boa

parte de uma novela televisiva. Gostaria de ressaltar que os transtornos

mencionados não provocaram problemas que conduzissem a erros perceptíveis,

fora o incômodo na condução das entrevistas.

Com os depoimentos colhidos, passou-se à transcrição. Inicialmente,

transferiram-se os dados para o computador, que também foram gravados em mídia.

Para a audição, usamos o programa Windows Média Player e fizemos parte da

Page 36: Monografia Cristiane Pedagogia 2010

36

digitação diretamente, contudo, devido à dificuldade de entendimento de algumas

frases e ou palavras tornou-se necessário uso de fones, sendo realizada,

primeiramente, transcrição a mão para posterior digitação do material. Foi

necessária conferência repetida para garantir a fidelidade do transcrito, bem como a

sinalização dos gestos e expressões capturados durante as entrevistas.

A transcrição é o processo em que se assegura a formatação do corpo

documental a ser trabalhado pelo pesquisador. Em tempo, embora reconheçamos a

necessidade da transcrição literal, chamamos a atenção para o fato de que trata de

uma das etapas na feitura do texto final. Pela textualização a narrativa é valorizada

“enquanto um elemento comunicativo prenhe de sugestões” (MEIHY, 1991:30-1

apud MEIHY; HOLANDA, 2007, p160).

2.2.3 Fontes escritas:

As fontes escritas foram imprescindíveis na tecitura do nosso trabalho. Além

de livros, valemo-nos de artigos e outras fontes documentais como, por exemplo,

Leis que versam sobre idosos e ainda o Estatuto do Centro e do Lar dos Idosos

Fabiano de Cristo. Dentre as fontes referenciais utilizadas destacamos:

Ariès (1981) - Em sua obra apresenta duas teses, na primeira delas esboça

uma interpretação das sociedades tradicionais e na segunda aponta o novo lugar

assumido pela criança e a família em nossas sociedades industriais. Onde pudemos

acompanhar o surgimento e mudanças nas configurações do que passamos a

chamar de “idades da vida”. As idades da vida não correspondiam apenas a etapas

biológicas, mas a funções sociais o que lhe garante historicamente um caráter

notadamente sociocultural. Indispensável para a ampliação do nosso entendimento

quanto ao surgimento do que denomina sentimento de família e de infância.

Alberti (2005) - O Manual de história oral foi constituído a partir das

experiências do programa de História Oral do CPDOC e como todo manual,

estabelece um universo de procedimentos possíveis e serve de modelo para

Page 37: Monografia Cristiane Pedagogia 2010

37

aplicações práticas. Pelo seu valor instrumental foi referência e guia de constante de

orientação tanto nas etapas de elaboração do nosso projeto quanto nas análises do

nosso trabalho, por trazer a História Oral como uma atividade interdisciplinar, na

qual são imprescindíveis o rigor da pesquisa científica e a sensibilidade no processo

de indagar, questionar, reconstituir a dimensão e a consistência do que nos fora, de

modo cúmplice, revelado.

Benjamin (1994) – Vale esta obra especialmente pelo que tange á

caracterização do narrador e esclarecimentos quanto à natureza da narração ou arte

de narrar, como algo que brota das experiências e gera conselho, sabedoria.

Bosi (1994). - Obra, sobretudo, poética, sem deixar de contemplar o teórico, o

social e o político na colheita e análise das memórias dos velhos. Teve em

moradores da Cidade de São Paulo os objetos de seu trabalho, confeccionado com

sensibilidade e cientificidade. Foi, ao mesmo tempo, inspiração e ferramenta para o

desenvolvimento de nossas atividades.

Halbwachs (2006). – Servimo-nos de seus estudos sobre a Memória.

Especialmente porque considera memória não apenas como evocação de individual,

mas como reconstrução coletiva. Também, neste trabalho distingue Memória

histórica de Memória coletiva. Seguindo as direções apontadas pela consciência

coletiva e individual, discorre sobre o desenvolvimento de diversas formas de

Memória, que adquirem formas diferentes conforme os objetos que elas implicam.

Le Goff (1990). - Teve indispensável serventia quando trabalha com conceitos

como História e Memória e suas relações sob uma perspectiva história.

Machado (2007). - Paulo Batista Machado é licenciado em filosofia, história e

teologia. Mestre em educação pela Universidade Federal da Bahia (1990) e Ph. D

em Educação pela Universidade do Quebec em Montreal (1999), concluiu o pós-

doutorado na universidade Federal da Bahia, atualmente é professor titular do

Instituto Superior de Teologia e pastoral de Bonfim e professor titular da

Page 38: Monografia Cristiane Pedagogia 2010

38

Universidade do Estado da Bahia. Publicou diversos artigos em periódicos

especializados e alguns trabalhos em anais de eventos. Possuiu livros publicados

nos domínio da poesia, educação e história. A obra “Notícias e saudades da Villa

Nova da Rainha”, aliás, Senhor do Bonfim, discorre sobre aspectos geográficos,

sociais, políticos, econômicos, demográficos e culturais do referido município, nos

auxiliando especialmente no histórico e caracterização do lócus de pesquisa.

Meihy; Holanda (2007). - Introdução abrangente e exemplificada, a fim de

facilitar o debate sobre como abordar: memória, identidade e comunidade, matérias-

primas da história oral. Temos aqui um roteiro em que a experiência prática se

articula às ponderações teóricas de maneira que uma justifica a outra.

Thompson (1992) - Trata de como fontes orais podem ser coletadas e

utilizadas pelos historiadores. Contudo, também provoca historiadores a se

questionarem sobre o que estão fazendo e por que, considerando que as atividades

por eles exercidas estão inevitavelmente imbricadas num contexto social e que tem

implicações políticas. Daí sua importância teórico-metodológica. A tomada de

consciência da dimensão política do nosso trabalho, sobretudo da adoção de uma

perspectiva crítica, quanto aos limites e possibilidades da História Oral foram

certamente norteadores durante a execução das nossas atividades de pesquisa.

Page 39: Monografia Cristiane Pedagogia 2010

39

2.3. Local da pesquisa: O Município de Senhor do Bonfim

2.3.1. A localização do Município

Mapa 01: Mapa do Território de Identidade 25- Piemonte Norte do Itapicurú, Bahia, 2007. Fonte: http://www.sei.ba.gov.br/site/geoambientais/cartogramas/territorio_identidade/pdf/piemonte_norte_itapicuru.pdf;

Page 40: Monografia Cristiane Pedagogia 2010

40

O Município de Senhor do Bonfim fica situado no Piemonte Norte do Território

do Itapicurú, no Estado da Bahia (mapa 01). Esta micro-região compreende os

Municípios de Senhor do Bonfim, Campo Formoso, Antonio Gonçalves, Pindobaçu,

Jaguarari, Andorinha, Ponto Novo, Filadélfia e Caldeirão Grande, sendo atualmente

classificado como Território de Identidade 25.

O Município de Senhor do Bonfim, referencial desta microrregião, teve origem

no final do século XVIII, relacionando-se os ciclos do ouro e do gado à sua

fundação. Conforme lembra Machado (2007, p.37), “as terras desconhecidas foram

conquistadas, os índios apresados, as pedras e metais precisos procurados...”

Atualmente, o município conta com uma população estimada, conforme

publicação do IBGE2 – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 01/07/09,

em 76.113 habitantes. Dentre estes, 36.510 pessoas são do sexo masculino e

39.603 são do feminino.

2.3.2. O Asilo: O Lar dos Idosos Fabiano de Cristo

Fig. 05: Fachada do Lar dos Idosos Fabiano de Cristo;

2 Estimativas das populações residentes, em 01/07/09, segundo os municípios. Disponível em:

http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/estimativa2009/POP2009_DOU.pdf.Acesso: março de 2010

Page 41: Monografia Cristiane Pedagogia 2010

41

Fundado em 22 de abril de 1973, inicialmente era conhecido como o Lar das

Velhinhas, hoje Lar dos Idosos Fabiano de Cristo. Teve a sua primeira diretoria sob o

comando dos senhores Everaldo Pereira Dantas e Gildásio Sales.

Esta casa de acolhida funciona à Rua João Rodrigues, número 67, no centro

da Cidade de Senhor do Bonfim, num espaço anexo ao Centro Espírita Discípulos

de Jesus, o mais antigo Centro Espírita Kardecista desta municipalidade. A função

desse abrigo é atender a idosos menos favorecidos dos sexos masculino e feminino.

As atividades do Lar dos Idosos Fabiano de Cristo são potencializadas com

recursos financeiros do Centro Espírita Discípulos de Jesus, recebendo donativos da

comunidade em geral e pelo CRAS - Centro de Referência de Assistência Social

(Casa da Família).

Em março de 2009, a referida instituição contava com 11 (onze) funcionários,

desde técnicos em enfermagem até pessoas contratados para serviços gerais, que

são remunerados pelo Centro Espírita Discípulos de Jesus. O Lar tem capacidade

para 25 internos e até a mencionada data contava com 20 moradores, oriundos não

apenas de Senhor do Bonfim, mas de regiões circunvizinhas.

Os Aspectos Legais e Administrativos do Lar dos Velhinhos:

O Lar dos Idosos Fabiano de Cristo é regido por um Regimento Interno,

elaborado em consonância com o art. 6º da Lei Federal nº. 8.42/94 e os Artigos 52 e

53 da Lei Federal nº. 10.741/2003 - Estatuto do Idoso. E também a Lei nº.

9013/2004, de 25 de fevereiro de 2004, que dispõe sobre a política Estadual do

Idoso. É parte integrante de uma das áreas de ação do Departamento de Serviço de

Assistência e Promoção Social do Centro Espírita Discípulos de Jesus, disposto num

Parágrafo Único, Capítulo VI, Art. 39:

Page 42: Monografia Cristiane Pedagogia 2010

42

“Para execução de suas finalidades e alcance de seus objetivos sociais, o

CEDJ poderá criar e gerir departamentos de serviços sociais, educacionais, etc. que

se regularão através de regimento interno devidamente aprovado em ato próprio da

diretoria e posterior comunicação em Assembléia.

I. Tais órgãos, quando criados, serão vinculados á instituição, podendo, a fim

de atender as legislações pertinentes, virem a ser cadastrados nas entidades

governamentais que forem obrigados para o desenvolvimento das atividades a que

se pretendem, como a inscrição no CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica),

CNAS (Conselho Nacional de Assistência Social) etc.;

II. Poderão celebrar convênios, parcerias e outras formas de acordos

específicos com órgão governamentais e não governamentais desde que, tenham

prévios projetos elaborados e aprovados em Diretoria;

II. Uma vez acordados tais compromissos institucionais, o CEDJ obedecerá e

manterá escrituração contábil/financeira específica dentro das normas legais

emanadas, com o objetivo de prestar contas não somente aos órgãos

governamentais fiscalizadores que estiverem obrigados por lei, como também atento

à conduta espírita de transparência e oralidade.

Parágrafo único: em funcionamento desde abril de 1973, O LAR DOS

IDOSOS FABIANO DE CRISTO, é parte integrante de uma das áreas de ação do

Departamento de Serviço de Assistência e Promoção Social, regulado de acordo

com Regimento Interno.”

Page 43: Monografia Cristiane Pedagogia 2010

43

3. CAPÍTULO I - A FAMÍLIA

3.1. Lembranças da Família

Através de estudo iconográfico, Ariès (1981) tece sua tese de que a História

da Família, a partir da segunda metade do Século XI, sofreu uma significativa

alteração. Ilustrando a colocação com imagens colhidas em calendários, afirma que

a partir do período mencionado, as imagens de família deixa de ser a do casal e seu

amor romântico “cortês” ou do casal e da criança prematuramente morta e passa a

associar a sucessão dos meses do ano às idades da vida. Contudo esta não

representada mais em seu aspecto individual, mas sim, familiar.

De acordo com Bosi (1994), o sentimento de pertencimento a um grupo é

mantido pela atmosfera familiar. Já que família se constitui num grupo coeso, por ser

uma espécie de unidade de mediação entre o mundo e a criança. Para Halbwachs

(2006, p. 45), “a família é o grupo do qual a criança participa mais intimamente

nessa época de sua vida e está sempre a sua volta”.

Apesar da fixidez que as relações de parentesco possam impor, em nenhum

outro espaço social nos sentimos tão singulares como dentro do ambiente familiar.

Os depoimentos de alguns dos colaboradores demonstram como esses elementos

tão significativos permeiam as suas lembranças: O Sr. Raul conta que é o filho mais

novo de uma família de quatro irmãos (...) “Ah, sim sou o caçula”(...). D. Joselita

relembra o seu animal de estimação: (...)”Eu tive um cachorro que se chamava

Sultão, que morreu há muito tempo” (...) D. Edvalda revela qualidades e diferenças

entre ela e a irmã: (...) “Mas, eu tinha mais saber que minha irmã legítima, irmã

própria. Porque eu era terrível, não nego, sou positiva” [risos] (...) O Sr. João por sua

vez lembra e conta uma acontecimento curioso sobre o nome de sua mãe: (...)

“Minha mãe chamava-se Anna, de vez em quando assinava só com um “nê".

Quando eu fui tirar a identidade, foi com dois “nês”, né?”(...). Ser o caçula, ter um

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cachorro, “ser terrível”, ser filho de D. Anna, com dos “nês”, confere relevo, um lugar

de destaque, assemelha e difere os indivíduos dentro do seio familiar.

Nossos depoentes têm uma média de idade de 77 anos, nascidos entre 1928

a 1932. Foram criados no interior, exceto o Sr. Raul que embora tenha nascido no

interior alagoano, fora criado em Maceió. Majoritariamente tiveram suas famílias

formadas por vários irmãos, à exceção é D. Joselita, que teve apenas dois irmãos.

Como instituição social, a Família tem passado por inúmeras transformações

ao longo dos tempos. Adotado várias feições. Embora esteja cada vez mais rara a

imagem de família numerosa que além de pais, filhos, netos, avós, tios e tinha os

“agregados”. E seja cada vez é mais comum nos depararmos com famílias formadas

apenas pelo casal ou com um ou dois filhos. É inegável a sua importância como

guardiã e geradora de memórias.

As lembranças do grupo doméstico persistem matizadas em cada um dos seus membros e constituem uma memória ao mesmo tempo uma e diferenciada. Trocando opiniões dialogando sobre tudo, suas lembranças guardam vínculos difíceis de separar. Os vínculos podem persistir mesmo quando se desagregou o núcleo onde sua história teve origem, Esse enraizamento num solo comum transcende o sentimento individual (BOSI, 1994, P. 423)

3.2. Os Pais

Pela vida, levamos conosco a imagem dos nossos pais. Conforme as

condições do momento presente, dos juízos que podemos fazer sobre sua época, a

imagem deles, tal qual num retrato vai sendo avivada, restaurada pela memória.

Pela rememoração, através de fotografias, conversas com conhecidos, amigos que

freqüentava os mesmos ambientes, trabalho, pessoas que vivenciaram as mesmas

histórias, somos capazes de reconstituir suas figuras. Entretanto, se não dispomos

mais disso, fotografias, pessoas que conviveram conosco ou mesmo alguém

disposto a nos ouvir, cada vez mais essa imagem vai amarelecendo, se apagando,

sendo esquecida. (BOSI, 1994; HALBWACHS, 2006).

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Nossos idosos são asilados. Durante a vida foram despojados ou perderam

objetos catalisadores de recordações, como fotografias antigas. A maior parte deles

não tem contato algum com parente ou amigo próximo para que possa rememorar

os “tempos idos” ou simplesmente “papear”. Recebem visitas ocasionais de “amigos

do lar”. A entrevista se configurou um momento para rememorar, evocar, reconstruir

memórias, narrar suas vidas. Começamos pelas lembranças de família...

Nos relatos de lembranças do grupo doméstico de nossos depoentes,

observamos que embora a maioria dos idosos tenha ficado órfã em tenra idade, o

aparecimento da figura paterna surge inicialmente como central na maioria dos

relatos.

O Sr. João perdeu o pai aos seis meses de idade. Então, D. Anna, viúva, mãe

de cinco filhos, um recém nascido, decidiu deixar Pirajuí, cidade cafeeira do interior

do São Paulo e voltar para Jaguarari, Bahia, sua terra natal, onde tinha seus

familiares. Pelo diálogo, trocando informações sobe tudo, cria uma memória una e

diferenciada, que pertence de modo diferente a cada um dos membros da família.

Mas é, antes de tudo, uma construção coletiva. De acordo com Bosi (1994, p.425),

um familiar não mais presente, distante, pode tornar-se especialmente amado,

mitificado, figura a quem a família agarra-se, buscando forças, possibilitando o

estreitamento de seus vínculos, o depoimento do Sr. João ao relembrar de seu pai é

exemplo disso: (...)”Meu pai era bom. Era fazendeiro lá em Pirajuí. Meu pai,

Baldoíno Dias, não cheguei a conhecer, me deixou com seis meses.” (...). Ainda

Bosi (1994) coloca que, “na verdade, nossas primeiras lembranças não são nossas.

Estão ao alcance de nossa mão no relicário transparente da família”.

Em suas rememorações, D. Edvalda faz referência à autoridade paterna.

Comenta como era exercida. Disse que seu pai batia, mas não era muito. Olhares e

gestos de repreensão bastavam para que fosse obedecido. Seu pai se chamava

José Lopes da Silva. Ela não mencionou a data nem as circunstâncias do

falecimento do mesmo. Usou lugares referencias para apoiar suas memórias e nos

contou onde foi sepultado (...)” Sei onde é Papinho, é quando vai para Caldeirão

Grande. Tem um cemitério. Meu pai sepultou lá. E minha mãe levou o defunto por

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aí”. (...) Atestando assim a importância do espaço como marco, ponto-de-apoio de

suas reminiscências, como apontara Halbwachs (2006).

O senhor Raul Gomes também não descreveu o pai fisicamente, mas se

emociona muito ao falar da relação que tinha ele:(...) “meu pai era muito amigo. Me

tratava muito bem” (...). Acrescentou gesticulando que seu pai era um homem muito

educado, experiente e que conversava muito: (...)”Aí, quando chegava em casa,

conversava. Conversava coisas de gente grande [risos]” (...). A figura paterna é aqui

apreendida pelos traços mais etéreos, espirituais, não físicos. Talvez isso aconteça

porque sua presença no lar era menos concreta, quando comparada à da mãe que

estava quase sempre presente.

D. Joselita relatou que foi criada pela mãe, com quem manteve um bom

relacionamento até a morte desta. Ficou órfã de pai aos quatro anos idade e sobre o

mesmo relatou apenas: (...) “Eu lembro que fui lá, assim. Vi ele lá no caixão, mas

não tenho lembrança de nada” (...). Bosi (1994 p. 427) observa que “se nossos

mortos recuam, se a distância se alonga entre nós, a culpa não é do tempo, mas da

dispersão do grupo onde viveram e que sentia necessidade de nomeá-los, de

chamá-los de vez em quando”.

A figura materna também apareceu, nos relatos dos idosos. Caracterizada por

atributos físicos, em contrapartida, prevaleceram atributos morais como comprovam

os seguintes depoimentos: nas palavras de Sr. João: (...)“Minha mãe era boa,

direita”(...). D. Anna Dias Xavier faleceu com 96 anos. Por sua vez, D. Joselita conta

que lembra bem da sua mãe, D. Bárbara Francisca Dias. Esta faleceu depois que

ela já tinha casado, e, a exemplo de Seu João, cuja mãe também era dona de casa

e viúva, ressalta suas características morais ou de personalidade: (...) “Minha mãe

era uma pessoa distinta, paciente, alegre”. (...). Mas suas lembranças também

contemplam outra faceta da mãe. Disse que ela não teve estudo, que arrumava a

casa, colocava as coisas em ordem e ainda complementou: (...) “Eu também

ajudando, ajudava a varrer o terreiro, as coisas" (...).

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Como elemento principal nos relatos do Sr. Raul e D. Edvalda, observamos

que as lembranças estavam mais relacionadas às atividades que suas mães

desempenhavam ou não no lar, na família. D. Augusta Cula, mãe do Sr. Raul, era

dona de casa, contudo, ele afirma que ela não gostava dos afazeres domésticos,

que não os fazia, deixava a cargo de sua irmã: (...) “Minha mãe ficava em casa sem

fazer nada... ela... não gostava disso não, quem fazia era a minha irmã” (...). Em seu

relato podemos identificar vestígios da “educação feminina”, aquela voltada para o

lar. Esta apareceu também nos relatos de D. Joselita sobre sua participação nas

tarefas domésticas, enquanto os meninos, seus irmãos, eram dispensados de

tarefas: (...) “Quando pequeno era brincando por ai. Depois foram crescendo, foram

tomando rumo. Aí deu para trabalharem.” (...). Nas lembranças de D. Edvalda

quando a figura de D. Adelina Josefa Maria de Jesus, sua mãe, surge é associada à

figura paterna, seja quando relembra a localização do cemitério onde foram

enterrados, primeiro o pai, depois a mãe, seja quando relata o modo como era

criados, ela e os irmãos. (...)”O pai de nós seis e primeiramente a mãe, né não?

Botam a gente pra cozinhar, fazer comida, lavar roupa, gomar, ir para as roças, catar

mandioca, catar andu. Fazer todo serviço” (...). Mais adiante retomou o assunto,

acrescentou mais um elemento para nossa análise: (...) “Nós ia trabalhá [...]. que

nem burro na carroça. Para quê? Para não pegar no alheio. Nóis não pegava no

alheio. Bem nascida e bem criada.”(...). Neste depoimento, além de aparecerem as

atividades realizadas na esfera doméstica, também aparecem aquelas próprias do

trabalho na roça. Aparecem também a consciência do peso do trabalho e

principalmente o seu valor como atividade moralizadora.

3.3. Os Irmãos

As famílias dos nossos velhos, de acordo com os depoimentos recolhidos,

são bem numerosas. Na família do Sr. João e, coincidentemente, na do Sr. Raul,

são quatro irmãos, dois meninos e duas meninas; D. Edvalda conta que em sua

casa eram cinco irmãos, quatro meninos e uma menina; D. Joselita apresentou uma

família menor com apenas dois irmãos, do sexo masculino. Os irmãos são

companheiros de nossa infância, com quem partilhamos os mesmos espaços e

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muitas experiências, descobertas, conquistas, perdas... São histórias que

guardamos e que compõem as lembranças de família.

Como fora dito, D. Joselita teve dois irmãos. Um, com quem morou antes de

vir para o asilo, e outro, já falecido. Em suas lembranças, eles aparecem como

meninos. Meninos que viviam brincando. Sobre a convivência com eles, ela diz:

(...)“Se dava bem. Às vezes teimava, mas, na mesma hora, estava tudo bem. É

coisa de criança é assim, né?” (...). Bosi (1994, p.429) chama atenção para o fato de

que na maioria das vezes, os irmãos são fixados na infância e que, depois, sua

figura empalidece, apenas sobrevivendo no menino ou menina que foram.

No depoimento do Sr. Raul, ele revelou que não conviveu muito com os

irmãos porque pensavam de modo diferente. Contou que um dos irmãos era casado,

uma irmã solteira, mas que moravam longe. Disse recordar da outra irmã, que

morou junto com ele e sua mãe, e que hoje mora no Rio de Janeiro. Sabemos que, a

partir de laços de convivência familiar, é desenvolvida uma memória coletiva, que é

formada pela memória de seus membros, unificando, acrescentando, corrigindo.

Contudo, é o indivíduo que relembra, por mais que deva á memória coletiva. Nas

palavras de Bosi (1994, p. 411), “ele é o memorizador e, das camadas do passado a

que tem acesso, pode reter objetos que são, para ele e só para ele, significativos

dentro de um tesouro comum”. Talvez isto explique porque o Sr. Raul lacrimejou ao

lembrar o irmão que morreu ainda jovem: (...)“O rapaz era Ronaldo, que morreu com

trinta anos [longa pausa] Meu irmão era... muito brincalhão”(...) [silêncio]. Com o

olhar distante, voz embargada, como quem fala para si e ao mesmo tempo, como

testemunha e guardião desse tesouro que tem na memória, buscou num sorriso

entre olhos rasos d’água transmitir, para nós, a essência de seu ente querido, em

silêncio. A quietude tem sempre razões muito complexas. Há o silêncio que

adotamos em situações de extremo sofrimento. Antes de qualquer coisa, precisamos

encontrar ouvidos atenciosos, dispostos a escutar, só assim podemos relatar

sofrimento (POLLAK, 1989).

O modo como D. Edvalda se reportou aos irmãos foi, para nós, inicialmente,

curioso: (...) “Joaquim, em Filadélfia; Adolfo em Ponto Novo; Nilton, em Saúde;

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finada Vavá em... na Fazenda Várzea Funda e Laura em Saúde”(...). Em Bosi (1994,

p.432), encontramos: “Os filhos partem, tomam seu rumo, ainda que ligados

afetivamente aos pais, se dispersam geograficamente”. Mas, no caso de D. Edvalda,

pudemos perceber, em seu relato, referência a vários lugares onde morou desde a

sua infância, nomes como Rio das Pedras, Várzea Grande, Água Branca, dentre

outros povoados da micro-região de Senhor do Bonfim, figuram como evidência de

constantes deslocamentos. Um desenraizamento, finalmente, coroado com venda

da terra e da casa que pertenceram aos pais, e foram adquiridas pelo seu irmão

mais velho. A família, então, se espalhou pelas cidades da região.

O desenraizamento é uma condição desagregadora da memória: sua causa é o predomínio das relações de dinheiro sobre outros vínculos sociais. Ter um passado, eis outro direito da pessoa que deriva de seu enraizamento. Entre as famílias mais pobres a mobilidade extrema impede a sedimentação do passado, perde-se a crônica da família e do indivíduo em seu curso errante. Eis um dos mais cruéis exercícios da opressão econômica sobre os sujeitos: a espoliação das lembranças (BOSI, 1994, p. 443).

O Sr João não nos deu muitos detalhes a respeito de seus irmãos. Sabemos

apenas que eram dois do sexo masculino e duas mulheres. Sobre a convivência

com eles, ressaltou que era muito boa, e revelou especial afeição por um que

morava em Salvador, onde costumava visitá-lo. Destacou também o lugar e a função

profissional que o irmão exercia: (...) “O de Salvador era gerente da Adamastor.

Você já ouviu falar da Adamastor? Meu irmão era gerente, ali na Rua Chile” (...). A

tradicional loja de roupas masculinas, o Adamastor3, vendia as roupas que os

homens elegantes usavam. E teve como seu primeiro dono o pai do cineasta

Glauber Rocha, cujo nome é o mesmo do estabelecimento. Ficava na Rua Chile

que, por sua vez, fora aberta como Rua Direita do Palácio, em 1549, pelo primeiro

Governador Geral do Brasil, Tomé de Souza. Durante séculos foi a principal via

urbana de Salvador, e mesmo do Brasil. Ficou famosa, no século XIX, pelas

companhias que atuaram no seu teatro. No início do século XX, quando assumiu

sua denominação atual, era conhecida pela sua iluminação moderna. Passaram nela

a se localizar as sedes de várias lojas de luxo, os mais afamados escritórios etc...

No seu apogeu, nas décadas de 1940 e 1950, os cines Glória e Guarany trouxeram

3 [http://ibahia.globo.com/sosevenabahia/ruachile.asp – Bruno Porciúncula: Rua Chile: centro de

elegância, fonte de história].

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os maiores sucessos de Hollywood.

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4. CAPÍTULO II - A INFÂNCIA

4.1. Lembranças da Infância

A narrativa dos idosos sobre a infância se aproxima, com muita clareza, do

saudosismo de Casimiro de Abreu, nos versos do poema Meus Oito Anos. (...)”

Infância é liberdade, eu tive uma boa infância “(...), declarou o Sr. Raul. D. Joselita

sentenciou: (...)“É o que já passou. Não sei mais nem lembrar, quase, né? [pausa]

Tem passagem boa, que a gente se alembra ainda, das pessoas que eram

delicadas e tudo... Só isso.”(...). Como uma das idades da vida, na maioria dos

depoimentos, a infância figurou como uma espécie de aurora irisada de prazeres,

como disseram o Sr. João e D. Edvalda, respectivamente: (...)“A infância... A infância

é... é... a pessoa que gosta de se divertir, não é? Com a memória boa... Hoje, eu tô

com setenta e tantos anos, não é? Aí, na infância, a pessoa tem aquele gosto, né?

De comer... De se distrair”.(...); (...)“Vixe, rapaz, era trabalhar nas roças... Naquele

tempo não tinha malandragem, não. Nera não? Deste tamanhinho [gesto], eu? Aí, vá

altiano... altiano... Era uma delícia e eu trabalhava por seis mulheres... Era a mais

inteligente e cuidadosa. Era eu. Tô me achando veinha de idade, será que já estou

caducando”?(...) Remete-se a Ariès (1981,p.36), que indica que, na velhice, segundo

lembra de Isidoro, essa é assim chamada porque as pessoas velhas já não têm os

sentidos tão bons como já tiveram, e caducam.

Estes dois relatos deixam transparecer, inicialmente, duas questões sócio-

culturais. Na primeira lembrança, a jovialidade do corpo, a alegria de ser criança, a

brincadeira, a diversão, uma demonstração de que as crianças do sexo masculino

tinham maior liberdade para exercitar o espaço de suas relações futuras. Já o outro

relato, da senhora Edvalda, retrata um fato comum que acontece, ainda hoje, nas

periferias e nas áreas rurais. É o aproveitamento da mão-de-obra infantil no trabalho.

No relato, a criança, mesmo sendo do sexo feminino, estava apta ao trabalho

duro da roça. Era um trabalho que, supostamente, deveria ser exercido por homens,

por exigir mais força e vigor físico. Nos depoimentos, após a lembrança iluminada da

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infância, a velhice apareceu amarelecida, débil, banhada por raios crepusculares.

Espoliados da casa de seus primeiros afetos, do quintal, da rua onde brincaram e

fizeram amizades... Asilados e envelhecidos nos ofertaram memórias repletas de

sentimentos, da infância querida que os anos não trazem mais.

4.2. A casa, o quintal, e outros espaços revisitados

” Porque a casa é o nosso canto no mundo. Ela é como se diz amiúde, o nosso primeiro universo.

É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda acepção do termo.”

(Bachelard)4

Em consonância com Bachelard (1993), Bosi (1994), acerca da casa, indica

que é aquela em que vivenciamos os momentos mais significativos, importantes da

nossa infância. Afirma:

Ela é o centro geométrico do mundo, a cidade cresce a partir dela, em todas as direções. Fixamos a casa com as dimensões que ela teve para nós e causa espanto a redução que sofre quando vamos vê-la com olhos de adulto. Para enxergar as coisas nas suas antigas proporções, como posso tornar-me de novo criança? A pergunta já está no Evangelho. Algumas pessoas, em geral os artistas, guardam essa possibilidade de remontar às fontes. (BOSI, 1994, p 435)

Ao rememorar, o idoso bebe das mesmas fontes que os artistas conhecem,

porque memória tem o quê do sonho, porém também do trabalho. Nisso, a

lembrança é revelação e reconstrução do experienciado.

Assim, numa mistura resignação e lamento, teve início o relato de D. Joselita

sobre suas lembranças da casa de sua infância, do quintal. (...)“Lembro, mas tem

muito tempo, já se acabou tudo...[pausa] era grande, tinha três quartos, sala,

varanda” (...). Ela contou que tinha de tudo plantado no quintal: bananeira prata,

cafezeiro... Revelou, inclusive, que, certa vez, teve um cachorro chamado Sultão, e

que também, quando mocinha, arranjou um mico. Um mico que se chamava Preto.

4 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p.24.

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Sobre o bichinho, rindo, ela prosseguiu: (...) “Ele chegava assim na cozinha e aí a

gente chamava: Preto! E ele descia... E descia medonho [risos]”(...).

São duas as casa de D. Edvalda. A primeira ficava no Rio das Pedras (...) “De

junto de seu Angelim. Rio das Pedras... Sei onde é.” (...). Depois mudaram.

Compraram outra casa, outro terreno no Itapicuru. A segunda era (...) “outra casona

grande, muito grande” (...) O que a diferencia da casa de sua infância é o sentimento

de luto pela perda dos pais (...) “Aí, foi onde minha mãe faleceu e meu pai”. (...)

Sr. Raul relata que a casa ficava numa avenida. Não oferece mais detalhes.

Resume em uma frase o que lembrou ser importante. (...) “A casa... tinha minha mãe

e minha irmã.” (...). A casa evocada por ele é a casa materna, a da família. Já sobre

o quintal, com entusiasmo, revelou: (...) “Ah... Tinha um quintal grande... Era ipueira”

“(...) E, sorrindo, acrescentou que tinha plantas sim (...)“ Tinha coqueiro...

mangueira... tinha um bocado de coisa”(...).

O Sr. João, quando perguntado sobre sua casa e/ou quintal, afirmou: (...)

“Disso aí eu não lembro mais não... Não... Não lembro de jeito nenhum”. (...).

Quanto ao esquecimento, Halbwachs (2006, p.37) indicou que “esquecer um período

da vida é perder o contato com os que então nos rodeavam”. O Sr. João se

justificou, dizendo: (...) “Não vou forçar muito [riso]. Agora... Aí, eu me recordo da

minha boemia...”(...).

Ainda conversando com o Sr. João ele revelou que gostava de ficar na Praça

Nova do Congresso: (...) “A Praça Nova tinha um Coreto... Um coreto... Era... na

Praça Nova. No coreto, a gente subia por uma escada... No coreto tinha, né? Os

outros lugares era... [pausa]... Às vezes ia pá Canoa passear. Essa Canoa. Igara...

Só isso”(...).

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4.3. As Brincadeiras

Estamos acostumados a conceber a infância como um tempo reservado ao

lazer, às atividades lúdicas, especialmente às brincadeiras. O Sr. Raul, num

intrigante depoimento, conta: (...)“Eu não brincava, eu não brincava não... [pausa]

Era difícil de brincar. Eu não tinha brinquedo não, porque... [pausa longa]. Não.. Não

gostava de brincar... [silêncio]” (...). São constantes as pausas e o silêncio ao longo

da narrativa. Talvez por algumas lembranças dolorosas, que o impedem de externar

o pensamento a respeito do brincar, que seria inerente ao ser criança.

Já o Sr. João elencou uma série de brinquedos que gostava. Às vezes era

gude, outras, pião com enfieira. Também soltava raia e disse ainda que gostava

mesmo era de caçar passarinho. Em suas palavras: (...) “Eu gostava de ir pro mato

jogar... com... com badogue de borracha. Derrubar, né? Ééééé... Matar... [pausa] É...

Caçar passarinho. Matar com badoguezinho no braço.” (...).

Se no depoimento do Sr. João aprecem brinquedos e brincadeiras associados

ao gênero masculino, no relato de D. Joselita, os referidos elementos foram

associados, inclusive por ela, ao gênero feminino: (...) “Brincava assim, quando se

ajuntava... Brincava de boneca, dessas coisinhas que menina brinca, né? A gente

fazia aquelas brincadeiras no chão, no cantinho, né? De casinha, levava as bonecas

tudo. Depois tornava a juntar e guardava.”(...). Em relação aos espaços utilizados

para as brincadeiras, observamos a seguinte implicação, também relacionada ao

gênero. É a determinação dos lugares apropriados para os meninos, sendo

representados pelo mato, pela rua, e, para as meninas, o cantinho, a casa. O

menino João saia para matar passarinho. A menina Joselita, depois de brincar,

arrumava e guardava suas bonecas, reforçando a divisão dos espaços. O público

destinado aos homens, suas lutas e atividades, e o espaço privado, a casa, local de

vivência das mulheres.

D. Edvalda evidenciou, em seu relato, uma situação que é comum às crianças

da zona rural: o trabalho infantil. Segundo a mesma, os pais não a deixam brincar,

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pois tinha que trabalhar na roça. E descreveu assim sua atividade e dos irmãos: (...)

“A mãe de nós seis era Divida Maria de Jesus. Meu pai, José Lopes da Silva, não

deixava [brincar]. Nós ia carpi ná enxada. Capinando, sabe? Nas roça. Nós ia

trabalhá. Pa... Para... Que nem burro na carroça. Para quê...? Pra não pegar no

alheio”. (...).

4.4. Os Amigos

O Sr. Raul disse não se lembrar de amigos de infância. Mas relatou que,

quando já era um “rapaz crescido” , tinha um amigo: (...) “Ele se chamava Edval. Val,

né? Quando ia na casa dele, a gente conversava, mas a conversa era de gente

grande” (...).

D. Joselita revelou que tinha poucas amigas, mas relembrou uma. Disse: (...)

“Me lembro... Tem muito tempo que Maria casou e foi embora, pro mundo, para esse

lado das caatingas. Não vi mais nunca... Não sei nem se é viva, ainda.” (...)

O relato de seu João: (...) “Ah! Me lembro... de infância... De infância...

Lembro de Rafael... [pausa] Ele era da Polícia Federal... Rafael Pereira da Silva...Me

lembro desse Rafael... Me lembro desse “Buck Jones”... que está em Salvador. Dos

meus amigos Albérico Simões, o Catrévio... Do Aristides Simões, irmão de Albérico,

dessa família, né? E do Coca, também, né? [risos]” (...)5.Segundo seu João, o amigo

Coca e ele curtiram muitos carnavais em Senhor do Bonfim, na avenida que vai da

Sociedade 25 de Janeiro ao Clube União e Recreio.

Observamos, nos depoimentos, que apenas um ou outro amigo de infância

fora lembrado. Conforme Halbwachs (2006), esquecemos quando saímos do grupo

ao qual fazíamos parte, quando deixamos de pensar nele e/ou não temos meio de

reconstruir sua imagem. E, ainda, que “quanto mais os grupos se tocam e se

distanciam ou quanto mais numerosos são eles, mais a influência de cada um é

5 O Cel. Aristides Simões foi um dos ilustres moradores de Itiúba, conhecido por não ceder a um cerco de

Lampião. Já o Coca é uma personagem pitoresca da cidade, irmão de um político desta mesma cidade.

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enfraquecida.” (p.56-57) Ou, ainda, o esquecimento pode estar associado a

patologias comuns ou não à velhice.

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5. CAPÍTULO III - A ESCOLA

5.1. Lembranças da Escola:

Atualmente, a escola é tida como um espaço especialmente destinado à

socialização de saberes, à educação da criança. A infância, por sua vez, carrega a

prerrogativa de ser o “tempo da escola”. Todos os depoentes passaram pelo

processo de escolarização. D. Edvalda freqüentou a escola por apenas seis meses.

O Sr. João e D. Joselita cursaram até o terceiro ano. Finalmente, o Sr. Raul estudou

até a quinta série.

O Sr. João estudou em Senhor do Bonfim, no Prédio Escolar Austricliano de

Carvalho6, situado ao lado da Catedral. (...)“Ali li naquele prédio escola. Não tem

aquele prédio? Não tem a Igreja? Vivia no colégio... Essas coisas. Assim, nesses

colégiozinhos... Estudando, que minha mãe mandava. Somente isso. Não tive num

ginásio, nem nada. Entendeu como é?.. Até o terceiro ano”. (...). Dona Joselita

estudou em Campo Formoso e D. Edvalda no povoado de Rio das Pedras, em

Pindobaçu; (...) “Eu estudava com doze anos. Mas, hoje, pelejo... Pelejo para

escrever e não sai. É porque, naquele tempo, naquela situação... Ano muito velho

pra caramba. Povo reduzido... Reduzido. Botava só pra ir pás roças.”(...).

No passado, a quase totalidade das famílias da zona rural tinha pouco

interesse na escolarização das mulheres. Estas estavam destinadas ao trabalho

doméstico, à criação dos filhos e cuidados com a casa e o marido. Daí, a senhora

Edvalda dizer que a sua escolaridade durou somente seis meses: (...) “direto p’as

roças... Direto. Sim, só seis meses, eu... E olhe lá” (...).

O Sr. Raul, alagoano, embora não tenha explicitado a idade em que foi à

escola, o seu depoimento deixa algumas pistas. Primeiramente, não era mais

6 Engenheiro Austricliano de Carvalho, chefiou a política e 1893 (...) Autor do projeto que doou a Bonfim 500

hectares de terra, onde está edificada a cidade e 100 hectares a Missão do Saí.(...)”. MACHADO, Paulo Batista.

Senhor do Bonfim: minha rua , minha história. Salvador: Editora UNEB, 2004.

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criança quando freqüentou a escola. Segundo. Havia adultos e familiares estudando

com ele numa turma multisseriada: (...)“A escola em que eu estudava era como...

[pausa] Era pessoas... Pessoas de família. Aí, não conversava, porque era gente

inteligente. Não conversava não.”(...). Não se lembrou dos professores e, sobre os

colegas, sorrindo, afirmou: (...)“Ah, colegas de aula era um bocado de vagabundo”.

[risos] “(...) Sobre a sua atuação nas aulas disse: (...)” As [pausa] as aulas, eu... eu...

Na escola era um bom estudante... Freqüentei muito. “(...), contou ainda que não

havia castigos, por ser escola de “gente grande”.

5.2. Os Professores:

D. Joselita relatou que teve uma professora: (...) “Chamava até

Francisquinha... Ela era daqui, de Bonfim mesmo. Ai, casou com um parente da

gente e foi morar lá. Ai, ficou lá ensinando.”(...). D. Edvalda, mesmo tendo

freqüentado a escola por apenas seis meses, recordou do professor Pereira, que

vinha do “Papinho” que fica na estrada para Caldeirão Grande, perto do cemitério

onde seus pais foram sepultados. O Senhor João contou: (...) “Me lembro...

Chamava-se seu Rad... Rad, o nome dele. Ele dirigia o carro... Ele era bem de

vida... Anda manual,7 mas não tinha perna não... Ele era aleijado... Senhor Rad, da

família Barreiro”(...). Ao lembrar do seu professor, o Senhor João lembra de um

trágico acidente ocorrido com um avião bimotor.8 (...) “Aqui em Bonfim, essa família

desapareceu... Um era aviador. Depois, apareceu aqui com avião, chamava-se Jairo

Barreiro... Barreirinho. E, nesse avião, botou uns amigos meu... Eram três e

morreram... Morreram, na Canoa, um teco-tecozinho. E ele era assim comigo

[gestos]. Chamava-se Jairo Barreiro”. (...) Além das lembranças do professor e do

acidente ligado à sua família, Sr. João lembrou ainda da Professora Mariá Teixeira.

5.3. As Atividades de Ensino:

Os testemunhos dos idosos foram bem parecidos quanto às atividades de

7 O automóvel do Professor Rad Pereira era adaptado para deficiente físico.

8 Acidente ocorrido em Senhor do Bonfim, em que foram vitimados: O violonista Aloísio Leal, o Sr Sílvio

Guimarães e o piloto Jairo Barreiro, conhecido como Barreirinho.

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ensino: ler, escrever, contar. O material usado era basicamente a cartilha, o livro

didático, a tabuada. Segundo os relatos, as atividades realizadas na escola eram as

elementares. (...) “Ah, era conta, tabuada... essas contazinha véia besta”(...) Para os

homens, as contas eram essenciais, pois lidavam com a comercialização de

mercadorias. Por outro lado, as mulheres, como viviam “para o lar”, não precisavam

letramento. Este era o pensamento de alguns pais. D. Joselita: (...) “Isso eu não

lembro não... que era na roça. Só uma mesa com um livro em cima. Estudar e

pronto. Era ler... Fazer os dever. E, ai, pronto.” (...) Para D. Edvalda: (...) “Eu li... Eu li

o ABC... Não tinha? Com as letrinhas? Eu li tabuada... Eu sei que... Hoje em dia,

não tem mais não. Eu li o primeiro livro e o segundo. Era boa na leitura, era boa pra

estudar.”(...)

5.4. Os Castigos:

“Pia, não sofre? Sofre”.9 Nos relatos sobre os castigos, o Senhor João não

esqueceu o nome da professora que puxava suas orelhas e bochechas e D. Edvalda

não se esqueceu da palmatória. Não podia “errar o nome”, afinal aquilo ardia feito

pimenta. D. Joselita falou do castigo, dos bolos, mas era “só se fizessem alguma

coisa errada”. Então, na escola era assim. Conforme Sr. João, (...)“Tinha bolo. Tinha

uma professora, Mariá Teixeira, que só faltava me tirar as orelhas, ali... A mulher

parece que tinha sede em mim que eu era todo gordinho. Quando chegava em casa,

mãe: “meu filho o que é isso?” Ela só falava... Vinha e puxava minha orelha.” (...) Os

castigos físicos eram atividades comuns na região desde o período dos padres. Em

Willeke (1974, p.65) observa-se que, embora os pais não adotassem o costume de

castigar os filhos em casa, eram eles próprios que permitiam e até “pediam aos

religiosos castigassem os filhos, demonstrando assim a sua confiança na justiça dos

abarés educadores’” (DA PAZ, 2009, p.153)

D. Edvalda afirma: (...) “Era pra ficar... Botava, sei lá... Eu não sei fazer... Com

a régua assim... Batendo... nas pessoas. Oxe... Eram bolos assim [gestos]. Era era

de madeira. Oxe... Quando estudava. Na época que estudava. Para não errar o

9 Título de um conto publicado no livro Contos de Belazarte, em 1934, pelo escritor Mário de Andrade.

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nome. Aquele negócio arde mais do que pimenta. Pegava assim e dava bolo na

gente. A gente sofria, muié. Mas sofria pra caramba. Poxa... Eera um sufoco [risos].

Dava um bolo que não era fácil.”(...) Assim como D. Joselita: (...) “Às vezes fazia

alguma coisa errada. Ela dava uns bolos e botava de castigo um pouquinho”(...).

A palmatória, chamada de disciplina, foi um instrumento muito utilizado pelos franciscanos para impor ordem e obediência aos índios aldeados, os castigos físicos denominados por Frei Martinho de Nantes (1979 .p.17) de Terrores salutares para os índios, resultavam em subordinação e justiça. Para Willeke (1974,p. 65.),“Não se pode negar que tanto os franciscanos quanto as outras Ordens infligiam penas corporais a meninos e adultos, a homens e mulheres, a cristãos e catecúmenos” (DA PAZ, 2009, p.153).

5.5. Festas:

O Sr. João afirmou não se lembrar de festas ou festejos de quando era

criança e freqüentava a escola. (...)“Não, não me lembro não, não, só a União e

Recreio, nesse tempo, e a 25. As histórias são só brincadeira e... brincadeira de

Carnaval. “Vem aí o carnaval, você vai para onde? Vai para Salvador?” Eu vivia em

Salvador. Era um pé lá e outro cá, né?” (...). D. Joselita contou que na roça não tinha

festa. E, quando tinha, a mãe não deixava que fosse. Ia, geralmente, à feira em

Campo Formoso, sempre com mãe: (...)“Eu não ia muito à festa. Mãe não deixava,

não é? Só mesmo ir para feira. Mas eu só andava mais [pausa] mais minha mãe. Ir

para a feira do Campo Formoso. Era só mais a feira que eu ia. Pro Socotó, que era

mais perto, só. Aqui era mais longe... Pouco a gente vinha”(...).

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6. ARREMATE

Neste trabalho, colhemos e analisamos memória de velhos. Ao rememorar, o

velho não sonha apenas. Ele desempenha uma função social para a qual está

preparado.

Aportamos nos pressupostos teórico-metodológicos da História Oral, por

considerá-los adequados aos nossos objetivos. Realizamos entrevistas em dois

blocos. Em um traçamos a biografia dos depoentes. Foram escolhidos velhos com

idade superior a 60 anos: o Senhor João, o Senhor Raul, Dona Edvalda e Dona

Joselita, todos moradores do Lar dos Idosos Fabiano de Cristo, localizado em

Senhor do Bonfim. No outro bloco, realizamos a entrevista que fora gravada sobre

os temas propostos.

Foram evidenciados, nos depoimentos, aspectos acerca da organização e

convivência familiar; descrição dos espaços, atividades e afetos da infância e, ainda,

a caracterização da escola e de suas práticas. Nas lembranças dos idosos

destacamos:

Sobre a família:

O pai fora relembrado como figura central da família e descrito por suas

características morais, mesmo entre aqueles que ficaram órfãos desde cedo.

A mãe surgiu entre seus afazeres domésticos e características morais e ou de

personalidade.

As famílias dos depoentes são formadas por um grande número de irmãos.

Apareceu evidência de que tanto atividades voltadas para o lar, como atuação

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como força de trabalho na “roça”, foram realizadas pelas idosas quando

meninas.

Sobre a infância:

A infância fora evocada, com saudosismo, como idade de liberdade e

prazeres, em oposição à velhice caracterizada pela debilidade.

As casas foram descritas como grandes e espaçosas e os quintais repletos

de árvores frutíferas.

As brincadeiras e brinquedos aparecem nos depoimentos associados ao

gênero, inclusive no que se refere aos espaços utilizados, destinando o

espaço doméstico para as meninas e o espaço público para os meninos.

Fora evidenciado o uso da mão-de-obra infantil pra o trabalho na roça.

Apenas alguns amigos de infância foram lembrados.

Sobre a escola:

Embora por pouco tempo, todos freqüentaram a escola.

A maioria dos entrevistados lembrou o nome de pelo menos um professor.

As atividades realizadas pela escola eram elementares: ler escrever e contar,

bem como o material didático utilizado: livro, cartilha e tabuada.

Os castigos foram apontados como uma prática disciplinar constante: puxão

de orelhas, bochecha, bolos com palmatória etc... exceto por um dos

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depoentes, que freqüentou a escola na idade adulta.

Não foram realizadas festas pelas escolas.

Nos depoimentos também foram evidenciados momentos de silêncio e de

esquecimento.

Pela narrativa, o velho transmite às gerações presentes não apenas

informações, mas ensinamentos, os quais foram adquiridos em suas vivências. Daí

decorre a preciosidade de seu testemunho. Em contrapartida, é diretamente

beneficiado, considerando que ao recordar e contar a sua história ocupa um lugar

central na narrativa, recuperando, assim, a autoconfiança e dignidade.

Esperamos, por fim, que o nosso trabalho possa contribuir para reflexões

acerca da importância da memória dos velhos para as novas gerações. Pois,

rememorando as coisas passadas, atando o começo ao fim, eles, os velhos,

engendram um futuro de infinitas possibilidades.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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