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Monteiro Lobato no Porviroscópio

Ermelinda Maria Araújo FerreiraUniversidade Federal de Pernambuco (UFPE)

Resumo:

Este artigo analisa brevemente os componentes imaginativos da literatura infantil lobatiana, im-plicados no seu projeto pedagógico futurista para a sociedade brasileira do início do século XX, levado a cabo na série do Sítio do Picapau Amarelo. Escritas principalmente durante a Segunda Guerra Mundial, nos anos 1930 e 1940, as obras incluídas neste projeto ref letem mudanças radi-cais no posicionamento ideológico do autor, quando contrastadas ao devastador enredo eugenista de seu único romance para adultos, assustadoramente profético, conquanto levianamente forjado em três semanas, no ano de 1926, movido por uma ambição mercadológica.

Palavras-chave: Monteiro Lobato; Ficção científica; Sítio do Picapau Amarelo; O presidente negro.

Abstract:

This article brief ly examines the imaginative components of the children’s literature of Monteiro Lobato, involved in his futuristic educational project for the Brazilian society of the early twen-tieth century, and carried out on the Sítio do picapau amarelo series. Written mostly during the Second World War, in the 1930’s and 1940’s, the works included in this project ref lect radical changes in the ideological position of the author, when contrasted to the devastating eugenics plot of his only novel for adults, eerily prophetic, though lightly wrought in three weeks in 1926, driven by a marketing ambition.

Keywords: Monteiro Lobato; Ficção científica; Sítio do Picapau Amarelo; O presidente negro.

Vi bem clara a diferença que existe entre ter ideias próprias, frutos fáceis e lógicos de uma árvore nascida de boa semente e desenvolvida sem peias ou imposições externas – e ser “árvore de natal”, museu de ideias alheias pegadas daqui e dali, sem ligação orgânica com os galhos, donde não pendem de pedúnculos naturais e sim de ganchinhos de arame. E comecei a aprender a também ser árvore como as que crescem no campo, e a deixar-me engalhar, enfolhar e frutificar livremente por mim próprio. Sinto hoje que a minha árvore mental cresce desafogada no sítio tanto tempo ocupado por uma árvore-cabide.

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Introdução

A literatura imaginativa ou especulativa parece não gozar de grande apreço entre os

escritores brasileiros, ao contrário do que acontece no resto da América Latina, onde o

elemento mágico ou maravilhoso revolucionou a história da produção hispano-americana

moderna. Expoentes do gênero dito fantástico, como os argentinos Jorge Luis Borges,

Adolfo Bioy Casares e Julio Cortázar, os mexicanos Gabriel Garcia Márquez e Carlos

Fuentes e o cubano Alejo Carpentier, entre tantos outros, trouxeram para a literatura

realista o sopro renovador do sonho, da quimera, do mistério e da fantasmagoria que

tanto fascínio produz nos leitores. O mergulho nas sombras dos credos de culturas es-

quecidas ou varridas pela colonização, nas escuras profundezas do espírito humano e

nas descobertas de formas diferentes de pensar e entender o mundo, desobedientes à

lógica institucionalizada e legislada pela “normalidade” civil, causaram grande impacto

no cenário editorial e acadêmico do século XX.

Embora parte expressiva do mesmo continente e do mesmo passado histórico, o

Brasil ficou fora desta imensa onda que revolucionou o cânone das literaturas pós-colo-

nialistas na América do Sul e na América Central, sobretudo a partir dos anos 1960. An-

corada a uma resistente fidelidade a um discurso político de esquerda e a uma plataforma

estética demasiado esquemática, a literatura brasileira não conseguiu escapar à visada da

representação histórica e documental da realidade, que sobreviveu à travessia do campo

para as cidades e continuou a investir no tom da revolta, da denúncia e de um ideal de

utopia socialista redentora, da qual o texto deveria ser o eterno arauto. Por este motivo,

a literatura brasileira não se atualizou. Ignorou a avalanche tecnológica, as conquistas

científicas, a invasão do mundo virtual e da rede mundial de comunicação no cotidiano

dos cidadãos de todas as classes sociais, a mutação genética, a metamorfose dos corpos

e a maioria dos eventos que vêm alterando a face do planeta – preferindo terceirizar para

as produções culturais estrangeiras importadas a reflexão sobre esses temas considerados

“inferiores” e próprios da arte voltada para “as massas”.

Apesar disso, muitos autores brasileiros consagrados, esporadicamente, assinaram

produções que podem ser classificadas como imaginativas, ligadas ao estranho, ao sobre-

natural ou à “ficção científica”. O imortal, de Machado de Assis; A república 3.000, de

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Menotti del Picchia; Incidente em Antares, de Érico Veríssimo; e A desintegração da mor-

te, de Orígenes Lessa, são exemplos clássicos desta empreitada, obras menos conhecidas

do que as de José J. Veiga e as de Murilo Rubião, autores habitualmente citados quando

se aborda este tema. Poucos sabem, no entanto, que a literatura fantástica prosperou fora

dos cânones oficiais, firmando-se na produção de autores como Jerônymo Monteiro e

André Carneiro, por exemplo, e impulsionada por uma coleção de livros lançada pelo

editor baiano Gumercindo Rocha Dorea (“GRD”), que nos anos 1960 e 1970 passou a

encomendar trabalhos do gênero a autores já legitimados na literatura mainstream.

Um projeto pedagógico futurista

A criança tinha na América de 2228 uma importância capital. Toda a vida do país girava-lhe em torno. Era a criança, além do encanto do presente, o futuro plasmável como a cera. Os maiores gênios da raça se consagravam a estudá-la, para com tão dúctil matéria-prima irem esculpindo a obra única que apaixonava o americano – o amanhã. E a tal grau chegou a afinação da puericultura estética, que nem uma imaginativa de hoje, desta época em que o homem, absorvido nos horrores da luta pelo pão, quase ignora a existência da criança, nem de leve pode apreender o que significava.

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Dentre os pioneiros da aventura literária especulativa no Brasil, Monteiro Lobato

(1882-1948) aparece, certamente, como um dos mais independentes, expressivos e mal

compreendidos expoentes. Com seu visionarismo pragmático, concebeu uma literatura

futurista notadamente pedagógica, voltada para a formação de novas gerações de brasilei-

ros despertos, articulados com os discursos e desafios de um mundo globalizado e melhor

preparados para os desafios do porvir. Seu esforço não se concentrou apenas na criação

de uma biblioteca infanto-juvenil estrangeira para as crianças brasileiras – pela tradução/

adaptação dos títulos imaginativos que julgou indispensáveis nesta linha, como Alice no

País das Maravilhas, de Lewis Carroll; Peter Pan, de J.M. Barrie e Robinson Cruzoé,

de Daniel Defoe –, mas na criação de todo um universo literário próprio, completamente

inexistente à época, localizado no simbólico Sítio do Picapau Amarelo, onde a infância

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nacional poderia conviver livremente com as infinitas possibilidades das conquistas e

avanços concebidos pelo intelecto humano, mas também com os retrocessos e desafios

verificados pelo mau uso desses empreendimentos em escala planetária.

Ferozmente indisposto com os “jecas” – personagens subdesenvolvidos, desesperan-

çados, apáticos e subjugados, com perspectivas de vida limitadas e marginalizadas, que

identificava com grande parte do povo brasileiro alijado de uma mais ampla e substancial

formação, e da partilha dos bens e do patrimônio cultural humano universal –, Lobato

trabalhou incansavelmente pela propagação de alternativas eficazes para um futuro mais

“realista” para os jovens de seu país. Entretanto, foi desde sempre rechaçado pelos mais

diversos preconceitos, alvo dos desentendimentos e confusões interpretativas a que as

suas propostas inusitadas e provocativas acabavam sujeitas. O próprio Jeca Tatu – tantas

vezes reelaborado para atender ao objetivo de promoção de uma imagem do homem do

campo saudável e próspera, alegre e empreendedora1 – foi desmoralizado como uma

alegoria elitista e preconceituosa. Sua defesa dos direitos da mulher e dos oprimidos con-

tinua ainda hoje a suscitar polêmicas memoráveis, que ao longo de mais de meio século

se desdobram em condenações e absolvições públicas as mais contraditórias.

Elegendo como eu-lírico a boneca Emília, cujo nome significa “a rival” – um impro-

vável ser mutante, raquítico, do sexo feminino; dotado, no entanto, de uma verve crítica

impertinente e insolente, espécie de rebelde robô criado por uma ex-escrava a partir da

precariedade dos materiais disponíveis (um tecido de chita barata e um enchimento de

macela) –, Lobato articula com infinito bom-humor um inacreditavelmente ambicioso

projeto educacional para o Brasil. Relendo criticamente as origens da cultura popular na-

cional e da literatura de transmissão oral através de obras como Histórias de tia Nastácia

e Caçadas de Pedrinho; mas sem esquecer a tradição clássica europeia, como as lendas

mitológicas, as fábulas e os contos de fadas, o autor procura situar seu leitor num universo

de múltiplas referências encadeadas, cuja história cabe às novas gerações reconstruir. À

1 Diz Lobato: “Nossa gente rural possui ótimas qualidades de resistência e adaptação. É boa por índole, meiga e dócil. O pobre caipira é positivamente um homem como o italiano, o português, o espanhol. Mas é um homem em estado latente. Possui dentro de si grande riqueza de forças. Mas força em estado de possibilidade. E é assim porque está amarrado pela ignorância e falta de assistência às terríveis endemias que lhe depauperam o sangue, catequizam o corpo e atrofiam o espírito. O caipira não “é” assim. “Está” assim. Curado, recuperará o lugar a que faz jus no concerto etnológico”. (LOBATO, 1957, p. 285).

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parte o seu imenso esforço em reconfigurar o ensino de matérias básicas como português,

matemática, história e geografia numa abordagem mais lúdica e acessível, sem prejuízo

da qualidade do conteúdo selecionado; chama a atenção a inclusão, no seu projeto pe-

dagógico, do ensino das ciências, contempladas em obras como A chave do tamanho, A

reforma da natureza e Viagem ao céu, nas quais se percebe um investimento claramente

articulado com os temas, os recursos e o repertório da literatura de ficção científica,

apropriados e adaptados ao imaginário nacional.

É apenas para introduzir noções de astronomia e discutir o tema das viagens espa-

ciais (ainda distantes da realidade), por exemplo, que Lobato faz menção à religiosidade

cristã dominante no Brasil dos anos 1930-1940, e mesmo assim pelo viés do sincretismo.

Eminentemente laica, a escola lobatiana raramente toca na questão das crenças espirituais

de qualquer natureza, evitando o tema da transcendência. Entretanto, em Viagem ao céu

ele fala de uma lua colonizada pelo santo católico São Jorge, e seu dragão – aproveitando-

-se de uma lenda exclusivamente brasileira e provavelmente oriunda da cultura africana,

que identifica o santo com o Ogum da mitologia iorubá, ou com o Oxóssi da Umbanda.

A tradição diz que as manchas da lua representam o milagroso santo, com seu cavalo e

sua espada, pronto para defender aqueles que buscam a sua ajuda. Assim, há um céu para

o imaginário popular, onde Tia Nastácia vive as suas próprias aventuras; e um céu para

o imaginário científico, onde as crianças se divertem enquanto estudam os fenômenos

cósmicos. Lobato cria ainda o delicioso expediente do “anjinho caído”, resgatado pelas

crianças na Via Láctea e cuidadosamente escondido no Sítio até a cicatrização de sua asa

quebrada. Provável referência a Lúcifer, o anjinho nada oculta do mal, e não deseja habitar

a Terra, retornando ao seu lugar de origem tão logo se restabelece da “fratura” – mas não

sem antes produzir um abalo sísmico no mundo ocidental, capaz de mobilizar excursões

escolares do mundo desenvolvido (a Inglaterra) ao mundo em desenvolvimento (o Sítio

brasileiro e lobatiano), numa inversão do trânsito de influências desejada pelo escritor.

A reforma da natureza é ainda mais surpreendente, ao estabelecer um diálogo direto

e presencial entre o escritor – via Emília – e o leitor mirim, que é levado como visitante,

na pessoa da personagem “Rã”, uma “fã” de Monteiro Lobato, ao universo do Sítio.

Ali as duas meninas, com o auxílio do Visconde, empreendem experimentos genéticos

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complexos e divertidos, usados como pretexto para a introdução de conceitos de química,

física e biologia, absolutamente inexistentes nos programas escolares destinados à faixa

etária dos leitores desta coleção. Também chama a atenção a ausência dos demais perso-

nagens do Sítio, que foram convidados pelos chefes de Estado da Europa para participar

da Conferência de Paz de 1945 – ano que assinala o final da Segunda Guerra Mundial

– como representantes da humanidade e do bom senso. A liberdade e a gratuidade com

que as crianças mobilizam a seu bel prazer os elementos da natureza em combinações

esdrúxulas, muitas vezes motivadas por questões egoístas e justificativas banais, também

introduz o tema da bioética na programação lobatiana, infinitamente antes de se pensar

na possibilidade de adoção de tal matéria na escola. Emília e a Rã são castigadas com um

“pito” de Dona Benta, que ao retornar de sua viagem obriga as duas a reverter suas “refor-

mas”, mostrando as consequências deletérias das intervenções científicas irresponsáveis e

oportunistas, e do perigo que os avanços da razão, sem qualquer acompanhamento moral,

representam para a sobrevivência da vida na Terra.

A chave do tamanho também focaliza a temática da guerra, familiarizando o peque-

no leitor com os conflitos internacionais e pondo-o a par das notícias mais impactantes

que circulavam na imprensa na época. Promovendo um debate sobre as causas deste

enfrentamento de proporções nunca vistas, Lobato traz à tona temas difíceis e de rara

abordagem na literatura infantil de então, como a morte, a dor da perda, o sofrimento,

o abandono, o medo e o ódio. Aproveitando-se da indignação que a guerra lhe provoca,

ele decide escrever sua própria utopia para as crianças do pós-guerra, inspirada em obras

como As viagens de Gulliver e As aventuras de Alice, na qual utiliza o “tamanho” como

uma alavanca alegórica na construção do enredo. O tamanho pode ser associado à esta-

tura, mas também à inocência da infância e à simplicidade e despojamento das intenções.

Guarda, pois, uma censura implícita à arrogância humana que procede com irresponsabi-

lidade diante das conquistas tecnológicas, utilizando sofisticadas máquinas de matar para

angariar poder e domínio sobre os mais fracos; o que nivela as superpotências, na opinião

do autor, à “estatura” da boneca Emília e da pequena Rã, em suas práticas perigosas e às

vezes perversas, embora inconscientes, de “reforma da natureza”. O índice da revolta de

Lobato pode ser avaliado pelo radicalismo da solução encontrada por ele para a contenção

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da guerra – o desligamento da “Chave do Tamanho” –, que equivale à promoção de um

quase extermínio da humanidade, “throwing the baby out with the dirty water”, como

diz o velho ditado inglês.

Um romance premonitório

Desde já asseguro uma coisa: sairá novela única no gênero. Ninguém lhe dará nenhuma importância no momento, julgando-a pura obra da imaginação fantasista. Mas um dia a humanidade se assanhará diante das previsões do escritor, e os cientistas quebrarão a cabeça no estudo de um caso, único no mundo, de profecia integral e rigorosa até os mínimos detalhes.

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Será, talvez, esse mesmo sentimento o que o mobiliza a escrever um livro ainda

muito desconhecido do público brasileiro, mesmo dos “Filhos de Lobato” e aficcionados

por sua obra; talvez o texto mais diretamente vinculado à estética da ficção científica e

o mais ligado à tradição distópica de autores como George Orwell com 1984 e Aldoux

Huxley com Admirável mundo novo: O presidente negro ou o choque das raças. Romance

americano do ano 2228. Talvez porque esse livro, escrito em três semanas no ano de 1926,

por interesses outros que não os literários, revelasse a verdadeira opinião de Lobato sobre

os Estados Unidos da América do Norte. Mas se a ideologia progressista desta nação

coincidia com a sua na época, observa-se em seus romances para crianças, escritos anos

depois, mudanças importantes, confirmando a tendência revisionista do espírito deste

autor, habituado a reformular seus próprios conceitos. Prova disso é que, ao retornar ao

Brasil após cinco anos como adido comercial da nossa embaixada nos Estados Unidos,

confessou, um tanto enigmaticamente: “Nada tenho a alterar no Choque das raças. A

América que lá pintei está absolutamente de acordo com a América que fui encontrar”.

(LOBATO, 1956, p. VIII, grifos nossos).

O retrato que faz Lobato de seu protagonista Ayrton Lobo é, talvez, o do brasileiro

mediano, eminentemente desinformado, no estilo “árvore de natal” (ver epígrafe no início

deste texto), em cuja mente as ideias se acumulam como penduricalhos presos por frágeis

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ganchinhos de arame. Como diz o professor Benson: “O senhor Ayrton, pelo que vejo e

adivinho, é um inocente. Chamo inocente ao homem comum, de educação mediana e pou-

co penetrado nos segredos da natureza, empregado do comércio, com estudos ligeiros.”

(LOBATO, 1956, p. 142). Um tipo de homem capaz de absorver ideias alheias como se

fossem suas, mudando de opinião com facilidade. Assim acontece com o julgamento que

ele faz do povo americano. Diz Ayrton: “Possuía a ingenuidade de ideias assentes sobre

o povo americano, apesar da mais absoluta ignorância da psíquica e rumos que levava

esse povo. Ideias pegadas no ar do escritório, nas palestras dos cafés, na leitura de jornais

redigidos por criaturas tão ignaras como eu, ideias que se nos grudam ao cérebro como

o pó do asfalto nos adere ao rosto nos dias de calor.” (LOBATO, 1956, p. 200). “Povo

sem ideais, o mais materialão da terra. A gente do the biggest...” – expressão que ouvira

do patrão e que repetia a esmo, causando sensação entre os colegas: esta era a ideia que

fazia deste povo.

Com a mesma facilidade, contudo, vemos Ayrton passar deste conceito depreciativo

para a mais enaltecedora opinião dos princípios eugenistas e megalomaníacos que o

professor Benson atribui à sociedade norteamericana, e que o “inocente” absorve em-

basbacado. Há, provavelmente, uma crítica lobatiana à vulnerabilidade do sujeito sem

suficiente “estofo” de estudo e informação de qualidade, sem o desenvolvimento de um

senso ético e de habilidades de raciocínio. Seria contra esse “inocente” que Lobato em-

preenderia, talvez, o projeto do “Sítio”, de formação e informação, mas, sobretudo, de

conscientização, percepção crítica e instrumentalização das crianças para a capacidade

argumentativa –, e não apenas para a reprodução de conceitos, imposta e controlada à

força, que era como se estruturava a escola brasileira no início do século XX.

Como O presidente negro foi escrito no período entre guerras, é provável que Lobato

tenha reavaliado o que escreveu ao saber das atrocidades ocorridas logo a seguir. Pode-se

dizer que ele brincou irresponsavelmente com fogo, movido apenas por uma ambição

financeira. Se foi leviano uma vez, dificilmente o seria de novo. Em 10 de novembro de

1947, ele assinou o prefácio para o livro Afinal, quem somos?, do esquecido Pedro Granja,

onde dizia: “Afinal, quem somos? É o título da obra, e já aí sofro o primeiro esbarro. Eu

poria, “Afinal, que somos? O ‘quem’ da primeira pergunta indica que somos gente – mas

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seremos gente, Pedro Granja? Os horrores de Dachau e Buchenwald me deixam incerto.”2

Também o incômodo antifeminismo do enredo – no qual a feroz candidata Miss Evelyn

Astor acaba sucumbindo ao candidato branco masculino, por quem se apaixona – é con-

trabalançado pela presença de Miss Jane (filha do cientista, o professor Benson), a quem

o autor repassa a autoridade sobre o relato, e sobre o conhecimento de todas as profecias.

Mas Lobato tentava, à época, internacionalizar seus negócios editoriais, abrindo

a “Tupy Company” fora do país, com a qual pretendia ganhar muito dinheiro. O carro

chefe da empreitada seria o tal livro através do qual ele tencionava provocar um abalo

mercadológico, produzindo uma espécie de best-seller para as massas. Trata-se de um

livro assustadoramente profético, na precisão com que antecipa o advento, entre outras

coisas, da internet3, da política do false flag4 e, sobretudo – na luta travada por Miss

Evelyn contra Jim Roy, o candidato negro – a disputa de Hillary Clinton e Barack Obama

pela candidatura à presidência pelo partido Democrata em 20085.

Entretanto, a recepção da proposta foi muito negativa, principalmente pela temática

francamente eugenista do livro. Além de ser um romance de tese lento e filosófico, sem

a ação tão ao gosto do público massificado, tocava descaradamente em feridas que não

2 Apud Ricardo de Mattos, in: O presidente negro de Monteiro Lobato. Disponível em: http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=2578&titulo=O_Presidente_Negro,_de_Monteiro_Lobato3 “Voltará o homem a andar a pé. O rádio-transporte tornará inútil o corre-corre atual. Em vez de ir todos os dias o empregado ao escritório e voltar pendurado num bonde que desliza sobre barulhentas rodas de aço, fará ele o seu serviço em casa e o radiará para o escritório. Em suma: trabalhar-se-á à distância. ... Voltará o homem a caminhar a pé e as ruas se tornarão uma delícia.”. (LOBATO, 1956, p. 175)4 “Operação de bandeira falsa” (False flag) são operações conduzidas por governos, corporações, outras organizações e até mesmo indivíduos que aparentam ser realizadas pelo inimigo, de modo a tirar partido das consequências resultantes. O nome é retirado do conceito militar de utilizar bandeiras do inimigo para confundi-lo. Operações de bandeira falsa foram já realizadas tanto em tempos de guerra como em tempo de paz.5 A eleição presidencial nos Estados Unidos em 2008 foi a 56ª eleição presidencial quadrienal no país, realizada em 4 de novembro de 2008. O senador Barack Obama e seu candidato a vice, o senador Joe Biden, ambos do Partido Democrata, derrotaram os republicanos John McCain e sua candidata a vice Sarah Palin. McCain foi escolhido o candidato republicano em março de 2008, enquanto que a candidatura democrata foi marcada por uma disputa acirrada entre Obama e a senadora Hillary Clinton, sendo Obama escolhido apenas no início de junho. As campanhas focaram bastante na Guerra do Iraque e na impopularidade do então presidente George W. Bush, porém os candidatos também se centraram em questões internas, que ganhavam um destaque cada vez maior a medida que se iniciava a grande recessão devido à crise financeira de 2008. A realidade antecipou-se à ficção de Lobato, elegendo o negro Barack Obama como o 44º presidente dos Estados Unidos. Na ficção lobatiana, um negro só ascenderia a esta posição como o presidente n. 88º: o primeiro e o último.

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interessavam a ninguém serem expostas. Não contava Lobato que o seu olhar de lince, que

tão fundo avançou na percepção dos jogos de poder daquele país, de seus preconceitos e

agendas mais inconfessáveis, desnudando-os a frio6 – como se ele mesmo estivesse mi-

rando o futuro com o seu personagem, o professor Benson, do interior do “Porviroscópio”

de sua invenção –, representasse para os locais uma imensa “gafe”. Tal foi o preço de ser

um livre-pensador, emiliano e desbocado. “Um jeca nos vernissages”, como o define

Tadeu Chiarelli em sua obra sobre o Lobato crítico de arte.

Capas das primeiras edições do romance de Monteiro Lobato

Naquela época, porém, Lobato não enxergava nada além do seu sincero entusiasmo

pela cultura norteamericana, tecendo elogios rasgados, entre tantas outras coisas que o

deslumbravam – o metrô, os eletrodomésticos, as autoestradas –, à estética cinematográ-

fica, na qual vê um avanço indiscutível. Apesar de seu encantamento confesso, Lobato

não consegue imprimir ao seu próprio texto o ritmo da velocidade que admira na sétima

arte. Seu livro é um grande dinossauro que se arrasta, com uma história de amor fria e

sem graça; distante séculos do “Shakespeare dos beijos” que é o ator John Barrymoore,

na sua opinião, no filme A fera do mar – uma adaptação do Moby Dick, de Melville, que

o deixa sem fôlego:

6 Uma nota publicada no jornal A Manhã do dia 3 de setembro de 1926, anunciava a chegada nas páginas impressas do periódico: “É um hino à Eugenia, às leis espartanas, e é um brado d’armas em prol do princípio mágico que está fazendo da América do Norte um mundo dentro do mundo – A Eficiência”.

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O cinema nasceu em França, mais ou menos do acaso, como quase todas as invenções. Mas a França, já artrítica e esclerosada, velho galo descrente da influência do seu canto no nascer do sol, não soube ver o que tinha em mãos. Considerou-o teatro, primeiro erro; e considerou-o pela voz dos seus blasés inferior ao teatro – segundo erro. Cinema não é teatro. E se não é teatro, não pode ser inferior nem superior ao teatro, visto como não se comparam coisas heterogêneas. O cinema é o cinema – uma coisa nova no mundo. Então entra em cena o yankee. Toma o cinema, examina-o e com deslumbramento vê que era a grande arte nova, de possibilidades formidavelmente grandes para interessar o ardor e o vigor da sua pujança. E dá-se a ele. ... Para o apogeu do cinema americano não surgiria um Mecenas coroado. O Mecenas seria a humanidade. E é nesta gigantesca base industrial que a arte americana se desenvolve, num progredir fantástico, deixando-nos tontos ao imaginar o que virá a ser um dia, quando se libertar totalmente do monstro chamado Censura. (LOBATO, 1956, p. 118)

Tendo, contudo, enviado os originais de seu livro, vertidos em inglês, para a agência

literária Palmer, com sede em Hollywood, no final de 1927, Lobato recebe a seguinte

resposta do editor-chefe William David Bell:

Infelizmente o enredo central é baseado num assunto particularmente difícil de se abordar neste país, porque ele irá, certamente, acender o tipo mais amargo de sectarismo e, por esta razão, os editores são invariavelmente avessos à ideia de apresentá-lo ao público leitor. Nem mesmo o fato do ocorrido estar localizado 300 anos no futuro iria amenizá-lo na cabeça dos leitores negros. Estivesse o senhor lidando com a invasão de uma nação estrangeira, ou raça, a reação seria bem diferente; mas o negro é um cidadão americano, uma parte integrante da vida nacional, e sugerir seu extermínio por meio da sabedoria e da capacidade da raça branca levaria a uma dissensão tão violenta no espírito dos leitores quanto faria um conflito entre dois partidos políticos, ou duas religiões, em que um extirparia o outro. (BALL, apud AZEVEDO, CAMARGOS, SACCHETTA, 2000, p. 116)

Tal decepção não o demove ainda da empreitada; antes acirra o seu instinto editorial

predatório; tão semelhante, já, das conhecidas estratégias de marketing hoje tão comuns.

Lobato planeja então fazer alterações (que mais tarde irá recusar), visando a torná-lo mais

apetecível ao público-alvo, sem se importar com o caráter deliberadamente escandaloso

do texto. Diz ele:

Um escândalo literário equivale no mínimo a 2.000.000 dólares para o autor, e com essa dose de fertilizante não há ovo que não grele. Esse ovo de escândalo foi recusado por cinco editores conservadores e amigos de

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obras bem comportadas, mas acaba de encher de entusiasmo um editor judeu que quer que eu o refaça e ponha mais matéria de exasperação. Penso como ele e estou com ideias de enxertar um capítulo no qual conte a guerra de onde resultou a conquista pelos Estados Unidos do México e toda essa infecção spanish da América Central. O meu judeu acha que com isso até uma proibição policial obteríamos – o que vale um milhão de dólares, um livro proibido aqui sai na Inglaterra e entra boothegued com o whisky e outras implicâncias dos puritanos. (LOBATO, apud LAJOLO, 200, p. 69)

Com ou sem alterações, o romance indigesto não chega a ser publicado em inglês, e

seu autor não angaria os lucros almejados. Entretanto, deixa registrado para as gerações

vindouras antecipações realmente visionárias, como a do incrível Porviroscópio, máquina

capaz de realizar cortes transversais – “anatômicos” – do futuro: lâminas de tempo a

serem avaliadas no microscópio do presente. Uma destas lâminas – a mais contundente, a

da Eugenia, pela premência do que já antecipava como um temerário futuro próximo, em

franco andamento, não tanto contra os negros nos Estados Unidos, mas contra os judeus

na Alemanha de sua época – falava claramente da ameaça do extermínio de uma raça.

Deste expediente todos seriam cúmplices: os algozes, com seu cinismo frio e calculista,

capazes de reconhecer o valor de seus inimigos, e de gozar à visão de destruí-los quanto

mais fortes eles se apresentassem aos seus avanços; e as vítimas, com a perda de seu

orgulho, capazes de ceder gradualmente à política de desvalorização de suas próprias

identidades. As perdas se estendem, em última instância, à humanidade como um todo,

que nada angaria com extremismos e sectarismos.

Por isso, para Lobato, o golpe fatal jamais atingiria o seu fim se não contasse com a

colaboração de todos. Se os negros não sucumbissem à sedução da aparência, aspirando

a uma semelhança artificial com o dominador, não teriam se submetido, em massa, ao

tratamento com os “raios Omega”. Lobato mostra como, nas guerras, cada adversário

trabalha traiçoeiramente com as fraquezas de seu oponente. A única salvação, como

alertava Sócrates, é o duro e implacável conhecimento de si mesmo. Assim, o revolu-

cionário produto alisador de cabelos, que tanto sucesso fizera no país, continha uma

substância esterilizadora. Até o forte Jim Roy, o presidente negro, sucumbira ao apelo da

propaganda. Na shoá lobatiana, a pior arma foi a vaidade, a tola vaidade humana. Resta o

discurso cruel do vencedor, que soa como um verdadeiro alerta à infinita capacidade de

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autossabotagem dos seres humanos, capaz de levar qualquer um, facilmente, ao engano,

independente de sua etnia, raça, credo ou classe social. Basta um pequeno gesto equivo-

cado. Nas guerras, um só deslize é capaz de destruir a mais sacrificada, longa e onerosa

história de aprendizado:

- Ninguém admira mais o líder negro do que eu – prosseguiu Kerlog. Vejo nele um avatar de Lincoln, o sonhador de um sonho imenso de justiça. O homem que há em Kerlog rende ao homem que há em Jim Roy todas as homenagens. Mas o branco que há em Kerlog vem friamente assassinar com a palavra que mata o negro que há em Jim Roy...- Não creio que o Presidente Kerlog possua a palavra que mata. O peito de Jim tem couraças por dentro. Quatro séculos de martírio nas torturas físicas da escravidão e nas torturas morais do pária enfibram a alma de quem resume cem milhões de irmãos. O peito de Jim traz couraças de rinoceronte por dentro. Couraças à prova das palavras que matam.- Trazia... emendou mansamente o líder louro.

(LOBATO, 1956, p. 315)

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Ermelinda Maria Araújo Ferreira

Referências

AZEVEDO, Carmem Lúcia; CAMARGOS, Marcia; SACCHETTA, Vladimir. Monteiro Lobato, furacão na Botocúndia. São Paulo: Senac, 2000.

CHIARELLI, Tadeu. Um jeca nos vernissages. São Paulo: Edusp, 1995.

LAJOLO, Marisa. Monteiro Lobato, um brasileiro sob medida. São Paulo: Moderna, 2000.

LOBATO, Monteiro. A onda verde e o presidente negro. São Paulo: Brasiliense, 1956.

_____. Viagem ao céu (1932), in: Sítio do Picapau Amarelo, obra infantil completa. São Paulo: Brasiliense, s/d.

_____. A reforma da natureza (1941), in: Sítio do Picapau Amarelo, obra infantil completa. São Paulo: Brasiliense, s/d.

_____. A chave do tamanho (1942), in: Sítio do Picapau Amarelo, obra infantil completa. São Paulo: Brasiliense, s/d.