“Mulher nova, bonita e carinhosa faz o homem gemer sem sentir dor”: as
representações da mulher nas canções de Amelinha
Daniel Lopes Saraiva1
A explosão da música nordestina
A década de 1960 foi marcada pelos grandes festivais. As duas maiores emissoras
de televisão, Globo e Record, tinham seus festivais, a primeira realizava o Festival
Internacional da Canção (FIC), e a segunda o Festival da Record. Esses são os dois
festivais que ganham mais destaque, entretanto a onda de festivais se espalhou por todo o
país e revelou novos compositores e intérpretes.
Surgiram, então, festivais em diversas regiões do Brasil: Califórnia da Canção, em
Uruguaiana-RS, Festival da Música Popular Brasileira de Juiz de Fora, em Juiz de Fora-
MG e outros tantos (SEVERIANO e MELLO, 2006, pp. 178-179)
Esses festivais regionais lançaram muitos artistas, mas as possibilidades de
crescimento na carreira artística eram pouco prováveis em cidades que não fossem o Rio
de Janeiro ou São Paulo. Portanto, um artista que quisesse fazer uma carreira na música,
teria que mudar para uma dessas cidades.
Entre o fim da década de 1960 e o início da década de 1970, chegam aos grandes
centros culturais: Fagner, Belchior, Fausto Nilo, Cirino, Ednardo, Ricardo Bezerra e
Amelinha, vindos do Ceará; Clodo, Climério, Clésio e Jorge Mello, do Piauí; Terezinha de
Jesus do Rio Grande do Norte; Geraldo Azevedo e Alceu Valença, de Pernambuco; Elba
Ramalho e Zé Ramalho, da Paraíba. A lista de nomes é extensa, o que impossibilita citar
todos. Essa contribuição dos artistas nordestinos para a Música Brasileira tem espaço
discreto em um dos capítulos do livro Uma História de Música Popular Brasileira, do
pesquisador musical Jairo Severiano (SEVERIANO, 2008, p. 422). Já Luiz Tatit diz que a
década de (19)70 apresentou poucas revelações musicais, citando os Novos Baianos, Raul
Seixas, Djavan e Secos e Molhados como as honrosas exceções da década perdida da
1 Doutorando pelo programa de pós-graduação em História, da Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC).
Vinculado ao laboratório de Imagem e Som (LIS). Bolsista PROMOP.
música brasileira (TATIT,2005,p.122)2. Discurso que exclui uma gama enorme de artistas,
como os anteriormente citados, e que corrobora com uma exclusão de determinados
cantores da “linha evolutiva da música brasileira”.
Até então, os nordestinos mais conhecidos na Música Popular Brasileira eram o
paraibano Jackson do Pandeiro, o maranhense João do Vale e, o mais famoso deles, o
pernambucano Luiz Gonzaga. Os três de origem humilde, saíram de suas terras para tentar
a vida na cidade grande. Os três cantavam um Nordeste sofrido em função da seca e dos
problemas sociais lá encontrados. A obra desses artistas vai ao encontro da “Invenção do
Nordeste”. Para o Professor Durval Muniz de Albuquerque:
O Nordeste é uma produção imagético-discursiva formada a partir de uma
sensibilidade cada vez mais específica, gestada historicamente, em relação a uma
dada área do país.E é tal a consistência desta formulação discursiva e imagética
que dificulta, até hoje, a produção de uma nova configuração de “verdades”
sobre esse espaço. (ALBUQUERQUE, 2011, p. 61).
Ou seja, geralmente é ressaltado na construção dessa imagem alguns poucos
pontos: a seca; problemas sociais; cangaço; beatismo; coronelismo; o Nordeste como um
local sem lei, de povo simples e atraso tecnológico e cultural, quando comparado ao sul do
país (ALBUQUERQUE, 2011, p. 61).
O gênero musical de Luiz Gonzaga, João do Vale, Jackson do Pandeiro e os outros
artistas era denominado Regional, que até início da década de 1970 era marginalizado pelo
mercado.
Luiz Gonzaga, inspirado no acordeonista Pedro Raimundo, gaúcho que usava
bombacha, botas, guaiaca e chicote nas apresentações, resolve usar vestes que remeteriam
à imagem do Nordeste. Adota, então, em seu visual, o chapéu de couro, que remeteria à
imagem do cangaceiro Lampião (DREYFUS, 1996, p. 134). O que Gonzaga talvez não
atentasse é que ele estava contribuindo para a formação de um “estereótipo’ do nordestino.
Dominguinhos, que tinha grande admiração pelo cantor, e alguns diziam ser seu substituto,
adotou também o chapéu de couro durante sua carreira.
Luiz Gonzaga seria uma das grandes referências para a nova geração de cantores
vindos da região Nordeste. Entretanto, as vestes de Gonzaga não seriam adotadas pelos
2 O autor faz uma pequena menção ao nome de Fagner, na parte em que destaca nomes de artistas que tinham potencial
para fundar um estilo.
artistas que desembarcam no Rio e em São Paulo na década de 1970. Nessa mesma época a
indústria musical passava por um esvaziamento, a censura estava cada vez mais presente.
Grande parte dos compositores renomados estavam fora do país, haviam sido exilados ou
se autoexilaram devido às limitações de liberdade impingidas após o AI-5 (Ato
Institucional número cinco), em 1968 (NAPOLITANO, 2004, p. 81).Parece então haver
mais espaço para o surgimento de novos artistas, e é nesse contexto que esses artistas
começam a ganhar espaço na mídia.
Os novos cantores e compositores participam também de Festivais que, mesmo não
recebendo a mesma mídia de anos anteriores, atraiam olhares não só do público como da
crítica musical em busca de novas estrelas. A televisão ganhava cada vez mais destaque, e
se consolida em 1970 como carro-chefe da indústria cultural brasileira (HAMBURGER,
2003, p. 47). Era, então, necessário estar nessa vitrine para alcançar o sucesso.
Paralelo ao crescimento da televisão a indústria fonográfica crescia no Brasil, o
número de consumidores aumentava e por isso era necessário aumentar a variedade de
produtos. Com isso, as gravadoras precisavam investir em novos talentos. O faturamento
da indústria fonográfica cresce 1.375% entre 1970 e 1976 (ORTIZ, 1988, p. 127). Portanto,
é nesse contexto que esses artistas conseguem gravar seus primeiros discos.
Tabela 1 – Crescimento da indústria fonográfica entre 1972 e 1979
Ano LPs Compacto
Simples
Compacto
Duplo Fitas
72 11.700 9.900 2.500 1.000
73 15.000 10.100 3.200 1.900
74 16.000 8.200 3.500 2.800
75 16.900 8.100 5.000 3.900
76 24.000 10.300 7.100 6.800
79 39.252 12.613 5.889 8.481
Fonte: ORTIZ, 1988, p. 127.
Na tabela acima podemos observar o aumento da venda de diversos produtos do
mercado fonográfico, a venda de toca-discos também crescia, entre 1967 e 1980 o aumento
foi de 813% (ORTIZ, 1988, p. 127). Junto com o aumento da venda de discos e fitas,
aumenta também a contratação de novos artistas pelas gravadoras, e é nesse contexto que
os artistas vindos de diversas regiões ganham a oportunidade de gravar e consolidar uma
carreira artística.
Os artistas oriundos do Nordeste trazem uma nova roupagem para a MPB, eles têm
grande influência de cantores já consagrados como Luiz Gonzaga, mas com um
diferencial: a trajetória de vida. A maioria desses artistas pertenciam à classe média
urbana, quase todos com formação universitária (PIMENTEL, 1995, p. 103). Eles
cantavam seu cotidiano, um Nordeste mais urbano, diferente daquele cantado por Gonzaga
e João do Vale, um nordeste jovem, mais moderno e não tão diferente do “sul-maravilha”.
Fagner, que lançou seu primeiro LP em 1973, vinha trilhando um caminho de
ascensão, em 1976 ele grava seu terceiro LP, Raimundo Fagner, pouco tempo depois
Fagner foi convidado para ser diretor artístico da gravadora, sendo responsável pelo selo
Epic, de grande prestigio nos Estados Unidos, mas ainda não conhecido no Brasil.
Foi a partir da contratação de Fagner que diversos artistas da região Nordeste
tiveram a oportunidade de gravar seus discos, Amelinha, que mesmo não tendo gravado
pelo Epic, era contratada da CBS, mesmo selo de Fagner, que fez a direção musical de
alguns de seus discos. A partir desse quadro desenhado, abordaremos alguns aspectos da
carreira da artista, observando a forma com que ela trabalha com a questão do seu lugar de
origem e como a mídia e gravadora reforçava essa questão na sua carreira, em segundo a
questão do ser cantora, mãe, mulher, analisando de que forma ela olhava isso na carreira,
nas canções e na vida.
Trajetórias, memórias e tempo presente
As pesquisas na área de História do Tempo Presente têm ganhado cada vez mais
destaque, historiadores são chamados para opinar sobre contextos históricos em diferentes
meios, como: tribunais, televisão e outros locais no qual a história cada vez mais ganha
destaque.
A História Oral, que há um tempo já vinha sendo feita por historiadores de diversos
países, ganha mais força com as pesquisas em História do Tempo Presente.
Para Henry Rousso, as fontes orais estavam já na origem na História do Tempo
Presente, uma vez que o recuo menor de tempo possibilita entrevistar testemunhas vivas
que presenciaram determinado acontecimento. Para ele, trabalhar com as fontes orais e
seus obstáculos: “[...] foi e é uma das coisas mais apaixonantes com que me deparei, ou
seja, confrontar-se com “a palavra” de outra pessoa” (ROUSSO, 2009, p. 213). Abordando
também a História do Tempo Presente, o uso de fontes orais, Marieta Ferreira ressalta que
o uso dessas fontes não é um ponto pacífico e, muitas vezes, é avaliado de forma negativa;
em seu texto a autora disserta sobre a trajetória da História Oral e da Memória, ressaltando
ainda a importância dessas fontes, mesmo que, muitas vezes, desacreditadas por pares da
academia (FERREIRA, 2002).
Para Luisa Passerine, a memória nas histórias de vida, que incluem relatos de vida
pessoal e experiência histórica, é que são particularmente úteis para documentar
continuidades de vários tipos entre o período precedente e as escolhas feitas pelas
narradoras de sua vida (PASSERINE,2011, p. 56).
Já para Daphne Patai, ao se trabalhar com memória e entrevistas, o passado é
inevitavelmente levado ao presente. E a história de vida de alguém pode tornar-se um
componente essencial de identidade em dado momento. A memória, em seu imenso
depósito, evoca diferentes fatos, episódios e lembranças para diferentes entrevistas,
indagado por outro interlocutor, ou pelo mesmo, em momentos distintos, o entrevistado
pode evocar outras lembranças, fazendo com que cada entrevista seja única(PATAI,2011,
p. 30).
Partindo da metodologia exposta por esses autores, trabalharemos com a memória e
trajetória da cantora Amelinha (1950), nascida em Fortaleza, a intérprete chegou ao eixo
Rio-São Paulo na década de 1970, em princípio seguiu outras carreiras, mas o amor pela
música e a proximidade dos conterrâneos cearenses que já faziam carreira no “sul
maravilha” fez com que Amelinha seguisse a carreira artística. A cantora, que já vinha
fazendo shows, grava seu primeiro LP intitulado Flor da Paisagem, em 1977. No período
analisado pela pesquisa a cantora grava oito discos. Sempre conciliando a vida de cantora
com a de mãe, por isso as gravações de discos seguem períodos espaçados.
O lugar de origem e o “Sul Maravilha”
Como já ressaltado anteriormente, seria impossível fazer carreira a nível nacional
nas décadas de 1970 e 1980 se não morasse em um dos grandes centros urbanos, nesse
caso Rio de Janeiro e São Paulo. Lá estavam localizadas as grandes mídias, redes de
televisão, jornais que circulavam a nível nacional. Nessas grandes cidades era onde
estavam instaladas as gravadoras, em grande parte multinacionais, que tinham sede no
Brasil. Portanto, se o artista quisesse seguir carreira de dimensão nacional teria que estar
em uma dessas duas cidades.
Por esse motivo artistas de diversas partes do país migram para essas regiões em
busca da sonhada carreira artística. Foi o caso dos cantores oriundos da região Nordeste.
Entretanto, como colocado anteriormente, esses artistas sofrem com uma série de barreiras,
suas canções são, na maioria das vezes, classificadas como regional, e não como MPB
(usando a sigla como gênero).
A questão da regionalidade foi sempre pauta nas discussões sobre música popular.
Para a antropóloga Mary Pimentel:
O discurso regionalista, que é um discurso performativo porque instruído como
argumento de autoridade, tem em vista impor como legítima uma nova definição
de fronteiras quer se quer conhecida e reconhecida. A eficácia do discurso,
entretanto, não depende apenas do reconhecimento consentido àquele que o
detém, mas depende e está fundamentado na objetividade do grupo a que ele se
dirige, isto é, no reconhecimento e na crença que lhe concedem os membros
desse grupo.(PIMENTEL,1900,p.146-147).
Pimentel ainda afirma que a identidade que se quer legitimar pelo regionalismo é a
do consenso, uma tentativa de homogeneizar os costumes.
Também sobre o regionalismo e sobre os discursos a respeito da região Nordeste,
Durval Albuquerque diz:
A instituição sociológica e histórica de Nordeste não é feita apenas por
intelectuais, não nasce apenas de um discurso para si, mas se elabora a partir de
um discurso sobre e do seu outro, o Sul. O Nordeste é uma invenção não apenas
nortista, mas em grande parte, uma invenção do Sul, de seus intelectuais que
disputam com os intelectuais nortistas a hegemonia no interior do discurso
histórico e sociológico.(ALBUQUERQUE,2011,p.117).
Portanto, podemos observar que a questão regional é uma tensão de formas, muitas
vezes atribuída pelo outro, e não pelos seus pares. A questão regional tem grande
influência pelo motivo das migrações. Pois a partir da década de 1940, o Sul se torna uma
miragem de vida melhor para os Nordestinos pobres, com a economia do Nordeste em
crise e a expansão das fábricas no Sul do país, a migração adquire, muitas vezes, um
caráter libertador para uma massa de homens pobres (ALBUQUERUQUE,2011,p.172).
E é essa imagem do migrante Nordestino que vai ficar cristalizada na imagem da
grande mídia nacional. A cantora Amelinha era oriunda da região Nordeste, entretanto essa
imagem de migrante estereotipada não se adequaria à cantora, nascida em Fortaleza e de
família de classe média a cantora não enfrentou o mesmo percurso de Luiz Gonzaga,
entretanto sua imagem é, por diversas vezes, atrelada à do migrante nordestino.
A chamada da reportagem do jornal O Globo sobre o lançamento do disco que
lançaria Amelinha, em 1977, tem a seguinte frase em destaque: “O Pessoal do Ceará
apresenta Amelinha que não conhece o sertão”, a reportagem frisa a relação de amizade da
cantora com os também cearenses Fagner e Ednardo, que já tinham discos gravados e
destaque na mídia. Mas frisa que a cantora nunca ouviu um aboio3, ainda ressalta algumas
partes da entrevista da cantora, na qual enfatiza que sua música tende a universalizar, mas
que ainda devia conhecer o interior do Nordeste. (O GLOBO, 1977, p.37).
A matéria trata com certo espanto o fato da artista não conhecer o interior do
Nordeste, uma vez que a imagem que a grande mídia passava era de um Nordeste de
mazelas, sertanejo. E a cantora havia nascido e sido criada no meio urbano, o que não
condizia com a típica “imagem do Nordestino”.
Já em entrevista ao jornal O Globo, no ano de 1982, a cantora fala nos diferentes
“Nordestes”, “Eu sou nordestina da capital, do litoral, o que é muito diferente do
nordestino do sertão como o Zé(Ramalho) é. Ele tem uma imensidade das coisas que eu
desconhecia até encontrá-lo (BAHIANA,1982,p.3). Já em 1989, novamente no jornal O
Globo, Ana Lúcia Azevedo diz “Amelinha demorou 14 anos para gravar algo diferente do
som nordestino. Valeu a pena. O show tem lotado o Um Deux
Tois...”(AZEVEDO,1989,p.27).
Partindo das duas reportagens supracitadas podemos observar, em primeiro lugar, a
cantora tentando explicitar as diferentes imagens de Nordeste, uma vez que a grande mídia
homogeneizava esse estereótipo. Já na segunda, é possível perceber que mesmo a cantora
3 Canto do vaqueiro para conduzir a boiada. Típico do Nordeste brasileiro
tendo frisado em início da carreira que não conhecia o interior nordestino e que sua obra
tendia a universalizar, foi vinculada com o som nordestino, o que liga suas gravações com
um gênero regional e não com a tradicional MPB. Ao vincular a cantora apenas a canções
de temáticas nordestinas, a jornalista desconsidera uma parte da obra da artista, que gravou
compositores oriundos de diversas partes do país, como: Walter Franco(SP),
Gonzaguinha(RJ), Lô Borges(MG), Sueli Costa(MG) entre outros. Portanto, mesmo que a
grande maioria dos compositores gravados pela intérprete sejam oriundos da região
Nordeste, não é possível fazer a generalização colocada pela jornalista.
Sobre a questão de ser nascida no Nordeste a cantora diz:
[...]Agora essa parte aí da nordestinidade e também é, isso, meu jeito de ter sido
criada também, fez com que eu percebesse um pouco disso nas coisas que as
pessoas diziam, eu percebia embutido ali um preconceito sobre nordestino, uma
reserva, mas nem ligava.[...]
[...]“você também tem sotaque, todo mundo tem sotaque da sua terra entendeu”,
mas eu sempre senti isso como se fosse uma coisa a parte, uma música a parte,
música nordestina, é a cantora nordestina, ninguém diz que o outro sudestino,
que é do sudeste.[...]
[...]Cheguei em lugares que diziam assim, “ah minha empregada adora sua
música”, aqui em Niterói já ouvi isso em rodas, altas rodas assim,vai me
apresentar, “apresentar aqui Amelinha”, ai a mulher diz assim, “É minha
empregada gosta muito das suas músicas”, ela conhece minhas músicas
entendeu, quer dizer, ela devia estar falando bobagem, não tinha problema
nenhum a empregada dela gostar porque eu tenho um público de todas as
profissões.[...](AMELINHA,2013).
Podemos observar nos trechos citados que a cantora, por diversas vezes, enfrentou
o preconceito por ser oriunda da região Nordeste. No último trecho podemos perceber que
o preconceito vinha em grande parte das altas camadas da sociedade, que relacionavam as
canções a um público específico, nesse caso as empregadas domésticas ou seja a classe
menos abastada.
As músicas cantadas pela intérprete atingia diversas camadas da população, mas o
fato de ser vinculada a uma região mostra a tensão que envolvia Nordeste/Sudeste, uma
vez que como a própria cantora enfatiza não existe cantor “sudestino”.
A cantora, que foi recordista de venda em compacto simples em 1980 com 511 mil
vendidos, foi presença garantida em diversos programas de televisão
(LENCELLOTTI,1981,p.35).
Como caso específico vamos analisar o clipe gravado para o programa dominical
Fantástico. Lançado no ano de 1979, o clipe da música Frevo Mulher é ambientado em um
lugar de vegetação árida, onde é possível observar cactos e uma vegetação rasteira. De um
lado a cantora com vestido colorido esvoaçante e tiara na cabeça canta em meio à
vegetação, em outro momento é possível ver uma casa simples, na qual várias pessoas
esperam a chegada de um caminhão, do qual entram na carroceria. Deixando claro uma
alusão aos retirantes nordestinos e ao pau-de-arara45.
Portanto, mesmo a cantora deixando claro sua origem urbana, gravadora e Rede
Globo fizeram outra concepção para o clipe. Segundo Durval Albuquerque o “romance de
trinta” e a sociologia tradicionalista e regionalista contribuíram na cristalização de “uma
imagem típica da região”. Essas imagens exercem posteriormente grande influência no
campo do cinema e televisão. Contribuindo para uma formação de arquivos de imagens-
símbolo da região. São essas imagens que são evocadas na concepção do
clipe.(ALBUQUERQUE,2011,p.165).
Fica evidente a reafirmação de um estereótipo do migrante Nordestino pela mídia e
gravadora, tentando associar a imagem de um artista a determinados ícones de uma região.
A cantora nunca negou sua origem, valorizando seu estado e região por diversas vezes em
seu repertório e entrevistas, entretanto deixa explícita que por diversas vezes os críticos
veem sua obra de forma reduzida, nesse caso o regional seria usado de forma pejorativa,
para reforçar que não seria nacional.
Após abordar a questão regionalista na obra da artista, vamos analisar a questão do
gênero em suas canções e trajetórias. Cantando música com temas da liberdade feminina a
cantora é referência da emancipação da mulher. E é esse tema abordado no próximo tópico.
Mãe, Mulher, Cantora
As mulheres brasileiras pertencentes à classe média, nascidas na década de 1940
eram educadas, entre os anos de 1950 e 1960, para a virgindade, o casamento
(indissolúvel), a maternidade, a família, o silêncio e a passividade. Esse era o ideal da
4 Meio de transporte irregular muito usado no Nordeste. Um caminhão utilizado para transportar pessoas 5https://www.youtube.com/watch?v=K_TsnueV2mU Visitado em 22/05/2016
mulher. Entretanto, diversas mulheres destoaram desse padrão, e por isso atraíam olhares
de preconceito da sociedade. Essas transgressoras abriram caminhos próprios na sociedade,
sem contar com grandes referências anteriores tanto na trajetória profissional quanto na
pessoal. (RAGO, 2013, p. 35).
Nessas mesmas décadas, mais mulheres chegavam ao ensino universitário. Havia
uma mudança de pensamento em relação à mulher no ensino superior, especificamente nas
cidades grandes. O êxodo rural gerou cidades mais povoadas que aproximavam mais
pessoas e estilos de vida, acelerando as mudanças de comportamento. O maior acesso das
mulheres a empregos remunerados proporcionaria maior independência delas. (PISKY,
2012, p. 514).
A historiadora Margareth Rago considera a emergência dessa geração como um
“acontecimento”, isto é, forças que irrompem e alteram a história. Para ela, o processo de
modernização que o país passava, necessitando de mão de obra qualificada, e a luta contra
a ditadura fizeram com que as mulheres saíssem dos papeis de coadjuvantes. (RAGO,
2013, p. 61).
Ao fim da década de 1970 a mídia televisiva também trabalhava na ressignificação
do espaço da mulher. Em 1979 a Rede Globo, já a maior emissora do país, lançou o seriado
Malu Mulher. No programa, Regina Duarte vivia a protagonista, uma mulher separada que
tinha uma filha, ainda um tabu para a época. Outros temas polêmicos foram abordados
como orgasmo e pílula anticoncepcional, temas raramente com destaques na
televisão(RAMOS,2007, p. 180).
Na música popular as coisas começam a mudar também na década de 1970,
segundo o jornalista Rodrigo Faour, na década referida, o vocabulário da MPB foi ficando
menos sisudo. Já na década de 1980 era mais comum ver as palavras “gay”, “aborto”,
“orgasmo”, entre outros temas anteriormente “proibidos”.(FAOUR, 2006,p.201).
A música de Amelinha traz essa inovação de vocabulário, a intérprete por diversas
vezes canta músicas que poderiam ser consideradas um avanço, pois falam da força da
mulher, do prazer feminino, assuntos que ainda eram tabus.
No disco Porta Secreta, de 1980, Amelinha canta a canção Gemedeira, composta
por Robertinho do Recife e Capinam, que narra nitidamente uma relação sexual, como na
seguinte estrofe “Gemedeira é que nem beijo/ Começou custa parar/ Ela olhou pediu um
xote/ Pra gente bastou te amar”. A canção usa da ambiguidade presente já nas canções de
Luiz Gonzaga e Marinês.
Já em 1982 a artista lança a canção Mulher Nova, Bonita e Carinhosa Faz o
Homem Gemer sem Sentir Dor. A música que dá título ao álbum, composta por Otacílio
Batista e Zé Ramalho, tem a seguinte letra:
Numa luta de gregos e troianos
Por Helena, a mulher de Menelau
Conta a história de um cavalo de pau
Terminava uma guerra de dez anos
Menelau, o maior dos espartanos
Venceu Páris, o grande sedutor
Humilhando a família de Heitor
Em defesa da honra caprichosa
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor
Alexandre figura desumana
Fundador da famosa Alexandria
Conquistava na Grécia e destruía
Quase toda a população Tebana
A beleza atrativa de Roxana
Dominava o maior conquistador
E depois de vencê-la, o vencedor
Entregou-se à pagã mais que formosa
Mulher nova bonita e carinhosa
Faz um homem gemer sem sentir dor
A mulher tem na face dois brilhantes
Condutores fiéis do seu destino
Quem não ama o sorriso feminino
Desconhece a poesia de Cervantes
A bravura dos grandes navegantes
Enfrentando a procela em seu furor
Se não fosse a mulher mimosa flor
A história seria mentirosa
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor
Virgulino Ferreira, o Lampião
Bandoleiro das selvas nordestinas
Sem temer a perigo nem ruínas
Foi o rei do cangaço no sertão
Mas um dia sentiu no coração
O feitiço atrativo do amor
A mulata da terra do condor
Dominava uma fera perigosa
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor
A canção traz o nome de diversas mulheres importantes que influenciaram seus
companheiros em suas trajetórias. Vale ressaltar que até então a imagem da mulher era
sempre colocada como secundária.
Cabe ressaltar também que na década de 1970 ainda era pouco comum discutir o
orgasmo feminino, durante muito tempo se imaginou que a “mulher distinta” não sentia
prazer, nem desejo.(PEDRO,2012,p.242).
Portanto, a música era considerada transgressora, uma cantora, já mãe de dois
filhos, falando sobre o prazer que a mulher proporcionava ao homem, e destacando a
influência delas na vida deles. Mas ainda vale ressaltar que mesmo cantada por uma
mulher a música tem uma visão masculina, já que seus compositores são homens.
A canção foi trilha da abertura da minissérie Lampião e Maria Bonita, exibida em
oito capítulos, entre 26 de abril e 05 de maio de 1982, na Rede Globo. Portanto, era
possível ouvir a voz da cantora cantando termos como “gemer” na maior emissora de
televisão do país. Evidenciando uma melhora em relação à liberdade da mulher.
Ao ser questionada se enfrentou problemas por ser mulher a artista disse:
É, sempre foi mais difícil né, os homens sempre ganharam mais, e pra mulher
sempre foi mais, nessa época sempre tinha que ter um homem por perto, embora
tenha sido a época que houve as primeiras bandas demulher, tinha uma que era
Sempre Livre, tinha As Frenéticas, começou essa onda assim da mulherada se
juntar né, mas eu sabia que tinha que ter um homem por perto, porque tinha
mesmo, porque abria mais espaço também, e porque eu também me resguardava
com eles na frente, porque senão tinha também os assédios, essas coisa
todas[...](AMELINHA,2013).
A cantora expõe a fragilidade da mulher, uma artista desacompanhada poderia ser
vítima de assédio não apenas dos fãs, mas também de empresários e colegas. A figura
masculina resguardaria a artista. Outro ponto do ser mulher é a maternidade, a cantora que
teve dois filhos de seu casamento com Zé Ramalho pausou a carreira várias vezes para
cuidar dos filhos, da família:
[...]eu não posso deixar isso pra ninguém, pra minha mãe, pra minha irmã, nada,
é meu filho, mas eu agora, nesse momento, não tá dando mais pra conciliar, ai eu
fui pro Ceará, no Ceará ai me dedicando a família a tudo, e ai vem mais a Maria,
aminha filha, em oitenta e um[...](AMELINHA,2013).
O primeiro filho da cantora nasceu em 1979, a segunda em 1981. Anos em que a
artista fazia grande sucesso com seus discos. Mesmo com todo sucesso Amelinha foi para
Fortaleza cuidar das crianças, exercer a função de mãe. Deixando a carreira em segundo
plano por um tempo.
Fica evidente nesses trechos não apenas a fragilidade feminina, mas a dupla jornada
da mulher, que além de seguir a carreira tinha que cuidar da casa e dos filhos. Portanto,
mesmo a mulher independente sofria com a predominância da sociedade machista, que
mesmo não explicitamente, exerce uma coação sobre a mulher.
Considerações finais
A obra da cantora contém diversas outras canções que abordam a questão do
empoderamento e da liberdade da mulher. A artista, mesmo que de forma não evidente,
representou uma geração de mulheres que estavam lutando por direito ao prazer, liberdade
e por seus direitos de igualdade como mulher.
Do mesmo modo a questão do pertencimento à região de origem perpassa toda a
carreira da artista. Sempre orgulhosa das raízes, mas deixando evidente o olhar do Sudeste
sobre os artistas oriundos de outras regiões.
A análise da carreira da artista possibilita pensar um momento histórico da
sociedade, podendo ser olhado a partir das relações de gênero, da regionalidade, das
transformações da indústria musical. Portanto, traçar um panorama de um momento da
história cultural brasileira.
Referências Bibliográficas
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Entrevistas
Entrevista concedida por Amelinha a Daniel Lopes Saraiva, na cidade de Niterói, em 13 de
novembro de 2013.
Jornais
AZEVEDO,Ana Lúcia. Amelinha. De volta, com surpresas para o público. O Globo, Rio
de Janeiro, 10 abr. 1989.
BAHIANA,Ana Maria. “Mulher nova, bonita e carinhosa...” O novo disco de Amelinha
“faz o homem gemer sem sentir dor. O Globo, Rio de Janeiro, 11 abr. 1982.
LANCELLOTTI,Silvio. Premiados os melhores do disco. Folha de São Paulo, São Paulo,
17 dez. 1981.
O Pessoal do Ceará apresenta Amelinha, que não conhece o sertão. O Globo, Rio de
Janeiro, 18 ago. 1977.